a linguagem e seus usos na música infantil
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a linguagem e seus usos na música infantil
A LINGUAGEM E SEUS USOS NA MÚSICA INFANTIL Ana Carolina Costa Alda (UEL) [email protected] Bruna Stéfani dos Santos Oliveira (UEL) [email protected] Maria Isabel Borges (UEL) [email protected] CONSIDERAÇÕES INICIAIS Desde o nascimento até a idade adulta, o ser humano é acompanhado por variados sons e melodias que o influenciam de diferentes maneiras durante a vida. A música é, talvez, a principal delas. Musicalmente, somos primeiramente apresentados às cantigas de ninar, que nos colocam para dormir quando bebês; depois, somos inseridos em um meio social onde brincamos e cantamos cantigas de roda; e assim, desenvolvemos novas percepções dos amiguinhos, dos pais, dos professores e do próprio ambiente em que vivemos. O objeto de análise deste trabalho é constituído de seis letras de música destinadas ao público infantil: Nana neném, O cravo brigou com a rosa, Atirei o pau no gato, 10 indiozinhos, Banho é bom! e Pindorama. As três primeiras são cantigas de ninar e roda, que, de um lado, podem veicular sentidos inocentes e neutros e, de outro, provocar sentidos ideologicamente marcados e “condenados” socialmente. As demais são canções atuais, atreladas a um intuito pedagógico consonantes com os valores sociais válidos e aceitos. Nossos objetivos são, em primeiro lugar, identificar alguns sentidos veiculados nas letras citadas e, em segundo, verificar de que maneira os sentidos identificados podem influenciar positiva ou negativamente na formação da criança. Teoricamente, consideramos como princípio organizador a concepção ideológica de linguagem. Como Orlandi (2002, p. 95) afirma, “a linguagem não é jamais inocente”; ou seja, ela não se mostra ou se apresenta como neutra. Pelo contrário, sempre há algo a mais a ser dito, além do que está posto ou evidente nas palavras que compõem o texto (o dizer). O aparentemente dito ou o sentido construído à primeira vista nunca é suficiente para desvelar os sentidos possíveis, porém escondidos nas entrelinhas. Cabe ao leitor interpretar o texto, transpondo os limites de sua materialidade. (ARROJO, RAJAGOPALAN, 1992; BORGES, 2008; LEME BRITTO, 2003; KOCH, 2004; ORLANDI, 2002) Metodologicamente, levantamos alguns referenciais teóricos, além do princípio organizador citado, para a análise das letras de música (viés interpretativista). No entremeio da análise, outros referenciais teóricos são trazidos. 1 INFÂNCIA: CONCEPÇÕES As concepções de infância, construídas e reconstruídas ao longo da história e dentro de diferentes culturas, permite-nos compreender não só o desenvolvimento biológico do ser humano, como se dão as relações sociais, mas também a maneira de pensar a si mesmo como sujeito social, histórico e cultural e de conceber o mundo à sua volta. A infância foi, por muito tempo, entendida como algo irrelevante. A criança não era tratada “... como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, e sim como um adulto em miniatura.” (ROCHA, 2002, p. 53) Do século XII ao XVII, a criança era ... vista como substituível, como ser produtivo que tinha uma função utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de idade era inserida na vida adulta e tornavase útil na economia familiar, realizando tarefas, imitando seus pais e suas mães, acompanhado-os em seus ofícios, cumprindo, assim, seu papel perante a coletividade. (ROCHA, 2002, p. 54) A infância, entre os séculos XVII e XVIII, era definida como uma fase de inocência e vulnerabilidade. Somente no final da Idade Média, o ser infantil recebia um tratamento diferenciado, com mimos, e também funcionava como distração para os adultos. Mais tarde, no século XVII, a infância foi inserida numa educação que se preocupava com os valores morais, em concordância com os princípios religiosos, legais e do Estado. Nesse momento, a criança passa a ser disciplinada dentro de um contexto escolar (ARIÈS1, 1981). Desde então, a criança ganhou o seu lugar na sociedade e teve os seus direitos parcialmente reconhecidos e respeitados, porém nada era regulamentado até o século XX. Para Santos Neto e Silva (2007), durante a infância, a criança era destituída de uma voz no mundo. Referindo-se à perspectiva platônica, esse ser, que ainda não era