Guernica: um grito de paz em meio à guerra

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Guernica: um grito de paz em meio à guerra
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 35 / 1º Semestre 2012
Guernica: um grito de paz em meio à guerra
Jussara Assaff
O objetivo desse texto é analisar, pelo
viés da história das relações internacionais, a
obra Guernica de Pablo Picasso e
compreender de que forma esse mural pode
ajudar a compreender o período de guerra no
qual foi criado e as disputas vividas neste
contexto.
Grandes artistas, em especial Picasso,
vivem seus melhores momentos artísticos
baseados em momentos de inspiração.
Inspirações essas que podem surgir a partir de
sentimentos, momentos, acontecimentos,
pensamentos; sejam eles felizes, tristes,
angustiantes, pacíficos, trágicos.
Esse grande artista criou sua maior obra
a partir de um trágico acontecimento... Ou
melhor, o correto seria dizer ataque cruel e
brutal a uma pequena cidade inocente na
região norte da Espanha, seu país natal.
Ataque fruto de uma guerra entre grupos
políticos opostos que levou a Alemanha
nazista e a Itália fascista a apoiarem a
revolução iniciada por um grupo que desejava
a instalação de um regime fascista no país.
A Espanha, no final do século XIX,
tentara, sem sucesso, instaurar uma república
que durou apenas um ano, sendo derrubada
por forças monarquistas que proclamou rei
Afonso XII. O país viveu anos turbulentos no
período compreendido entre 1890 e 1920,
especialmente os anos coincidentes com as
Revoluções Russa e Alemã, no final da
Primeira Guerra Mundial.
O reinado de Afonso XII gerou apenas
problemas e descontentamento na população
espanhola, levando-o a abdicar do trono em
1930. Logo, em 1931 é proclamada a Segunda
República espanhola; e, juntamente à
república, ascendem diversos grupos políticos
que passam a atacar o governo liderado pela
Frente Popular (união dos partidos comunistas
e socialistas da esquerda, que recebeu também
os anarquistas).
A união de um grupo monarquista e um
grupo fascista, que veio a se chamar Falange,
com seu descontentamento com o governo
esquerdista, inicia em 17 de julho de 1936 um
levante que lançaria a Espanha a uma Guerra
Civil violenta durante três anos.
Ao estudar a Guerra Civil Espanhola, é
possível entender toda a brutalidade que levou
Pablo Picasso a pintar Guernica. A guerra foi
o resultado da combinação de interesses
reacionários, tradições monarquistas, ideais
fascistas e a histeria anti-comunista, e se
transformou em um campo de treinamento da
Segunda Guerra Mundial, um meio para
Hitler e Mussolini testarem seus armamentos
para uma já prevista ofensiva mundial e
pressionarem o país que mais os contrariava:
a França.
Para a Alemanha e Itália, a Guerra Civil
Espanhola mostrou uma nova oportunidade
para pressionar a França, que vivia um
governo esquerdista pressionado pela direita
muito forte no país. Como já tinha o apoio de
Portugal, seria uma ótima oportunidade para
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pressionar o país inimigo. Foi assim que os
países nazista e fascista se uniram no envio de
armamentos para o General Francisco Franco,
líder do levante fascista espanhol.
A França, vendo o crescimento dos
regimes de direita, recorre à Inglaterra como
tentativa de impedir a ajuda ao fascismo
espanhol, que poderia culminar realmente na
Segunda Guerra Mundial. A Inglaterra cria
então um tratado de Não-Intervenção, no qual
nenhum país poderia intervir na Guerra
Espanhola enviando armamentos. No entanto,
Hitler e Mussolini continuavam a enviar suas
ajudas se dizendo inocentes quanto ao
questionamento francês. A Inglaterra, por sua
vez, fingia não saber o que acontecia, pois
concordava que seria melhor um regime
fascista a um regime comunista. A nãointervenção inglesa à quebra do tratado foi o
que permitiu que Franco ganhasse a guerra e
Hitler aumentasse seu poder no continente
europeu.
Aproveitaram-se dos ideais fascistas e
brutais do general Francisco Franco e o
ajudaram, de maneira cruel, a instalar seu
regime ditatorial através não só de combate
corpo a corpo como também teste de bombas
em cidades inocentes como o fizeram na
capital da cultura basca, a cidade de Guernica.
O ataque catastrófico do dia 26 de abril
de 1937 foi o primeiro ataque aéreo a uma
cidade completamente civil. Tal ataque
inspirou o renomado artista espanhol Pablo
Picasso a usar suas armas para demonstrar sua
repugnância e descontentamento contra a
causa franquista e o apoio nazi-fascista. Esse
ataque gerou um caos desesperador, o qual
Pablo Picasso recriou à sua visão e
demonstrou todos os seus pensamentos e
sentimentos em um quadro que levou o nome
da cidade atacada: Guernica. Uma obra que
representa um grito desesperado de socorro,
um grito desesperado pela paz, e a união do
artista à guerra contra o fascismo.
Pintou, então, a pedido do governo
republicano espanhol, um mural de 7,8m x
3,5m que representasse o horror da Guerra
Civil Espanhola. Desse sentimento surgiu
uma das maiores obras do século e até da
história. Guernica representa sofrimento,
angústia,
desespero,
morte,
tragédia,
escuridão e até mesmo a salvação
inalcançável. A ideia do artista não era
simplesmente mostrar a catástrofe que o
ataque aéreo nazista causou ou o que ele
gerou como um só pensamento, era mostrar o
que isso causava a um povo inocente, como
isso destruía a cultura do país que ele tanto
amava, era em suas várias personagens a
representação de um grito de socorro pela paz.
