Mariana de Castro Abreu AS MODALIDADES DE TRÁFICO DE

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Mariana de Castro Abreu AS MODALIDADES DE TRÁFICO DE
Mariana de Castro Abreu
AS MODALIDADES DE TRÁFICO DE PESSOAS E O ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
SÃO PAULO - BRASIL
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Introdução
O tráfico de pessoas é uma atividade intimamente relacionada com organizações
criminosas, sendo um dos crimes mais prejudiciais às suas vítimas sob todos os aspectos, pois
consiste em uma grave violação aos direitos humanos.
Uma das principais características do tráfico de pessoas é a sua invisibilidade, que
encontra respaldo no completo controle físico e psicológico dos algozes sobre as vítimas,
além do imenso temor que essas possuem de serem castigadas, o que acaba por garantir com
que não denunciem os agentes desse crime.
Em que pese a invisibilidade referida, a bem da verdade, este crime é muito comum e
lucrativo: pesquisas realizadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT)1 estimam
que mais de 2,4 milhões de pessoas são vítimas do tráfico a cada ano em todo o mundo, um
comércio ilícito que movimenta, anualmente, mais de US$ 32 bilhões de dólares, estando
atrás, em números, apenas, dos lucros gerados pelo tráfico de substâncias entorpecentes e do
contrabando de armas.
Assim, diante dos elevados números de incidência, da grande lucratividade existente
em torno desse crime e, principalmente, da sua extrema gravidade, o presente trabalho traz
uma análise das modalidades existentes de tráfico de pessoas e do tratamento sociojurídico
dado à essas modalidades no Brasil.
Nesse sentido, será apresentado um panorama do tráfico de pessoas em todas as suas
modalidades (trabalho em condições análogas a de escravo, retirada de órgãos e prostituição e
demais formas de exploração sexual). Além disso, foram analisados os perfis das vítimas e
principais dados oficiais, além dos tratamentos dados pela legislação internacional e nacional
e as propostas de aperfeiçoamento da legislação brasileira.
1
Organização Internacional do Trabalho. Uma aliança global contra o trabalho forçado. Relatório Global do
Seguimento da declaração da OIT sobre Princípios e Direitos fundamentais no Trabalho, 2005.
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Dessa maneira, o objetivo deste estudo é incentivar o debate, proporcionar maior
compreensão sobre o tema e buscar soluções jurídicas mais efetivas, eficazes e justas para o
melhor enfrentamento ao crime de tráfico de pessoas no Brasil.
1.
Tráfico de Pessoas
1.1.
Conceito
O primeiro marco legal relacionado ao tráfico de pessoas é a Convenção das Nações
Unidas (ONU) contra o Crime Organizado Transnacional, que trata de tema mais abrangente
e amplo que o tráfico de pessoas, qual seja o crime organizado de maneira geral.
Os aspectos específicos do tráfico de pessoas apenas foram abordados de maneira
minuciosa pelo Protocolo Adicional à mencionada Convenção da ONU, denominado
Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e punição do Tráfico de Pessoas, em especial
Mulheres e Crianças (2000), também conhecido como Protocolo de Palermo, que foi
promulgado pelo Decreto n.º 5.107, de 12 de março de 2004. Confira-se o preâmbulo do
Protocolo de Palermo:
“(...) apesar da existência de uma variedade de instrumentos internacionais
que contêm normas e medidas práticas para combater a exploração de
pessoas, especialmente mulheres e crianças, não existe nenhum instrumento
universal que trate de todos os aspectos relacionados ao tráfico de pessoas”
O Protocolo de Palermo pretendeu instituir um regime diferenciado de tratamento ao
tráfico de pessoas, na medida em que buscou ir além do viés unicamente repressivo, incluindo
medidas protetivas às vítimas e ações de prevenção.
Ademais, o Protocolo de Palermo definiu o conceito de tráfico de pessoas em seu
artigo 3º, a, definição esta que, atualmente, é a mais aceita internacionalmente, inclusive no
Brasil:
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“A expressão tráfico de pessoas é o recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à
ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao
engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega
ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de
uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.”
Dessa forma, depreende-se da definição acima que para que fique configurado o
tráfico de pessoas, além da verificação da finalidade de exploração, é imprescindível que o
traficante imponha ao menos uma das formas de coação descritas no artigo para a obtenção do
consentimento da vítima.
Nessa esteira, se percebe que o Protocolo de Palermo buscou não interferir nos
domínios de autonomia e liberdade sexual do ser humano, na medida em que não considerou
como tráfico de pessoas a prostituição voluntária, ou seja, a prostituição que é exercida sem a
presença de qualquer dos meios coativos previstos em seu artigo 3º, a.
1.2.
Modalidades de exploração
O tráfico de pessoas pode ser identificado em diversas formas de exploração. O
Protocolo de Palermo, por sua vez, assim dispõe acerca das modalidades de exploração
existentes, na segunda parte do artigo 3º, a, in verbis:
“A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem
ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados,
escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de
órgãos.”