adulto, também não era dotado de uma racionalidade. Infância de “en-fant” significa aquele que não fala, que não tem voz. Por muito tempo a infância foi compreendida como uma etapa da vida que prepararia as crianças para a vida adulta. Desde Platão é possível observarmos uma compreensão da criança como um “vir a ser”, cuja a (sic) marca é a ausência da razão, compreensão e juízo. Ausência entendida aqui como falta. (sic) ( SANTOS NETO; SILVA, 2007, p. 1) 1 Philippe Ariès, estudioso francês e precursor da história da infância, mostrou a construção histórica da infância na obra História social da criança e da família (1960). A proposta de Santos Neto e Silva (2007) — baseados, de um lado, em estudos sobre a história e sociologia da infância, e de outro, nas ideias de Agamben (2005) — é transpor a concepção cronológica de infância para assumir a “condição da existência humana, onde a ‘ausência de voz’ não represente uma falta” (SANTOS NETO; SILVA, 2007, p. 1, grifos dos autores). É um estado do sujeito humano que se constitui como tal na linguagem e por meio dela. Quando nasce, a criança não é falante, por isso é infante. Além disso, não possui experiência, não sendo um sujeito dotado de história. A infância pressupõe, portanto, nossa condição de inacabamento. Somos seres em permanente processo de constituição do si mesmo. Conscientes de nossos limites (sic) desejamos “ser mais”. Assim, reconhecermo-nos como infantes é nos assumir inacabados, sempre aprendendo a falar e a ser falado [...] Assim, infante é todo aquele que está aprendendo a falar, que está se constituindo como sujeito da linguagem ao dizer “eu”, se permitindo a experiência (Agamben, 2005). Neste sentido, a infância não é um privilégio apenas das crianças, mas também dos adultos, que têm como desafio manter viva a própria condição infantil. Para tanto, somos desafiados a romper com uma certa “adultez” que se vê, tão somente, como maturidade, completude, independência, seriedade, rigorosidade, controle e segurança, o que pode vir a resultar numa certa sisudez e arrogância. (SANTOS NETO; SILVA, 2007, p. 2-3) Não se trata de um retorno à infância (fase cronológica), mas sim de uma ampliação da concepção de infância. É claro que a criança se torna adulta, porém ela não pode perder, com esse crescimento, a abertura para a experiência, uma vez que se trata de um sujeito inacabado. Neste trabalho, defendemos que música2 pode funcionar como uma ferramenta pedagógica que dá abertura à criança para a experiência na condição de sujeito. No entanto, observamos que certas letras de música destinadas para as crianças abordam valores atualmente questionáveis ou polêmicos. 2 A MÚSICA COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA Com a criação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) em 1961, o sistema educacional brasileiro foi regulamentado; os estados se tornaram mais autônomos e também foram obrigados a garantir o acesso de crianças à escola nos quatro primeiros anos do ensino fundamental. Houve duas alterações da LDB: em 1971 e 1996. Desde a última alteração (a LDB que está em vigor), o ensino gratuito se tornou obrigatório da educação infantil até o último ano do ensino fundamental (o nono ano, antiga oitava série). As creches e pré-escolas correspondem, atualmente, à primeira etapa da educação básica. (SCUARCIALUPI, 2008). 2 Como objeto de análise deste, entendemos canção como a combinação de letra e melodia. Quando nos referimos à música, estamos falando em sentido mais amplo. Em relação ao texto escrito, usamos a terminologia letra (de música). Em 18 de agosto de 1998, surgiu a lei n. 11.769 para educação musical: o Referencial Nacional para a Educação Infantil (doravante RCNEI, 1998), que torna obrigatório o uso da música na educação básica. De um modo geral, pretende-se possibilitar o desenvolvimento da criatividade e sensibilidade dos alunos, integrando-os. O foco é a formação física e psicológica da criança, não se espera formar músicos. É necessário não apenas trabalhar a música de forma superficial, mas também estimular a inteligência do aluno, fazendo-o compreender os sentidos contidos nas letras. O professor deve trabalhar com músicas adequadas para cada faixa etária, levar em conta o conhecimento prévio do aluno sobre o tema a ser trabalhado. As músicas infantis podem