INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS
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INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS
INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS INICIATIVA LATINO-AMERICANA SOBRE DROGAS E DEMOCRACIA Martin Jelsma, Transnational Institute Martin Jelsma é um cientista político holandês especializado em políticas internacionais de controle de drogas. Desde 1995 ele é o coordenador do Programa sobre Drogas e Democracia do Transnational Institute (TNI), baseado em Amsterdã, que se dedica a pesquisas sobre drogas e à promoção de diálogos entre oficiais de governo e especialistas na Europa, América Latina e Ásia. Outubro de 2009 SECRETARIADO DA INICIATIVA LATINO-AMERICANA SOBRE DROGAS E DEMOCRACIA: Bernardo Sorj Ilona Szabó de Carvalho Miguel Darcy de Oliveira APOIO: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Instituto Fernando Henrique Cardoso Open Society Institute Para saber mais sobre a Iniciativa, acesse o site: www.drogasedemocracia.org Para entrar em contato, escreva para o email: [email protected] Projeto gráfico: Cacumbu // Amapola Rios INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS1 MARTIN JELSMA, TRANSNATIONAL INSTITUTE Este relatório apresenta um resumo das boas práticas nas reformas legislativas em políticas sobre drogas em todo o mundo, que representam um afastamento do modelo repressivo de tolerância zero e um avanço em direção a uma política de drogas mais humana e baseada em evidências empíricas. Os exemplos refletem as lições aprendidas na prática com as abordagens menos punitivas e seu impacto sobre os níveis de consumo de drogas e os danos associados sobre o indivíduo e a sociedade. As evidências sugerem que a legislação que reduz a criminalização, acompanhada de medidas que favoreçam o deslocamento de recursos alocados em atividades de repressão e encarceramento para a prevenção, tratamento e redução de danos, é mais efetiva na redução dos problemas relacionados às drogas. Os temores de que o relaxamento das leis antidrogas e sua aplicação se traduziriam por um drástico aumento do consumo de droga provaram ser infundados. Os exemplos citados adiante, apesar de suas diferenças de alcance e objetivos, podem ser considerados como avanços em relação a um modelo excessivamente repressivo de controle de drogas e apontam para uma direção de reformas e mudanças de paradigma mais significativas no futuro. O centro de gravidade dessas reformas situa-se na Europa, como resume o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT): “A análise das estratégias nacionais em relação às drogas, da literatura legal, das leis e práticas judiciais sugere que em diversos países da União Européia a ação pública se baseia em a) um foco maior no tratamento que na punição criminal; b) uma sensação de desproporção entre as sentenças de privação de liberdade (frequentemente envolvendo registros de antecedentes criminais) e o consumo ilícito de drogas; e c) uma percepção de que a canabis é menos perigosa para a saúde em comparação a outras drogas”. Também foram realizadas reformas semelhantes na Austrália, no Canadá e em diversos estados nos Estados Unidos, com forte impulso também na América Latina, região que pode se tornar um novo centro de gravidade para o fomento desse tipo de reforma no futuro próximo. 1. Texto de apoio para a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia. O texto original em inglês foi editado por David Aronson. Tradução para o espanhol por Beatriz Martinez Ruiz. Tradução para o português por Micheline Christophe. Martin Jelsma contribuiu com um primeiro texto de apoio para a Comissão em abril de 2008 intitulado “The current state of drug policy debate. Trends in the last decade in the European Union and United Nations”, disponível em www.drugsanddemocracy.org 2. European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, Illicit drug use in the EU: legislative approaches, EMCDDA Thematic Papers, Lisboa 2005. Martin Jelsma 3 1. DESCRIMINALIZAÇÃO DOS USUÁRIOS DE DROGA O primeiro tipo de reforma legislativa promulgada na Europa – e que ultimamente vem ganhando força na América Latina – consiste em eximir os usuários de drogas da prisão e de processos penais pelo consumo de drogas e por atos preparatórios como aquisição, o porte simples ou o cultivo para uso pessoal. Não há argumentos fundamentados cientificamente contra os méritos desse nível de descriminalização. Como será demonstrado adiante, não conduz ao aumento do consumo de drogas, mas alivia consideravelmente a pressão sobre as agências de aplicação da lei e sobre os sistemas penais e judiciais, removendo as barreiras que impedem que os consumidores de drogas com padrões problemáticos de uso possam procurar serviços de tratamento e redução de danos. As dúvidas e os dilemas em matéria de políticas giram em torno da natureza precisa da distinção legal entre porte para consumo pessoal e porte com intenção de fornecimento para outros. Algumas reformas legislativas estabelecem limites quantitativos; outras definem a distinção em termos de certos critérios e princípios e deixam ao promotor e ao juiz a decisão sobre a aplicação em cada caso específico. Algumas reformas removeram todas as punições (descriminalização total), enquanto outras só retiraram sanções criminais e sentenças de prisão, embora mantendo penalidades administrativas ou indicação para tratamento ou educação. Na Europa, “o fator determinante da gravidade de um delito é a intenção mais que a quantidade possuída. A grande maioria dos países optou por mencionar ‘pequenas’ quantidades em suas leis ou diretrizes, deixando para o arbítrio dos tribunais (ou da polícia) a determinação do tipo de delito (uso pessoal ou tráfico). Nenhum país usa a quantidade como único critério para estabelecer uma diferença nítida entre consumidores e traficantes”.3 3. European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, Illicit drug use in the EU: legislative approaches, EMCDDA Thematic Papers, Lisboa 2005. 4 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS EXEMPLOS DE LIMITES UTILIZADOS NA DESCRIMINALIZAÇÃO DA POSSE PARA USO PESSOAL País Limite quantitativo definido por Lei Prática jurídica Portugal A quantidade necessária para consumo médio individual por um período de 10 dias. 25 g de canabis e 2 g de cocaína são usados como referência, mas quando não há evidência adicional sobre a intenção de fornecimento, mesmo quantidades maiores são consideradas como posse para uso pessoal. Uruguai A posse de “uma quantidade razoável destinada exclusivamente para o consumo pessoal” não é penalizada. Deixa-se inteiramente ao arbítrio do juiz que determine se a intenção é de consumo ou fornecimento a terceiros. Finlândia A posse de 15 g de canabis, 1 g de heroína, 1,5 g de cocaína, 10 pílulas de ecstasy é penalizada somente com multa. 