A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos e outras

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A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos e outras
Actas del II Congreso Internacional SEEPLU - Difundir l/a Lusofonia
Cáceres: SEEPLU / CILEM / LEPOLL, 2012.
A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos e
outras ocorrências lexicais
Marcos Antonio Rodríguez Piris – [email protected]
E. O. I. Villanueva – Don Benito
Resumo
A tauromaquia é um mundo de artes e emoções que encerra prácticas
controversas e muito próprias. Cada um dos elementos que compõem a festa
brava se designa por um termo específico que lhe dá autonomia e sentido.
Manoletina, burraco ou cernelha são alguns destes termos que acompanham
desde antigo esta actividade ancestral alheios a idiomatismos nacionais e
competências linguísticas. Convém, por isso, esclarecer a sua origem e
utilização paralela nas várias línguas em que a tauromaquia é falada.
Abstract
The world of bullfighting is a universe of arts and emotions which involves
controversial and very genuine practices. Each and every element
composing this brave national fiesta is designed by a specific term which
gives it its autonomy and real sense. Manoletina, burraco or cernelha are some
of those terms closely related to this ancestral activity since the old times and
which are far too away from national idiomatic expressions and linguistic
competences. For that matter, it’s advisable to clarify its origin and use in
those languages which deal the language related to bullfighting.
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Introdução
A festa dos toiros é o último espectáculo que oferece sem
censuras a atropelada violência da vida. É, por assim dizer, uma
tragédia grega, mas onde os actores que a representam morrem de
verdade. Ultrapassa-se aqui aquele fino limiar entre a realidade e a
ficção através de um espectáculo que submete a um protocolo
rigorosíssimo a luta entre a vida e a morte. “Este conceito de
espectáculos leva em si duas noções: a representação da vida real e a
montagem visual” (Lopes Fernandes 1983: 15). Neste sentido
advertiram os diestros Romero e Cúchares a um actor que na corrida
“no se muere de mentira como em las tablas”, enunciando assim uma
radical distinção entre uma arte refinada que simuladamente finge a
crueldade e a primária que assume e defronta as suas naturais e
patéticas consequências. E esta verídica encenação exige, aliás, uma
linguagem viva, trepidante e afectiva que lhe exprima toda a sua
significação, carregando de sentido autônomo cada vocábulo para
melhor o enquadrar nesse vasto campo lexical que é a gíria
tauromáquica.
Contudo, não se entenda aqui esta gíria enquanto “conjunto de
expressões de tipo popular, usuais na linguagem corrente e
despretensiosa e, sobretudo, frequentes nas esferas menos cultas da
população” (Rodrigues Lapa 1984: 68). Antes disso, e porque, como
veremos, a festa dos toiros esteve desde o seu surgimento e se
mantém ainda hoje mais no caso português ligado às altas esferas da
sociedade, convém lindar melhor este sentido de gíria que no caso
mais terá a ver com a linguagem característica de um grupo
profissional e sociocultural geralmente incompreensível para quem
não pertence ao referido grupo. Esta especificidade da gíria
tauromáquica, que serve também como meio de realçar a sua
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especificidade, é em todo o caso necessária, toda vez que a festa brava
apresenta um conjunto de genuínas realidades as quais demandam
especial nomenclatura. E eis que esta terminologia por rara e extensa
solicita a admissão de vocábulos que, se bem não são próprios da
língua portuguesa, os falantes desta adoptam para seu uso comum e
indistinto da língua os quais, as mais das vezes provêm do espanhol.
Assim, encontramos nos dias de hoje no uso da área taurina um
amplo corolário de palavras oriundas do espanhol para significarem
diversos aspectos da festa dos toiros. Ainda assim, cada uma delas
tem no seu haver uma razão de existir na língua portuguesa.
Apontamento histórico sobre a festa brava
Não se sabendo ao certo a origem da festa dos toiros, terá ela
nascido muito provavelmente da imperativa que comandava o
quotidiano do homem primitivo: procurar sustento para si próprio e
para a tribo. Logo de se valer da sua agilidade e inteligência para
burlar os furibundos ataques das feras córneas, terão os nossos
ancestres ganho o valor e a perícias necessários para se iniciarem
num rudimentar alarde de poderio pessoal que haveria de lhes
granjear, comumente, o reconhecimento dos seus iguais e, por isso,
um lugar de destaque dentro da sua comunidade. Daqui se explica
como depois da sua domesticação, o homem tenha insistido nesse
ritual combativo de enfrentar o animal mais fero do seu entorno.
Nas civilizações da Mesopotâmia e do Mediterrâneo, por
exemplo, o toiro veio a “representar os princípios criativos e
fecundantes da natureza assim o identificando amiúde com o pai dos
deuses, o deus criador” (Pedraza 2001: 23). Na Bíblia descrevem-se
sacrifícios de animais e nas epopéias gregas abundam as hecatombes
das quais vieram a surgir mais tarde os jogos táuricos: a taurocaptasia.
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Na Idade Média o exercício militar demandava o jogo com o
toiro selvagem enquanto desporto e preparação bélica. Nesta altura
também começam a associarem-se as prácticas taurinas com
reminiscências árabes o que propiciou que no Século de Ouro,
Francisco de Quevedo arremete-se contra a festa brava alegando o
seguinte:
Jineta y cañas son contagio moro;
Restitúyanse justas y torneos,
Y hagan paces las capas co el toro”.