levar ou tendem a levar a criança a se lembrar de eventos do seu dia a dia, devem fazê-la aprender mais sobre o ambiente em que vive e as regras postas pela sociedade. As letras de música infantis, neste artigo, foram separadas em dois grupos: 1) as canções de influência positiva, que são construtivas e educativas, estimulam a criatividade e o desenvolvimento intelectual da criança e 2) as canções de influência negativa, cujas letras são baseadas em valores atualmente polêmicos ou questionáveis e temas, como o medo (uma forma de controlar as crianças), a violência (estímulo à agressividade e à falsa crença de certo). Essas músicas eram mais utilizadas em épocas quando não havia leis de combate à violência contra criança e mulher, por exemplo. Como vimos, no século XV, a criança era usada como mão de obra, atualmente é proibido o trabalho infantil. Como consequência, neste trabalho, objetivamos identificar, em primeiro lugar, alguns sentidos veiculados em seis letras e, em segundo, verificar de que maneira os sentidos identificados podem influenciar positiva ou negativamente na formação da criança. Para Meireles (2001, p. 111), “A escola é que sempre nos dirá o que somos e o que seremos. Ela é o índice das formações dos povos; por ela se tem a medida das suas inquietudes, dos seus projetos, das suas conquistas e dos seus ideais”. (MEIRELES, 2001, p. 111). Na escola, a criança aprende para a vida. O professor é um agente influenciador da formação da criança como sujeito (ARROJO; RAJAGOPALAN, 1992; MEIRELES, 2001) 3 ANÁLISE Neste trabalho, nosso objeto de análise é constituído de seis letras de música destinadas para o público infantil: Nana neném, O cravo brigou com a rosa, Atirei o pau no gato, 10 indiozinhos, Banho é bom! e Pindorama. Para Lopes e Paulino (2009, p. 1), as cantigas são “... canções populares, decorrentes da memória coletiva, de autoria anônima e transmitidas oralmente, as cantigas infantis (de roda ou de ninar) inscrevem-se na tradição folclórica.”, por exemplo, Nana neném, O cravo brigou com a rosa e Atirei o pau no gato, todas interpretadas pelo grupo musical: Galinha Pintadinha3. Tanto essas cantigas quanto outras transportam “marcas de diferentes civilizações ao longo do tempo: aquela que as criaram, mas também civilizações que, por meio de contatos que levaram a trocas culturais, assimilaram e modificaram tais cantigas.” (LOPES; PAULINO, 2009, p. 2) As cantigas brasileiras foram influenciadas pelas culturas portuguesa, espanhola e francesa. Elas se adaptam em função dos interesses da época e do povo, isto é, modificam-se sócio-historicamente. Além de vestígios culturais, segundo Lopes e Paulino (2009, p. 2), as cantigas “são carregadas de estereótipos, de preconceitos, de preceitos morais e tentativas de amedrontamento.” É necessário, primeiramente, deixar claro que os valores inadequados à nossa época estão em suas letras, e não em suas melodias, que são geralmente suaves e lúdicas. Desse modo, a principal “vilã” são as palavras utilizadas nas cantigas e canções infantis, pois podem favorecer a criança a ser agressiva e imitar os comportamentos retratados nas letras. Por isso, tais cantigas deveriam ser adaptadas em função dos valores sociais atualmente aceitos, já que historicamente elas sofrem modificações. Segue a letra da cantiga Nana neném: Nana Neném4 Interpretação: Galinha Pintadinha Nana neném que a cuca vem pegar papai foi pra roça mamãe foi trabalhar Desce gatinho De cima do telhado Pra ver se a criança Dorme um sono sossegado 3 O grupo musical surgiu após um vídeo postado no Youtube em 28 de dezembro de 2006. Passados seis meses, o vídeo intitulado Galinha Pintadinha havia sido visto por mais quinhentas mil pessoas. Daí surgiu o projeto cujo principal objetivo é regatar as canções infantis populares brasileiras. Foram gravados CDs, DVDs e animações em 2D. “Depois disso, o que aconteceu é a história que já está registrada em números e parcerias: mais de 450 mil DVDs oficiais vendidos, 2 discos de platina triplo, mais de 300 milhões de visualizações no Youtube e contratos com grandes empresas de produção artística, distribuição e licenciamento de produtos. Apesar de ser voltado ao segmento infantil, com foco em crianças de zero a seis anos, o projeto ‘Galinha Pintadinha’ une gerações e, com sua roupagem moderna para a cultura tradicional brasileira, coloca para dançar numa mesma sala a vovó e seus netinhos, sempre sob os olhares carinhosos dos pais.” Atualmente, Galinha Pintadinha, uma marca de prestígio entre as crianças de zero e seis anos, é aprovado pelas crianças e pelos pais. (Informações baseadas na página oficial do grupo Galinha Pintadinha. Disponível em: < http://www.galinhapintadinha.com.br>. Acesso em: 08 set. 2012.) 