Redes de acasalamento - University of Bristol

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Redes de acasalamento - University of Bristol
Dedicado
à Cristina e ao João David
Advertência prévia
Este trabalho corresponde à dissertação escrita pelo autor para obtenção do grau de doutoramento em Pré-História
pela Universidade de Lisboa. A sua redacção ficou concluída em Abril de 1995, e a respectiva arguição teve lugar
em Novembro do mesmo ano. A versão agora publicada beneficiou de pequenos ajustamentos do texto, de uma
actualização da biliografia e do acrescento de alguns elementos de informação novos, nomeadamente no que diz
respeito a datações radiométricas.
A obra compreende dois volumes. No volume II agruparam-se os capítulos sobre a história da investigação e
a metodologia utilizada na análise dos materiais líticos, bem como os estudos monográficos das diferentes
colecções. No volume I, sintetizaram-se as conclusões derivadas desses estudos, e procurou-se integrá-las num
quadro histórico e geográfico mais lato, o das sociedades de caçadores do Paleolítico Superior do Sudoeste da
Europa.
A leitura do volume I é suficiente para a aquisição de uma visão de conjunto dos conhecimentos actuais
respeitantes a este período em Portugal. Uma tal leitura deve ter em conta, porém, que essa síntese pressupõe uma
crítica das fontes utilizadas. Em Arqueologia, o instrumento dessa crítica é a análise tafonómica dos sítios e
espólios. A argumentação sobre as respectivas condições de jazida é desenvolvida no quadro dos estudos
apresentados no volume II. É neles que deve ser buscada a razão de ser das opções tomadas quanto à
caracterização dos contextos (ocupações singulares, palimpsestos de ocupações múltiplas), à sua homogeneidade
(uma só época ou várias épocas), à sua integridade (em posição primária ou secundária), à sua representatividade
(universo ou amostra, recuperação integral ou parcial) e à sua cronologia (ou cronologias).
No aportuguesamento da terminologia, adoptou-se critério semelhante ao seguido nas ciências geológicas: o
de respeitar a grafia do étimo na sua língua de origem, acrescentando-lhe o sufixo apropriado. Assim,
Moustierense, Aurignacense ou Gravettense (períodos/tecnocomplexos do Paleolítico Superior), tal como
Ashgiliano, Tournaisiano, Aaliano ou Maestrichtiano (andares do Paleozóico e do Mesozóico). Foi utilizado
critério idêntico para os termos da lista-tipo que, embora correntemente utilizados como substantivos comuns, ou
não têm tradução possível (raclette), ou têm igualmente uma origem geográfica (microgravette).
AGRADECIMENTOS
Nesta dissertação encontram-se condensados os resultados de quinze anos de investigação.
Ela não pôde ser levada a bom termo senão graças à colaboração que ao longo de todo este
tempo lhe foi prestada por muitas pessoas e diversas instituições.
Quando comecei, acabava a década de 70, era ainda estudante. Aos meus pais, devo o
apoio que nesses anos conturbados sempre me concederam; aos excelentes professores que
tive no Liceu Padre António Vieira, devo a formação de base que me possibilitou meter
ombros à tarefa; aos meus amigos desse tempo, devo a aprendizagem de uma ética de
trabalho em equipa sem a qual ela nunca poderia ter sido concluída; aos membros do
G.E.P.P. (Grupo para o Estudo do Paleolítico Português), que me receberam de braços
abertos e me iniciaram na prática da Arqueologia de campo, devo a sorte de ter podido
dedicar a minha vida profissional ao estudo do passado remoto da Humanidade.
A recolha da informação em que esta dissertação se fundamenta foi realizada em grande
parte através de trabalhos de prospecção, sondagem e escavação. Foram diversas as
instituições que os subsidiaram, e entre elas cumpre salientar: o ex-Instituto Português do
Património Cultural; o actual Instituto Português do Património Arquitectónico e
Arqueológico; a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica; a Câmara
Municipal de Tomar; a empresa CELBI; a Câmara Municipal de Torres Novas; a
Associação Arqueológica do Algarve; o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros.
Prestaram apoio logístico não menos imprescindível: a Sociedade Portuguesa de
Espeleologia; o Centro de Estudo e Protecção do Património da Região de Tomar; o
Espeleo-Clube de Torres Vedras; a Faculdade de Letras de Lisboa; a Sociedade Torrejana
de Espeleologia e Arqueologia; a empresa Renova.
Os trabalhos de campo levados a cabo, entre 1988 e 1993, na região de Rio Maior,
fizeram-se em co-direcção com Anthony Marks, e no quadro de um projecto de investigação
financiado pela National Science Foundation dos Estados Unidos. Os resultados obtidos
foram de grande importância para a construção do primeiro esboço de sequência crono-estratigráfica do Paleolítico Superior português que aqui se apresenta. Da longa
convivência, nem sempre pacífica, mas sempre amigável e frutuosa, com uma tradição de
investigação tão diferente da europeia, resultaram inúmeros outros benefícios. Entre eles,
quero realçar uma mudança de perspectivas que muito influenciou o modo como esta
dissertação acabou por ser organizada: a descentração em relação ao sítio, cada
intervenção arqueológica pontual sendo concebida como instrumento de amostragem de uma
análise feita à escala do território do caçador e não à do território do arqueólogo.
Do projecto de Rio Maior resultou igualmente uma caracterização mais correcta do
valor científico do espólio das antigas escavações realizadas na região por Manuel Heleno,
o qual se encontra conservado no Museu Nacional de Arqueologia. Ao seu director,
Francisco Alves, e a todos os funcionários da instituição, quero agradecer a colaboração
nunca regateada, que me permitiu estudar esse numeroso espólio nas melhores condições
possíveis.
Ao longo de dois anos, a Fundação Gulbenkian contribuiu para este trabalho com uma
bolsa solicitada para custear as despesas de ilustração de artefactos. A esse apoio, e à
mestria dos ilustradores, deve esta dissertação uma grande parte dos seus eventuais méritos.
A Thierry Aubry, que executou a maior parte, devo também a excelente colaboração
profissional que tornou possível a construção conjunta do modelo tecnológico da passagem
do Gravettense ao Solutrense aqui desenvolvido.
Em quinze anos de trabalho de campo, e em onze anos de docência universitária, tive
oportunidade de contactar com centenas de jovens interessados pela Arqueologia. As
escavações que promovi durante todo esse tempo não teriam sido possíveis sem a
participação voluntária e empenhada de muitos deles. O suplemento de ânimo sempre
imprescindível na recta final da redacção de um trabalho como este foi-me fornecido pelo
entusiasmo com que os estudantes da Escola Secundária de Vila Nova de Foz Côa se
lançaram à luta pela salvaguarda do extraordinário complexo de arte rupestre paleolítica
que acabava de ser descoberto na sua região. À juventude de Trás-os-Montes, terra dos
meus avós, quero manifestar a minha gratidão por ter mostrado, muito melhor do que
qualquer pré-historiador alguma vez o poderia ter feito, como a Arqueologia do Paleolítico
Superior não é um passatempo exótico para eruditos amadores de ossos, calhaus e rabiscos,
mas a busca das raízes da nossa própria condição de seres humanos.
A todos, e em particular aos involuntariamente esquecidos, o meu reconhecimento.
João Zilhão
RESUMO
O Paleolítico Superior português é estudado a partir da análise de colecções antigas, inéditas,
e dos resultados de trabalhos de campo realizados entre 1979 e 1993 em diversas jazidas da
Estremadura (definida como a região geográfica correspondente à faixa litoral situada entre
Tejo e Mondego).
No volume I apresenta-se uma síntese em que se trata sucessivamente:
•
da cronologia das primeiras indústrias aurignacenses portuguesas e da sua relação com a
problemática da substituição dos neandertalenses pelo homem anatomicamente moderno
na Península Ibérica (capítulo 1);
•
da reconstituição das condições ambientais vigentes na região estudada entre 30 000 e
10 000 BP (capítulo 2);
•
das características básicas da tecnologia lítica, nomeadamente no que diz respeito à
variação diacrónica das estratégias de debitagem laminar e da frequência com que se
recorreu à debitagem de tipos especiais de núcleos («raspadeiras» espessas, buris e peças
esquiroladas) destinados à produção de barbelas líticas (capítulo 3);
•
da densidade populacional, da dimensão dos territórios de subsistência, da natureza dos
recursos explorados, e das características dos sistemas de povoamento (capítulo 4);
•
da sequência crono-estratigráfica e dos seus hiatos (capítulo 5);
•
da comparação com as regiões geográficas vizinhas (Espanha e Sudoeste da França) e da
interpretação histórica e paletnológica a dar aos paralelismos e aos particularismos que
resultam dessa comparação (capítulo 6).
O volume II abre com uma retrospectiva da investigação passada e com a descrição da
metodologia utilizada na análise dos conjuntos líticos. Adoptou-se uma perspectiva
tecnológica, visando a reconstituição dos sistemas de produção lítica na sua globalidade e o
estudo do fraccionamento espacial das diferentes cadeias operatórias, mas sem descurar a
classificação tipológica tradicional e a análise mais cuidada de duas classes de utensílios, a
das armaduras e a das raspadeiras. Esta perspectiva foi aplicada ao estudo monográfico de
todos os contextos arqueológicos conhecidos, que se procurou sempre, simultaneamente,
submeter a uma crítica tafonómica. Na Parte I, trata-se do Aurignacense; na Parte II, do
Gravettense e do Proto-Solutrense; na Parte III, do Solutrense; na Parte IV, do Magdalenense.
A finalizar, numa Parte V, apresentam-se os elementos de informação existentes a respeito de
achados avulsos ou de sítios que se encontram ainda em escavação.
ABSTRACT
This study of the Upper Paleolithic of Portugal was carried out through the analysis of
unpublished collections from old excavations and through the analysis of data collected
during field work conducted between 1979 and 1993 at several sites located in Estremadura
(defined as the littoral region bordered by the lower valleys of the Tagus and Mondego
rivers).
Volume I presents a synthesis where the following questions are dealt with:
•
the chronology of the first Aurignacian industries of Portugal and its relationship with the
replacement of Neandertals by anatomically modern humans in Iberia (chapter 1);
•
the environmental setting of the studied region in the period between 30 000 and 10 000
BP (chapter 2);
•
the basic characteristics of lithic technology, particularly as regards the diachronic
variation in blade production strategies and in the frequency with which special core
types (thick «endscrapers», burins and splintered pieces) were used for the production of
lithic barbs (chapter 3);
•
the density of human populations, the size of subsistence territories, the nature of
exploited resources and the characteristics of settlement systems (chapter 4);
•
the chronostratigraphic sequence and the hiatuses it shows (chapter 5);
•
the comparison with neighboring regions (Spain and Southwestern France) and the
historical and paleoethnological interpretation of both the parallels and the idiosyncrasies
that arise from such comparisons (chapter 6).
Volume II opens with a history of past research and a description of the methodology
followed in lithic analysis. A technological framework was chosen that aimed at the
reconstruction of lithic production systems and at the study of the spatial fractionation of the
several operative chains. Traditional typology was also used, and two classes of tools —
points and endscrapers — were the subject of a more thorough analysis. All known
archaeological contexts were monographically studied with this methodology. At the same
time, their significance was evaluated through taphonomic analyses. Aurignacian contexts are
thus analyzed in Part I, Gravettian and Proto-Solutrean ones in Part II, Solutrean ones in Part
III, and Magdalenian ones in Part IV. Lastly, in Part V, the data pertaining to isolated finds or
to sites currently under investigation are presented.
SUMÁRIO
1. ORIGENS ......................................................................................................................................... 15
1.1. O que é o Paleolítico Superior? ......................................................................................... 15
1.2. Biologia e cultura na «revolução do Paleolítico Superior»................................................ 21
1.3. A passagem do Paleolítico Médio ao Superior em Espanha .............................................. 28
1.4. O Moustierense final em Portugal ..................................................................................... 31
1.5. A fronteira do Ebro............................................................................................................ 36
1.6. A sequência portuguesa ..................................................................................................... 44
2. AMBIENTE....................................................................................................................................... 47
2.1. Periodização ...................................................................................................................... 47
2.2. Condicionantes globais ...................................................................................................... 50
2.3. Indicadores paleoambientais.............................................................................................. 53
2.4. Reconstituição ................................................................................................................... 66
3. TECNOLOGIA LÍTICA.................................................................................................................... 71
3.1. Padrões de fragmentação ................................................................................................... 73
3.2. Debitagem laminar............................................................................................................. 83
3.3. Produção de barbelas....................................................................................................... 103
3.4. Significado tecnofuncional dos buris............................................................................... 116
3.5. Exploração da matéria-prima e tipos de núcleos.............................................................. 129
4. ECONOMIA.................................................................................................................................... 131
4.1. Aprovisionamento em matérias-primas líticas ................................................................. 131
4.2. Demografia e territórios................................................................................................... 142
4.3. Sistemas de povoamento e subsistência........................................................................... 150
4.4. Diferenciação funcional dos sítios ................................................................................... 156
5. SEQUÊNCIA CULTURAL............................................................................................................ 181
5.1. Aurignacense ................................................................................................................... 181
5.2. Gravettense antigo ........................................................................................................... 187
5.3. Fontesantense................................................................................................................... 191
5.4. Gravettense final.............................................................................................................. 196
5.5. Proto-Solutrense .............................................................................................................. 200
5.6. Solutrense médio ............................................................................................................. 209
5.7. Solutrense superior .......................................................................................................... 216
5.8. Magdalenense .................................................................................................................. 225
6. TENDÊNCIAS E CONTEXTO ..................................................................................................... 241
6.1. Indústrias líticas e sistema de adaptação.......................................................................... 241
6.2. Contexto regional............................................................................................................. 243
6.3. Mecanismos de mudança ................................................................................................. 259
6.4. Selecção cultural e mobilidade ........................................................................................ 267
7. CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 271
7.1. Balanço ............................................................................................................................ 271
7.2. Perspectivas ..................................................................................................................... 275
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................. 277
DATAÇÕES ABSOLUTAS............................................................................................................... 305
ÍNDICE DAS MATÉRIAS.................................................................................................................. 307
1. ORIGENS
1.1. O que é o Paleolítico Superior?
O termo Paleolítico foi criado por Lubbock em 1865, com o objectivo de diferenciar a fase
mais antiga da Idade da Pedra, durante a qual, como as descobertas de Boucher de Perthes
então acabavam de demonstrar sem margem para dúvidas, o homem havia sido
contemporâneo de faunas hoje extintas (Grayson 1983). Tal como aconteceu com os outros
grandes períodos da Pré-História, também no caso do Paleolítico a investigação realizada ao
longo dos 50 anos seguintes foi orientada sobretudo para a obtenção de cronologias mais
pormenorizadas, cuja metodologia de construção se inspirava no modelo geológico da
Paleontologia estratigráfica. Ou seja, visava o estabelecimento de subdivisões tão finas
quanto possível, caracterizadas pelo respectivo conteúdo fossilífero e ordenadas, através da
correlação à distância das diversas sequências parciais, numa série temporal única e universal
(Trigger 1989).
Após uma primeira tentativa em que se recorreu às faunas encontradas nos diversos
estratos das jazidas arqueológicas (Lartet 1868), foi mediante a análise da variação formal
dos artefactos nelas recolhidos que os pré-historiadores começaram a tentar identificar
critérios de diferenciação que permitissem individualizar essas subdivisões e reconhecer nos
estratos das jazidas os indícios que tornassem possível a respectiva integração na sequência-padrão (Mortillet 1867). Assim nasceu a grande maioria dos termos (Acheulense,
Moustierense, Solutrense, etc.) ainda hoje utilizados, embora com um significado por vezes
diferente, na Arqueologia do período paleolítico.
Foi só mais tarde que a sistemática passou a contemplar um nível intermédio, em que
estas unidades da sequência-padrão eram agrupadas em três grandes conjuntos: Paleolítico
Inferior, Paleolítico Médio e Paleolítico Superior. Segundo Gamble (1986:2-3), a origem
desta organização tripartida do Paleolítico remonta a Sollas (1911), que assimilou a estes três
estádios da evolução humana os grupos de caçadores-recolectores actuais ou subactuais
descritos pela etnografia. A partir de então, esta divisão tripartida acabou por ser aceite de
forma generalizada, e considerada como tendo um conteúdo fundamentalmente tecnológico,
correspondendo às três fases por que teria passado a evolução das indústrias da pedra lascada
ao longo dos tempos quaternários: indústrias de seixos talhados e de bifaces, indústrias de
lascas, e indústrias de lâminas (Brézillon 1969:178-181).
No que respeita à separação entre Paleolítico Inferior e Médio, a realidade da evolução
industrial que este esquema procurava reflectir tem sido repetidamente posta em causa. Desde
logo, pelos promotores da teoria dos «filos paralelos», lançada por Breuil nos anos 30, e
segundo a qual a humanidade teria conhecido, desde o início, duas grandes civilizações
(Breuil 1932): a dos bifaces (Abbevillense e Acheulense), e a das lascas (Clactonense,
Levalloisense e Tayacense, Moustierense). Conforme assinalado por Bordes (1950), esta
construção deparava com dificuldades de todo o tipo, que o levaram a propor um modelo
alternativo, o da «evolução arborescente» das indústrias do Paleolítico Inferior e Médio. Para
autores como Combier (1962), porém, as indústrias moustierenses deveriam ser consideradas
como não constituindo mais do que a fase final de um Paleolítico antigo ou inferior, não se
justificando a sua manutenção numa categoria tecnocronológica intermédia.
A favor deste último ponto de vista parece estar o facto de ter sido recentemente
reconhecido que a produção de lascas a partir de núcleos especialmente preparados para o
16
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
efeito (característica geralmente considerada como definidora do Paleolítico Médio) pode
remontar, nalgumas regiões da Europa, a cerca de 300 000 BP (Otte 1992). Embora sem
implicar um regresso aos «filos paralelos», esta constatação impõe no entanto a necessidade
de considerar a variabilidade das indústrias do Paleolítico Inferior e Médio, com ou sem
bifaces, como um fenómeno complexo, condicionado por uma série de factores (economia da
matéria-prima, funcionalidade das ocupações, relacionamento com o meio ambiente), e
ocorrendo num quadro geral que parece ser, pelo menos a partir daquela data, de relativa
estabilidade tecnológica.
1.1.1. Critérios tradicionais
Já no que respeita ao Paleolítico Superior, porém, a sua manutenção como período separado
parece ter resistido bastante melhor à passagem do tempo. Na acepção tradicional, sintetizada
por Brézillon (1969:180), a demarcação com as épocas anteriores era fornecida pelo
aparecimento no registo arqueológico de diversas novidades:
•
«a indústria óssea, reduzida até então a alguns objectos raros, conhece um brusco
desenvolvimento»;
•
«a debitagem da pedra é orientada para a obtenção sistemática de lâminas destinadas a
transformação em utensílios de tipos variados»;
•
«as tradições locais fixam-se rapidamente, testemunhando a existência de diferenças
étnicas»;
•
«os neantropianos, autores destas indústrias, atingiram uma estrutura cerebral idêntica à
nossa e as preocupações estéticas orientam, desde logo, uma parte importante da sua
actividade»;
•
«constata-se, mesmo nas mais antigas jazidas, uma organização do espaço habitado, a
utilização maciça de colorantes, a multiplicação dos objectos de adorno, e a aparição dos
primeiros testemunhos artísticos».
Mellars (1973), no entanto, objectou que a debitagem laminar não podia ser considerada
como uma característica diferenciadora do Paleolítico Superior, uma vez que a produção de
suportes alongados de bordos subparalelos, por vezes em quantidades significativas, estava
bem documentada em certas indústrias do Paleolítico Médio. Do ponto de vista do talhe da
pedra, a grande inovação teria assim residido antes na diversificação de formas ocorrida no
âmbito dos utensílios retocados, bem como na extraordinária aceleração verificada no
processo de aparecimento e deperecimento de novos tipos líticos. A esta rectificação dos
critérios tradicionais, Mellars acrescentava outros relacionados com a demografia, a
subsistência e a organização social: o aumento da densidade populacional e da dimensão dos
grupos co-residentes; e a especialização da caça, com concentração do esforço cinegético
num número reduzido de espécies (quando não numa só), acompanhada de um alargamento
da gama de recursos explorados, em que passavam a estar incluídos aves e peixes.
1.1.1.1. Indústrias líticas
No que diz respeito à tecnologia lítica, as observações de Mellars encontram confirmação
parcial em indústrias como as de Rocourt (Bélgica) e Seclin (França), datadas do último
período interglaciário. Nestas jazidas, a produção de lâminas é sistemática, mas a tipologia
dos utensílios retocados fabricados sobre essas lâminas (buris, truncaturas, facas de dorso) é
também a que se costuma associar ao Paleolítico Superior (Otte 1990). Segundo Boëda
(1990), o sistema de exploração dos núcleos praticado no tipo de indústrias documentado
pela jazida belga está também conceptualmente próximo do do Paleolítico Superior, isto é,
Origens
17
mostra a intenção de gerir um volume e não uma superfície. Deve notar-se, no entanto, que,
para este autor, a configuração volumétrica desses núcleos é ainda a característica dos
métodos de debitagem levallois, e a técnica de gestão utilizada para conseguir uma produção
sequencial dos suportes pretendidos é sui generis: extracção de produtos ultrapassados (com
dorso natural), mediante a qual se vai conseguindo manter a convexidade da superfície de
debitagem sem ser necessário recorrer à repreparação constante que nos métodos clássicos
tem de ser feita à medida que se vão exaurindo os sucessivos planos de trabalho.
Ainda segundo Boëda, é só em indústrias como as da camada 8 do Roc de Combe
(França) e do nível 1 de Boker Tachtit (Negev, Israel) que aparecem as configurações
volumétricas características do Paleolítico Superior, obtidas mediante a preparação de cristas
posteriores ou laterais. Em ambos os casos, porém, trata-se de conjuntos de cronologia tardia:
o primeiro é do Castelperronense (tecnocomplexo que, aliás, é tradicionalmente incluído no
Paleolítico Superior); e o segundo está datado de cerca de 47 000 BP (Marks 1981). É só
nesta altura, portanto, que aparecem métodos em que (usando a terminologia de Boëda) a
orientação da debitagem para a exploração de um volume e não de uma superfície se combina
com configurações volumétricas que são as típicas do Paleolítico Superior, estas últimas não
se encontrando actualmente documentadas nas indústrias levallois laminares europeias do
último interglaciar. Marks e Monegal (comunicação pessoal), no entanto, demonstraram
recentemente que esse tipo de configuração se encontrava já presente em alguns núcleos para
lâminas da jazida de Rosh ein Mor (Israel), cuja idade mínima se encontra calculada em cerca
de 80 000 anos e que deve portanto ser, tal como as duas jazidas europeias acima referidas
(Rocourt e Seclin), de época interglaciar.
Para Marks e Ferring (1988), o critério actualmente disponível que no Próximo Oriente
melhor permite traçar uma linha de separação clara entre o Paleolítico Médio final
(representado pelo nível 1 de Boker Tachtit) e o Paleolítico Superior inicial (representado
pelo nível 4 da mesma jazida) é também o que diz respeito à mudança nas estratégias de
talhe. Apesar da semelhança morfológica existente, tanto do ponto de vista tecnológico como
tipológico, entre os produtos obtidos num e noutro nível, os núcleos de onde esses produtos
foram extraídos eram explorados de maneira muito distinta (Volkman 1983). No nível 1, foi
seguida uma estratégia especializada, orientada para a produção de pontas levallois, obtidas
uma a uma no quadro de um processo técnico em que cada extracção requeria uma
preparação prévia, realizada mediante levantamentos laminares executados exclusivamente
com essa finalidade e que desse modo pré-determinavam a morfologia do produto que se
pretendia obter (a ponta), o qual era debitado a partir de um plano de percussão oposto ao
utilizado para os levantamentos de preparação. No nível 4, a estratégia utilizada estava
orientada para a produção sistemática de lâminas a partir de núcleos com um plano de
percussão único e que, em estado de abandono, apresentavam já a configuração volumétrica
típica do Paleolítico Superior. O método seguido garantia que algumas dessas lâminas
apresentariam necessariamente bordos convergentes (isto é, seriam pontas de morfologia
idêntica às obtidas pelo método levallois), dispensando a preparação individual, uma a uma,
da respectiva extracção. Segundo Marks (1981, 1988), esta mudança traduzir-se-ia numa
maior eficiência do sistema de produção lítica, interpretação que é secundada por Boëda
(1990), para quem a estratégia documentada no nível 4 desta jazida permitiria obter uma
maior quantidade de produtos laminares, embora de carácter mais heterogéneo e menos
normalizado do que os obtidos no quadro da estratégia documentada no nível 1.
Parece claro, deste modo, que, contrariamente ao defendido por Mellars, os critérios
tecnológicos continuam a ser, no que às indústrias líticas diz respeito, aqueles que melhor
permitem realizar a separação entre Paleolítico Médio e Superior. Sobretudo se tivermos em
conta, conforme White (1982), seguindo Binford (1973), argumenta, que não é claro até que
ponto as diferenças existentes ao nível da diversidade de formas dos utensílios retocados não
18
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
são mais do que uma consequência da utilização de duas listas-tipo de construção distinta:
uma, a do Paleolítico Médio, concebida para a medição da variabilidade quantitativa
sincrónica; a outra, a do Paleolítico Superior, concebida para a medição da variabilidade
morfológica diacrónica. No entanto, os dados respeitantes ao Próximo Oriente mostram que o
aparecimento de estratégias para a produção de lâminas de tipo Paleolítico Superior se faz em
época bastante remota, em contextos onde as tecnologias de tipo Paleolítico Médio são ainda
dominantes. O significado da sequência de Boker Tachtit seria assim o de evidenciar o
momento (representado pelo respectivo nível 4) em que as estratégias de tipo Paleolítico
Superior se tornam praticamente exclusivas, e as de tipo Paleolítico Médio finalmente
desaparecem, ou seja, o momento a partir do qual podemos considerar como acabado um
processo de transição cujo início remontará ao último interglaciar.
1.1.1.2. Povoamento, subsistência, tipo físico
É também com grandes reservas metodológicas que White encara os critérios demográficos
utilizados por Mellars, embora manifeste o seu acordo com as conclusões a esse respeito
avançadas por este último autor. As variações ocorridas no número de sítios por período
(índice a que Mellars recorreu para fundamentar a ideia segundo a qual a população teria
aumentado de forma significativa na passagem do Paleolítico Médio ao Superior) são com
efeito um indicador muito falível da dimensão e sentido das flutuações efectivamente
verificadas na densidade populacional de épocas tão remotas, uma vez que factores de ordem
tafonómica ou relacionados com a história das investigações podem ter um impacto
considerável na visibilidade das jazidas ou determinar uma exploração científica diferencial
das de determinada cronologia. Do mesmo modo, a dimensão média aparentemente mais
elevada dos sítios do Paleolítico Superior não pode ser por si só tomada como indício de uma
maior dimensão dos grupos co-residentes, já que pode estar relacionada com muitos outros
factores, como por exemplo uma modificação dos sistemas de povoamento implicando uma
maior intensidade e redundância da ocupação de determinados sítios.
Quanto aos restantes critérios diferenciadores propostos por Mellars, e que White
também aceita, tem havido, recentemente, uma tendência para a sua matização acentuada. Ao
sintetizar os pontos de vista expressos pelos investigadores presentes num Congresso sobre o
Paleolítico Médio e Superior da Eurásia, Sackett (1988) assinalava com efeito que:
•
as indústrias castelperronenses, geralmente consideradas como marcando o início do
Paleolítico Superior na região franco-cantábrica, estão em continuidade total, do ponto de
vista tecnotipológico, com o Moustierense de Tradição Acheulense de tipo B, que lhes é
cronologicamente antecedente, ponto de vista que era já o de Bordes (1972), e também o
de Mellars (1973);
•
as práticas de caça consideradas como típicas do Paleolítico Superior são já correntes no
Moustierense, conforme se depreende das análises realizadas sobre as faunas de Combe-Grenal, que mostram que a acumulação de restos de equídeos e de bovídeos nesta jazida
resultam de actividades de caça e não de necrofagia, o mesmo acontecendo em
numerosas outras estações situadas tanto em França como na Alemanha ou na Crimeia
(Chase 1988); diversas fontes citadas por Cohen (1977) referem por outro lado que a
exploração dos recursos aquáticos, bem como das aves e dos pequenos mamíferos, era já
praticada, embora em pequena escala, pelas populações moustierenses da Europa;
•
as estratégias de povoamento e subsistência documentadas para o Paleolítico Superior
inicial são no essencial idênticas às do Moustierense, pelo menos na região franco-cantábrica, sendo só a partir do Solutrense que se começam a verificar, a este nível,
modificações importantes (Straus 1983b, 1992).
Origens
19
Por outro lado, a descoberta do esqueleto neandertalense de Saint-Césaire, encontrado em
meio castelperronense (Lévêque 1993), veio pôr em causa a ideia tradicionalmente admitida
de que as indústrias do Paleolítico Superior eram invariavelmente obra dos «neantropianos»,
questionando assim também, desde logo, a correlação de que Brézillon se fazia eco entre as
inovações registadas nessa época e o aparecimento de «uma estrutura cerebral idêntica à
nossa». Correlação cultura/biologia que, no entanto, se tem procurado manter, recorrendo ao
argumento da aculturação (Otte 1990; Vandermeersch 1993): teria sido através do contacto
com populações anatomicamente modernas oriundas do Próximo Oriente (portadoras da
tecnologia aurignacense) que os neandertalenses (autores das indústrias moustierenses
europeias) teriam aprendido as técnicas de debitagem laminar com percutor mole
características do Castelperronense, bem como o hábito, bem documentado em Arcy-sur-Cure
(Leroi-Gourhan 1965), de usar objectos de adorno pessoal.
1.1.1.3. Arte e indústria óssea
Desta matização (quando não mesmo, em certos casos, anulação) de uma parte importante
dos critérios tradicionalmente utilizados para realizar a discriminação entre o Paleolítico
Médio e o Superior resulta assim que parecem restar apenas dois em relação a cuja utilidade
não parece haver controvérsia: o que se refere à utilização das matérias duras de origem
animal (osso e corno) como matéria-prima para a fabricação de utensílios obtidos através de
técnicas de modelação, e não de percussão; e o que se refere ao aparecimento do fenómeno
artístico (ornamentação pessoal, pintura, gravura e escultura).
Quanto à arte, que durante muito tempo se pensou ser um fenómeno exclusivo das
regiões europeias e asiáticas que durante a fase final do Plistocénico estiveram submetidas a
um regime climático de tipo periglaciar (Gamble 1983), é hoje em dia claro que se trata de
um fenómeno amplamente difundido, em cuja área de distribuição geográfica se encontram
também incluídos os continentes africano e australiano (Garlake 1987; Bahn e Vertut 1988;
Layton 1992). No entanto, dela continuam a estar excluídas regiões como o Próximo Oriente
onde, além disso, a indústria óssea é extremamente rara nas indústrias do Paleolítico Superior
inicial (Valla 1992). Segundo Bar-Yosef e Belfer-Cohen (1988), porém, foram feitas
quantidades consideráveis de achados (na sua maioria pontas e furadores) em algumas
jazidas, como Ksar Akil e Hayonim. Esta última cavidade é igualmente o único sítio da
região em que foi encontrada arte paleolítica: objectos de adorno (dentes perfurados) e duas
lajes de calcário finamente gravadas (numa das quais se reconhece a figura de um ungulado)
provenientes dos níveis com Aurignacense Levantino. Para estes dois últimos autores, a
relativa raridade da indústria óssea e da arte móvel no Paleolítico Superior inicial do Levante
deve assim ser explicada como consequência do reduzido número de jazidas deste período
situadas em ambiente cársico (grutas e abrigos), com preservação da matéria orgânica, que
foram escavadas até ao momento.
1.1.2. Uma definição mais precisa
Os dois critérios (aparecimento da arte e da indústria óssea) que num contexto europeu
aparentam verdadeira utilidade parecem assim revelar-se também eles de real valor (desde
que sejam devidamente levados em conta factores como a intensidade da investigação
realizada e a preservação diferencial dos achados em função dos tipos de sítios
documentados) quando considerados à escala da globalidade das diversas regiões em que a
diferenciação tripartida do Paleolítico tem sido correntemente aplicada. Essa utilidade é no
entanto consideravelmente mitigada pelo facto de os acasos da preservação diferencial não
permitirem o seu uso sistemático como critério básico de classificação dos vestígios materiais
do passado. Esse papel tem por isso de caber, necessariamente, aos restos líticos, tal como
tem sido prática corrente desde o século passado.
20
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Por outro lado, da discussão anterior resulta igualmente que uma diferenciação entre
Paleolítico Médio e Superior baseada no aparecimento da arte e de novas técnicas de fabrico
de utensílios em pedra e em osso não tem correspondência exacta nem no domínio biológico
nem noutros domínios comportamentais de âmbito mais vasto. No caso do Próximo Oriente,
de onde o acima referido modelo de aculturação faz vir os antepassados dos homens
modernos de quem os neandertalenses teriam imitado as inovações que aparecem no
Castelperronense, continuamos aliás a não saber qual terá sido o tipo físico dos fabricantes
das primeiras indústrias do Paleolítico Superior, embora esteja provado que as indústrias
moustierenses do período precedente tanto foram fabricadas pelos homens anatomicamente
modernos de Skhul ou de Qafzeh como pelos neandertalenses de Tabun ou Shanidar. Deve
aliás a este respeito assinalar-se que, segundo os resultados cronométricos actualmente
disponíveis (Valladas et al. 1988; Stringer 1991), os primeiros terão frequentado a região
durante o último período interglaciário, os mais recentes restos humanos do Paleolítico
Médio (os de Amud e de Kebara) sendo de tipo neandertalense o que, portanto, não permite
pôr de parte a hipótese de que, tal como em França, tenham sido eles os autores das mais
antigas indústrias do Paleolítico Superior local.
Por outro lado, são várias as regiões do Velho Mundo em que as jazidas do período
compreendido entre 10 000 e 40 000 BP não contêm indústrias líticas de tipo Paleolítico
Superior (tal como definido na Europa), apesar de, em certos casos, essas jazidas conterem
objectos de adorno, ou até mesmo restos humanos anatomicamente modernos. Na caverna
superior de Choukoutien (China), por exemplo, o conjunto lítico era constituído por seixos
talhados, raspadores e lascas de quartzo, mas estava associado a uma agulha de osso, e
provinha de níveis onde foi escavada uma sepultura que continha 125 dentes perfurados
(Bordes 1968:201-202). E, nos arquipélagos indonésio e filipino, as indústrias do referido
período são constituídas exclusivamente por seixos talhados e por lascas (e só começam a
modificar-se, com a adição de objectos de gume polido, a partir do início do Holocénico),
embora nos níveis de base da caverna de Niah (Sarawak, Bornéu), datados de cerca de 40 000
BP, houvesse indústria óssea associada a este tipo de artefactos líticos (Garanger 1992).
Estes exemplos parecem suficientes para demonstrar que tecnologia lítica, trabalho das
matérias duras de origem animal, manifestações artísticas, estratégias de caça, sistemas de
povoamento, anatomia das populações, etc., são aspectos bioculturais do funcionamento dos
grupos humanos cuja variação se deu de forma dissociada no tempo e no espaço durante a
parte final do Paleolítico antigo (Inferior/Médio) e a parte inicial do Paleolítico Superior, ou
seja, entre cerca de 100 000 e cerca de 30 000 anos BP. Tal como acontece no presente
etnográfico, essa variação ter-se-á dado em resposta a condicionantes mais gerais
relacionadas com os respectivos modos de vida e, em muitos aspectos, não é uma variação
direccionada, de sentido único. É por essa razão que não é possível traçar nenhuma linha
divisória que atravesse de forma rectilínea, transversal e universal, as diversas sequências
diacrónicas que ilustram os desenvolvimentos ocorridos nos diversos domínios do
comportamento humano ao longo da Pré-História.
A questão que se põe, portanto, é a de saber se, para o caso de uma região determinada, e
num determinado momento concreto, há realmente (ou não) inovações tecnológicas
importantes, se elas ocorrem de forma concentrada no tempo, e se são de carácter
diagnóstico, isto é, se permitem que um conjunto arqueológico em que elas sejam
identificadas não possa ser confundido com os situados em momentos temporais distintos.
Ou, dito de outra forma, se a identificação dessas inovações nesses conjuntos permite que
eles sejam reconhecidos como pertencendo a um mesmo período, isto é, a uma entidade
taxonómica de valor cronológico em função da qual nos seja possível organizar e analisar os
dados e cuja discriminação não seja portanto desprovida de sentido prático. Só no quadro de
uma tal periodização será então possível investigar a forma como o comportamento humano
Origens
21
variou (ou não) nas suas outras dimensões (subsistência, organização social, etc.), sem
presumir que as mudanças ocorridas nas formas de trabalhar as matérias-primas líticas podem
ser automaticamente tomadas como sintoma de que essa variação aconteceu (ou,
inversamente, que a manutenção de técnicas arcaicas pode ser tomada como sintoma de
«fossilização» biocultural das populações).
Conforme resulta do que anteriormente foi dito, parece claro, no respeitante à área
geográfica correspondente à Europa e Próximo Oriente (e também a outras regiões adjacentes
para as quais a documentação disponível ainda é no entanto insuficiente), que a resposta que
deve ser dada a esta questão é uma resposta positiva. Nessas regiões dá-se com efeito, a partir
de um momento cuja cronologia exacta é ainda algo imprecisa, mas que estará certamente
compreendida entre cerca de 50 000 e cerca de 30 000 BP, um processo de inovação
tecnológica terminado o qual: as indústrias líticas evidenciam sistemas de produção de
lâminas baseados em métodos de gestão dos blocos de matéria-prima orientados para a
exploração de um volume e não de uma superfície; as matérias duras de origem animal são
utilizadas para a fabricação de utensílios; a cultura material se enriquece com manifestações
artísticas de natureza diversa, individual (objectos de adorno pessoal, decoração de artefactos
tecnómicos) ou colectiva (arte parietal). É ao período que se abre a partir desse momento (e
que, por definição, termina por volta de 10 000 BP, com o fim do Paleolítico, fim que, por
convenção, se tem feito coincidir com o do Plistocénico) que chamaremos Paleolítico
Superior. A discussão do significado mais geral deste período na História da Humanidade
constitui a matéria do apartado seguinte.
1.2. Biologia e cultura na «revolução do Paleolítico Superior»
A matização de algumas das diferenças comportamentais entre Paleolítico Médio e Superior
tradicionalmente admitidas não significa que não haja, em termos de longo prazo, um
contraste marcado entre os dois períodos. Não parece com efeito possível negar que o sistema
adaptativo dos grupos humanos que habitavam a Europa por volta de 20 000 BP era já muito
diferente do praticado pelos que nela existiam há cerca de 70 000 anos. Isso não significa,
porém, que o conjunto de transformações mediante as quais essa diferença se construiu se
tenha dado de forma abrupta ou simultânea. Conforme acima se argumentou, parece pelo
contrário mais lógico admitir que estejamos antes perante um processo gradual de transição,
com uma duração considerável, da ordem das duas ou três dezenas de milhares de anos. A
confirmação de que foi efectivamente esse o caso (e averiguá-lo é precisamente uma das
tarefas actualmente mais prementes da investigação) não impediria no entanto que, numa
perspectiva histórica, continuasse a justificar-se a consideração do advento do Paleolítico
Superior como constituindo uma espécie de «revolução», à imagem da «revolução neolítica»
de Gordon Childe (Gilman 1984). Se, por padrões actuais, ou mesmo neolíticos, pode parecer
abusivo usar este termo quando estão envolvidas durações de uma tal ordem de grandeza,
essa impressão desaparecerá facilmente se se tiverem em conta as centenas de milhares de
anos de estabilidade que precederam o desencadear do processo, o qual, em tal contexto, não
pode com efeito deixar de ser considerado como muito rápido.
Na concepção de Gilman, o pacote de características que Brézillon, Mellars e White
usaram para definir o Paleolítico Superior é o resultado materialmente visível de um processo
desencadeado pelo aumento da eficiência da tecnologia das populações humanas, o qual teria
permitido que as actividades de subsistência passassem a revestir-se de um grau mais elevado
de produtividade e de segurança. Em consequência, a densidade populacional teria
aumentado, dando origem à formação de sistemas de aliança de âmbito relativamente restrito,
cuja existência se manifestaria no registo arqueológico pelo aparecimento de indicadores de
etnicidade (variação estilística sincrónica de classes de artefactos funcionalmente idênticos),
22
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
de práticas rituais destinadas a cimentar essas alianças (arte parietal), e de formas de
identificação personalizada dos indivíduos (objectos de adorno).
Um modelo deste tipo pressupõe duas condições de importância fundamental. A
primeira, é a de que o arranque do processo se tenha verificado ainda durante o Paleolítico
Médio, condição de que a matização do contraste entre as duas épocas, nomeadamente no que
respeita ao povoamento e à subsistência, constitui sintoma de verificação. A segunda, é a de
que tenha havido uma continuidade mínima ao nível das populações que foram alvo das
pressões selectivas responsáveis pelo evoluir do processo, condição que, no caso europeu,
seria facilmente verificada se se pudesse demonstrar que o aparecimento do homem
anatomicamente moderno resultou da evolução biológica das populações neandertalenses.
Ultimamente, porém, a grande maioria dos especialistas tem vindo a pender para a defesa de
um ponto de vista que é precisamente o oposto: o de que o homem de Neandertal se extinguiu
sem descendência, sendo substituído por grupos cuja genealogia remontaria ao continente
africano e cuja origem próxima seria o Levante (Stringer et al. 1984; Stringer e Gamble
1993).
De facto, conforme argumenta Vandermeersch (1993), os fósseis da Europa Central
(nomeadamente os de Vindija, na Croácia) que têm sido utilizados para sustentar a hipótese
de continuidade genética entre os homens de Neandertal e de Crô-Magnon são de datação
incerta e demasiado fragmentários para permitir um diagnóstico preciso. Em todo o caso, no
que respeita à presença de um debrum supraciliar contínuo e de um espaço retromolar
importante, e à ausência de queixo, esses fósseis são de morfologia tipicamente
neandertalense. Por outro lado, a cronologia dos restos neandertalenses de Saint-Césaire,
datados de 36 300±2700 BP pelo método TL (Mercier e Valladas 1993), não deixa tempo
suficiente para que, pelo menos na Europa Ocidental, se possa conceber um processo de
evolução autóctone através do qual a morfologia moderna tivesse emergido localmente a
partir da antiga. Inversamente, a datação pelo mesmo método dos restos humanos de Skhul e
de Qafzeh mostra que essa morfologia moderna já existia no Próximo Oriente há cerca de
100 000 anos (Valladas et al. 1988), pelo que dificilmente se compreenderia o atraso
verificado no seu aparecimento na Europa se em ambas as regiões estivéssemos perante um
desenvolvimento evolutivo paralelo efectuado a partir de uma mesma população ancestral.
1.2.1. A não-explicação reducionista
Com os dados actualmente disponíveis, parece assim que o aparecimento do homem de Crô-Magnon no continente europeu não pode deixar de ser relacionado com um processo de
substituição de populações, em que o elemento intrusivo estaria arqueologicamente
representado pelas indústrias aurignacenses, às quais apenas estão associados, tanto quanto se
sabe, restos humanos anatomicamente modernos (Gambier 1993). Ou seja, o processo terá
sido, segundo tudo leva a crer, concomitante do primeiro aparecimento de algumas das
componentes do «pacote Paleolítico Superior» (como a indústria óssea e a arte animalista)
que, na Europa, se dá precisamente em contexto aurignacense. Esta circunstância propicia
naturalmente o aparecimento de modelos reducionistas, segundo os quais seria a superior
capacidade intelectual dos recém-chegados que explicaria a passagem do Paleolítico Médio
ao Superior. A «revolução» seria assim a manifestação tecnológica e social de uma conquista
biológica, a de se ter atingido uma capacidade cultural plena, realizada na prática através do
«comportamento simbolicamente organizado» tal como entendido por Stringer e Gamble
(1993:207), para quem «os homens de Neandertal tinham capacidade para a emulação e a
mudança, mas não para o simbolismo».
Conforme assinala Gilman (1984:119), o reducionismo biológico é neste caso (senão
sempre) uma forma absolutamente insatisfatória de explicação, pelo menos enquanto não
Origens
23
apresentar provas claras de que as diferenças verificadas na anatomia do esqueleto entre os
dois grupos de populações envolvidos no processo são directamente responsáveis por
capacidades intelectuais de nível distinto. É certo que Lieberman (1994) concluiu, a partir de
reconstruções da anatomia da faringe dos hominídeos fósseis feitas com base na observação
da morfologia da base do crânio, que nas populações neandertalenses e de Homo erectus a
forma da região nasofaríngica apenas teria permitido a emissão de uma gama reduzida de
sons. Tobias (1994), no entanto, objecta que estas reconstruções são altamente questionáveis
e que, além disso, é necessário ter em conta que a riqueza de uma linguagem não se mede
pela diversidade da sua fonética, a qual, mesmo no mundo actual, varia imenso, havendo
inclusivamente línguas em que o número de fonemas não ultrapassa a dúzia. Para este autor,
aliás, a diferenciação da área da fala é já visível nos moldes endocranianos de Homo habilis,
pelo que se pode presumir que as condições anatómicas para a existência de linguagem
existem desde há cerca de dois milhões de anos. Por outro lado, o reducionismo biológico
também não consegue explicar por que razão algumas das manifestações mais salientes do
«pacote do Paleolítico Superior» estão ausentes de vastas regiões do globo durante o
Plistocénico final e também se não encontram nos enterramentos palestinos de homens
anatomicamente modernos datados do início do Plistocénico superior.
Nestas circunstâncias, a forma mais correcta de, no caso europeu, encarar a extinção das
populações neandertalenses e a sua substituição pelas populações anatomicamente modernas
parece ser a de que se trata de uma contingência histórica em virtude da qual se deu uma
mudança dos protagonistas de um processo que já estava em curso quando essa mudança
ocorreu. De facto, a generalidade dos autores tende a considerar que as indústrias do
Paleolítico Superior inicial anteriores ao Aurignacense foram, à semelhança do que se
demonstrou em França no caso do Castelperronense, fabricadas pelas últimas populações
neandertalenses (Hahn 1993). A ser assim, deve notar-se que em certos aspectos a cultura
material destas últimas contrasta com a das primeiras populações modernas de maneira
precisamente inversa à que seria de esperar num quadro explicativo reducionista. Com efeito,
a cultura material do Aurignacense caracteriza-se por uma grande homogeneidade à escala
europeia: as pontas de base fendida, por exemplo, encontram-se desde Kebara, na Palestina
(Bar-Yosef e Belfer-Cohen 1988), até Cueva Morín, na Cantábria (Bernaldo de Quirós 1982).
No tal Paleolítico Superior inicial pré-aurignacense, pelo contrário, verifica-se uma
diferenciação regional bastante marcada, conforme resulta da distribuição geográfica
circunscrita dos tecnocomplexos: Uluzzense, em Itália; Castelperronense, na região franco-cantábrica; Lincombense, em Inglaterra; Szeletiense e Bohunicense, na Europa Central;
Jerzmanovicense, na Polónia (Fig. 1.1).
Não se vê nenhuma razão a priori para não interpretar esta diferenciação regional de
maneira semelhante à que seria utilizada para épocas mais recentes: como consequência de
um comportamento estilístico, manifestação industrial de etnicidade. Aliás, segundo Van
Peer (1991), fenómeno semelhante pode ser observado desde meados do Paleolítico Médio
no Norte de África, onde a análise da debitagem levallois revelou (em concordância com os
resultados da análise tecnotipológica tradicional) a existência de agrupamentos regionais
claramente distintos, que o autor considera só poderem ser explicados como representando a
expressão material da coexistência nesta área de culturas/etnias diferentes. Há que ter em
conta, porém, que, neste caso, a caracterização do tipo físico, «antigo» ou «moderno» (para
usar a terminologia de Stringer e Gamble 1993), responsável pela fabricação dessas
indústrias, é ainda uma questão controversa, embora, no caso do Magreb, a respectiva autoria
tenha vindo a ser atribuída aos homens de tipo Djebel Irhoud, os quais são de um modo geral
considerados como um desenvolvimento local do Homo erectus em estádio evolutivo
equivalente ao dos neandertalenses europeus (Genet-Varcin 1979:244).