Todavia, a época que mais importa para a inteira compressão
do presente trabalho é a assente nos inícios do século XVIII. Eis neste
momento quando se produz a separação das festas taurinas
espanhola e portuguesa. E isto porque, em Espanha, desdenhadas já
as Partidas que Afonso X compusera entre 1256 e 1265 nas quais
legislou contra aqueles que “lidian com bestias bravas por dinero”,
assume-se a profissionalização da festa brava. Deixa deste modo de
ser um divertimento privativo da aristocracia para se converter num
espectáculo de massas populares. Em finais do século XVIII estava já
quase configurada a moderna corrida de toiros.
Em Portugal, os espectáculos taurinos começaram como
“monopólio de reis e de nobre, no tempo de D. Sancho II, é durante o
reinado de D. Sebastião que esses espectáculos ganham tradição na
monarquia portuguesa” (Lopes Fernandes 1983: 23). Depois, e apesar
das bulas restrições que algumas normativas reais e as bulas
pontifícias estabeleceram, a festa brava manteve-se – por nela não se
confirmar esse processo de profissionalização constatado em Espanha
– ligada à nobreza. Continuou assim “a tradição aristocrática dos
cavaleiros e dos seus auxiliares apeados” (Pedraza 2001: 42). Disso dá
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boa conta o escritor Camilo Castelo Branco na sua obra Perfil do
Marquês de Pombal donde foi extraído o seguinte trecho:
O visconde de Vila Nova de Cerveira, estribeiro-mor da princesa
do Brasil, mulher do príncipe D. José, convocou trinta e dois
fidalgos da primeira grandeza em 1738, para festejarem o
aniversário natalício da futura rainha D. Maria Ana Vitória com
escaramuças militares, ao estilo africano, e corrida de toiros pelos
fidalgos mais peritos e celebrados nessa prenda.
Logo, este profissional desencontro, que razões de vária ordem
explicam mas cuja explicitação excede os limites deste trabalho, será
propiciador de um maior afastamento e da evolução de duas
concepções taurinas diferentes. Estas que até aos dias de hoje
chegaram, mantendo-se a portuguesa mais fiel – porque menos
cruenta – às suas raízes; havendo-se ajeitado a espanhola – às
considerações humanitárias eufemizando aquele “espectáculo atroz,
míngua de Espanha” que sentenciou o poeta cubano José Maria de
Heredia.
Dois idiomas para uma só festa
Sendo a festa dos toiros uma entidade única cujos conteúdos
inexpugnáveis e convencionalismos particularizam, é preciso ter na
devida conta que unidade não é igualdade. De facto, apesar de
existirem umas raízes e alicerces comuns, a festa dos toiros encontrase esteada sobre diversas manifestações resultantes do deambular
histórico dos povos que lhes são afectos. Neste sentido, e sendo a
Ibéria o berço da actual festa brava, podemos afirmar-nos na
existência de uma tauromaquia portuguesa e uma tauromaquia
espanhola que, embora diferentes, complementam-se dentro desse
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contexto alargado que é a referida festa dos toiros. E será, por
ventura, este binómio sociocultural que propiciará o intercambio e
enriquecimento lexical a ambos lados da fronteira.
A propósito destas questões aferentes às lindes que confinam o
espaço onde a tauromaquia é palavra de ordem apontou o escritor e
polígrafo espanhol, José Maria de Cossío (1943: 10) que “nada de
telúrico nem geográfico determinou a relação milenar do homem com
o toiro, nem podia por isso estar predestinado o peninsular às finais
consequências deste assíduo relacionamento”. Porém, acrescentando
que senão foram razões de ordem geográfica sim relacionadas com a
própria geografia as que contribuíram para esta ligação. A primeira
delas, será, sem dúvida, a existência de um bovídeo de permanente
bravura e a outra passará já por uma estranha tendência do homem
para se enfrentar a ele e “dominar a sua fereza quer por necessidade,
quer por gosto” (Cossío 1943: 10). De resto, “a lide dos toiros tem
vindo a proporcionar uma base muito importante de identidade
cultural e de reafirmação do casticismo (Paniagua 2008: 140). Não
raro as diversas artes têm sempre alinhado neste sentido como se
demonstra neste passo da zarzuela estreada no Teatro Calderón de
Madrid a 31 de Março de 1934, cujo texto de Federico Romero e
Guillerm Fernández-Shaw e música de Federico Moreno Torroba
fizeram as delícias do público madrileno da época.
Dejaría de ser madrileño
Ni tampoco sería español,
Si esta tarde de sol y de toros
No me fuera a un tendido de sol.
A cultura portuguesa também não ficou por mãos alheias a sua
aproximação à festa dos toiros. São inúmeras as referências que se
encontram até nascidas do aparo de grandes literatos, como vimos
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atrás. Para além da já referida, convém ainda apontar outras com
mais longínqua localização temporal. Eis logo no Cancioneiro Geral
que se conservam umas Trovas que mandou João Roiz de Castel Branco a
Antão d Fonseca, comendador de Rosmaninhal, a Alcácer-Seguer, em
resposta de outras.
Vós lá quebrantais as raias
E as tranqueiras dos mouros,
E nós cá corremos touros
E fazemos grandes maias
Nam curamos d’azagaias
Nem d’armas muito luzidas
Mas gastamos nossas vidas
Em capas, gibões e saias.
Até o próprio Almeida Garrett retratou com tino e rima
implacável a rude galhardia e fanfarronice do campino ribatejano,
figura castiça do folclore português, intimamente ligado à
tauromaquia. No passo que se segue das Viagens na minha terra
mostra-nos essa última relação que o homem detém com o meio que
o sustenta e molda a seu parecer:
- Então agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores
que digam, quem é que tem mais força, se é um toiro ou se é o
mar?