100 g de canabis, 2 g de heroína, 4 g de cocaína, 40 pílulas de ecstasy são penalizados somente com multa. Espanha 40 g de canabis, 5 g de cocaína não são considerados fornecimento Holanda 5 g de canabis e 0,5 g de cocaína ou heroína não são penalizados. Permite-se 5 plantas de canabis; posse de até 30 g recebe pequena multa, até 1 kg multa maior, mais que isso é penalizado com sentença de prisão; para pequenas quantidades de “drogas pesadas”, na prática, deixa-se a polícia, a promotoria e eventualmente o juiz determinarem se a intenção era de consumo ou fornecimento México 5 g de canabis, 2 g de ópio, 0,5 g de cocaína, 0,05 g de heroína Qualquer quantidade acima dos limites é considerada tentativa de fornecimento. Paraguai 10 g de canabis, 2 g de cocaína ou heroína Colômbia 20 g de canabis , 1 g de cocaína A Corte Suprema determinou que são necessárias mais provas para punir alguém apanhado com mais que o limite por fornecimento Austrália (alguns estados) Quatro estados australianos descriminalizaram a posse de canabis de 15 até 50 g. Somente sanções administrativas Estados Unidos (alguns estados) 13 estados descriminalizaram a posse de canabis, vários utilizando 28,45 g (uma onça) como limite Os sistemas variam por estado ou condado, a maioria aplicando pequenas multas Martin Jelsma 5 Um dos exemplos mais bem documentados de descriminalização do consumo de drogas é o caso de Portugal. Em julho de 2001, a aquisição e posse de drogas para consumo pessoal deixou de ser um delito criminal para ser considerado um delito menor, punível com multa ou outra medida administrativa, a ser aplicada pelas chamadas Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDTs). Essas comissões são formadas por um jurista e dois outros membros escolhidos entre uma equipe de médicos, psicólogos, sociólogos e assistentes sociais.4 As CDTs cuidaram em média de 500 casos por mês. A maioria das sentenças determinou a suspensão das ações judiciais envolvendo consumidores não dependentes. Cerca de 10 por cento dos casos foram resolvidos com uma multa. A nova lei adotou a norma de “a quantidade necessária para um consumo médio individual por um período de 10 dias”. São dadas orientações sobre o que constitui uma dose média diária, por exemplo, 2,5 g para canabis ou 0,2 g para cocaína. “Esses limites são indicações e não determinações; entretanto, desde que não existam evidências adicionais envolvendo o consumidor de drogas em delitos mais graves, a posse de droga é descriminalizada, tratada como uma violação administrativa, não como delito criminal sujeito a ser processado judicialmente”.5 A descriminalização em Portugal levou à redução do número de prisioneiros condenados por delitos relacionados às drogas, declinando de 44% em 1999 a 28% em 2005. Diminuir os prisioneiros condenados por droga contribuiu para uma considerável redução da superpopulação carcerária. Em 2005, o número de prisioneiros já não excedia mais a capacidade oficial das penitenciárias. A grande queda nas mortes relacionadas à heroína (de 350 em 1999 para 98 em 2003) pode ser associada ao aumento significativo de consumidores que entraram em tratamento de substituição. Embora as mortes relacionadas ao consumo de algumas outras drogas tenham aumentado, houve uma queda geral de 60% nas mortes relacionadas às drogas entre 1999 e 2003. O efeito da descriminalização sobre os níveis de uso de droga permite diferentes interpretações. O consumo de heroína caiu consideravelmente, mas o de cocaína e canabis aumentaram, especialmente entre os jovens, como ocorreu em diversos outros países Europeus, embora em Portugal ainda se situe bem abaixo da média da União Européia (ver quadro). De modo geral, como concluiu o Cato Institute, “avaliada por praticamente qualquer indicador, a estrutura de descriminalização portuguesa foi um retumbante sucesso. Os formuladores de políticas de drogas do governo português são praticamente unânimes em sua crença de que a descriminalização possibilitou uma abordagem muito mais eficaz de administração dos problemas de dependência e outras aflições relacionadas às drogas”. 6 4. External and Independent Evaluation of the “National Strategy for the Fight Against Drugs” and of the “National Action Plan for the Fight Against Drugs and Drug Addiction – Horizon 2004”, performed by the Portuguese National Institute of Public Administration for the Institute for Drugs and Drug Addiction, Lisboa, Julho 2005. 5. Charlotte Walsh, On the threshold: How relevant should quantity be in determining intent to supply?, International Journal of Drug Policy 19 (2008) 479–485. 6. Glenn Greenwald, Drug Decriminalization in Portugal, Cato Institute 2009. 6 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS DESCRIMINALIZAÇÃO EM PORTUGAL E NÍVEIS DE CONSUMO DE CANABIS A primeira pesquisa populacional geral sobre o consumo de drogas foi realizada em 2001, o ano em que a descriminalização foi introduzida, e por isso é difícil fazer comparações com a situação anterior a este ano. A segunda pesquisa foi feita em 2007. Segundo os dados coletados, a prevalência de vida da canabis aumentou de 7,6% em 2001 para 11,7% em 2007, ainda muito abaixo da média da União Européia de 21,8%. O aumento ocorreu principalmente entre os jovens. O projeto europeu de Pesquisa Sobre Álcool e Outras Drogas nas Escolas (ESPAD) fornece alguns dados comparativos de 1999 (pré-descriminalização), 2003 e 2007, para o grupo de idade de 15 a 16 anos. A tendência parece indicar que inicialmente o uso de canabis aumentou, mas começou a decrescer novamente em 2007. Os resultados da pesquisa de 2007 mostraram que a prevalência de vida da canabis era de 13% (comparados aos 18% em 2003 e 12% em 1999); a prevalência no último ano era 10% (13% em 2003, 9% em 1999); e a prevalência no último mês era 6% (8% em 2003, 5% em 1999). O aumento inicial não pode ser atribuído apenas à descriminalização, uma vez que outros países apresentaram também aumentos no mesmo período. Outro fator que pode ter influenciado as estatísticas é que depois da descriminalização mais jovens podem ter se disposto a dar informações sobre seu consumo nos questionários. 