24
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Sendo assim, nada obriga a que o aparecimento dos primeiros objectos de adorno no
Castelperronense deva ser interpretado como imitação de comportamentos observados nos
grupos modernos, aurignacenses, que se supõe terem sido contemporâneos dele (Otte 1990),
e não como indício da ocorrência de processos de identificação personalizada concomitantes
do desenvolvimento das formas de diferenciação étnica sugeridas pela análise das indústrias
líticas. Por outro lado, conforme argumenta Gambier (1993), a ausência de sepulturas
aurignacenses (pelo menos em França) contrasta de forma marcada com os numerosos
enterramentos moustierenses conhecidos, o mesmo acontecendo no Próximo Oriente, onde o
Paleolítico Superior é extremamente parco não só em enterramentos como até mesmo em
achados de restos humanos isolados, apesar do número considerável de sepulturas bem
preservadas (tanto de neandertalenses como de homens anatomicamente modernos) que
caracteriza o Paleolítico Médio da região (Bar-Yosef e Belfer-Cohen 1988). Ninguém
defende, no entanto, que a partir desta constatação se deva concluir que as capacidades
intelectuais dos homens anatomicamente modernos eram inferiores às dos neandertalenses,
ou que a sua cultura era menos complexa. A explicação de Gambier é a de que a ausência de
sepulturas aurignacenses poderá estar relacionada com rituais funerários em que não haveria
lugar à inumação em gruta ou abrigo, e em que poderá ter havido manipulação dos cadáveres,
conforme sugerido por alguns indícios (estrias de descarnamento, fragmentação dos ossos,
uso de dentes humanos perfurados como pendentes). Para Bar-Yosef e Belfer-Cohen,
explicações do mesmo tipo devem também ser aplicáveis ao Próximo Oriente, uma vez que o
contraste marcado que nesta região se verifica entre as duas épocas pode em certos casos ser
observado entre níveis correspondentes das mesmas jazidas, pelo que não pode tratar-se de
um problema relacionado com as condições de preservação dos sítios.
1.2.2. Um modelo cultural para a extinção do Homem de Neandertal
Se se aceitar que o fenómeno industrial de que o Castelperronense é emblemático está de
facto relacionado com as populações neandertalenses da Europa, não parece então possível
pôr em causa a ideia de que a «revolução do Paleolítico Superior» é um processo puramente
cultural, que podia ter ocorrido de forma independente, e segundo tudo leva a crer
efectivamente ocorreu, em grupos humanos anatomicamente diferentes. A interpretação do
caso europeu deve por isso ter em conta que, com toda a probabilidade, o contacto entre os
neandertalenses e os grupos anatomicamente modernos oriundos do Próximo Oriente foi um
contacto entre populações de capacidade cultural e nível de desenvolvimento tecnológico no
essencial idênticos, atingidos no quadro de processos de desenvolvimento separados mas em
grande medida convergentes. O facto de, no quadro desse contacto, um desses processos se
ter visto truncado por extinção dos seus protagonistas (os grupos neandertalenses) em nada
implica, por si só, a inferioridade biocultural destes últimos. Na realidade, é perfeitamente
possível sugerir um cenário em tudo compatível com os dados existentes e que dispensa a
formulação de juízos de valor acerca da maior ou menor capacidade dos dois grupos de
populações que se supõe terem estado envolvidos nos acontecimentos.
É hoje em dia geralmente admitido que o desenvolvimento do tipo neandertalense está
relacionado com um processo de deriva genética, determinado pelo isolamento geográfico
das populações europeias do Plistocénico Médio (Eldredge e Tattersal 1982). Isto é, após a
radiação que os levou a colonizar a África e grande parte da Eurásia, os Homo erectus ter-se-ão dividido em populações separadas umas das outras, com reduzidas trocas de material
genético entre si, em resultado do que seguiram processos evolutivos separados e com
resultados finais morfologicamente distintos: o homem de Neandertal no caso europeu, o
homem «moderno» no caso africano, porventura outras formas ainda, por enquanto mal
conhecidas, no Extremo Oriente. A partir de certo momento, por razões que ainda não somos
capazes de descortinar, as populações de tipo moderno oriundas de África começaram a
expandir-se, e alguns grupos entraram no continente europeu, estabelecendo contacto com
Origens
25
Sequências culturais
na passagem do Paleolítico Médio ao Paleolítico Superior
Fig. 1.1 - Na maior parte da Europa o Aurignacense é precedido por indústrias regionalmente diferenciadas, cuja
tecnologia lítica é pelo menos em parte de tipo Paleolítico Superior e que ainda terão sido fabricadas pelo Homem
de Neandertal. Nas regiões mediterrânicas, e em particular na Península Ibérica e no Magreb, isso não acontece.
Em Portugal e Espanha, a sul dos Pirenéus, o Moustierense subsiste até à sua substituição pelo Aurignacense. No
Norte de África, o Paleolítico Médio, expresso sob a forma do Ateriense (mas fabricado por grupos humanos
anatomicamente modernos), subsiste ainda até mais tarde, só vindo a dar lugar a indústrias de tipo Paleolítico
Superior (o Iberomaurosiense) por volta de 20 000 BP.
populações de que se haviam mantido isoladas durante dezenas ou centenas de milhar de
anos, tempo mais do que suficiente para que, além de morfologias distintas, se tivessem
também desenvolvido, por hipótese, características epidemiológicas também elas distintas.
Veja-se, por exemplo, para uma analogia da História recente, o que aconteceu quando os
colonos europeus se estabeleceram na América do Norte: um declínio demográfico
catastrófico das populações indígenas (acarretando, segundo diversas estimativas, uma
diminuição dos seus efectivos em cerca de 90%), que resultou da simples exposição a
doenças infecciosas para as quais essas populações não tinham mecanismos de defesa
imunológicos (Kunitz 1994).
Este declínio catastrófico, note-se, precedeu em grande medida a expansão dos colonos
para as regiões do interior, a substituição de populações que caracteriza o processo não
resultando portanto directamente da superioridade militar ou económica dos europeus: o
factor crucial de debilitamento dos grupos autóctones foi de natureza puramente
epidemiológica (Fiedel 1992). E, neste caso, se tivermos em conta que continua a aguardar
confirmação firme a hipótese de uma ocupação do Novo Mundo anterior a ≈11 500 BP, e que
a chegada de outras vagas populacionais de origem asiática está documentada em época mais
26
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
recente, a duração do isolamento entre as duas populações terá sido muito inferior à duração
do período durante o qual os neandertalenses evoluíram à parte. Por outro lado, as densidades
populacionais seriam há 40 000 anos seguramente muito mais baixas do que na América de
há alguns séculos, e as possibilidades de regeneração demográfica por isso mesmo também
muito inferiores. O impacto de um processo semelhante ao que resultou da colonização
europeia do Novo Mundo teria sido portanto ainda maior, e poderia ter levado muito
rapidamente à extinção das populações neandertalenses. Ao ocuparem o terreno que um
processo deste tipo teria deixado vago, as comunidades de homens anatomicamente
modernos chegadas ao continente europeu terão necessariamente seguido uma via de
desenvolvimento de características determinadas em grande medida pelos constrangimentos
do ambiente periglaciar da época, ao qual as populações neandertalenses que as antecederam
se tinham também adaptado. Daí a impressão de continuidade que nalguns aspectos se
verifica entre o Paleolítico Médio e o Superior, continuidade que não se vê por que razão
interpretar obrigatoriamente como manifestação de que o Castelperronense resulta de uma
aculturação induzida pelo contacto com os grupos aurignacenses.
Como é natural, não existem hoje em dia meios de avaliar se o modelo epidemiológico
acima apresentado tem alguma correspondência com a realidade do que efectivamente
aconteceu no passado. Uma das objecções que logo à partida se lhe poderia colocar é a de
que as doenças infecciosas que dizimaram as populações autóctones do Novo Mundo
requerem contextos urbanos para se desenvolverem (Fiedel 1992:362-365). Elas não deviam
portanto existir no Paleolítico e, provavelmente, as baixas densidades populacionais da época
tornariam em qualquer dos casos difícil a ocorrência de epidemias de consequências
catastróficas. A apresentação do referido modelo no contexto deste trabalho não deve, no
entanto, ser entendida como constituindo uma proposta de explicação científica. A sua
utilidade reside no facto de permitir ilustrar o facto de não haver nenhuma razão que nos
obrigue a aceitar resignadamente o conceito reducionista de que a superioridade intelectual
de base biológica constitui uma explicação racional dos processos de substituição de
populações que ocorreram (ou podem ter ocorrido) no passado. Se nos libertarmos dessa
camisa de forças ideológica seremos com certeza capazes de formular outros modelos, e de
começar a imaginar formas de os testar. Os mecanismos concretos através dos quais se terá
dado, na Europa de há 30 000-40 000 anos, a substituição de uma população humana por
outra, poderão ter sido os mais diversos (uma explicação alternativa à acima apresentada
sendo por exemplo a de que a fertilidade dos grupos anatomicamente modernos era superior à
dos neandertalenses). Como é óbvio, porém, a consciência da necessidade de buscar outras
explicações não surgirá enquanto não for definitivamente vencido o preconceito de que os
neandertalenses eram menos capazes do que os seus primos afastados de ascendência
africana. Também está ainda por esclarecer, por outro lado, até que ponto a substituição dos
primeiros terá sido total, como defendem os mais extremistas (Stringer e Gamble 1993), ou
parcial, com os grupos autóctones a contribuir, mesmo se em medida reduzida, para o stock
genético dos europeus actuais, como defendem os mais moderados (Trinkaus 1986).
Seja como for, o que é certo é que os dados arqueológicos de que actualmente dispomos
apontam para que os aspectos relacionados com a morfologia do esqueleto tenham sido
irrelevantes no desencadear da «revolução do Paleolítico Superior», e permitem sustentar o
ponto de vista alternativo que aqui se defendeu. Ou seja, o de que, em virtude de estarem
submetidas a uma série de pressões selectivas semelhantes (o aumento demográfico induzido
pelo sucesso adaptativo), diferentes populações do Velho Mundo, geneticamente bastante
isoladas umas das outras e que, por isso, terão desenvolvido características anatómicas
específicas, começaram a fornecer, a partir de cerca de 50 000 BP, uma série de respostas a
essas pressões selectivas também elas semelhantes nas suas linhas gerais. O aparecimento de
manifestações de etnicidade que por volta dessa data se começa a verificar tanto entre os
neandertalenses como entre os grupos anatomicamente modernos pode assim ser visto como
Origens
27
uma primeira consequência do processo de densificação que, mais tarde, segundo Binford
(1983), virá a ser responsável pela «depressão do espectro amplo» e pelo aparecimento da
agricultura.
O desenvolvimento de práticas de subsistência mais especializadas, dependendo cada vez
mais da caça e cada vez menos da necrofagia (em comparação com o que acontecia antes de
100 000 BP), seria outra manifestação desse processo, do mesmo modo que o alargamento do
território humano, que passa a incluir também a periferia das calotes glaciárias (conforme
documentado pela existência de jazidas moustierenses de alta montanha nos Alpes, ou pela
estação de Molodova, na Ucrânia) e as zonas equatoriais de África até então desocupadas
(Cohen 1977; Dennel 1983; Phillipson 1985). A invenção das técnicas de debitagem laminar
do Paleolítico Superior, implicando uma maior eficiência na exploração das matérias-primas,
pode assim ser tomada muito simplesmente como estando também ela relacionada com o
referido processo, ideia cujos fundamentos são aliás já relativamente antigos, remontando
pelo menos à argumentação avançada por Leroi-Gourhan a propósito da quantidade de gume
útil que as diversas técnicas de talhe da pedra permitem obter: 40 cm por kg de matéria-prima
no Acheulense, 2 m no Moustierense, e de 6 a 20 m no Magdalenense (ver Leroi-Gourhan
1984:106, por exemplo).
Deve ter-se claro, no entanto, que estas modificações nas estratégias de subsistência e na
tecnologia lítica têm de ser consideradas como uma especificidade regional do processo.
Conforme acima se referiu já, o registo arqueológico das regiões equatoriais parece
documentar a manutenção ao longo de todo o Paleolítico de estratégias de subsistência
generalizadas, baseadas numa exploração «oportunística» dos recursos e, pelo menos nalguns
casos, de formas arcaicas («pouco eficientes», se medidas por critérios europeus) de trabalhar
a pedra, de tipo Paleolítico Inferior. Este facto ilustra bem como o aspecto principal da
«revolução do Paleolítico Superior» não terá sido, paradoxalmente, a inovação tecnológica
implícita na designação, mas sim a complexificação das relações sociais, tanto intra-grupo
como inter-grupo, reflectida no aparecimento do fenómeno étnico.
1.2.3. Tecnologia lítica e capacidade intelectual
Deste facto resulta também a necessidade de reprimir eventuais tendências para interpretar a
passagem da superfície ao volume a que se refere Boëda (1990) como um progresso
conceptual indiciador de uma mais elevada capacidade intelectual. Interpretação que, embora
de forma não explícita, está claramente subjacente à recusa dos defensores do modelo
aculturativo do Castelperronense em aceitar que os neandertalenses poderão ter sido capazes
de realizar por si próprios as inovações que aparecem neste tecnocomplexo, ideia que, aliás,
nem sequer chegam a conceber ou, pelo menos, a considerar digna de ponderação. Dos
estudos feitos por Wynn (1989), que analisou a geometria dos artefactos pré-históricos à luz
da teoria da inteligência de Piaget, resulta porém que todas as operações lógicas
características do pensamento humano eram já usadas pelos fabricantes de bifaces simétricos
do Acheulense evoluído. E que, portanto, a inteligência moderna, tal como definida a partir
dos estudos de psicologia do conhecimento baseados nas relações práticas de interacção entre
sujeito e objecto, existe desde há pelo menos 300 000 anos. O mesmo autor (p. 94-95 da obra
citada) relativiza aliás bastante o significado evolutivo que, deste ponto de vista, tiveram
tanto a invenção do método levallois como a dos núcleos prismáticos:
«[na técnica levallois] o artesão prepara o núcleo de forma a controlar a forma de uma
lasca cuja obtenção constitui a finalidade do talhe. Para muitos, esta ‘preparação’, esta
‘pré-visão da lasca antes da sua extracção’ exige uma inteligência superior à requerida
por um simples biface. (...) Numa perspectiva piagetiana, a técnica levallois requer a
operação topológica de análise e síntese ou, mais simplesmente, de pré-correcção dos
28
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
erros. Mas não requer as relações espacio-temporais de substituição e de simetria
exigidas pela fabricação de bifaces e, por isso, num certo sentido, é menos sofisticada do
que esta. Isto não significa que a técnica levallois não exija uma grande habilidade, mas
habilidade não é o mesmo que inteligência. Do mesmo modo, os núcleos prismáticos para
lâminas exigem operações concretas (embora de forma mínima!), mas não evidenciam
uma inteligência mais poderosa do que a representada pelos bifaces».
Atingido este patamar de inteligência, os progressos subsequentemente feitos nos
diversos domínios do comportamento tecnológico da humanidade deixam portanto de poder
ser explicados como resultado da evolução dos fundamentos biológicos dessa inteligência
que, tudo o indica, já então estaria completada. A partir de 300 000 BP (pelo menos) o factor
decisivo das transformações ocorridas na história da humanidade passou portanto a residir na
forma como evoluiu o seu «cérebro» colectivo, isto é, a rede relacional e informacional
estabelecida entre indivíduos da mesma espécie que permitiu a acumulação e transmissão de
um conhecimento cada vez mais profundo do meio ambiente e das possibilidades de
subsistência por ele oferecidas. Ou seja, aquilo a que se convencionou chamar «cultura», e de
que as indústrias líticas, apesar de serem a sua manifestação material mais comum e de mais
fácil preservação, e por isso constituirem praticamente as únicas fontes que o arqueólogo tem
à sua disposição para reconstruir o passado paleolítico, não são senão, é preciso nunca o
esquecer, uma parcela relativamente secundária.
1.3. A passagem do Paleolítico Médio ao Superior em Espanha
No Sudoeste da França, em Itália e na grande planície norte-europeia existem portanto
tecnocomplexos pré-aurignacenses do Paleolítico Superior que estão nalguns aspectos
(produção de pontas foliáceas ou de facas/pontas de dorso) em continuidade industrial com o
Moustierense local e que poderão ter sido fabricados pelos grupos neandertalenses. Como
acima se viu, a interpretação de momento mais económica para a substituição dessas
indústrias pelo Aurignacense é a de que uma tal substituição corresponde à manifestação
arqueológica do processo de extinção das populações autóctones e concomitante ocupação do
continente europeu por populações anatomicamente modernas oriundas do Próximo Oriente.
Sendo assim, seria de esperar que a Península Ibérica fosse a última região da Europa a ser
tocada por esse fenómeno, dado ser a que se encontra mais distante do suposto lugar de
origem de tais populações. Para além do seu interesse regional específico, o registo
arqueológico de Espanha e Portugal representa assim também um domínio privilegiado para
testar a validade da referida interpretação.
1.3.1. Faixa cantábrica e Catalunha
Os dados actualmente disponíveis para a região cantábrica indicam que a passagem ao
Paleolítico Superior pode aí ser concebida em linhas gerais segundo as mesmas modalidades
que se encontram documentadas para o Sudoeste da França, dada a existência na região de
duas sequências estratigráficas, as das grutas de Morín e Pendo (Santander), que apresentam
indústrias castelperronenses intercaladas entre o Moustierense e o Aurignacense (Bernaldo de
Quirós 1982; González Sainz e González Morales 1986; Straus 1992). Noutro caso, o da
gruta de Labeko Koba (País Basco), havia um nível castelperronense subjacente a uma
sequência aurignacense (Arrizabalaga 1993).
As datações pelo radiocarbono recentemente obtidas (por acelerador) para a base do
Aurignacense de El Castillo (nível 18) — 38 700±1900 BP, em média (Cabrera e Bischoff
1989) — apontam para uma antiguidade bastante elevada, aparentemente superior à do
Castelperronense com restos neandertalenses de Saint-Césaire. No entanto, a comparação
Origens
29
com a cronologia dos testemunhos deixados por este último tecnocomplexo na própria região
cantábrica é difícil, dado o carácter anómalo de uma das datas obtidas para o correspondente
nível (o nível 10) de Morín (28 610±560 BP, SI-951) e o desvio-padrão demasiado elevado
da outra (36 950±6580 BP, SI-951a). Trata-se, porém, em ambos os casos, de amostras
analisadas pelo método de radiocarbono convencional (Bernaldo de Quirós 1982:175).
O tipo físico dos grupos humanos que ocuparam El Castillo durante a deposição do nível
18 é ainda desconhecido, apesar de Straus (1992:68) afirmar que os restos humanos aí
escavados por Obermaier, e cujo paradeiro actualmente se desconhece, não apresentavam
traços neandertalenses. Garralda (1993), porém, considera que não é possível optar com
segurança por uma ou outra das duas possibilidades de atribuição destes restos (três
fragmentos cranianos robustos e um molar de adulto, e partes de um crânio e mandíbula de
uma criança de 3 a 5 anos de idade): ao homem anatomicamente moderno ou ao homem de
Neandertal.
Na Catalunha, não foram até ao momento encontradas indústrias castelperronenses
(Fullola 1983), o mesmo acontecendo no Languedoc e na Provença (Escalon de Fonton e
Bazile 1976; Escalon de Fonton e Onoratini 1976; Sacchi 1976). Dado o carácter alargado da
área geográfica em causa, essa ausência deve ser genuína e não resultar de problemas
relacionados com a história da investigação ou as condições de jazida. Ou seja, como
defendem os autores citados, a correspondente posição crono-estratigráfica deve ser ocupada
por um Moustierense tardio. Segundo Combier (1990), um tal tipo de indústrias está bem
documentado na região da Ardèche (no abrigo de Maras, por exemplo), e caracteriza-se por
um enriquecimento em lâminas e lamelas e em utensílios de tipo Paleolítico Superior, no que
seria um fenómeno paralelo ao Castelperronense embora, neste caso, a debitagem continue a
ser feita por métodos levallois e não a partir de núcleos volumétricos preparados por cristas
laterais.
O mais antigo Paleolítico Superior da França mediterrânica é portanto o Aurignacense, o
mesmo acontecendo na Catalunha espanhola. Na gruta de l'Arbreda (Gerona), aparecem
indústrias pertencentes a este tecnocomplexo em posição directamente sobrejacente ao
Moustierense e em continuidade estratigráfica com ele, embora do ponto de vista tecnológico
e do aprovisionamento em matérias-primas a relação entre ambos seja de descontinuidade
marcada (Maroto e Soler 1990). Estes autores não assinalam a existência nesses níveis
moustierenses de fenómenos de laminarização como os verificados no acima referido
conjunto do abrigo de Maras. Admitindo a atribuição ao homem anatomicamente moderno da
autoria das indústrias aurignacenses, a passagem do Paleolítico Médio ao Superior coincidiria
assim, nesta região, com a extinção das populações neandertalenses e a sua substituição pelo
tipo de Crô-Magnon. Segundo as datações por acelerador publicadas por Bischoff et al.
(1989) para l'Arbreda, essa substituição ter-se-ia dado entre 40 400±1400 BP (média dos
resultados para os níveis do topo da sequência moustierense) e 38 500±1000 BP (média dos
resultados para os níveis aurignacenses de base).
1.3.2. Meseta e Costa mediterrânica
No resto da Península Ibérica, onde não se conhecem indústrias de tradição moustierense que
pudessem representar uma evolução autóctone das populações neandertalenses, a situação
parece ser idêntica à encontrada na Catalunha e na França mediterrânica: o mais antigo
tecnocomplexo do Paleolítico Superior é o Aurignacense que, no entanto, é desconhecido na
Meseta. Aqui, portanto, o denso povoamento moustierense documentado ao longo dos vales
fluviais (Vega Toscano 1983) parece ter sido seguido de uma rarefacção extrema da
ocupação humana, documentada por sítios arqueológicos (habitats ou grutas decoradas) raros
e de cronologia bastante mais tardia, solutrense ou pós-solutrense (Davidson 1986).
30
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Na região de Valencia e na Andaluzia, o Aurignacense mediterrânico parece ser, no
entanto, bastante mais recente do que na Catalunha, pelo menos a avaliar pela datação obtida
para o nível correspondente da gruta de Mallaetes (Fortea e Jordá 1976) — 29 690±560 BP
(KN-I/920) — a qual não se afasta significativamente, por outro lado, dos resultados obtidos
para o Aurignacense da camada D de Gorham's Cave em Gibraltar (Davidson 1986):
28 700±200 BP (GrN-1455) e 27 860±300 BP (GrN-1363). Por outro lado, segundo
Villaverde e Fumanal (1990), a sequência estratigráfica de Cova Negra (Valencia) prova a
sobrevivência tardia, em níveis que são já posteriores ao interestádio würmiano, de indústrias
moustierenses típicas, sem quaisquer indícios de evolução tecnológica para o Paleolítico
Superior. O mesmo se passaria também na gruta de Cariguela, onde restos humanos
anatomicamente modernos teriam inclusivamente sido recolhidos no topo da sequência
moustierense (Vega Toscano 1990). Garralda (1993), porém, observa que a escavação
original da jazida por Spanhi foi de qualidade muito insuficiente, e que é muito provável que
esses restos estejam antes relacionados com as ocupações neolíticas da cavidade.
A outra importante jazida actualmente em escavação na Espanha mediterrânica em que
existe uma sequência com níveis do final do Paleolítico Médio e do início do Paleolítico
Superior para que se dispõe de resultados cronométricos é a de Cova Beneito (Iturbe et al.
1993). Nesta cavidade alicantina foi com efeito obtida (por acelerador) uma datação 14C de
cerca de 38 800±1900 BP (AA-1387) para o Moustierense final (nível D1), resultado que é
estatisticamente idêntico aos obtidos pelo mesmo método para as jazidas catalãs. Para a base
do Paleolítico Superior (nível C4), que se encontrava separado do Moustierense por uma
descontinuidade estratigráfica bem marcada e que os autores, apesar da ausência de artefactos
líticos ou ósseos característicos (este contexto ocupacional era aliás muito pobre — apenas
79 restos líticos em 20 m² de área escavada), atribuem ao Aurignacense, a datação obtida,
também por acelerador, foi de 33 900±1100 BP (AA-1388). Ou seja, um resultado intermédio
entre os obtidos para l'Arbreda e para Mallaetes, e que poderia ser considerado, no quadro de
uma eventual explicação difusionista gradual, de Este para Oeste, do tecnocomplexo, como
compatível com a posição geográfica igualmente intermédia da jazida em questão. É preciso
ter em conta, no entanto, que estes níveis também foram objecto de datação convencional,
com resultados que são, em média, 8000 anos mais recentes do que os obtidos para as
amostras datadas por acelerador: 30 160±160 BP (Gif-TAN-89 283) para o Moustierense
final, e 26 040±890 BP (Gif-7650) para o Paleolítico Superior do nível C4. Ao contrário dos
anteriores, estes resultados são inteiramente compatíveis com o padrão de um Moustierense
prolongado seguido de um Aurignacense tardio inferido a partir dos restantes dados
disponíveis para as regiões meridionais da Península.
Cova Beneito pode ser tomada, assim, como exemplo dos cuidados a ter na comparação
entre resultados 14C obtidos por acelerador e por métodos convencionais, pelo menos para
estas épocas já muito próximas dos limites de aplicabilidade do método, em que a
contaminação das amostras, por pequena que seja, tem um impacto muito grande: numa
amostra com uma idade de 48 000 anos, 1% de contaminação moderna acarreta um
rejuvenescimento de 12 700 anos, ou de 6350 se o contaminante tiver metade da idade da
amostra, isto é, neste exemplo, 24 000 anos (Soares 1984). Como é natural, os efeitos de
eventuais contaminações são mais fáceis de eliminar nas amostras de muito pequena
dimensão necessárias para a datação por acelerador, pelo que não será de estranhar o facto de
estas tenderem a ser sistematicamente mais antigas, facto que já havia sido assinalado por
Mellars et al. (1987) a propósito dos resultados obtidos no quadro de um projecto de datação
de diversos sítios franceses do Paleolítico Superior inicial. E, no caso de Cova Beneito, o
laboratório de Gif advertia com efeito «que as datações fornecidas poderão estar algo
rejuvenescidas devido a não ter sido possível uma extracção completa dos ácidos húmicos»
(Iturbe et al. 1993:82). Deve aliás notar-se, a este respeito, que os níveis aurignacenses de
Origens
31
l'Arbreda datados por acelerador de cerca de 38 500 BP tinham anteriormente sido objecto de
uma datação convencional que lhes atribuía uma idade de 25 830±400 BP (Gif-6422) (Soler e
Maroto 1987)!
Nestas circunstâncias, os dados actualmente disponíveis quanto à cronologia do mais
antigo Paleolítico Superior da costa mediterrânica espanhola situada a sul do Ebro não podem
deixar de ser considerados como inconcludentes. No entanto, a ausência de pontas de base
fendida nas jazidas conhecidas parece apontar para que o aparecimento do Aurignacense
nestas regiões se tenha dado, de facto, em época comparativamente recente. No mesmo
sentido apontam os resultados concordantes recentemente obtidos na datação, pelos métodos
do Urânio-Tório e do 14C, dos níveis moustierenses com restos humanos neandertalenses da
gruta andaluza de Zafarraya, para os quais se obteve uma cronologia de cerca de 30 000 BP
(Hublin et al. 1995). A hipótese de sobrevivência tardia, na Andaluzia e em Valencia, de um
Moustierense fabricado pelo Homem de Neandertal (Figs. 1.1 e 1.4), inicialmente avançada,
com base em argumentos de natureza bioestratigráfica, por Villaverde e Fumanal (1990) e
por Vega Toscano (1990), parece encontrar-se, assim, plenamente confirmada.
1.4. O Moustierense final em Portugal
Segundo Breuil e Zbyszewski (1942, 1945), haveria em Portugal um Paleolítico Médio
abundante. No entanto, essa impressão de abundância fundamentava-se, em grande medida,
no facto de os autores atribuírem ao período em causa peças recolhidas em contextos
misturados ou de superfície que consideravam serem suficientemente características (núcleos
discóides, lascas de talão facetado, raspadores, etc.). Nalguns casos, no entanto, fazia-se
efectivamente referência a achados realizados em contexto estratigráfico, o qual, de um modo
geral, se tinha o cuidado de descrever, mas de que raramente se fazia uma exploração
arqueológica sistemática. Deste modo, o número de sítios estratificados escavados ou em
curso de escavação com indústrias do Paleolítico Médio é muito reduzido, e é menor ainda o
número daqueles em que existem níveis que se possam atribuir com segurança à sua parte
final (Fig. 1.2).
1.4.1. Foz do Enxarrique
A Foz do Enxarrique (Raposo et al. 1985) é uma estação de ar livre situada junto ao Tejo, na
confluência com este da ribeira que dá o nome à jazida, a montante de Vila Velha de Ródão.
Caracteriza-se por uma indústria em que a matéria-prima utilizada é quase exclusivamente o
quartzito, debitado a partir de seixos localmente obtidos, sendo muito raros, embora
presentes, o sílex e o quartzo. A análise tecnológica revela uma componente levallois
importante. O material retocado (raspadores, entalhes, denticulados) é todo sobre lasca, e
muito pouco numeroso, não havendo utensílios de tipo Paleolítico Superior. Esta indústria
estava associada a fauna diversa (veado, cavalo, grande bovídeo) cujas fragmentação e
distribuição (coincidentes com a dos artefactos) apontam para que a respectiva acumulação
seja pelo menos parcialmente de origem antrópica. Os elementos de cronologia absoluta já
obtidos para essa fauna (datações Urânio-Tório sobre o esmalte de dentes de Equus) indicam
uma idade de cerca de 33 000 anos BP (Raposo, comunicação pessoal), a qual, dada a acima
referida associação, parece poder ser tomada como correspondendo também à da ocupação
humana e, portanto, à da indústria. Tendo em conta que o radiocarbono subestima a idade
real das amostras, subestimação que é da ordem dos 3500 anos por volta de 20 000 BP (Bard
et al. 1990), é provável que os resultados obtidos para a Foz do Enxarrique sejam
equivalentes, portanto, a uma idade 14C de cerca de 30 000 anos BP.
32
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 1.2 - Jazidas portuguesas do Moustierense final e sua datação absoluta. No caso da Gruta Nova da
Columbeira, a cronologia referida no mapa é a obtida para a base da sequência. Dada a natureza do material datado
(terras carbonosas), é porém provável que se trate de um resultado demasiado recente. Os restantes resultados
parecem fidedignos. Em Portugal, a passagem do Paleolítico Médio ao Superior ter-se-á assim dado por volta de
28 000 BP (em anos de radiocarbono), cronologia que é a obtida tanto para o topo da camada K da Gruta do
Caldeirão (que nesta cavidade encima a sequência moustierense) como para o Aurignacense da base da camada 2
da Gruta do Pego do Diabo (ver vol. II, capítulo 7).
1.4.2. Lapa dos Furos
A Lapa dos Furos (concelho de Vila Nova de Ourém) é uma pequena cavidade cársica
situada num vale de paredes abruptas localizado na margem esquerda do Nabão, poucas
dezenas de metros a montante do início do canhão de cerca de 7 km percorrido pelo rio entre
os lugares de Agroal e Prado. Foi objecto de trabalhos arqueológicos em 1982, os quais
resultaram na descoberta de que, sob níveis holocénicos remexidos por tocas de grandes
animais, havia uma sequência com fauna plistocénica (Correia 1985). A escavação foi
retomada em 1987-1988, com o objectivo de averiguar a natureza dos depósitos antigos
(Zilhão 1994b).
Os trabalhos realizaram-se em duas zonas, designadas LDF1 e LDF2, esta última
correspondendo à parte interna (completamente colmatada com sedimentos à data do início
dos trabalhos) da zona de entrada de uma segunda abertura da gruta para o exterior, quase
totalmente truncada pelo recuo do abrupto escarpado que actualmente existe no local
(Fig. 1.3). Os materiais arqueológicos recuperados nos níveis holocénicos das duas zonas
indicam uma frequentação da cavidade entre a Idade do Cobre e a Idade Média, período
durante o qual ela terá funcionado pontualmente como necrópole, dada a grande quantidade
de ossos humanos que foi recolhida na escavação. Dois desses ossos foram datados pelo
radiocarbono, com os seguintes resultados: 1810±45 BP (ICEN-733); 1405±245 BP (GX-16141-A). A calibração a 2σ do primeiro indica uma deposição em época romana (entre 70 e
340 AD).
Na zona LDF1, os níveis plistocénicos (camadas B-E) foram sondados, no quadrado P30,
até à profundidade de 2,40 m. Correspondiam a densas cascalheiras compostas por clastos de
pequena dimensão embalados numa matriz intersticial arenosa, e continham alguns restos de
Origens
33
0
cm
1
zona LDF2
área intervencionada
Planta de
escavação
6
sondagens profundas
5
C
B
E
D
F
m
0
G
Nm
M
Lapa dos Furos
1987-88
2
N
O
P
Q
29
30
31
zona LDF1
Z=-70 cm
brecha
residual
camadas 0, 1 e 2
escavadas
2
Corte
estratigráfico
(LDF2)
3
5
4
6
0
+
C6
+
D6
+
E6
+
F6
m
1
+
Fig. 1.3 - Lapa dos Furos. Em cima: utensílio retocado (entalhe sobre lasca) da camada 3 (desenho de Thierry
Aubry); a camada 4 subjacente foi datada pelo radiocarbono de ≈35 000 BP. Ao meio: planta da cavidade e
áreas fauna: escavadas. Em baixo: corte estratigráfico na zona LDF2 (ver descrição das camadas no texto).
34
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
hiena, veado, cavalo e coelho, além de numerosos fragmentos angulosos de sílex. Os
calcários do vale em que se abre a gruta, porém, são ricos em silicificações, pelo que, ao
fracturarem-se as paredes da cavidade, os depósitos que no seu interior se foram acumulando
passaram a conter sílices que não são nem artefactos nem manuportes. Só puderam, por isso,
ser consideradas como tal as peças de sílex não local ou em que fosse possível observar todos
os indicadores morfológicos do talhe intencional. Nenhuma peça nestas condições pôde ser
recuperada nas camadas C, D e E, embora houvesse, na camada B, duas lascas de quartzo e
três lascas de sílex que correspondiam com toda a probabilidade a artefactos.
Na zona LDF2, o preenchimento plistocénico havia sido parcialmente erodido, sendo
possível observar no tecto da gruta, antes do início dos trabalhos, restos de uma brecha
ravinada de composição idêntica à da sequência reconhecida na outra zona. Na base da
escavação, que atingiu os 2,70 m de profundidade nos quadrados E-F/6, encontrou-se um
depósito semelhante, a camada 6, que se supõe corresponder à camada D da zona LDF1.
Entre esta camada 6 e o topo da sequência (constituído pelas camadas 0, 1 e 2, muito
afectadas por remeximentos, contendo materiais relacionados com as tumulações holocénicas
e sendo, portanto, estratigraficamente equivalentes à camada A da outra zona) desenvolvia-se
uma série de depósitos que não tinha correspondência em LDF1 — as camadas 3-5 (Fig. 1.3):
Camada 3
areias e argilas castanho-avermelhadas com cascalho miúdo e praticamente
sem blocos, e não contendo já quaisquer materiais holocénicos intrusivos;
rara fauna plistocénica (apenas alguns restos de coelho); bastantes conchas de
helicídeos; rara indústria lítica (três lascas de sílex, dois entalhes e um núcleo
em sílex, um denticulado em quartzito); espessura média = 60 cm;
Camada 4
areias castanho-alaranjadas muito soltas embalando densa cascalheira de
grandes blocos; conchas de helicídeos muito abundantes; restos de veado;
arqueologicamente estéril; espessura média = 20 cm;
Camada 5
areias e argilas castanho-alaranjadas compactas embalando grandes lajes de
abatimento; fauna rara (fragmentos não classificados); estéril do ponto de
vista arqueológico; espessura média = 60 cm.
Duas amostras de conchas de helicídeos da camada 4 foram objecto de datação absoluta
pelo 14C. Os resultados obtidos foram: 30 570±760 BP (ICEN-472) e 34 580 -1160
+1010 BP (ICEN-473). A primeira amostra era constituída por conchas cuja superfície se encontrava alterada,
e a segunda apenas por conchas cuja superfície não apresentava qualquer alteração
superficial visível. Segundo o laboratório (Soares, comunicação pessoal), depreende-se destes
resultados que a contaminação química de que foram objecto as conchas da camada 4 agiu no
sentido de um rejuvenescimento da sua idade, e não de um seu envelhecimento, como poderia
também ter acontecido. Embora não se possa excluir que a amostra ICEN-473 também tenha
sido afectada por um tal processo de rejuvenescimento, o cuidado posto no pré-tratamento
permite afirmar que o erro nesse caso inerente não deverá ser superior ao já incluído no
desvio-padrão e que, para além disso, deverá estar compensado pela idade aparente das
conchas. Nestas circunstâncias, o resultado obtido pode ser considerado como representando
uma boa estimativa da verdadeira idade da amostra.
Em trabalhos anteriores (Zilhão 1990b, 1991), a camada 3 da sequência escavada em
LDF2 foi considerada de época solutrense devido a uma interpretação errada do suporte de
um dos entalhes de sílex. Devido à sua reduzida espessura e ao padrão de levantamentos
rasantes que caracterizava o respectivo anverso, essa peça havia com efeito sido classificada
inicialmente como resíduo de talhe de peça foliácea. Na realidade, porém, trata-se de uma
lasca produzida no contexto de uma debitagem discóide ou levallois de tipo Paleolítico
Origens
35
Médio (ver Fig. 1.3). Dado que a camada 3 era, além da 4, o único outro ponto da sequência
em que havia abundantes restos de helicídeos, e dado não haver descontinuidade aparente
entre ambas, as condições em que se deu a respectiva deposição devem certamente ter sido
bastante próximas, o que argumenta a favor de uma cronologia da mesma ordem de grandeza.
A idade da ocupação registada na camada 3 não deverá portanto afastar-se muito dos cerca de
35 000 BP obtidos para a deposição da camada 4, o que é inconciliável com o Solutrense e
está de acordo com a classificação revista dos materiais como moustierenses.
A reinterpretação da peça em causa vem assim reforçar a coerência da leitura crono-estratigráfica anteriormente proposta para esta jazida (Zilhão 1991:485-487). A cascalheira
crioclástica da zona LDF1 deve datar do estádio isotópico 4, e ter sido ravinada no final deste
ou no início do estádio 3, durante o qual se terão acumulado, enchendo o canal erosivo
anteriormente formado, os sedimentos que formam a sequência de camadas 3-5 da zona
LDF2. Os fugazes vestígios de ocupação moustierense nela documentados são, assim, de
idade interestadial, provavelmente compreendida entre 30 000 e 35 000 BP.
1.4.3. Gruta do Caldeirão
Na Gruta do Caldeirão (Tomar), os níveis do Paleolítico Médio constituem a base de uma
sequência com cerca de 6 m de potência, mas só foram escavados numa área muito reduzida:
3,3 m² para a camada K, 2 m² para a camada L, 1 m² para as camadas M-O (vol. II, capítulo
9). É na base da camada Jb que aparecem os primeiros materiais de tipo Paleolítico Superior:
uma lâmina retocada e dois objectos de adorno fabricados sobre concha marinha. Um osso
proveniente dos níveis de topo da camada K, que se lhe encontra subjacente, foi datado por
acelerador de 27 600±600 BP (OxA-1941). A cultura material desta camada é do Paleolítico
Médio e, tal como na Foz do Enxarrique, caracteriza-se pelo recurso sistemático ao quartzo e
ao quartzito, sendo o sílex muito raro (13 artefactos, 8 dos quais esquírolas). Os utensílios
retocados (7, num total de 98 peças, 39 das quais eram esquírolas) são raspadores, entalhes e
lascas com retoque parcial. Na região de Tomar, a transição para o Paleolítico Superior só
deve ter tido lugar, assim, por volta de 28 000 BP. Uma análise preliminar das faunas sugere,
por outro lado, que a camada K corresponde a uma época em que a gruta já teria deixado de
funcionar como toca de hienas (ao contrário do que sucedia nos níveis subjacentes, em que os
vestígios deixados por estes animais, nomeadamente coprólitos, eram numerosos), e em que o
papel do homem na acumulação dos ossos se terá tornado mais importante.
1.4.4. Gruta Nova da Columbeira
Segundo as informações que se encontram publicadas, teria havido nesta jazida do Vale do
Roto (Bombarral) uma sequência moustierense subjacente a «níveis de ocupação humana
mais modernos e pouco intensos» (Ferreira 1984:366). A maior parte dos restos de hiena
descobertos na gruta terá sido recolhida nestes últimos. O corte estratigráfico desenhado por
J. Roche (Santos (1985b:16) atribui estes níveis a um Paleolítico Superior incaracterístico. A
indústria dos níveis moustierenses ainda não foi objecto de publicação adequada, mas, na
pequena amostra que esteve em exposição no Museu Nacional de Arqueologia (M.N.A.)
entre 1989 e 1993, os utensílios retocados eram relativamente numerosos e o sílex, o quartzo
e o quartzito encontravam-se representados em proporções idênticas.
Foram obtidas duas datas 14C para as camadas moustierenses: 26 400±750 BP (Gif-2703)
para o nível 16, situado a meio da sequência; e 28 900±950 BP (Gif-2704) para o nível 20, na
base (Delibrias et al. 1986). Estes resultados (pelo menos no que respeita ao mais recente)
parecem explicáveis como consequência de fenómenos de contaminação (o laboratório
considera-os «obviamente rejuvenescidos») relacionados com a má qualidade do material
datado («terras carbonosas»).
36
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
1.4.5. Gruta da Figueira Brava
As escavações realizadas nesta cavidade do concelho de Sesimbra permitiram revelar, sob
uma espessa crosta estalagmítica (camada 1), a existência de uma sequência estratigráfica
(camadas 2 a 5) que, nos cortes publicados, apresenta uma potência de cerca de 1 m (Antunes
1990-91:497). A não ser em zonas remexidas onde se recolheu alguma cerâmica romana, esta
sequência continha exclusivamente materiais do Paleolítico Médio. A indústria lítica, ainda
não analisada, é predominantemente em quartzo, embora o calcário, o jaspe, o quartzito e o
sílex também estejam representados. A fauna é variada e, segundo Antunes, acumulada pelo
homem. A presença de restos de grandes carnívoros (leão das cavernas, pantera, hiena, urso),
porém, obriga a encarar essa interpretação com as necessárias reservas. Três restos humanos
da camada 2 (um premolar, um metacarpiano e uma falange) foram atribuídos ao homem de
Neandertal, embora, como reconhecido pelo autor (p. 524), seja necessário ter em conta, dada
a dificuldade do diagnóstico nas partes do esqueleto em questão, que é essencialmente no
contexto arqueológico dos achados que essa atribuição se apoia.
Os depósitos paleolíticos continham igualmente numerosos restos malacológicos, na sua
maior parte constituídos por conchas de lapa (Patella) e mexilhão (Mytilus). Uma amostra de
conchas de lapa da camada 2 (topo da sequência paleolítica) foi datada pelo 14C de
30 930±700 BP (ICEN-387), resultado que o laboratório considera fiável (Antunes et al.
1989), uma vez que se trata do resultado obtido para a fracção interna das conchas, o obtido
para a fracção intermédia (30 050±550 BP, ICEN-386) sendo estatisticamente idêntico. O
valor dos teores em 13C e 18O (+2,02‰ e +1,38‰, respectivamente) indica também ele que o
resultado ICEN-387 está isento de contaminação. Por outro lado, dada a natureza do material
datado, é necessário ter em conta que se trata de uma idade aparente. Uma vez que o efeito de
reservatório oceânico envelhece a idade radiocarbónica das amostras de conchas marinhas, e
que a fracção intermédia não apresentava indícios de rejuvenescimento, parece não haver
quaisquer razões técnicas para considerar demasiado recente o resultado obtido (o qual, pelo
contrário, poderá até sobrestimar ligeiramente a idade real da amostra).
A datação de um dente de veado (Cervus elaphus) da camada 2 pelo método das séries de
Urânio, realizada por C. McKinney, forneceu um resultado que é compatível com esta
cronologia: 30 561 -10725
+11759 BP (Antunes 1990-91). O seu elevado erro (indicado a 2σ) impede
no entanto que ele possa ser considerado como uma corroboração plena, e independente, da
cronologia sugerida pelo radiocarbono. Mas, por outro lado, também não fornece qualquer
indício de que ela possa estar errada. Parece assim não haver quaisquer razões válidas, pelo
menos de momento, para questionar a hipótese de que o Paleolítico Médio se terá
prolongado, na gruta da Figueira Brava, até cerca de 31 000 BP.
1.5. A fronteira do Ebro
Tanto os dados cronométricos e bioestratigráficos provenientes da Espanha mediterrânica
como os resultados obtidos em Portugal parecem apontar de forma bastante categórica para
uma sobrevivência tardia do Moustierense em grande parte da Península Ibérica (Fig. 1.4): a
constituída pelas regiões situadas a sul da «fronteira do Ebro» (Zilhão 1993c). A cronologia
obtida para o Moustierense do topo da camada K do Caldeirão, combinada com a datação
estatisticamente idêntica do Aurignacense da camada 2 da Gruta do Pego do Diabo (ver
vol. II, capítulo 7), sugere que essa sobrevivência poderá ter chegado até cerca de 28 000 BP.
A duração exacta do período durante o qual as populações moustierenses e aurignacenses
situadas de cada lado da fronteira terão sido contemporâneas é, no entanto, difícil de estimar,
dados os problemas existentes, nomeadamente no que respeita às dúvidas relacionadas com a
comparabilidade dos resultados obtidos pelos diferentes métodos de datação.
Origens
37
Fig. 1.4 - O tecnocomplexo aurignacense tem uma duração de vários milénios e, na sua fase inicial, apresenta uma
fácies definida pela presença de pontas de zagaia de base fendida, o «Aurignacense I». Nas regiões da Península
Ibérica situadas a sul da cordilheira cantabro-pirenaica, esta fácies não existe. A correspondente posição crono-estratigráfica é ocupada por um Moustierense final em que não se registam quaisquer tendências de evolução
tecnológica para o Paleolítico Superior. A passagem a este último estádio é abrupta e deve estar relacionada com
um processo de substituição das populações neandertalenses autóctones (de que se conhecem restos de cronologia
recente na cavidade andaluza de Zafarraya) por grupos anatomicamente modernos.
Com efeito, conforme resulta da revisão cursiva dos dados existentes levada a cabo no
apartado anterior, a cronologia absoluta do período entre ≈40 000 e ≈30 000 BP tem sido
abordada, no Sudoeste da Europa, mediante o recurso a pelo menos oito combinações
diferentes de técnicas e de tipos de amostras: 14C convencional sobre colagéneo de osso,
sobre carbonatos de conchas marinhas, sobre carbonatos de conchas terrestres e sobre
madeira carbonizada; 14C por acelerador, sobre madeira carbonizada e sobre colagéneo de
osso; termoluminescência; séries de urânio sobre esmalte de dentes de diferentes espécies de
grandes herbívoros. As discrepâncias observadas entre estas datas quando aplicadas aos
mesmos contextos (como nos acima referidos casos de l'Arbreda e de Beneito) obrigam a
encarar com as maiores reservas os padrões resultantes da respectiva confrontação.
1.5.1. Processos culturais e processos tafonómicos
Há ainda que ter em conta, por outro lado, que o problema crucial com que se lida na
interpretação arqueológica de resultados cronométricos — o da associação entre amostra
datada e contexto que se pretende datar — se torna ainda mais relevante no caso de amostras
constituídas por minúsculos fragmentos de carvão como são as utilizadas pelos aceleradores.
No caso de El Castillo, por exemplo, sabe-se que, junto à amostra 11 (datada de 37 700±1800
BP, AA-2407), colhida no subnível B2 do nível 18, havia uma ponta de Chatelperron
(Cabrera e Bischoff 1989:581-582). Este simples facto devia obrigar a que a aceitação das
datações obtidas para o referido nível tivesse sido precedida de uma crítica tafonómica
rigorosa do contexto arqueológico, uma vez que, nas novas escavações realizadas na jazida,
não foi possível recolher indústria óssea característica, equivalente à representada nas
colecções provenientes do nível «Aurignacense Delta» de Obermaier, escavado no princípio
do século. Não se pode excluir, com efeito, que haja variações laterais da estratigrafia, ou que
a correlação entre as duas sequências (antiga e nova) não seja perfeita. Ou, em alternativa,
38
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
que na área intervencionada pelos trabalhos modernos exista, no interior do pacote
sedimentar que foi designado como nível 18 (e que tem cerca de 50 cm de espessura), uma
componente castelperronense com a qual, e não com o Aurignacense das escavações de
Obermaier, haveria que relacionar as datações obtidas. Em qualquer dos casos, parece óbvio
que a interpretação que tem sido dada a estas últimas se encontra grandemente necessitada de
corroboração independente, nomeadamente, por exemplo, pela datação directa de pontas de
base fendida das antigas escavações.