- Essa agora!...
- Queríamos saber.
- É o mar.
- Pois nós que brigamos com o mar, oito ou dez dias a fio numa
tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com
um toiro, qual é que tem mais força?
Estrangeirismos na gíria taurina portuguesa
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O surgimento de duas manifestações diferentes dentro dessa
arte única que é a tauromaquia resultou, como vimos, de uma série
de
condicionantes
sócio-históricos
que
propiciaram
a
individualização dessas duas concepções nos seus correspondentes
espaços nacionais. Depois, devido ao natural adianto que a festa
brava experimentou em Espanha, veio a impor-se sobre a variante
portuguesa até ao ponto de, esta última, necessitar do auxílio da
primeira para se valorizar. Eis aqui a razão pela qual, os aficionados
portugueses assumiram logo a necessidade de se aproximarem do
léxico taurino espanhol a fim de conferirem à língua portuguesa –
enquanto sistema desprovido dos recursos necessários para significar
essas novas realidades – o maciço léxico necessário para dar conta
das exigências que o desenvolvimento da festa dos toiros foi
inexoravelmente impondo. Com efeito, a grande parte do léxico
adquirido pela língua portuguesa em relação à semântica da
tauromaquia tem o seu escopo na variante comummente denominada
por toureio apeado. Isto é, a expressão do toureio reinante em
Espanha em contraponto ao toureio a cavalo que é a predominante
em Portugal.
Deste modo, abunda no corpus textual específico desta área a
nomenclatura relativa às diferentes sortes practicadas com o capote e
muleta ou ainda das variadas execuções da sorte suprema e até
mesmo de diversos apetrechos usados durante a lide. No texto
seguinte temos alguns casos bem exemplificadores:
Ao seu primeiro de fulminante estocada ao encontro, e no último
de “pinchazo”, estocada e dois “descabellos” (...) Matou o
“colorado” que rompeu praça de “pinchazo”, golpe de través,
descaído e perpendicular, e “descabello”, e o quarto de estocada
“rinconera” (...) Espartano e seguríssimo nos lances e nos passes,
como aliás fizera já prova em Olivença pelo meio de Agosto, sabe
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escolher exactos os terrenos para as sortes, o sítio aos picadores
para as varas, o castigo apropriado destas, e a medida, o
equilíbrio e a fluidez harmoniosa das “faenas” em que a entrega,
a angústia e a enorme extensão imposta aos “derechazos”,
particularmente os de cite longínquo, são valiosas evidências
(Vasconcelos 1989: 11)
No exemplo acima vemos como o autor não hesita na utilização
de uma terminologia tirada do espanhol com o intuito de oferecer ao
leitor uma crónica o mais detalhada que possível. Para tal, serve-se de
inúmeras referências que descrevem vários tipos de estocadas como
pinchazo, rinconera, descabello. E da mesma forma como assinalou o
afastamento idiomático destes vocábulos – por meio das aspas – veio
também a grafar o termo faenas, apesar de este se encontrar desde há
tempo incluído no acerbo lexical dos dicionários de língua
portuguesa sob a significação de “trabalho do toureiro”. O que não
deixa de ser curioso toda vez que o português conhece a forma
“faina” cujo significado é, na raiz, exatamente o mesmo. Porém se é
verdade que podemos encontrar o termo faena salientado com
alguma classe de marca tipográfica. Por exemplo:
Com a quietude do mármore, com a languidez do desmaio, com
a inata noção da distância e dos terrenos certos, teceu duas
portentosas ‘faenas’ em que a ligação, a suavidade, o arrimo, o
‘temple’ e o cruzamento foram sumamente notáveis. Dois
‘faenões’ de fascínio. Dois ‘faenões’ para a História (Novo
Burladero 1989: 11).
Também é certo que, na mesma publicação, há espaço para o
aparecimento do vocábulo apontado ora já sem sinal algum que lhe
independize a natureza do resto do léxico envolvente, como bem se
pode observar nos trechos que se seguem:
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Baleiro foi corrido em quarto lugar, no primeiro dia da Feira, a 13
de Agosto, tendo tocado ao veterano Miguel Marquez, que lhe
fez uma grande faena e lhe cortou uma orelha com petição da
segunda, dando duas clamorosas voltas à arena da “Malagueta”,
facto aliás já referido no passado número de NB (Ibidem 1989: 7).
Os restantes troféus foram atribuídos da seguinte maneira: o
mais artístico, para Roberto Dominguez; melhor faena para Julio
Robles; melhor director de lide, Luis Francisco Esplá; melhor
vara, para Aurélio Martín; melhor brega para “Calartraveño”;
melhor par de bandarilhas para subalterno para Curro Cruz; e
troféu Casta Jijona, à melhor corrida, para a de Alejandro Garcia”
(Ibidem 1989: 8).
Ainda assim, se repararmos no segundo excerto, veremos o
surgimento de o termo brega, também ele oriundo da língua
castelhana e que, como no exemplo acima, foi já adicionado ao vasto
léxico do português padrão para significar o trabalho do toureiro
auxiliar ou peão de brega realiza durante a tourada. E é este
subalterno e, por extensão, também o toureio quem utiliza na sua
vestimenta um chapéu tradicional chamado de montera cuja origem se
remonta ao segundo quartel do século XIX. Pois foi em 1835 que o
matador de toiros Francisco Montes, alcunhado Paquiro, introduziu a
montera como novidade no traje de tourear. Da leitura dos textos
abaixo deduz-se que a sua utilização é bastante alargada e que
dependerá, em todo o caso, da familiaridade que o autor do escrito
tiver com o vocábulo o seu grafismo com marcação ou sem ela. Fique
a modo de exemplo os seguintes episódios extraídos do site
Tauromania.