4 Disponível em: <http://letras.terra.com.br/cantigas-populares/1284551>. Acesso em: 8 set. 2012. Quando ouvimos o ritmo suave da cantiga Nana neném, podemos não perceber que, por trás de uma melodia aparentemente inocente em que é retratado um momento cotidiano — a hora de dormir — um efeito negativo pode ser provocado na criança. Nos dois primeiros versos, notamos que a cuca pode representar o bicho-papão. Com isso, a criança pode entender que, caso não durma, algum monstro pode aparecer para levá-la para longe de seus pais. O bicho-papão é uma figura fictícia mundialmente conhecida. É uma das maneiras mais tradicionais que os pais ou responsáveis utilizam para colocar medo em uma criança, no sentido de associar esse monstro fictício à contradição ou desobediência da criança em relação à ordem ou conselho do adulto.5 Como são retratados na letra, os pais estão ausentes; de certa forma, a criança está desprotegida e sofre ameaça de um suposto inimigo. Em outros tempos, de acordo com as transformações da concepção de infância apresentadas anteriormente, a educação da criança se baseava na construção de um medo, uma arma para educar. A criança deveria ter medo em desobedecer a seus pais. Atualmente, não só pais e responsáveis, como também a escola possuem outro papel na educação da criança. A eles não cabe impor medo ou oprimir a criança; é preciso, sim, educá-la com base no diálogo e na preocupação em formar um sujeito aberto para os conhecimentos. Quando falamos em abertura, estamos considerando a concepção de infância, segundo Agamben (2005). Dessa forma, a criança vive não só uma fase cronológica chamada infância, mas também está iniciando suas experiências no mundo e em relação a ele. Nana neném é uma cantiga de ninar que mantém implícito um “assustar”, um amedrontar. De certa maneira, tal cantiga traz marcas de momentos em que, numa casa patriarcal, as crianças eram educadas para obedecer aos pais, principalmente para ter medo do pai (a figura masculina, uma posição ocupada pelo gênero mais forte). As mulheres eram submissas, assim como as crianças. Aquelas tinham medo de seus maridos, ficavam em casa cuidando dos filhos que cresciam. Estes, no caso os meninos, quando homens, acabavam tratando suas mulheres da mesma forma com que seu pai tratava sua mãe, por acreditar que era a maneira correta de um homem se portar. Na cantiga de roda O cravo brigou com a rosa, a submissão feminina é retratada. O cravo brigou com a rosa6 Interpretação: Galinha Pintadinha O cravo brigou com a rosa, Debaixo de uma sacada, 5 Informações retiradas da página Brasil Escola. Disponível <http://www.brasilescola.com/folclore/bichopapao.htm>. Acesso em: 08 set. 2012. 6 Disponível em: <http://letras.terra.com.br/temas-infantis/525936/>. Acesso em: 08 set. 2012. em: O cravo saiu ferido, E a rosa despedaçada. O cravo ficou doente, A rosa foi visitar, O cravo teve um desmaio, E a rosa pôs-se a chorar. A violência doméstica é um problema social, que inclui a relação entre homem e mulher e a relação entre pais e filhos, ambas baseadas na agressão física e verbal. Considerando os quatro primeiros versos, a criança pode entender que é normal/natural brigar, bater e apanhar. O cravo poderia ser associado à figura masculina; enquanto a rosa, à figura feminina. Podemos dizer que, diante da exposição a essa letra, a criança naturaliza a relação de opressão entre homem e mulher. Além disso, nos quatro últimos versos, a figura feminina aceita passivamente a opressão, mostrando-se sempre submissa pelo fato de perdoar os maus tratos sofridos e, ainda, de sentir falta desse tratamento indigno. Por vários séculos, a mulher foi um sujeito emudecido socialmente e, em muitos países, continua sem voz, sem um lugar de reconhecimento na sociedade. É uma contradição tomar essa cantiga de roda como objeto de ensino e aprendizagem em uma sala de aula, tendo uma lei de combate à violência contra mulher, sobretudo aquela oriunda de cônjuges: a Lei Maria da Penha (n. 11. 