Do mesmo modo, deve assinalar-se que, segundo Bischoff et al. (1989:568), as pontas de
base fendida de l'Arbreda só aparecem no topo da potente sequência sedimentar (mais de 1 m
de espessura) em que estão contidas as indústrias aurignacenses. Nos níveis de base, de onde
provêm as amostras de carvão datadas por acelerador, não há indústria óssea, pelo que parece
mais apropriado relacioná-los com o Aurignacense 0 do que com o Aurignacense I. Por outro
lado, como acima se referiu, há que ter em conta que não há qualquer descontinuidade
estratigráfica entre estes níveis aurignacenses de base e os níveis moustierenses subjacentes,
a separação entre eles sendo de natureza puramente cultural e expressando-se apenas através
das mudanças abruptas que afectam a tecnologia das indústrias líticas e as matérias-primas
em que elas são fabricadas. Segundo Bischoff et al. (1989), a datação que se obteve para o
Moustierense final foi de 40 400±1400 BP (resultado que é uma média das duas
determinações tomadas como fidedignas, as quais foram realizadas sobre amostras
provenientes da partição de uma mesma recolha, à qual se atribuiu a designação de código
E2BE 116); e a datação obtida para o Aurignacense inicial foi de 38 500±1000 BP (resultado
que é uma média de quatro determinações efectuadas sobre amostras também elas
provenientes da partição de uma mesma recolha, à qual se atribuiu a designação de código
E2BE 111). Do ponto de vista estatístico, estes dois resultados são idênticos, o que, apesar de
os dois pontos de recolha das amostras estarem separados por uma espessura de 25 cm de
depósitos, torna também obrigatório, tal como no caso de El Castillo, que se considere de
forma adequada a questão da associação entre amostras e contextos. Não se pode excluir,
com efeito, a possibilidade de que os carvões encontrados no nível aurignacense estejam
relacionados (pelo menos em parte) com a perturbação dos níveis imediatamente subjacentes,
o que não seria nada de anormal num contexto sedimentar de gruta, onde a acção dos animais
escavadores de diversos tamanhos (desde os grandes carnívoros até aos mais pequenos
vermes) pode afectar de forma mais ou menos extensiva a integridade dos depósitos (e sem
que daí decorra necessariamente o aparecimento de cicatrizes detectáveis pela observação das
superfícies decapadas ou dos cortes).
A estratigrafia de Beneito também não está isenta de problemas do mesmo tipo. O topo
da sequência moustierense corresponde ao nível D1, para o qual foram obtidas as acima
citadas datas convencionais e de acelerador separadas por cerca de 8000 anos de diferença.
Ao comentar essa discrepância, referimo-nos à possibilidade de ela resultar da maior
dificuldade existente em descontaminar de forma perfeita as amostras de grande tamanho
necessárias para a datação convencional de contextos desta antiguidade. Uma análise atenta
da informação existente sobre a jazida obriga, porém, a avançar uma outra possibilidade: a de
que o nível D1 corresponda a uma mistura de duas ocupações diferentes, uma moustierense e
outra aurignacense, e que os resultados das datações reflictam esse carácter misturado.
Segundo Iturbe et al. (1993:40), com efeito, neste nível «aparecem representados todos os
utensílios do P. Superior», o índice do respectivo grupo tipológico subindo de valores
inferiores a 5% nos níveis D4 e D3 para quase 20% em D1. Entre esses utensílios contam-se
nomeadamente diversos buris de aspecto tipicamente Paleolítico Superior, além de um canino
de lince perfurado (Iturbe et al. 1993:Figs. 18, 20), bem como, segundo Villaverde
(comunicação pessoal), lamelas Dufour e lâminas de retoque aurignacense.
Origens
39
Estes exemplos parecem suficientes para ilustrar o cuidado com que deve ser encarado o
pressuposto geralmente aceite pelos arqueólogos segundo o qual as unidades estratigráficas
diferenciadas numa sequência sedimentar contínua podem ser tomadas como «pacotes» de
conteúdo homogéneo. A sua adopção acrítica tem com efeito originado o aparecimento de
numerosas falsas questões, cujo debate se arrasta durante anos ou décadas, até se concluir
que a origem do problema reside afinal no carácter pelo menos parcialmente heterogéneo dos
depósitos cuja integridade se pressupôs. Um exemplo do impacto que a aplicação dos filtros
tafonómicos adequados pode ter na forma como são abordadas algumas das mais importantes
questões da Pré-História mundial é o que se relaciona com o processo de neolitização das
regiões mediterrânicas, conforme se demonstrou recentemente no quadro da refutação da
hipótese da aquisição precoce dos ovicaprinos domésticos pelas populações mesolíticas do
sul de França e do sul de Espanha (Zilhão 1993d). Outro exemplo é o da datação por
acelerador de restos de plantas domésticas (milho e feijão) de diversas jazidas mexicanas
situadas nos vales de Tehuacán e de Oaxaca, considerados de grande antiguidade (7000 a
9000 BP) em virtude da sua associação a datações 14C de carvões contidos nos mesmos
estratos. Os resultados obtidos vieram pôr seriamente em questão os diversos modelos sobre
as origens da agricultura americana, repetidos até à exaustão em milhares de publicações, que
se baseavam nessas associações: até hoje, com efeito, nenhuma das datas obtidas
directamente, por acelerador, forneceu resultados anteriores a 5000 BP (Fritz 1994).
Os problemas de interpretação existentes com as datações de El Castillo, de l'Arbreda e
de Beneito sugerem que o debate actualmente em curso acerca da passagem do Paleolítico
Médio ao Paleolítico Superior na Europa ocidental poderá estar seriamente afectado pelo
facto de os processos tafonómicos não estarem a merecer a atenção devida. Quando isso
acontece, porém, a magnitude das consequências torna-se acto contínuo patente, conforme se
pode constatar pelo exemplo das ocupações aurignacenses escavadas por Hahn (1988) numa
jazida de gruta alemã, a de Geißenklösterle. Após a realização de remontagens dos materiais
líticos, verificou-se, com efeito, que a estratigrafia geológica revelada pela escavação pouco
tinha a ver com a realidade da ocupação humana da jazida: dois níveis geológicos (IIa e IIn)
resultavam afinal da deslocação para cima, em virtude das perturbações pós-deposicionais
causadas pela queda de blocos e pela crioturbação dos depósitos, de parte de um contexto
situado mais abaixo, no nível IIb; e a ocupação do nível IIIa, que estava organizada em torno
de uma lareira, viu o seu conteúdo distribuir-se por três unidades distintas, situadas acima
(IId, III) e abaixo (IIIb). Ou seja, os sete níveis estratigráficos diferenciados com base nas
variações verticais da textura, da estrutura e da coloração dos sedimentos eram, na realidade,
o resultado da acção de mecanismos pós-deposicionais que haviam causado a migração,
acompanhada de triagem, do conteúdo (tanto natural como antrópico) de um depósito
originalmente acumulado no quadro de apenas dois momentos de ocupação.
O simples conhecimento deste facto suscita de imediato uma série de questões
relacionadas com a estratigrafia de várias das importantes jazidas de gruta ou de abrigo em
que se baseia grande parte do que actualmente pensamos saber acerca das origens do
Paleolítico Superior europeu, jazidas que, estando também elas situadas em meio periglaciar,
deverão, portanto, ter sido igualmente objecto da acção de processos tafonómicos do mesmo
tipo. Até que ponto, por exemplo, podemos estar efectivamente seguros de que, apesar da
opinião contrária de Laville et al. (1980:227), as «interestratificações» de Castelperronense e
de Aurignacense observadas no Roc de Combe e em Le Piage não estão relacionadas com
fenómenos de crioturbação como os que Hahn identificou em Geißenklösterle? E que dizer
das semelhanças existentes entre os adornos do Castelperronense e do Aurignacense de Arcy-sur-Cure? Não será de rever a integridade dos «solos» aqui decapados por Leroi-Gourhan, e
de investigar seriamente a hipótese de os adornos dos níveis castelperronenses poderem
corresponder na realidade a objectos intrusivos relacionados com as ocupações sobrejacentes
do Aurignacense?
40
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Em relação a esta última hipótese deve, aliás, notar-se, no que ao Castelperronense diz
respeito, que «a elaboração do pensamento simbólico testemunhada pelos objectos de adorno
e pela expressão gráfica não foi até ao momento documentada de forma convincente a não ser
em Arcy» (Taborin 1990:340). Parecendo confirmar o carácter bem fundado das dúvidas
expressas no parágrafo anterior, esta constatação obriga igualmente, por outro lado, a pôr em
questão o que tem sido dito acerca da autoria neandertalense da indústria óssea dos níveis
castelperronenses, uma vez que, segundo Baffier e Julien (1990), certos tipos de objectos
neles encontrados também estão representados nos momentos subsequentes, em particular no
Aurignacense. No que respeita a Itália, aliás, verifica-se igualmente que, nas três jazidas em
que há níveis uluzzenses com indústria óssea (grutas de La Fabbrica, Castelcivita e Cavallo),
esses níveis se situam em posição estratigráfica imediatamente subjacente a contextos
aurignacenses, e em contacto directo com eles (Mussi 1990).
No caso da indústria óssea, porém, deve dizer-se igualmente que Taborin (1990:339-340)
refere diversas ocorrências noutras jazidas castelperronenses francesas, e que existem mesmo
exemplos da fabricação de objectos perfurantes por afeiçoamento e polimento em níveis
moustierenses de jazidas sem ocupação subsequente do Paleolítico Superior, como acontece
por exemplo em Staroselje, na Crimeia (Marks, comunicação pessoal). Por outro lado, há
diversos argumentos de natureza estratigráfica e espacial que militam a favor da integridade
dos contextos castelperronenses descritos por Leroi-Gourhan (Baffier e Julien, comunicação
pessoal): presença muito mais significativa dos objectos de adorno e da indústria óssea nos
níveis de base (camadas IX e X) do que nos níveis de topo (camada VIII, em que a raridade
dos restos arqueológicos sugeriu aos escavadores um ocupação humana apenas
«intermitente») da sequência castelperronense; existência de um horizonte estéril de quase
10 cm de espessura separando esta última da primeira ocupação aurignacense (a da camada
VII); inexistência de qualquer vestígio de contaminação por materiais aurignacenses (lamelas
Dufour, peças carenadas, etc.) dos conjuntos líticos descobertos nos níveis castelperronenses.
Neste contexto, parece muito provável, portanto, que as dúvidas respeitantes à indústria
óssea e aos objectos de adorno provenientes dos níveis castelperronenses de Arcy-sur-Cure e
de outras jazidas francesas acabem, num futuro próximo, por vir a ser dissipadas pela
realização de achados que confirmarão os indícios actualmente existentes segundo os quais
este tipo de objectos também era, de facto, genuína parte integrante da cultura material de
algumas das últimas populações neandertalenses da Europa. Já no que respeita à questão de,
em França, o Castelperronense e o Aurignacense terem sido contemporâneos, as coisas são
bastante mais complicadas: a posição mais razoável, de momento, parece ser a de que uma tal
contemporaneidade não está de forma nenhuma demonstrada. Os modelos que explicam a
presença de adornos no Castelperronense de Arcy como resultado de «aculturação» (Otte
1990; Vandermeersch 1993) ou de «imitação» (Stringer e Gamble 1993) propiciada pelo
contacto dos últimos neandertalenses com os imigrantes anatomicamente modernos ficam
assim extremamente fragilizados. Neste contexto, parece claro que: ou os adornos em causa
são efectivamente castelperronenses, como tudo leva a crer, e estamos então perante um
fenómeno cultural autóctone, independente e anterior à chegada do Homem de Crô-Magnon;
ou os adornos são aurignacenses, e a sua presença em meio castelperronense é um fenómeno
tafonómico, cuja explicação tem de ser buscada no domínio da Geologia e não no da História.
1.5.2. Aurignacense a norte, Moustierense a sul
O problema das datações é apenas um aspecto específico desta problemática mais geral
relacionada com a dificuldade que por vezes existe em destrinçar de forma segura as
associações que resultam de processos culturais das que resultam de processos tafonómicos.
No que diz respeito à existência da «fronteira do Ebro», porém, as incertezas existentes
Origens
41
quanto à interpretação dos resultados de l'Arbreda, de El Castillo e de Beneito não são
suficientes para obscurecer o padrão revelado pela Fig. 1.4, uma vez que é de vários milhares
de anos a ordem de grandeza das diferenças existentes entre as datações disponíveis de cada
lado da fronteira para o Moustierense mais recente, por um lado, e para o Aurignacense mais
antigo, por outro. A não ser que se admita que todas as datações até hoje obtidas, tanto em
Portugal como em Valencia, na Andaluzia e em Gibraltar, se encontram rejuvenescidas de
forma bastante considerável (eventualmente devido a problemas de contaminação das
amostras), o que não parece muito verosímil, não se vê assim que haja forma de escapar à
conclusão de que essa «fronteira» deve constituir efectivamente um reflexo genuíno da
realidade passada, e não uma consequência das insuficiências dos métodos cronométricos
actualmente à nossa disposição. Que o Aurignacense da Catalunha e da região franco-cantábrica é contemporâneo, por volta de 35 000 BP, de um Moustierense que parece
continuar a ocupar o resto da Península Ibérica pelo menos até cerca de 30 000 BP é algo
que, por outro lado, resulta também da simples tomada em consideração de um padrão
arqueoestratigráfico básico: o da repartição espacial dos fósseis directores.
De facto, conforme Hahn (1993) demonstrou, a informação cronométrica existente
permite reconhecer, não obstante todas as suas insuficiências, que o chamado Aurignacense I
com pontas de base fendida pode ser considerado como uma entidade crono-estratigráfica de
valor pan-europeu, pese embora o facto de continuar a ser grande a incerteza existente quanto
aos seus limites exactos, os quais, naturalmente, flutuarão para baixo ou para cima consoante
se dê mais peso às datas por acelerador do norte de Espanha (≈38 500 BP, aceitando que se
trata efectivamente, nos níveis datados de El Castillo e de l'Arbreda, de Aurignacense I) ou ao
conjunto das datas convencionais actualmente disponíveis para toda a Europa (cuja
distribuição tem uma mediana situada em 31 000 BP e um intervalo inter-quartis
compreendido entre 30 000 e 32 000 BP). Por outro lado, se tivermos em conta que há, em
diversas jazidas das regiões europeias em que esse Aurignacense I está documentado,
indícios da existência de um Aurignacense 0 anterior (e industrialmente bem diferenciado), a
presença das pontas ósseas de base fendida pode ser tomada como sintoma da existência de
um povoamento aurignacense já com uma certa tradição.
Embora representado tanto em Morín, El Castillo e Pendo, na região cantábrica, como em
l'Arbreda e Reclau Viver, na Catalunha, nem este Aurignacense I nem o Proto-Aurignacense
ou Aurignacense 0 que possivelmente o antecede em l'Arbreda foram reconhecidos, até ao
momento, no resto da Península Ibérica, mesmo no caso das jazidas de gruta com sequências
abarcando o final do Paleolítico Médio e o início do Superior, como Beneito, Cariguela,
Gorham's Cave ou Caldeirão (Fig. 1.4). Admitindo que essa ausência é significativa e não
resulta apenas do número reduzido de jazidas, ou seja, admitindo, como tudo parece indicar,
que não estamos perante um simples problema de amostragem, a única forma de explicar
convenientemente essa ausência é a de aceitar que, nestas jazidas, as respectivas posições
crono-estratigráficas estão ocupadas por um Moustierense tardio. A sobrevivência durante o
estádio isotópico 3 e o início do 2 de indústrias que, do ponto de vista tecnológico, são ainda
do Paleolítico Médio, está bem documentada, aliás, no norte de África, onde a cronologia
posterior a ≈40 000 do Ateriense foi recentemente confirmada pela obtenção de uma data TL
para o sítio de ar livre de Chaperon-Rouge I, em Marrocos, que situa a respectiva ocupação
humana em 28 200±3300 BP (OxTL 724g) (Texier et al. 1988). Embora a natureza do tipo
humano que fabricou o Ateriense continue por esclarecer no pormenor, parece existir
consenso de que se trata de populações anatomicamente modernas (Genet-Varcin 1979:244-248; Phillipson 1985:92-93; Stringer e Gamble 1993:130-131). Do outro lado do estreito de
Gibraltar, porém, não parece haver dúvidas que o Moustierense ibérico tardio ainda foi
fabricado pelo homem de Neandertal, sobretudo desde que se confirmou a atribuição ao
início do Pleniglaciar superior dos restos antropológicos da jazida andaluza de Zafarraya, já
datados cronometricamente de ≈30 000 BP (Vega Toscano 1990:172; Hublin et al. 1995).
42
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
A cultura material deste Moustierense final é ainda mal conhecida, dada a ausência de
publicação detalhada dos contextos. No caso da Foz do Enxarrique, porém, as referências
disponíveis apontam para a inexistência de quaisquer indícios de evolução tecnológica para o
Paleolítico Superior, o mesmo podendo ser dito a propósito dos materiais da camada K da
Gruta do Caldeirão. Nesta última, foi recolhido um dente de dourada recortado em forma de
anel, mas o facto de a camada sobrejacente conter conchas marinhas perfuradas associadas a
indústrias líticas de tipo Paleolítico Superior não permite que se possa afastar a hipótese de
estarmos perante um objecto intrusivo. Nas restantes jazidas peninsulares também não há
quaisquer referências a objectos de adorno.
1.5.3. Implicações paletnológicas
Se, como tudo indica que deverá acontecer, a existência da «fronteira» do Ebro vier a ser
confirmada pela investigação futura, a ausência de evolução para o Paleolítico Superior que
se verifica no Moustierense final ibérico torna-se extremamente difícil de compatibilizar com
o modelo aculturativo que tem sido defendido para o Castelperronense e indústrias similares.
Afinal de contas, as oportunidades de contacto não podem deixar de ter existido, tornando
possível a transformação do Moustierense final ibérico, quanto mais não seja «por imitação».
O facto de isso não se ter passado contribui para reforçar ainda mais as dúvidas anteriormente
expostas acerca do carácter bem fundado do referido modelo.
O que terá então acontecido? Um primeiro elemento de resposta ao problema pode ser
buscado na constatação de que a «fronteira do Ebro» não é senão a linha contínua de relevos
elevados constituída pelos Pirenéus e pela Cordilheira Cantábrica, a qual começa por ser,
antes de tudo o mais, uma fronteira ecológica de primeira grandeza, conforme é aliás
reconhecido por Gamble (1986), que a adopta como limite setentrional de uma das regiões
em que divide a Europa paleolítica, a do «Mediterrâneo ocidental». Na actualidade, esta
fronteira separa essa região, onde o principal factor limitativo é constituído pela pronunciada
secura estival, de outra, a Europa atlântica, em que as precipitações mais elevadas permitem o
desenvolvimento das florestas caducifólias. Dado que a principal consequência que a última
glaciação teve para a Europa foi a de tornar o clima de um modo geral mais seco, o contraste
entre as duas regiões deve nessa época ter sido ainda mais acentuado.
Neste contexto, é possível que a diferenciação cultural que durante o estádio isotópico 3
parece separar a Península Ibérica do resto da Europa tenha tido um fundamento ecológico. A
norte dos Pirenéus, o Paleolítico Superior corresponderia a uma adaptação baseada na
exploração logística dos recursos da tundra e da estepe-tundra e no estabelecimento de
sistemas de aliança envolvendo grandes distâncias, com o consequente desenvolvimento de
formas de identificação mútua dos que neles participavam: a arte móvel e os objectos de
adorno (Gamble 1983). A sul, teríamos um Paleolítico Médio de contornos adaptativos ainda
mal conhecidos, mas em que se pode presumir a inexistência de sistemas desse tipo, dada a
ausência no registo arqueológico dos respectivos indícios.
Ao expandirem-se para ocidente, as populações de tipo Crô-Magnon teriam assim feito
um compasso de espera junto à fronteira natural dos biomas em cuja exploração se baseava o
seu modo de vida. Só numa segunda fase, cujo desencadear poderá ter estado relacionado,
por exemplo, com o aumento da população, obrigando à expansão para novos territórios, é
que se teria dado a ocupação do resto da Península Ibérica, e a concomitante passagem ao
Paleolítico Superior nas regiões situadas a sul da bacia do Ebro. Este tipo de fenómeno —
expansão rápida, seguida de estabilização — é aliás relativamente comum no processo
histórico, encontrando por exemplo paralelo no avanço para Oeste, a partir dos Balcãs, das
economias agro-pastoris de origem proximo-oriental, o qual, numa primeira fase, estanca
Origens
43
junto ao litoral atlântico da Europa, com a formação de uma fronteira Neolítico/Mesolítico
que permanecerá estável durante vários séculos (Zilhão 1992b, 1993d).
O facto de a arte plistocénica ser actualmente conhecida em contextos situados longe da
cintura periglaciar eurasiática retira no entanto algum peso à explicação funcionalista da
fronteira. Tal como acima se referiu, parece mais lógico supor que o aparecimento do
fenómeno artístico tenha estado antes ligado a uma reestruturação das relações entre os
grupos humanos ocorrida nos primórdios do desenvolvimento do processo de densificação
decorrente do aumento populacional permitido pelo sucesso adaptativo do género humano.
As transformações inerentes a essa reestruturação não têm necessariamente que ter ocorrido
ao mesmo tempo em toda a parte. Tal como mais tarde viria a acontecer com a «revolução
neolítica», é muito provável que a «revolução do Paleolítico Superior» tenha sido um
processo de desenvolvimento desigual, e que, no caso do continente europeu, tenha
acontecido em primeiro lugar nas regiões setentrionais, constituindo a Península Ibérica uma
periferia a este respeito mais atrasada. Caracterização que se poderia aliás aplicar igualmente
ao norte de África, região onde o tipo físico das populações aterienses (anatomicamente
modernas) era diferente do das populações do Moustierense final ibérico (neandertalenses), o
que permite por si só rejeitar como explicação cabal desse atraso a suposta inferioridade
intelectual destas últimas. Tanto mais quanto, numa primeira fase, os protagonistas da
revolução (ou, num quadro explicativo funcionalista, do sistema adaptativo setentrional)
poderão ter sido precisamente essas mesmas populações neandertalenses.
Como sempre acontece, estas hipóteses de explicação assentam em pressupostos
determinados. A submissão desses pressupostos ao teste da confrontação com o registo
arqueológico é no entanto plenamente possível, e constitui uma primeira forma de avaliar a
verosimilhança do modelo a que servem de fundamento. A sua invalidação, no todo ou em
parte, pode por exemplo resultar da demonstração de que:
•
há um Aurignacense I a sul da «muralha» cantabro-pirenaica;
•
as indústrias aurignacenses também podem ter sido fabricadas pelo homem de
Neandertal;
•
o Moustierense final ibérico é de cronologia bastante mais antiga do que os resultados
actualmente disponíveis deixam antever;
•
na fase final do seu desenvolvimento, as indústrias moustierenses da Europa ocidental
também podem ter sido fabricadas pelo homem de Crô-Magnon;
•
durante o estádio isotópico 3, os biomas da Península não diferiam substancialmente dos
que existiam a norte da «fronteira do Ebro».
Uma parte destes testes diz respeito à obtenção de datações absolutas. Dados os
problemas inerentes à utilização do radiocarbono para a datação de contextos anteriores a
30 000 BP, e as ambiguidades relacionadas com a interpretação da associação entre amostras
e contextos, parece claro que, neste âmbito, os esforços a desenvolver deveriam ser
orientados em dois sentidos: o da aplicação mais generalizada de métodos alternativos, como
o do Urânio-Tório; e o da datação directa de amostras de indústria óssea. A elaboração de um
programa de datação sistemática por acelerador de amostras de pontas de base fendida
provenientes das numerosas jazidas existentes na vasta área de distribuição geográfica do tipo
permitiria com efeito obter uma ideia clara do significado cronológico destes artefactos, e
tornaria muito mais concretas as discussões acerca da idade do mais antigo Aurignacense da
Europa ocidental. Do mesmo modo, aliás, seria aconselhável proceder à datação directa de
amostras da indústria óssea (artefactos e adornos) que tem vindo a ser referida como
proveniente de contextos castelperronenses e uluzzenses, de forma a testar a hipótese de se
tratar de materiais intrusivos. É certo que existem problemas técnicos relacionados com a
44
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
química dos ossos que tornam complicada a determinação do grau de descontaminação
atingido pelo respectivo pré-tratamento e, portanto, afectam a fidedignidade das análises. Não
há dúvida, porém, que o investimento que venha a ser feito para conseguir progressos nesta
matéria será seguramente bastante mais produtivo do que a insistência na datação de
minúsculas amostras de carvão provenientes de contextos em que a hipótese de perturbação
dos depósitos não pode nunca ser posta de parte e em que os problemas de associação
impedirão sempre uma interpretação segura dos resultados.
1.6. A sequência portuguesa
Enquanto o modelo da «fronteira do Ebro» não for invalidado por descobertas do tipo das que
acabam de ser enumeradas, somos portanto obrigados a concluir que, contrariamente ao que
se verifica no resto da Europa e no Próximo Oriente, na maior parte da Península Ibérica,
incluindo o território português, os critérios de diferenciação entre Paleolítico Médio e
Superior tradicionalmente utilizados e cuja validade absoluta anteriormente se questionou
acabam de facto por ser válidos na sua quase totalidade. Da lista de diferenças compilada por
Brézillon (1969) e Mellars (1973), é só no que respeita aos aspectos relacionados com a
demografia das populações e a economia de subsistência que a natureza radical do contraste
entre os dois períodos ainda não foi confirmada, mas isso deve-se à falta de elementos que
permitam realizar os estudos comparativos relevantes e não a uma eventual ambivalência dos
dados. Em todos os outros aspectos, com efeito, a ruptura parece ser total e abrupta. Indústria
óssea, produção de lâminas a partir de núcleos prismáticos, anatomia moderna, objectos de
adorno são, a sul do Ebro, sinónimo de Paleolítico Superior, a sua primeira aparição no
registo arqueológico fazendo-se de forma abrupta e simultânea, e já em contexto
aurignacense.
A forma como a cultura material se desenvolveu a partir do momento em que, com a
chegada do Aurignacense e do homem anatomicamente moderno, o território português
«entrou» no Paleolítico Superior, será objecto da síntese que finalizará o presente volume
deste trabalho (capítulos 5 e 6). Diga-se desde já, porém, que, nas suas linhas gerais, ela não
difere das modalidades abundantemente documentadas por diversos autores para o resto da
Europa ocidental (Lumley 1976; Fullola 1983; Villaverde e Martí 1984; Straus 1992),
seguindo um modelo inicialmente proposto para a região «clássica» do Sudoeste francês cuja
validade, no entanto, tem sido ultimamente objecto de alguma contestação (Straus 1987).
Sendo inquestionável que os dados actualmente existentes não permitem sustentar a versão
mais elaborada dessa sequência, incluindo as numerosas divisões e subdivisões que foram
sendo sucessivamente acrescentadas à sua formulação original, não é porém menos verdade
que a parte nuclear do esquema se tem demonstrado basicamente correcta, facto que não é
posto em causa nem mesmo pelos mais proeminentes partidários europeus da Nova
Arqueologia anglo-saxónica. Gamble (1986:248-249), por exemplo, aceita de forma
categórica a possibilidade de discriminar no Paleolítico Superior europeu uma sequência de
tecnocomplexos cuja definição industrial é precisa e cuja ordem de sucessão está bem
estabelecida e é sempre a mesma:
«Há um nível de afinidade na composição dos conjuntos e um carácter previsível no
aparecimento de fósseis directores que é inexistente nas tradições paleolíticas anteriores.
No Paleolítico Superior, os fósseis directores indicam efectivamente, até certo ponto,
uma cronologia determinada, e podem desempenhar o papel de ponto de referência para a
construção de agrupamentos culturais. (...) O simples facto de olhar para uma ponta de
Font-Robert permite-nos não só definir a sua posição cronológica com uma certa precisão
mas também inferir as características gerais do conjunto em que esse achado se deveria
integrar. Embora a constatação de que conjuntos diferentes podem ser contemporâneos e
Origens
45
aparecer interestratificados tenha acrescentado uma dimensão nova à nossa compreensão
do Paleolítico Superior, continua a ser possível, mesmo assim, usar certos termos
(Aurignacense, por exemplo) como uma forma abreviada e conveniente de nos referirmos
a certas realidades industriais sabendo ao mesmo tempo que nos estamos a referir a um
período cronológico do início do Paleolítico Superior».
É neste sentido que o esquema tradicional do Paleolítico Superior da Europa ocidental
será usado neste trabalho. A essência desse esquema pode ser resumida da forma que se
segue. O Aurignacense, caracterizado pela produção das típicas pontas de zagaia em osso,
haste de cervídeo ou marfim, de base fendida ou perfil romboidal e, no que respeita à
indústria lítica, pela produção de grandes lâminas, por vezes com retoque escalariforme, e de
raspadeiras e buris carenados, chega ao seu fim por volta de 27 000 BP. Segue-se-lhe o
Gravettense, que termina por volta de 22 000 BP e se caracteriza pelo uso extensivo da
técnica do retoque abrupto para a fabricação de pontas: gravettes, microgravettes, pontas de
Font-Robert, flechinhas, etc. Começa então o Solutrense, que se caracteriza pela produção de
pontas foliáceas mediante a técnica do retoque plano e termina, consoante as regiões, entre
cerca de 18 000 e cerca de 16 000 BP. O termo da sequência é representado pelo
Magdalenense, definido pela grande diversidade de tipos microlíticos e pelo regresso das
pontas ósseas, agora incluindo formas mais complexas, como os arpões, que aqui fazem a sua
primeira aparição no registo arqueológico. Como é óbvio, quando os fósseis directores não
estão representados nos conjuntos, ou quando não há preservação da matéria óssea, ou
quando os conjuntos não são suficientemente numerosos, corre-se o risco da formulação de
diagnósticos incorrectos, em particular quando está em causa a distinção entre Gravettense e
Magdalenense. O facto de isso por vezes acontecer não pode no entanto ser tomado como
prova da incorrecção do esquema na sua globalidade. Com efeito, os poucos casos em que
erros desse tipo foram cometidos são uma ínfima minoria quando comparados com aqueles
em que a datação independente pelo radiocarbono confirmou a cronologia proposta com base
na tipologia.
Apesar de seguir nas suas linhas gerais a norma do Sudoeste europeu, a sequência
portuguesa difere desta última em pormenores importantes. Durante o Gravettense, por
exemplo, existem em Portugal fácies tecnológicas que não foram até ao momento
identificadas nem em Espanha nem em França. Por outro lado, o facto de não haver
preservação da matéria orgânica nas jazidas de ar livre que constituem a grande maioria dos
sítios pós-solutrenses conhecidos torna inútil a individualização de um período azilense,
apesar de o respectivo fóssil director lítico — a ponta azilense — estar representado em
diversas colecções do final do Paleolítico Superior português. Com efeito, conforme tem sido
assinalado por diversos autores (veja-se Straus 1992, por exemplo), a continuidade entre o
Azilense franco-cantábrico e o Magdalenense que o precede é total ao nível das indústrias
líticas, pelo que, na ausência de indústria óssea, a respectiva discriminação resulta
praticamente impossível. No caso português, consideraram-se assim como ainda pertencendo
ao Magdalenense as indústrias do Tardiglaciar de cronologia compreendida entre 12 000 e
10 000 anos BP. Por outro lado, dado que se optou por aceitar esta última data como limite
convencional do Paleolítico, as indústrias posteriores a 10 000 BP já não foram consideradas
como magdalenenses mas sim como mesolíticas ou epipaleolíticas e, como tal, foram
excluídas deste estudo. Não deve daí depreender-se, no entanto, que essa exclusão signifique
necessariamente a existência de diferenças importantes entre as indústrias que aqui foram
classificadas como correspondendo a um Magdalenense final e as que datam já do Pré-Boreal. O que se passa, muito simplesmente, é que, dados os critérios adoptados, a questão
não foi sequer objecto de análise.
Este alerta serve ainda para ilustrar o facto de que as diferentes subdivisões do esquema
tradicional não devem ser consideradas como conceptualmente equivalentes. Parece claro,
46
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
por exemplo, que existe um parentesco muito maior entre os Solutrenses das diversas regiões
da Europa ocidental do que, por exemplo, entre o Magdalenense da Polónia e o de Portugal,
países em que, apesar do considerável afastamento geográfico, o termo é em ambos os casos
utilizado na periodização do Paleolítico Superior. A questão do estatuto a atribuir às
diferentes entidades taxonómicas da sequência portuguesa será abordada na conclusão deste
trabalho (capítulo 6). Antes, apresentar-se-á a sequência propriamente dita (capítulo 5), mas
não sem que, primeiro, sejam discutidos os resultados actualmente disponíveis acerca da
evolução diacrónica do ambiente, da tecnologia e dos sistemas de povoamento e de
subsistência (capítulos 2, 3 e 4), cuja consideração é indispensável à construção dessa mesma
sequência.
2. AMBIENTE
A existência de uma glaciação quaternária na Serra da Estrela, revelada pelos trabalhos de
Lautensach (1932) e Daveau (1971), permitiu demonstrar que o território português não tinha
ficado ao abrigo dos processos de degradação climática que afectaram o continente europeu
durante o Plistocénico. A frescura das formas glaciares detectadas, só de forma marginal
afectadas pela erosão, permitia atribuir uma data muito recente a essa glaciação, que se teria
assim dado durante a última fase do Würm, isto é, teria sido contemporânea das comunidades
humanas que habitaram a fachada atlântica da Península Ibérica durante o Paleolítico
Superior. No entanto, segundo Roche (1971, 1977), os seus efeitos só se teriam feito sentir de
forma muito atenuada nas regiões litorais, onde o clima teria sido húmido, com variações
que, «moderadas pelas influências oceânicas, deviam aparentar-se às de um regime mais
pluvial do que glaciar» (Roche 1971:48). Assim o pareciam indicar a natureza e constância
das associações faunísticas representadas nos preenchimentos cársicos (hiena-lobo-cavalo-veado-auroque), de que se encontravam ausentes as espécies frias, como a rena ou o
mamute, sugerindo condições ambientais mais benignas do que as que nessa época se
verificavam nas regiões a norte dos Pirenéus, nomeadamente no Sudoeste da França. No
entanto, alguns dados de natureza geomorfológica (depósitos de vertente com indícios da
acção do gelo) pareciam indicar que os pequenos maciços montanhosos da Estremadura
tinham estado pelo menos pontualmente submetidos a um regime periglaciar.
Sínteses mais recentes (Daveau 1980; Zilhão 1987a), no entanto, fizeram notar que esta
hipótese de o clima do território português ter sido relativamente ameno durante a última
glaciação tinha de ser substancialmente corrigida, uma vez que os dados do projecto
CLIMAP (McIntyre e Kipp 1976) mostravam uma extensão da frente polar até à latitude da
Estremadura durante o último máximo glaciário. Por outro lado, os progressos que nos
últimos vinte anos foram realizados nos estudos quaternários em Portugal permitiram obter
uma grande quantidade de elementos novos, com base nos quais se pode actualmente traçar
um quadro bastante mais complexo, embora ainda extremamente lacunar, do clima e do
ambiente que caracterizaram o território português durante a parte final da última glaciação.
2.1. Periodização
A concluir o presente capítulo far-se-á uma tentativa de síntese do quadro climático vigente
em Portugal durante o Paleolítico Superior. Antes, porém, serão apresentados os dados em
que essa síntese se apoia. Num caso como noutro, o sistema de periodização adoptado basear-se-á na sequência dos estados isotópicos derivados da análise das flutuações do teor em 18O
das conchas dos foraminíferos planctónicos fossilizados nos sedimentos dos fundos
oceânicos (Shackleton e Opdyke 1973). Para a fase de deglaciação, adoptou-se a cronologia
descrita por Ruddiman e McIntyre (1981) para o Atlântico Norte.
Esses sedimentos são actualmente considerados, com efeito, como a mais fidedigna das
diversas fontes utilizáveis para a reconstituição dos paleoclimas quaternários e das
modalidades e ritmos da sua flutuação ao longo do tempo. Conforme assinala Gamble (1986),
eles têm a grande vantagem de constituirem um registo estratigráfico contínuo, datável
cronometricamente, e válido à escala planetária, fornecendo assim um quadro de referência
absoluto, que não depende das variações locais, determinadas pela continentalidade e pela
latitude, que afectam os registos em terra, os quais, por outro lado, são de um modo geral
descontínuos e parcelares.
48
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Os mais completos e fidedignos destes últimos, que, nalguns casos, como os de certas
sequências palinológicas de turfeiras de Espanha, França e Grécia, chegam a abranger
períodos da ordem das muitas dezenas de milhares de anos, são, no entanto, de datação
problemática quando os depósitos ultrapassam os limites de aplicabilidade do radiocarbono.
Apesar disso, a sua comparação com as curvas do oxigénio permitiu já verificar a existência
de uma correspondência excelente entre os acontecimentos registados em ambos os domínios
(continental e oceânico) e, por essa via, calibrar em termos absolutos o faseamento revelado
pelas curvas polínicas (Guiot et al. 1989). Dessa comparação resultou igualmente, por outro
lado, a constatação de que o sistema de periodização tradicionalmente utilizado no Sudoeste
da Europa pela investigação arqueológica do Plistocénico Superior sofre de problemas
diversos e necessita de ser profundamente revisto.
Baseado na análise dos preenchimentos de grutas e abrigos sob rocha do Périgord e
tomando como referência a cronologia glaciar alpina, esse sistema atingiu nos anos 70 um
refinamento pronunciado, que permitia a discriminação no Würm recente de diversas fases
climáticas com uma duração da ordem do milénio e caracterizadas por combinações
específicas entre a textura e a estrutura dos sedimentos, por um lado, e o respectivo conteúdo
polínico, por outro. Durante algumas dessas fases registava-se um aumento dos pólens de
árvores, levando à sua caracterização como episódios de melhoramento climático, referidos
como interestádios e baptizados com os nomes das jazidas onde haviam sido pela primeira
vez identificados (Tursac, Laugerie, Lascaux, por exemplo). Estes interestádios funcionavam
por outro lado como importantes marcadores crono-estratigráficos, tornando possíveis as
correlações entre jazidas e permitindo assim reconstruir, a partir das diversas sequências
parcelares, uma sequência-padrão de validade regional (Laville et al. 1980).
As oscilações de carácter temperado registadas pela palinologia das jazidas arqueológicas
e confirmadas pela sedimentologia não parecem no entanto manifestar-se nem no registo
oceânico nem nas sequências palinológicas das turfeiras. Esta contradição tem levado a que,
nos últimos anos, os fundamentos metodológicos da técnica tenham vindo a ser objecto de
um questionamento severo. Conforme assinalam Pons et al. (1989:51), «os preenchimentos
cársicos não podem ser considerados como um bom arquivo da evolução geral ou regional do
clima», uma vez que «a sua deposição está ligada a fenómenos aleatórios, relacionados com
influências locais, que mascaram, atenuam ou exageram as características gerais do clima».
Além disso, estes tipos de preenchimentos encontram-se geralmente afectados por hiatos de
sedimentação ou de erosão difíceis de detectar. Por outro lado, a frequência e intensidade da
ocupação humana modificam as características sedimentares dos depósitos e podem alterar de
forma significativa a informação paleoclimática neles contida.
Para Turner e Hannon (1988), a presença de pólen de espécies temperadas nos níveis
arqueológicos das jazidas de gruta ou abrigo descritos como pertencendo aos interestádios do
segundo pleniglaciar deve, aliás, ser considerada intrusiva, podendo provir seja de infiltração
a partir dos níveis holocénicos sobrejacentes, seja de redeposição a partir de depósitos
exteriores de idade interglaciar, seja de contaminação laboratorial. É essa, segundo estes
autores, a única explicação possível para a presença nos espectros polínicos de diversas
jazidas do Sudoeste da França de árvores (como Carpinus, Fagus e outras) cuja história
recente está bem estudada e demonstra não terem atingido a região senão nos primórdios da
nossa Era. O facto de o aumento das percentagens de pólen de espécies temperadas se
verificar em estratos de matriz fina que, segundo Laville, tenderiam a acumular-se em
condições climatéricas moderadas e húmidas (interpretação que é no entanto questionada por
outros sedimentólogos), pode, por outro lado, representar mais do que uma simples
coincidência. O significado dessa co-ocorrência, no entanto, não seria paleoclimático, mas
sim tafonómico:
Ambiente
49
«os sedimentos finos fornecem efectivamente uma matriz mais favorável para a
acumulação e protecção dos palinomorfos que se vão infiltrando ao longo do tempo».
«Em Laugerie-Haute, por exemplo, parece haver uma correlação repetida entre estratos
de granulometria fina e a ocorrência de tipos menos robustos de pólen, como são os da
maioria das árvores temperadas (...), enquanto que os conjuntos provenientes de estratos
de granulometria mais grosseira, ou que se encontram afectados por fenómenos de
alteração, tendem a conter conjuntos dominados por tipos de pólen resistentes ou com
paredes espessas, como são os de Compositae, de Artemisia e de Pinus» (Turner e
Hannon 1988:476).
A solidez destas críticas não parece seriamente questionável ou, pelo menos, não foi até
ao momento objecto de resposta adequada pelos praticantes da arqueopalinologia. Isso não
significa, no entanto, a rejeição automática de algumas das inferências paleoambientais
extraídas das análises sedimentológicas. A aceitação de que as grutas e abrigos não são de
facto arquivos suficientemente bons para as tarefas de reconstituição paleoclimática global
não implica que este tipo de jazida não tenha utilidade para as tarefas de reconstituição local
ou regional. Turner e Hannon (1988:477), por exemplo, admitem explicitamente que os
presumíveis interestádios cuja existência não é revelada pelas sequências de turfeiras
poderiam estar relacionados com mudanças menores do posicionamento da frente polar das
quais tivessem resultado pequenas modificações na estrutura do coberto vegetal cujo
impacto, porém, não teria ultrapassado o litoral do Golfo da Biscaia. É sobretudo devido à
sua rejeição dos próprios dados palinológicos de base que optam por afastar essa hipótese.
Como adiante se verá, porém, há bastante indícios de que se deram no litoral atlântico da
Europa fenómenos cuja sincronia à escala regional implica um fundamento último que não
pode deixar de ser paleoclimático. É o que se passa, por exemplo, com os processos erosivos,
relacionados com uma reactivação do carso ou com uma maior importância dos processos de
escorrência (em qualquer dos casos necessariamente determinados por um aumento da
humidade), que afectam de forma sistemática as sequências estratigráficas da região
cantábrica entre o final do Gravettense e o Solutrense com pontas crenadas (Rasilla 1989), ou
seja, em momentos correspondentes ao «interestádio» de Laugerie tal como definido no
Périgord.
Por muito válidas que sejam as críticas formuladas a respeito da interpretação para eles
proposta, também não parece que ignorar a realidade física destes fenómenos possa ser
considerado como uma forma séria de resolver a questão. O problema reside claramente, com
efeito, em saber qual o estatuto que deve ser atribuído às oscilações climáticas que lhes terão
dado origem. A este respeito, Laville et al. (1980:309, 316) esclarecem que a sua utilização
do termo «interestádio» é puramente convencional, e que os sedimentos, embora registem um
aumento da humidade nos episódios assim designados, não permitem no entanto deduzir a
existência durante o Würm recente de qualquer atenuação pronunciada e duradoura das
condições de clima rigoroso, frio e seco, que de um modo geral caracterizam o máximo
glaciário. Condições que, nos níveis atribuídos ao «interestádio» de, por exemplo, Laugerie,
são aliás bem evidenciadas pela composição das faunas arqueológicas, que continuam a ser
dominadas de forma esmagadora pela rena. Laville et al. (1983:231), por seu lado, afirmam
de forma explícita que o episódio de Laugerie «é sobretudo marcado por uma forte humidade
e pode ser interpretado como o reflexo de uma crise pluviométrica», não representando, tal
como os restantes «interestádios» da arqueopalinologia, senão «vicissitudes menores no
interior de um contexto globalmente frio».
A reconciliação destas formulações com as conclusões obtidas a partir do estudo das
longas sequências das turfeiras não parece assim extremamente difícil. É com efeito possível
que tais flutuações menores da pluviosidade não se tenham feito sentir nas regiões mais
50
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
continentais ou de altitude mais elevada em que essas turfeiras se situam, ou que as suas
importância e duração não tenham sido suficientes para acarretarem modificações
significativas dos espectros polínicos por elas revelados. Deve notar-se, no entanto, que na
sequência de Les Echets foram igualmente assinaladas oscilações da humidade (de reduzida
amplitude, é certo) durante o segundo Pleniglaciar würmiano. Guiot et al. (1989:312)
consideram que essas oscilações, mais marcadas nesta sequência do que na de La Grande
Pile, estão relacionadas com flutuações das condições locais, não reflectindo variações do
clima à escala global ou regional, interpretação que é inteiramente compatível com a acima
referida leitura proposta por Laville et al. (1980, 1983) para os «interestádios» detectados
pela sedimentologia dos preenchimentos cársicos do Périgord durante o Würm recente. A
reduzida amplitude, e o consequente impacto mínimo na vegetação adjacente, que essas
oscilações apresentam nas sequências polínicas de turfeiras não implica necessariamente,
com efeito, que o seu impacto não tenha sido relativamente importante noutros registos
paleoambientais (como o dos sedimentos), nos quais poderão ter acabado por ficar marcadas
com uma visibilidade talvez desproporcionadamente grande em relação à sua real
importância paleoclimática.
É nessa mesma desproporção que, paradoxalmente, reside a sua verdadeira utilidade: a de
servirem como indicador crono-estratigráfico, tornando possível, nas regiões onde a sua
validade seja reconhecida, obter balizas intermédias que permitam um refinamento no
domínio continental da periodização universal baseada nas curvas do oxigénio. Nas
referências que neste trabalho serão feitas aos «interestádios» sedimentológicos da parte final
da última glaciação usar-se-á assim, para evitar confusões com os verdadeiros interestádios
palinológicos, a designação de «episódios».
2.2. Condicionantes globais
Após uma primeira fase extremamente fria, registada nas turfeiras da Holanda sob a forma de
espectros polínicos indiciadores de paisagens de tundra, e que corresponde ao estádio
isotópico 4 da cronologia oceânica (entre 75 000 e 64 000 BP), o clima vigente na Europa
durante a última glaciação passa por uma fase em que se repetem diversas oscilações
temperadas, registadas tanto nos fundos marinhos como nas sequências polínicas das
turfeiras. É o estádio isotópico 3, entre 64 000 e 32 000 BP, no interior do qual se registam,
na Holanda, os interestádios de Moershoofd, de Hengelo e de Denekamp, em que as árvores
voltam a estar presentes na paisagem. Em Inglaterra, o mesmo fenómeno é registado pelas
faunas de coleópteros, com base nas quais se reconstituíram temperaturas médias de Julho
superiores em mais de 5°C às da fase anterior (Gamble 1986:Fig. 3.8).
O estádio isotópico 2, entre 32 000 e 13 000 BP, corresponde novamente a uma situação
de deserto polar nas regiões do norte da Europa não cobertas pelo avanço das calotes
glaciares. É neste momento que, segundo Gamble (1986:80-81, citando trabalhos de Frenzel),
se registam os climas mais frios e secos de todo o Plistocénico. Com efeito, segundo estes
autores, as fases frias dos sucessivos ciclos interglaciar-glaciar que se foram registando desde
o início do Quaternário revelam uma tendência de longo prazo, culminando na última
glaciação, para que os picos de temperaturas baixas e precipitações diminuídas sejam cada
vez mais pronunciados, e os contrastes sazonais cada vez mais marcados, com Invernos cada
vez mais rigorosos. A maior secura do clima do estádio isotópico 2 é aliás, segundo eles, bem
evidenciada pelo facto de o limite inferior da calote glaciar escandinava ter então ficado a
norte das linhas de moreias formadas aquando dos precedentes períodos de avanço dos gelos,
em consequência da precipitação nivosa menos abundante (determinada pela menor
humidade atmosférica existente sobre o Atlântico) que então caía sobre as regiões mais
setentrionais da Europa.
Ambiente
51
Esta interpretação é confirmada por modelos climáticos como o proposto por Gates
(1976), com base nos dados do projecto CLIMAP, para as condições meteorológicas vigentes
em Julho por volta de 18 000 BP, quando as paleotemperaturas oceânicas indicam que terá
sido atingido, à escala global, o clímax de frio e secura. No Hemisfério Norte, a redução da
temperatura média anual medida à superfície do solo terá sido de cerca de 5°C. Em certas
regiões, porém, essa redução terá sido significativamente superior, da ordem dos 15°C na
Ásia Central, e dos 10 a 12°C na Península Ibérica, na Itália e nos Balcãs. A deslocação para
sul, em virtude do avanço dos gelos, da zona em que o gradiente de temperatura é mais
marcado, determinaria por seu lado uma concentração e fortalecimento dos ventos de oeste
por volta do paralelo 40 (em vez do paralelo 60, como acontece hoje em dia). A diminuição
da humidade ambiente, no entanto, implicava uma redução da precipitação, em comparação
com os valores actuais, de cerca de 37%. Usando outro modelo, Guiot et al. (1989)
calcularam, por seu lado, que, na região adjacente à turfeira de Les Echets (situada perto de
Lyon), a precipitação média anual terá baixado, entre ≈30 000 e ≈13 000 BP, para valores
situados entre 200 e 400 mm (contra 800 mm no presente), e que as temperaturas médias
anuais (11°C no presente) terão então variado no interior de um intervalo compreendido entre
1 e 5°C.
Esta situação condicionou fortemente o desenvolvimento da vegetação. Apesar de
pequenos maciços isolados de salgueiros poderem ter sobrevivido em vales abrigados da
tundra da grande planície norte-europeia, que então correspondia a um estreito corredor
situado entre duas grandes massas de gelo (as calotes glaciares alpina e escandinava) e em
que se iam acumulando espessas camadas de loess, a distribuição das espécies arbóreas ficou
no essencial confinada às regiões situadas a sul do paralelo 42. Na zona mediterrânica, onde,
além dos Verões, também os Invernos eram agora muito secos, o desenvolvimento da floresta
estava porém fortemente condicionado pela redução da precipitação. Segundo Bennett et al.