2. ALTERNATIVAS AO ENCARCERAMENTO Os experimentos com medidas menos repressivas estão sendo aplicados não só a pessoas presas pela simples posse, mas também por delitos como tráfico de rua, furto de lojas, roubo a residências e roubo a transeuntes. Um número significativo desses presos apresenta padrões problemáticos de abuso de drogas e recorre ao micro-tráfico ou a pequenos crimes para financiar seu consumo de droga. Deve-se ressaltar uma distinção clara na categoria descrita acima. A maioria das pessoas detidas por simples posse não deseja nem necessita de tratamento (por consumo ocasional ou recreativo), e obrigar as pessoas a segui-lo demonstrou ser amplamente ineficaz. Nesta categoria, entretanto, os delitos criminais estão arraigados no problema de uso de droga. Os delitos (furto, roubo) obviamente não podem ser “descriminalizados”, mas encarcerar os infratores não soluciona a causa principal e conduz a um círculo vicioso de múltiplas infrações, que respondem por uma proporção significativa dos delitos menores. Por este motivo, vários países adotaram planos de orientação ou tribunais especializados em drogas para tratar dos delitos relacionados às drogas, oferecendo aos infratores uma opção entre prisão e tratamento. Nos tribunais especializados em drogas em funcionamento nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Irlanda, o juiz é auxiliado por uma equipe de profissionais que o assessoram sobre as opções de tratamento mais apropriadas em cada caso, em lugar de sentenças de privação de liberdade. O Martin Jelsma 7 principal objetivo é a redução da delinquência, oferecendo aos infratores não violentos a chance de escapar ao círculo vicioso de drogas-crimeprisão. Entretanto, os resultados iniciais são, no melhor dos casos, desiguais, dependendo do critério de elegibilidade para admissão7, do leque de sanções alternativas e da qualidade dos serviços de tratamento.8 O Reino Unido introduziu em 1999 um “programa de orientação”, que oferecia a pessoas presas por problemas de consumo de drogas a possibilidade de assistência terapêutica apropriada imediatamente após a detenção. De acordo com o ex-comissário de polícia, Tom Lloyd, essa abordagem “ofereceu aos dependentes que apresentavam reincidência do delito uma escolha entre tratamento e prisão. Quase invariavelmente escolhiam tratamento, e os agentes policiais surpreenderam-se ao descobrir que não só isso poupava tempo e recursos preciosos, mas também era o modo mais eficaz que tinham visto para combater o roubo a residências”.9 Em algumas cidades britânicas, adotou-se uma abordagem mais integral, identificando o pequeno grupo de delinqüentes mais frequentes e oferecendo a cada um deles um pacote personalizado de reabilitação, que incluía moradia, emprego, cuidados de saúde e assim por diante. Os índices de delitos menores caíram drasticamente. Esse modelo também foi aplicado em alguns dos bairros mais gravemente afetados por delitos relacionados a drogas nas cidades holandesas, com resultados positivos semelhantes. No Reino Unido, as opções à disposição do sistema de justiça criminal expandiramse rapidamente, estimulando ou conduzindo os infratores dependentes a seguir um tratamento. Uma avaliação do programa concluiu que essas medidas podem ser “eficazes para reduzir o consumo de drogas e o crime, e melhorar a saúde mental e a integração social. Conseqüentemente, deveriam ser consideradas uma alternativa viável ao encarceramento. Entretanto, deve-se prestar mais atenção a questões relacionadas ao processo de tratamento e à coordenação entre os sistemas de tratamento e de justiça criminal, com o objetivo de oferecer um tratamento coerente e de alta qualidade, que permita otimizar os resultados para os indivíduos e a sociedade em geral”10 7. Muitos tribunais especializados em drogas nos Estados Unidos, por exemplo, só aceitam tratar casos de infratores que não tenham antecedentes criminais significativos. Na Irlanda, os resultados do Tribunal de Tratamento de Drogas de Dublin foram tão decepcionantes que o projeto piloto para a pequena escala corre o risco de ser encerrado. Entre 2002 e 2008 apenas 22 infratores por ano foram admitidos no programa – um quinto do esperado – dos quais somente 17% completaram o programa satisfatoriamente para o tribunal. 8. Alex Stevens, Mike Trace e Dave Bewley-Taylor, Reducing Drug Related Crime: An Overview of the Global Evidence, Beckley report 5, Londres 2005. 9. Tom Lloyd, The war on drugs is a waste of time, in: The Observer, Londres 20 de setembro 2009. 10 Tim McSweeney, Alex Stevens e Neil Hunt, The quasi-compulsory treatment of drug-dependent offenders in Europe, Final National Report – England, ICPR/EISS, February 2006. Para mais material sobre esta questão: http://www.kent.ac.uk/ eiss/projects/qcteurope/papers.html 8 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS O TRATAMENTO COMO UMA ALTERNATIVA ÀS PENAS DE PRISÃO O encaminhamento dos infratores com padrões problemáticos de consumo de drogas aos serviços de tratamento em lugar da prisão pode ser aplicado em três etapas diferentes dos procedimentos legais, como indicado no Relatório Anual de 2005 do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA). Em geral, o serviço de liberdade condicional e os programas de tratamento de dependência a drogas participam do procedimento, e a decisão é tomada com o consentimento do cliente. Etapa de pré-julgamento: A prisão preventiva e a prisão temporária pré-julgamento podem ser suspensas para tratamento. As decisões sobre o encaminhamento para tratamento são tomadas pela polícia, pelo promotor ou pelo juiz de primeira instância. Etapa de julgamento: O juiz pode decidir suspender o processo por certo período para permitir ao infrator o acesso ao tratamento, ou a sentença pode ser completamente ou parcialmente suspensa condicionada a que o cliente entre em um programa de tratamento específico. Etapa pós-julgamento: Depois de ter cumprido parte da sentença de prisão, os detentos podem ser levados a uma clínica residencial fora da prisão. Esta pode também ser uma opção para a liberdade condicional. O Plano de Ação sobre as Drogas 2000-2004 da União Européia propôs que os Estados Membros estabeleçam mecanismos concretos para oferecer alternativas ao encarceramento, especialmente para jovens infratores consumidores de drogas. A avaliação do plano de ação confirmou um aumento geral das alternativas comunitárias ao encarceramento, não apenas por posse de drogas, mas também para os delitos não-relativos a drogas cometidos