340, sancionada em 7 de agosto de 2006). A letra em questão constrói sentidos, tomando direções contrárias aos princípios atuais — aqueles que abominam a violência, principalmente aquela contra a mulher. Talvez o fato de essa cantiga trazer à tona um problema contemporâneo pode ser um pretexto para problematizar comportamentos e valores. No entanto, sem uma reflexão, a criança pode ser levada a naturalizar essa forma de violência. A sociedade atual contempla outros valores: as mulheres eram submissas aos homens e limitadas aos afazeres do lar; hoje, grande parte possui um lugar no mercado de trabalho. As mulheres podem votar, entre outros direitos conquistados na condição de cidadãs (algumas das conquistas são frutos dos protestos feministas na década 60). As crianças não podem trabalhar, e todas elas possuem o direito à educação (ECA, 1990). Os animais também estão resguardados por lei n. 9605: a Lei de Crimes Ambientais (1998). Não podem sofrer maus tratos. É crime o tráfico de animais silvestres. Entretanto, na letra Atirei o pau no gato, o animal perde esse direito. Atirei o pau no gato7 Interpretação: Galinha Pintadinha Atirei o pau no gato tô tô Mas o gato tô tô 7 Disponível em: <http://letras.terra.com.br/cantigas-populares/983981/>. Acesso em: 08 set. 2012. Não morreu reu reu Dona Chica cá cá Admirou-se se se Do berro, do berro que o gato deu: Miau! Apesar de essas canções terem sido criadas em outros contextos, em sociedades cujos valores se diferem dos atuais (criança usada como força de trabalho, submissão da mulher, agressões contra esta e animais etc.), é um tanto “perigoso” a reprodução e comercialização. Muitas vezes, as intenções mercadológicas da indústria cultural se afastam dos valores sociais tidos como adequados. Não justifica a comercialização apenas pelo fato de se tratarem de heranças culturais de um povo. O passado não pode influenciar o presente de maneira a propiciar a reprodução de erros já cometidos; ele precisa reaparecer para desencadear a escrita de uma história que se afaste da violência em diferentes ordens. Nas canções 10 indiozinhos, Banho é bom! e Pindorama, são considerados outros valores morais. Neste trabalho, estamos considerando as interpretações dessas canções, respectivamente, de: Galinha Pintadinha, Castelo Rá-tim-bum8 e Palavra Cantada9. Ao lado do resgate de canções folclóricas (cantigas de ninar e roda), há, no Brasil, uma proposta de composição de letras de música para o público infantil tanto atreladas a um arranjo musical criativo, como preocupadas em desencadear sentidos coerentes com princípios pedagógicos e valores sociais, tendo em vista a formação da criança como sujeito. Como alertam Porto e Santos (2005), a visão de mundo da criança não nasce junto com ela; nas relações sociais, ela constrói tal visão, sobretudo nas relações estabelecidas no âmbito da família e da escola. Alencar de Brito (2001; 2003), com base no pensamento do educador alemão Koellreutter, afirma que a linguagem musical possibilita a “ampliação da percepção e da consciência” (ALENCAR de BRITO, 2001, p. 26) do sujeito, para que certas pré-concepções e visões dicotômicas (o mundo visto a partir de dois lados apenas) possam ser superadas. Além disso, a educação musical, segundo Alencar de Brito (2001; 2003) se baseia na interdisciplinaridade, favorecendo, portanto, o diálogo entre distintas áreas de conhecimento. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais referentes à arte (1997), a educação musical visa provocar no sujeito em formação uma percepção de “... sua realidade cotidiana mais 8 Trata-se de um programa infantil, exibido inicialmente pelo canal Cultura. Recebeu vários prêmios. Várias canções educativas destinadas ao público infantil fazem parte do programa. (Informações baseadas na página oficial, disponível em: <www.tvratimbum.com.br>. Acesso em: 09 set. 2012) 9 Sandra Peres e Paulo Tatit formam Palavra Cantada, que existe desde 1994. A proposta da dupla é “criar novas canções para as crianças brasileiras. Em todos os trabalhos que realizaram desde então, tornaram-se linhas marcantes a preocupação com a qualidade das letras, arranjos e gravações e o respeito à inteligência e à sensibilidade da criança”. Assim como Castelo