(1991), a Europa das fases frias terá assim apresentado uma zonação fitogeográfica
semelhante à que na actualidade caracteriza a parte central da cadeia dos Himalaias, com uma
estreita banda de floresta temperada confinada às zonas montanhosas de média altitude e
apertada entre extensas áreas de tundra (para norte) e de estepe (para sul). Para estes autores,
essas zonas de refúgio das espécies temperadas teriam estado localizadas sobretudo nas
montanhas de Itália e dos Balcãs, a Península Ibérica tendo a este respeito tido uma
importância menor, seja devido à aridez do clima, seja devido à dimensão insuficiente dos
maciços montanhosos.
McIntyre et al. (1976), baseando-se nas relações hoje em dia existentes entre a
distribuição da vegetação e das massas de água polar, subpolar e de transição, reconstituem,
no entanto, a existência na fachada ocidental da Península Ibérica, por volta de 18 000 BP, de
duas estreitas bandas de orientação NW-SE que corresponderiam, durante o máximo
glaciário, às zonas boreal e temperada da vegetação europeia actual. Turner e Hannon (1988)
assinalam igualmente que, no presente, a distribuição das florestas de caducifólias ao longo
da costa atlântica do continente europeu está limitada pelas linhas isotérmicas de 12 e 18°C
das temperaturas superficiais da água do mar no mês de Agosto. Durante o máximo glaciário,
Portugal e o Noroeste de Espanha eram as únicas regiões da Europa situadas entre estes dois
limites, pelo que é natural que as espécies temperadas também tivessem aqui encontrado
áreas de refúgio, o que é confirmado pelo facto de os espectros polínicos descritos por estes
autores revelarem a presença de Quercus durante o Tardiglaciar da região (em Sanabria, por
exemplo).
Conforme se argumentou em trabalho anterior (Zilhão 1987a), e conforme Drury (1975) e
Wilson (1975) demonstraram para o caso do Périgord, a transposição para o Pleniglaciar dos
modelos de zonação vegetacional actuais resulta no entanto na simplificação abusiva de uma
realidade complexificada em extremo pelos processos de compressão latitudinal e altitudinal
52
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
provocados pelo avanço dos gelos. Esses processos devem, com efeito, ter tido como
consequência, nas regiões atlânticas do Sudoeste europeu, a combinação nas terras baixas
situadas entre a costa e os domínios periglaciares de montanha de tipos de vegetação que no
presente têm uma distribuição segregada. Em consequência, é muito provável que tenham
coexistido, em áreas de dimensão relativamente reduzida, espécies que actualmente são
consideradas como características de biomas muito distintos (estepe, floresta boreal, floresta
atlântica de caducifólias ou floresta mediterrânica de árvores de folha perene), distribuídas
pela paisagem em função das condições locais de topografia, de solos ou de insolação. No
caso da Península Ibérica, estes condicionalismos gerais do clima não permitem, assim,
postular à partida mais do que a existência de uma diferenciação biogeográfica segundo a
longitude, opondo, tal como no presente, um litoral ocidental mais húmido a uma Meseta na
época ainda mais árida. A relativa arborização do primeiro contrastaria assim marcadamente
com a estepe continental que devia cobrir a segunda.
É ainda no final do estádio isotópico 2, entre 16 000 e 13 000 BP, que se inicia o
processo de deglaciação do Atlântico Norte. O aumento da insolação estival (determinado
pelas variações da órbita da Terra) que se verifica nesta altura leva ao início da fusão das
calotes glaciares continentais situadas a latitude mais meridional, em resultado da qual o
nível das águas do mar começa a subir gradualmente. Segundo Ruddiman e McIntyre (1981),
este fenómeno terá originado, por seu lado, uma erosão das plataformas de gelo costeiras e
marinhas, acarretando uma redução da ordem dos 50% na volumetria das calotes glaciares,
embora a sua extensão se tenha mantido aproximadamente a mesma. A norte da frente polar,
agora estabilizada ao largo da Galiza (na fase anterior apresentava uma inflexão pronunciada
ao longo da costa portuguesa, com um limite meridional situado junto ao Cabo de São
Vicente — Duprat 1983), a superfície oceânica encontrava-se arrefecida pelo influxo das
águas frias provenientes da fusão das calotes glaciares e devia gelar à superfície durante o
Inverno, dificultando a evaporação e, portanto, o transporte de humidade pelos ventos de
oeste. A precipitação sobre os continentes tornava-se assim ainda mais reduzida, acentuando
as características de secura do clima, de tal modo que espécies animais que actualmente se
encontram confinadas às regiões estépicas e semidesérticas da Ásia central, como é o caso do
antílope saiga, aparecem nesta altura no Sudoeste da França, onde são abundantemente
caçadas pelas populações magdalenenses da época (Delpech 1989).
No início do estado isotópico 1, cerca de 13 000 anos BP, a geografia do Atlântico Norte
sofre uma mudança radical que marca o início do estabelecimento das condições pós-glaciares. A frente polar apresenta agora uma orientação NE-SW, do norte da Islândia até à
Terra Nova, e a área das calotes glaciárias reduz-se de forma considerável, embora a
diminuição volumétrica se faça a um ritmo menor do que anteriormente. Nos continentes, as
temperaturas sobem de forma considerável, e a precipitação aumenta, uma vez que as águas
menos frias do Atlântico Norte tornam possível uma maior evaporação. Em Inglaterra, por
exemplo, a temperatura média de Julho, estimada com base na composição das faunas de
coleópteros, sobe de 10 para 17°C, isto é, para valores semelhantes aos actuais. Em resposta,
as florestas (primeiro de vidoeiros e depois de pinheiros) começam a expandir-se para norte,
o que se reflecte nos perfis polínicos das turfeiras da Holanda, da Alemanha e da Dinamarca
sob a forma dos interestádios de Bølling e de Allerød (que, actualmente, há tendência para
reunir num episódio único, o intervalo frio existente entre ambos — Dryas II — sendo de
detecção difícil na maioria dos espectros do período), entre ≈13 000 e ≈11 000 BP. O curso
de estabelecimento das condições interglaciares actualmente vigentes sofre, no entanto, uma
curta mas significativa interrupção durante a crise climática do Dryas III, entre 11 000 e
10 000 BP, durante a qual a frente polar volta a descer até à latitude da Galiza.
Ambiente
53
2.3. Indicadores paleoambientais
2.3.1. Variação da linha de costa
Os dados apresentados por Dias (1985) e Rodrigues et al. (1991) para a parte norte da
plataforma continental portuguesa permitem calcular que, durante o máximo glaciário, a linha
de costa estaria situada entre as isobáticas de -130 e -140 m, subindo para -100 m durante a
primeira fase da deglaciação do Atlântico Norte, entre 16 000 e 13 000 BP. No período
seguinte, entre 13 000 e 11 000 BP, o mar subiu muito rapidamente até aos -40 m, para descer
de novo para a cota -60 durante o Dryas III.
Não existem dados para o período anterior a 20 000 BP. No litoral mediterrânico de
Espanha, porém, está registada uma fase trangressiva, com formação de terraços, entre
32 000 e 39 000 BP. Fenómeno semelhante está registado também na Tunísia, em Itália e em
França, sugerindo a existência de um nível marinho próximo do actual durante o grande
interestádio würmiano (Villaverde e Fumanal 1990:179-180). Na Gruta da Figueira Brava, os
níveis sobrejacentes a um conglomerado marinho relacionado com um nível de praia
transgressiva de 6-8 m (Antunes 1991) continham, além de conchas de mexilhão e lapa (estas
últimas datadas de ≈31 000 BP), restos de foca, golfinho e pinguim, sugerindo uma grande
proximidade do mar. É possível, assim, que a referida praia constitua testemunho de
fenómeno semelhante ao documentado no Mediterrâneo, e que, portanto, a costa portuguesa
tivesse, nesta época, uma configuração próxima da actual.
Os vertebrados marinhos da Figueira Brava indicam águas frias. A fauna de moluscos
com Patella safiana encontrada, em areias sobrejacentes ao conglomerado, noutros pontos do
litoral da Serra da Arrábida em que esta formação de praia transgressiva de 6-8 m pode ser
observada, indica, no entanto, águas quentes (Antunes 1991:491). A praia pode, portanto, ser
mais antiga, de idade interglaciar. De qualquer forma, a acentuada inclinação que a
plataforma continental apresenta no litoral da Arrábida implica que, se postularmos para esta
época um nível do mar idêntico ao do interestádio Bølling/Allerød (-40 m), a linha de costa
distaria da actual não mais do que algumas centenas de metros. A Figueira Brava continuaria
assim a estar suficientemente próxima do mar para que a presença de espécies aquáticas nos
depósitos arqueológicos não fosse difícil de explicar. Estes dados indicam que, na costa de
Sesimbra, durante o grande interestádio würmiano, a linha de costa não devia ocupar posição
muito diferente da actual, e que o nível do mar não devia certamente ter descido muito abaixo
da isobática dos 40 m.
QUADRO 2.1
Costa ocidental portuguesa
Temperatura superficial das águas do mar (°C)
18 000 BP
(McIntyre e Kipp 1976)
Fevereiro
Agosto
Minho
Estremadura
Algarve
4
8
10
18 000 BP
(Duprat 1983)
Fevereiro
Agosto
12
15
17
3
4
4
7
11
12
Actuais
Fevereiro
Agosto
12
14
16
18
19
24
2.3.2. Temperatura das águas do mar
Para o máximo glaciário, os dados apresentados por McIntyre e Kipp (1976) e por Duprat
(1983) são algo discordantes, conforme resulta da leitura do Quadro 2.1. Essas discrepâncias
devem-se, com toda a probabilidade, à diferente posição das sondagens feitas para colheita
das amostras utilizadas nos dois estudos. Os valores de Duprat são em princípio mais
54
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
fidedignos, visto terem sido calculados a partir de dados obtidos ao largo da costa portuguesa,
enquanto que o ponto mais próximo desta utilizado pelos primeiros autores se situava cerca
de 300 km a SW do Cabo de São Vicente, à latitude de 35°N. O abaixamento das
temperaturas é significativo, e permite caracterizar o litoral português como estando situado
acima da frente polar; a norte do Cabo da Roca, aliás, os foraminíferos de tipo árctico
correspondem a 80% dos conjuntos faunísticos analisados.
Não existem ainda dados para as fases anteriores ao máximo glaciário. A deglaciação,
pelo contrário, foi já objecto de estudos bastante detalhados (Ruddiman e McIntyre 1981;
Duprat 1983; Bard et al. 1987). Assim, entre 16 000 e 13 000 BP, as temperaturas no
Atlântico Norte não sofrem de um modo geral modificações significativas, mantendo-se frias
devido ao influxo das águas de fusão das calotes glaciares e ao deslocamento para sul dos
numerosos icebergues originados pela desagregação das margens do inlandsis escandinavo.
Na sondagem SU81-18, efectuada ao largo de Sines, a temperatura superficial das águas
do mar em Fevereiro, entre 14 500 e 12 500 BP, é idêntica à do máximo glaciário: cerca de
4°C (Bard et al. 1987:Fig. 1). Antes de 14 500 BP, porém, os valores citados por estes
autores — cerca de 12°C — encontram-se bastante próximos dos verificados actualmente
(cerca de 15°C), o que é confirmado pelas temperaturas de Verão calculadas por Duplessy et
al. (1992), na mesma sondagem, para o período imediatamente subsequente ao máximo
glaciário. Esta fase de aquecimento deve estar relacionada com uma pequena deslocação da
frente polar para norte, suficiente, dado o carácter abrupto dos gradientes térmicos existentes
nesta época, para implicar uma subida importante da temperatura das águas da costa
alentejana num momento compreendido entre 17 000 e 15 000 BP.
Entre 12 500 e 12 250 BP, as temperaturas registadas pelas associações de foraminíferos
da sondagem SU81-18 sobem bruscamente, a uma taxa de ≈4°C por século, para os valores
actuais. O Dryas III, no entanto, está bem marcado por uma descida das temperaturas de
Inverno, as quais, por volta de 10 400 BP, são de cerca de 6°C.
2.3.3. Glaciarismo
A glaciação da Serra da Estrela, datada por Daveau (1971) do Würm recente, ter-se-á
traduzido na formação de uma calote que, no máximo da sua extensão, teria tido uma área de
cerca de 70 km² e uma espessura de cerca de 80 m, recobrindo o planalto somital da serra,
nas suas vertentes viradas a norte, até à cota de 1650 m. Dela saíam diversas línguas
glaciares, a mais comprida das quais, com cerca de 13 km, sendo a do Zêzere, onde a
espessura dos gelos terá chegado a atingir cerca de 300 m, e cujas moreias terminais se
situam à cota de 680 m de altitude.
O glaciarismo das montanhas do Minho (Serra do Gerês, Serra da Peneda e Serra da
Cabreira), durante algum tempo controverso, é hoje plenamente aceite (Coudé-Gaussen 1981;
Daveau e Devy-Vareta 1985; Ferreira 1993). No Gerês, em que o fenómeno teve maior
expressão, desenvolvia-se, além de uma glaciação de planalto, onde os gelos podem ter
chegado a atingir uma espessura de 150 m, uma importante língua glaciária no vale do
Homem, que terá baixado pelo menos até à cota dos 725 m. A frescura das formas sugere, tal
como na Estrela, uma idade recente. Por outro lado, a não erosão dos depósitos arenosos
actualmente observáveis nas vertentes declivosas abaixo dos 600-700 m de altitude implica
que, no sopé destas montanhas englaciadas, a floresta tenha subsistido durante todo o
Pleniglaciar (Coudé-Gaussen 1981:199-200).
Os depósitos lacustres da Serra da Estrela que têm sido objecto de análises palinológicas
por uma equipa da Universidade de Utreque (Holanda) começaram a acumular-se, no caso do
Ambiente
55
Charco da Candeeira (situado a 1400 m de altitude), antes de 12 000 BP (Van der Knaap e
Van Leeuwen 1991), implicando, portanto, uma deglaciação relativamente precoce. No NW
de Espanha, segundo os dados de Turner e Hannon (1988), a fusão dos glaciares estaria já
completada, ou no mínimo muito avançada, entre 16 000 e 14 500 BP (a bacia lacustre do
Lago de Ajo, situado na cordilheira cantábrica a 1570 m de altitude, estava já deglaciada por
volta de 14 000 BP). É portanto provável que, nas montanhas portuguesas, a cronologia do
processo tenha sido semelhante.
2.3.4. Geomorfologia periglaciar
Daveau (1973) assinala a existência de manifestações periglaciares herdadas, na sua maioria
constituídas por depósitos crioclásticos de vertente, nas montanhas do Centro e Norte de
Portugal, geralmente a partir dos 700-800 m de altitude, e considera que a génese dessas
manifestações está relacionada com o máximo da última glaciação. No litoral ocidental, onde
identifica depósitos semelhantes nos relevos calcários de baixa altitude, nomeadamente na
Serra dos Candeeiros, é de opinião, porém, que a sua formação deverá ser atribuída a uma
fase mais recente, relacionada com a fusão do inlandsis escandinavo e, portanto, datável do
Tardiglaciar, entre 12 000 e 10 000 BP (Daveau 1973, 1980).
Como acima se viu, a fase de maior influxo de águas de fusão dos gelos no Atlântico
Norte terá sido, no entanto, a compreendida entre 16 000 e 13 000 BP (Ruddiman e McIntyre
1981), e é só entre 14 500 e 12 500 BP, e depois, menos acentuada e mais brevemente, entre
11 000 e 10 000 BP, que as temperaturas das águas do mar na costa portuguesa voltam a
baixar de forma significativa (Bard et al. 1987). Parece portanto mais lógico admitir, como se
havia já proposto em trabalho anterior (Zilhão 1987a), que a formação das cascalheiras
crioclásticas encontradas a baixa altitude na orla litoral datará sobretudo de época anterior a
12 000 BP, sendo com toda a probabilidade contemporânea do máximo glaciário.
Esta cronologia é confirmada pela datação da sequência da Lapa do Anecrial (ver vol. II,
capítulo 10). Nesta cavidade cársica, situada na encosta virada a norte do polje de Alvados, a
uma altitude de 340 m (cota semelhante à dos depósitos descritos por Daveau na Serra dos
Candeeiros), os níveis arqueológicos estão embalados em depósitos crioclásticos sem matriz.
A natureza proto-solutrense e solutrense das ocupações neles embaladas, a primeira das quais
está datada de ≈21 500 anos BP pelo 14C, demonstram sem margem para dúvidas que, nesta
região, os fenómenos de crioclastismo são de datação anterior ao (ou contemporânea do)
máximo glaciário. Os resultados preliminares obtidos na Lapa do Picareiro (ver vol. II,
capítulo 48), situada a quase 500 m de altitude, na vertente norte da Serra de Aire, confirmam
esta cronologia, embora indiquem que os processos de descamação das paredes por
gelifracção poderão ter continuado a fazer-se sentir (pelo menos a esta cota mais elevada)
durante os primeiros milénios da deglaciação.
Segundo Rodrigues (1991), as grèzes observáveis em diversos pontos das depressões de
Alvados e de Mira-Minde são atribuíveis ao Würm, sem mais precisões. No entanto, a autora
observa que a sua formação é anterior a uma fase de importante encaixe da rede hidrográfica,
relacionada com o máximo regressivo, o que implica uma cronologia anterior a 18 000 BP,
tal como na Lapa do Anecrial. Das características destes depósitos, esta autora deduz por
outro lado que o clima da época em que se formaram seria frio e húmido.
Ferreira (1985) assinalou a existência de diversos indícios de clima frio nas colinas da
região a norte de Lisboa: escombreiras de gelifracção nas vertentes calcárias, escoadas de
solifluxão nas zonas de substrato vulcânico. Estas «manifestações marginais e muito
atenuadas de um modelado crionival» são atribuídas a uma época em que as condições
climáticas da região seriam idênticas às actualmente verificadas nos cimos das Serras da
56
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Estrela, da Peneda e do Gerês, implicando um abaixamento das temperaturas médias da
ordem dos 8-10°C e um clima húmido, com precipitação relativamente abundante, em parte
sob a forma de neve. A época em causa seria o último Pleniglaciar, estas manifestações sendo
contemporâneas, portanto, do glaciarismo das montanhas do Centro e do Norte do país.
2.3.5. Preenchimentos cársicos
O estudo sedimentológico preliminar da sequência da Gruta do Caldeirão (Real 1985)
permitiu caracterizar o clima vigente durante o Solutrense como frio e húmido. As condições
mais rigorosas ter-se-iam verificado durante a deposição da camada H, ou seja, entre ≈21 000
e ≈20 000 BP, conclusão que é confirmada pela análise da susceptibilidade magnética dos
sedimentos (Ellwood, comunicação pessoal). Esta propriedade está relacionada com a
produção de minerais magnéticos no decurso da pedogénese dos sedimentos exteriores que,
arrastados pela erosão, acabam por se acumular no interior das grutas; em épocas de clima
mais quente, a pedogénese é mais intensa e os valores da susceptibilidade magnética são mais
elevados; em épocas de clima mais frio, passa-se o inverso; como mostra a Fig. 2.1, no caso
do Caldeirão, é nas camadas H e Fc que se regista o máximo de frio do estádio isotópico 2.
A análise geoquímica (Cruz 1990, 1993), por sua vez, sugere que a influência oceânica
na região terá diminuído de forma significativa entre o início do Paleolítico Superior (camada
Jb), em que é muito elevada, e o final do Solutrense (camada Fa), em que atinge os valores
mais baixos de toda a sequência (Fig. 2.1). O indicador utilizado para avaliar essa influência
foi a variação de um sal de origem marinha inquestionável, o cloreto de sódio, cujo teor nos
sedimentos se mediu em função da razão entre as quantidades de sódio e potássio presentes
na fracção solúvel. A utilização desta razão permite neutralizar o impacto das variações
ocorridas na quantidade de água entrada na gruta ao longo do tempo e reduzir a dois os
factores envolvidos na explicação das variações do indicador: força e direcção dos ventos; e
capacidade dos ventos marinhos para extrair água dos oceanos e transferi-la, sob a forma de
precipitação, para terra. A descida dos valores da razão sódio/potássio nos depósitos do
máximo glaciário é compatível com as conclusões do acima citado modelo de Gates (1976),
segundo o qual os fortes ventos de oeste que nesta época se teriam deslocado para a latitude
de 40°N (ou seja, a da Estremadura) seriam, pelo menos de Verão, relativamente secos: a
quantidade de água precipitável então existente na atmosfera do Hemisfério Norte devia ser
inferior em cerca de 37%, com efeito, aos valores actuais.
Uma tal tendência para a diminuição da humidade do clima, condicionando obviamente o
desenvolvimento da vegetação, poderia também explicar as variações ocorridas na velocidade
de sedimentação, que é em média duas e meia a seis vezes mais elevada durante o Solutrense.
A maior exposição dos solos à erosão, decorrente da maior rarefacção do coberto vegetal,
terá propiciado uma acumulação de sedimentos a ritmo mais elevado nas fendas e cavidades
do carso. No entanto, o concrecionamento litoquímico do topo da camada H aponta para a
ocorrência, entre ≈20 000 e ≈19 000 BP, ou seja, durante o episódio de Laugerie, de uma
oscilação de sinal inverso, em que a humidade ambiente terá aumentado significativamente.
Entre ≈18 000 e ≈16 000 BP, ou seja, no intervalo de tempo que corresponde ao episódio
de Lascaux, a estratigrafia da gruta do Caldeirão apresenta um hiato importante, durante o
qual se forma um chão estalagmítico sobre o topo da camada Fa. Os depósitos plistocénicos
sobrejacentes acumularam-se a uma velocidade semelhante à calculada para os depósitos
anteriores a 22 000 BP, o que se pode interpretar como indicando uma certa recuperação do
coberto vegetal. O contraste existente entre as numerosas sequências de gruta com vestígios
solutrenses e a raridade das cavidades com ocupações magdalenenses (além do Caldeirão, só
Buraca Grande, Lapa do Picareiro e Lapa do Suão) sugere que o padrão revelado pela
sequência da jazida de Tomar é passível de generalização. A explicação para essa raridade
Camadas K-I
início do
estádio isotópico 2
Paleolítico Paleolítico
Médio Superior
Camadas Fb-Fa
final do
estádio isotópico 2
← →
QUENTE
FRIO
3m
2m
1.0E-06
Susceptibilidade magnética
Camadas N-L
estádio isotópico 3
1.0E-05
57
Camadas H-Fc
máximo glaciário
Ambiente
1m
Fig. 2.1 - Paleoclimatologia da sequência da Gruta do Caldeirão. A razão entre o sódio e o potássio da fracção
solúvel dos sedimentos indica a variação da humidade de origem oceânica. A susceptibilidade magnética indica a
variação das temperaturas. A conjugação dos dois indicadores permite situar nas camadas H-Fc, entre 21 000 e
19 000 BP, o momento de maior rigor climático (frio e secura) do Plistocénico Superior estremenho.
poderá residir no facto de os maciços calcários da Estremadura terem sido recolonizados pela
floresta pouco depois do máximo glaciário. Em consequência, a sua frequentação humana
teria diminuído de importância, e o registo (ou preservação) de eventuais ocupações teria sido
dificultado pela reduzida taxa de sedimentação.
Os dados do Caldeirão apontam para que esse processo esteja relacionado com um novo
pico da influência oceânica, sugerindo que, entre ≈16 000 e ≈10 000 BP, a região terá voltado
a estar exposta à acção de fortes ventos do sector oeste, carregados de humidade. Ruddiman e
McIntyre (1981), no entanto, caracterizam a primeira fase da deglaciação, entre 16 000 e
58
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
13 000 BP, como de extrema secura. De Inverno, as águas do Atlântico Norte encontrar-se-iam geladas à superfície e, de Verão, cobertas de icebergues e mantidas muito frias pelo
influxo de grandes quantidades de água de fusão das calotes glaciares. Em resultado, a
evaporação seria reduzida e o transporte de humidade para os continentes mínimo. Embora
apoiada em registos paleoambientais que indicam para esta época condições áridas mesmo no
sul de Espanha (palinologia de turfeiras) e no Noroeste africano (baixos níveis lacustres), esta
reconstituição é sobretudo válida para as regiões de latitude elevada, a norte da frente polar,
onde teria deixado de haver estação húmida, sendo a aridez uma característica do clima ao
longo de todo o ano. Clima que, portanto, oscilaria entre Invernos frios e muito secos, por um
lado, e Verões relativamente quentes mas igualmente secos, por outro.
Mais a sul, porém, a situação poderá ter sido diferente. Na realidade, estes autores (op.
cit., p. 200-201) inferem destas condições a existência, a sul do paralelo 50°N, de
tempestades ciclónicas de inverno, de curso W-E, as quais, embora «pouco frequentes» e
«pouco desenvolvidas», poderiam ter contribuído para a criação na fachada atlântica da
Península Ibérica de condições bastante mais húmidas do que no resto do continente. A
interpretação dada por Pons e Reille (1988:260) do espectro polínico registado na turfeira de
Padul (Granada), situada a 785 m de altitude, é compatível com esta hipótese: «parece ser
possível reconhecer em Padul, por volta de 15 000 BP, uma mudança climática interpretável
como consistindo numa melhoria geral durante a estação de crescimento».
2.3.6. Geoarqueologia das estações de ar livre
As escavações e sondagens realizadas em diversas jazidas da região de Rio Maior permitiram
detectar padrões de localização e de estratificação que têm seguramente um fundamento
paleoambiental (Fig. 2.2). Nas jazidas do Paleolítico Superior inicial, como, por exemplo,
Vale Comprido - Cruzamento (vol. II, capítulo 22), a ocupação tem lugar directamente sobre
o substrato arenoso pré-plistocénico, e é fossilizada por areias eólicas pertencentes à mesma
formação sedimentar em que estava embalada, algumas dezenas de metros encosta abaixo, a
jazida proto-solutrense de Vale Comprido - Encosta (vol. II, capítulo 23). É muito provável,
portanto, que as primeiras ocupações do Paleolítico Superior situadas na planície aluvial
tenham sido sistematicamente erodidas: a sequência do Passal (vol. II, capítulo 31), por
exemplo, contem materiais rolados aurignacenses e gravettenses embalados em depósitos de
terraço fluvial acumulados em momento anterior ao Solutrense. É certamente por esta razão
que das prospecções realizadas na bacia de Rio Maior nunca resultou o achado de sítios da
parte inicial do Paleolítico Superior situados no fundo dos vales.
A grande maioria das jazidas conhecidas data do período imediatamente anterior ao
máximo glaciário (Gravettense final e Proto-Solutrense). A degradação do coberto vegetal e o
encaixamento dos vales propiciaram a erosão e remobilização eólica ou coluvionar do
substrato arenoso da bacia, criando envelopes sedimentares potentes que enterraram
rapidamente as ocupações e permitiram a respectiva preservação. Os entalhes fluviais estão
seguramente relacionados com a regressão marinha, tendo a erosão holocénica das vertentes
sido subsequentemente responsável pelo respectivo entulhamento (na Terra do Manuel —
vol. II, capítulo 19 — o nível do Gravettense final estava situado à cota do curso actual do
ribeiro). Nesta nova situação, as ocupações de fundo de vale implantadas nas praias fluviais
expostas pelo encaixamento regressivo, puderam pois, em certos casos, sobreviver à erosão e
ficar conservadas, também elas, no registo arqueológico.
O episódio húmido posterior a 18 000 BP que foi identificado na Gruta do Caldeirão
parece ter-se igualmente manifestado nas jazidas de ar livre sob a forma de processos
erosivos. No locus II de Cabeço de Porto Marinho (vol. II, capítulos 13 e 42), por exemplo, as
ocupações do Magdalenense antigo assentavam directamente sobre as do Gravettense final, a
Ambiente
59
Fig. 2.2 - Indicações paleoambientais fornecidas pelo estudo geoarqueológico das jazidas do
Paleolítico Superior da bacia de Rio Maior.
sequência apresentando aqui, portanto, um hiato (certamente erosivo) de cerca de 6000 anos,
no qual poderá residir a explicação para a ausência de níveis solutrenses na jazida. Na Terra
do Manuel, os níveis proto-solutrenses (camada 2) apresentavam uma truncatura erosiva. No
Olival da Carneira (vol. II, capítulo 30), os vestígios arqueológicos da camada 5 (Solutrense
superior) estavam em contacto directo com uma sequência eólica ou arenosa do Tardiglaciar,
separados dela por uma discordância erosiva, e apresentavam uma densidade bastante baixa,
sugerindo uma dispersão pós-deposicional em ambiente de baixa energia. É a fenómeno
idêntico que se devem certamente as características particulares da jazida solutrense do Casal
do Cepo, situada na região de Torres Novas (vol. II, capítulo 29).
A partir de 16 000 BP dá-se uma retomada do processo de sedimentação, documentada
em Cabeço de Porto Marinho pela acumulação de depósitos arenosos cujo processo de
formação, porém, não está ainda esclarecido. Durante o interestádio Bølling/Allerød verifica-se uma estabilização dos depósitos, com formação de paleosolos, relacionada com a
ocupação destes terrenos arenosos pela floresta. Na passagem ao Holocénico, finalmente,
regista-se novo episódio erosivo importante, documentado, no Olival da Carneira, pelos
processos de residualização que afectaram os vestígios do Magdalenense final e, no
Areeiro III (Bicho 1991), por um nível subjacente às ocupações do Epipaleolítico inicial que
continha materiais líticos rolados tipologicamente atribuíveis ao Paleolítico Superior.
Nas regiões costeiras, a sedimentação würmiana conhecida é de origem eólica. A
sequência de Vale Almoinha demonstra que o início deste processo deposicional é anterior a
20 000 BP, e tudo indica que ele deverá ter continuado activo durante o Tardiglaciar, uma
vez que as dunas fósseis do litoral de Torres Vedras também contêm jazidas do final do
Magdalenense, como as de Vale da Mata (vol. II, capítulo 47) e do Rossio do Cabo (vol. II,
capítulo 50). Conforme se argumentou em trabalho anterior (Zilhão 1987a), a acumulação de
areias eólicas em zonas situadas a mais de 20 km da costa de então sugere que a partir de
20 000 BP as planícies costeiras entretanto submersas pela transgressão marinha do Pós-glaciar corresponderiam a extensos campos de dunas cobertos por uma vegetação rasteira,
xérica, condicionada pela proximidade das frias águas oceânicas, provavelmente dominada,
segundo Mateus e Queirós (1993), por Artemisia.
60
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 2.2
Cabeço de Porto Marinho (Rio Maior)
Antracologia dos níveis do Magdalenense superior (12 000-11 000 BP) (a)
CPM I
Arbutus unedo
Cistus sp.
Erica arborea
Erica sp.
Fraxinus angustifolia
Leguminosae
Leg. t. Cytisus scoparius
Leg. t. Ulex sp.
Olea europaea var. sylvestris
Pinus pinaster/pinea
Pinus sp.
Pinha
Quercus de folha caduca
Quercus t. ilex
Quercus suber
Quercus sp.
Rhamnus alaternus/Phillyrea
Indetermináveis
TOTAL
N
%
N
CPM II
%
N
%
N
CPM IIIS
%
1
0,6
1
2
0,6
1,3
1
0,6
0,2
0,2
0,2
1,2
0,2
1,5
0,2
1,3
80,4
5,1
0,6
4,4
1,3
0,7
0,5
3,1
0,7
1,2
6,0
1,0
1,7
1,2
54,5
14,6
1
1
1
5
1
6
1
2
127
8
1
7
2
3
2
13
3
5
25
4
7
5
228
61
1
338
19
0,2
83,7
4,7
1,2
0,2
1,5
0,7
4,4
1,7
3,1
1,7
0,2
0,2
7,9
5
1
6
3
7
7
13
7
1
1
33
15
3,7
148
13
88,6
7,8
1
0,6
2
1,2
2
1,2
167
CPM III
158
418
404
(a) análises de I. Figueiral in Zilhão et al. (1995b)
QUADRO 2.3
Vegetação do máximo glaciário
Antracologia dos níveis arqueológicos do Gravettense final, Proto-Solutrense e Solutrense
CPM III
nível inferior (a)
N
%
Erica arborea
Erica sp.
Gimnosperma
Leguminosae
Leg. t. Cytisus scoparius
Pinus pinaster/pinea
Pinus sylvestris
Pinus sp.
Quercus cf. suber
Quercus sp.
Rhamnus alaternus/Phillyrea
Rosaceae Pomoidea
Indetermináveis
TOTAL
CPM III
nível médio (a)
N
%
41
4
36,0
3,5
2,6
2,6
7,0
Anecrial
camada 2 (b)
N
%
2
12
5
153
0,8
5,0
2,1
63,8
1
0,5
192
93,2
3
3
8
11
5,3
3
2,6
56
2
23,3
0,8
2
1,0
4
48
3,5
42,1
10
4,2
206
114
240
Caldeirão
camada H (c)
N
%
3
8,3
18
3
1
11
50,0
8,3
2,8
30,6
36
(a) segundo Figueiral (1993)
(b) segundo Figueiral (s.d.a)
(c) segundo Figueiral (s.d.b); existem também contagens para a camada Fa, as quais dão uma percentagem de Olea
europaea de cerca de 50%; os quadrados de onde provêm os carvões em causa tinham porém remeximentos
localizados; não se pode assim excluir a hipótese de a amostra analisada estar contaminada por materiais intrusivos
relacionados com a camada Eb sobrejacente, razão pela qual os dados em questão não são aqui apresentados
Ambiente
61
2.3.7. Palinologia de turfeiras
Diniz (1992, 1993) refere resultados de análises palinológicas de turfeiras litorais de idade
interestadial (datadas pelo radiocarbono entre 32 000 e 40 000 BP), uma delas situada na
costa alentejana (São Torpes), as restantes na costa a norte do Cabo Carvoeiro (entre Ferrel e
a lagoa de Óbidos). Segundo a autora, a jazida de Vale Benfeito pode ser tomada como
representativa destas últimas. Os espectros polínicos caracterizam-se aí pela dominância de
Pinus e de ericáceas, o vidoeiro (Betula) e os carvalhos (Quercus) estão representados em
percentagens moderadas, e assinala-se a presença de espécies mediterrânicas (pólen de Olea e
de tipo Quercus ilex).
Estes espectros reflectem uma «paisagem aberta, costeira, sob condições climatéricas
húmidas e ventosas, de tipo oceânico», e permitem confirmar a hipótese anteriormente
referida segundo a qual, na fachada ocidental da Península Ibérica, a compressão latitudinal e
altitudinal das zonas de vegetação características dos períodos interglaciares deu origem,
durante a última glaciação, a paisagens sem equivalente contemporâneo, onde, na mesma
região, coexistiriam espécies boreais, atlânticas e mediterrânicas. Mateus e Queirós (1993)
esboçam uma proposta de zonação fitoecológica destas espécies em função das condições
edáficas, da altitude, e dos microclimas: carvalhais em habitats protegidos, de folha caduca
nos vales mais húmidos, de espécies marcescentes e de folha perene em zonas mais secas ou
de solos calcários; landes, charnecas e pinhais nos interflúvios de substrato arenoso; estepes e
prados no topo dos maciços, acima dos 300-400 m de altitude.
Não existem perfis polínicos para o Pleniglaciar, a não ser os obtidos a partir das vasas
dos fundos oceânicos amostradas numa sondagem realizada ao largo da costa alentejana,
frente a Vila Nova de Milfontes (Hooghiemstra et al. 1992). Conforme assinalam Mateus e
Queirós (1993), porém, os diagramas são de difícil interpretação, dado reflectirem padrões de
vegetação à escala continental. As análises realizadas pela equipa da Universidade de
Utreque nas turfeiras da Serra da Estrela com depósitos de idade tardiglaciar são ainda
preliminares e não foram publicadas, pelo que uma abordagem detalhada das configurações
vegetacionais então existentes no território português não é actualmente possível. Mateus e
Queirós (1993:125) assinalam, porém, que os dados polínicos dos níveis do Holocénico
inicial das turfeiras do Noroeste alentejano sugerem «uma extensão razoável do pinhal
bravo» sobre os campos de dunas acumulados durante o máximo glaciário.
2.3.8. Macro-restos vegetais
Os níveis de vasa aflorando na baixa mar que se podem observar na praia da Cortegaça
contêm restos de árvores em posição primária. Alguns destes restos foram já classificados e
objecto de datação absoluta. Trata-se de Pinus sylvestris, e a sua cronologia radiocarbónica
está compreendida entre 28 100±150 e 22 600±550 BP (Granja 1993). Os estudos da
plataforma continental (Rodrigues et al. 1991) permitiram demonstrar que, durante o
Pleniglaciar e a deglaciação, o litoral a sul do canhão submarino do Douro correspondia a
uma costa arenosa. É provável que o mesmo se passasse entre 30 000 e 20 000 BP. As
árvores datadas corresponderão portanto, com toda a probabilidade, aos vestígios que
chegaram até nós de um pinhal silvestre que teria ocupado os solos arenosos da costa norte
durante a última glaciação (ou, pelo menos, durante a fase anterior ao máximo glaciário).
A realização de estudos antracológicos permitiu já a obtenção de alguns elementos para a
caracterização do entorno vegetal das várias ocupações humanas do locus III de Cabeço de
Porto Marinho (Figueiral 1993). Nos níveis do Gravettense final (cerca de 22 000 BP), só
estão representados, além de leguminosas indeterminadas, ericáceas (Erica arborea e
Erica sp.) e pinheiros (Pinus pinaster/pinea e Pinus sp.). Nos níveis do Magdalenense
superior (cerca de 11 000 BP), o espectro é muito mais amplo. Aos pinheiros mediterrânicos,
62
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
juntam-se agora o medronheiro (Arbutus unedo), o freixo (Fraxinus angustifolia), o
zambujeiro (Olea europaea) e os carvalhos, tanto de folha caduca como de folha persistente,
incluindo o sobreiro (Quercus suber). No que respeita ao final do Paleolítico Superior, estes
resultados repetem-se nos outros loci já analisados (Quadro 2.2), e mostram um clima
temperado e uma vegetação actual, de tipo mediterrânico, em conformidade com o facto de as
ocupações em causa estarem todas elas datadas do interestádio Bølling/Allerød. Nesta época,
a zonação fitoecológica da zona compreenderia assim pelo menos duas unidades: o pinhal
instalado sobre os solos de substrato arenoso terciário e quaternário, incluindo com toda a
probabilidade o próprio local onde se situa a jazida; e a floresta mediterrânica, onde aos
carvalhos de folha persistente e caduca se juntavam as espécies do maquis, e que estaria
provavelmente instalada nos solos calcários das elevações próximas (a jazida situa-se no sopé
da vertente meridional da Serra de Candeeiros).
Segundo Figueiral (1993), os dados referentes aos níveis gravettenses de Cabeço de Porto
Marinho III são de mais difícil interpretação. A quase exclusividade dos carvões de Pinus no
conjunto recolhido no nível inferior, por exemplo, pode estar relacionada mais com uma
eventual natureza episódica da ocupação nele documentada do que com a realidade do
coberto vegetal envolvente. No que respeita ao nível médio, porém, a diversidade é maior, e
dela resulta uma imagem não muito diferente da que se obteve na Lapa do Anecrial (Quadro
2.3). Neste caso, porém, trata-se efectivamente de carvões provenientes de uma única
estrutura de combustão, onde o eventual peso das escolhas humanas não pode de facto ser
ignorado.
Em qualquer dos casos, é patente o carácter marcado do contraste existente entre estes
dois conjuntos (os mais numerosos e variados dos conjuntos antracológicos pleniglaciares até
agora analisados) e os do Bølling/Allerød (Fig. 2.3). É provável que esse contraste esteja
relacionado com o facto de, durante o máximo glaciário, os pinhais que ocupavam os terrenos
arenosos dos interflúvios da margem norte da bacia terciária do Tejo serem formações muito
abertas, onde as árvores se agrupariam em maciços isolados distribuídos de maneira
descontínua pela charneca de urzes e leguminosas (giestas?). Os dados da camada H da Gruta
do Caldeirão mostram, por outro lado, que, nesta época, os carvalhais e as essências
mediterrânicas continuavam presentes nas regiões calcárias de altitude mais baixa, os
primeiros certamente confinados ao fundo dos vales mais húmidos e as segundas cobrindo
parcialmente as vertentes de solos pedregosos e secos.
O peso dos carvões de Pinus sylvestris na lareira da Lapa do Anecrial, em contraste com
a ausência desta espécie em Cabeço de Porto Marinho (onde as espécies arbóreas que
compõem as formações de pinhal são os Pinus pinaster/pinea), demonstra que, durante o
máximo glaciário, havia, conforme já anteriormente se havia postulado (Zilhão 1987a), uma
diferenciação fitogeográfica importante entre as serras, colinas e planaltos do Maciço
Calcário Estremenho, acima dos 200 m, por um lado, e as terras baixas da respectiva
periferia, por outro. Actualmente, nas regiões mediterrânicas, o pinheiro silvestre é uma
espécie característica do andar subalpino, o qual, nos Pirenéus orientais, está compreendido
entre os 1200 e os 1600 m de altitude. Na Europa atlântica, esta espécie pertence à parte
superior do andar montano, entre os 1300 e os 1600 m, onde ocupa sobretudo as vertentes
mais secas e os solos mais pobres (Huetz de Lemps 1970:56-65). Em Portugal, só existe em
estado natural no Gerês, acima dos 1000-1200 m de altitude (Coudé-Gaussen 1981:201),
estando ausente da Serra da Estrela, onde o limite das árvores era constituído pela floresta de
carvalho negral (Quercus pyrenaica).
Empurradas pelo avanço dos gelos e pela desertificação das montanhas do soco
paleozóico, de vertentes desnudadas pelo clima periglaciar, as espécies dos respectivos
andares montano e subalpino vieram assim encontrar refúgio nas elevações da orla litoral. A
Ambiente
63
Fig. 2.3 - Configurações vegetacionais do máximo glaciário e do interestádio Bølling/Allerød reveladas pela
análise antracológica de contextos arqueológicos. Em Cabeço de Porto Marinho, a baixa altitude, pode
reconstituir-se, cerca de 22 000 BP, uma paisagem de charneca com pinhal esparso e, cerca de 11 000 BP, um
pinhal denso com um sub-bosque de urzes e leguminosas. Na Lapa do Anecrial, a altitude mais elevada, os
pinheiros do máximo glaciário pertencem à espécie Pinus sylvestris.
ocorrência de Pinus sylvestris no Planalto de Santo António, hoje em dia 400 a 500 m acima
do nível do mar (550 a 650 m durante o máximo glaciário), constitui assim um exemplo claro
do fenómeno de compressão latitudinal e altitudinal sofrido pela zonação interglaciar da
vegetação europeia durante o máximo glaciário. Por outro lado, a sua presença nas serras e
planaltos da Estremadura, em contraste com a sua ausência nas jazidas arqueológicas da
bacia de Rio Maior, aponta para a existência em terra de gradientes climáticos determinados
pela altitude tão abruptos como os revelados pela variação latitudinal da temperatura das
águas do Atlântico ao longo da costa portuguesa.
Segundo Huetz de Lemps (1970), o pinheiro silvestre forma uma floresta clara com sub-bosque abundante, e suporta bem tanto solos muito húmidos no Inverno como muito secos
no Verão. Segundo Mateus e Queirós (1993), por outro lado, é provável que os pinhais
formados por esta espécie nas terras mais altas da Estremadura estivessem associados a uma
estepe fria e continental com Artemisia, para a qual existem analogias em formações actuais
do piso alpino das montanhas da Cordilheira Central.
2.3.9. Moluscos terrestres
Callapez (1992) estudou os moluscos terrestres dos quadrados O/13-14 da camada Eb da
Gruta do Caldeirão. Nesta zona da gruta, os níveis arqueológicos não apresentavam indícios
de intrusões pós-paleolíticas. Foi neles que se colheram as amostras de fauna (ossos de
coelho) que permitiram datar a deposição da camada do período entre ≈16 000 e ≈10 000 BP
(vol. II, capítulo 9). As conclusões extraídas do referido estudo — associação faunística,
incluindo Cepaea nemoralis, característica de biomas florestados ou semiflorestados —
podem portanto aplicar-se com segurança à determinação dos paleoambientes existentes no
vale do Nabão durante o processo de deglaciação.
64
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Os moluscos das camadas subjacentes não foram ainda estudados. É nítido, porém, que
há um empobrecimento em espécies e em número de indivíduos, sugerindo um contraste
marcado com as condições vigentes durante a deposição da camada Eb. A fauna das camadas
3 e 4 da Lapa dos Furos, também com Cepaea nemoralis, documenta a existência na região,
durante o estádio isotópico 3, de ambientes florestados semelhantes aos que nela se terão
instalado após o máximo glaciário.
2.3.10. Micromamíferos
Póvoas et al. (1992) publicaram recentemente resultados do estudo da fauna de roedores dos
níveis plistocénicos da Gruta do Caldeirão. A presença de Allocricetus bursae nas camadas
do Moustierense final e do Solutrense é interpretado como demonstrando a existência na
região, no início do estádio isotópico 2 e durante o máximo glaciário, de ambientes de estepe
continental que ocupariam provavelmente o topo dos cabeços e planaltos calcários. O
desenvolvimento de paisagens abertas desse tipo é igualmente documentado pela abundância
de Microtus arvalis e a ocorrência de Chionomys nivalis. Na actualidade, este último habita
regiões de montanha do centro e sul da Europa, em ambientes de pradaria pedregosa,
encostas rochosas e bosques abertos situados abaixo da linha das neves permanentes, em
especial nas vertentes ensolaradas (Burton 1978). Pode deduzir-se, assim, a existência na
região de Tomar, durante o Würm recente, de biótopos do género (por exemplo, as vertentes
cobertas de escombreiras de gelifracção actualmente observáveis ao longo do vale do Nabão).
A presença de Apodemus sylvaticus e de Eliomys quercinus documenta, por seu lado, a
manutenção de ambientes de floresta temperada ocupando provavelmente o fundo dos vales
mais abrigados. A fauna da camada Eb (Fig. 2.4), em que Terricola duodecimcostatus atinge
os valores percentuais mais elevados da sequência, onde já não ocorrem formas estépicas e
onde são importantes as percentagens de Apodemus sylvaticus e de Eliomys quercinus, sugere
o estabelecimento na região, após o episódio de Lascaux, de um clima de tipo mediterrânico.
2.3.11. Grandes mamíferos
As faunas de grandes mamíferos do estádio isotópico 3 estão actualmente documentadas por
um só conjunto: o das camadas N-L do Caldeirão, ainda não estudado. Na camada K
sobrejacente, porém, foram recolhidos restos de castor (Castor fiber), corço (Capreolus
capreolus) e javali (Sus scrofa) (Zilhão 1987a), cuja presença pode ser interpretada como
indicando uma perduração na região, no início do estádio isotópico 2, de nichos da floresta
temperada que devia cobrir a região no período anterior.
Os conjuntos faunísticos da Foz do Enxarrique e da camada 2 da Figueira Brava
(Antunes 1989, 1991; Cardoso 1992) datam já do início do estádio isotópico 2. Os materiais
paleontológicos da Figueira Brava, porém, foram publicados sem que fosse discriminada a
sua proveniência estratigráfica precisa. Uma vez que, segundo Cardoso (1992), a fauna da
camada 3 era «escassa», em contraste com a da camada 2, que é descrita como «abundante»,
parece legítimo, apesar de tudo, partir do princípio de que os materiais em questão terão
estado contidos, originalmente, nos depósitos correspondentes a esta última. No que respeita
aos restos de mamíferos marinhos, nomeadamente, é lógico supor que estivessem associados
às conchas de lapa que permitiram obter uma cronologia de cerca de 31 000 anos BP, isto é,
do início do último Pleniglaciar, para a acumulação do contexto.
O conjunto escavado na Foz do Enxarrique é constituído, na sua quase totalidade, por
restos de cavalo (Equus caballus), auroque (Bos primigenius) e veado (Cervus elaphus),
associação que é característica do Plistocénico superior ibérico em geral e não permite
realizar inferências paleoclimáticas precisas. Na camada 2 da Figueira Brava, assumem
relevância paleoecológica especial as presenças da foca árctica (Pusa hispida) e do pinguim
Ambiente
65
Fig. 2.4 - A fauna de roedores do Magdalenense da Gruta do Caldeirão sugere que, a partir de 16 000 BP, os
maciços calcários da Estremadura teriam sido colonizados pelo bosque mediterrânico.
gigante (Pinguinus impennis, actualmente extinto), espécies que, no Holocénico, ficaram
restringidas a águas muito mais setentrionais. No entanto, no caso da foca árctica, de
distribuição circumpolar, tem sido registada a ocorrência de alguns indivíduos nas costas do
Mar do Norte (Inglaterra, Alemanha, Países Baixos), onde vêm passar o Inverno (Burton
1978). A extensão da sua distribuição para sul documentada na Figueira Brava permite
sugerir que, no início do estádio isotópico 2, as condições ambientais vigentes no litoral
português seriam do tipo das actualmente documentadas na Europa atlântica. A presença de
restos de Capra pyrenaica, porém, indica que as zonas mais elevadas da Serra da Arrábida
(que culmina a cerca de 500 m de altitude) já nesta época se encontrariam desnudadas.
