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17.:Layout 1 10/4/10 7:46 PM Page 120 Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) Recife, Pernambuco Militante de corpo e alma Stéfany Heleno dos Santos, de 17 anos, assistia à TV em casa, ao lado da mãe, quando descobriu um segredo de família. Um programa jornalístico explicava que não era necessário haver contato entre um adulto e uma criança para configurar violência sexual – bastava que o adulto conversasse sobre sexo com a criança ou tocasse seus órgãos genitais diante dela para estar estabelecida a violação. “Minha mãe ficou estarrecida, sem movimentos. E revelou que uma situação assim aconteceu com ela”, conta a jovem. “O marido de uma prima mostrava seu sexo à minha mãe e lhe dizia coisas como ‘a vagina é feita de plástico, ela estica e não quebra’, quando ela ainda era menina”. A história termina com contornos dramáticos: quando soube, o avô de Stéfany resolveu tirar satisfações. Foi à casa do abusador armado com uma peixeira, pronto para brigar. Ao chegar lá, foi recebido por um tiro de bacamarte, um tipo de arma de fogo, e acabou sendo assassinado. “Felizmente, minha mãe não ficou com sequelas psicológicas, tanto é que eu só fiquei sabendo dessa história há pouco tempo”, diz Stéfany. “Isso me fez ter vontade de conhecer o problema da violência sexual contra crianças”, conta a adolescente, que foi recrutada pelo Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (CENDHEC), do Recife, para estudar a questão. Apaixonou-se pelo tema, tornou-se uma engajada militante e usa todas as ferramentas que sua geração aprendeu a manejar tão bem para combater o problema. “É muito bom fazer parte do projeto e aprender a defender nossos direitos”, diz. 17anos Stéfany Heleno dos Santos 17.:Layout 1 10/4/10 7:46 PM Page 121 17.:Layout 1 10/4/10 7:46 PM Page 122 Redes sociais Nosso papo E-mail. Blog. Twitter. Orkut. Facebook. MySpace. MSN. A atividade desenrolou-se de março de 2009 a feve- Skype. Qualquer indivíduo da chamada “geração Y”, reiro de 2010. Quando chegou ao fim, os jovens resolve- formada por adolescentes e jovens adultos que ram manter o assunto em pauta e criaram um blog, o nasceram em uma sociedade plugada à internet e ao Nosso Papo – mesmo nome do boletim que escreviam. telefone celular, sabe o que significa cada uma destas “Para atender à demanda deles, criamos um perfil do palavras e para que serve cada uma das ferramentas. CENDHEC no Orkut”, conta Karla. A fim de atingir quem Mesmo que não soubesse, jamais pensaria em procurar não tem acesso à web, o grupo vai às escolas públicas isso nos volumes encadernados de uma enciclopédia. para apresentar nas salas de aulas o tema que vem Recorreria ao Google. Foi pensando assim que um grupo sendo estudado e debatido em profundidade. É a de jovens do Recife, do qual Stéfany faz parte, resolveu chamada comunicação interpares, que ganha força encarar o espinhoso tema da violência sexual contra entre jovens em todo o mundo justamente por sua crianças e adolescentes: buscando informação e espa- eficácia. Os jovens “traduzem o mundo” para as pessoas lhando mensagens nas redes sociais. da sua faixa etária, usando linguagem adequada. Com o apoio do Criança Esperança, o CENDHEC “A linguagem do Plano Municipal de Combate à formou uma tropa de 25 adolescentes para analisar e Violência Sexual é bastante formal. Para os adoles- fiscalizar as políticas públicas de enfrentamento da centes, o palavreado deveria ser mais informal, mais violência sexual, com base no Plano Municipal de acessível”, avalia Stéfany. Isso não significa, obviamente, Combate à Violência Sexual e Doméstica. Eles passaram que o próximo plano, em fase de elaboração com a um ano analisando o plano, monitorando as ações e ajuda do grupo, será recheado de gírias ou expressões propondo soluções. Escreveram boletins eletrônicos e inapropriadas. enviaram-nos para mais de 1.500 pessoas envolvidas com o tema – conselheiros tutelares, vereadores, funcio- Desconhecimento nários de secretarias de governo, deputados estaduais. Talvez por causa da linguagem