Uma nota para a quadrilha de José Luís Gonçalves, que esteve
em muito bom plano no tércio das bandarilhas, superiormente
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executado pelos bandarilheiros Pedro Gonçalves, João Pedro
‘Juca’ e Pedro Paulino, bastante aplaudidos, que mereciam ter
tirado a montera em praça para receberem a justa salva de
palmas (Tauromania 22/09/2006).
No final da sua lide, foi alvo de calorosa ovação por parte do
público presente e, entre tábuas, levantando a montera agradeceu
os aplausos mas, como estes permaneciam, viu-se obrigado a ter
de regressar à arena (Ibidem 13/04/2007).
Uma palavra para David Antunes, João Pedro e Pedro Paulino
"China" que resolveram dar um banho às quadrilhas das figuras.
Pedro Paulino agradeceu mesmo com montera na mão após
bandarilhar o quinto, mas também João Pedro e David Antunes
bandarilharam com verdade e lidaram com arte (Ibidem
06/05/2007).
Apenas na segunda passagem o autor decidiu despontar o
vocábulo com o recurso gráfico do itálico. Nos outros dois casos,
porém, ficou o termo perfeitamente inserido no contexto fraseológico
sem que para tal precisasse de sinalização específica.
Outra das áreas da tauromaquia que mais se tem visto afectada
pela importação de vocabulário proveniente do espanhol é aquela
emprenhada nos traços morfológica do gado bravo. Idade, peso,
pelagem, córnea e apresentação geral abrangem por si sós um
amplíssimo leque de características que demandam um léxico
próprio capaz de lhe exprimir todas e cada umas das suas
qualidades. A este respeito, a Associação Portuguesa de Toiros de
Lide publicou no seu anuário Ganadarias Portuguesas do ano 2006
um apartado destinado a estas especificidades do toiro de lide, sendo
que a autoria do texto coube ao médico veterinário António Vasco
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Lucas. Na introdução faz logo uma declaração de intenções muito
interessante a este respeito:
A sua descrição apresenta um vocabulário de imensa
diversidade, tal o heteromorfismo patente nestes bovinos, facto
que, fruto da experiência acumulada em vários anos de direcção
do Livro genealógico da Raça e do resenhamento de algumas
dezenas de milhar destes animais, onde conciliando designações
recolhidas de nossos tratadistas (Miranda do Vale e Alves
Simões) e autores espanhóis (Ramón Barga e Adolfo Montesinos),
nos levou a adoptar uma nomenclatura própria, inserindo quase
exclusivamente termos portugueses (Associação Portuguesa de
Toiros de Lide 2006: 133)
Ora, muito ao contrario do que caberia esperar da leitura deste
passo, a realidade é que o aficionado português continua insistindo
na utilização da nomenclatura do espanhol seja isto por uma questão
de comodidade ou, então, por uma errada percepção de falso
requinte linguístico. Seja como for, o certo é que é facílimo encontrar
no corpus textual em língua portuguesa específico para a matéria
exemplo como os que se detalham a seguir:
No domingo achei os ‘albarráns’ ordinários, fracos e sem casta,
enquanto os ‘berrendos’ de Ruchena sem serem ótimos, nem
muito menos, se deixaram tourear, particularmente o susbtituto
’regordío’ saído (e desaproveitado) a Manzanares (...) No
‘berrendo en negro y colín’ de Ruchena, de que conseguiu a
orelha por benesse da paisanada, ainda lhe contei um trio, talvez,
de ‘derechazos’, estéticos e punitivos com cite distante e vasto
percurso. Extinguiu este de estocada de esguelha e um nico
caída, e o anterior de dois ‘pinchazos’ e estocada de despacho
(Novo Burladero 1989: 12).
Albarráns, berrendos ou regordío são algumas das ocorrências
lexicais que se advertem no trecho anterior. Assim, enquanto o
vocábulo albarráns, ao que o autor deu uma grafia bárbara, serve para
indicar a filiação das reses lidadas à ganadaria de Luis Albarrán e
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acrescentar desse modo um ponto de reconhecimento social a tal
origem, a utilização da terminologia barrendo para pormenorizar a
pelagem é simplesmente desnecessária uma vez que a língua
portuguesa detém uma palavra de significação equivalente: malhado.
Já o toiro regordío que é “gordo, grosso, avultado” (Torres 1989: 58)
podia também ter sido qualificado através dos inúmeros adjectivos
que a língua portuguesa oferece para tal designação. Não ficando por
aqui o espanholismo discursivo, acrescentou o autor ainda, com
intenção manifestamente descritiva, a expressão berrendo en negro y
colin onde não só não fugiu à utilização do termo específico
castelhano para a designação da pelagem como também lhe somou a
conjunção copulativa y e mais o correspondente do português rabicho,
ou seja, de rabo excessivamente curto.
Continuando no apartado das pelagens podemos ainda apontar
que, embora a actual raça de toiros bravos esteja bastante
estereotipada em termos de genética e daí resulte uma simplória
uniformização das suas capas, ainda podemos localizar algumas
crónicas onde transparecem tipologias de pelagens dignas de
menção. Vejamos, por exemplo, uns exemplos tirados do site
“Toureio.com” e o blogue “Planeta dos Touros” que se referem à
pelagem burraca ou, em português, salpicada.
Da ganadaria Sommer D’Andrade, saiu o último da tarde, um
novilho burraco, que foi toureado pelo jovem cavaleiro Marcos
Tenório (Toureio 21/03/2010).