A seguir, serão analisadas sucintamente cada uma dessas formas de exploração.
1.2.1. Tráfico de pessoas para fins de trabalho em condições análogas à de
escravo
O trabalho em condições análogas à de escravo também é denominado de trabalho
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forçado, trabalho escravo, servidão, trabalho degradante, dentre outros, sendo certo que todas
essas nomenclaturas são utilizadas indistintamente para tratar da mesma realidade jurídica.
A bem da verdade, em que pesem as supramencionadas denominações, qualquer
trabalho que não reúna as mínimas condições necessárias para garantir os direitos do
trabalhador, há que ser considerado trabalho em condição análoga à de escravo.
No caso de tráfico de pessoas na forma de exploração que reduz o indivíduo a
condição análoga à de escravo, os trabalhadores são aliciados por intermediários, em regra,
em regiões distantes do local da prestação de serviços, para exercerem atividade no meio rural
(plantações, carvoarias e minas) ou no meio urbano (tecelagens, construção civil e indústrias).
A clandestinidade, o autoritarismo e a segregação social são características marcantes
dessa modalidade de tráfico de pessoas2. Conforme exposto no Manual de Combate ao
Trabalho em Condições Análogas à de Escravo3:
“A degradação vai desde o constrangimento físico e/ou moral a que é
submetido o trabalhador – seja na deturpação das formas de contratação e do
consentimento do trabalhador ao celebrar o vínculo, seja na impossibilidade
desse trabalhador de extinguir o vínculo conforme sua vontade, no momento
e pelas razões que entender apropriadas – até as péssimas condições de
trabalho e de remuneração: alojamentos sem condições de habitação, falta de
instalações sanitárias e de água potável, falta de fornecimento gratuito de
equipamentos de proteção individual e de boas condições de saúde, higiene e
segurança no trabalho; jornadas exaustivas; remuneração irregular,
promoção do endividamento pela venda de mercadorias aos trabalhadores.”
Os trabalhadores ficam à mercê dos aliciadores pertencentes à organizações
criminosas bem como de terceiros beneficiados, não tendo respeitados não apenas seus
direitos sociais e trabalhistas como, por exemplo, salários, tempo máximo de jornada e
2
MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.198.
3
Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo.
Brasília: MTE, 2011.p.8.
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proteção adequada, mas também outros direitos fundamentais, tais como a liberdade e a
dignidade da pessoa humana.
1.2.2. Tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos
Esta modalidade de tráfico de pessoas é extremamente complexa, uma vez que
envolve profissionais altamente qualificados, como médicos cirurgiões, anestesistas e
instituições de saúde com considerável aparato tecnológico.
Sobre o tráfico de órgaõs que, em regra, aproveita da condição vulnerável das vítimas
para adquirir seus órgãos mediante pagamento de contraprestação, relata MARIA HELENA
DINIZ4:
“Em todo o mundo há uma insaciável sede de lucro e casos de pobres, como
os indianos, que vendem órgãos e tecidos para ricos com a esperança de
diminuir sua miséria, tornando-se hoje o mercado de estruturas humanas
(soft human market) uma triste realidade, em que frequentes são as
denúncias sobre comercialização de partes do corpo humano, o que denota o
não cumprimento dos padrões mínimos de conduta ético-jurídica exigida
pela lei aos profissionais da saúde, aos doadores e às suas famílias. Vêm
surgindo estímulos à venda de órgãos em vida, para entrega após o óbito do
doador-vendedor, e fórmulas de incentivo de doação de órgãos e tecidos,
como: a cash death benefit (benefício pago pela morte), pela qual um
paciente terminal recebe um bom pagamento à vista e antecipado, que
poderá, entre outras vantagens, cobrir as despesas com seu funeral; a cash
benefit binding consente to donation, em que a pessoa vende seus órgãos em
vida, podendo gerar o problema da recusa em entregá-los pelos familiares
após seu falecimento; e a bought living-unrelated donor, pela qual o receptor
compra órgão de doador vivo que não seja seu parente.”
No Brasil, as principais vítimas do tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos e
tecidos do corpo humano são jovens, do sexo masculino, com bom estado de saúde, que
encontram-se em situação socioeconômica precária e sem perspectiva de melhora e que,
espontaneamente, vendem seus órgãos em troca de benefícios financeiros5.
4
5
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 7ª ed, São Paulo, 2010.p.358.
Brasil. Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
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1.2.3. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual comercial
Esta modalidade consiste em uma relação de mercantilização e abuso do corpo das
vítimas. De um lado há os exploradores sexuais, que podem estar organizados em redes
criminosas de comercialização de seres humanos ou serem os próprios pais ou responsáveis
pelas vítimas e, de outro lado, há os consumidores de serviços sexuais pagos.