Rá-tim-bum, Palavra Cantada recebeu vários prêmios; ambos são admirados pelo público e pela crítica. (Informações baseadas na página oficial, disponível em: <http://www.palavracantada.com.br/institutionals>. Acesso em: 09 set. 2012) vivamente, reconhecendo objetos e formas que estão à sua volta, no exercício de uma observação crítica do que existe na sua cultura, podendo criar condições para uma qualidade de vida melhor.” (PCN, 1997, p. 19). Com base em PCN (1997) e Alencar de Brito (2001; 2003), as letras de música devem ser colocadas como objeto de ensino e aprendizagem, para construir uma percepção crítica do mundo em que a criança está inserida. Portanto, a educação musical não pode se limitar a reproduzir, ou melhor, a perpetuar tradições populares ou folclóricas, pois, como observamos, sentidos incoerentes com os valores morais atuais mantêm-se nas entrelinhas de algumas letras. Em contraposição à evidência de alguns efeitos de sentidos implícitos nas letras Nana neném, O cravo brigou com a rosa e Atirei o pau no gato, os quais podem influenciar negativamente na formação da criança, seguem-se três canções cujas influências são positivas: 10 indiozinhos, Banho é bom! e Pindorama. 10 indiozinhos Interpretação: Galinha Pintadinha 1, 2, 3 indiozinhos 4, 5, 6 indiozinhos 7, 8, 9 indiozinhos 10 no pequeno bote Iam navegando rio abaixo Quando o jacaré se aproximou E o indiozinho olhou pra baixo E o bote quase virou Na letra, narra-se um episódio em que dez indiozinhos estavam navegando em pequeno barco (bote), quando um jacaré se aproximou, com o objetivo de atacá-los. Felizmente, não houve um desfecho trágico, pois o barco não virou. Por trás dessa letra, explora-se um conhecimento matemático. Com os dedos das mãos e fazendo outros movimentos com o corpo, a criança aprende a contagem de 1 a 10. Há, nesse caso, o diálogo entre a linguagem corporal, musical e matemática, o que confirma um aspecto defendido por Alencar de Brito (2001; 2003). Banho é bom! Tchau Preguiça Tchau Sujeira Adeus cheirinho de suor Lava, lava, lava Lava, lava, lava Uma orelha, uma orelha Outra orelha, outra orelha Lava, Lava, lava Lava testa, bochecha Lava o queixo, lava coxa e lava até meu pé Meu querido pé que me aguenta o dia inteiro E o meu nariz, meu pescoço Interpretação: Castelo Rá-tim-bum # La la la la la # Ainda não acabou não, vem cá, vem Uma enxugadinha aqui, uma coçadinha ali Faz a volta e põe a roupa de enfaixar Banho é bom, Banho é bom Banho é muito bom Agora acabou! O meu tórax e o meu bumbum E também o fazedor de xixi. Porto e Santos (2005) apontam que tomar banho e escovar os dentes são duas práticas diárias de higiene ainda vistas por algumas crianças como um “terror”. Por isso, por meio do programa infantil Castelo Rá-tim-bum, exibido inicialmente pela TV Cultura, procura-se ensinar a criança a tomar banho sozinha. Assim, torna-se mais autônoma, adquire um hábito saudável por meio de uma canção lúdica. Todas as partes que precisam ser limpas, durante o banho, são citadas na letra. Constrói-se um ritual, havendo um paralelo entre o ato de banhar-se e o desenvolvimento da letra de música. A linguagem é adequada ao universo da criança, de modo a mostrar as funções de algumas partes de nosso corpo, por exemplo: o pé, “... que me aguenta o dia inteiro” (verso 11), e o bumbum, “... o fazedor de xixi.” (verso 14). Considerando a letra de música em sua totalidade, a criança deverá compreender o ato de tomar banho como uma rotina, baseada em etapas/procedimentos, e também como uma forma de cuidado e carinho consigo mesma. A canção, nesse caso, está formando na criança senso de organização e direcionamento para a tarefa de higiene pessoal. A última letra de música a ser abordada é Pindorama: Pindorama (Terra à vista!) # Pindorama, Pindorama É o Brasil antes de Cabral Pindorama, Pindorama É tão longe de Portugal Fica além, muito além Do encontro do mar com o céu Fica além, muito além Dos domínios de Dom Manuel # Vera Cruz, Vera Cruz Quem achou foi Portugal Vera Cruz, Vera Cruz Atrás do Monte Pascoal Bem ali Cabral viu Dia 22 de abril Não só viu, descobriu Toda a terra do Brasil Pindorama, Pindorama Mas os índios já estavam aqui Pindorama, Pindorama Já falavam tupi-tupi Só depois, vêm vocês Que falavam tupi-português Só depois com vocês Nossa vida mudou de uma vez # Pero Vaz, Pero