técnica, o plano era Alguns destes, por sua vez, reenviaram os textos para as totalmente desconhecido. Essa foi a segunda impor- próprias redes de contatos. “Era uma forma de pressio- tante conclusão dos jovens. “Fizemos uma pesquisa em nar e cobrar. Isso motivou o Conselho Municipal da escolas, postos de saúde e associações de moradores. Criança e do Adolescente a rever seu plano de atuação”, Centenas de pessoas foram consultadas, e absoluta- diz Karla Adriano Ribeiro de Araújo, coordenadora do mente ninguém o conhecia”, conta Dálet Regina dos projeto. Santos Costa, de 15 anos. “Foi frustrante”, lembra Manuela 122 17.:Layout 1 10/4/10 7:46 PM Page 123 da Silva Santos, que também fez o trabalho de campo. “Algumas secretarias municipais responsáveis por partes do plano simplesmente desconheciam a sua existência”, completa Stéfany. Além do ambiente virtual, o grupo discute o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) nas escolas, com foco na violência sexual. “É preciso que as crianças saibam que o desconforto e o constrangimento que sofrem em casa têm nome: violência sexual, ainda que muitas vezes seja cometida pelo pai, pelos irmãos ou pelo padrasto”, diz Stéfany. Durante o projeto, Stéfany e seus amigos recebiam uma bolsa de estudos. Agora, tocam a iniciativa por conta própria, sem patrocínio. Batizaram a ação de Guia – Grupo Unido e Integrado por Adolescentes. “Ganhamos a satisfação de passar para os outros o que a gente aprendeu”, afirma a garota, que pretende ser educadora social. “Depois de descobrir este caminho, não saio mais”, afirma. “A multiplicação da informação é o maior legado do projeto”, avalia Karla. Justiça Paralelamente ao trabalho dos 25 jovens, o CENDHEC atuou também em outras frentes, como o acesso à Justiça. Quarenta casos de abuso foram acompanhados no período e transformaram-se em inquéritos policiais, mas nenhum foi a julgamento. “Há casos que demoram nove, dez anos. Por isso, a morosidade dos processos está na nossa pauta”, diz Karla. O Centro acompanha cerca de 350 casos. O CENDHEC foi criado em 1989, com aval do próprio Dom Helder Câmara, quando era arcebispo de Olinda e Recife. A instituição começou por discutir políticas públicas municipais. Em 1991, depois da aprovação do ECA, incluiu a defesa dos direitos da infância e da adolescência em sua linha de ação. Desde então, em alguns processos judiciais, os técnicos da ONG atuam como assistentes da acusação. Os laudos psicológicos, por exemplo, podem virar peças dos processos, embora não sejam reconhecidos como provas. “Quando a violência se revela, os agentes da agressão acabam fugindo. E normalmente este agente é o provedor da família. É aí que entra o acompanhamento social, que dimensiona as demandas da família e aciona as instituições da rede de proteção social”, explica Karla. Violência sexual é um problema que está longe de se resolver com um clique de mouse, mas que se pode enfrentar com base na democratização das informações, como vêm mostrando Stéfany e seus amigos. Adolescentes usam redes sociais, reuniões, e corpo a corpo para combater a violência sexual. “Traduziram” o Plano Municipal de Combate à Violência Sexual do Recife para uma linguagem mais atual para que pudesse ser melhor compreendido. 123 CONTEXTO 17.:Layout 1 10/7/10 3:18 PM Page 124 2002 Homicídio entre jovens cresce 88,6% em nove anos, diz UNESCO; ONU aprova agenda para Infância e Juventude Espaço Criança Esperança de Belo Horizonte é inaugurado; show é realizado na capital mineira com participação inédita do jornalismo da TV Globo Este foi um ano em que a violência letal, envolvendo os jovens, foi comprovada de forma mais contundente pela UNESCO. O “Mapa da Violência IV”, publicado pela Organização, apontava novamente a tendência de aumento dos homicídios entre a população brasileira de 15 a 24 anos. A sequência dessa publicação não mais deixava dúvida: os jovens eram os maiores vitimados pela violência na condição de vítimas ou de agentes. Para se ter ideia, no Brasil, eles morriam mais por armas de fogo do que em muitos países em estado de guerra. O “Mapa