por usuários de drogas com padrões problemáticos.11 De acordo com o ECMDDA (European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction/Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência), “esta tendência coincide com o desenvolvimento de paradigmas mais humanitários na legislação e nos sistemas de justiça criminal, bem como de modelos médicos e psicossociais de dependência mais avançados”. Prender os dependentes por delitos cometidos para financiar seus hábitos de consumo de drogas leva a “limitar as chances de tratamento de sucesso, aumentando as possibilidades de reincidência”. Nos Estados Unidos, foram implementados alguns programas promissores, com o objetivo de reduzir a violência do mercado de drogas. No projeto “Boston Gun”, também conhecido como “Operação Cessar Fogo” (Operation Ceasefire/Boston Gun Project), ofereceu-se aos integrantes de gangues envolvidos com o tráfico de drogas a possibilidade de não serem processados, em troca de não incorrer em violência letal. A polícia dedicou tempo a investigar quais gangues estavam em guerra. Em seguida, informou a cada 11. European Commission, Communication from the Commission to the Council and the European Parliament on the results of the final evaluation of the EU Drugs Strategy and Action Plan on Drugs (2000–2004), COM (2004) 707 final. For an overview of available alternatives to prison in EU countries, see: http://eldd.emcdda.europa.eu/html.cfm/index13223EN.html?nNodeID=13223&sLanguageISO=EN Martin Jelsma 9 gangue: se qualquer membro do bando inimigo for morto em um ataque de gangue, nós prenderemos vocês por tráfico de drogas. Os resultados foram imediatos e espetaculares. Conseguiu-se repentinamente reverter um padrão aparentemente duradouro e imutável de homicídio juvenil.12 Outra inovação na estratégia de policiamento do mercado de drogas foi introduzida na cidade de High Point, na Carolina do Norte, EUA. Nessa cidade, há muito tempo vitimada por problemas decorrentes de um mercado de drogas a céu aberto, a polícia dedicou um longo tempo a reunir informação sobre quem estava ativo nesses mercados. Fez contato com os pais dos jovens vendedores e outros que pudessem influenciar suas decisões e, depois, apresentou a informação aos vendedores, deixando claro que eles corriam grande risco de serem presos se continuassem com sua atividade. Dois anos depois de implantado, além da redução no número de prisões, o programa teve como resultado uma queda de 25% nos crimes violentos e contra a propriedade.13 3. PROPORCIONALIDADE DAS SENTENÇAS Até agora, a questão dos direitos humanos no âmbito do controle de drogas e da proporcionalidade das sentenças recebeu pouca atenção legislativa. Na verdade, a tendência tem sido de endurecer as leis sobre drogas e as diretrizes de penalização, estipulando sentenças mínimas obrigatórias, sentenças de prisão desproporcionais e mesmo penas de morte em vários países. Esta abordagem cada vez mais punitiva pode ser interpretada como politicamente motivada já que não produziu qualquer impacto sobre a oferta de drogas nem nas cifras de prevalência. Uma pesquisa em larga escala sobre a política de encarceramento realizada pelo governo canadense concluiu que os infratores que eram encarcerados apresentavam a mesma probabilidade de reincidência que aqueles que recebiam penas alternativas de serviços comunitários. E os condenados a penas de prisão maiores tinham mais probabilidade de voltar ao crime depois de completar sua sentença que aqueles com sentenças mais curtas. Todas as pesquisas realizadas nesse campo revelam a ineficácia de sentenças de prisão longas, especialmente entre os infratores da lei contra as drogas que não incorreram em violência. Ao mesmo tempo, a capacidade do sistema judicial é ultrapassada, muito além de seus limites, resultando em procedimentos lentos, longos períodos de detenção preventiva e superpopulação de prisões. Uma preocupação adicional é que as reformas legislativas a favor da descriminalização dos usuários de drogas geralmente se tornam politicamente aceitáveis em troca do aumento dos níveis de penalização de pequenos traficantes, como ocorreu recentemente no México, por exemplo. 14. Gendreau, P., Goggin, C. and Cullen, F.T., The Effects of Prison Sentences on Recidivism. Ottawa: Solicitor General Canada, 1999. 15. See: Pardon for Mules in Ecuador, a Sound Proposal, Series on Legislative Reform of Drug Policies Nr. 1, TNI/WOLA, February 2009. http://www.tni.org/en/report/pardon-mules-ecuador 10 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS Uma das mudanças mais positivas é o crescente reconhecimento de que é preciso haver uma distinção mais clara em relação aos diferentes níveis de envolvimento no comércio de drogas. Assim, o cultivo em pequena escala de coca e ópio é cada vez mais considerado como um desafio do ponto de vista do desenvolvimento e não da aplicação da lei. Em relação aos níveis de comércio, cada vez mais jurisdições entendem que os “consumidores-traficantes” devem ser tratados como uma categoria separada de infratores. Cada vez mais frequentemente, a legislação ou as jurisprudências estabelecem critérios para distinguir entre o micro-tráfico ou comércio varejista, o transporte, o tráfico de médio porte e tráfico organizado, considerando também o grau de responsabilidade do infrator na cadeia do tráfico, seus ganhos e os motivos que o levaram a se envolver. Esses critérios variam enormemente por país e continuarão sujeitos às diferenças dos princípios jurídicos nacionais. Dois exemplos recentes são mais visionários e apontam para mudanças mais radicais nas estratégias de abordagem do transporte de drogas em pequena escala. Em fins de 2008 e inícios de 2009, mais de 2 mil pessoas presas no Equador por tráfico de drogas foram libertadas. Este “indulto às mulas” focou-se em um grupo específico de prisioneiros que eram vítimas das leis desproporcionais em vigor no país por muitos anos. Com a medida, o governo de Rafael Correa deu um grande passo no processo de reforma das leis draconianas e de solução da crise carcerária. As novas propostas legislativas que estão sendo elaboradas no momento deverão considerar o precedente judicial do indulto às mulas de droga. Os critérios adotados para a liberação dos presos foram: não possuir condenação prévia sob a lei de drogas; prisão por posse de no máximo dois quilos de qualquer droga; ter cumprido 10% da sentença ou um mínimo de um ano. O segundo exemplo vem da forma como os Países Baixos tentaram abordar, entre 