A tela não é como uma dissertação,
uma foto ou um filme que relatam fielmente e
exatamente os acontecimentos em uma
sequência perfeita; é uma tragédia de seres
humanos observada a pouca distância pelos
olhos de camponeses que ali se encontravam
aterrorizados pelo desastre; e durante o
acontecimento, tudo se torna confuso para os
atacados. E assim, à primeira vista, é a obra.
O mural de Picasso baseia seu
argumento em cima das mulheres, é com elas
que ele mostra a sociedade civil que vivia
naquela cidade derrotada. Através delas ele
mostra o desespero, a queda, a morte, a dor, e
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mesmo a esperança na tentativa de trazer a luz
de volta para a escuridão do bombardeio.
Picasso expõe também um guerreiro que mais
aparenta uma estátua, derrotado no sentido
militar e histórico. E também, de suma
importância são os animais da obra: um
cavalo, uma ave e um touro. Os dois
primeiros representam a dor, a laceração,
enquanto o último representa a salvação
inalcançável. “Os animais de Guernica
despersonalizam, purificam e intensificam as
propriedades humanas que eles representam.”
(ARNHEIM, 1976, p 41).
Na pintura, não há aviões e nem céu
(por onde aconteceu o ataque). Não está
baseada em um contraste de grupos opostos.
Mostra os efeitos da brutalidade; fala de
sofrimento e esperança. E ao não desenhar o
lado do assassino, aumenta a tensão da obra, o
que gera um impacto ao abafamento dos
gritos. “Guernica não é vitória, senão derrota,
um caos generalizado [...]”. (ARNHEIM,
1976, p 36).
O mural foi a arma ofensiva de Picasso
em meio àquela guerra, foi sua maneira de
expressar para o mundo o desesperado desejo
de paz e liberdade de seu povo. Essa obra é
um ícone representativo da paz e da luta
contra o fascismo, regime esse que junto dos
nazistas alemães levou o mundo a uma guerra
que durou cinco anos e foi responsável pela
morte de dezenas de milhões de pessoas.
Ao ser apresentada, em julho de 1937,
Guernica teve uma repercussão tão rápida
quanto a tecnologia da época poderia permitir.
Ao ser exposta, seu significado foi logo
percebido e revelado como afirma Michel
Leiris em uma crítica para a Faire-Part: “(...)
Em um retângulo preto-e-branco, como
aparece para nós a tragédia antiga, Picasso
nos envia nossa carta de luto: tudo que
amamos morrerá. (...)”. (LEIRIS, 1937 apud
LÉAL, 1999). A grande obra de Picasso se
tornou um marco mundial da paz.
Essa obra que retrata a ação e a
destruição causada por uma guerra é, no
entanto, a representação do grito pela paz, o
grito pela guerra contra o fascismo. Guerra e
paz, ambos os temas recorrentes nos estudos
das relações internacionais. Picasso pinta
Guernica com uma proposta de influenciar
nas compreensões sobre o que é a guerra e a
paz. O artista tenta influenciar o mundo no
entendimento do que acontecia dentro da
Espanha. Era uma forma de mostrar a
agressividade fascista na conquista pelo
poder, na eliminação do inimigo, do opositor.
Picasso aproveitou de sua fama para
mostrar ao mundo como seus olhos viam o
que acontecia dentro de seu país natal. “Isso
[pintura] é a arma ofensiva e defensiva de
guerra contra o inimigo”. (LARREA, 1947, p
13). A pintura não é como uma descrição ou
uma foto que mostram imagens exatas do que
acontecem, e talvez por isso sejam ainda mais
expressivas, porque mostram a partir da visão
de um artista, unida ao sentimento do mesmo.
E uma arte de Picasso, àquela época na qual já
era um artista consagrado, fora grande e
ofensiva o suficiente para se inserir como uma
representação da história, uma marca
demonstrativa do que se deve evitar para que
não volte a acontecer no futuro; marca essa
que não será apagada jamais.
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Fazendo guerra, é guerra o que se
recebe de volta, um meio de continuar a
política e facilitar a submissão da oposição.
Picasso fez a sua guerra de uma maneira mais
diplomática não levantando arma de fogo para
ninguém, levantou apenas a bandeira
defensiva pelo seu povo, a bandeira do pedido
de socorro.
Os lucros das exposições da obra foram
revertidos para a causa republicana e, como
meio de, mais uma vez lutar contra Franco à
sua maneira, Picasso só permitiu que
Guernica entrasse na Espanha quando, em
1981, caiu o poder fascista devido à morte de
Franco em 1975.
Essa grande obra marca um período
histórico e, além das imagens fotográficas
destrutivas que temos, há também uma visão
artística, desesperada e que representa
inúmeros sentimentos. Picasso, à sua visão,
mostra que o mundo daquela época era
informado, porém nada comprometido. Ele
deixa então a sua arte, como um meio de
tentar impedir que esse tipo de acontecimento
venha a se repetir. A repercussão da obra foi
tamanha que ainda hoje é considerada um
ícone da luta contra o fascismo. Tornou-se um
grito que ainda hoje ecoa como obra de arte
como denúncia a bombardeios e crimes contra
a humanidade
Jussara Assaff é Graduada em Relações
Internacionais
pela
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