Vaz Disse em uma carta ao rei Que num altar, sob a cruz Rezou missa o nosso frei Mas depois seu Cabral Foi saindo devagar Do país tropical Para as Índias encontrar # Para as índias, para as índias Mas as índias já estavam aqui Avisamos: "olha as índias!" Mas Cabral não entende tupi Se mudou para o mar Ver as índias em outro lugar Deu chabu, deu azar Muitas naus não puderam voltar Mas, enfim, desconfio Não foi nada ocasional Que Cabral, num desvio Viu a terra e disse: "Uau!" Não foi nau, foi navio Foi um plano imperial Pra aportar seu navio Num país monumental Interpretação: Palavra Cantada # Ao Álvares Cabral Ao El Rei Dom Manuel Ao índio do Brasil E ainda quem me ouviu Vou dizer, descobri O Brasil tá inteirinho na voz Quem quiser vai ouvir Pindorama tá dentro de nós # Ao Álvares Cabral Ao El Rei Dom Manuel Ao índio do Brasil E ainda quem me ouviu Vou dizer, vem ouvir É um país muito sutil Quem quiser descobrir Só depois do ano 2000 O objetivo da canção é narrar a história da origem do Brasil para a criança. Há o diálogo entre a linguagem musical e a história do Brasil, para que a criança possa compreender quem ela é como sujeito brasileiro, pois a origem é um elemento importante na construção da identidade. Os pontos da história do Brasil tematizados na letra são: data de chegada de Cabral ao Brasil no dia 22 de abril, colonização de origem portuguesa, língua falada na época, os índios como os primeiros habitantes, clima tropical, a menção à primeira missão realizada etc. Através de uma canção lúdica, a criança aprende uma narrativa que faz parte da história do Brasil. CONSIDERAÇÕES FINAIS A criança de hoje possui um conhecimento de mundo distinto do que a de antigamente, em função da facilidade em acessar a internet e em ver tudo via televisão, inclusive conteúdos inadequados a menores de 18 anos. Dessa forma, como alega Stant (1985), acelerou-se o amadurecimento da criança. E mais, assuntos de adulto, como romances e violência, precocemente estão sendo apresentado à criança, sem que haja uma reflexão a respeito. A velocidade com que as informações estão sendo propagadas pelos meios de comunicação pode favorecer a construção de conhecimentos ou não. Desde o final da década de 1990, uma nova política pública educacional impulsionou mudanças fundamentais no processo de ensino e aprendizagem. A música, por exemplo, passou a ser uma das ferramentas para a educação infantil. No entanto, como alerta Alencar de Brito (2001; 2003), em um contexto pedagógico-musical, é preciso respeitar as particularidades das diferentes fases de desenvolvimento da criança e, acima de tudo, compreender que trabalhar com a música é não esquecer que se trata de uma construção incessante, alicerçada na percepção, experiência, imitação, criação, reflexão e no sentimento. Portanto, não se espera formar futuros músicos, mas sim sujeitos de experiência. Vale lembrar que o ato de experimentar não deveria desaparecer à medida que a criança vá crescendo; a experiência deveria, sim, permanecer em todas as fases biológicas do sujeito, de maneira a ser sua condição humana (AGAMBEN, 2005; SANTOS NETO, SILVA, 2007). A música é definida de maneira diferente ao longo dos tempos, assim como a concepção de infância foi sendo modificada. Muitas das canções funcionam como verdadeiros transportes de culturas e histórias das sociedades. Ao mesmo tempo em que o passado reaparece no presente por meio de uma canção, os sentidos ressurgem. Contudo, tais sentidos, muitas vezes, destoam dos valores sociais em jogo no momento histórico-social vivido. Desse modo, um relevante resgate de canções populares ou folclóricas pode tornar-se uma intervenção danosa ao invés de benéfica, especialmente na escola. Motivadas por essa ambivalência funcional da música/canção como ferramenta pedagógica, consideramos este trabalho como um grande alerta, pois o educador precisa tomar cuidado com os efeitos de sentidos desencadeados na linguagem e por meio dela. As concepções de linguagem são plurais à medida que, em cada época, uma delas se torna predominante. Até meados do século XX, a linguagem como expressão do pensamento prevaleceu. De meados desse século até início dos anos de 1980, prevaleceu a linguagem como instrumento da comunicação. Desde os primeiros anos da década de 1980, com os estudos do Círculo de Bakhtin, a