Em uma análise dos lucros gerados por essa atividade, leciona SIDDHARTH KARA 6,
que “as mulheres traficadas são forçadas a servirem centenas de homens, às vezes milhares
antes de serem descartadas, formando a espinha dorsal de uma das empresas ilícitas mais
rentáveis do mundo. O tráfico de drogas gera maiores receitas em dólares, mas mulheres
traficadas são muita mais lucrativas. Diferentemente da droga, uma mulher não precisa ser
cultivada, destilada ou embalada. Diferentemente da droga, a mulher pode ser reutilizada
inúmeras vezes”.
As vítimas que são introduzidas no universo do tráfico para fins de exploração sexual,
em regra, trabalham em boates e casas noturnas exercendo a prostituição. Muitas dessas
pessoas, especialmente crianças e adolescentes, são raptadas para esses lugares, presas e
drogadas, enquanto outras são vítimas de outros meios coativos como, por exemplo,
promessas de atividades diversas da prostituição, como garçonete, modelo, manicure,
empregada doméstica, babá, dentre outros.
Há, ainda, aquelas que embarcam com o intuito de exercer a prostituição em
ambientes mais ricos, no entanto, acabam se deparando com um contexto completamente
Manual de capacitação sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas. São Paulo: Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas da Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo, 2010.
6
Tradução livre do autor: “These sex slaves are forced to service hundreds, often thousands of men before they
are discarded, forming the backbone of one of the most profitable illicit enterprises in the world. Drug
trafficking generates greater dollar revenues, but trafficked women are far more profitable. Unlike a drug, a
human female does not have to be grown, cultivated, distilled, or packaged. Unlike a drug, a human female
can
be
used
by
the
costumer
again
and
again“
KARA, Siddharth. Sex Trafficking - Inside the Business of Modern Slavery. 1ª ed., New York: Columbia
University Press, 2010.p.X.
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diferente daquele prometido pelos aliciadores.
Independentemente das razões e condições que as levam até o exercício da prostituição nesses lugares, os relatos das vítimas têm alguns pontos em comum: são cobradas por
despesas com passagem, alimentação, moradia, roupas, artigos de higiene, dentre outros, de
maneira que estão sempre em débito com seus exploradores7.
Isso porque, o preço a pagar por tais itens está muito acima das possibilidades
econômicas das vítimas, obrigando-as sempre a cumprirem jornadas de trabalho exaustivas
para conseguirem arcar com as dívidas adquiridas.
As vítimas não possuem assistência à saúde, geralmente há incentivo ao consumo ou
venda de drogas, vivem na clandestinidade, com seus passaportes retidos e sem possibilidade
de fuga, vivendo, muitas vezes, em cárcere.
Importante mencionar, ainda, que embora a maioria das vítimas seja do sexo feminino, há
também vítimas do sexo masculino, além de vítimas pertencentes a um outro grupo que
recentemente passou a ser considerado como vulnerável ao tráfico de pessoas: travestis e
transexuais8.
O tráfico de pessoas relacionado a esse ultimo grupo também tem como finalidade, em
regra, a exploração sexual, sendo certo que a discriminação e o preconceito que sofrem da
sociedade são indicados como as principais razões para o ingresso maciço de travestis e
transexuais na prostituição.
7
Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Manual de
capacitação sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas. São Paulo: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas da Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo, 2010.p.20.
8
Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Manual de
capacitação sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas. São Paulo: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas da Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo, 2010.p.22.
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15
2.
Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual no Brasil: Fatores originários,
Perfil das vítimas e Principais dados
Em geral, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual tem seu ponto de origem
em países ou cidades pobres, pouco desenvolvidas e com baixa perspectiva de vida para seus
moradores. Já os locais de destino costumam ser aqueles com aparentes oportunidades de
melhoria de condições financeiras, como metrópoles, pólos industriais e cidades turísticas.
Conforme ensina MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA9:
“As vítimas são aliciadas, normalmente, por pessoas inescrupulosas que
ignoram a dignidade ou consideram legítimo privar dela um ser humano,
através de oferta de emprego ou promessa de vida melhor. Entretanto, ao
chegarem em seu destino, seus documentos e dinheiro são tomados, não há
qualquer amparo ou possibilidade de reclamar ajuda, ficando à mercê dos
aliciadores e terceiros beneficiados.
Esse crime é configurado pelo aliciamento enganoso ou coativo da vítima,
com a apropriação da liberdade do traficado, por dívida ou outros meios,
sempre com o propósito de exploração, seja ela sexual, laboral ou para
retirada de órgãos.”
Segundo pesquisas realizadas pela OIT, os principais fatores originários do tráfico de
pessoas são a globalização, a pobreza, a ausência de oportunidades de trabalho, a
discriminação de gênero, a violência doméstica, a emigração irregular, o turismo sexual, a
corrupção de funcionários públicos e as leis deficientes10.
No que toca à questão da pobreza, por deixar as pessoas sem meios de sobrevivência
diante da ausência de oportunidades de trabalho, acaba por torná-las extremamente
vulneráveis ao aliciamento de traficantes.
Ainda de acordo com as pesquisas da OIT, há cerca de 2,4 milhões de pessoas no
9
MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.202.