A identificação nesta cavidade litoral de restos de Elephas primigenius (mamute),
espécie das estepes continentais que na região franco-cantábrica foi sempre rara, mesmo
durante os períodos mais frios, está, no entanto, em contradição com esta reconstituição. A
referida identificação é, porém, altamente questionável. Ela baseia-se exclusivamente na
classificação de um fragmento de lamela de molar de proboscídeo (Cardoso 1992:168) que
poderá pertencer antes a Elephas antiquus, espécie a que o mesmo autor atribui o exemplar
muito mais completo da Foz do Enxarrique, de cronologia contemporânea. O outro único
resto atribuído a mamute em Portugal é um fragmento de fémur de elefantídeo proveniente do
Algar de João Ramos (Alcobaça). Da cronologia obtida pelo 14C para uma amostra de ossos
dos níveis plistocénicos fossilíferos desta jazida (14 400±330 BP, ICEN-349), Cardoso
(1992:167) depreende que o referido exemplar pertencerá necessariamente a um mamute,
dado que o elefante antigo, em tal data, se encontrava já extinto. Deve notar-se, porém, que
os níveis em causa tinham uma espessura compreendida entre 1 e 2 m, pelo que nada obsta a
que o depósito contivesse restos de fauna mais antigos do que os representados na amostra
que foi datada. Não se podendo excluir a existência na jazida de níveis datáveis do estádio
isotópico 3 ou do início do 2, parece mais lógico, portanto, admitir que o fragmento de fémur
de proboscídeo em causa pertencerá antes a Elephas antiquus. Tanto mais quanto, como se
verá adiante, os conjuntos faunísticos da faixa litoral do Ocidente peninsular pertencentes ao
período posterior a 18 000 BP (do qual, aceitando-se que a sua idade seria a indicada pela
único resultado cronométrico obtido para a jazida, dataria este suposto resto de mamute) não
parecem compatíveis com uma presença tardiglaciar da espécie na região.
As restantes faunas da primeira parte do estádio isotópico 2, desde há ≈30 000 anos até
ao máximo glaciário de há ≈18 000 anos, estão bem documentadas, entre outros, pelos
conjuntos da camada 2 do Pego do Diabo, dos níveis II e III de Salemas, e das camadas Fa-Jb
66
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
da Gruta do Caldeirão (Zilhão 1987a; Cardoso e Antunes 1989; Cardoso 1992). A presença
de camurça (Rupicapra rupicapra) nestes níveis, em contraste (no caso do Caldeirão) com a
sua ausência dos estratos depositados durante o interestádio (camadas N-L) e a deglaciação
(camada Eb), demonstra um arrefecimento acentuado do clima. Nas áreas onde esta espécie
actualmente habita (bosques de montanha, por vezes acima da linha das árvores), as
temperaturas médias de Janeiro variam, com efeito, entre 0 e -20°C. A presença da cabra-montês (Capra pyrenaica) nos mesmos níveis revela igualmente a existência nas imediações
destas três jazidas de áreas escarpadas e de solos rochosos com vegetação rasteira. A
existência de tais condições a cotas compreendidas entre os 100 e os 300 m implica
igualmente um clima frio e seco, acentuado pelas características sempre mais xéricas das
regiões calcárias, e é, por outro lado, um exemplo mais do abaixamento pronunciado então
sofrido pelos andares alpino e subalpino das montanhas ibéricas, onde as duas espécies de
caprídeos ainda subsistem na actualidade. A extensão destes biótopos às pequenas elevações
de toda a orla litoral é revelada pela abundância da cabra-montês na jazida paleontológica da
Gruta das Fontainhas, situada na Serra de Montejunto, que continha um conjunto faunístico
em que se incluíam igualmente o cavalo e o veado e que foi datado de ≈22 000 BP (Cardoso
1992). A cabra-montês está ainda representada nos níveis pré-solutrenses das grutas do Vale
do Poio (maciço do Sicó) e, segundo Roche (1979), nas camadas 8-9 (que são solutrenses,
apesar de por ele erradamente atribuídas ao Magdalenense) da Lapa do Suão, a 100 m de
altitude. Tendo em conta que a espécie existia na Arrábida já no início do estádio isotópico 2,
é de presumir a sua subsequente persistência na região ao longo de todo o Pleniglaciar, o
mesmo devendo ter acontecido nas serras do Alentejo, dada a sua representação entre as
figuras animalistas da arte parietal da Gruta do Escoural (Santos et al. 1980).
A fauna de grandes mamíferos da camada Eb da Gruta do Caldeirão está em acentuado
contraste com este panorama. Não só desaparecem as espécies alpinas1, e reaparecem as de
floresta (castor, corço e javali), como deixam igualmente de estar representadas as espécies
que preferem os espaços abertos de planície ou relevo suave, com pradarias, como o cavalo
(Equus caballus) e o auroque (Bos primigenius). Os restos faunísticos são agora dominados
esmagadoramente pelo coelho (Oryctolagus cuniculus) e pelo veado (Cervus elaphus),
associação que prefigura o espectro faunístico que é característico das jazidas do carso
mediterrânico de baixa altitude datadas do Tardiglaciar e do Holocénico. Tal como o
indicavam também os moluscos e os micromamíferos, a região deve, portanto, nesta época,
ter sido recolonizada pela floresta.
2.4. Reconstituição
Com base nos indicadores anteriormente discutidos, torna-se possível esboçar uma
reconstituição das condições ambientais vigentes no território português durante a parte final
da última glaciação. A região litoral situada entre Tejo e Mondego é a única para que se
dispõe de dados minimamente seguros relativos às diversas fases que se podem discriminar
no interior do período. É a essa região que, portanto, se limitará em grande medida a tentativa
de reconstituição que adiante se proporá.
2.4.1. Grande interestádio würmiano (antes de 32 000 BP)
A escassez dos dados apenas permite uma reconstituição esboçada a traço muito grosso dos
paleoambientes do estádio isotópico 3. A fauna de moluscos terrestres da Lapa dos Furos e a
perduração do castor, do corço e do javali na fauna do início do estádio isotópico 2 da
camada K da Gruta do Caldeirão indicam uma paisagem florestada para os relevos calcários
1
Em trabalho anterior (Zilhão 1987a:Fig. 3), fazia-se menção à existência de ossos de Capra na camada Eb. Os
raros restos em questão correspondiam, porém, a intrusões neolíticas (ver Zilhão 1992b).
Ambiente
67
de baixa altitude da Estremadura central. No litoral, a palinologia das turfeiras mostra a
expansão coeva do pinhal e dos carvalhais. Não é impossível, porém, que, a altitudes mais
elevadas, subsistissem ainda extensões significativas de paisagem aberta, com coberto vegetal
de tipo estépico. Estes indicadores encontram confirmação nos valores da susceptibilidade
magnética dos depósitos interestadiais da Gruta do Caldeirão, que sugerem para esta época
condições climáticas temperadas, não muito diferentes das presentes.
2.4.2. Início do Pleniglaciar (32 000-22 000 BP)
Embora não haja dados precisos sobre as paleotemperaturas oceânicas, o facto de o pinguim
gigante e a foca árctica frequentarem as praias do litoral abrigado situado entre o Cabo
Espichel e Setúbal indica águas mais frias do que as actuais. As condições ambientais na
Estremadura desta época seriam assim, provavelmente, análogas às que actualmente se
encontram nas costas do mar do Norte, em conformidade com a degradação das temperaturas
em terra registada na susceptibilidade magnética da sequência do Caldeirão. Deve ter-se em
conta, no entanto, que está em causa um período de uma dezena de milhares de anos, durante
o qual podem ter ocorrido oscilações importantes. A abundância dos restos de camurça em
grutas situadas a baixa altitude, como Salemas ou o Caldeirão, o aumento da humidade
ambiente indicado pelos valores da razão sódio/potássio nos sedimentos da camada Jb desta
última jazida, bem como a relativa estabilidade dos solos sugerida pelas características dos
sítios de ar livre do Aurignacense e do Gravettense antigo da bacia de Rio Maior, combinam-se para sugerir um clima frio, mas também húmido. O pico de humidade do Würm recente
deve ter sido atingido na parte final deste período, conforme se pode inferir a partir da maior
competência dos cursos de água documentada pelos terraços baixos da região de Rio Maior,
os quais contêm artefactos rolados do Paleolítico Superior inicial. É provável, portanto, que
tenha sido por esta altura (≈25 000 BP?) que se constituíram os glaciares das altas montanhas
do Centro e do Norte. As condições ambientais vigentes na região de relevos acidentados
situados muito próximo do oceano que é o Minho encontram analogias actuais no sul da
Patagónia e na Nova Zelândia, onde os glaciares descem sobre uma floresta de sopé. Nas
costas arenosas a sul do Douro está documentada uma floresta litoral de Pinus sylvestris.
2.4.3. Máximo glaciário (22 000-18 000 BP)
O clima continua frio (o abaixamento estimado para as temperaturas da Península Ibérica
pelos modelos globais implica temperaturas médias abaixo de zero nos meses de Inverno),
mas torna-se mais seco, conforme indicado pelos valores mínimos da razão sódio/potássio
apurados para os níveis solutrenses do Caldeirão (camadas Fa-I): os fortes ventos do
quadrante oeste associados à instalação da frente polar por volta da latitude de 40°N extraem
das águas muito frias do oceano menos humidade do que no presente. O impacto destas
condições sobre o coberto vegetal é considerável (Fig. 2.5): a estepe de altitude do andar
alpino das montanhas ibéricas desce para o topo dos maciços calcários, onde se combina com
florestas claras de pinheiro silvestre em que o sub-bosque é constituído por urzes e por outras
plantas arbustivas da família das leguminosas. O desnudamento das vertentes e o encaixe dos
vales fluviais propiciam a erosão dos terrenos terciários de substrato arenoso, dando origem
ao coluvionamento das vertentes e mesmo, nalgumas regiões do interior (bacia de Rio Maior
e também ao longo de ambas as margens da parte final do curso do Tejo), à acumulação de
areias e siltes por acção do vento. A extensa planície litoral posta a descoberto pela regressão
devia estar também ela coberta de dunas (de que se encontram actualmente testemunhos na
região de Cambelas, então situada a 30 km da linha de costa), sobre as quais se desenvolveria
uma vegetação xérica, de características estépicas. Os carvalhais e as espécies mediterrânicas
estariam nesta altura confinados às zonas interiores mais abrigadas, de solos calcários, e os
interflúvios arenosos corresponderiam a uma charneca com manchas de pinhal bravo esparso,
frequentada pelos herbívoros dos grandes espaços abertos (cavalo e auroque).
68
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 2.5 - Reconstituição das condições paleoambientais da Estremadura portuguesa durante o clímax do estádio
isotópico 2 (22 000-18 000 BP).
Ambiente
69
Fig. 2.6 - Reconstituição das condições paleoambientais da Estremadura portuguesa no início do estádio isotópico
1, durante o interestádio Bølling/Allerød (13 000-11 000 BP).
70
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
2.4.4. Episódio de Lascaux (18 000-16 000 BP)
A existência de uma fase de melhoria climática nesta época, inicialmente proposta com base
em estudos arqueopalinológicos realizados na região franco-cantábrica, tem sido contestada
com base nos resultados da palinologia de turfeiras, os quais não indicam, nem no leste de
França (La Grande Pile e Les Echets), nem no sul de Espanha (Padul), a ocorrência nesta
época de qualquer interestádio. Em Portugal, porém, a situação parece clara: ao largo de
Sines, por volta de 17 000 BP, as paleotemperaturas oceânicas registam valores de 12°C no
Inverno (inferiores aos actuais em apenas 3°C); muitas das sequências estratigráficas
formadas no período precedente apresentam hiatos sedimentares ou truncaturas erosivas; e,
na base da camada Eb (datada de cerca de 16 000 BP), a geoquímica do preenchimento do
Caldeirão regista um novo pico de humidade relacionada com os ventos marítimos de oeste.
2.4.5. Início da deglaciação (16 000-13 000 BP)
Nas regiões litorais do centro de Portugal, o início do processo de restabelecimento das
condições de tipo interglaciar datará, assim, do episódio de Lascaux. As paleotemperaturas
oceânicas, porém, registam uma nova fase de degradação a partir de 14 500 BP, quando as
águas da costa de Sines voltam a ser tão frias quanto as do máximo glaciário (4°C no
Inverno). Em terra, a única manifestação reconhecível dessa nova fase parece ser a retomada
do processo de acumulação de areias documentado na sequência de Cabeço de Porto Marinho
pelos níveis estéreis que nalguns loci separam o Magdalenense antigo (≈16 000 BP) do
superior (≈12 000 BP). Não está ainda esclarecido, porém, se no processo volta a estar
envolvido o vento ou se ele se dá apenas por coluvionamento da grande duna acumulada no
local durante o máximo glaciário. As faunas de moluscos, de roedores e de grandes
mamíferos da camada Eb do Caldeirão sugerem que, nos relevos calcários das imediações,
estaria já instalado o bosque temperado, o que é confirmado pela ausência do cavalo, que
indica uma efectiva retracção dos espaços abertos, e da cabra-montês e da camurça,
confirmando que os ambientes de tipo alpino e subalpino já haviam começado a sua retirada
para as terras altas do interior. Porém, a baixa resolução da sequência magdalenense desta
jazida, relacionada com uma importante diminuição da taxa de sedimentação, não permite
afastar a hipótese de ter havido, entre 16 000 e 10 000 BP, oscilações paleoclimáticas
significativas (e consequentes modificações paleoambientais) cujos sinais não tenham ficado
registados nos depósitos (ou neles não sejam legíveis).
2.4.6. Interestádio Bølling/Allerød (13 000-11 000 BP)
Na orla litoral, a partir de 13 000 BP, as condições ambientais são de tipo interglaciar
(Fig. 2.6). Os conjuntos antracológicos dos níveis do Magdalenense superior de Cabeço de
Porto Marinho sugerem um pinhal denso de Pinus pinaster/pinea instalado sobre os solos
arenosos da região, e a recolonização dos relevos calcários da Serra de Candeeiros pelo
carvalhal. Deve também datar desta época a instalação do pinhal bravo holocénico sobre os
campos de dunas formados ao longo da costa durante o máximo glaciário. No contexto da
transgressão (o mar está agora à cota de -40 m), porém, a acumulação de areias eólicas
continua em certos pontos do litoral pelo menos até ao início do Boreal, conforme se
depreende da datação da base da duna consolidada do Magoito (Pereira e Correia 1985).
2.4.7. Dryas III (11 000-10 000 BP)
No registo oceânico, verifica-se uma descida das paleotemperaturas para valores bastante
baixos (6°C no Inverno, ao largo de Sines). Não há, no entanto, de momento, elementos que
permitam ajuizar até que ponto as condições interglaciares vigentes em terra desde cerca de
13 000 BP terão, ou não, sido afectadas por esta crise de forma significativa.
3. TECNOLOGIA LÍTICA
As observações realizadas no decurso da análise dos diversos contextos que foram objecto
dos estudos monográficos apresentados no vol. II deram origem a reconstituições das
estratégias de exploração da pedra neles representadas. Identificaram-se assim, por um lado,
uma tecnologia de base que subsistiu ao longo de quase todo o Paleolítico Superior e, por
outro, características próprias de determinada indústria ou grupo de indústrias. No presente
capítulo, tentar-se-á investigar a justeza dessas inferências, avaliando nomeadamente até que
ponto os padrões observados estão, de facto, relacionados apenas com aspectos específicos
do comportamento tecnológico, ou se a sua fundamentação não deverá antes ser buscada
também, pelo menos em parte, em domínios de explicação alternativos (como sejam, por
exemplo, a tafonomia dos sítios, a economia das matérias-primas, as preferências estilísticas
ou a funcionalidade das ocupações). Simultaneamente, procurar-se-á proceder à identificação
de agrupamentos de conjuntos líticos (ou de indústrias) singularizados pela recorrência e
exclusividade de características indiciadoras de comportamentos tecnológicos particulares.
Os diversos agrupamentos discriminados por uma tal análise comparativa serão, assim,
objecto de uma primeira definição de fundamento tecnológico, com base na qual será então
possível abalançarmo-nos a uma discussão mais profunda e global da forma como ao longo
do tempo foram variando as economias da pedra praticadas pelos grupos humanos do
Paleolítico Superior português. Essa discussão será realizada no capítulo 5 deste volume.
Uma vez que o objectivo da comparação é também, em parte, o de permitir discernir padrões
de significado cultural-estratigráfico, ela exige necessariamente, porém, um conhecimento
prévio da cronologia dos conjuntos utilizados na análise. Um quadro sintético da forma como
os dados existentes permitem agrupar e ordenar cronologicamente os diferentes contextos do
Paleolítico Superior português pode ser encontrado no Quadro 3.1, ordenamento esse que
será o utilizado nas restantes figuras e quadros deste capítulo.
As jazidas que no referido quadro sintético foram assinaladas a negro são aquelas para
que se dispõe de datações absolutas e em que, portanto, se baseia a fixação dos parâmetros
gerais da sequência. A atribuição às diferentes fases da periodização apresentada no
Quadro 3.1 das colecções provenientes de contextos que não puderam ser cronometricamente
datados foi feita com base em critérios de natureza arqueológica (estratigráficos ou
tipológicos). Como é óbvio, a aplicação desses critérios pressupõe naturalmente uma
comparação com contextos datados de proveniência regional relevante (isto é, escavados ou
recolhidos em Portugal ou nas regiões adjacentes do Sudoeste europeu). Sendo um ponto de
partida para a análise tecnológica global que se fará neste capítulo, o quadro sintético em
causa é também, portanto, um ponto de chegada, uma conclusão, uma vez que se alicerça nos
diagnósticos realizados caso a caso no decurso do estudo monográfico das colecções.
Diagnósticos cuja correcção, aliás, os estudos comparativos deste capítulo e dos que se lhe
seguem permitirão igualmente pôr à prova.
As zonas sombreadas do Quadro 3.1 correspondem a períodos de tempo para os quais se
não dispõe de contextos cronometricamente datados ou, tais contextos existindo, a sua
natureza ou constituição não permitem uma atribuição minimamente segura com base em
argumentos arqueológicos. Os indícios existentes a seu respeito são referidos, mas uma
fundamentação detalhada do significado que é atribuído a esses indícios só será apresentada
nos capítulos 5 e 6. Deve igualmente esclarecer-se, por outro lado, que a expressão
«Fontesantense» corresponde à designação que neste volume se adoptará para as indústrias
com «pontas de Casal do Felipe» dos sítios da Fonte Santa e do Casal do Felipe (ver vol. II,
72
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 3.1
Crono-estratigrafia do Paleolítico Superior português (a)
Idade dos sítios e componentes de sítios (b)
IDADE BP
PERÍODO
SÍTIOS DE AR LIVRE
SÍTIOS DE GRUTA E ABRIGOS SOB ROCHA
28 000
Aurignacense
Vale de Porcos I; Vale de Porcos II;
Vascas
Escoural; Pego do Diabo (cam. 2); Salemas
26 000
Gravettense
antigo
Estrada da Azinheira; Vale Comprido
(Barraca; Cruzamento); Vascas
Caldeirão (cam. Jb); Casa da Moura; Salemas
(nível III)
Gravettense
médio (?)
pontas de la Gravette em Buraca Escura, Covão, Fontainhas e Furninha
23 000
Fontesantense
Casal do Felipe; Fonte Santa
22 000
Gravettense final
CPM II (base do nível inferior); Picos; Terra
do Manuel (1940-42); Vascas
Buraca Escura (base do Conjunto 2); Casa da
Moura
22 000-21 000
Proto-Solutrense
Açude do Alvorão; Cardina I; Cova da Moura;
CPM II (topo do nível inferior); CPM III
(nível médio); Gato Preto; Terra do José
Pereira; Terra do Manuel (1988-89, cam.
2s); Terra do Manuel (1988-89, cam. 2); Vales
da Senhora da Luz; Vale Comprido - Encosta;
Vascas
Almonda (zona AMD1, cam. 3); Anecrial
(cam. 2); Buraca Escura (topo do Conjunto
2); Buraca Grande (base do Conjunto 9);
Caldeirão (cam. I-Ja); Furadouro; Picareiro;
Salemas
Solutrense
inferior
pontas de face plana com retoque plano invasor de Vale Comprido
20 500
Solutrense
médio
Casal do Cepo; Monte da Fainha; Vale
Comprido; VALE ALMOINHA
Anecrial (cam. 1); Caldeirão (cam. H);
Escoural; Furninha
20 000-18 000
Solutrense
superior
Baío; Olival da Carneira (cam. 5); Passal;
Porto Dinheiro; Rua de Campolide
Almonda (zona AMD1, cam Β); Buraca
Grande (topo do Conjunto 9); Caldeirão
(cam. Fa-Fc); Casa da Moura; Lapa da
Rainha; Ourão; Poço Velho; Salemas (nível
II); Suão (cam. 8-9)
Solutreo-gravettense (?)
pontas crenadas de dorso, sobre lamela, em Carneira e Caldeirão
16 000-15 000
Magdalenense
CPM I (nível inferior); CPM II (nível
antigo (fácies CPM) médio)
15 000-14 000
Magdalenense
antigo (fácies
Cerrado Novo)
Magdalenense
«médio»
Caldeirão (base da cam. Eb)
Cerrado Novo; Vascas
vareta decorada da Buraca Grande datada pelo radiocarbono
12 500-11 000
Magdalenense
superior
CPM I (nível superior); CPM II (nível
superior); CPM III (nível superior);
CPM IIIS (nível médio); CPM IIIT (nível
superior); Vale da Mata; Vascas
11 000-10 500
Magdalenense final
(fácies
Rossio do Cabo)
Pinhal da Carneira; Rossio do Cabo
10 500-10 000
Magdalenense final
(fácies Carneira)
Bairrada; Cabana da Horta; Cardina II;
Carneira I; Carneira II; Olival da Carneira
(cam. 3-4); Quinta da Barca Sul; Vascas
Buraca Grande (Conjunto 6); Caldeirão
(topo da cam. Eb); Picareiro; Suão
BOCAS I (CAM. 0-1)
(a) em casos duvidosos, adoptaram-se as atribuições julgadas mais prováveis (ver capítulo 5); no caso do Proto-Solutrense, seguiu-se o «modelo em três etapas» (ver também capítulo 5)
(b) escavações antigas, ESCAVAÇÕES ANTIGAS DATADAS, recolhas de superfície modernas, escavações modernas, escavações
modernas datadas; as faixas sombreadas correspondem aos períodos de tempo para os quais não existem ainda jazidas de
atribuição segura; CPM = Cabeço de Porto Marinho
Tecnologia lítica
73
capítulos 11 e 15). Embora a distribuição do seu fóssil director pareça estar circunscrita ao
território português (Zilhão 1988d, 1993b), tudo indica que se trata de indústrias da parte
final do Gravettense (imediatamente anteriores à fácies com lamelas de dorso truncadas que,
na Terra do Manuel, se encontra datada de cerca de 22 000 BP). O primeiro destes dois sítios,
objecto de escavações modernas, foi adoptado como jazida epónima da indústria, e o
segundo, escavado nos anos 40 por Manuel Heleno, como jazida epónima do tipo lítico em
causa, que nela foi pela primeira vez descoberto.
O carácter parcelar, truncado ou diminuto de algumas colecções, ou o facto de, noutros
casos, a respectiva análise estar ainda incompleta, não permitiu a respectiva utilização nos
estudos tecnológicos cujas conclusões se procurará apresentar neste capítulo. Para a maior
parte dos períodos discriminados no Quadro 3.1 foi possível dispor, apesar de tudo, de
colecções de dimensão suficiente, e será nelas que, no essencial, se baseará a análise
comparativa a que se procederá de seguida. Para alguns períodos, em particular para o
Solutrense superior (que é, contraditoriamente, o mais bem representado em termos de
número de ocorrências), os dados existentes não são suficientes para uma abordagem
quantitativa, pelo que, de um modo geral, não serão tidos em consideração. A tecnologia
lítica desta época apenas será tratada, por isso, no capítulo 5, no quadro da caracterização
global, baseada em grande medida em argumentos de natureza qualitativa, do respectivo
sistema de produção lítica. O mesmo acontecerá em parte com o Magdalenense antigo, para o
qual, no que respeita a uma das suas fácies (a fácies mais antiga que foi identificada em
Cabeço de Porto Marinho), apenas se dispõe de dados obtidos de forma indirecta, a partir das
análises realizadas por Bicho (1992).
3.1. Padrões de fragmentação
3.1.1. Relação com a triagem das colecções e a tafonomia dos sítios
O universo estudado era constituído por conjuntos líticos com condições de formação
bastante diversificadas. Os das reservas do M.N.A. (Museu Nacional de Arqueologia)
provinham, nalguns casos, de recolhas de superfície (aparentemente sistemáticas no caso de
Vale de Porcos II), mas a grande maioria correspondia a colecções constituídas a partir de
escavações antigas, sujeitas a triagem tanto inicialmente, no campo, como, depois, em
gabinete. Noutros casos, porém, estava-se perante espólios fornecidos por escavações
modernas. Os sítios ou componentes de sítios em que esses espólios haviam sido recolhidos
tinham no entanto contextos tafonómicos bastante diferentes: uns estavam essencialmente em
posição primária, outros tinham sido parcialmente afectados por processos erosivos
(residualização, transporte a curta distância), outros ainda eram claramente redepositados.
Importava assim, em primeiro lugar, investigar até que ponto estas condições de formação
afectavam as características dos espólios que haviam sido objecto de estudo, de modo a,
simultaneamente, avaliar a viabilidade e limitações da respectiva análise comparativa.
Fora já com esse objectivo, aliás, que se tinha procedido ao registo sistemático dos
padrões de fragmentação das classes de artefactos que haviam sido seleccionadas para estudo
mais pormenorizado. Com efeito, era de prever, por um lado, que os processos de triagem por
que haviam passado as colecções antigas tivessem afectado de forma preferencial o material
partido; e, por outro lado, que, nas colecções modernas provenientes de contextos submetidos
a importantes processos de atrição, a percentagem de peças fracturadas fosse superior à
verificada nas provenientes de contextos que não tivessem sofrido perturbações pós-deposicionais significativas.
74
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 3.2
Suportes alongados
Padrões de fragmentação (a)
Lâminas
Época frequência média do carenagem
de
relativa de índice de inteiras vs.
escavação inteiras carenagem partidas
Lamelas
Todos
frequência carenagem
relativa inteiras vs.
de inteiras partidas
largura
média
(cm)
Vale de Porcos I
A
23% (220)
3,40
<
31% (39)
2,04
Vale de Porcos II
M
17% (103)
3,12
<
— (1)
2,74
Vale Comprido - Barraca
A
59% (185)
3,08
=
53% (94)
Vale Comprido - Cruzamento
M
27% (22)
3,12
<
— (4)
Casal do Felipe
A
33% (150)
4,14
<
50% (157)
<
1,23
Fonte Santa
M
9% (129)
4,46
<
8% (173)
<
1,22
Terra do Manuel (1940-42)
A
37% (122)
3,68
<
40% (314)
<
1,06
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
M
36% (101)
3,63
<
29% (170)
<
1,17
CPM III (nível médio)
M
48% (111)
3,24
<
54% (167)
=
1,15
Terra do José Pereira
A
60% (115)
3,33
<
53% (120)
<
1,29
Vales da Senhora da Luz
A
39% (295)
3,65
<
34% (105)
=
1,53
Vale Comprido - Encosta
A
58% (284)
3,58
<
57% (110)
<
1,57
Casal do Cepo
M
12% (130)
3,76
=
11% (140)
=
1,18
Vale Almoinha
A
50% (123)
4,19
<
53% (95)
=
1,27
Olival da Carneira (cam. 5)
M
8% (12)
3,76
17% (41)
=
1,02
Cerrado Novo
A
— (4)
77% (448)
= (b)
0,60
Vale da Mata
A
43% (37)
3,96
=
61% (131)
=
0,83
Olival da Carneira (cam. 3-4)
M
15% (98)
3,87
=
28% (213)
=
1,08
=
1,49
1,77
(a) A - antiga; M - moderna; entre parêntesis, os valores de N correspondentes aos totais das amostras de lâminas e
de lamelas de sílex que foram analisadas; os resultados da comparação estatística (teste t) das médias dos índices
de carenagem apuradas para os subconjuntos de inteiras e de partidas são válidos para um nível de significância
de 0,05
(b) só foram medidas as inteiras, pelo que a afirmação da inexistência de diferença resulta de uma avaliação
empírica que não foi estatisticamente verificada
Os dados do Quadro 3.2 confirmam essa expectativa. Com efeito, nas escavações antigas,
o peso das peças inteiras entre os restos de debitagem alongados varia entre 23% e 60% no
caso das lâminas, e entre 31% e 77% no caso das lamelas. Nas modernas, a variação dá-se,
respectivamente, entre 8% e 48%, e entre 8% e 54%. Verifica-se, no entanto, que três dos
cinco sítios que foram objecto de escavações modernas (Fonte Santa, Casal do Cepo e Olival
da Carneira), e que tinham percentagens particularmente baixas de peças inteiras, eram sítios
de estratificação pouco profunda ou que estavam afectados de forma significativa por
processos de perturbação pós-deposicional.
O impacto destes factores na fragmentação dos conjuntos de lâminas e lamelas das
colecções estudadas pode ser melhor avaliado mediante a consulta dos gráficos da Fig. 3.1.
Destes gráficos (bem como dos que constituem as Figs. 3.2-3.5) foram excluídos os conjuntos
do Quadro 3.2 em que o total de produtos alongados era inferior a 100 (os de Vale
Comprido - Cruzamento e da camada 5 — solutrense — do Olival da Carneira) e em que,
portanto, os resultados da análise eram susceptíveis de distorção devida a uma amostragem de
dimensão insuficiente. A relação entre fragmentação e época de escavação foi examinada
para o universo das lamelas, dado se tratar das peças de menor tamanho e, por isso, no caso
das colecções antigas, em que as esquírolas estão marginalmente representadas, as mais
sujeitas a perda preferencial (por deficiências de recolha ou por critérios de descarte). A
relação entre fragmentação e condições de jazida foi examinada para o universo das lâminas,
cujas maiores dimensões permitiam considerá-las, à partida, como mais sujeitas a fracturas
por acção dos agentes naturais de atrição. Para a elaboração do respectivo gráfico partiu-se
Tecnologia lítica
75
Fig. 3.1 - Relação entre o estado de fragmentação dos suportes alongados, a época de escavação e as condições de
jazida do material em sílex dos conjuntos líticos analisados. As lamelas partidas tendem a estar sub-representadas
nas colecções antigas, ao passo que, entre as lâminas, a variação da percentagem de peças inteiras é sobretudo
função da natureza dos depósitos.
por outro lado do princípio de que, nas estações em que não tinha sido possível realizar
trabalhos modernos de controlo estratigráfico (Casal do Felipe, Vale de Porcos, Terra do José
Pereira e Vale Comprido - Barraca), a natureza dos depósitos em que estavam embaladas as
colecções provenientes das escavações antigas devia ser semelhante à que foi observada nos
sítios datados da mesma época que se encontram situados nas proximidades e em contexto
geomorfológico semelhante .
76
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Agrupando as colecções em função das condições de jazida, constata-se então que a
maior parte das antigas apresenta para o peso percentual das lâminas inteiras valores
próximos dos apurados para as modernas incluídas na mesma categoria. Particularmente
significativo a este respeito é, aliás, o que se passa com a jazida da Terra do Manuel/Vales da
Senhora da Luz, onde os valores respectivos são praticamente idênticos em conjuntos
provenientes de trabalhos de campo realizados a quase 50 anos de distância: 36% no das
escavações recentes e 37%-39% nos das antigas. No caso das lamelas destas três colecções,
porém, o intervalo de variação é já bastante mais amplo: 29% e 34-40%, respectivamente.
Deste modo, parece legítimo concluir que os critérios de triagem que produziram as
colecções antigas devem efectivamente ter afectado as lamelas partidas, cuja frequência nas
colecções modernas é, em regra, significativamente superior à que se verifica nas antigas,
confirmando que, nestas últimas, as lamelas partidas terão sido objecto de um descarte
preferencial e, consequentemente, deverão estar sub-representadas nos espólios que chegaram
até nós. Já no que respeita às lâminas, porém, a verdadeira linha de separação entre conjuntos
parece ser a que diz respeito às respectivas condições de jazida. A Fig. 3.1 revela, com efeito,
que a aplicação deste critério dá origem à conformação de três grupos bem definidos:
•
o dos conjuntos provenientes de recolhas de superfície (Vale de Porcos II), de níveis
arqueológicos situados a profundidade reduzida e perturbados pelos trabalhos agrícolas
(Fonte Santa), ou de estratos bastante enterrados mas afectados por processos erosivos
(Casal do Cepo e Olival da Carneira); neste grupo, as percentagens de lâminas inteiras
variam entre 9% e 17%;
•
o dos conjuntos que se encontravam embalados em areias eólicas, em contextos de
sedimentação rápida, estratificação profunda e alteração pós-deposicional de um modo
geral restrita a pequenas deslocações verticais do material de menores dimensões; neste
grupo, as peças inteiras representam sempre mais de 40% do total de lâminas, tanto nas
escavações antigas (Vale Comprido - Encosta, Vale Almoinha ou Vale da Mata) como
nas modernas (Cabeço de Porto Marinho);
•
o dos conjuntos que se encontravam em estratos enterrados, protegidos das perturbações
holocénicas, mas embalados em depósitos coluvionares contendo material grosseiro e
apresentando indícios da ocorrência de perturbações pós-deposicionais de alguma
importância (como a deformação que afectou a camada 2s da área escavada em 1988-89
na Terra do Manuel); neste grupo (o das jazidas das imediações da Senhora da Luz), as
lâminas inteiras não representam, de um modo geral, mais de 40% do total.
No que diz respeito a este último grupo, há no entanto duas excepções importantes, as de
Vale Comprido - Barraca e Terra do José Pereira, conjuntos em que as percentagens em
causa são aliás praticamente idênticas (59% e 60%, respectivamente). A consulta do Quadro
3.2 permite no entanto constatar que estas duas colecções são também as que apresentam
médias do índice de carenagem com valores mais baixos, particularmente a primeira. Ou seja,
são aquelas em que o material apresentava maior robustez, logo maior resistência aos agentes
de atrição. A Fig. 3.2 ilustra aliás de forma clara a relação inversa que de um modo geral
existe, para os diversos conjuntos de lâminas, entre a média do índice de carenagem e a
percentagem de inteiras: quanto mais baixo é o primeiro, mais elevada a segunda. Relação
que, portanto, reforça a interpretação segundo a qual o estado de fragmentação do material
analisado é de facto, em primeiro lugar, função das condições de jazida. O caso que mais
significativamente se afasta desta norma é o de Vale Almoinha, cujo conjunto laminar
apresenta uma das mais elevadas percentagens de lâminas inteiras (50%), apesar de o
respectivo índice de carenagem (4,19) ser também um dos mais elevados. Trata-se porém de
um conjunto que se presume ter beneficiado de excelentes condições de jazida e, portanto, de
uma excepção que, aparentemente, confirma a regra.
Tecnologia lítica
77
Fig. 3.2 - Relação entre a variação da percentagem de peças inteiras e o valor médio do índice de carenagem dos
conjuntos laminares em sílex analisados. De um modo geral, quanto maior é a robustez do material (ou seja,
quanto mais baixo o índice de carenagem), maior é a frequência relativa das peças inteiras.
Fig. 3.3 - Representação das peças atribuíveis à fase plena da debitagem (lâminas sem córtex e com secção
trapezoidal) nos subconjuntos de peças inteiras e de peças partidas dos conjuntos laminares em sílex analisados.
De um modo geral, essa representação é significativamente mais elevada entre as partidas.
78
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 3.4 - Representação das peças de bordos paralelos nos subconjuntos de peças inteiras e partidas dos conjuntos
laminares em sílex analisados. De um modo geral, essa representação é significativamente mais elevada entre os
fragmentos mesiais do que entre as peças inteiras (as duas classes de fragmentação em que a morfologia dos
bordos foi objecto de observação e registo).
Fig. 3.5 - Relação entre o tamanho dos produtos alongados (medida através da sua largura média) e a existência de
diferença estatística (medida pelo teste t para um nível de significância de 0,05) entre os índices de carenagem das
lâminas de sílex inteiras e partidas dos conjuntos líticos, analisada em função da dimensão da amostra de peças
não fracturadas. De um modo geral, quanto menor é o referido tamanho, e quanto menor é, portanto, a quantidade
de lâminas (e, logo, de lâminas inteiras) existente num determinado conjunto lítico, maior é a probabilidade de a
comparação dos subconjuntos de inteiras e partidas não revelar (em parte devido à reduzida dimensão de uma das
amostras comparadas, a das inteiras) diferenças estatisticamente significativas quanto ao índice de carenagem. É
sobretudo nas indústrias magdalenenses que estas condições se verificam, razão pela qual é só nelas que as peças
inteiras podem funcionar como amostra representativa das características métricas do conjunto dos suportes
alongados, com a possível excepção da fácies representada na Carneira, onde a produção de lâminas se reveste de
novo de certa importância quantitativa.
Tecnologia lítica
79
Os outros dois casos em que há uma percentagem de inteiras superior a 40% são os de
Cabeço de Porto Marinho (nível médio do locus III) e Vale da Mata. Neste último, a média
do índice de carenagem é também relativamente elevada (3,96). No primeiro, onde as
condições de jazida parecem ter sido tão boas quanto as das duas jazidas de Cambelas, a
média apurada para este índice (3,24) é uma das mais baixas. Estas discrepâncias mostram
como os padrões de fragmentação do material, apesar do peso preponderante que o factor
tafonómico tem na respectiva constituição, são também influenciados de forma clara por
outros factores. Assim, as «excepções à norma» que constituem os conjuntos laminares de
Vale Almoinha e Vale da Mata devem ter certamente algo a ver, pelo menos em parte, com o
facto de se tratar de colecções antigas, triadas, em que o material partido deve estar até certo
ponto sub-representado.
3.1.2. Relação com a economia da debitagem
Já a «excepção às excepções» que é o nível médio de CPM III poderá, por seu lado, estar
relacionada antes com o impacto de factores tecnológicos e económicos como os que também
terão influenciado, certamente, as elevadas percentagens de peças inteiras apuradas para Vale
Comprido - Barraca e para a Terra do José Pereira. No caso da primeira destas duas
colecções (ver vol. II, capítulo 21), as lâminas inteiras haviam sido interpretadas, com efeito,
como correspondendo, de um modo geral, a subprodutos da conformação de núcleos
destinados à produção de lamelas. Esta interpretação baseava-se, entre outros, no facto de se
tratar de material em grande parte cortical, sendo de apenas 8% a percentagem das lâminas
que podiam ser atribuíveis à fase plena da debitagem. No caso da segunda colecção (ver
vol. II, capítulo 20), a apreciação qualitativa do material laminar apontava também para que
se tratasse sobretudo de material residual, estando representadas na jazida sobretudo as peças
irregulares e espessas produzidas no decurso da fase inicial da debitagem.
O carácter pelo menos parcialmente oficinal destas duas jazidas, em que os produtos que
constituíam o objectivo final das cadeias operatórias podem ter sido objecto, em grande parte,
de exportação ou transformação (ou estar incluídos na categoria dimensional de lamelas),
explica assim, certamente, a percentagem elevada de peças inteiras encontrada nos conjuntos
laminares delas provenientes. Sendo na sua maior parte constituídos por peças espessas
produzidas na fase inicial da debitagem, esses conjuntos eram, portanto, na sua globalidade,
mais resistentes aos factores de atrição e, em consequência, o peso percentual do material
inteiro era neles mais elevado. Se essa sua maior resistência favorecia uma taxa de
sobrevivência superior à verificada em colecções provenientes de contextos idênticos, era
natural que, inversamente, a representação dos produtos efectivamente pretendidos, além de
ser percentualmente mais reduzida, tendesse a fazer-se sobretudo através de material partido,
quer a respectiva fragmentação fosse devida a causas coevas da ocupação (acidente de
debitagem ou de utilização acarretando descarte imediato), ou subsequentes a ela (fractura
preferencial, por atrição pós-deposicional, do material de proporções menos robustas).
Argumentação semelhante havia também sido oportunamente expendida a propósito de Vale
de Porcos (ver vol. II, capítulo 4), onde, no locus I (escavação antiga), só 29% das lâminas
inteiras eram atribuíveis à fase plena da debitagem e onde, no locus II (onde havia sido muito
importante a incidência dos processos de atrição), essa percentagem era nula (as lâminas
inteiras destes dois conjuntos apresentando, aliás, os índices de carenagem mais baixos de
todas as colecções analisadas). O gráfico da Fig. 3.3 confirma esta interpretação.
Aceitando a validade dos critérios de faseamento da debitagem utilizados neste estudo
(cuja fundamentação se discutirá adiante), o peso percentual das lâminas inteiras nas
diferentes colecções (bem como as respectivas características tecnológicas) parece, assim,
estar sobretudo dependente das condições de jazida, por um lado, e do carácter mais ou
menos oficinal das ocupações, por outro. A estes dois factores pode juntar-se um terceiro, o
80
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
da finalidade da debitagem de produtos alongados. Em colecções como as de Vale
Comprido - Barraca e CPM III (nível médio), com efeito, as elevadas percentagens de peças
inteiras estão relacionadas com valores muito baixos da média dos índices de carenagem
(Fig. 3.2), e podem explicar-se em parte como consequência de a debitagem estar orientada
para a produção de lamelas. Em consequência, as lâminas corresponderão na sua quase
totalidade a produtos de conformação, caracterização que é compatível com o facto de estas
duas colecções apresentarem para as lâminas inteiras percentagens de material atribuível à
fase plena da debitagem que são dos mais baixos de todas as colecções (Fig. 3.3).
Em qualquer dos casos, resulta com toda a clareza desta discussão que as peças inteiras
não podem ser tomadas como constituindo uma amostra fidedigna das características da
debitagem laminar: o Quadro 3.2 mostra, sem margem para dúvidas, como os respectivos
índices de carenagem são sistematicamente mais baixos que os das partidas. Estas últimas,
além disso, apresentam de um modo geral percentagens muito mais elevadas de peças de
bordos paralelos ou subparalelos, conforme se pode verificar pela consulta do gráfico da
Fig. 3.4 (do qual se encontram excluídas uma parte importante das colecções, devido a
possuírem um número demasiado reduzido de fragmentos mesiais — os únicos em que o
atributo foi registado — suficientemente grandes para permitir um diagnóstico fidedigno da
forma original da peça). Essa consulta põe em evidência, com efeito, que a única excepção à
regra que se acaba de enunciar é a representada pela colecção proveniente das escavações
antigas na Terra do Manuel. O estado de fragmentação do material tem portanto um impacto
significativo nas características dos conjuntos, tanto quantitativas como qualitativas.
Excluindo os conjuntos magdalenenses (discutidos adiante), os casos em que se verifica
não haver diferença, quanto ao índice de carenagem, entre lâminas inteiras e partidas, são só
os de Vale Comprido - Barraca e do Casal do Cepo. No primeiro caso, essa ausência de
diferenciação pode estar relacionada com a já acima referida exportação sistemática dos
produtos extraídos na fase plena da debitagem (lâminas estreitas e lamelas), de tal modo que
os abandonados na jazida, tanto inteiros como partidos, pertencerão na sua grande maioria à
fase inicial. Esta explicação é compatível com o facto de, em Vale Comprido - Barraca, o
rácio «núcleos para lâminas:núcleos para lamelas» ser de 0,12, enquanto o rácio
«lâminas:lamelas» é, contraditoriamente, de 1,97. No segundo caso, pode tratar-se de um
artefacto das condições de jazida excepcionalmente adversas, que terão originado um grau de
fragmentação superior ao normal, de tal modo que mesmo o material de maior robustez terá
acabado por se partir em consequência das perturbações pós-deposicionais. O facto de os
comprimentos médios dos fragmentos de lâminas serem, no Casal do Cepo (onde estão
compreendidos entre 1,99 e 2,82 cm), tal como na Fonte Santa (1,95-2,63 cm), os mais
pequenos de todas as colecções analisadas, suporta essa interpretação, uma vez que, em
jazidas contemporâneas de tecnologia semelhante mas situadas em contexto deposicional
mais favorável, os valores respectivos são mais elevados: 2,53-3,18 cm em Vale Almoinha e
2,75-3,03 cm no Casal do Felipe. Há que ter em conta, porém, que o contraste que resulta
desta comparação é também um contraste entre colecções modernas (Casal do Cepo e Fonte
Santa) e colecções antigas (Vale Almoinha e Casal do Felipe), e que, portanto, pode também
estar relacionado com os critérios aplicados na triagem que condicionou a constituição actual
destas últimas.
3.1.3. Relação com o tamanho das peças
Os conjuntos de época magdalenense, porém, configuram uma situação de afastamento total
em relação à norma, situação que não pode ser explicada recorrendo a argumentos de
natureza circunstancial como os que acabam de se propor para Vale Comprido - Barraca e
para o Casal do Cepo. Nestes casos, com efeito, não é só entre as lâminas que se verifica a
ausência de distinção entre inteiras e partidas quanto à média dos índices de carenagem: o
Tecnologia lítica
81
mesmo acontece também entre as lamelas. Por outro lado, nos conjuntos laminares do
Magdalenense também não se apurou, a este respeito, qualquer diferença estatística entre
lâminas atribuíveis às fases inicial e plena da debitagem (Quadro 3.4). Estes factos verificam-se tanto em Vale da Mata e no Cerrado Novo (escavações antigas em sítios com boas
condições de jazida) como nas camadas 3-4 do Olival da Carneira (escavação moderna em
sítio afectado por processos erosivos), pelo que nem a história das colecções nem a tafonomia
das jazidas podem explicar completamente o facto de estes conjuntos se comportarem de
forma distinta da que se verifica nos de épocas anteriores.
Essa explicação deverá, assim, ser de natureza tecnológica. A Fig. 3.5 procura
precisamente evidenciar um dos factores que, a este nível, poderá ser responsável pelas
características específicas dos conjuntos magdalenenses: as menores dimensões do material
alongado. A sua consulta permite, com efeito, constatar que esses conjuntos estão todos
incluídos no grupo das indústrias em que esse tamanho médio é menor (quer ele seja avaliado
em função da largura média da totalidade dos produtos alongados, como se fez na referida
Fig., quer o seja mediante o uso do rácio lâminas:lamelas, uma vez que ambos os indicadores
dão, conforme se pode verificar pelos dados dos Quadros 3.2 e 3.8, resultados equivalentes
em termos comparativos). Estas peças que, de modo geral, são mais pequenas, são, também
de modo geral, obtidas em fase plena ou final das sequências de debitagem e, por isso
mesmo, constituem um conjunto mais homogéneo, porque a fragmentação do material não
pôde afectar de forma preferencial nenhuma classe métrica ou qualitativa particular. Esta
argumentação pode encontrar também algum apoio no facto de não ter sido registada
diferença estatística quanto ao índice de carenagem entre os subconjuntos de lamelas (isto é,
de produtos alongados de tamanho pequeno) inteiras e partidas de metade das colecções
provenientes de jazidas pré-magdalenenses (Quadro 3.2).
O facto de, nos conjuntos magdalenenses, as peças inteiras poderem funcionar
efectivamente como amostra fidedigna do universo dos produtos alongados, tanto no caso das
lamelas como no caso das lâminas, parece, portanto, ser uma consequência de dois factos: o
de esse universo ser na sua quase totalidade constituído por lamelas; e o de, por isso, o
tamanho médio desses produtos ser, em regra, mais pequeno. Em relação às lâminas, porém,
deve ter-se em conta que o método estatístico utilizado (o teste t) é muito sensível à dimensão
das amostras que se pretende comparar, conforme resulta igualmente da consulta da Fig. 3.5.
Ou seja, a impossibilidade de diferenciar metricamente inteiras e partidas, por um lado, e
peças atribuíveis à fase inicial e à fase plena, por outro, pode ser simplesmente, no que às
lâminas diz respeito, uma consequência do facto de, nos conjuntos magdalenenses, o
respectivo total ser muito pequeno (como acontecia no Cerrado Novo e no Vale da Mata, com
4 e 37 lâminas, respectivamente), ou de o ser o total de uma das amostras em comparação
(como acontecia nas camadas 3-4 do Olival da Carneira, onde só havia 15 peças inteiras).
Por outro lado, é também possível que, a este respeito, as diferenças se façam sentir não
ao nível das proporções gerais medidas pelo índice de carenagem mas sim ao de uma das
dimensões utilizadas na computação desse índice. No caso do Olival da Carneira, por
exemplo, havia diferença estatisticamente válida, ao nível de significância de 0,05, entre as
larguras das lâminas inteiras e partidas, por um lado, e entre o comprimento das lâminas
atribuíveis à fase inicial e à fase plena da debitagem, por outro (ver vol. II, capítulo 44). Ao
não afectarem as proporções gerais das peças, e portanto a sua robustez, estas diferenças,
porém, não têm significado do ponto de vista tafonómico. Elas têm-no, no entanto, do ponto
de vista da economia da debitagem, e põem de manifesto como, logo que a produção de
lâminas se torna industrialmente mais significativa, a representatividade do subconjunto das
peças inteiras começa acto contínuo a enfraquecer.