Abriu função o cavaleiro Luis Rouxinol, que lidou um bonito e
bem apresentado toiro negro burraco, que se revelou nobre de
investida e que cumpriu (Ibidem 2/05/2011).
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O terceiro toiro da tarde, era bonito de estampa, pelagem
burraco, sério e muito bem apresentado, transmitindo emoção e
Ribeiro Telles Bastos aproveitou muito bem essas características,
para também ele ter uma actuação muito boa (Ibidem
15/05/2011).
A encerrar a corrida lidou um toiro burraco de Hrs. Infante da
Câmara, escasso de forças, ao qual o matador se viria a entregar
de corpo e alma sacando tudo o que havia para sacar, arrimandose com um valor tremendo (Planeta dos Touros 12/09/2010).
Efeito semelhante causa no leitor que se topar com esta crónica
intitulada “Emoção e tragédia no Coliseu de Redondo” a propósito
da corrida à portuguesa celebrada nesta vila alentejana, o
aparecimento do termos jabonero que caracterizava a pelagem borralha
de um dos exemplares lidados nessa noite.
No seu segundo, um jabonero de 510 Kg, mais colaborante, o
cavaleiro de Valada, teve o ensejo de nos presentear com um
toureio mais alegre, onde a lide teve outra dinâmica, pena foi que
o adversário terminasse cedo, pois o quinto curto já foi com o
toiro parado, mesmo assim, mérito para o cavaleiro, que
procurou pôr, aquilo que o toiro não tinha. Escutou musica em
ambas as lides e deu volta de agradecimento no final”
(Tauromania 06/10/2010).
Se para exprimirem as características da pelagem dos toiros de
lide os autores servem-se da terminologia castelhana ainda
disponibilizando a língua portuguesa recursos suficientes para tal,
mesma conduta se manifesta no momento de assinalar a idade das
reses. Com esse objecto, os autores munem os seus textos de termos
como utrero – para se referirem ao novilho cuja idade é sita entre os
dois e os três anos e meio – e cuatreño ou cinqueño para as reses com
quatro e cinco anos de idade repectivamente. Nos textos que se
seguem pode advertir-se o uso que se acaba de indicar.
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Citou e mandou num toiro sério e ‘cinqueño’, que arrancou para
o forcado decidido e Francisco, teve uma reunião correcta
tecnicamente, fechando-se com garra e com boas ajudas do
restante grupo na pega da tarde (Tauromania 27/05/2009).
Lidaram-se sete reses lidadas pela seguinte ordem: Um touro
cinqueño de Diego Puerta, com volume e ‘mironcete’; um utrero
de Luis Algarra, complicado; um utrero de Fuente Ymbro, muito
repetidor e que foi premiado com volta ao ruedo; um touro de
Celestino Cuadro, com seriedade e casta, premiado com volta ao
ruedo; um touro de Manuel Ángel Millares, que saiu inválido;
um utrero de La Dehesilla, que foi nobre e também premiado
com volta ao ruedo e ainda um utrero de Murube, que saiu
complicado (Toureio 04/04/2011).
Como se vê, se no primeiro caso o autor assinalou com aspas a
palavra afeiçoada, o autor do segundo texto não só não se interessou
pela sua saliência como também coadunou no discurso a colocação de
dois termos próprios da nomenclatura espanhola para referir a idade
dos toiros lidados na corrida: cinqueño e utrero. Para além disso, um
olhar mais atento descobrirá que na segunda passagem e, agora sim,
entre aspas localiza-se um termo tendente à descrição do
comportamento do animal: mironcente. De resto, o vocábulo mirón, ao
qual aqui se acrescentou o sufixo –ete, informa da característica
própria do toiro bravo que se distrai o olhar na atenção ao corpo do
toureiro afastando a sua investida da muleta ou do capote. Por sua
vez, a adição do sufixo notado terá por finalidade a de formar um
diminutivo de valor despectivo ou afectivo.
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E é também nessa mesma linha tendente a assinalar as
particularidades temperamentais da raça brava que se enquadram as
seguintes episódios:
Ao capotear trivial de sempre uniu um ‘muleteo’ paralelo, até
aliviado, quer ao ‘mirón’, reservado e débil que enfrentou
primeiro, quer no substituto ‘playero’, também frouxo, que lhe
soltaram a seguir. Mas neste, verdade seja dita, ainda se lhe
viram, lentíssimas e extensas duas séries de ‘derechazos’, com
prosápia mas sem transmissão, e uma estocada recta e inteira que
lhe valeu uma orelha (...) E enquanto o primeiro, ainda que um
tanto brusco, e o terceiro se exibiram nobres e repetidores, já o
quinto, algo ‘probón’ e reservado, e o sexto, sonso e incerto, não
se revelaram dignos de nota positiva, não obstante, é evidente, os
êxitos que de ambos obtiveram Posada e Finito de Córdoba (Novo
Burladero 1989: 12).
Mais uma vez, deparamo-nos com o termo mirón a caracterizar
o comportamento do toiro lidado e também, neste caso, pela primeira
vez, o termo probón para significar o animal “tardonho que vacila ou
prova com o gesto a investida demorando-se na sua consumação”
(Torres 1984: 158). Por outro lado, observamos a existencia de um
outro vocábulo, desta feita para expor o feitio da córnea. Assim,
playero é aquele bovídeo mal provido de córnea e com os chifres
separados.