Organização Internacional do Trabalho. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Brasília: OIT,
2006.p.57.
10
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mundo vítimas do tráfico de pessoas. Desse total, conforme se observa no gráfico 11 a seguir,
43% estão em situação de exploração comercial, 32% na situação de outros tipos de
exploração econômica e 25% em situações nas quais ambos os tipos de exploração estão
presentes.
50
40
30
20
Exploração sexual
comercial
Exploração
econômica
Mista
10
0
Se levarmos em consideração apenas a situação brasileira, estima-se que existam em
torno de 70.000 (setenta mil) vítimas brasileiras de tráfico para exploração sexual comercial
em outros países. No que toca à quantidade de vítimas de tráfico interno, infelizmente, o país
carece de números e pesquisas confiáveis.
No entanto, em outubro de 2012, em diagnóstico preliminar sobre o tráfico de pessoas
no Brasil elaborado pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e pelo
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), foi divulgado que entre os
anos de 2005 e 2011, quase 500 (quinhentos) brasileiros foram vítimas do tráfico de pessoas.
Desse total, 337 (trezentos e trinta e sete) casos referem-se à exploração sexual e 135 (cento e
trinta e cinco) ao trabalho análogo à condição de escravo12.
Porém, conforme reconhecido pela própria Secretaria Nacional de Justiça, referidos
números ainda estão distantes da realidade brasileira, pois o registro de tráfico de pessoas
ainda é deficiente no Brasil, principalmente, porque as vítimas não se apresentam ou não se
11
Fonte: OIT. Uma aliança Global contra o trabalho forçado. Relatório Global do Seguimento da Declaração da
OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, 2005.
12
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/16/quase-500-brasileirosforam-vitimas-de-trafico-de-pessoas-em-seis-anos-mostra-diagnostico-do-ministerio-da-justica.htm.> Acesso
em: 16.10.2012.
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17
reconhecem nessa situação.
O levantamento mostra que a maioria dos casos foi registrado nos Estados de
Pernambuco, da Bahia e de Mato Grosso do Sul. Segundo o diagnóstico, a maioria das
vítimas brasileiras tem como destino os países europeus Holanda, Suíça e Espanha.
O Suriname, que funciona como rota para a Holanda, é o país com maior incidência de
brasileiros vítimas de tráfico de pessoas, com 133 (cento e trinta e três) casos, seguido da
Suíça, com 127 (cento e vinte e sete), Espanha com 104 (cento e quatro) e Holanda com 71
(setenta e um) casos.
Quanto ao perfil das vítimas do crime de tráfico de pessoas, DAMÁSIO DE JESUS13
afirma que:
“Analisando as esparsas informações existentes sobre o tráfico de mulheres
que obtivemos, é possível esboçar um perfil das vítimas. Em geral, são
provenientes das camadas mais pauperizadas da população, as mesmas
pessoas que podem ser vítimas da exploração sexual. As mulheres, em geral,
têm baixo grau de escolarização e passam por dificuldades de ordem
financeira. Muitas vezes já estão engajadas no sexo comercial. Mas há
relatos de mulheres com formação em nível médio para cima, com trajetória
de emprego anterior e, muitas vezes,com expectativa de retorno breve ao
Brasil, acabando nas mãos de quadrilhas internacionais.”
No mesmo sentido, a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes
para fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf)14, realizada em 2002, aponta para o perfil
formado basicamente por mulheres e adolescents, afrodescendentes, com idade entre 15 e 25
anos, com baixa renda, baixa escolaridade, residentes em áreas periféricas com carência de
serviços básicos e bens sociais e com filhos. Quanto ao perfil econômico, nota-se que são
inseridas em atividades econômicas informais, mal-remuneradas e com poucas possibilidades
de ascensão e melhoria de vida, principalmente nos serviços domésticos e comércio, sendo
que muitas já tem experiência com a prostituição.
13
JESUS, Damásio. Tráfico internacional de mulheres e crianças: Brasil: aspectos regionais e nacionais. São
Paulo: saraiva, 2003.p.127.
14
Tráfico para fins de exploração sexual.2ed.Brasília: OIT,2006.p.25
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Diante do exposto, se verifica que, em regra, a vítima encontra-se fragilizada pela
situação de pobreza na qual está inserida, sendo considerada alvo fácil para aliciadores e
traficantes que utilizam-se de meios coativos, para transformar as vítimas em um meio de
obtenção de altos rendimentos.
3.
3.1.
A proteção jurídica brasileira
Análise da legislação penal vigente
O tipo penal do tráfico internacional de pessoas passou a integrar a legislação
brasileira com a entrada em vigor da Lei n.º 11.106/2005, que foi impulsionada pela já
mencionada ratificação brasileira do Protocolo de Palermo.
Essa lei foi posteriormente alterada pela Lei n.º 12.015/2009 e, a partir de então, o
tráfico internacional para fins de exploração sexual passou a ser descrito no artigo 231, do
Código Penal, da seguinte forma, in verbis:
Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém
que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual,
ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa
traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la,
transferi-la ou alojá-la.