82
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 3.3
Produção de lâminas
Uso da técnica de crista na conformação dos núcleos de sílex
Lâminas de
crista (Lc)
Lâminas
brutas (L)
Rácio
Lc:L
Vale de Porcos I
32
220
0,15
Vale de Porcos II
13
103
0,13
Vale Comprido - Barraca
3
185
0,02
Vale Comprido - Cruzamento
1
22
0,05
Casal do Felipe
4
150
0,03
Fonte Santa
4
942
0,00
Terra do Manuel (1940-42)
12
486
0,02
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
4
101
0,04
CPM III (nível médio)
3
111
0,03
Terra do José Pereira
0
115
0,00
Vales da Senhora da Luz
5
295
0,02
Vale Comprido - Encosta
12
1409
0,01
Casal do Cepo
5
387
0,01
Vale Almoinha
0
123
0,00
Olival da Carneira (cam. 5)
0
12
0,00
Cerrado Novo
0
4
0,00
Vale da Mata
3
37
0,08
Olival da Carneira (cam. 3-4)
0
97
0,00
A comparação dos resultados métricos obtidos em Carneira II por Bicho (1992), que só
tomou em consideração as peças inteiras, com os obtidos neste estudo para as camadas 3-4 do
Olival da Carneira, é, a este respeito, particularmente elucidativa. As duas colecções são
tecnica e tipologicamente idênticas e, embora as larguras médias do conjunto das lâminas e
lamelas sejam, conforme seria de esperar, precisamente as mesmas (1,10±0,40 cm no
primeiro caso, 1,08±0,44 cm no segundo), já as espessuras médias são no entanto bastante
diferentes, a reportada para Carneira II (0,43±0,27 cm) sendo superior em 43% à apurada no
Olival da Carneira (0,30±0,19 cm).
3.1.4. Conclusão sobre os padrões de fragmentação
Desta revisão da problemática relacionada com o estado de fragmentação do material
laminar/lamelar e com a comparabilidade das diferentes indústrias resultam, assim, as
seguintes conclusões:
•
os conjuntos de produtos alongados parecem ter sido poupados, em grande medida, à
triagem que afectou as colecções antigas, a qual, portanto, deve ter incidido sobretudo na
eliminação das esquírolas e dos fragmentos inclassificáveis;
•
apesar disso, há pontualmente casos de sub-representação do material partido, sobretudo
no que diz respeito às lamelas;
•
essa sub-representação não parece ter afectado de forma significativa as características
métricas dos conjuntos, embora possa explicar algumas pequenas diferenças entre
colecções antigas e modernas provenientes de ocupações tecnica e tipologicamente
idênticas (como a largura média do conjunto dos produtos alongados de Vale Almoinha,
superior à do Casal do Cepo, onde, correlativamente, o índice de carenagem médio das
lâminas era inferior ao da jazida de Cambelas);
Tecnologia lítica
83
•
o subconjunto das peças inteiras pode funcionar como amostra representativa da
produção de suportes alongados somente nas indústrias onde a produção de lâminas é
acidental ou negligenciável, como acontece, de um modo geral, no Magdalenense;
•
excepto (pelo menos em parte) no caso de Carneira II, os resultados obtidos por Bicho
(1992) para as indústrias magdalenenses de Rio Maior são, por isso, directamente
comparáveis com os obtidos no quadro do presente estudo, apesar de aquele autor só ter
analisado amostras de peças inteiras;
•
nos casos em que a produção de lâminas é industrialmente significativa, a não
consideração do material fragmentado conduz a conclusões erradas ou distorcidas, tanto
do ponto de vista da caracterização métrica e qualitativa dos conjuntos como do ponto de
vista da análise da economia da debitagem, uma vez que, devido tanto a factores
tafonómicos como funcionais, pode levar a uma sub-representação mais ou menos
considerável do material produzido na fase plena de debitagem (e cujas características
corresponderão efectivamente às pretendidas no quadro da cadeia operatória em
execução).
3.2. Debitagem laminar
3.2.1. Conformação dos núcleos
A produção de lâminas a partir de um nódulo de sílex é um processo técnico que requer
necessariamente um mínimo de preparação prévia. Nas indústrias do Paleolítico Superior,
essa preparação compreende, de um modo geral, três procedimentos distintos, através dos
quais se condiciona a exploração volumétrica do bloco: descorticamento (total ou parcial),
definição de um plano de percussão, e preparação de cristas. A remoção destas últimas
permite obter arestas-guia, e as primeiras lâminas debitadas seguindo essas arestas permitem
definir uma superfície de debitagem que será subsequentemente explorada para a extracção
dos produtos laminares pretendidos (Boëda 1990; Tixier et al. 1980).
Da análise dos conjuntos industriais portugueses resulta, porém, que o recurso à
preparação de cristas é bastante raro. O Quadro 3.3 revela, com efeito, que é só em Vale de
Porcos que as lâminas de crista ocorrem em percentagens significativas, o valor semelhante
do rácio «lâminas brutas:lâminas de crista» obtido em ambas as colecções (antiga e moderna)
implicando a extracção de uma lâmina de crista por cada sete lâminas brutas. Exceptuando os
casos de Vale Comprido - Cruzamento e de Vale da Mata, em que os totais são demasiado
pequenos para que as amostras possam ser consideradas estatisticamente significativas, os
valores obtidos nas restantes colecções implicam, de um modo geral, a extracção de uma
lâmina de crista por cada 25 a 100 lâminas brutas, a relação chegando a ser de uma por cada
236 no caso da Fonte Santa.
O carácter oficinal dos dois loci de Vale de Porcos pode, no entanto, até certo ponto, ter
sido responsável por um inflacionamento relativo da proporção de peças de crista, já que uma
parte importante das lâminas que constituíam o objectivo final das sequências de talhe deverá
ter sido exportada, a «produtividade» de cada crista sendo, portanto, seguramente superior à
sugerida pelos valores acima indicados. Noutras jazidas de funcionalidade semelhante
(embora talvez não tão exclusiva), as lâminas de crista são, no entanto, raras, como acontece
em Vale Comprido - Barraca, ou mesmo inexistentes, como na Terra do José Pereira. Este
facto sugere, portanto, que haverá um contraste importante entre a tecnologia utilizada na
debitagem laminar praticada em Vale de Porcos e a que subsequentemente viria a ser
característica das restantes indústrias do Paleolítico Superior português.
84
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
É nesse sentido que aponta igualmente a marcada diferença dimensional que existe entre
Vale de Porcos e as indústrias de época mais recente: quando as lâminas e lamelas são
consideradas no seu conjunto, os produtos alongados obtidos são, em média, 25 a 50% mais
estreitos nestas últimas (Quadro 3.2; Fig. 3.5). Por outro lado, é também praticamente só nos
conjuntos líticos de Vale de Porcos que a prática de dupla preparação (por abrasão e
facetagem) dos planos de percussão ocorre em frequências não marginais (Quadro 3.5). É
provável, portanto, que tanto esta última característica como a elevada frequência de peças de
crista estejam ambas relacionadas com a intenção de obter lâminas de grande tamanho,
implicando a exploração de blocos necessariamente volumosos, cujas conformação e
preparação exigiriam maior investimento do que o necessário no quadro das sequências de
talhe orientadas para a obtenção de produtos alongados de menores dimensões que viriam a
caracterizar as indústrias pós-aurignacenses.
A raridade ou inexistência das lâminas de crista nestas últimas indica, por outro lado, que
a definição de arestas-guia deverá, em grande medida, ter sido feita, nesses casos, mediante a
remoção de «cristas» naturais como, por exemplo, as formadas pela intersecção de dois ou
mais levantamentos de descorticamento. Deste modo, as várias etapas de preparação
conceptualmente diferentes a que acima se fez referência — descorticamento, definição de
um plano de percussão e conformação de arestas-guia — deviam, na realidade, estar
subsumidas numa cadeia única de gestos técnicos mediante os quais se perseguiam
simultaneamente os três objectivos.
QUADRO 3.4
Faseamento da debitagem laminar (sílex)
Variação do índice de carenagem e dos atributos qualitativos (a)
Lâminas de debitagem plena
(sem córtex e de secção trapezoidal)
Outras lâminas
(com córtex ou de secção triangular)
talão
labiado
talão
preparado
perfil
direito
bordos carenagem talão
paralelos
labiado
talão
preparado
perfil
direito
bordos
paralelos
Vale de Porcos I
77%
74%
53%
28%
>
Vale de Porcos II
60%
60%
(b)
(b)
>
44%
36%
28%
22%
57%
46%
(b)
Vale Comprido - Barraca
0%
40%
33%
0% (c)
>
(b)
1%
14%
39%
27%
Casal do Felipe
88%
88%
(b)
(b)
=
80%
82%
(b)
(b)
Fonte Santa
94%
94%
(b)
Terra do Manuel (1940-42)
15%
44%
35%
(b)
>
74%
59%
(b)
(b)
48%
>
8%
22%
32%
33%
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
36%
45%
(b)
(b)
>
11%
17%
(b)
(b)
CPM III (nível médio)
0%
13%
55%
25%
=
0%
5%
36%
23%
Terra do José Pereira
25%
33%
39%
33%
>
5%
23%
10%
17%
Vales da Senhora da Luz
28%
46%
38%
21%
>
14%
25%
29%
5%
Vale Comprido - Encosta
19%
26%
24%
21%
>
10%
19%
12%
12%
Casal do Cepo
4%
67%
62%
18%
>
6%
39%
25%
0%
Vale Almoinha
6%
48%
21%
8%
>
26% (d)
49%
14%
0%
Vale da Mata
73%
91%
(b)
(b)
=
56%
33%
(b)
(b)
Olival da Carneira (cam. 3-4)
42%
38%
67%
25%
=
29%
29%
56%
0%
(a) os resultados da comparação estatística (teste t) das médias dos índices de carenagem apuradas para os dois conjuntos de
lâminas são válidos para um nível de significância de 0,05; na categoria «talão preparado» incluem-se as peças com talão
facetado ou com vestígios de abrasão da cornija do núcleo
(b) a muito reduzida dimensão das amostras de lâminas sem córtex de secção trapezoidal em que os respectivos atributos foram
determinados não permitiu a análise separada da morfologia dos perfis e dos bordos em alguns dos conjuntos estudados
(c) atributo observado sobre uma amostra muito pequena (10 peças)
(d) todas não corticais
Tecnologia lítica
85
3.2.2. Preparação e faseamento
Seja como for, tanto nestas indústrias como nas do Aurignacense, a produção das primeiras
lâminas cuja morfologia e dimensões corresponderiam já aos objectivos pretendidos foi
necessariamente precedida, portanto, de uma fase de extracção de outros produtos laminares
(nalguns casos com a morfologia dorsal típica da lâmina de crista, noutros sem ela), fase
através da qual se definiu a superfície de debitagem mediante cuja exploração se obtiveram
depois as lâminas que constituíam a «causa final» da sequência de talhe. Neste quadro, o
estudo da economia da debitagem (Perlès 1991) exige, em consequência, a definição de
critérios que permitam realizar a discriminação entre o material produzido nessa fase inicial
de conformação, por um lado, e o material produzido já em fase plena de exploração do bloco
de matéria-prima, por outro.
Esta questão foi já abordada por outros autores. Ferring (1988), por exemplo, usou como
critério de diferenciação entre debitagem inicial e plena a presença ou ausência de córtex.
Este critério não é, porém, suficiente. Como, aliás, é assinalado pelo próprio autor referido,
há produtos de preparação e de manutenção que são não corticais. No caso do bloco de sílex
cinzento remontado na Lapa do Anecrial (ver vol. II, capítulo 10), por exemplo, essa situação
decorria do facto de se estar perante a exploração de um bloco que tinha sido importado sob a
forma de um pré-núcleo já completamente descorticado. Nos estudos monográficos
apresentados no vol. II optou-se, assim, por tomar como representativos do material laminar
produzido em fase plena da debitagem apenas os conjuntos de peças não corticais que
satisfizessem simultaneamente a condição de apresentar uma secção trapezoidal, isto é, que
apresentassem vestígios da extracção anterior de pelo menos três produtos de morfologia
semelhante, o mesmo é dizer, cujo anverso constituísse prova suficiente da existência de uma
superfície de debitagem plenamente conformada e funcional.
Fig. 3.6 - Composição teórica, em produtos das diferentes fases da debitagem, dos conjuntos laminares definidos
em função dos atributos córtex e secção, e definições práticas utilizadas para discriminar, consoante a finalidade
tecnológica ou económica da análise, os suportes de fase inicial dos de fase plena.
86
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 3.7 - Variação dos atributos morfológicos das lâminas de sílex segundo a natureza do anverso (presença ou
ausência de córtex) e a geometria da secção (trapezoidal ou outra). De um modo geral, o conjunto das lâminas sem
córtex e de secção trapezoidal apresenta frequências significativamente mais elevadas de peças de perfil direito e
de peças de bordos paralelos.
Os conjuntos assim definidos não podem, porém, ser tomados como correspondendo de
forma perfeita ao universo de que são representativos, conforme resulta da consulta do
esquema da Fig. 3.6, que procura ilustrar, precisamente, a forma como as lâminas produzidas
no decurso da exploração de um determinado núcleo entrarão na composição dos quatro
conjuntos que se podem definir com base nas combinações de estados decorrentes da
observação da geometria da secção e da presença ou ausência de córtex no anverso. Uma
parte do material laminar de secção trapezoidal mas ainda com alguns vestígios de córtex
(por exemplo na zona distal, em virtude de o descorticamento do fundo do núcleo ter sido
feito de forma incompleta) poderá, com efeito, ter sido produzido já na fase plena da
debitagem, o mesmo devendo ter acontecido com a maioria das peças não corticais de secção
triangular.
Nestas circunstâncias, parece claro que uma definição mais restrita como a que se usou
no vol. II é sobretudo útil ao nível da análise tecnológica, isto é, quando se trata de
determinar a forma como o artesão concebia e praticava a produção das lâminas (tipo de
percutor utilizado, recurso eventual a um plano de percussão oposto, métodos de manutenção
dos planos de percussão e da cornija do núcleo, etc.), ou de determinar os padrões métricos a
que essa produção procurava obedecer. Em tal contexto analítico, com efeito, é obviamente
necessário que o conjunto que se toma como representativo da fase plena apenas contenha
lâminas produzidas nessa fase, mesmo que não as contenha todas, isto é, que uma parte tenha
sido incluída entre o material atribuível à fase inicial. O carácter até certo ponto «misto» do
conjunto assim definido como «de fase inicial» tem como consequência colateral, aliás, a de
tornar ainda mais significativa a validade dos contrastes eventualmente resultantes da sua
Tecnologia lítica
87
Fig. 3.8 - Variação dos atributos das lâminas de sílex relacionados com a tecnologia de extracção (preparação do
plano de percussão por abrasão ou facetagem, e presença ou ausência de talão labiado) segundo a natureza do
anverso (presença ou ausência de córtex) e a geometria da secção (trapezoidal ou triangular). O conjunto das
lâminas sem córtex e de secção trapezoidal apresenta de um modo geral frequências significativamente mais
elevadas de peças de talão labiado e de peças de talão preparado do que as restantes.
comparação estatística, tanto quantitativa como qualitativa, com o conjunto «puro» definido
como «de fase plena». Do ponto de vista da economia da debitagem, isto é, da análise dos
critérios de selecção de suportes para uso ou transformação, é claro, porém, que a prioridade
deve ser precisamente a inversa: o conjunto que se toma como representativo da fase plena
deve conter tanto quanto possível todas as lâminas produzidas nessa fase, mesmo que
também contenha algumas que tenham sido produzidas no decurso da inicial. Sendo assim,
ele deve incluir todas as lâminas sem córtex, independentemente de as respectivas secções
serem ou não serem trapezoidais (Fig. 3.6).
88
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Como é evidente, a pertinência e a utilidade do conceito de faseamento das sequências de
debitagem laminar estão dependentes da demonstração de que os produtos obtidos em fase
plena são, de facto, diferentes dos restantes. A respectiva consideração como «causa final» da
cadeia operatória depende, por outro lado, da demonstração de que esses produtos denotam
um maior investimento por parte do artesão, o qual, por sua vez, pode ser inferido a partir da
consideração de um certo número de atributos métricos e morfológicos, como sejam por
exemplo um maior cuidado na preparação dos planos de percussão, o uso de um tipo
diferente de percutor, ou um mais elevado grau de normalização morfológica ou dimensional.
Os estudos monográficos apresentados no vol. II permitiram confirmar caso a caso que,
de um modo geral, é efectivamente possível, e útil, discriminar em dois grupos, segundo os
critérios que acabam de se expor, a produção laminar das indústrias do Paleolítico Superior.
A análise comparativa das indústrias em que a debitagem de lâminas tem um mínimo de
significado confirma essa caracterização (Quadro 3.4; Figs. 3.7-3.8). A consulta dos referidos
elementos permite, com efeito, constatar: que o conjunto das lâminas sem córtex e de secção
trapezoidal, produzidas em fase plena da debitagem, apresenta de um modo geral frequências
significativamente mais elevadas de peças de talão labiado, de talão preparado, de perfil
direito, e de bordos paralelos; e que os respectivos índices de carenagem são também
sistematicamente mais elevados do que os das restantes. Da consulta da Fig. 3.8 resulta
igualmente, por outro lado, a constatação de que as frequências de talões labiados e
preparados variam de um modo geral no mesmo sentido. A este respeito, os estudos
monográficos realizados permitiram constatar, aliás, que a co-ocorrência dos dois atributos é
muito elevada, particularmente nos casos em que a preparação é executada mediante abrasão
da cornija. Essa co-ocorrência deverá estar relacionada, por isso, com um modo específico de
extracção, quer essa especificidade resulte do uso de um percutor mole, conforme defendem
Tixier et al. (1980:91), quer resulte antes, como argumenta Ferring (1988:339), da
conformação de núcleos em que o plano de percussão apresenta um ângulo muito agudo com
a superfície de debitagem, independentemente do tipo de percutor utilizado (esta última
interpretação encontrando alguma corroboração nos núcleos das indústrias portuguesas em
que a frequência de talões labiados é mais elevada, as da Fonte Santa e do Casal do Felipe —
ver vol. II, capítulos 11 e 15).
Para a elaboração destes quadros e figuras consideraram-se como preparados os talões
facetados, por um lado, e os talões, tanto lisos como facetados, que apresentassem vestígios
de abrasão da cornija do núcleo, por outro. Na realidade, porém, o Quadro 3.5 revela que
abrasão e facetagem são duas técnicas de um modo geral mutuamente exclusivas. Embora por
vezes utilizadas no quadro de uma mesma tradição industrial, são-no enquanto formas
alternativas de realizar a mesma tarefa, conforme se depreende da extrema raridade da co-ocorrência de ambos os atributos num mesmo talão (quando observados nas lâminas) ou
num mesmo plano de percussão (quando observados nos núcleos prismáticos). Exceptuam-se,
em parte, os casos de Vale de Porcos e de Vale Comprido - Encosta, especialmente a
primeira, já que, na segunda, a prática de adelgaçamento dorsal do talão torna difícil, e
sempre sujeita a erro, a opção entre classificar um determinado talão como abradido por
preparação ou regularizado por retoque (ver vol. II, capítulo 23). O facto de a co-ocorrência
dos dois atributos nos núcleos prismáticos desta segunda jazida ser muito inferior à verificada
entre as lâminas ilustra bem, aliás, a forma cautelosa como os dados referentes a estas últimas
devem ser utilizados. Já em Vale de Porcos I, porém, os valores para núcleos e para lâminas
são equivalentes, indicando que há efectivamente casos em que era praticada uma dupla
preparação. Conforme acima se referiu já, o carácter a este respeito excepcional desta jazida
está certamente relacionado com o peso que nela tem, igualmente excepcional no quadro do
Paleolítico Superior português, a produção de lâminas de grandes dimensões e a elevada
frequência das lâminas de crista.
Tecnologia lítica
89
QUADRO 3.5
Preparação da debitagem laminar (sílex)
Carácter disjuntivo da alternativa abrasão/facetagem (a)
Talões simultaneamente
abradidos e facetados (lâminas)
Planos de percussão simultaneamente
abradidos e facetados (núcleos prismáticos)
% do total
% do total
% do total
de facetados de abradidos de preparados
% do total
% do total
% do total
de facetados de abradidos de preparados
Vale de Porcos I
24% (21)
10% (51)
7% (67)
38% (8)
20% (15)
15% (20)
Vale de Porcos II
40% (5)
12% (17)
10% (20)
0% (6)
— (1)
0% (7)
Vale Comprido - Barraca
0% (21)
— (4)
0% (25)
0% (19)
— (0)
0% (19)
Vale Comprido - Cruzamento
0% (5)
— (0)
0% (5)
0% (8)
— (0)
0% (8)
Casal do Felipe
— (1)
1% (78)
1% (78)
— (4)
— (19)
0% (23)
Fonte Santa
— (3)
4% (47)
4% (48)
29% (14) (b)
5% (82)
4% (92)
Terra do Manuel (1940-42)
0% (6)
0% (19)
0% (25)
0% (8)
0% (8)
0% (16)
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
7% (15)
6% (16)
3% (30)
17% (6) (c)
— (4)
10% (10)
CPM III (nível médio)
— (4)
— (1)
0% (5)
— (3)
— (2)
0% (5)
Terra do José Pereira
0% (11)
0% (12)
0% (23)
— (2)
— (4)
0% (6)
Vales da Senhora da Luz
7% (30)
5% (37)
3% (65)
0% (9)
0% (16)
0% (25)
Vale Comprido - Encosta
44% (16)
21% (33)
17% (42) (d)
11% (19) (e)
13% (15)
6% (32)
Casal do Cepo
9% (32)
— (3)
9% (32)
4% (28) (c)
20% (5)
3% (32)
Vale Almoinha
0% (43)
— (4)
0% (47)
— (4)
— (2)
0% (6)
Cerrado Novo
— (0)
— (1)
— (1)
— (2)
0% (17)
0% (19)
Vale da Mata
— (0)
0% (11)
0% (11)
— (4) (c)
9% (11)
7% (14)
Olival da Carneira (cam. 3-4)
0% (6)
0% (10)
0% (16)
— (3)
— (1)
— (4)
(a) entre parêntesis, os valores de N correspondentes aos conjuntos sobre cujos totais foram calculadas as diferentes
percentagens
(b) das 4 peças em questão, 3 eram núcleos com planos de percussão múltiplos; dados os critérios de registo utilizados (ver
vol. II, capítulo 2), é possível que nestes casos a facetagem e a abrasão, embora presentes simultaneamente num mesmo
núcleo, tenham sido utilizadas em planos de percussão diferentes
(c) 1 núcleo com dois planos de percussão opostos — ver nota (b)
(d) o facto de nesta indústria estar documentada a prática de regularização dorsal dos talões dos suportes após a respectiva
extracção torna possível que a contagem de peças abradidas esteja algo inflacionada, e que, portanto, nas peças de talão
facetado onde se verifica a presença de abrasão, esta possa constituir antes, em certos casos, um retoque e não uma
preparação
(e) das 2 peças em questão, 1 era um núcleo com dois planos de percussão opostos — ver nota (b)
A tecnologia de preparação empregue nas indústrias do Solutrense médio é, até ao
momento, única. Conforme se assinalou aquando do estudo monográfico da indústria de Vale
Almoinha (ver vol. II, capítulo 36), a microfacetagem dos talões das lâminas é idêntica à que
se pode observar nas lascas de talhe de folhas de loureiro. Diversos argumentos indicam que
o afeiçoamento destas últimas deverá ter sido feito, pelo menos na sua fase final, por pressão.
Deste modo, não se pode excluir que idêntica técnica tivesse sido utilizada no contexto da
debitagem laminar. Parece mais provável, no entanto, que estejamos aqui muito
simplesmente perante uma utilização da facetagem (de um modo geral mais cuidada do que
noutras indústrias, é certo, mas talvez porque os produtos pretendidos são também bastante
mais delgados do que, por exemplo, no Gravettense antigo) como técnica de preparação dos
planos de percussão dos núcleos executada em apoio de um método de extracção por
percussão directa com percutor mole. É nesse sentido que aponta, com efeito, o facto de o
material laminar do Casal do Cepo e de Vale Almoinha não apresentar as restantes
características morfológicas (concavidade dorsal junto ao talão, acentuado encurvamento
distal, regularidade das nervuras, etc.) que, além do talão facetado ou microfacetado, se
encontram nas lâminas e lamelas debitadas por pressão do conjunto neolítico de Vale da
Mata (ver vol. II, capítulo 47), características cuja identificação permitiu precisamente
depurar a indústria magdalenense desta jazida, com a qual esse conjunto se encontrava
parcialmente misturado.
90
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 3.6
Mudança de orientação do eixo de debitagem
Frequência e características dos núcleos de sílex com planos de percussão cruzados, alternos ou múltiplos
% do total
de núcleos
prismáticos
total
lâminas
lamelas
Vale de Porcos I
15%
15 (a)
73%
27%
0%
Vale de Porcos II
35%
9 (a)
33%
44%
22%
22%
Natureza dos produtos extraídos
lascas
Vale Comprido - Barraca
7%
9
0%
78%
Casal do Felipe
27%
16
0%
62%
38%
Fonte Santa
52%
77 (b)
22%
48%
30%
Terra do Manuel (1940-42)
35%
33
6%
76%
18%
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
32%
11
9%
73%
18%
CPM III (nível médio)
23%
7
14%
43%
43%
Terra do José Pereira
28%
19
11%
68%
21%
Vales da Senhora da Luz
27%
33
0%
88%
12%
Vale Comprido - Encosta
28%
69
13%
43%
43%
Casal do Cepo
22%
16
25%
56%
19%
Vale Almoinha
35%
11
0%
73%
27%
Cerrado Novo
11%
2
—
—
—
Vale da Mata
27%
17
0%
76%
24%
Olival da Carneira (cam. 3-4)
22%
20
0%
70%
30%
(a) do ponto de vista dimensional, estes núcleos formavam com os informes, os discóides e os de crista preparada
mas não debitados, um conjunto estatisticamente distinto, ao nível de significância de 0,05 (teste t), dos núcleos
com um plano de percussão simples ou dois opostos
(b) os pesos destes núcleos, considerados na sua globalidade, eram em média mais elevados, ao nível de
significância de 0,05 (teste t) do que os dos núcleos com um plano de percussão simples ou dois opostos, embora
a diferença deixasse de ser significativa quando a comparação era feita no quadro de cada uma das classes
definidas em função da natureza dos produtos extraídos
3.2.3. Exploração de planos de percussão opostos ou múltiplos
Outra das características que singularizam os conjuntos líticos de Vale de Porcos é a que diz
respeito à elevada percentagem de núcleos para lâminas que evidenciam a ocorrência de
mudanças de orientação do eixo de debitagem (Quadro 3.6). As suas dimensões, no entanto,
são superiores às dos restantes núcleos prismáticos, e permitem agrupá-los com os não
prismáticos.A grande maioria destes últimos é constituída por peças em que se observa a
presença de cristas mas cuja exploração foi abortada após a respectiva preparação. Conforme
se argumentou a propósito do estudo monográfico das jazidas (ver vol. II, capítulos 4 e 5),
este padrão indica que os núcleos com planos de percussão cruzados, alternos ou múltiplos
correspondem, no Aurignacense de Vale de Porcos, a blocos que por qualquer razão foram
abandonados ainda em fase inicial de conformação, e em que as mudanças de orientação do
eixo devem corresponder a tentativas infrutíferas de solucionar dificuldades encontradas no
decurso da fase de conformação da superfície de debitagem. Em fase plena, portanto, esta
última seria realizada segundo um eixo único, embora por vezes a partir de dois planos de
percussão opostos (Quadro 3.7).
Em todas as restantes indústrias, a maior parte dos núcleos cujos planos de percussão
denotam a ocorrência de mudanças de orientação do eixo de debitagem são peças que, no
momento do abandono, estavam já em fase de produção de lamelas. Nestes casos, a referida
mudança pode ser interpretada como reflectindo uma tentativa de exploração exaustiva da
capacidade de produção dos volumes de matéria-prima. Em certas indústrias, nomeadamente
nas do Fontesantense e do Solutrense médio, essa intenção manifesta-se também através da
forma achatada de que se reveste uma proporção significativa dos núcleos prismáticos.
Tecnologia lítica
91
QUADRO 3.7
Exploração de planos de percussão opostos
Núcleos prismáticos com eixo de debitagem único e lâminas de anverso bidireccional (a)
Núcleos
para lâminas
Núcleos
para lamelas
com com rácio
2 p.p. 1 p.p.
com com rácio
2 p.p. 1 p.p.
Vale de Porcos I
15
34
0,44
Vale de Porcos II
1
11
0,09
Vale Comprido - Barraca
0
10
0,00
Vale Comprido - Cruzamento
0
5
0,00
Casal do Felipe (c)
0
0
—
Fonte Santa
4
12
Terra do Manuel (1940-42) (d)
0
6
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
2
CPM III (nível médio) (e)
Terra do José Pereira
Vales da Senhora da Luz (f)
5
Núcleos para
lâminas +
para lamelas
Lâminas de
anverso bidireccional
% com 2 p.p.
em fase
plena
em fase
inicial
26% (78)
24% (29)
19% (59)
24
0,21
0
4
0,00
6% (16)
0% (6)
12% (34)
19
59
0,32
22% (88)
20% (14)
14% (112)
2
9
0,22
12% (16)
(b)
(b)
8
32
0,25
20% (40)
29% (28)
24% (33)
0,33
18
26
0,69
37% (60)
12% (17)
6% (17)
0,00
8
32
0,25
17% (46)
20% (25)
3% (33)
2
1,00
0
14
0,00
11% (18)
43% (7)
18% (40)
0
3
0,00
1
12
0,08
6% (16)
21% (14)
25% (44)
1
4
0,25
4
24
0,17
15% (33)
26% (19)
16% (57)
1
10
0,10
13
39
0,33
22% (63)
16% (45)
8% (106)
Vale Comprido - Encosta
10
30
0,33
19
57
0,33
25% (116)
9% (44)
13% (135)
Casal do Cepo
12
6
2,00
20
13
1,54
63% (51)
42% (31)
15% (20)
Vale Almoinha
1
1
1,00
5
7
0,71
43% (14)
46% (37)
47% (30)
Cerrado Novo
0
0
—
5
44
0,11
11% (49)
(b)
(b)
Vale da Mata
1
0
—
8
27
0,30
25% (36)
(b)
(b)
Olival da Carneira (cam. 3-4)
0
1
0,00
3
6
0,50
30% (10)
(b)
(b)
(a) entre parêntesis, os valores de N correspondentes aos conjuntos sobre cujos totais foram calculadas as diferentes
percentagens; comparações dimensionais feitas para um nível de significância de 0,05 (teste t); só foi considerado o
material em sílex
(b) os totais de lâminas, ou de peças de anverso bidireccional, eram demasiado baixos, pelo que não foi feita a análise da
variação do atributo segundo os critérios de faseamento da debitagem
(c) as peças de anverso bidireccional eram mais espessas
(d) as peças de anverso bidireccional eram mais estreitas e mais delgadas do que as restantes; além disso, em 100% dos
casos eram sem córtex, e em 83% de secção trapezoidal, contra valores de respectivamente 58% e 65% para o material
laminar de anverso unidireccional; o total de peças de anverso bidireccional na amostra analisada era no entanto bastante
pequeno (apenas 6 peças)
(e) as peças de anverso bidireccional eram mais compridas, mais espessas e de índice de carenagem mais baixo
(f) as peças de anverso bidireccional eram mais compridas, mais largas e mais espessas
Na Fonte Santa, esses núcleos achatados apresentavam uma superfície de debitagem
única de morfologia frequentemente quadrangular, na qual, por vezes, eram visíveis vestígios
da respectiva exploração a partir de zonas diferentes do rebordo. Cada uma dessas direcções
de exploração foi considerada como constituindo um eixo de debitagem distinto, o que, em
parte, explica a elevada percentagem de núcleos com planos de percussão cruzados, alternos
ou múltiplos (mais de 50% do total de núcleos prismáticos, uma parte significativa dos quais
sendo peças para lâminas) que singulariza esta colecção. Deve ter-se em conta, porém, que se
trata de um tipo de situação muito diferente da que caracteriza a generalidade dos núcleos das
outras colecções em que a disposição dos planos de percussão mostra a ocorrência de
mudanças de eixo no decurso do respectivo processo de exploração. No caso mais geral, com
efeito, essa mudança é também uma mudança de plano, implicando uma reorientação
completa do volume. Na Fonte Santa, porém, ela faz-se de um modo geral sobre o mesmo
plano, revelando uma simples rotação do bloco no decurso das operações de debitagem.
O mesmo se passa no Casal do Cepo, embora, aqui, o número e disposição dos planos de
percussão utilizados por cada superfície tenha implicado a classificação da maior parte do
material nestas condições entre as peças com dois planos de percussão opostos. Nesta jazida,
esses núcleos diferenciam-se ainda dos restantes por tenderem a apresentar índices mais
92
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
elevados de peças com plano de percussão preparado (por facetagem). O Casal do Cepo é,
por outro lado, juntamente com Vale Almoinha, a jazida em que é mais frequente a
ocorrência deste tipo de núcleos que, no Casal do Cepo, são cerca de uma vez e meia mais
numerosos do que os de plano de percussão único, proporção que é ainda mais elevada (2:1)
se a comparação se restringir às peças para lâminas (Quadro 3.7). A única outra colecção em
que a frequência de núcleos com dois planos de percussão opostos se aproxima da verificada
nas duas jazidas do Solutrense médio é a da Fonte Santa. No entanto, tanto nesse conjunto
como no do Casal do Felipe, as frequências de lâminas de anverso bidireccional não
ultrapassam, em fase plena, os 29% registados nesta última, contra valores de 42% e 46%
para Casal do Cepo e Vale Almoinha, respectivamente. A este respeito, o único outro caso
em que se atingem frequências da mesma ordem de grandeza é o da colecção proveniente da
camada 2s das escavações modernas realizadas na Terra do Manuel, onde a percentagem de
lâminas de fase plena com anverso bidireccional é de 43%. No entanto, a amostra em questão
é muito pequena (só sete peças), pelo que as situações não são directamente comparáveis.
Considerando de forma conjugada os dois indicadores (frequência de núcleos com dois
planos de percussão opostos e de lâminas de fase plena com anverso bidireccional), como se
fez na Fig. 3.9, verifica-se, assim, que é só no Casal do Cepo e em Vale Almoinha que ambos
apresentam simultaneamente valores elevados. Nestas circunstâncias, parece confirmada a
interpretação que se fez deste padrão aquando do estudo monográfico dessas duas jazidas
(ver vol. II, capítulos 29 e 36): o de que ele indica a exploração alternada de dois planos de
percussão em fase plena da debitagem, estratégia que estaria especificamente ligada à
produção de suportes para pontas de face plana, e constituiria uma cadeia operatória
diferenciada (a qual se caracterizaria igualmente pelos elevados índices de preparação que se
observam tanto entre os núcleos como entre os suportes efectivamente transformados),
porventura concebida expressamente com o objectivo de conseguir que os suportes para
armaduras apresentassem um perfil tão plano quanto possível.
Nas restantes indústrias analisadas, a ocorrência ocasional de peças de anverso
bidireccional e de núcleos com dois planos de percussão opostos indicaria, por contraste, que
a exploração destes últimos terá sido realizada de forma sequencial e não alternada. Isto é,
que, nas restantes indústrias do Paleolítico Superior, os núcleos com dois planos de percussão
opostos seriam apenas um caso particular da estratégia documentada na Fonte Santa: a de
exploração do volume até à exaustão das suas possibilidades no quadro dos objectivos
pretendidos, recorrendo, quando necessário, à renovação do plano de percussão, com
(núcleos com planos de percussão alternos, cruzados ou múltiplos) ou sem (núcleos com dois
planos de percussão opostos) mudança de orientação do eixo de debitagem.
3.2.4. Suportes de fase plena
A consideração simultânea das dimensões e dos métodos de preparação utilizados permite
definir com clareza, para as indústrias que se encontram melhor documentadas, a natureza
morfotécnica dos produtos laminares obtidos em fase plena da debitagem e que constituíam,
em cada caso, a norma a que o artesão procurava corresponder. A consideração conjugada
dos dados do Quadro 3.4 e dos gráficos da Figs. 3.7-3.10 permite, com efeito, distinguir os
diversos padrões a que se faz referência no Quadro 3.9.
A pequena dimensão das amostras disponíveis não permitiu incluir na análise alguns dos
conjuntos estudados (como os de Vale Comprido - Cruzamento — ver vol. II, capítulo 22 —
e da camada 2s das escavações modernas na Terra do Manuel — ver vol. II, capítulo 19),
embora as indicações por eles fornecidas confirmem as conclusões expostas no Quadro 3.9.
Admitindo que a preparação dos planos de percussão está relacionada com o uso de
percutores moles, e que a respectiva ausência está relacionada com o uso de percutores duros,
Tecnologia lítica
93
Fig. 3.9 - Covariação, para o material em sílex, das frequências relativas de suportes laminares de fase plena com
anverso bidireccional e de núcleos com dois planos de percussão opostos. É só nas indústrias do Solutrense médio
(Casal do Cepo e Vale Almoinha), em que a debitagem laminar está orientada para a produção de suportes para
pontas de face plana, que estes dois tipos de artefactos se encontram em frequências simultaneamente elevadas,
indicando que esses suportes seriam obtidos mediante uma exploração alternada de planos de percussão opostos.
Nas restantes indústrias, a ocorrência de núcleos com estas características reflecte uma exploração sequencial dos
respectivos planos de percussão.
os padrões identificados podem ser interpretados, por outro lado, como resultantes da
utilização de dois métodos de extracção distintos:
•
uso exclusivo de percutores moles (Fontesantense);
•
uso de percutores duros para a conformação do núcleo e a debitagem inicial, uso de
percutores moles durante a fase plena da debitagem (Aurignacense, Gravettense antigo,
no Gravettense final, Solutrense médio, Magdalenense superior, Magdalenense final).
As indústrias deste segundo conjunto ainda podem dividir-se em dois grupos, consoante a
frequência com que a preparação dos planos de percussão era praticada em fase plena da
debitagem. O Quadro 3.4 e a Fig. 3.8 mostram, com efeito, como, no Aurignacense e no
Magdalenense superior, cerca de 75% das lâminas de fase plena apresentam talão labiado,
sendo as frequências de talões preparados da mesma ordem de grandeza. Nas indústrias do
Gravettense antigo, do Gravettense final, do Solutrense médio, e do Magdalenense final,
porém, essas frequências são bastante inferiores, os respectivos valores extremos para a
frequência de talões preparados sendo constituídos pelos 13% do locus III de Cabeço de
Porto Marinho e pelos 67% do Casal do Cepo, todos os restantes conjuntos analisados
apresentando valores compreendidos entre os 20% e os 50%.
No que respeita às indústrias do Solutrense médio, conforme acima se argumentou já,
este padrão está relacionado, seguramente, com a coexistência de duas cadeias operatórias
distintas, uma das quais (a da exploração alternada de planos de percussão opostos para a
obtenção de suportes para armaduras) envolvendo a preparação sistemática dos planos de
percussão, a outra, aparentemente, dispensando-a em grande medida. Interpretação
semelhante foi igualmente proposta para as indústrias do Proto-Solutrense aquando do estudo
monográfico de Vale Comprido - Encosta (ver vol. II, capítulo 23). Neste caso, porém, a
94
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 3.10 - Em cima: as dimensões médias das lâminas de sílex com talão preparado enquanto instrumento de
diferenciação das indústrias do Paleolítico Superior português. Em baixo: a utilização das peças de debitagem
plena como elemento de comparação não afecta o padrão de diferenciação dimensional das indústrias
aurignacenses e proto-solutrenses, embora leve à fusão num agrupamento único dos conjuntos do Fontesantense,
do Gravettense final e do Solutrense médio; no entanto, o carácter único da técnica de preparação predominante
permite distinguir facilmente estas últimas.
Tecnologia lítica
95
cadeia operatória envolvendo a preparação dos planos de percussão e, portanto, em princípio,
o uso de percutores moles, terá sido dirigida à obtenção de suportes para facas. As pontas,
pelo contrário, terão sido obtidas mediante uma debitagem à pedra, sem preparação,
originando produtos de talão espesso subsequentemente regularizado por retoque, tipo lítico
original que se optou por designar como ponta de Vale Comprido (Zilhão e Aubry 1996).
O facto de, nas indústrias do Gravettense final, a percentagem de lâminas de fase plena
que apresentam talão preparado também não ser tão elevada quanto nas de outras épocas em
que foi utilizada tecnologia semelhante (Aurignacense e Magdalenense superior) pode
indicar, aliás, que esta cadeia operatória para pontas de Vale Comprido já então seria
praticada, embora de forma menos frequente, em conformidade com o facto de essas
indústrias conterem já alguns exemplares do tipo. Por outro lado, a maior ou menor
representação destas duas cadeias operatórias nas diferentes jazidas do Gravettense final e do
Proto-Solutrense poderia explicar, pelo menos até certo ponto, as diferenças entre elas
observadas no respeitante às frequências relativas dos talões preparados entre os produtos
laminares de debitagem plena: 26% em Vale Comprido - Encosta, 33% na Terra do José
Pereira, 44% a 46% na Terra do Manuel e em Vales da Senhora da Luz (Quadro 3.4). Essa
representação diferencial poderia ser responsável, nomeadamente, pela extrema raridade
deste tipo de talões no locus III de Cabeço de Porto Marinho (Fig. 3.8), facto que está
relacionado, seguramente, com o valor muito baixo apurado para a média do índice de
carenagem das lâminas desta jazida (Fig. 3.2), e razão pela qual os dados a ela respeitantes
não puderam ser utilizados na elaboração do gráfico da Fig. 3.10. Este último revela bem, no
entanto, como as indústrias do Proto-Solutrense tendem a diferenciar-se das do Gravettense
final pelas maiores dimensões médias dos produtos laminares de debitagem plena,
independentemente da cadeia operatória em cujo contexto tenham sido obtidos. Isto é, as
referidas dimensões médias não são simplesmente uma consequência de a cadeia operatória
das pontas ter um carácter eventualmente predominante no Proto-Solutrense, uma vez que a
diferença se mantém mesmo quando a comparação é feita apenas para os produtos laminares
preparados (embora, uma vez mais, seja de ter aqui em conta a dificuldade em realizar a
distinção entre a abrasão como preparação e a abrasão como retoque que sempre existe nestas
indústrias).
No que diz respeito às indústrias do Magdalenense final de fácies Carneira, a pequena
dimensão da amostra analisada (a das camadas 3-4 da jazida do Olival da Carneira) não
permite conclusões seguras. Tudo indica porém que, nesta fácies, a debitagem laminar estaria
orientada para a produção de lâminas e lamelas largas destinadas a transformação em
trapézios mediante a técnica do microburil. Dos três microburis recolhidos, dois eram
proximais, e em ambos os casos apresentavam, na realidade, um talão abradido. É possível,
portanto, que, nestas indústrias, a preparação dos planos de percussão por abrasão da cornija
tenha também estado ligada a uma cadeia operatória diferenciada, que, neste caso, teria como
finalidade última a obtenção de geométricos.
3.2.5. Produção de lamelas
As peças do Olival da Carneira a que acaba de se fazer referência (em que a presença de
microburis prova tratar-se de resíduos da fabricação de geométricos) eram, em ambos os
casos, de dimensões lamelares, tipo de produto que não foi tido em conta na argumentação
acima expendida a propósito da natureza e objectivos da exploração de núcleos prismáticos
conformados para a obtenção de suportes alongados. No entanto, os histogramas das larguras
do conjunto das lâminas e das lamelas elaborados para todas as indústrias que foram objecto
de estudo detalhado não permitiram demonstrar, em nenhum caso, a existência de
distribuições bimodais. A diferenciação entre as duas categorias de suportes alongados é,
portanto, em grande medida, artificial, pelo menos do ponto de vista métrico.
96
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 3.8
Suportes alongados
Relação entre a produção de lâminas e a produção de lamelas (sílex)
Lâminas
Lamelas
Lâminas + lamelas
Núcleos
total
total
rácio
larguras (a)
lâminas
lamelas
rácio
Vale de Porcos I
220
39
5,64
1,45-2,54
60
33
1,82
Vale de Porcos II
103
1
103
1,81-2,57
15
8
1,88
Vale Comprido - Barraca
185
94
1,97
1,01-1,80
10
86
0,12
Vale Comprido - Cruzamento
22
4
5,50
1,40-2,01
5
11
0,45
Casal do Felipe
150
157
0,96
0,89-1,51
0
50
0,00
Fonte Santa
942
1122
0,84
0,95-1,47
33
82
0,40
Terra do Manuel (1940-42)
486
1259
0,39
0,76-1,24
8
67
0,12
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
101
170
0,59
0,79-1,41
5
22
0,23
CPM III (nível médio)
111
167
0,66
0,77-1,39
4
16
0,25
Terra do José Pereira
115
120
0,96
0,80-1,70
7
41
0,17
Vales da Senhora da Luz
295
105
2,81
1,16-1,82
11
81
0,14
Vale Comprido - Encosta
1409
551
2,56
1,18-1,93
50
108
0,46
Casal do Cepo
387
422
0,93
0,90-1,40
22
42
0,52
Vale Almoinha
123
95
1,29
0,99-1,55
2
20
0,10
Olival da Carneira (cam. 5)
12
41
0,29
0,66-1,26
0
2
0,00
Cerrado Novo
4
448
0,01
0,44-0,70
0
66
0,00
Vale da Mata
37
532
0,07
0,60-1,02
1
49
0,02
Olival da Carneira (cam. 3-4)
98
213
0,46
0,75-1,31
1
11
0,09
(a) intervalo inter-quartis (cm)
Isso não significa, porém, que ela seja desprovida de sentido do ponto de vista da
economia da debitagem. Os dados do Quadro 3.8 e os gráficos da Fig. 3.11 permitem, com
efeito, constatar a existência de uma variabilidade importante na percentagem em que as duas
classes dimensionais de produtos alongados se encontram representadas nas diferentes
indústrias. A variação deste indicador segue de perto a dos limites do intervalo inter-quartis
da distribuição das larguras, embora, como é natural, apresente picos mais acentuados, os
quais facilitam a identificação dos conjuntos em que, proporcionalmente, a produção de
lâminas é mais importante: Vale de Porcos, Vale Comprido - Barraca, Vales da Senhora da
Luz e Vale Comprido - Encosta (as pequenas dimensões da amostra recolhida em Vale
Comprido - Cruzamento — razão pela qual esta colecção não foi, tal como a da camada 5 do
Olival da Carneira, incluída no gráfico da Fig. 3.11 — não permitindo que, a este respeito, se
possa ser concludente).
No caso de Vale de Porcos, o referido pico é acompanhado por um correspondente valor
elevado do rácio «núcleos para lâminas:núcleos para lamelas». As colecções provenientes dos
dois loci desta jazida são as únicas em que a quantidade de núcleos para lâminas é superior à
de núcleos para lamelas. Este facto sugere que a debitagem estaria efectivamente orientada
para a produção de lâminas, sendo os núcleos abandonados quando esse objectivo deixava de
poder ser atingido, a obtenção de lamelas ocorrendo como um subproduto do talhe laminar,
em fase plena ou final deste último ou, no caso dos produtos de menores dimensões, sendo
objecto de uma cadeia operatória separada, cujos resultados estariam representados na jazida
de forma bastante minoritária.
A situação em Vale Comprido - Encosta é paralelizável, em grande medida, com a de
Vale de Porcos: o intervalo inter-quartis da distribuição das larguras está integralmente
contido no interior de limites laminares, sendo considerável a quantidade de núcleos
Tecnologia lítica
97
Fig. 3.11 - As quatro grandes estratégias de produção de suportes alongados em sílex documentadas nas indústrias
do Paleolítico Superior português. A distorção causada pelo carácter mais acentuadamente oficinal de algumas
jazidas (como a de Vale Comprido - Barraca) foi eliminada mediante a tomada em consideração dos valores
atingidos pelo rácio «núcleos para lâminas:núcleos para lamelas».
abandonados na jazida em que eram observáveis negativos da extracção de lâminas e cujas
dimensões teriam permitido, portanto, a continuação da respectiva exploração para a
obtenção de lamelas. O facto de, nesta colecção, a percentagem de produtos alongados de
largura inferior a 8 mm ser negligenciável (menos de 5%) indica, no entanto, que, em Vale
Comprido - Encosta, os produtos classificados como lamelas corresponderão, na sua quase
totalidade, à cauda inferior da distribuição das lâminas. Isto é, indica que se tratará de peças
algo mais pequenas e mais estreitas obtidas em fase final da exploração de núcleos para
lâminas que, do ponto de vista dos critérios de classificação utilizados, seriam, no entanto,
incluídos entre as peças «para lamelas», dada a dimensão dos negativos observáveis nas
98
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
respectivas superfícies de debitagem. É bastante provável, assim, que, nesta jazida, a
produção dos suportes alongados de mais pequena dimensão (isto é, de largura compreendida
entre 4 e 8 mm) tenha sido feita no quadro de uma cadeia operatória independente, tal como
terá acontecido no caso de Vale de Porcos.