2003 e 2005, o enorme aumento de pessoas que agiam como correios/“mulas” de cocaína (a maioria de engolidores, com bolas de cocaína no estômago), chegando ao aeroporto de Schiphol provenientes das Antilhas Holandesas. O método adotado baseou-se na sugestão de três juízes que recomendaram, em lugar de manter a prática convencional de detenção do maior número possível de correios, que se focasse a atenção nas drogas.16 Eles argumentaram que todas as drogas que chegavam ao aeroporto deveriam ser confiscadas, mas que os correios deveriam ser enviados de volta para suas casas, a menos que estivessem carregando quantidades muito altas ou fossem reincidentes. Este enfoque não foi imediatamente aceito, devido à oposição política. Em resposta ao aumento do tráfico, os controles prévios ao vôo foram intensificados e passageiros, bagagens, cargas e tripulação foram sistematicamente revistados com o auxílio de scanners e cães. Quando a magnitude total deste tipo de tráfico 16. J.Th. Wit, R.F.B. van Zutphen e P. Wagenmakers, Over drugs, de Antillenroute en de waan van de dag, Nederlands Juristenblad (NJB), afl. 7, 15 de fevereiro 2002. Martin Jelsma 11 foi revelada, o Ministro da Justiça logo reconheceu que os recursos logísticos e financeiros do sistema judicial tinham sido ultrapassados, que se estava encarcerando demasiadas “mulas” e que a capacidade das prisões era insuficiente. Inicialmente, estabeleceram-se novas diretrizes de sentenças para o aeroporto, segundo as quais, os correios/“mulas” carregando menos de 1,5 kg seriam rapidamente condenados a um máximo de 12 meses de prisão. Em seguida, o Ministro propôs uma “abordagem focada na substância”. O foco seria posto no confisco das drogas e não no julgamento ou encarceramento do correio. Posteriormente, deixaram de ser processados os correios que estivessem carregando menos de 3 kg de cocaína em sua primeira infração. Somente as drogas eram confiscadas. Os correios ou “mulas” eram registrados em uma lista negra (em cooperação com as empresas aéreas) para impedir que entrassem nos Países Baixos por um período de três anos. Em 2006, as linhas de tráfico entre o Caribe e os Países Baixos estavam efetivamente desmanteladas.17 Quando o número de correios voltou a situar-se em um nível que o sistema judicial conseguia administrar, a abordagem centrada na substância e as diretrizes para sentenças especiais foram abandonadas devido a pressões políticas. Pequenos correios ou “mulas” voltaram a ser encarcerados nos Países Baixos. TRÁFICO POR MEIO DE CORREIOS OU MULAS Entre janeiro de 2004 e abril de 2006 a revista completa de passageiros e bagagens foi realizada em quase 4 mil vôos provenientes das Antilhas Holandesas, do Suriname e da Venezuela, com destino à Holanda. Embora as cifras pareçam incríveis, mais de 60 mil “mulas” foram detidas (uma média de 15 por vôo; nas primeiras vezes, algumas vezes mais de metade dos passageiros estavam transportando cocaína) e no total 76,5 toneladas de cocaína foram apreendidas. No início de 2006, o número de “mulas” detectadas havia caído espetacularmente, bem como a pureza da cocaína na Holanda, o que era um indicativo de falta de abastecimento. A interrupção do mercado foi passageira – como quase sempre ocorre como resultado dos esforços de interceptação – e as rotas e sistemas do tráfico simplesmente se adaptaram. Mas, uma importante rota de tráfico foi efetivamente desmantelada, basicamente sem colocar nenhuma pessoa na prisão. A maioria dos correios ou “mulas” provém dos grupos populacionais mais pobres, que esperam ganhar alguns poucos milhares de dólares para sustentar suas famílias. Qualquer um deles que seja encarcerado representa um drama social e familiar. No mundo todo, dezenas de milhares de correios/“mulas” estão cumprindo longas penas de prisão, sem nenhum impacto detectável sobre o mercado global de drogas. 17. UNODC e Banco Mundial. Crime, Violence and Development: Trends, Costs, and Policy Options in the Caribbean, março 2007. 12 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS 4. REDUÇÃO DE DANOS E REFORMA DAS LEIS SOBRE DROGAS A expressão “redução de danos” refere-se a políticas e práticas centradas na redução das consequências sócio-sanitárias negativas para os usuários de drogas, suas famílias e a sociedade como um todo, sem necessariamente acabar com o consumo de drogas. A última década caracterizou-se por avanços importantes em programas de redução de danos, particularmente entre os consumidores de drogas injetáveis, com o objetivo de reduzir a disseminação de doenças como HIV/AIDS e hepatite e diminuir as mortes por overdose. As práticas de redução de danos estão se expandindo rapidamente, mesmo em países com leis antidrogas muito rígidas. A China, por exemplo, deu início a programas de troca de agulhas há vários anos e planeja ter mil clínicas de metadona em funcionamento até o final da década. Países como Irã, Paquistão e Vietnã estão agora abertamente prestando serviços básicos semelhantes. O governo dos Estados Unidos mantém há longo tempo uma cruzada ideológica contra a redução de danos, embora muitos estados e cidades adotem programas de troca de agulhas e de tratamentos de substituição de opiáceos. O governo de Obama tem mostrado vontade de suavizar a posição federal, principalmente em relação à suspensão da proibição parlamentar dos programas de troca de agulhas. A maioria das agências das Nações Unidas (OMS, UNAIDS, PNUD, Conselho de Direitos Humanos) abraçou o conceito de redução de danos. Entretanto, continua sendo um termo polêmico para a Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas (CND) que adotou em abril de 2009 uma nova declaração política com diretrizes de controle de drogas para a próxima década, para espanto de muitos, sem referência explícita à redução de danos. Mas, segundo Michel Kazatchkine, Diretor Executivo do The Global Fund (Fundo Mundial), as profundas diferenças de opinião que ficaram tão claras durante a sessão da CND, “ajudaram a mostrar que o consenso que guiou a proibição de drogas por 100 anos realmente rompeu-se. Elas trazem a esperança de que poderemos ter uma política mais matizada nos próximos anos, onde é dada flexibilidade aos países para executar uma política de drogas que atenda melhor as suas necessidades, em vez de obrigá-los a adotar uma mesma abordagem, de tipo ‘one size fits all’ que tão mal nos atendeu por tanto tempo”.18 A implementação efetiva de serviços de redução de danos só é possível em um ambiente legal em que os usuários de drogas