§ 2º A pena é aumentada da metade se:
I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato;
III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se
assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância;
IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
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§ 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplicase também multa.
Grande parte da doutrina brasileira entende que o bem jurídico tutelado nesse caso
seria a moralidade sexual pública. No entanto, o presente trabalho não partilha desse
entendimento, pois tutelar a moralidade sexual pública seria violar as garantias constitucionais
da liberdade sexual, da não discriminação e do livre exercício laboral15.
Dessa forma, para este trabalho, os bens jurídicos protegidos por esse tipo penal
seriam a liberdade e, em última instância, a dignidade da pessoa humana16.
O elemento subjetivo do tipo penal é o dolo, pois para a configuração do crime de
tráfico de pessoas é exigido que o agente tenha a vontade consciente de praticar o delito e a
consciência de que a vítima será submetida à exploração sexual no local a que se destina.
Importante observar, também, que não se verifica qualquer previsão desse crime na
modalidade culposa.
Tendo em vista que os verbos nucleares do tipo são promover, intermediar, facilitar,
agenciar, aliciar, comprar, transportar, transferir e alojar, se verifica que o crime é formal17,
pois basta que se realize a ação descrita pelo verbo, não sendo exigida a efetiva
movimentação transnacional da vítima e sua efetiva exploração, sendo certo que o efetivo
exercício da exploração sexual da vítima consistte em mero exaurimento do crime.
Para outra corrente18, o tráfico de pessoas seria crime material, pois as expressões
“venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual” e “vá exercê-la no
15
SALGADO, Daniel de Resende. O bem jurídico tutelado pela criminalização do tráfico internacional de seres
humanos.
Disponível
em:
<http://cdij.pgr.mpf.gov.br/boletins-eletronicos/alertabibliografico/alerta67/sumarios/membros/M04.pdf>. Acesso em: 03.09.2012.
16
NUNES, Lilian Rose Lemos Soares. Tráfico de Seres Humanos. Revista do Curso de Direito. Brasília.
V.3.n.02.p.125-131.jun./dez.2005.
17
Nesse sentido: CAPEZ, Fernando. Código Penal Comentado. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.p.696..
Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6a ed. São Paulo: Ed. Revista dos
18
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estrangeiro” pressuporiam a necessidade do efetivo exercício da prostituição ou de outra
exploração sexual.
Embora possa existir resistência por pequena parte da doutrina, o entendimento
majoritário é de que seria possível a realização do crime na forma tentada, uma vez que é
perfeitamente possível fracionar o iter criminis.
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo e passivo desse crime, pois é um crime
comum.
A finalidade do crime é a condução da pessoa para a prostituição ou outra forma de
exploração sexual que pode consistir em turismo sexual, prostituição infantil, pornografia
infantil, prostituição forçada, escravidão sexual, casamento forçado, dentre outros.
Conforme previsto parágrafo 2º, a pena será aumentada da metade quando:
(i)
a vítima for menor de 18 anos;
(ii)
a vítima não tiver o necessário discernimento para a prática do ato,
(iii)
o sujeito ativo for da pessoa traficada ascendente, padrasto, madrasta, irmão,
enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da
vítima, ou se tiver assumido, de alguma forma, obrigação de cuidado, proteção
ou vigilância; ou
(iv)
na hipótese de emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
Ademais, nos termos do parágrafo 3º, será aplicada multa cumulativamente no caso
de o crime ser cometido com a finalidade de obtenção de vantagem econômica.
A ação penal é pública incondicionada, de iniciativa exclusiva do Ministério Público
Federal, já que os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a
execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou
Tribunais, 2009.p.850-851;
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reciprocamente, o juízo competente para julgamento do processo criminal é federal (artigo
109, V19), da Constituição Federal20.
O tráfico interno para fins de exploração sexual, por sua vez, está tipificado no artigo
231-A, do Código Penal. É uma variação local do crime do artigo 231, no qual são captadas
pessoas dentro do território brasileiro para irem para outra parte desse mesmo território com o
objetivo de exercer prostituição ou outra forma de exploração sexual. Confira-se in verbis:
Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do
território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de
exploração sexual:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos
§ 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar
a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição,
transportá-la, transferi-la ou alojá-la.
§ 2o A pena é aumentada da metade se:
I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário
discernimento para a prática do ato;
III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se
assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância;
IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
§ 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplicase também multa.
Observando-se a pena cominada de 02 a 06 anos, pode-se afirmar que é considerado
menos grave que o tráfico internacional de pessoas. Suas características, à exceção da
territorialidade, seguem a mesma linha do crime de tráfico internacional de pessoas: é crime
doloso, sem a modalidade culposa, que admite tentativa, formal e comum.
19
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado
tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
20
BARROS, Marco Antonio. Tráfico de pessoas para fim de exploração sexual e a adoção internacional
fraudulenta.
Disponível
em:
<http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/2010/Artigos/marco_Antonio_de_Barros_OK.pdf.>
Acesso em: 10.10.2012.