da Violência IV” revelou que, entre 1993 e 2002, os homicídios entre jovens de 15 a 24 anos cresceram 88,6%, a uma velocidade de 5,5% ao ano – mais do que a economia naquela ocasião. A pesquisa demonstrou, também, que o percentual de jovens cuja morte foi causada por assassinato, saltou de 30% para 54,4% entre 1980 e 2002. Entre os quase 49 mil jovens mortos neste ano, 15 mil foram vitimados por armas de fogo. Ainda em 2002, a UNESCO lançou a pesquisa “Drogas nas escolas”, um levantamento feito em escolas públicas de ensino fundamental e médio em 14 capitais brasileiras. O trabalho indicou que, dos alunos que possuíam arma de fogo, 70% admitiram já terem levado seus revólveres para a escola. Entre os professores, 50% em São Paulo e 51% em Porto Alegre relataram haverem sofrido algum tipo de agressão. Quatro de cada dez professores ouvidos pelos pesquisadores atribuíram a violência ao envolvimento dos alunos com drogas. Durante alguns meses do ano, a ficção deu um choque de realidade no Brasil e no mundo. O filme “Cidade de Deus”, dirigido por Fernando Meirelles, mostrou aos que não acompanhavam o noticiário o cotidiano de crianças e adolescentes das comunidades localizadas em áreas de risco social no país. Em 2002, o Fórum Social Mundial foi realizado pela segunda vez em Porto Alegre, e uma oficina especial chamou a atenção: o Forunzinho Social Mundial, voltado para crianças e adolescentes de 6 a 14 anos, que discutiu temas como ecologia, direito da infância, inclusão social e solidariedade entre os povos. Compromisso mundial Em janeiro, entrou em vigor em todo o mundo o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil. Os Estados-membros da Organização das Nações Unidas ratificaram o protocolo, comprometendo-se a combater a exploração de crianças. No Brasil, foi criado pelo Fórum Nacional da Criança e do Adolescente, com representação em todos os estados, um comitê nacional para enfrentar o problema. 124 No documento, ratificado em 2004 pelo Brasil, os Estados-membros da ONU afirmam serem necessárias medidas de sensibilização pública para reduzir a demanda desse tipo de exploração. Ainda em 2002, foi inaugurado o Espaço Criança Esperança de Belo Horizonte, no Aglomerado da Serra, a maior concentração de favelas da região metropolitana da capital mineira, onde vivem cerca de 60 mil habitantes, divididos em sete comunidades. Para celebrar a chegada do projeto, que atualmente atende dois mil jovens e crianças, a 17ª edição do Criança Esperança foi realizada na capital mineira, no Estádio do Mineirinho, tendo como temas a violência e o trabalho infantil. Pela primeira vez, uma equipe de jornalistas da Rede Globo participou do show, apresentando reportagens sobre a situação da infância e da juventude brasileiras. A emissora disponibilizou letreiros em closed caption, para facilitar o acompanhamento do evento pelos deficientes auditivos. Ao longo da campanha, o site do Criança Esperança promoveu um leilão de camisas autografadas dos jogadores de futebol Ronaldo “Fenômeno” e Ronaldinho Gaúcho, e dos capacetes dos pilotos de F-1 Ayrton Senna e Rubens Barrichello. O leilão contou também com uma relíquia internacional: o compositor Roger Waters, um dos fundadores do grupo de rock Pink Floyd, doou um violão autografado. 17.:Layout 1 10/4/10 7:47 PM Page 125 Foto: Márcio Madeira Oskar Metsavaht Vice-presidente da Associação de Empreendedores Amigos da UNESCO “Colaboro com o Criança Esperança não apenas como empresário mas, acima de tudo, como cidadão. Sempre acreditei no poder transformador da educação e da cultura, e é por isso que apoio esta importante iniciativa desde 2004 – quando fui convidado a participar, pela primeira vez, junto com a minha equipe de criação da Osklen e com os técnicos da ONG que presido, o Instituto e. Já éramos parceiros da UNESCO, e virar parceiros de uma iniciativa que já proporcionou algum tipo de perspectiva a mais de quatro milhões de jovens em todo o país era um desdobramento mais do que natural. E, desde então, motivo de orgulho.” 125
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