não são processados judicialmente. Por conseguinte, o acesso a esses serviços de cuidados de 18. Palestra de abertura por Michel Kazatchkine, Diretor Executivo do Fundo Mundial de Luta contra a AIDS, TB e Malária, Sessão de Abertura da 20ª Conferência da Associação Internacional de Redução de Danos, Bangkok, 20 de abril 2009. Martin Jelsma 13 “Devemos continuar demonstrando por que a forma mais eficaz de abordar o consumo de drogas é considerá-lo um desafio de saúde pública, e por que as abordagens punitivas que criminalizam o usuário, gastam recursos das agências de execução da lei e sobrecarregam os sistemas judiciais e penais, são inúteis e contraproducentes”. Michel Kazatchkine, Diretor Executivo do Fundo Mundial da Luta contra a AIDS, TB e a Malária, 2009. saúde não requer dos solicitantes que primeiro parem seu uso de drogas, permitindo-lhes ingressar em programas sem medo de serem presos. Alguns países como Holanda, Alemanha, Suíça, Espanha, Noruega, Dinamarca, Canadá e Austrália continuam experimentando práticas mais avançadas de redução de danos, incluindo a prescrição de heroína e as salas para consumo de drogas, para os grupos de usuários mais problemáticos. No total, há atualmente cerca de 65 salas de consumo em diferentes países, instalações supervisionadas onde os consumidores de drogas têm permissão para consumir suas drogas em condições higiênicas, sem medo de prisão. Estes projetos pioneiros exigem ajustes jurídicos especiais, tais como registrar a heroína como medicamento (como a Holanda fez em 2009), providenciar um marco legal para programas de manutenção com heroína (como é o caso da Suíça e da Alemanha), ou licenças especiais e isenções legais para as salas de consumo (que se tornaram tema de divergências no Canadá). Atualmente já existe um volume convincente de evidências de avaliações sobre a eficácia destas medidas na redução de mortes por overdose, melhoria das condições de saúde dos usuários de heroína, sua utilidade para fazer com que os usuários problemáticos entrem em contato com as opções de tratamento que de outra forma desconheceriam, e taxas declinantes de crimes relacionados às drogas. Tanto na América do Norte como na do Sul, estão sendo feitas experiências com programas de redução de danos centrados em estimulantes fumados ou inalados (crack / paco ou pasta base de coca). Quando compartilham cachimbos domésticos, os usuários de crack podem ferir-se nos lábios e gengivas e ficam susceptíveis a doenças como herpes, tuberculose, hepatite e HIV/AIDS. O uso de crack muitas vezes implica também comportamento sexual de risco em troca de craque ou como meio de ganhar algum dinheiro para comprar crack. Em escala local, no Brasil, Canadá e Estados Unidos, os profissionais dos programas de redução de danos distribuem “kits para uso mais seguro de crack”, com preservativos, cachimbos, piteiras, lenços de papel, vaselina e creme para os lábios, para combater infecções e doenças sexualmente transmissíveis. Também fornecem informação sobre como evitar práticas inseguras de consumo de crack. Em 2006, uma pesquisa realizada nos Estados Unidos sobre a troca de agulhas e seringas descobriu que de 150 programas pesquisados, 51 (34%) declararam ter 14 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS distribuído kits para uso mais seguro de crack.19 No Brasil, há relatos positivos de experiências com tratamento por substituição de maconha para usuários de crack (com base em experiências espontâneas de dependentes de crack que começaram a usar canabis como tentativa para aliviar os sintomas de abstinência).20 5. RECLASSIFICAÇÃO DAS SUBSTÂNCIAS No debate sobre a política de drogas, há um crescente reconhecimento de que falar de “drogas” é quase sempre uma generalização que não ajuda muito e que é preciso haver uma diferenciação mais refinada para definir medidas de controle adequadas, de acordo com as características específicas das substâncias, seus riscos para a saúde, a dinâmica de seus mercados e seus grupos usuários. As tabelas de classificação correspondentes às Convenções da ONU de 1961 e 1971 não oferecem uma diferenciação suficiente para permitir intervenções mais focadas em matéria de políticas. A ideologia de tolerância zero consagrada nos tratados, além de reunir substâncias tão diferentes como a coca, cocaína, canabis, ópio e heroína em uma mesma classificação, dificultou o desenvolvimento de respostas mais focadas e eficientes que levem em conta suas propriedades específicas e completamente diferentes e os motivos pelos quais as pessoas as usam. A questão fundamental e mais delicada politicamente é como lidar de forma mais eficaz com a canabis, que representa a maior parte das “drogas ilícitas”. Muitos estudos científicos indicam claramente que existem riscos de longo prazo associados ao seu uso intensivo, mas que apontam com igual clareza para os inegáveis méritos medicinais. Nem sequer um especialista na área ainda defenderia que ela pertence à mesma categoria da heroína, onde foi colocada pela Convenção de 1961, nas tabelas I e mesmo IV, esta última reservada para apenas algumas substâncias com “propriedades especialmente perigosas” e nenhum benefício médico. E poucos especialistas reconhecidos ainda argumentariam que não fosse controlada, usando as mesmas categorias desenvolvidas para o álcool ou o tabaco. Muitos países já introduziram legislação ou diretrizes judiciais diferenciando a canabis de outras drogas. Assim, o sistema de coffeeshops holandês e o modelo de maconha para uso medicinal adotado na Califórnia se aproximam de uma situação de mercado regulado.21 Uma iniciativa interessante está sendo desenvolvida na Espanha, onde os usuários de canabis estabeleceram 19. Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA). The Global State of Harm Reduction 2008: Mapping the response to drug-related HIV and hepatitis C epidemics, http://www.ihra.net/ Assets/1396/1/GSHRFullReport1.pdf 20. Uma pesquisa mostrou que 68% dos consumidores de crack conseguiram abandonar esse hábito, ao fim de nove meses, com o uso de canabis. Ver: Eliseu Labigalini et. al., Therapeutic use of cannabis by crack addicts in Brazil, Psychoactive Drugs, Vol 31, No. 4, out-dez 1999. http://www. ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?cmd=Retrieve&db=PubMed&list_uids=10681113&dopt=Abstract 21. Tom Blickman e Martin Jelsma, Drug Policy Reform in Practice, Experiences with alternatives in Europe and the US, Nueva Sociedad, julho 2009. Martin Jelsma 15 cooperativas de produtores, uma primeira tentativa de organizar um abastecimento legalmente regulado para uso recreativo. Em seu relatório Cannabis Policy: Moving Beyond Stalemate, a Comissão Global sobre Canabis da Fundação Beckley no Reino Unido conclui que apesar das falhas metodológicas na pesquisa e das dificuldades de comparação entre países “não parece haver ocorrido um grande aumento no uso de canabis em países que mantiveram a ilegalidade de jure da canabis, mas implementaram reformas que, tanto ao nível nacional ou sub-nacional, reduziram as penas a sanções civis ou administrativas” A aplicação da lei e as sanções penais parecem ter praticamente nenhum impacto sobre as taxas de uso de canabis. As tendências de consumo parecem ser mais influenciadas por fatores econômicos, culturais e sociais pouco entendidos que por leis de controle de canabis. Alguns países (como Holanda, o Reino Unido, Chipre) mantêm classificações nacionais que explicitamente situam a canabis em uma categoria diferente de substâncias menos danosas, divergindo do sistema de classificação da ONU. Alguns poucos outros países, como Bélgica, Irlanda, Luxemburgo e Grécia não classificam a canabis de forma diferente das outras drogas tais como cocaína ou heroína, mas fazem uma distinção específica em suas leis para a canabis que tornam o processo judicial e as penas mais lenientes que para outras drogas. Na Espanha, a classificação de drogas é também semelhante à da ONU, mas existe um tipo de sanções menores para o tráfico de drogas que não são consideradas “substâncias muito perigosas”, e a jurisprudência mostra que se costuma interpretar isso como canabis.22 Da mesma forma, algumas outras leis nacionais (como na República Tcheca) e também as diretrizes de julgamento da União Européia se referem à “natureza perigosa” da substância como um dos critérios (junto com a quantidade, antecedentes criminais e assim por diante) considerados quando se decidem os níveis de penalizações. Todos esses casos desafiam o caráter generalizador das classificações associadas às convenções da ONU e refletem a realidade de que a canabis deveria ser tratada como um caso especial. Outra questão urgente de reclassificação que surgiu na agenda internacional este ano é o status legal da folha de coca. A inclusão da folha de coca como droga narcótica na Classificação I da Convenção de 1961 e o artigo do tratado que exige que se proíba a mastigação da folha de coca são um exemplo eloquente da imposição dos valores do Norte sobre o Sul.23 O governo da Bolívia iniciou procedimentos na ONU para excluir este artigo e anunciou que daria início em breve a um procedimento junto à OMS para “desclassificar” a folha de coca. Esta ação restauraria o respeito pelos direitos tradicionais e culturais, bem como permitira o desenvolvimento de um mercado internacional para os produtos naturais de coca. Ao nível nacional, as legislações da Bolívia e do Peru mantiveram o status legal da coca dentro de suas fronteiras, 22. EMCDDA, A Cannabis Reader; global issues and local experiences, Perspectives on cannabis controversies, treatment and regulation in Europe, EMCDDA Monograph 8, Chapter 7: Cannabis Control in Europe, Lisboa 2008. 23. Anthony Henman e Pien Metaal, Coca Myths, Drugs & Conflict Debate Paper 17, TNI, junho 2009. 16 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS apesar de terem a obrigação, em virtude dos tratados, de abolir a mastigação da coca. A Colômbia introduziu uma isenção legal para os grupos indígenas que tradicionalmente usam a coca. A Argentina é o único país que por lei permite a posse e o consumo de coca natural, desde que o artigo 15 foi inserido em sua lei de controle de drogas nº 23.737, dizendo: “A posse e o consumo de folhas de coca em seu estado natural, utilizados na prática da mastigação ou como infusão, não serão considerados como posse e consumo de narcóticos”. O caso argentino é mais um exemplo de um Estado questionando o bom senso do sistema de classificação do tratado da ONU. CONCLUSÕES Depois de décadas de encarceramento em massa e do constante aumento da severidade das penas (endurecidas com as disposições da Convenção de 1988), a evidência indica que as medidas de execução da lei não são meios eficazes para reduzir a extensão do mercado de drogas ilícitas.24 A aplicação excessivamente repressiva do regime de proibição global causou muito sofrimento humano, destruindo vidas em família e impondo aos condenados penas desproporcionais em condições penitenciárias geralmente abomináveis. Também sobrecarregou o sistema judicial e a capacidade carcerária e consumiu recursos gigantescos que poderiam ter sido destinados a tratamentos mais eficazes, programas de redução de danos e prevenção ao crime, bem como possibilitado que a aplicação da lei se focasse no crime organizado e na corrupção. Como demonstrado neste texto, a remoção das sanções criminais para a posse de drogas não conduz a um aumento significativo do uso de droga ou dos danos relacionados às drogas. Criminalizar os usuários afasta-os dos serviços de saúde com medo de serem presos, leva-os para a sombra e os encarcera em prisões que servem como escola de delinquência. Este ciclo desestrutura vidas ainda mais que a dependência das drogas em si e reduz as chances de recuperação. Isto também se aplica à maneira como os consumidores de drogas são tratados quando cometem crimes não violentos contra a propriedade para sustentar seu vício. A Convenção de 1961, eixo central do modelo de controle de drogas, já endossou o princípio de que “quando as pessoas que fazem uso indevido de drogas tiverem cometido... delitos, as Partes poderão... como alternativa à condenação ou punição... submeter estas pessoas a medidas de tratamento, educação, pós-tratamento, reabilitação e reintegração social...” (Art. 36, parágrafo 1b). Em relação aos delitos de tráfico ilícito, os poucos exemplos existentes de redução dos níveis de penas aplicadas às partes mais baixas da corrente merecem consideração e um debate internacional para compartilhar e refinar o pensamento atual sobre a delimitação dos níveis de comércio e 24. Dave Bewley-Taylor, Chris Hallam, Rob Allen, The Incarceration of Drug Offenders: An Overview, Beckley report 16, Londres, março 2009. Martin Jelsma 17 a proporcionalidade das sentenças. Há fortes argumentos para se revisar substancialmente as diretrizes de penalizações, para aqueles envolvidos nos níveis mais baixos, sem responsabilidade de organização, baixos ganhos e ligados ao mercado ilícito por necessidade