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22
Por fim, verifica-se que o Código Penal não exige a utilização de meios coativos na
obtenção do consentimento da vítima para a configuração do crime de tráfico de pessoas,
diferentemente do Protocolo de Palermo que, por sua vez, faz de forma expressa referida
exigência. Nesse sentido, verifica-se um ponto da legislação penal vigente que merece ser
complementado a fim de que seja adequada ao disposto no Protocolo de Palermo.
4.
O necessário aperfeiçoamento da legislação brasileira
4.1.
A ausência de tipificação das demais modalidades de tráfico de pessoas
pela legislação penal brasileira
A legislação brasileira não está de plena conformidade com a definição do art. 3º do
Protocolo de Palermo, pois em que pese os artigos 231 e 231-A, do Código Penal, tipificarem
os crimes de tráfico internacional de pessoas e tráfico interno de pessoas com algumas falhas
que já foram mencionadas no capítulo anterior, o conceito de tráfico de pessoas adotado pelos
tipos penais limita-se ao tráfico para fins de exploração sexual, havendo uma lacuna quanto às
demais modalidades do mencionado crime.
É esse o entendimento de ANÁLIA BELISA RIBEIRO21:
“Os Artigos Antitráfico 231 e 231-A do Código Penal não definem o tráfico
de seres humanos como nenhuma outra forma de exploração mencionada no
Protocolo Antitráfico Humano (Protocolo de Palermo), como o trabalho ou
serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravidão, a servidão
ou a remoção órgãos ou até qualquer outra de exploração sexual. Algumas
dessas práticas são, no entanto, consideradas crimes, parcialmente ou
completamente, por outros artigos do Código Penal, ou leis específicas.”
Nessa esteira, é evidente que o ordenamento jurídico brasileiro prescinde de
dispositivo que tipifique, de forma específica, o tráfico de pessoas para fins de exploração de
trabalho em condições análogas à de escravo e para fins de remoção de órgãos, sendo certo
21
MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.73.
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23
que alterações são extremamente necessárias, principalmente, em razão de o artigo 5º22 do
Protocolo de Palermo determinar que cada Estado signatário deverá adotar as medidas
legislativas e outras que considerar necessárias de forma a estabelecer como infrações penais
todos os atos descritos no artigo 3º do mencionado Protocolo.
Além disso, o supramencionado Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas estabelece como sua Prioridade n.º 6, o aperfeiçoamento da legislação brasileira para
a repressão ao tráfico de pessoas, conforme o modelo conceitual esatabelecido no Protocolo
de Palermo.
No entanto, isso não significa que, quando identificada, as práticas fiquem
totalmente impunes: o Código Penal prevê, em seu artigo 14923, o crime de redução à
condição análoga à de escravo; no artigo 20324, a violação de leis trabalhistas; no artigo 20625
22
Art. 5º, §2º, do Protocolo de Palermo. Cada Estado Parte adotará igualmente as medidas legislativas e outras
que considere necessárias para estabelecer como infrações penais:
a) Sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, a tentativa de cometer uma infração
estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo;
b) A participação como cúmplice numa infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente
Artigo; e
c) Organizar a prática de uma infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo ou
dar instruções a outras pessoas para que a pratiquem”.
23
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer
meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de
trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
24
Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:
Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Na mesma pena incorre quem:
I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o
desligamento do serviço em virtude de dívida;
II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de
seus documentos pessoais ou contratuais.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena
ou portadora de deficiência física ou mental.
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24
o recrutamento fraudulento de trabalhadores para o fim de emigração; e no artigo 207 26 o
aliciamento e recrutamento fraudulento de trabalhadores para levá-los de uma para outra
localidade do território nacional.
Quanto ao tráfico de pessoas praticado com vistas à remoção de órgãos, há alguma
disciplinação da matéria na Lei de Remoção de Órgãos (Lei n° 9.434/ 1997), cujo artigo 1527
versa sobre a comercialização de órgãos e partes do corpo humano.
Ademais, o artigo 23928, do Estatuto da Criança e do Adolescente, rege a questão do
envio de crianças ou adolescentes ao exterior sem observância das formalidades legais ou com
o objetivo de obter lucro.
Sobre os dispositivos legais mencionados acima e as omissões da legislação
brasileira, a mesma autora ANÁLIA BELISA RIBEIRO29 leciona:
25
Art. 206 - Recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro. (Redação
dada pela Lei nº 8.683, de 1993)
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa
26
Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional:
Pena - detenção de um a três anos, e multa.
§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do
território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar
condições do seu retorno ao local de origem.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena
ou portadora de deficiência física ou mental.
27
Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano:
Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com
a transação.
28
Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior
com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:
Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa.
Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
29
MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.74.