As outras duas jazidas em que a proporção de núcleos para lâminas apresenta valores
relativamente elevados são as da Fonte Santa e do Casal do Cepo. Nestes casos, tal como nos
do Casal do Felipe e de Vale Almoinha, porém, esses valores reflectem de forma fiel a
estrutura dos conjuntos de produtos alongados, cujos intervalos inter-quartis estão
compreendidos entre cerca de 1 e cerca de 1,5 cm, e cujas médias e medianas se situam
precisamente em torno dos 1,2 cm que constituem o limite dimensional convencional entre
lâminas e lamelas. Nestas indústrias, portanto, essa separação é inteiramente desprovida de
sentido, tanto do ponto de vista métrico como do ponto de vista conceptual, a produção
estando orientada para a obtenção de «lâminas» estreitas e de «lamelas» largas e sendo
claramente feita de forma sequencial.
QUADRO 3.9
Produção de suportes alongados a partir de núcleos prismáticos de sílex
Objectivos da debitagem e métodos de preparação
Aurignacense
Gravettense antigo
—
produção de lâminas de largura média superior a 2 cm, cuja extracção, em fase plena, é
preparada de forma sistemática, de um modo geral por abrasão, em alguns casos por
facetagem, por vezes combinando as duas técnicas
—
produção de lamelas de largura inferior a 8 mm no quadro de uma cadeia operatória
separada
—
produção de lâminas de largura média compreendida entre 1,5 e 2 cm, cuja extracção em
fase plena, quando preparada, o é por facetagem, nunca por abrasão
produção de lamelas em fase final da exploração dos núcleos para lâminas
—
Fontesantense
—
produção de suportes laminares/lamelares de largura média compreendida entre 1 e 1,5 cm,
cuja extracção é sistematicamente preparada por abrasão, a qual é executada logo desde a
fase inicial, não havendo, a este respeito, distinção com os produtos de fase plena
Gravettense final
—
produção de lâminas de largura média variando em torno dos 1,5 cm, cuja extracção,
quando preparada, o é de um modo geral por abrasão, a facetagem sendo raramente utilizada
produção de lamelas em fase final da exploração dos núcleos para lâminas
—
Proto-Solutrense
—
—
—
produção de lâminas de largura compreendida entre 1,5 e 2 cm, cuja extracção é de um
modo geral não preparada quando a debitagem é orientada para a obtenção de pontas de
Vale Comprido, e preparada por abrasão quando é orientada para a obtenção de facas
produção de lamelas em fase final da exploração dos núcleos para lâminas
produção de lamelas de largura inferior a 8 mm no quadro de uma cadeia operatória
separada
Solutrense médio
—
produção de suportes laminares/lamelares de largura média compreendida entre 1 e 1,5 cm,
cuja extracção é sistematicamente preparada por microfacetagem, e realizada através da
exploração alternada de dois planos de percussão opostos quando a debitagem é orientada
para a obtenção de suportes para pontas de face plana
Magdalenense antigo
(fácies Cerrado Novo)
—
—
produção de lamelas de largura inferior a 8 mm
produção acidental de lâminas na fase inicial das sequências de talhe, as quais estão
orientadas exclusivamente para a produção de lamelas
Magdalenense superior
—
produção de lamelas, com obtenção de lâminas de largura média ligeiramente superior a
1,2 cm (cuja extracção é sistematicamente preparada por abrasão) em fase intermédia de
sequências de produção orientadas essencialmente para a obtenção dos suportes alongados
de menor tamanho
Magdalenense final
(fácies Carneira)
—
produção de lâminas de largura média variando em torno dos 1,5 cm, cuja extracção,
quando preparada, o é por abrasão, e visa a obtenção, em fase plena, de suportes de largura
mais pequena (em torno de 1 cm), destinados a transformação em geométricos
produção de lamelas em fase intermédia e final da exploração dos núcleos para lâminas
—
Tecnologia lítica
99
O polo oposto ao representado pelas jazidas de Vale de Porcos é o que corresponde às
indústrias magdalenenses das fácies representadas no Pinhal da Carneira e no Cerrado Novo
(ver vol. II, capítulos 44 e 46), e de cuja estratégia de produção de suportes alongados esta
última pode ser considerada como representativa. Nela, o limite superior dos intervalos inter-quartis é de apenas 7 mm, a produção de lâminas sendo praticamente nula e, aliás,
provavelmente acidental. Nas do Magdalenense superior (Cabeço de Porto Marinho e Vale da
Mata — ver vol. II, capítulos 42 e 47), embora muito minoritária, a produção de lâminas está
no entanto bem documentada, tudo indicando, apesar disso, que se faria no quadro de uma
sequência única, em cuja fase inicial seria obtida a cauda de produtos de largura superior a
1,2 cm que se encontra nas distribuições de suportes alongados das jazidas desta época. O
mesmo se dirá das indústrias do Gravettense final (Terra do Manuel, escavações de 1940-42),
bem como de algumas das atribuíveis ao Proto-Solutrense (Terra do Manuel — escavações
de 1988-89, Cabeço de Porto Marinho III e Terra do José Pereira), ou das da fácies do
Magdalenense final representada no Olival da Carneira.
Em todas estas indústrias, a produção de lamelas é, com efeito, claramente dominante,
embora os valores do rácio «núcleos para lâminas:núcleos para lamelas», por um lado, e o
facto de nos intervalos inter-quartis apenas estarem compreendidas as lamelas de largura
superior a 8 mm, por outro, permitam evidenciar que a produção de lâminas tinha nelas um
peso maior do que no Magdalenense superior. Estas diferenças, no entanto, parecem ser, no
essencial, diferenças de grau, já que em todos os casos não há quaisquer indícios que
apontem para uma produção de lâminas e de lamelas feita de forma não sequencial. Indícios
que, aliás, também parecem não existir no Magdalenense antigo de fácies CPM, uma vez que
o valor (0,26) do rácio «lâminas:lamelas» calculado, usando os dados obtidos por Bicho
(1992), para o nível inferior do locus I de Cabeço de Porto Marinho, é da ordem de grandeza
dos apurados para as restantes indústrias magdalenenses.
Embora partilhando com os conjuntos de Vale de Porcos o carácter claramente
dominante das lâminas entre os restos de debitagem, as colecções de Vale Comprido - Cruzamento e de Vales da Senhora da Luz apresentam, no entanto, proporções muito baixas
de núcleos para lâminas. Muito baixos (1,09 e 1,30 lamelas por núcleo, respectivamente) são
também, além disso, os valores da relação entre a quantidade de núcleos para lamelas e a
quantidade de lamelas, os quais não sofrem alteração significativa mesmo tomando em conta
os poucos suportes lamelares transformados em utensílios retocados. Esta produtividade
anómala indica que as lamelas deverão estar seriamente sub-representadas nas colecções em
causa, e também (se essa sub-representação não for um artefacto das condições de jazida, ou
dos critérios de recolha, triagem e conservação utilizados pelos escavadores) que, portanto,
deverão ter sido exportadas em proporção considerável, tendo os dois sítios funcionado, deste
modo, em grande medida, como oficinas de talhe. Ou seja, nestes casos, as proporções em
que os suportes das duas classes de produtos alongados foram abandonados nas jazidas
parecem ser um indicador menos fidedigno das proporções em que cada qual nelas foi
produzido do que o fornecido pelo rácio «núcleos para lâminas:núcleos para lamelas». O
valor atingido por este último é idêntico aos verificados na Terra do Manuel, na Terra do José
Pereira e no Olival da Carneira, sugerindo, portanto, que também nos casos de Vale
Comprido - Cruzamento e de Vales da Senhora da Luz estaremos perante situações em que as
duas classes de produtos alongados terão sido debitadas de forma sequencial.
A consideração deste conjunto de dados permite, assim, caracterizar quatro estratégias
claramente diferenciadas de produção de suportes alongados a partir de núcleos prismáticos
(Quadro 3.9; Fig. 3.11):
100
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
•
a estratégia de tipo Vale de Porcos, documentada nos dois loci desta jazida e em Vale
Comprido - Encosta, ou seja, no Aurignacense e no Proto-Solutrense, em que os núcleos
prismáticos eram explorados para a obtenção de suportes de largura superior a 1 cm
(>1,5-2 cm no caso da primeira), sendo a produção de lamelas de largura <8 mm feita no
quadro de uma cadeia operatória separada;
•
a estratégia de tipo Cerrado Novo, que parece ser exclusiva das fácies magdalenenses
representadas aí, no Rossio do Cabo, e no Pinhal da Carneira, em que a exploração dos
núcleos prismáticos está orientada para a produção de lamelas de largura < 8 mm;
•
a estratégia de tipo Fonte Santa, que caracteriza as indústrias do Fontesantense e do
Solutrense médio, em que a exploração dos núcleos prismáticos tem como objectivo a
obtenção de suportes de largura altamente normalizada, compreendida entre 1 e 1,5 cm;
•
as estratégias mistas, em que a obtenção de lâminas e de lamelas se faz de forma
sequencial, isto é, em que os núcleos prismáticos continuam a ser explorados para a
produção de lamelas após a respectiva capacidade de produção de lâminas se encontrar
exaurida; estas estratégias caracterizam as restantes indústrias do Paleolítico Superior
português, nas quais, portanto, haverá que ter em conta, na análise da economia da
debitagem, que à fase inicial de conformação da superfície de debitagem e à fase plena de
produção de lâminas se segue uma fase final de produção de lamelas; é a importância
relativa destas duas últimas que permite diferenciar as diversas indústrias incluídas neste
grupo, nalgumas das quais (como as do Magdalenense superior, por exemplo) as lâminas
produzidas em fase plena são raras, as dimensões dos núcleos implicando a entrada em
fase de produção de lamelas praticamente a partir do momento em que a fase de
conformação fica concluída.
Como é natural, estas estratégias não devem ser consideradas como correspondendo a
«receitas» fielmente seguidas pelos artesãos das diversas épocas em todas e cada uma das
inúmeras sequências concretas de talhe executadas. Trata-se de sequências ideais, que
procuram dar uma ideia de um comportamento médio, e que são uma resultante de diversas
sequências particulares que só mediante trabalhos de remontagem poderia ser possível
reconstituir em todo o seu detalhe e individualidade.
QUADRO 3.10
Selecção e transformação das lâminas
Frequência relativa das peças sem córtex entre o material bruto e retocado de suporte laminar (a)
Brutas
Retocadas
Raspadeiras
Facas
Pontas
Vale de Porcos I
63%
56% (32)
12% (8)
83% (6)
— (0)
Vale Comprido - Barraca
49%
60% (68)
50% (8)
89% (9)
— (1)
Casal do Felipe
72%
71% (48)
58% (24)
67% (6)
100% (15)
Fonte Santa
74%
74% (230)
53% (47)
61% (84)
98% (91)
Terra do Manuel (1940-42)
69%
53% (210)
53% (83)
71% (56)
96% (24)
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
49%
62% (29)
— (4)
62% (16)
100% (6)
CPM III (nível médio)
56%
45% (22)
43% (7)
22% (9)
— (1)
Terra do José Pereira
52%
39% (41)
45% (20)
29% (17)
— (1)
Vales da Senhora da Luz
67%
54% (61)
33% (24)
65% (23)
— (0)
Vale Comprido - Encosta
60%
66% (377)
37% (122)
65% (98)
93% (128)
Casal do Cepo
69%
85% (170)
52% (42)
76% (55)
96% (73)
Vale Almoinha
85%
80% (107)
59% (29)
77% (30)
96% (48)
Vale da Mata
73%
75% (32)
83% (6)
75% (16)
— (1)
Olival da Carneira (cam. 3-4)
77%
46% (13)
— (2)
50% (8)
— (0)
(a) entre parêntesis, os valores de N correspondentes aos conjuntos sobre cujos totais foram calculadas as diferentes
percentagens
Tecnologia lítica
101
Fig. 3.12 - A economia da debitagem nas indústrias do Paleolítico Superior. Quando transformados por retoque, os
suportes laminares de debitagem plena (sem córtex), mais finos e portanto de gume mais agudo, são-no de
preferência em utensílios para cortar: facas e pontas. Os suportes laminares de debitagem inicial (com córtex), por
seu lado, são subprodutos frequentemente reaproveitados e que, quando isso acontece, o são preferencialmente em
utensílios para raspar, dada a sua maior espessura relativa (índice de carenagem mais baixo) e, portanto, o seu
gume menos cortante.
3.2.6. Selecção e transformação
A argumentação acima expendida a propósito dos padrões de preparação evidenciados pelo
material laminar de debitagem plena das diversas indústrias ilustra bem a necessidade de, na
interpretação das características dos suportes brutos, ter em conta não só a determinação do
momento inicial, pleno ou final da sequência de talhe em cujo contexto foram produzidos,
mas também a natureza dos usos a que se destinavam os produtos cuja obtenção constituía a
finalidade dessas sequências.
A forma como se geriam as diversas classes de restos que entre a fase de descorticamento
e o momento do abandono do núcleo iam resultando das operações de talhe executadas sobre
os blocos de matéria-prima será objecto de uma análise mais detalhada, caso a caso, no
capítulo 5, em que se procurará caracterizar os diversos momentos da sequência cultural-estratigráfica do Paleolítico Superior português. Os elementos acima referidos parecem
suficientes, no entanto, para permitir sustentar desde já a afirmação de que as estratégias de
debitagem seguidas eram condicionadas, em grande medida, pela natureza dos produtos
pretendidos.
Pelo menos no caso das indústrias do Fontesantense parece bastante claro, com efeito,
que os métodos seguidos na exploração dos núcleos prismáticos estão orientados para a
produção de suportes para pontas de Casal do Felipe. Ou, dito de outro modo, que podemos
afastar a hipótese de o carácter bastante normalizado dos suportes destes tipos de armaduras
(que se constatou a propósito do estudo monográfico das colecções em que eles estão
representados — ver vol. II, capítulos 11 e 15) ser simplesmente o resultado de uma selecção
efectuada no interior de uma gama de produtos de forma e proporções aleatórias, obtidos de
102
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
forma oportunística. Pelo contrário, é a decisão de produzir esses suportes com características
que se encontram à partida definidas de forma precisa que determina o modo como é
empreendida a exploração dos blocos de matéria-prima. Nos casos do Proto-Solutrense e do
Solutrense médio, a pré-definição dos objectivos finais do talhe dá origem, inclusivamente, à
concepção de cadeias operatórias especializadas: debitagem à pedra de suportes para pontas
de Vale Comprido, de talão espesso subsequentemente adelgaçado por retoque, no Proto-Solutrense; exploração de núcleos prismáticos com dois planos de percussão opostos,
preparados por microfacetagem, para a obtenção dos suportes destinados a transformação em
pontas de face plana, no Solutrense médio.
O material resultante das operações de talhe ligadas à preparação e à conformação das
superfícies a partir das quais se obterão, em fase plena da produção, os tipos de suportes
pretendidos no quadro das cadeias operatórias em execução, corresponde, portanto, em
grande medida, a subprodutos. Isso não significa, porém, que se trate exclusivamente de
material residual. O Quadro 3.10 e a Fig. 3.12 são, a este respeito, extremamente
elucidativos, já que permitem evidenciar um padrão que é comum a todas as indústrias do
Paleolítico Superior que foram analisadas e em que a produção de lâminas é industrialmente
significativa, e isto quer ela se faça no quadro de uma cadeia operatória única ou no quadro
de cadeias operatórias múltiplas: enquanto mais de 90% das pontas líticas de suporte laminar
são peças não corticais, essa percentagem é sempre inferior a 60% no caso das raspadeiras
(excepto em Vale da Mata, onde, porém, a amostra é demasiado pequena — apenas seis
peças), e apresenta valores intermédios no caso das lâminas denticuladas, com entalhes ou de
retoque lateral, que se pode presumir terem sido utilizadas como facas.
Tudo se passa, portanto, como se o artesão soubesse à partida que a decisão de orientar o
talhe para uma determinada finalidade não o impediria de ter à sua disposição suportes de
características diferentes, que poderia obter sempre que necessário mediante o simples
reaproveitamento dos subprodutos decorrentes do processo de preparação e conformação dos
núcleos. Quando um tal reaproveitamento tivesse efectivamente lugar, seria de esperar que a
transformação desses produtos de fase inicial desse preferencialmente origem a utensílios
para raspar, dado se tratar de um modo geral de objectos mais espessos e com índices de
carenagem mais baixos, ou seja, com gumes menos agudos. Pelo contrário, os produtos de
fase plena, mais delgados e de índices de carenagem mais elevados, ou seja, com gumes em
média significativamente mais agudos, deveriam ser preferencialmente transformados em
utensílios para cortar.
A generalidade dos estudos traceológicos até hoje realizados (ver vol. II, capítulo 2), por
um lado, e a análise dos estigmas de impacto realizada no quadro dos estudos monográficos
que foram apresentados no vol. II, por outro, confirmam que aos artefactos tipologicamente
definidos como raspadeiras corresponde efectivamente a função de raspar, e que as pontas de
Casal do Felipe, de Vale Comprido e de face plana correspondem efectivamente a armaduras
de projéctil. A Fig. 3.2 permite, além disso, constatar que é nas indústrias com pontas líticas
de suporte laminar (como as escavadas nas jazidas de Fonte Santa, Casal do Felipe e Vale
Almoinha) que os índices de carenagem médios dos conjuntos laminares atingem os valores
mais elevados. Neste contexto, o gráfico da Fig. 3.12, que demostra uma correspondência
plena entre a expectativa teórica e a realidade efectiva das utensilagens do Paleolítico
Superior, pode ser interpretado como indicando que o padrão evidenciado por estas últimas
releva de um planeamento consciente e deliberado, ou seja, que estamos de facto perante uma
verdadeira «economia da debitagem» (Perlès 1991), determinada em primeiro lugar por
considerações de natureza funcional.
Tecnologia lítica
103
3.3. Produção de barbelas
3.3.1. As «raspadeiras» espessas como núcleos carenados
Os objectos que a lista-tipo de Sonneville-Bordes e Perrot (1954-56) inclui entre os utensílios
retocados do grupo das raspadeiras diferem entre si, fundamentalmente, no que respeita à
forma como em cada caso se combinam os atributos registados em três domínios de
observação distintos: natureza do suporte; espessura da frente; morfologia do retoque. Dos
três, provavelmente, só o último contem informação de natureza estilística: o fundamento da
variação dos outros dois é de natureza claramente tecnológica. As análises morfométricas
realizadas sobre as raspadeiras das indústrias que foram objecto dos estudos monográficos
apresentados no vol. II procuraram precisamente avaliar até que ponto essa variação
tecnológica podia ser utilizada como o critério básico de diferenciação a que os de natureza
estilística deveriam estar logicamente subordinados.
Além do comprimento, da largura e da espessura do suporte, mediram-se também,
seguindo as definições apresentadas no vol. II (capítulo 2), a largura e a espessura da frente.
As análises demonstraram que as espessuras do suporte e da frente estavam estreitamente
correlacionadas e que a sua consideração simultânea era, portanto, redundante. Neira et al.
(1991-92) chegaram a conclusão idêntica com base na análise multivariada de um pequeno
conjunto de raspadeiras provenientes de uma jazida do Paleolítico Superior da província de
León (Espanha). Das seis variáveis dimensionais por eles utilizadas só a variação de quatro,
precisamente as mesmas que se utilizaram nas nossas análises, se verificou ser significativa.
As técnicas estatísticas utilizadas no nosso caso foram mais simples, mas nem por isso menos
eficazes: redução das quatro variáveis a dois índices — alongamento (comprimento÷largura)
do suporte e carenagem (largura÷espessura) da frente — cujas médias e desvios-padrão,
calculados para cada tipo da lista, foram implantados sobre diagramas de dispersão.
Fig. 3.13 - Diagrama de dispersão dos índices morfométricos das raspadeiras inteiras do Proto-solutrense de Vale
Comprido - Encosta. Incluíram-se ambas as frentes das raspadeiras duplas e as dos utensílios compósitos, e excluíram-se as
peças cujo índice de carenagem da frente era superior a 6 (7% de um total de 244). Os três grupos fundamentais (peças
espessas, alongadas e curtas) diferenciam-se claramente. A presença de indivíduos com características intermédias
não chega para obscurecer o padrão de base, sobretudo no que respeita à separação entre peças espessas e finas.
104
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Estes diagramas produziram em todos os casos o mesmo resultado, agrupando de forma
sistemática os diversos tipos em três categorias fundamentais: raspadeiras espessas;
raspadeiras finas alongadas; raspadeiras finas curtas. Os critérios de classificação utilizados,
em que as peças sobre extremo de lâmina foram separadas das sobre extremo de lasca (tipos
1b, 2b e 5b), tiveram no entanto a consequência de fazer com que estes últimos tipos
aparecessem sobre o eixo correspondente ao alongamento do suporte numa posição
intermédia entre o agrupamentos de peças curtas (tipos 8, 9 e 10) e o de peças cujo
alongamento era por definição superior a 2 (tipos 1a, 2a e 5a). Na realidade, porém, aqueles
primeiros três tipos correspondem a uma cauda da distribuição destes três últimos. No que diz
respeito à diferenciação entre espessas e finas, medida sobre o eixo de carenagem da frente,
ela era porém absoluta. As peças dos tipos 11-13 e 15 são, em todas as indústrias analisadas,
morfometricamente distintas das restantes.
Como é natural, esta diferenciação média não exclui a existência de formas de transição.
O gráfico da Fig. 3.13 procura precisamente mostrar, para um caso concreto (o da jazida de
Vale Comprido - Encosta, em que as raspadeiras eram especialmente numerosas — 244
exemplares inteiros), como a consideração dos valores médios obtidos para cada tipo conduz
naturalmente à simplificação de uma realidade bastante mais complexa. É patente a
existência de peças que correspondem a situações intermédias e de classificação difícil,
nomeadamente entre as raspadeiras integradas no tipo 8, algumas das quais apresentavam
frentes bastante espessas, o que também acontecia nalguns casos de peças com suporte de
alongamento superior a 1. A separação entre estas últimas e as que tinham suportes de
contorno a tender para o circular e que, por isso, foram classificadas como «sobre lasca»,
também não é nítida do ponto de vista métrico, embora o seja do ponto de vista morfológico.
Apesar disso, parece claro que o gráfico em questão permite confirmar o carácter
diferenciado das peças incluídas nos tipos 11-13 e 15, as quais, com uma única excepção, têm
índices de carenagem da frente inferiores a 2, enquanto que a grande maioria das restantes
raspadeiras apresenta índices de carenagem da frente variando em torno de 3.
Esta conclusão é apoiada pelo padrão revelado por um dos gráficos da Fig. 3.14, aquele
em que se apresenta um diagrama de dispersão no qual foram implantadas, para as diferentes
colecções em que a quantidade de peças permitia realizar a comparação, as médias das duas
dimensões relevantes para o cálculo do índice de carenagem (largura da frente e espessura da
frente), tomando os tipos 1a e 11 como emblemáticos dos grupos de raspadeiras finas e
espessas, respectivamente. O gráfico em questão revela a existência de um elevado
coeficiente de correlação entre as duas variáveis (0,69, no caso das médias para as peças de
tipo 1a, e 0,86, no caso das médias para as peças de tipo 11), e a constatação de que as
raspadeiras carenadas têm uma frente em média 1 cm mais alta do que as simples sobre
extremo de lâmina.
A inclusão destas peças de frente espessa no grupo das raspadeiras, que é comum a todas
as listas tipológicas do Paleolítico Superior e do Mesolítico (Sonneville-Bordes e Perrot
1954-56; Tixier 1963; Laplace 1966; Bordes 1978; Rozoy 1978; Demars 1990), foi
obviamente determinada, originalmente, pela convicção de que se tratava de artefactos cuja
funcionalidade era idêntica à das restantes, isto é, de que se tratava de utensílios usados para
raspar. Ultimamente, porém, esta convicção tem sido seriamente questionada. Estudos
traceológicos, como os de Keeley (1988), vieram mostrar, com efeito, que estes objectos
deviam, na realidade, corresponder a núcleos. A sua exploração teria como objectivo a
obtenção de suportes para lamelas Dufour, tanto no caso das indústrias aurignacenses do
Próximo Oriente como no caso das do Sudoeste de França (Ferring 1988; Rigaud 1993).
Segundo este último autor, os estudos traceológicos realizados por H. Plisson sobre os
micrólitos deste tipo recolhidos nos níveis aurignacenses do abrigo Flageolet I, no Périgord,
Tecnologia lítica
105
Fig. 3.14 - Em cima (ver Fig. 3.10 para os códigos das jazidas): à esquerda — a diferenciação entre raspadeiras
espessas e finas, com base nas dimensões da frente, exemplificada para os tipos 1a e 11 nas indústrias em que a
quantidade de peças era suficiente para permitir a respectiva comparação; à direita — os picos da variação
percentual das raspadeiras espessas nem sempre coincidem com a ocorrência nas indústrias, mesmo se em
percentagens reduzidas, de lamelas Dufour, de Areeiro ou de dorso marginal; os produtos da debitagem deste tipo
especial de núcleos devem portanto, em muitos casos, ter sido utilizados sem retoque, como barbelas brutas. Em
baixo: nas indústrias com muitas armaduras microlíticas, o índice tipológico de raspadeira espessa dá uma ideia
falseada do peso verdadeiro deste tipo de peças, cuja utilização é sobretudo importante (embora com uma
significativa variação inter-sítios) no Gravettense final, no Proto-Solutrense e no Magdalenense, conforme
revelado pela variação dos outros indicadores utilizados — índice técnico, em que a percentagem de raspadeiras
espessas foi calculada sobre a totalidade dos núcleos (incluindo-as enquanto tais) — e índice económico — em
que foi calculada sobre a totalidade das lascas transformadas (tanto em núcleos como em raspadeiras espessas e em
outros «utensílios retocados» da lista-tipo).
indicariam que essas lamelas corresponderão à parte lítica de armaduras compósitas, isto é,
que se tratará de barbelas de pedra para pontas de projéctil fabricadas em madeira ou em
matéria dura de origem animal (osso, marfim, haste de cervídeo).
As remontagens realizadas na Lapa do Anecrial (ver vol. II, capítulo 10) confirmam o
ponto de vista segundo o qual as «raspadeiras» espessas são na realidade núcleos. Elas
demonstram, com efeito, a ocorrência deste tipo de objectos num contexto arqueológico de
ocupação única e de muito curta duração, em que não parece verosímil a realização de
actividades domésticas (como o trabalho das peles). O talhe realizado no local estava
orientado para a produção de lamelas e de pequenas lascas (ou esquírolas), e foi feito a partir
de volumes que, na sua forma final de abandono, seriam tipologicamente classificáveis, nuns
106
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
casos, como «raspadeiras» carenadas ou afocinhadas, e, noutros, como núcleos prismáticos.
As remontagens mostram, porém, que os dois tipos de núcleos deram origem a produtos de
morfologia idêntica, por um lado, e, por outro, que ambos são o resultado da exploração
sequencial de blocos de maiores dimensões, por vezes deliberadamente subdivididos à
partida em volumes cujo tamanho era considerado como o mais apropriado para a obtenção
imediata, sem qualquer preparação especial, dos produtos pretendidos.
Por outro lado, do ponto de vista métrico, deve assinalar-se que as dimensões de
abandono das «raspadeiras» espessas do Paleolítico Superior português são inteiramente
compatíveis com esta interpretação, conforme resulta da consulta dos dados do Quadro 3.11,
em que se introduziram (para as jazidas em que o material era em quantidade suficiente para
permitir a comparação) os valores correspondentes ao comprimento das lamelas Dufour, de
Areeiro e de dorso marginal, por um lado, e à espessura das frentes das «raspadeiras»
espessas, por outro. Dada a forma como foi feito o registo desta última dimensão (ver vol. II,
capítulo 2), o comprimento dos negativos existentes nas frentes das «raspadeiras» espessas
pode ser trigonometricamente obtido a partir do ângulo formado pela frente (ou superfície de
debitagem) com a face inferior (ou plano de percussão). Para um ângulo de 60 a 70°, que se
pode estimar ser o encontrado na grande maioria das peças deste tipo, os comprimentos dos
negativos correspondentes àquelas dimensões médias seriam cerca de 10% mais elevados do
que os apurados para as espessuras, ou seja, variariam entre 1,35 e 1,80 cm.
No entanto, usando somente os dados referentes às raspadeiras carenadas (tipo 11), os
valores obtidos são, como é natural, mais elevados, já que os respectivos critérios de
definição implicam a presença de negativos lamelares e, portanto, a eliminação das peças que
(pelo menos na fase final de exploração) tenham produzido esquírolas em vez de lamelas
(como as raspadeiras carenadas atípicas). E, nas colecções utilizadas no diagrama de
dispersão da Fig. 3.14, as espessuras médias das peças do tipo 11 variavam com efeito entre
os 1,32 cm de Vale da Mata e os 2 cm de Vales da Senhora da Luz, implicando que os
últimos produtos delas extraídos tivessem em média um comprimento situado entre 1,45 e
2,20 cm, respectivamente. Estes valores podem, portanto, ser tomados como dando uma ideia
dos comprimentos médios dos suportes lamelares extraídos dos núcleos/«raspadeiras»
espessas destas colecções, valores esses que são virtualmente idênticos aos obtidos para os
comprimentos observados nas peças das jazidas de Vale Comprido - Barraca, Terra do
Manuel (1940-42), Cerrado Novo e Vale da Mata que foram efectivamente transformadas em
lamelas Dufour, de Areeiro e de dorso marginal (Quadro 3.11).
Aubry et al. (1995) referem igualmente a ocorrência de micrólitos de dorso marginal, por
vezes apontados por retoque uni ou bilateral, alguns de dimensões muito reduzidas (e todos
eles integráveis nos nºs 90a-c da lista-tipo usada neste trabalho — ver vol. II, capítulo 2), nos
níveis 9 e 10, intermediários entre o Gravettense e o Solutrense, do Abri Casserole (Les
Eyzies, Périgord). Nesses níveis, as únicas peças susceptíveis de terem constituído os núcleos
a partir dos quais os suportes desses micrólitos poderiam ter sido extraídos são precisamente
as «raspadeiras» afocinhadas espessas. Embora ainda não tenha fornecido remontagens, o
estudo dos conjuntos líticos aqui recolhidos suscitou a realização de experiências de talhe,
mediante as quais se obtiveram exactamente os mesmos tipos de produtos e de subprodutos,
permitindo reconstituir a cadeia operatória utilizada: extracção de lascas grandes, de 30 a
40 g de peso, mediante percutor de pedra, a partir de núcleos prismáticos que em estado de
abandono apenas apresentam negativos de lascas; utilização dessas lascas como suporte para
núcleos, mediante a fabricação de uma «frente de raspadeira afocinhada» obtida por entalhes
profundos; produção de lamelas com percutor mole usando o «focinho» como superfície de
debitagem, as extraídas das respectivas zonas laterais saindo torcidas, as da zona central
saindo apontadas e de perfil direito. Esta reconstituição experimental coincide no essencial
com a que resulta das remontagens efectuadas na Lapa do Anecrial (ver vol. II, capítulo 10).
Tecnologia lítica
107
QUADRO 3.11
Raspadeiras espessas e lamelas Dufour, de Areeiro e de dorso marginal
Dimensões comparadas
Tipos 11-13, 15
espessura das frentes
Tipos 90a-c
comprimento
Vale Comprido - Barraca
1,60±0,40 (16)
2,58±0,59 (4)
Terra do Manuel (1940-42)
1,64±0,47 (54)
2,51±0,30 (6)
Cerrado Novo
1,28±0,21 (29)
1,55±0,31 (85)
Vale da Mata
1,21±0,32 (18)
1,36±0,39 (51)
(a) entre parêntesis, os valores de N correspondentes aos conjuntos sobre cujos totais
foram calculadas as diferentes percentagens
Nesta última jazida, cuja cronologia é idêntica à dos níveis 9 e 10 do Abri Casserole,
nenhuma das numerosas lamelas e esquírolas extraídas dos núcleos prismáticos para lamelas
e das «raspadeiras espessas» apresentava porém quaisquer vestígios de retoque. Esta situação
pode ser objecto de duas interpretações alternativas: ou houve efectivamente algumas peças
que foram retocadas, as quais, constituindo o objectivo final das operações de talhe realizadas
no local, foram exportadas da jazida, eventualmente já montadas nas pontas de madeira ou
osso de que constituiriam as respectivas barbelas líticas; ou este tipo de componentes era, nas
indústrias portuguesas desta época, usado de um modo geral em estado bruto, sem qualquer
retoque.
Um dos gráficos apresentados na Fig. 3.14 procura precisamente ilustrar a relação que
existe nas diversas indústrias analisadas entre a exploração de núcleos do tipo «raspadeira»
espessa e a frequência das lamelas Dufour, de Areeiro e de dorso marginal (tipos 90a-c).
Conforme se depreende da respectiva leitura, a situação documentada na Lapa do Anecrial
não é de modo nenhum única: noutras jazidas em que esta tecnologia está igualmente bem
representada, como as do Casal do Felipe, de Vales da Senhora da Luz, do Gato Preto e de
Vale Comprido - Encosta, também não foi recolhido nenhum exemplar destes tipos de
armaduras microlíticas. No caso das duas últimas, aliás, também não havia lamelas de dorso
que, no Casal do Felipe e em Vales, embora presentes, eram muito raras (duas na primeira
jazida e três na segunda — ver vol. II, capítulos 15 e 17), pelo que não se pode argumentar
que a ausência dos tipos 90a-c estará relacionada com o facto de os suportes obtidos a partir
das «raspadeiras» espessas terem eventualmente sido objecto de transformação em utensílios
dos tipos 85-87. Nestas circunstâncias, parece claro que a presença ou ausência de micrólitos
de dorso numa determinada indústria não constitui por si só um indicador adequado da
utilização ou não utilização de pontas compósitas armadas de barbelas líticas, uma vez que,
em muitas indústrias, estas últimas não seriam objecto de qualquer retoque e, portanto, por
definição, não se encontrarão discriminadas entre os utensílios contabilizados pelas listas-tipo.
Na ausência, devido às condições de preservação, das próprias pontas, a presença de tipos
de núcleos que, como as «raspadeiras» espessas, indiciem uma debitagem especializada,
orientada para a obtenção das referidas barbelas, é, portanto, um indicador bastante mais
seguro dessa utilização. Paradoxalmente, resulta assim que a inclusão destes núcleos na lista-tipo dos utensílios não é inteiramente desprovida de sentido, embora esse sentido não seja o
originalmente suposto. No entanto, dado que a sua frequência é medida em função de um
total de objectos que, na sua maioria, são de funcionalidade distinta, o índice de raspadeira
espessa constitui necessariamente um indicador apenas aproximado da realidade, útil
sobretudo na medida em que permite documentar a presença ou ausência da técnica.
108
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 3.12
«Raspadeiras» espessas e peças esquiroladas
Variação da frequência dos núcleos para barbelas (a)
Frequência absoluta
U
N
LT
Vale de Porcos I
131
118
123
Vale Comprido - Barraca
385
238
314
RE
índice tipológico
índice económico
índice técnico
PE
RE
PE
RE (b)
PE (c)
RE
PE
3
0
2,29
0,00
2,44
0,00
2,48
0,00
15
10
3,90
2,60
4,46
3,18
5,93
4,03
Casal do Felipe
203
108
124
18
12
8,87
5,91
10,48
9,68
14,29
10,00
Fonte Santa
841
261
385
10
105
1,19
12,49
2,34
26,72
3,69
28,69
Terra do Manuel (1940-42)
870
147
359
48
9
5,52
1,03
12,53
2,51
24,62
5,77
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
171
111
128
10
0
5,85
0,00
6,25
0,00
8,26
0,00
CPM III (nível médio)
124
103
100
8
1
6,45
0,81
7,00
0,10
7,21
0,96
Terra do José Pereira
209
143
190
11
4
5,26
1,91
5,79
2,11
7,14
2,72
Vales da Senhora da Luz
311
232
289
19
1
6,11
0,32
6,57
0,35
7,57
0,43
Gato Preto
96
53
85
37
3
38,54
3,13
40,00
3,53
41,11
5,36
Vale Comprido - Encosta
951
385
645
50
9
5,26
0,95
7,44
1,40
11,49
2,28
Casal do Cepo
420
99
194
7
6
1,67
1,43
3,60
3,09
6,60
5,71
Vale Almoinha
441
85
204
2
26
0,45
5,90
0,98
12,75
2,30
23,42
Cerrado Novo
536
165
414
29
5
5,41
0,93
7,00
1,21
15,76
1,19
Vale da Mata
1343
99
295
17
6
1,27
0,45
4,75
2,03
14,66
5,71
Olival da Carneira (cam. 3-4)
131
41
113
4
1
3,05
0,76
3,53
0,88
8,89
2,38
(a) U = utensílios; N = núcleos; LT = lascas transformadas (em núcleos ou utensílios); RE = raspadeiras espessas;
PE = peças esquiroladas
índice tipológico = RE ou PE / U * 100
índice económico = RE ou PE / LT * 100
índice técnico = RE ou PE / [N + (RE ou PE)] * 100
(b) só peças sobre lasca (tipos 11-13), com exclusão, portanto, das nucleiformes (tipo 15)
(c) incluindo também, no caso da Fonte Santa, 8 peças esquiroladas sobre lâmina
Na Fig. 3.14 inclui-se também um gráfico em que se procura precisamente avaliar, a
partir dos dados do Quadro 3.12, a forma como o peso da técnica em questão numa
determinada indústria varia consoante o indicador utilizado para realizar a respectiva
medição é um dos três que nela foram considerados: o índice tipológico, em que as
«raspadeiras» espessas são contadas como utensílios; o índice económico, em que a sua
frequência é calculada como percentagem da totalidade das lascas que após a respectiva
extracção foram retomadas como suporte tanto para utensílios como para núcleos; e o índice
técnico, em que as «raspadeiras» espessas são agregadas aos núcleos e contadas como uma
percentagem da totalidade do conjunto assim obtido. Da leitura do referido gráfico resultam
uma série de constatações importantes:
•
o índice tipológico identifica correctamente os extremos da variação, isto é, os conjuntos
onde a técnica está representada de forma esmagadoramente dominante (Gato Preto), e
aqueles em que ela está praticamente ausente (Vale de Porcos, Fonte Santa, Vale
Almoinha);
•
o índice económico segue de perto a variação do índice tipológico, o que se explica
facilmente se se tiver em conta que, de um modo geral, a percentagem de núcleos em que
o respectivo suporte pode ser identificado de forma segura como correspondendo a um
produto de debitagem é pequena em todas as indústrias (e subestima seguramente a
situação original); este índice permite, no entanto, identificar um pico importante que o
índice tipológico escondia, o respeitante à colecção proveniente das antigas escavações
de Heleno na Terra do Manuel;
Tecnologia lítica
•
109
o índice técnico confirma as indicações fornecidas pelos outros dois, mas permite ainda
isolar um terceiro grupo de indústrias (as representadas pelas duas colecções
magdalenenses do Cerrado Novo e de Vale da Mata) em que a debitagem deste tipo de
núcleos é igualmente muito significativa.
Como seria de esperar, o índice técnico constitui, portanto, um indicador muito mais
fidedigno do que qualquer dos outros dois da frequência com que se recorria à debitagem de
«raspadeiras» espessas. Da sua consideração resulta que, embora conhecida e praticada
durante todo o Paleolítico Superior, ela foi sobretudo popular no Gravettense final, no Proto-Solutrense e no Magdalenense. Em qualquer dos casos, as diferenças verificadas entre as
várias jazidas destas épocas mostram que essa frequência não era constante, e que se
encontrava afectada por factores situacionais, certamente relacionados com a natureza das
actividades realizadas no contexto das diversas ocupações, que assim se podem caracterizar
como funcionalmente distintas (pelo menos em parte).
3.3.2. As peças esquiroladas como núcleos para esquírolas
A análise da variação cronológica do recurso à debitagem de núcleos carenados (designação
que, doravante, por obviamente mais apropriada, se preferirá à de «raspadeiras» espessas),
mostrou como, qualquer que fosse o índice utilizado, esse recurso era meramente anedótico
em algumas indústrias, em particular nas da Fonte Santa e Vale Almoinha. Não é certamente
por mera coincidência que as utensilagens recolhidas nestas duas jazidas se diferenciavam
igualmente de todas as restantes por uma outra característica importante, a de apresentarem
percentagens elevadas de peças esquiroladas: cerca de 12,5% e de 6%, respectivamente
(Quadro 3.12). O cálculo dos respectivos índices económico e técnico acentua ainda mais o
carácter diferenciado destes dois conjuntos, bem patente no gráfico da Fig. 3.15.
Conforme se referiu já aquando do estudo monográfico da indústria da Fonte Santa (ver
vol. II, capítulo 11), a opinião de que as peças esquiroladas correspondem em muitos casos a
núcleos tem sido defendida por diversos autores (Chauchat et al. 1985, por exemplo),
segundo os quais a sua exploração teria como objectivo a obtenção de barbelas de gume
cortante para uso como componente lítico de pontas de projéctil em osso ou madeira, tal
como acima se argumentou para o caso das lamelas extraídas de núcleos carenados. A forma
como a respectiva frequência varia nas indústrias portuguesas, inversamente à das
«raspadeiras» espessas (veja-se o gráfico da Fig. 3.16), parece confirmar esse ponto de vista,
sugerindo que uma e outra corresponderão, assim, a duas técnicas em grande medida
alternativas de produzir barbelas. Interpretação que é reforçada igualmente pelo facto de, nas
indústrias em que as peças esquiroladas são mais numerosas (Fontesantense e Solutrense
médio), a produção de armaduras microlíticas de dorso ser marginal, quando não de todo
inexistente, e de a debitagem de produtos laminares/lamelares estar orientada para a obtenção
de pontas líticas com suportes de largura média variando entre 1 e 2 cm, a quantidade de
pequenas lamelas susceptíveis de serem usadas como barbelas sendo, portanto, residual. Na
Fonte Santa, por exemplo, só 12% dos suportes alongados brutos tinham uma largura inferior
a 8 mm, e só menos de 2,5% tinham uma largura inferior a 6 mm (ver Fig. 3.11).
A produção de barbelas a partir de peças esquiroladas parece ser, portanto, uma técnica
que, embora presente ao longo de praticamente todo o Paleolítico Superior, é sobretudo
característica do Fontesantense e do Solutrense médio. Apesar disso, o índice técnico destes
artefactos e a forma como eles covariam com os núcleos carenados apresentam variações
importantes nas quatro colecções destas duas épocas que foram analisadas. No Casal do
Felipe, por exemplo, os valores atingidos pela frequência de peças esquiroladas são sempre,
qualquer que seja o índice utilizado, bastante inferiores aos registados na Fonte Santa. Na
primeira destas jazidas, porém, a frequência dos núcleos carenados é, inversamente, muito
110
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 3.15 - Em cima: a frequência das peças esquiroladas nas contagens realizadas mediante as listas-tipo
subestima a verdadeira importância deste tipo de peças nas actividades de produção realizadas nas jazidas; a
consideração dos índices económico e técnico permite destacar com mais clareza os picos correspondentes às
colecções em que a debitagem de pequenas lascas e de esquírolas por este método assume um significado de peso,
as da Fonte Santa e de Vale Almoinha. Em baixo: estas colecções são também, juntamente com a do Casal do
Cepo, as únicas em que há uma debitagem laminar importante e em que, simultaneamente, os comprimentos dos
núcleos de sílex «para lascas» se aproximam dos valores verificados entre os da mesma matéria-prima classificados
como «para lamelas» (ou lhes são mesmo inferiores, como no Casal do Cepo), indicando uma exploração
complementar dessas peças para a produção de esquírolas.
Tecnologia lítica
111
Fig. 3.16 - A debitagem de peças esquiroladas (como a ilustrada sob o nº 2, proveniente da Fonte Santa), por um
lado, e de «raspadeiras» espessas/núcleos carenados, por outro, enquanto métodos alternativos de produzir
barbelas: o gráfico mostra que os picos do índice técnico das primeiras correspondem aos valores mais baixos das
segundas, e a peça com o nº 1 (proveniente do Casal do Cepo) mostra a exploração para a obtenção de esquírolas
da face inferior de uma «raspadeira» carenada. A ponta de zagaia com o nº 3 (proveniente da camada Fa,
solutrense, da Gruta do Caldeirão) apresenta uma ranhura lateral, sendo funcionalmente equivalente, portanto, a
peças semelhantes encontradas em diversas jazidas do Paleolítico Superior eurasiático (como Pincevent) em que as
respectivas barbelas se encontravam ainda montadas.
superior à registada na segunda. Ou seja, no Casal do Felipe a produção de barbelas deverá
ter sido realizada mediante o recurso indiferente a uma ou outra técnica, enquanto na Fonte
Santa ter-se-á utilizado de forma praticamente exclusiva a das peças esquiroladas.
Situação semelhante ocorre na comparação entre Vale Almoinha e o Casal do Cepo: a
colecção que tem mais peças esquiroladas (a primeira) é precisamente aquela de onde estão
praticamente ausentes os núcleos carenados que, no Casal do Cepo, são apesar de tudo mais
numerosos, embora, no contexto mais geral das indústrias portuguesas do Paleolítico
Superior, tenham também de ser considerados como raros. Um dos «utensílios retocados»
recolhidos nesta jazida constitui, aliás, uma excelente ilustração do carácter complementar
das duas técnicas (Fig. 3.16, nº 1). Trata-se de uma «raspadeira» carenada cuja face plana foi
utilizada como superfície de debitagem de núcleo para esquírolas, o que, por outro lado,
constitui confirmação suplementar de que a produção de esquírolas correspondia
efectivamente, por vezes, a um objectivo deliberadamente buscado das operações de talhe, e
não a uma simples consequência colateral, e residual do ponto de vista económico, da
produção de lâminas, lamelas ou lascas.
112
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Esta caracterização encontra confirmação suplementar no facto de, em três das quatro
jazidas pertencentes ao Fontesantense e ao Solutrense médio (Fonte Santa, Casal do Cepo e
Vale Almoinha), o comprimento médio dos núcleos prismáticos classificados como «para
lascas» (isto é, aqueles cujas superfícies de debitagem não apresentavam quaisquer negativos
de dimensões laminares ou lamelares) ser estatisticamente idêntico (e, no caso do Casal do
Cepo, em média inferior) ao dos núcleos prismáticos classificados como «para lamelas»
(Fig. 3.15). Nas indústrias do Paleolítico Superior caracterizadas por «estratégias mistas»
(Quadro 3.9; Fig. 3.11) e em que a debitagem de suportes alongados contem uma componente
significativa de produção de lâminas (isto é, com exclusão apenas da generalidade das
indústrias magdalenenses), os núcleos prismáticos «para lascas» têm no entanto dimensões
médias de abandono (comprimentos ou pesos) situadas entre as dos «para lâminas» e as dos
«para lamelas», e de um modo geral estatisticamente superiores às destes últimos. Este facto
sugere que, na maior parte dos casos, os núcleos «para lascas» dessas indústrias com
«estratégias mistas» corresponderão, na realidade, a peças que por qualquer razão foram
abandonadas numa fase intermédia de cadeias operatórias concebidas para a obtenção
sequencial das duas categorias dimensionais de suportes alongados (lâminas e lamelas). Nas
indústrias caracterizadas pela «estratégia Fonte Santa», pelo contrário, tudo se passa como se,
atingido um tamanho mínimo para além do qual já não era possível obter os suportes
alongados pretendidos, os núcleos continuassem a ser explorados para a obtenção de
pequenas lascas ou esquírolas. Isto é, que constituíssem uma forma alternativa de obter o tipo
de barbelas cuja extracção constituía igualmente a finalidade que a exploração das peças
esquiroladas procurava atingir.
As remontagens realizadas na Lapa do Anecrial demonstram também, aliás, que a
produção de esquírolas (ou de pequenas lascas) podia efectivamente constituir uma finalidade
em si mesma, embora, nesta jazida, a técnica utilizada na sua obtenção tenha sido distinta.
Com efeito, se, em muitos casos, se poderia argumentar que os objectos deste tipo
abandonados no contexto da ocupação proto-solutrense do sítio seriam em grande medida
subprodutos de uma debitagem de núcleos carenados empreendida com o objectivo real de
obter lamelas, há pelo menos uma situação, porém, em que não é possível questionar
seriamente o carácter intencional da respectiva produção. Um dos volumes reconstituídos
corresponde, com efeito, a uma lasca cortical de sílex debitada segundo o eixo da respectiva
espessura, de forma portanto idêntica à utilizada na exploração dos núcleos carenados, mas
de onde apenas se extraíram lascas pequenas e finas, de contorno arredondado e dimensão
máxima variando entre 1,5 e 2 cm, no total de cerca de uma vintena. Os «vazios» da
remontagem indicam que algumas destas pequenas lascas deverão ter sido exportadas,
provavelmente já montadas como barbelas sobre as pontas de projéctil cuja fabricação,
reparação ou manutenção terá constituído o objectivo das operações de talhe realizadas
durante a curta estada na gruta que os vestígios arqueológicos documentam (ver vol. II,
capítulo 10).