econômica. A evidência existente indica que sanções mais severas fracassam como medida de dissuasão dos indivíduos e não têm impacto perceptível sobre a maneira como o mercado ilícito funciona. Na verdade, a evidência vincula as sentenças severas ao aumento da reincidência. Enormes recursos podem ser poupados rechaçando-se esta abordagem punitiva e não raro politicamente motivada. Por outro lado, não existe evidência de que qualquer das abordagens mais flexíveis na política de canabis tenha levado ao aumento dos níveis de uso de canabis. Se as políticas tivessem sido baseadas nas evidências, em lugar de estarem legalmente limitadas pelas convenções da ONU, mudanças mais radicais teriam sido a regra na legislação de controle de canabis. A necessidade urgente de se dar início a experimentos com modelos de um mercado legalmente regulado de canabis torna-se clara quando se considera que o mercado de canabis representa, aproximadamente, metade do comércio global de drogas ilícitas, incluindo todos os ganhos criminosos, corrupção e violência, bem como os recursos para aplicação da lei dedicados – sem sucesso – a suprimi-lo. Os países que desejarem tirar este mercado das mãos criminosas devem investir tempo e dinheiro em experimentar. Aqueles que preferirem manter o status quo de severa proibição de canabis podem fazê-lo, da mesma forma que vários países islâmicos mantêm uma severa proibição de álcool. Apesar da imagem de rígida proibição no nível federal, nos Estados Unidos, na verdade algumas boas práticas de descriminalização da canabis e redução de danos tiveram início em escala estadual e local. Enquanto os Estados Unidos exportaram com sucesso seu modelo de tolerância zero para o resto do mundo, o governo federal teve dificuldade significativa em manter sua própria política dentro de suas fronteiras. Apesar de importantes diferenças entre países e cidades, o “Modelo Californiano” de isentar o uso medicinal de canabis de sanções criminais e de permitir às pessoas “possuir, cultivar e transportar” canabis desde que seja usada para propósitos medicinais com uma receita médica tornou-se algo próximo de uma legalização de facto. A mudança do paradigma da tolerância zero para o de redução de danos resultou em uma maior diversidade de opções de tratamento, menos estigmatização dos consumidores de drogas, prevenção de doenças e overdoses e redução do crime. Mas este modelo, originalmente concebido como uma resposta à injeção de heroína e à infecção de HIV, não pode simplesmente ser transposto para a América Latina, onde o uso de drogas injetáveis é uma preocupação importante somente no México (heroína), Brasil (cocaína) e Argentina (cocaína). Para a América Latina, uma mudança de paradigma semelhante deveria focar-se na redução de danos de estimulantes fumados ou inalados (crack/paco e pasta base de coca), em contraposição aos opiáceos injetáveis. O tipo de experimentação feita no Brasil, Canadá e Estados Unidos merece séria consideração em relação à expansão para o resto da América Latina. A política de redução de danos deve ser aplicada 18 INOVAÇÕES LEGISLATIVAS EM POLÍTICAS SOBRE DROGAS também aos danos sociais, especialmente a redução dos níveis de violência relacionada às drogas, uma das maiores preocupações na América Latina. A esse respeito, vale a pena considerar uma aplicação mais ampla das lições aprendidas com a Operação Cessar Fogo de Boston. Uma classificação mais racional de substâncias psicoativas, segundo seus riscos para a saúde, uma melhor compreensão da variedade dos sub-mercados de droga e das diferenças entre o uso recreativo e padrões mais problemáticos de consumo deveriam ser a pedra angular para desenvolver respostas de políticas mais adequadas. Recentemente, dois grupos de cientistas vêm tentando desenvolver uma escala racional para avaliar o potencial de dano das drogas, observando a toxicidade (dano físico agudo ou crônico), o potencial de dependência e o dano social para o indivíduo, a família e a sociedade (ver quadro).25 A mudança nas práticas legais discutidas nestas páginas é uma clara evidência de que a mudança de paradigma no controle de drogas está começando a consolidar-se nas reformas legislativas ao redor do mundo. O consumo de drogas é cada vez mais considerado como uma questão que diz respeito fundamentalmente à saúde, e os objetivos das políticas estão mudando da meta irreal de uma sociedade sem drogas para uma meta mais alcançável de redução de danos e redução da violência relacionada às drogas. A consideração dos direitos humanos e a proporcionalidade das sentenças na aplicação da legislação contra as drogas estão se tornando elementos essenciais em um número crescente de países. As tendências atuais estão criando contradições legais às obrigações estabelecidas nos tratados da ONU. As tensões e os pontos de discórdia resultantes só se intensificarão enquanto o modelo de tolerância zero das três convenções não for novamente revisado. É necessário haver mais espaço de manobra para que estas reformas legislativas promissoras possam se desenvolver. RANKING DE DROGAS SEGUNDO O DANO The Lancet (UK) RIVM (NL) 1. Heroína 12. Solventes 1. Crack 12. Ecstasy 2. Cocaína 13. 4-MTA 2. Álcool 13. Buprenorfina 3. Barbitúricos 14. LSD 3. Heroína 14. Ketamina 4. Metadona de rua 15. Metilfenidato 4. Tabaco 15. Metilfenidato 5. Álcool 16. Esteróides anabolizantes 5. Cocaína 6. Ketamina 6. Metadona 16. Esteróides anabolizantes 7. Benzodiazepinas 17. GHB 7. Metanfetamina 17. Khat 8. Anfetaminas 18. Ecstasy 8. Anfetaminas 18. LSD 9. Tabaco 19. Nitratos alkyl 9. Benzodiazepinas 19. Cogumelos 10. Buprenorfina 20. Khat 10. GHB 11. Canabis 11. Canabis 25. David Nutt et al., Development of a rational scale to assess the harm of drugs of potential misuse, The Lancet, Volume 369, Issue 9566, pp 1047-1053, 24 de março 2007. And: J.G.C. van Amsterdam et al., Ranking van drugs, Een vergelijking van de schadelijkheid van drugs, Rapport 340001001/2009, Rijksinstituut voor Volksgezondheid en Milieu (RIVM) 2009. Martin Jelsma 19 Este relatório apresenta um resumo das boas práticas nas reformas legislativas em políticas sobre drogas em todo o mundo, que representam um afastamento do modelo repressivo de tolerância zero e um avanço em direção a uma política de drogas mais humana e baseada em evidências empíricas. Os exemplos refletem as lições aprendidas na prática com as abordagens menos punitivas e seu impacto sobre os níveis de consumo de drogas e os danos associados sobre o indivíduo e a sociedade.