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25
“Em contraste com o Protocolo Antitráfico Humano (Protocolo de Palermo),
nenhuma dessas várias ofensas mencionadas acima entende a exploração
como elemento chave constitutivo do crime. Consequentemente, o seu
escopo prático para casos de tráfico de pessoas será limitado. Além disso,
nenhuma dessas ofensas é considerada tráfico de pessoas, significando que
as pessoas definidas como vítimas do tráfico humano sob a lei internacional
com a qual o Brasil está comprometido poderão não receber a proteção e
assistência a que têm direito.”
Nesse sentido, visando auxiliar os Estados signatários do Protocolo de Palermo no
preenchimento das lacunas legislativas relacionadas ao crime de tráfico de pessoas, no ano de
2009, o Escritório sobre Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas (UNODC)
publicou o “Modelo de Legislação contra o Tráfico de Pessoas”30, o qual contém todas as
provisões que os Estados signatários do Protocolo de Palermo devem introduzir em suas
legislações internas para a adequação de suas leis conforme determina o referido Protocolo.
Dessa forma, por não considerarem a utilização de meios coativos na obtenção do
consentimento, a finalidade de exploração e a movimentação pelo território como elementos
essenciais do fato típico, os artigos penais supramencionados não permitem que seja
sancionada com a proporcional gravidade a conduta de quem pratica tráfico de pessoas para
fins de trabalho em condições análogas à de escravo e para fins de remoção de órgãos, nem
que as vítimas sejam protegidas com todos os direitos que lhe são assegurados pela lei
internacional. Em razão disso, é que se mostra necessário o aperfeiçoamento e o
preenchimentos das lacunas existentes na legislação penal brasileira.
4.2.
Do Anteprojeto do Novo Código Penal
Visando o aperfeiçoamento da legislação penal brasileira, uma Comissão Especial de
Juristas presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp, elaborou
durante sete meses o texto do anteprojeto do novo Código Penal. Durante este período, foram
promovidas quatro audiências públicas, em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre,
e dois seminários, em Aracaju e Cuiabá.
30
Tradução livre do autor: UNITED NATIONS, Office on Drugs and Crime. Model Law against Trafficking in
Persons, Vienna, Austria, 2009.
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26
O anteprojeto foi entregue ao Senado Federal em 27 de junho de 2012 e, após, foi
transformado no Projeto de Lei do Senado Federal de n.º 236/2012. Em seguida, foi enviado à
Comissão de Constituição e Justiça, que também já realizou duas audiências públicas sobre o
tema.
O anteprojeto busca substituir o atual Código Penal, que foi elaborado em 1940, com o
objetivo de abordar temas novos e atuais como, por exemplo, os novos crimes contra os
direitos humanos, cibernéticos, eutanásia e aborto. Atualmente, o projeto encontra-se em fase
de recebimento de emendas31.
No presente capítulo, será demonstrada e analisada apenas a parte do anteprojeto do
novo Código Penal que visa a alteração e aprimoramento do crime de tráfico de pessoas, cujas
justificativas tiveram por base a necessidade de adequação do ordenamento jurídico brasileiro
para que fosse tipificado criminalmente o tráfico de pessoas em todas as suas modalidades nos
exatos termos previstos pelo Protocolo de Palermo.
No anteprojeto, o tráfico de pessoas foi realocado para os crimes contra os direitos
humanos, pois além de proteger a dignidade sexual, também passa a ser contra a extração de
órgãos, trabalho em condição análoga à de escravo e trabalho forçado. Nesse sentido é a
redação do artigo 469, do anteprojeto do novo Código Penal, que dispõe sobre o crime de
tráfico de pessoas:
Art. 469. Promover a entrada ou saída de pessoa do território nacional,
mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso de quem não
tenha condições de consentir por si mesmo, com a finalidade de submetê-la a
qualquer forma de exploração sexual, ao exercício de trabalho forçado ou a
qualquer trabalho em condições análogas às de escravo:
Pena – prisão, de quatro a dez anos.
§ 1º Se o tráfico for interno ao País, promovendo-se ou facilitando o
transporte da pessoa de um local para outro:
Pena – prisão, de três a oito anos.
31
Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404>. Acesso em:
19.09.2012
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27
§ 2º Se a finalidade do tráfico internacional ou interno for promover a
remoção de órgão, tecido ou partes do corpo da pessoa:
Pena – prisão, de seis a doze anos.
§ 3º Incide nas penas previstas no caput e parágrafos deste artigo quem
agencia, alicia, recruta, transporta ou aloja pessoa para alguma das
finalidades neles descritas ou financia a conduta de terceiros.
§ 4º As penas de todas as figuras deste artigo serão aumentadas de um sexto
até dois terços:
I – se o crime for praticado com prevalecimento de relações de autoridade,
parentesco, domésticas, de coabitação ou hospitalidade; ou
II – se a vítima for criança ou adolescente, pessoa com deficiência, idoso,
enfermo ou gestante.
§ 5º As penas deste artigo serão aplicadas sem prejuízo das sanções relativas
às lesões corporais, sequestro, cárcere privado ou morte.