Afición, um caso de neologismo
Apesar da abundância de vocábulos, necessita a língua do
engenho de novas formas expressivas. “Esses novos meios de
expressão, inventados por quem fala e escreve um idioma, são
Marcos Antonio Rodríguez Piris. “A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos...”
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chamados neologismos” (Rodrigues Lapa 1984: 52). Como vimos,
perante essa necessidade de explicar essas novas realidades
decorrentes da sua filiação a arte tauromáquica, a língua portuguesa
engrossou o seu léxico com a admissão de uso de vocábulos
provenientes do espanhol. E isto porque, na maioria dos casos não
existia na língua mãe um termo equivalente capaz de reproduzir toda
a significação contida na palavra castelhana. Também se observou
como, noutros muitos casos, a adopção do termo espanhol obedecia
mais a uma questão de estilo discursivo que procurava, através deste
recurso, um efeito de brilhantismo, ou seja, de traduzir para mais
belo uma realidade de resto bem menos fina e requintada.
Dentre todo esse vasto leque de palavras que fertilizaram a
terminologia portuguesa relativa à festa brava, ergue-se um vocábulo
que pela sua carga semântica e pela sua redundante utilização, dir-seia, até indiscriminada, merece um espaço de análise autónoma e
pormenorizada. Falamos, claro, do termo afición.
Afición é conforme o dicionário da Real Academia Espanhola
uma inclinação, um amor a alguém ou algo. Proveniente do latim
affectĭo/affectōnis, define também um conjunto de pessoas que assistem
assiduamente a determinados espectáculos ou sentem vivo interesse
por eles. Deste jeito, poderemos afirmar que a afición é, portanto, o
total dos indivíduos que se regozija no desfrute ou na práctica da
tauromaquia, enfim, os aficionados. E chama desde logo a atenção a
existência do termo aficionados cuja raiz comum vai ao encontro da
palavra aqui objecto de análise.
Pois bem, sendo afición um termo de alargada aceitação e
utilização dentro da área lexical aferente à tauromaquia pode ela
considerar-se não apenas um estrangeirismo ou empréstimo mas,
antes disso, um neologismo. E isto porque o termo neologismo “usaMarcos Antonio Rodríguez Piris. “A linguagem taurina. Empréstimos, neologismos...”
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se mais para designar as palavras novamente criadas na língua: seria
melhor dizermos ‘afeiçoadas’, porque a criação absoluta, total, é
raríssima” (Rodrigues Lapa 1984: 52). Efectivamente, o vocábulo
afición é tão comumente aceite entre os falantes e escreventes de
assuntos táuricos em língua portuguesa que veio a ganhar a mais
completa aceitação, não sendo por isto já entendido como um
estrangeirismo, mas sim como parte integrante do léxico pátrio.
Apesar de existirem decerto, evidências mais antigas do uso da
palavra aficion no contexto da lusofonia, são de 1989 aquelas às que o
autor teve acesso, pois como é sabido, a bibliografia especializada em
língua portuguesa está ainda aquém dos outros universos linguísticos
que conhecem a festa brava. Assim, no artigo “Peste equina e não só”,
cuja autoria corresponde ao director da publicação, João Queiroz,
deparamo-nos logo com o seguinte trecho:
Em Vila Franca de Xira, terra de matadores de toiros e de
aficionados, surgiu o caso mais gritante, não sendo a empresa
capaz de ter um gesto, uma atitude enérgica, uma resposta que
evidenciasse a sua capacidade, a sua ‘afición’. O silêncio, o fechar
de portas, o desprezo pelos aficionados, foi a sua resposta
(Queiroz 1989: 5).
No texto acima se observa que o significado aqui atribuído ao
termo afición não é já o relativo ao conjunto dos apaixonados pela
festa brava, mas o sentimento que estes mesmos dedicam a tal
actividade. Ou seja, verifica-se neste caso a primeira acepção à que
faz referência o dicionário da Real Academia Espanhola: uma
inclinação, um amor a alguém ou algo, no caso, a festa dos toiros.
Além disso, nota-se que o autor quis salientar a dignidade ou talvez o
gênero alheio da palavra com a colocação das aspas. Porém, não
poderá entender-se esta marca gráfica como medida cautelar que
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avisa o leitor da estranheza do termo. Pois nesse mesmo texto, apenas
umas líneas mais abaixo encontramos o seguinte passo: “Uma
resposta que, convenhamos, define só por si um ‘empresário’”
(Queiroz 1989: 5).
Desta feita, a palavra empresário apresenta idêntica marcação
gráfica que o caso anterior muito embora o vocábulo agora salientado
exista no léxico corrente da língua portuguesa. Daí se entende que o
que o autor pretende com o emprego sãs aspas não é despontar a
categoria de estrangeirismo como a de realçar o significado
verdadeiro e completo dos itens marcados. Não raro, nos mais
recentes elementos que compõem o corpus textual ponderado para a
realização deste trabalho, localizam-se inúmeras ocorrências que dão
conta do aparecimento da palavra afición sem marca gráfica ou
distinção alguma. Por exemplo, num artigo publicado a 12 de Junho
de 2006 no site “Tauromania” sob o título “Organização da corrida do
Montijo está 20 € mais rica!” encontramos o seguinte texto:
A Tauromania está na Festa de Toiros em Portugal para, com
afición, fomentar mais afición, servir os aficionados e defender a
Festa. Não serão 20 € que nos afastarão deste desígnio!
(Tauromania 12/06/2006)
No mesmo meio de comunicação foi noticiado um artigo a 24
de Julho de 2008 que, sob o título “A 1ª Corrida da Tauromania”,
recolhe novamente o caso apontado.