linguagem é vista como forma de interação (BAKHTIN; 1929/1992; GERALDI; 2001; KOCH, 2004). Neste trabalho, consideramos a linguagem como um meio que possibilita a interação entre os sujeitos, desde que compreendida como uma via, um ponto de partida e um lugar (um espaço simbólico ou discursivo) para que os valores ideológicos possam atuar/agir. Dessa maneira, para nós, a linguagem não está desvinculada de sentidos marcadamente ideológicos. Por trás das aparências das palavras, há sentidos camuflados. Sempre ao fundo de um dizer (um texto), existem “coisas não ditas”, sentidos mascarados, que estão resguardados nos labirintos daquilo que as palavras podem significar (BAKHTIN, 1929/1992; BORGES, 2008; LEME BRITTO, 2003; ORLANDI, 2002). As escolhas das palavras para a construção de um texto não são atos aleatórios; pelo contrário, são atos que geram consequências (ARROJO, RAJAGOPALN, 1992; AUSTIN, 1962/1990; BORGES, 2008; RAJAGOPALAN, 2003). Com base nisso, as letras de música analisadas não podem se tornar objeto de ensino e aprendizagem que ora funcionam como pretextos para a apresentação de heranças culturais (Nana neném, O cravo brigou com a rosa e Atirei o pau no gato), ora atuam como ferramentas para explorar temas, atitudes e valores sociais adequados (10 indiozinhos, Banho é bom! e Pindorama). As letras do primeiro grupo simultaneamente carregam vestígios de um passado que, em parte, constitui nossa identidade cultural. Entretanto, essa maneira de concebê-las torna-se uma leitura ingênua se forem esquecidos os temas polêmicos e as atitudes “condenadas” pela sociedade atual. Em Nana neném, é preciso problematizar a educação vinculada ao medo e ao castigo. Em O cravo brigou com a rosa, a violência contra a mulher, por exemplo, e, em Atirei o pau no gato, a violência contra os animais não podem se tornar questões naturalizadas no dia a dia. Pelo contrário, é preciso questionar essas e outras questões retratadas nas letras como se fossem normais, para mostrar que os valores sociais em jogo atualmente são outros. Com isso, tais letras podem servir de ponto de partida para mostrar o movimento histórico dos valores sociais e culturais. Acreditamos que sem as devidas reflexões essas canções podem atuar como estímulos para a manutenção de condutas inaceitáveis, por exemplo, a violência doméstica como prática naturalizada e normatizada. De certa forma, o dizer contemplado nas letras pode acarretar fazeres a ele condizentes. Assim, a escola não estaria introduzindo e formando crianças para a experiência da vida. Alguns artistas voltados para o público infantil, estudiosos e educadores perceberam o perigo da ambivalência em torno de certas canções infantis pertencentes à cultura e ao folclore brasileiro. Ao lado de críticas, é preciso eleger canções infantis coerentes com os valores sociais e com os princípios do trabalho pedagógico-musical. Nesse caso, temos como exemplos as letras das seguintes canções: 10 indiozinhos, Banho é bom! e Pindorama. Ao fundo, o dizer que entrelaça conhecimentos de áreas distintas exemplifica para a criança a maneira como os conhecimentos são construídos, ou seja, de modo interdisciplinar. Elas transpõem a mera reprodução de um passado que pouco acrescenta à formação da criança como sujeito. A aprendizagem pode ser divertida e construtiva ao invés de ser mecânica e repetitiva. Por fim, às pessoas que educam por meio da música, sobretudo aos educadores, fica nosso alerta: a linguagem não é neutra, inclusive a linguagem musical não é desprovida de valores ideológicos. Por essa razão, quando se trabalha com linguagem, a reflexão dos sentidos possíveis deve estar sempre presente na organização de dizeres/fazeres. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgi. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. ALENCAR de BRITO, Teca. Koellreutter educador: o humano como objetivo de educação musical. São Paulo: Peirópolis, 2001. ______. Música na educação infantil: propostas para a formação integral da criança. 2. ed. São Paulo: Peirópolis, 2003. ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ARROJO, Rosemary; RAJAGOPALAN, Kanavillil. O ensino da leitura e a escamoteação da ideologia. In: ARROJO, Rosemary (Org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. 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