Verifica-se da redação do artigo supramencionado que a redação do caput é mais
específica e abrangente em relação àquela do artigo 231, do atual Código Penal, pois:
(i)
adiciona a conduta de promover a saída de pessoa do território nacional, nas
condições e com as finalidades previstas legalmente;
(ii)
inclui, como elementar do tipo comum, a prática da conduta mediante a
utilização de meios coativos: ameaça, violência, coação, fraude ou abuso de
quem não tenha condições de consentir por si mesmo; e
(iii)
deixa de limitar a descrição típica unicamente com finalidade de prostituição
ou qualquer outra forma exploração sexual, para acrescer o exercício de
trabalho forçado ou qualquer trabalho em condições análogas às de escravo.
Quanto ao parágrafo 1º, sua regra equipara-se àquela descrita no art. 231- A, do atual
Código Penal de 1940 que, por sua vez, versa sobre o tráfico interno de pessoas. No entanto, a
pena para esse crime no anteprojeto é maior, uma vez que passa a ser de prisão, de três a oito
anos, em razão da grande recorrência que tem sido verificada na prática de tal delito.
O parágrafo 2º é extremamente inovador uma vez que passa a prever o tráfico de
pessoas com a finalidade de promover a remoção de órgão, tecido ou partes do corpo da
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28
pessoa traficada, nacional ou internacionalmente, com limite de pena ainda maior que as
demais modalidades de tráfico de pessoas.
Já o parágrafo 3º em nada inova, pois segue na mesma linha dos dispositivos 231 e
231-A, do atual Código Penal, que, em seus respectivos parágrafos primeiros, assim dispõem:
“Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim
como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la”.
O parágrafo 4º, inciso I, por sua vez, prevê causa de aumento no mesmo escopo
daquela elencada no inciso III, do § 2o, dos artigos 231 e 231-A, do atual Código Penal,
agravando a pena nos casos em que o sujeito ativo prevalecer-se de relações de autoridade,
parentesco, domésticas, de coabitação ou hospitalidade.
A causa de aumento de pena prevista no inciso II, do mesmo parágrafo 4º, passa a ser
mais abrangente daquela que consta do inciso II, dos artigos 231 e 231-A, do Código Penal de
1940.
O parágrafo 5º propõe uma inovação fundamental para a maior repressão aos agentes
do delito de tráfico de pessoas, na medida em que foi prevista a possibilidade de concurso de
crimes, com o objetivo de permitir a punição do agente tanto pela prática do delito-fim
(tráfico de pessoas), quanto por eventuais delitos-meio (lesões corporais, sequestro, cárcere
privado), bem como se determinado resultado for produzido ainda que a título culposo.
Outra inovação encontrada no texto do anteprojeto é a inclusão do crime de tráfico de
pessoas no rol de crime hediondos, em razão de sua grave violação aos direitos humanos.
Em razão da referida inclusão no rol de crimes hediondos, o crime de tráfico de
pessoas passa a ser insuscetível de fiança, anistia e graça. Além disso, o agente do crime de
tráfico de pessoas deverá iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado. Confira-se o
texto do artigo 56, do anteprojeto do novo Código Penal:
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29
Art. 56. São considerados hediondos os seguintes crimes, consumados ou
tentados:
(…)
XV – tráfico de pessoas;
(…)
§ 1º A pena por crime hediondo será cumprida inicialmente em regime
fechado.
§ 2º Os crimes hediondos são insuscetíveis de fiança, anistia e graça.
Consiste, portanto, em grande avanço para a legislação penal brasileira o texto do
anteprojeto do Novo Código Penal no que diz respeito ao crime de tráfico de pessoas, uma
vez que está em conformidade com o que dispõe o Protocolo de Palermo. Porém, ainda resta
uma longa tramitação a ser percorrida, razão pela qual ainda não há garantia de que esse
dispositivo será, de fato, aprovado e integrará o Novo Código Penal brasileiro.
Conclusão
O presente trabalho apresentou as modalidades existentes de tráfico de pessoas bem
como desenvolveu crítica às diversas falhas da legislação brasileira em vigor que, sem dúvida,
são umas das grandes responsáveis pela crescente incidência do crime de tráfico de pessoas
no país.
Foi demonstrado que a ausência de tipificação das diferentes finalidades ligadas a esse
crime além da exploração sexual, como o trabalho em condições análogas à de escravo e a
extração de órgãos, aumentam a impunidade dos agentes desse crime.
Pelo estudo apresentado, diante dos altos índices de lucratividade, invisibilidade,
recorrência e graves violações aos direitos humanos causadas pelo crime de tráfico de
pessoas, se verifica a necessidade de maior atuação e comprometimento do Poder Público e
dos operadores do Direito na luta pelo aprimoramento da legislação brasileira.
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Senhores do Crime. Direção: David Cronenberg. Playarte Pictures. 2007. (100 min.)
Tráfico Humano. Direção: Christian Duguay. Alpha Filmes, 2005. (176 min.)
Tráfico de Bebês. Direção: Peter Svatek. California Home Video. 2004. (89 min.)
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