Como sabem aqueles que nos visitam desde os nossos primeiros
dias o Projecto Tauromania nasceu em meados de 2005 através
de quatro amigos (...) que em comum partilhavam uma grande
afición e a perspectiva de que na net havia lugar para um Portal
taurino o mais actualizado possível e com uma visão
independente e aficionada (Tauromania 24/07/2008).
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E mais recentemente, também neste mesmo site apareceu a 29
de Julho de 2011, ou seja, três meses antes da realização deste
trabalho, um artigo de Diogo Palha a propósito da reabertura da
Praça de Toiros Carlos Relvas de Setúbal onde podemos ler o
seguinte: “Espero que toda a gente tenha esta noção e que não
culpem a afición se após esta reabertura as assistências não forem já
aquelas que se pretendem” (Ibidem 29/07/2011).
Em todos os casos o termo surge livre de apreensões gráficas
que lhe caracterizem a natureza entendendo-se, portanto, que
estamos perante um vocábulo plenamente assente e aceite dentro do
léxico do português padrão. Não se interprete, porém, que esta
inclusão dentro do léxico da língua portuguesa é recente, pois como
alertou o Prof. Rodrigues Lapa nenhum neologismo “é palavra
novinha em folha; prova de que a língua não cria, mas propriamente
transforma, com o material de que já dispõe” (Rodrigues Lapa 1984:
52). E os autores de crónicas e demais textos taurinos têm já ao seu
dispor alguma bibliografia que, apesar de pouco farta, vai chegando
para se compor um texto sem descair nas imprecisões e
ambiguidades derivadas da falta de material de consulta. E eis que, se
o fenômeno supracitado é mais corrente nos últimos anos, não é
menos certo que autores mais experientes já avançaram esta
tendência há mais de duas décadas. Assim, António Severino, num
artigo publicado em 1989 na revista Novo Burladero descreve o
seguinte passo:
Pode-se tirar pois, por conclusão, que forma aqueles dois
cavaleiros que fizeram enches (esgotar) as praças espanholas e
que foi o seu afastamento que fez descer clamorosamente o
interesse, por aquele gênero de toureio, da afición espanhola (...)
a falta de afición dos empresários que tentam no mais curto
espaço de tempo obter os mais elevados lucros num cego suicídio
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ao oferecerem o mau e o medíocre a preços escandalosos num
salve-se quem puder que fatalmente está a esgotar as últimas
reservas da paciência de emigrantes e turistas (porque da afición
já nada têm a esperar) (...) Só a publicidade maciça consegue
encher as praças e o público vais aos toiros, não por afición, mas
pelo mesmo motivo que compra o refrigerante ou o detergente
com que é massacrado todo o dia e toda a noite (Severino 1989:
21).
Também nele o autor é escusado de usar qualquer sinal ou
marcação tipográfica para melhor exemplificar a origem estrangeira
do vocábulo, talvez por ele se achar já plenamente assimilado dentro
desta terminologia.
Empréstimos desnecessários
Ao longo deste trabalho vem-se notando uma decidida
tendência do falante/escrevente de língua materna portuguesa para
enveredar-se redundantemente no caminho do estrangeirismo fácil e
socorrido. Aliás, vimos como, em mais de uma ocasião, a existência
de uma terminologia análoga, directamente traduzível para o
português dispensava por si só o emprego do termo castelhano. Esta
questão, que a maioria dos falantes/escreventes de português língua
materna reconhecem no seu manuseio linguístico quotidiano, é
entendida pelos filólogos como “um problema de ordem moral, que
deve ser posto desta maneira: a influência duma cultura como a
francesa, onde predominam a razão e a claridade, só pode ser
benéfica para nós, com uma condição: que, em vez de nos escravizar
ao estilo francês, estimule e clarifique as energias do nosso
portuguesismo” (Rodrigues Lapa 1984: 45). Deste jeito, assume-se a
necessidade da inclusão de termos provenientes de outras línguas e
as bondades que este processo traz aparelhadas não só em termos de
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riqueza da língua como também na configuração idiossincrática do
povo que a fala. Todavia o mesmo autor (Idem.) adverte que a
“facilidade de imitação e aceitação de modas estrangeiras pode
conduzir-nos a excessos”. Excessos estes que também na gíria
tauromáquica encontram assento. De facto, até a pena dos escritores
mais experimentados não foge ao recurso de apanhar emprestado um
estrangeirismo recusando, por isso, o léxico pátrio. Leiam-se a modo
de exemplo os seguintes passos do No país das touradas de João
Cristóvão Moreira:
Barco de Ávila fica na serrania de Gredos. É um pequeno
‘pueblo’ desses onde as pessoas, mesmo se desconhecidas, dão as
boas tardes (Moreira 1981: 7).
Depois de se benzer duas vezes antes de entrar na arena, os
braços levantou Julita Castro, fazendo romper a música, ela a
maestrina da banda que trouxe ao Campo Pequeno a vibração do
pasodoble (...) quando a esbelta e sorridente Julita estremecia para
as bancadas o ‘sombrero’, negro como os longos cabelos (Ibidem
1981: 9).
E em cima duma mesa de restaurante, num ‘pueblo’ das
redondezas de Madrid, da sua Madrid do Bairro de San Blás, fez
o Don Tancredo, até que um novilho sério não acreditou na
estátua e o colheu (Ibidem 1981: 10).
Pelos ‘tendidos’ fica o eco do murmúrio de espanto (Ibidem 1981:
13).
Deixando de lado o termo pasodoble por ele significar uma
realidade especificamente pertencente à cultura espanhola e, por isso,
de difícil tradução, observamos aqui ainda o emprego inútil das
palavras sombrero e tendidos. Se a primeira poderia ter ficado por
chapéu, à segunda correspondia-lhe bancadas, pois é esta a
nomenclatura natural que a língua portuguesa disponibiliza a quem
escreve. Com a sua inclusão terá o autor querido carregar o discurso
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desse casticismo cañí tão próprio da festa brava. Ainda assim, o facto
que mais chama a nossa atenção, até pela frequência com que ele é
verificado no corpus textual da imprensa escrita, é o do vocábulo
pueblo. O qual, as mais das vezes, não apenas refere uma povoação de
menor entidade do que as cidades, como também, acarreta uma boa
carga pejorativa. E isto porque, como se desprende dos trechos
seguintes, pueblo na gíria explica uma localidade de origem ou o
destino menos pujante, insonsa e cheia de simplória rusticidade. Não
se entenda, por conseguinte, que a utilização desta nomenclatura é ao
acaso ou por uma questão estilística, mas sim com o claro intuito de
denegrir a figura do toureio que é afecto pelo tal município ou pueblo.
Do que se disse, sirvam a modo de exemplo os trechos que se
seguem:
Os toiros vieram da conhecida Ganadaria de Herdeiros de
Ernesto L. Fernandes de Castro e, para uma praça e para um
evento desta categoria, apresentaram-se sem trapio (...), bem fora
do encaste desta ganadaria, sendo que o último da ordem era um
toiro para uma desmontável de um qualquer pueblo, mas nunca
para uma das mais conceituadas praças no nosso país
(Tauromania 13/06/2010).
Está rotinado na dureza dos pueblos e acreditamos que se
tivesse encontrado um novilho com mais faculdades físicas, teria
confirmado o seu valor (Toureio 13/08/2010).
Para referirmos outro episódio de utilização desnecessária da
terminologia espanhola podemos aqui apontar o caso frequente que
supõe o aparecimento da palavra sobrero para designar o toiro que se
tem a mais para, se assim se dispor, substituir algum dos inicialmente
destinados para a lide.
Em Tarazona de Aragon correu-se um ‘sobrero’ de João Moura,
no dia 4, e ‘sobreros’ foram também os dois novilhos de Couto de
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Fornilhos lidados em Madrid a 17 e 24 de Setembro, um em cada
tarde, e ambos a darem excelente jogo (Novo Burladero 1989: 7).
Para encerrar o festejo veio a anunciada lide a duo entre
Bastinhas, pai e filho. Antes porém, lesionou-se o touro por
incúria de alguém que fechou a porta dos curros na cara do
animal que ao rematar se lesionou, sendo substituído pelo
sobrero (Planeta dos Touros 19/09/2010).
Neste sentido, existe também quem prefira adoptar para o tal
fim de referenciar o toiro que sai à arena em suplência de outro que
se inutilizou para a lide o termo substituto.
No domingo achei os ‘albarráns’ ordinários, fracos e sem casta,
enquanto os ‘berrendos’ de Ruchena sem serem ótimos, nem
muito menos, se deixaram tourear, particularmente o substituto
’regordío’ saído (e desaproveitado) a Manzanares (Novo Burladero
1989: 12)
Contudo, o actual Regulamento do Espectáculo Tauromáquico
publicado no D.R. a 29 de Novembro de 1991 assenta os preceitos
correspondentes nesta ordem sem recorrer a nenhum dos termos
acima apontados. Ou seja, o texto pelo qual se rege a festa brava não
contempla no seu discurso “sobrero” ou “substituto” como acepções
válidas. De facto, houve aqui o cuidado de escolher uma
nomenclatura que, se não é a mais adequada em termos de linguística
para a composição do texto jornalístico, por exemplo, é sim a mais
eficaz do ponto de vista do formalismo jurídico. E assim reza o ponto
1 do Artigo 41º do citado regulamento:
Em todos os espectáculos tauromáquicos, com excepção das
variedades taurinas, as empresas devem ter nos currais, à
disposição dos delegados técnicos tauromáquicos, uma rês de
reserva com o peso exigido, para a substituição de alguma que se
tenha inutilizado antes de sair à arena ou que antes do início da
lide apresente defeitos físicos não revelados na inspeção.
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Conclusões
Calcula-se que uns sessenta milhões de pessoas em todo o
mundo são espectadores de festejos taurinos. Esta “afición à
tauromaquia deve-se a que esta proporciona um espaço ímpar para o
desafogo e a projeção de pulsões instintivas reprimidas” (Paniagua
2008: 144). É lógico pensar que a festa dos toiros encerre um potencial
social difícil de contornar. Daí que todos os conteúdos que a ela são
aferentes façam, também, parte do quotidiano de todo aquele
individuo cujo desenvolvimento decorra num espaço por ela
dominado.
Dada, como vimos, a existência de duas concepções da
tauromaquia privilegiadas como sendo a corrida à espanhola ou
toureio apeado, e ainda a corrida à portuguesa ou toureio a cavalo,
observa-se uma penetração recíproca em vários aspectos, também o
linguístico. E sendo que a permeabilidade do falante/escrevente de
língua portuguesa uma característica que lhe condiciona os seus
costumes idiomáticos, deriva-se que seja a nomenclatura português a
receber um fluxo lexical mais notório.
Assim, a língua portuguesa abraçou uma ampla terminologia
relativa ao léxico derivado da actividade tauromáquica que, muito
apesar de ser as mais das vezes necessária, é também noutros casos
dispensável e supérflua por conhecer o português vocábulos próprios
referidos à mesma realidade.
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