3.3.3. As barbelas líticas na documentação arqueológica e etnográfica
Quer tenha sido realizada mediante a exploração de peças esquiroladas quer, como os
exemplos do Anecrial indicam poder igualmente ter acontecido, o tenha sido mediante a
debitagem de núcleos carenados, discóides ou «sobre lasca», parece assim não haver dúvidas
de que a produção de pequenas lascas ou esquírolas representou, nalgumas indústrias do
Paleolítico Superior português, uma actividade industrial com personalidade própria e não
um simples subproduto da debitagem de lâminas e de lamelas. O objectivo dessa actividade
terá sido a obtenção de barbelas que, como se pode comprovar tanto pela arqueologia como
pela etnografia, se destinavam a funcionar como gumes líticos das pontas de madeira ou osso
que constituíam a extremidade perfurante das armas de arremesso utilizadas na caça.
Tecnologia lítica
113
Fig. 3.17 - À esquerda: lâmina de punhal em matéria dura de origem animal, provida de ranhuras laterais e armada
com elementos microlíticos de dorso, encontrada em Tchiernozierie, na Sibéria ocidental (segundo Abramova
1984:Fig. 125). À direita: extremidades de death spear australianas; com cerca de 4 m de comprimento, estas
armas tinham os 30 cm distais armados uni ou bilateralmente com pequenas lascas de quartzo obtidas a partir de
peças esquiroladas e fixadas com resina (segundo Flood 1987:277).
A utilização para esse efeito de lamelas brutas, de geométricos e de lamelas de dorso está
documentada por numerosos exemplos mesolíticos (Clarke 1978), e é naturalmente admitida
também para o caso do Paleolítico Superior pela generalidade dos pré-historiadores. É nesse
sentido, aliás, que apontam os resultados de estudos traceológicos efectuados por Keeley
(Audouze et al. 1981; Keeley 1988) sobre as lamelas de dorso das jazidas magdalenenses de
Verberie (França), Rascaño e El Juyo (Espanha), bem como os obtidos por Plisson para as
lamelas de dorso da jazida solutrense de Combe Saunière (Geneste e Plisson 1986).
Abramova (1984:Fig. 125), porém, fornece uma prova ainda mais directa da correcção desta
interpretação, proveniente da jazida de ar livre de Tchiernozierie, situada na Sibéria
114
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
ocidental, nas margens do rio Irtysch, e para a qual existe uma datação 14C de 14 500±500 BP
(GIN-622): trata-se de uma ponta óssea de secção achatada interpretada como lâmina de
punhal e provida de ranhuras laterais ao longo de todo o respectivo comprimento, nas quais
se encontravam ainda incrustadas uma série de lamelas de dorso e de dorso truncadas (peça
cuja ilustração se reproduz na Fig. 3.17). Leroi-Gourhan (1983) publica também, proveniente
de Pincevent, um fragmento de zagaia com ranhura lateral em que estavam inseridas duas
pequenas lamelas finamente retocadas no gume, mas sem bordo abatido. Com comprimentos
de 12 e de 21 mm, estas pequenas lamelas são de módulo equivalente às que podiam ser
obtidas a partir da exploração de núcleos carenados (ver Quadro 3.11), para as quais as
análises traceológicas de Plisson (citado em Rigaud 1993) propõem, como acima se referiu,
função idêntica (e, se tivessem sido encontradas soltas nos depósitos, seriam, aliás,
classificadas, provavelmente, no quadro da lista-tipo utilizada neste trabalho, como lamelas
de Areeiro — a mais pequena — e de dorso marginal — a maior).
O uso alternativo de pequenas lascas ou de esquírolas é igualmente referido por Leroi-Gourhan, na mesma publicação, como estando documentado por uma zagaia de bisel duplo
encontrada por J. Allain na jazida de Saint-Marcel. O sulco mediano desta peça, com efeito,
estava «cheio de minúsculas lascas de sílex esmagadas». O exemplo mais conhecido do uso
de pequenas lascas como barbelas no Paleolítico Superior é, no entanto, o de uma das lanças
de marfim da sepultura dupla de Sungir (Rússia). Com um comprimento de 2,40 m, esta peça
tinha ao seu lado, dispostas paralelamente a ela ao longo dos 42 cm compreendidos entre a
ponta e uma rodela de marfim nela enfiada, uma série de lascas de sílex alinhadas, que se
deduz corresponderem a barbelas fixadas ao suporte mediante uma cola entretanto
desaparecida, uma vez que a lança não tinha qualquer ranhura onde elas pudessem ter sido
encaixadas (Bosinski 1990:47). A cronologia destas sepulturas é controversa. Embora exista
uma série de datações pelo radiocarbono, antigas e de resultados heterogéneos, que situam a
jazida entre 14 600 e 25 500 anos BP, Bosinski (1990:42) é de opinião que se trata de um
contexto do extremo início do Paleolítico Superior, pré-aurignacense, e anterior a 33 000 BP.
Em qualquer dos casos, parece claro que as lanças de Sungir atestam arqueologicamente que
o uso de barbelas é anterior ao Magdalenense.
Exemplos etnográficos deste género de armas estão documentados na Austrália (Flood
1987:277), sob a forma de um tipo particular de dardo (os death spears, de que se
reproduzem na Fig. 3.17 os dois exemplares ilustrados pela citada autora). Com um
comprimento total de cerca de 4 m, estas peças apresentavam nos 30 cm distais fiadas de
barbelas fixadas com resina e constituídas por pequenas lascas de quartzo obtidas, segundo
Chauchat et al. (1985), a partir de núcleos bipolares do tipo peça esquirolada. Ferguson
(1987:126) ilustra outra das formas como eram usados estes elementos de gume lítico
destinados a armar instrumentos compósitos: as facas taap dos aborígenes Nyungar do
Sudoeste da Austrália, cujo gume era constituído por pequenos fragmentos de pedra cortante
montados sobre um cabo de madeira.
Estes exemplos mostram que o uso de barbelas como componentes líticos de utensílios de
natureza e função diversa deve ter sido praticado de uma forma generalizada, a partir do
momento em que foi inventado, pelas sociedades pré-históricas de caçadores-recolectores, e
nomeadamente pelas de todo o Paleolítico Superior europeu, uma vez que, se aceitarmos a
acima referida interpretação traceológica proposta por Plisson para as lamelas Dufour do
Flageolet I, está documentado pelo menos desde o Aurignacense (e desde época ainda mais
remota, se se aceitar a cronologia proposta por Bosinski para Sungir). No caso português, o
uso desta técnica pode considerar-se também como provado pela ponta óssea provida de
ranhuras laterais descoberta na camada Fa (solutrense) da Gruta do Caldeirão (ver vol. II,
capítulo 27, e Fig. 3.16), dado o paralelismo formal com as peças de Pincevent ilustradas por
Leroi-Gourhan (1983). Em muitos casos, porém, ela não se reflectirá nos inventários
Tecnologia lítica
115
tipológicos (dado as barbelas em questão terem sido usadas em bruto, sem qualquer retoque)
senão através da eventual presença dos núcleos de onde poderão ter sido extraídas:
«raspadeiras» espessas e peças esquiroladas. Do ponto de vista da análise tecnológica,
funcional e económica dos sistemas de produção lítica, a presença destes tipos de artefactos
num determinado contexto industrial deve, assim, ser considerada suficiente para provar o
uso de barbelas líticas, quer ele se encontre ou não igualmente documentado entre as
armaduras microlíticas retocadas. Por outro lado, parece claro que os objectos em questão
deveriam ser removidos das contagens tipológicas e agrupados com os núcleos, de modo a
permitir avaliar, através da respectiva relação quantitativa com as restantes peças
pertencentes à mesma classe tecnológica, a importância relativa que em cada contexto teve a
produção dos diferentes tipos de suportes pretendidos.
Isto não significa, no entanto, que se exclua a possibilidade de, nalguns casos, se estar
perante instrumentos no sentido funcional imediato do termo. Isto é, algumas «raspadeiras»
espessas poderão ter servido efectivamente para raspar, e algumas das peças esquiroladas
poderão ter sido efectivamente usadas como cunhas para fender, caso em que o
esquirolamento constituiria um acidente de utilização e não o negativo da extracção
intencional de uma lasca. É evidente, no entanto, que o maior potencial informativo destes
artefactos para a reconstituição dos comportamentos tecnológicos do passado é o que resulta
da sua utilização como núcleos, a qual se encontra firmemente demonstrada, ao passo que a
sua eventual utilização como ferramenta de uso directo não passa por enquanto de uma
hipótese mais ou menos verosímil. Embora tendo presente a possibilidade de nessa
interpretação se encontrar incorporada uma margem de erro (que, no entanto, é com certeza
consideravelmente menor do que a que resultaria da sua contabilização como utensílios) estes
artefactos serão assim, doravante, interpretados sempre como correspondendo efectivamente
a núcleos de tipo especial, relacionados com a produção de barbelas destinadas a funcionar
como elementos de gume lítico de instrumentos compósitos.
3.3.4. Barbelas brutas e barbelas retocadas
Os dados apresentados indicam assim que, em Portugal, as modalidades de produção e uso de
barbelas líticas passaram por importantes variações ao longo do Paleolítico Superior, sendo
possível reconhecer os seguintes padrões:
•
uso de pequenas lascas e de esquírolas, obtidas a partir de peças esquiroladas ou de
núcleos prismáticos em fase final de exploração (Fontesantense e Solutrense médio);
•
uso de lamelas extraídas de núcleos carenados, retocadas em lamelas Dufour, de Areeiro
ou de dorso marginal (Magdalenense antigo de fácies Cerrado Novo e final de fácies
Rossio do Cabo);
•
uso de lamelas extraídas de núcleos prismáticos, de um modo geral retocadas em lamelas
de dorso ou de dorso truncadas (Gravettense antigo e final, Magdalenense superior e final
de fácies Carneira);
•
uso de lamelas extraídas tanto de núcleos carenados como de núcleos prismáticos, de um
modo geral não retocadas (Proto-Solutrense).
Estes padrões devem ser interpretados como dando uma imagem dos procedimentos
usados de forma predominante em cada caso, e não como normas de produção rígidas e
exclusivas. O uso de núcleos carenados, por exemplo, é mais ou menos constante em todas as
indústrias, e tanto no Gravettense como no Magdalenense superior existem, embora em clara
minoria, lamelas de dorso marginal fabricadas sobre suportes deles extraídos. A realidade dos
factos, portanto, é, com toda a probabilidade, a de que, conforme sugerido pelo gráfico da
Fig. 3.16, os métodos acima discriminados correspondessem a um repertório tecnológico
116
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
conhecido e usado em todas as épocas, embora com variações de frequência ditadas por
factores que resultam de apreensão difícil e para cuja interpretação os dados à nossa
disposição são manifestamente insuficientes. As indústrias do Fontesantense e do Solutrense
médio separam-se no entanto claramente das restantes, e o ponto isolado constituído pelo
Gato Preto (a que haveria que acrescentar, se a quantidade do material permitisse um
tratamento estatístico, a camada 2 da Lapa do Anecrial) assinala certamente uma ocupação
especializada em que está quase exclusivamente representada a componente de produção de
barbelas de um sistema de produção certamente muito mais completo.
As deficiências das fontes não permitem caracterizar com segurança, sob o ponto de vista
da produção de barbelas, as indústrias do Aurignacense e do Solutrense superior. No entanto,
no que respeita a este último, a presença de lamelas de dorso nos correspondentes níveis de
Salemas (ver vol. II, capítulo 37) pode ser tomada como indiciando a vigência nesta época de
um padrão de tipo gravettense (ou, em alternativa, como sintoma da existência nos depósitos
de uma componente industrial de época solutreo-gravettense). Nas outras jazidas solutrenses
de gruta, porém, as lamelas de dorso são raras ou inexistentes.
Quanto ao Aurignacense, o reduzido número de jazidas e o seu carácter extremamente
especializado tornam difícil a interpretação dos dados, uma vez que obrigam a colocar
seriamente a hipótese de não conhecermos ainda a totalidade do respectivo sistema de
produção lítica. No estado actual da questão, parece que as peças esquiroladas são
inexistentes e os núcleos carenados raros. No Pego do Diabo (ver vol. II, capítulo 7), porém,
um dos utensílios retocados recolhidos era uma pequena lamela de dorso cujo suporte tinha
certamente sido extraído de uma «raspadeira» espessa. Por outro lado, a variação dimensional
das lamelas Dufour provenientes das jazidas de gruta é grande (ver vol. II, capítulos 6-8, e
adiante, capítulo 5) e sugere que, apesar de tipologicamente homogéneas e de proporções
bastante normalizadas, estas peças poderão corresponder a dois tipos funcionalmente
distintos, as mais pequenas tendo sido usadas como barbelas e as maiores como pontas.
Conforme se argumentou a propósito da indústria de Vale de Porcos I (ver vol. II, capítulo 4),
é provável que a extracção dos suportes destas últimas tenha sido feita através da técnica do
golpe de buril, o que abre a possibilidade de conceber a hipótese de os «resíduos de golpe de
buril» assim obtidos também poderem ter sido usados como barbelas brutas.
3.4. Funcionalidade dos buris
A interpretação proposta para os buris das indústrias aurignacenses portuguesas coloca a
questão do verdadeiro significado tecnológico e funcional desta categoria de artefactos, tanto
mais quanto os estudos traceológicos efectuados sobre buris têm dado resultados até certo
ponto contraditórios, mesmo quando são realizados pelo mesmo investigador. Keeley, por
exemplo, concluiu que, no caso da jazida tjongeriense de Meer (Bélgica), se trataria de
objectos utilizados para o trabalho da matéria óssea (Cahen et al. 1980:226-227), o mesmo se
passando, de um modo geral, nas jazidas magdalenenses cantábricas de Rascaño e El Juyo.
Nestas últimas, porém, uma percentagem significativa (10 a 12%) correspondia na realidade a
núcleos (Keeley 1988:21-22). Apesar disso, as conclusões que o autor em causa extrai destes
resultados são as de que «estes instrumentos devem ser encarados como ferramentas de uso
múltiplo destinadas ao trabalho do osso e do corno» e de que «a sua ubiquidade nos sítios
magdalenenses indica que se trataria de uma peça essencial do ‘equipamento pessoal’, sendo
frequentemente usada tanto em tarefas de produção como de manutenção». Mais ainda, dado
o facto de «o seu reavivamento implicar a remoção de uma parte substancial do respectivo
comprimento total, [estas peças] chegariam rapidamente a um estado de exaustão total, sendo
portanto substituídas com frequência», o que explicaria a sua relativa abundância nas jazidas.
Tecnologia lítica
117
QUADRO 3.13
Buris
Quantidades, índices e rácios (a)
total
sobre
lasca
sobre
armaduras
suporte de
sobre
índice
índice
fase plena
rgb (b)
tipológico económico
índice
técnico
rácio
rgb:b
rácio
b:npl
Vale de Porcos I
82
64
12
— (0)
62,60
52,03
41,00
0,71
2,48
Vale Comprido - Barraca
189
150
24
0% (25)
49,09
47,77
44,26
0,87
2,15
Casal do Felipe
9
6
1
— (2)
4,43
4,84
7,69
0,33
0,16
Fonte Santa
20
19
0
— (4)
2,38
4,94
7,12
2,95
0,23
Terra do Manuel (1940-42)
51
26
19
1% (254)
5,86
7,24
25,76
4,20
0,68
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
22
21
1
0% (14)
12,87
16,41
16,54
1,95
0,71
CPM III (nível médio)
22
19
2
0% (8)
17,74
19,00
15,57
3,59
0,76
0,81
Terra do José Pereira
38
34
2
— (4)
18,18
17,89
20,99
0,76
Vales da Senhora da Luz
27
19
7
— (3)
4,18
6,57
10,42
1,19
0,33
Gato Preto
2
2
0
— (0)
2,08
2,35
3,64
0,00
0,67
Vale Comprido - Encosta
55
40
9
— (0)
5,78
6,20
12,50
1,36
0,49
Casal do Cepo
13
7
3
— (0)
3,10
3,61
11,61
3,54
0,31
Vale Almoinha
9
5
1
— (2)
2,04
2,45
9,57
1,00
0,45
Vascas
—
—
—
12% (396)
—
—
—
—
—
Cerrado Novo
5
5
0
0% (172)
0,93
1,21
2,94
2,80
0,07
Vale da Mata
36
25
8
2% (674)
2,68
8,47
26,67
5,81
0,36
Olival da Carneira (cam. 3-4)
28
27
0
— (4)
21,37
23,89
40,58
3,36
2,55
(a) suporte de fase plena = lâmina ou lamela sem córtex; rgb:b = resíduos de golpe buril:buris; b:npl = buris:núcleos para lamelas;
índices calculados como no Quadro 3.12 (para o cálculo do índice económico só foram usados os buris sobre lasca); espessura
do bisel medida em cm; entre parêntesis, os valores de N correspondentes aos conjuntos sobre cujos totais foram calculadas as
diferentes percentagens
(b) armaduras microlíticas de dorso (tipos 51a-e, 85a-f, 86a-d, 87a-b, 90a-c e 91a-e)
Se fosse possível aceitar esta caracterização geral dos buris, a percentagem em que as
peças do grupo tipológico em causa ocorrem nos inventários paleolíticos poderia, então, ser
tomada como reflectindo de forma bastante aproximada a importância que o trabalho do osso
teria tido no conjunto das actividades cuja efectivação deu origem aos espólios líticos
chegados até nós. Tendo em conta que, segundo Keeley, as raspadeiras finas foram
sistematicamente usadas para o trabalho das peles, o tradicional sentido cultural que foi dado
por Sonneville-Bordes à variação relativa do Índice de Buril e do Índice de Raspadeira
poderia, por outro lado, ser substituído (excluindo as «raspadeiras» espessas do cálculo do
último) por uma leitura funcional da relação entre os dois índices. Leitura que forneceria,
deste modo, uma ideia do peso que as duas actividades (trabalho do osso e trabalho das peles)
teriam tido nas ocupações em cujo contexto tivessem sido usados e abandonados os buris e as
raspadeiras de um determinado conjunto lítico. Em jazidas onde a matéria orgânica se não
preservou, como acontece na totalidade dos sítios de ar livre do Paleolítico Superior
português até ao momento descobertos, seria assim possível dispor de uma forma bastante
aproximada de identificar as épocas (e as ocupações) em que o osso e a haste de cervídeo
teriam tido um papel mais importante como matérias-primas para a fabricação de utensílios.
As sequências de gruta, no entanto, mostram que o uso de pontas de zagaia fabricadas
nestas matérias-primas está documentado em praticamente todas as épocas, nomeadamente
no Gravettense inicial (Casa da Moura e Salemas), no Solutrense (Caldeirão, Lapa do Suão,
Salemas e Buraca Grande) e no Magdalenense (Caldeirão). Apesar disso, a variação do
Índice de Buril nas jazidas de ar livre é de uma amplitude enorme (Quadro 3.13): de 0,93 no
118
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Cerrado Novo a 62,60 em Vale de Porcos, sendo particularmente baixa (2 a 3%) em algumas
indústrias solutrenses, época em que o uso de pontas de zagaia em osso está, no entanto, bem
documentado. Este facto põe necessariamente em causa a possibilidade de estabelecer uma
relação directa e biunívoca entre os buris e o trabalho do osso. Com efeito, se ela fosse
válida, isto é, se os buris constituíssem de facto, em conformidade com a acima referida
caracterização de Keeley, elementos indispensáveis do equipamento pessoal dos caçadores,
seria de esperar que estivessem representados de forma geral e constante, embora
naturalmente com oscilações de frequência determinadas pela variação da funcionalidade das
ocupações, em todas as indústrias do Paleolítico Superior. O que, como a Fig. 3.18
claramente evidencia, não é de forma nenhuma o caso, mesmo nas situações (como as das
indústrias da Fonte Santa ou de Vale Almoinha) em que a realização local de actividades
relacionadas com o armamento de pontas de osso ou madeira pode ser deduzida das
características dos espólios (presença de núcleos para barbelas, por exemplo). Esta situação
implica, portanto, que, por um lado, os buris tenham frequentemente tido outras funções que
não a do trabalho do osso; e que, por outro lado, e não menos frequentemente, o trabalho do
osso tenha sido executado mediante o recurso a outros utensílios que não os buris.
É também preciso ter em conta, conforme se assinalou a propósito da descrição da
metodologia utilizada no presente trabalho (ver vol. II, capítulo 2), que, de um modo geral, os
buris apresentam, na maior parte dos conjuntos portugueses, um bisel bastante espesso ou,
pelo menos, de espessura em média bastante superior aos 2 a 4 mm que já Mortillet, ainda no
século XIX, tinha referido como uma das características definidoras deste tipo de artefactos
(Brézillon 1968:165-173). Tornava-se assim necessário investigar até que ponto essa elevada
espessura média dos biseis não poderia estar relacionada com o facto de, nas indústrias
portuguesas, a generalidade dos buris corresponder não a utensílios mas sim a um tipo
especial de núcleos, conforme os estudos traceológicos indicavam ser por vezes o caso
nalguns conjuntos cantábricos. Tal como se fez para o caso das «raspadeiras» espessas e das
peças esquiroladas, calcularam-se assim os índices económico e técnico respeitantes aos
buris, analisando-se também, por outro lado, a natureza dos respectivos suportes, bem como a
sua relação contextual com os resíduos de golpe de buril e os núcleos prismáticos para
lamelas das mesmas jazidas (Quadro 3.13; Figs. 3.18-3.19). Além disso, fez-se um estudo
morfométrico dos buris das colecções em que eles eram percentualmente mais significativos
(Quadro 3.14; Fig. 3.19).
QUADRO 3.14
Buris
Espessura dos biseis
total (a)
comprimento espessura do
do suporte (b) suporte (b)
espessura coeficiente de
do bisel (b) correlação (c)
bisel
= 0,5 cm
Vale de Porcos I
76
4,62±0,97
1,34±0,42
0,91±0,41
0,59
21%
Vale Comprido - Barraca
230
3,89±0,93
1,22±0,34
0,70±0,44
0,51
42%
Terra do Manuel (1940-42)
52
4,18±1,22
0,99±0,54
0,60±0,40
0,82
59%
Terra do Manuel (1988-89, cam. 2s)
25
3,51±0,88
1,23±0,45
0,76±0,32
0,68
18%
Terra do José Pereira
45
4,03±1,14
1,13±0,40
0,84±0,41
0,29
18%
Vale da Mata
42
3,58±0,89
0,79±0,34
0,54±0,27
0,74
60%
Olival da Carneira (cam. 3-4)
32
3,40±0,68
1,18±0,43
0,79±0,36
0,62
22%
(a) nos buris múltiplos, cada bisel foi considerado como correspondendo a uma peça separada
(b) dimensões expressas em cm
(c) entre espessura do suporte e espessura do bisel
Tecnologia lítica
119
Fig. 3.18 - Variação cronológica da importância dos buris nos conjuntos industriais do Paleolítico Superior
português, medida em função de três tipos de índices: tipológico, económico e técnico. A consideração deste
último permite diferenciar claramente das restantes um grupo de indústrias em que ele é superior a 40 (Vale de
Porcos, Vale Comprido - Barraca e níveis magdalenenses do Olival da Carneira).
3.4.1. Os buris como núcleos
Os valores do índice técnico permitem diferenciar claramente das restantes um grupo de
indústrias em que ele é superior a 40 (Vale de Porcos, Vale Comprido - Barraca e níveis
magdalenenses do Olival da Carneira). Estas indústrias são também as únicas em que os
valores do rácio «buris:núcleos para lamelas» são superiores a 2, sendo que, em todas as
restantes, o referido rácio apresenta valores inferiores a 1. Por outro lado, naqueles três
conjuntos, a percentagem de buris cujo suporte é uma lâmina sem córtex é sempre inferior a
15% e, em parte por isso mesmo, a espessura média dos suportes é elevada (1,2 a 1,3 cm), tal
como a espessura média dos biseis (0,7 a 0,9 cm). A percentagem de peças de bisel estreito,
=0,5 cm, varia assim, nos três conjuntos em causa, entre os 21-22% de Vale de Porcos e
Olival da Carneira, por um lado, e os 42% de Vale Comprido - Barraca, por outro.
Estes factos, em particular o de a respectiva frequência variar de forma inversa à dos
núcleos prismáticos para lamelas, parece indicar que os buris das três jazidas corresponderão
na realidade a núcleos. Isto é, que, nestes casos, a técnica do golpe de buril estaria ao serviço
da produção de lamelas, constituindo os «resíduos de golpe de buril» o objectivo final do
talhe. Os verdadeiros resíduos seriam os buris/núcleos, cujas dimensões de abandono são,
aliás, compatíveis com esta interpretação, já que teriam permitido a obtenção de produtos de
comprimento médio variando entre os 2,5 e os 6 cm. Alongados e de índice de carenagem
baixo, portanto simultaneamente robustos e cortantes, estes produtos seriam ideais para um
uso como pontas de projéctil, quer em bruto quer após transformação por retoque.
Uma tal utilização não se encontra documentada, porém, em nenhuma das três jazidas,
pelo achado entre as armaduras microlíticas delas provenientes de peças cuja suporte fosse
constituído por um resíduo de golpe de buril. Nos casos do Olival da Carneira e de Vale de
Porcos, no entanto, essa não representação é irrelevante, dada a dimensão dos universos em
120
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
causa: em Vale de Porcos não havia armaduras microlíticas e no Olival da Carneira só havia
quatro. Já no caso de Vale Comprido - Barraca, porém, a ausência tem algum significado,
dado que nela foram recolhidas 25 peças microlaminares susceptíveis de uso como ponta ou
barbela (ver vol. II, capítulo 21). Por outro lado, nesta jazida, a percentagem de peças de bisel
fino é o dobro da que se verifica nas outras duas. Nestas circunstâncias, poder-se-ia colocar a
hipótese de, neste caso, a interpretação dos buris como núcleos ser incorrecta, e de, portanto,
o material de Vale Comprido - Barraca ser constituído (senão na totalidade, pelo menos em
grande parte) por utensílios no sentido funcional do termo.
Não parece provável, porém, que seja esse o caso. A percentagem de peças de bisel fino
desta última jazida está relacionada com um tipo particular de buril que aqui foi possível
individualizar, tipo em que essa característica aparece em suportes constituídos por lascas
espessas, de um modo geral parcialmente corticais (estes biseis finos sobre lascas espessas
explicando, aliás, o baixo valor do coeficiente de correlação entre a espessura do bisel e a do
suporte que foi apurado para o conjunto de Vale Comprido - Barraca), e que dificilmente
poderiam ter sido usadas para gravar, furar ou raspar, acções que Keeley atribui aos buris
usados para o trabalho do osso nas jazidas magdalenenses que foram objecto dos seus estudos
traceológicos. Parece mais lógico, assim, supor que estes «buris de Vale Comprido»
corresponderão a núcleos destinados à produção de lamelas que à partida se pretendiam
muito finas ou, em alternativa, a núcleos abandonados após um levantamento inicial que, por
demasiado fino, se considerou falhado e impeditivo da continuação da exploração do volume.
Por outro lado, é preciso ter igualmente em conta a possibilidade de que a ausência de
armaduras fabricadas sobre lamela de golpe de buril possa estar relacionada, em Vale de
Porcos e em Vale Comprido - Barraca, com o carácter acentuadamente oficinal que, como
anteriormente se referiu já, estes sítios parecem ter tido. Pode aventar-se, assim, a hipótese de
as lamelas Dufour e as microgravettes sobre suporte extraído pela técnica do golpe de buril aí
efectivamente fabricadas terem sido na sua totalidade exportadas, do mesmo modo que a
grande maioria das lamelas. De facto, as quantidades de «resíduos de golpe de buril» e de
lamelas extraídas de núcleos prismáticos que foram recolhidas nestes sítios implicam
produtividades impossíveis (menos de um resíduo por cada buril, cerca de uma lamela por
cada núcleo), as quais não parecem ter fundamento tafonómico nem estarem determinadas
pelos critérios utilizados na escavação ou na triagem do material deles proveniente. Situação
semelhante caracteriza, aliás, o conjunto lítico de Vale Comprido - Cruzamento, jazida
situada a curta distância de Vale Comprido - Barraca, de espólio tecnologicamente idêntico e
em que o rácio «resíduo de golpe de buril:buril» era de 0,52 (ver vol. II, capítulo 22).
Finalmente, no que diz respeito a Vale Comprido - Barraca, é também preciso ter em conta
que não é possível reconhecer enquanto tais todas as lamelas obtidas pela técnica do golpe de
buril. Pode acontecer, portanto, que haja entre o material microlaminar desta colecção peças
cujos suportes assim tenham sido na realidade debitados sem que, no entanto, a sua correcta
identificação tenha sido possível.
Já no caso de algumas indústrias magdalenenses, porém, não parece haver quaisquer
dúvidas quanto à efectiva utilização dos «resíduos de golpe de buril» como suportes para
armaduras microlíticas de dorso. Em Vascas, a frequência relativa apurada para tal tipo de
suportes era de 12%, percentagem que, tendo em conta as dificuldades de identificação a que
acaba de se aludir, deve ser considerada como um valor mínimo. Infelizmente, o carácter
misturado do espólio proveniente desta jazida (ver vol. II, capítulos 3, 16 e 43) não permite,
no entanto, abordar o problema da produção destes suportes a partir da análise dos
núcleos/buris de onde eles foram seguramente extraídos. Em qualquer dos casos, deve notar-se que a sua distribuição pelos diversos tipos de armaduras microlíticas de dorso não era
uniforme, verificando-se uma clara relação preferencial com as microgravettes, 32% das
quais eram sobre resíduo de golpe de buril, percentagem que descia para apenas 7% entre as
Tecnologia lítica
121
Fig. 3.19 - Em cima, à esquerda: é só em Vales da Senhora da Luz, no Casal do Cepo, em Vale da Mata e na Terra
do Manuel (escavações de 1940-42) que há quantidades significativas de buris fabricados sobre suportes
alongados de fase plena (lâminas sem córtex e lamelas). Em cima, à direita: estas últimas duas colecções são
também as que apresentam os valores mais elevados do rácio «resíduo de golpe de buril:buril», em conformidade
com a hipótese de, nestes casos, os buris serem efectivamente utensílios; as colecções de Vale de Porcos I, Vale
Comprido - Barraca e Olival da Carneira (camadas 3-4) têm rácios «buris:núcleos para lamelas» superiores a 2 e
muito mais elevados do que as restantes, em conformidade com a hipótese de, nessas colecções, os buris
substituírem os núcleos prismáticos como suportes predominantemente explorados para a produção de lamelas. Ao
meio: Terra do Manuel (1940-42) e Vale da Mata, onde é mais elevada a percentagem de buris cujo suporte é uma
lâmina sem córtex, são também as colecções em que os buris apresentam biseis em média mais finos. Em baixo: 1.
buril/núcleo; 2. buril/utensílio (?); 3. ponta microlítica de dorso duplo sobre resíduo de golpe de buril (1-2. Vascas
- Conjunto 5, Aurignacense; 3. Vascas - Conjunto 4, Magdalenense).
122
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
lamelas de dorso. Nesta preferência pode residir, aliás, a explicação do padrão aparentemente
anómalo verificado em Vale Comprido - Barraca: é que, nesta jazida, só foram recolhidas três
microgravettes (uma inteira e dois fragmentos basais).
O uso da técnica do golpe de buril para a obtenção de suportes para pontas de dorso é
também uma característica bem conhecida do Epipaleolítico do Norte de África, onde deu
inclusivamente origem à definição de um tipo lítico separado, o aiguillon droit (Tixier
1963:100-103). Nas indústrias magdalenenses portuguesas da fácies representada no Olival
da Carneira, esse uso está bem documentado pelas próprias características das espessas
armaduras de dorso curvo que constituem o respectivo fóssil director. No caso da Bairrada
(ver vol. II, capítulo 41), o achado de peças inacabadas permitiu inclusivamente reconstituir a
cadeia operatória usada na respectiva fabricação, a qual começa com a produção de suportes
em que um dos bordos forma com a face inferior um ângulo de cerca de 90°. Bordo esse que
corresponde já, portanto, a um dorso natural, frequentemente cortical, implicando que a sua
obtenção tenha sido realizada ou mediante a técnica do golpe de buril ou a partir de uma
aresta externa da superfície de debitagem de um núcleo prismático. O retoque abrupto
cruzado subsequentemente aplicado destina-se simplesmente, portanto, a efectuar uma
regularização do dorso, os suportes sendo já produzidos de tal forma que a obtenção das
dimensões e proporções finais da ponta (que não se afastam significativamente das que
caracterizam o suporte à saída do núcleo) dispensa a execução de operações de afeiçoamento
demoradas.
3.4.2. Os buris como utensílios
Nas indústrias do Aurignacense, do Gravettense antigo, e do Magdalenense final de fácies
Carneira, parece bastante claro, portanto, que os buris correspondem na sua grande maioria a
núcleos para lamelas de tipo especial, a sua abundância nas jazidas destas três épocas sendo
concomitante de uma frequência comparativamente reduzida de núcleos «para lamelas» de
tipo prismático. Nos restantes conjuntos estudados, a relação entre as duas classes de
artefactos é nitidamente favorável a estes últimos. Isso não significa necessariamente, porém,
que a função dos buris que integram esses conjuntos tenha sido diferente, isto é, não significa
que também nesses casos não se esteja do mesmo modo perante núcleos, o valor baixo do
respectivo índice técnico sendo interpretável como indicando que o procedimento de
extracção de lamelas por eles representado teria sido praticado de forma minoritária.
Dois desses conjuntos, os da Terra do Manuel (escavações de 1940-42) e de Vale da
Mata, individualizam-se no entanto pelo facto de neles se verificarem simultaneamente as
seguintes três condições: as espessuras de bisel são as mais baixas de todas as observadas nos
espólios em que foi feita a análise morfométrica dos buris; as percentagens de buris sobre
suporte alongado de fase plena são também as mais elevadas desse universo; e é ainda nesses
dois conjuntos que se verificam os valores mais elevados do rácio «resíduo de golpe de
buril:buril», os quais são já compatíveis com a hipótese de os buris serem na realidade
utensílios e os «resíduos de golpe de buril» serem de facto resíduos da respectiva fabricação e
reavivamento. Deve ainda ter-se em conta, no que diz respeito a Vale da Mata, que a
produção nesta jazida de lâminas e lamelas de dimensões compatíveis com a respectiva
transformação em buris constituiu uma actividade industrial menor, e que uma parte
importante das peças de bisel fino foram fabricadas sobre lasca. A avaliação do carácter
inicial ou pleno da fase de exploração dos núcleos em que foram obtidos os suportes dos
buris exige, portanto, que se tenha igualmente em conta, neste caso, a hipótese de na jazida
também estarem representadas cadeias operatórias dirigidas para a produção de lascas e,
consequentemente, que se torne necessário considerar a presença ou ausência de córtex nas
lascas transformadas em buris. Ora, verifica-se a este respeito que, em Vale da Mata, 72%
dos buris sobre lasca tinham suporte não cortical, percentagem que era de 54% na Terra do
Tecnologia lítica
123
Fig. 3.20 - O peso dos buris comparado com o das raspadeiras segundo dois critérios de medição distintos: à
esquerda, o índice tipológico de Sonneville-Bordes, com exclusão da utensilagem microlítica (tipos 51 e 79-91); à
direita, um índice económico, o da percentagem de lâminas de fase plena que foram transformadas em «utensílios
retocados» de ambos os grupos tipológicos, calculada sobre um total de que foram excluídos os suportes
transformados em pontas (para as colecções de Vale de Porcos I e Vale Comprido - Barraca usou-se como critério
de pertença à fase plena a presença de uma secção trapezoidal associada à ausência de córtex). O critério
económico permite diferenciar de forma muito mais nítida as indústrias em que os buris/utensílios são
praticamente inexistentes, e mostra como, nas restantes, as frequências destes últimos não variam de forma
significativa, sendo só em Vale da Mata que os suportes laminares de fase plena são transformados em buris com
mais frequência do que em raspadeiras.
Manuel (escavações de 1940-42) e de 53% em Vales da Senhora da Luz, sendo inferior a
50% em todas as restantes colecções, nas quais oscilava entre os 24% registados na Terra do
José Pereira e na Terra do Manuel (camada 2s das escavações de 1988-89) e os 47% de Vale
de Porcos I.
Este conjunto de características sugere que, tanto em Vale da Mata como na Terra do
Manuel (escavações de 1940-42), uma parte importante dos buris (senão mesmo a grande
maioria) corresponderá efectivamente a utensílios no sentido funcional do termo. O uso de
suportes de fase plena podia, é certo, ser interpretado como relacionado com um
aproveitamento exaustivo do material: em fase final da respectiva carreira, e antes de serem
definitivamente abandonadas, as lâminas retocadas ou brutas inutilizadas (por fractura ou
embotamento irrecuperável do gume) podiam ter tido um último uso como suporte para a
extracção de lamelas finas. Em alternativa, os negativos de levantamentos de golpe de buril
poderiam ainda ser interpretados como correspondendo, nesses casos, a vestígios de
acidentes de utilização. A aceitação dessas hipóteses obrigaria, no entanto, a encarar a
questão de saber por que razão o mesmo tipo de acidentes, ou o mesmo aproveitamento
terminal, não teriam igualmente afectado os suportes de fase plena de outras jazidas, como
por exemplo a da Fonte Santa, onde foram produzidas centenas de lâminas sem córtex mas
nenhuma (bruta ou retocada) apresentava negativos de golpe de buril (excepto, como é
evidente, algumas das transformadas em pontas de Casal do Felipe, nas quais esses negativos
estavam associados a fracturas de impacto).
Não parecendo possível, em tal quadro explicativo, resolver a discrepância representada
por colecções como a da Fonte Santa, não resta outra alternativa, portanto, que não seja a de
interpretar a presença entre o material laminar de debitagem plena de levantamentos de golpe
de buril, ainda por cima cuidadosamente preparados, como correspondendo de facto a uma
transformação intencional dos suportes em questão, destinada a facilitar a respectiva
utilização com uma finalidade específica, provavelmente, aceitando como válida a
extrapolação a partir dos resultados dos estudos traceológicos feitos sobre material de outras
indústrias, o trabalho do osso ou da haste de cervídeo. Além de Vale da Mata e da Terra do
124
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Manuel (escavações de 1940-42), uma tal situação parece só ocorrer de forma significativa
em Vales da Senhora da Luz e no Casal do Cepo (ver gráficos da Fig. 3.19). Neste último
caso, porém, a reduzida dimensão da amostra (apenas 13 buris), e o facto de dois dos três
buris sobre suporte alongado de fase plena serem de ângulo sobre fractura, num caso, e plano,
no outro, incitam, no contexto tafonómico da jazida, às maiores cautelas na interpretação da
intencionalidade e funcionalidade dos levantamentos. Já no caso de Vales da Senhora da Luz,
porém, o facto de os buris sobre lasca serem maioritariamente não corticais, tal como em
Vale da Mata e Terra do Manuel (escavações de 1940-42), está também em conformidade
com a atribuição da função de utensílio à maioria dos buris provenientes da estação.
Em todas as restantes jazidas, portanto, é provável que, embora usados com menos
frequência do que os prismáticos, os buris fossem na sua quase totalidade núcleos para
lamelas. É o que revela o facto de a percentagem em que os respectivos suportes são
constituídos por suportes alongados de fase plena não ultrapassar nelas os 20% (Fig. 3.20),
em contraste com o facto de essa percentagem não ser, de um modo geral, inferior a 40%
entre as outras grandes classes (raspadeiras, facas e armaduras) de utensílios fabricados sobre
lâmina (Fig. 3.12). Mesmo na Terra do Manuel (escavações de 1940-42) e em Vale da Mata,
aliás, o aproveitamento de resíduos de golpe de buril para a fabricação de armaduras
microlíticas de dorso está ocasionalmente documentado (por três peças no primeiro caso e
por 13 no segundo), pelo que não é de excluir que alguns dos buris destas jazidas tenham
também funcionado como núcleos. As percentagens marginais (1-2%) a que esses exemplos
correspondem indicam, no entanto, que se poderá tratar de um aproveitamento fortuito de
suportes não debitados de forma intencional com essa finalidade.
3.4.3. Diferenciação entre buris/núcleos e buris/utensílios
A consideração destes dados levanta, portanto, um problema de importância crucial do ponto
de vista da caracterização cultural e funcional das jazidas: o de como distinguir, em cada
caso, entre buris/núcleos e buris/utensílios. À partida, três critérios parecem possíveis:
•
considerar como utensílios as peças de bisel fino, isto é, por hipótese, aquelas em que a
espessura do bisel não ultrapassasse os 0,5 cm, e classificar as restantes como núcleos;
•
considerar como utensílios todos os buris de Vale da Mata e da Terra do Manuel (1940-42), e como núcleos todos os buris das restantes colecções;
•
considerar como utensílios os buris fabricados sobre suportes de fase plena das diferentes
jazidas, e como núcleos os restantes.
O primeiro critério tem diversos inconvenientes, nomeadamente os decorrentes do facto
de ser possível que, em muitos casos (veja-se o que acima se disse a propósito dos «buris de
Vale Comprido»), a reduzida espessura do bisel tenha mais a ver com a biografia do artefacto
do que com a intenção de obter uma aresta funcional de trabalho. O segundo, tem a
desvantagem óbvia de conduzir a uma simplificação exagerada da realidade, uma vez que,
por um lado, a presença de buris de bisel espesso na Terra do Manuel (1940-42) indica que
também nesta colecção estarão incluídas peças deste grupo tipológico que, na realidade,
foram usadas como núcleos para lamelas; e que, por outro lado, a presença de buris de tipo
Noailles em Vale Comprido - Barraca aponta para que algum do material desta jazida que foi
integrado no grupo tipológico em questão tenha na realidade funcionado como utensílio e não
como núcleo.
O terceiro critério parece ser, portanto, aquele que melhor se ajusta ao objectivo
pretendido. Serão assim doravante consideradas como buris/núcleos as peças fabricadas
sobre lasca ou lâmina cortical, e como buris/utensílios as peças fabricadas sobre suporte
Tecnologia lítica
125
alongado de fase plena (lâmina sem córtex ou lamela). Esta decisão baseia-se no pressuposto
de que a transformação dos produtos que constituem o objectivo final das cadeias operatórias
(os quais tenderão em qualquer dos casos, quando objecto da técnica do golpe de buril, a
apresentar biseis finos, dada a espessura à partida reduzida dos suportes) está relacionada
com a sua utilização efectiva para tarefas determinadas, enquanto que a transformação dos
subprodutos dessas mesmas cadeias operatórias está em muitos casos relacionada com um
reaproveitamento dos volumes em questão para a produção de outros tipos de suportes
(lamelas, barbelas, etc.). Conforme revelado pelos dados do Quadro 3.10 e da Fig. 3.12, isso
não significa, no entanto, que não haja também reaproveitamento desses subprodutos para
utensílios, nomeadamente para raspadeiras (no caso das lâminas com córtex), e para entalhes,
denticulados e raspadores (no caso das lascas de descorticamento e conformação).
Alguns buris sobre suporte de fase inicial poderão corresponder igualmente, portanto, a
utensílios e, inversamente, não se pode excluir que alguns suportes sobre lâmina não cortical
possam corresponder antes a núcleos. No caso de Vale de Porcos, aliás, verifica-se que entre
as 12 peças sobre lâmina sem córtex só cinco têm um bisel menor ou igual do que 0,5 cm, e
que, por outro lado, só uma apresenta simultaneamente uma secção trapezoidal (ver vol. II,
capítulo 4). Usando um critério mais restritivo para definir a pertença à fase plena da
debitagem, apenas esta peça poderia ser considerada como um buril/utensílio. Em Vale
Comprido - Barraca, a situação era praticamente idêntica: em 22 peças sobre lâmina sem
córtex, 14 tinham um bisel menor ou igual do que 0,5 cm, mas somente 4 apresentavam
igualmente secção trapezoidal. O total de buris sobre suporte atribuível, com base neste
critério mais restritivo, à fase plena da debitagem, baixaria assim, nesta jazida, para apenas 5
(havia também um sobre lamela).
A adopção do critério económico acima proposto implica assim uma certa margem de
erro, a qual terá portanto que ser tomada em conta na análise de conjunto dos dados e na
determinação da medida em que eles podem ser interpretados como reflexo genuíno das
realidades tecnofuncionais do passado. De forma a minimizá-la tanto quanto possível, parece
portanto logicamente aconselhável, no caso de Vale de Porcos e de Vale Comprido - Barraca,
usar na discriminação entre buris/núcleos e buris/utensílios o critério de pertença à fase plena
que se usou para o estudo da debitagem, só considerando enquanto tais, além dos lamelares,
os suportes laminares sem córtex que apresentem também uma secção trapezoidal (conforme
se fez nos gráficos das Figs. 3.20 e 3.21). Sendo ambas as jazidas caracterizadas por um
acentuado pendor oficinal, por um lado, e pela debitagem de lâminas de bom tamanho, é
evidente, com efeito, que nelas seria relativamente frequente a ocorrência de suportes
laminares que, quando os nódulos tivessem sido exaustivamente descorticados, não
apresentassem vestígios de córtex no anverso, apesar de ainda terem sido produzidos na fase
inicial da debitagem. Desde que apresentassem dimensões (comprimento e espessura)
compatíveis com um reaproveitamento como núcleo, esses suportes eram, assim, susceptíveis
de exploração para a obtenção de lamelas mediante a técnica do golpe de buril, conforme
deve efectivamente ter acontecido nos casos que a aplicação deste critério mais restritivo
obriga a eliminar das contagens.
Na Fig. 3.20 procurou-se avaliar a forma como variou ao longo do Paleolítico Superior
português o uso dos buris como utensílios, comparando-a com idêntica variação no uso das
raspadeiras, grupo tipológico de funcionalidade melhor conhecida e bem representado em
quase todas as indústrias. Usaram-se para o efeito duas unidades de medida diferentes. Num
primeiro gráfico, recorreu-se aos índices tipológicos normais, embora calculados sobre
conjuntos deslamelizados, isto é, em que os tipos 51 e 79-91 foram eliminados das contagens
(por forma a evitar as distorções causadas pelo facto de o costume de retocar as barbelas ter
sofrido variações muito significativas ao longo do tempo, por um lado, bem como as
resultantes de uma eventual conservação diferencial dos objectos de menor tamanho nas
126
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 3.21 - Relação entre a frequência dos buris/utensílios e a das armaduras microlíticas de dorso segundo dois
critérios de medição distintos: à esquerda, o índice tipológico de buril de Sonneville-Bordes, calculado com
exclusão da utensilagem microlítica (tipos 51 e 79-91) e comparado com a percentagem que as armaduras
microlíticas de dorso representam no total de «utensílios retocados» da lista-tipo; à direita, os mesmos índice e
percentagem calculados sobre um total de que se excluíram os «utensílios retocados» que, na realidade, serão
núcleos (no caso das colecções de Vale de Porcos I e Vale Comprido - Barraca, contaram-se como buris/utensílios
só os que tinham como suporte uma lâmina que, além de não ter córtex, era de secção trapezoidal).
jazidas ou nas colecções, por outro). Num segundo gráfico, recorreu-se já ao uso dos critérios
económicos acima enunciados, registando as variações na percentagem das lâminas de fase
plena que tinham sido transformadas em raspadeiras e em buris. Também neste caso, porém,
foi excluída das contagens uma categoria de utensílios, a das pontas, desta feita com o
objectivo de eliminar as distorções causadas por uma especialização funcional eventual de
certos sítios na fabricação de armaduras líticas.
Embora o uso dos índices tipológicos normais deslamelizados dê já uma ideia
aproximada da que se obtém mediante a consideração de critérios económicos, é claro que
estes últimos evidenciam de forma muito mais nítida os contrastes existentes entre as diversas
indústrias. Assim, embora com variações seguramente determinadas por problemas de
amostragem (como acontece com os casos do Gato Preto e da colecção proveniente das
escavações de 1988-89 na camada 2s da Terra do Manuel, em que as percentagens de buris
sobre suporte de fase plena são nulas, mas as de raspadeiras também), parece evidente que o
uso de buris como utensílios, sendo sempre raro, é apesar de tudo mais frequente nas
indústrias do início do Paleolítico Superior (Aurignacense, Gravettense antigo, Gravettense
final e Proto-Solutrense), por um lado, e do Magdalenense superior, por outro. Em todas elas,
porém, esse uso terá estado combinado com um recurso sistemático à técnica do golpe de
buril como método de extracção de suportes lamelares embora, como acima se viu, os buris
pareçam ser muito menos usados para esse efeito no Magdalenense superior, época em que a
exploração de núcleos prismáticos era claramente o meio de obtenção de lamelas preferido.
Vale da Mata é também o único caso em que se faz com mais frequência o aproveitamento de
lâminas sem córtex para a fabricação de buris do que para a de raspadeiras, e o único caso em
que a percentagem das lâminas sem córtex que foram transformadas em buris ultrapassa
claramente os 20%.
Nas indústrias do Fontesantense e do Solutrense médio, o uso dos buris como utensílios
parece ser negligenciável, tal como anteriormente se havia já constatado ser igualmente o
caso no que respeita ao uso da técnica do golpe de buril para a extracção de lamelas. Nestas
indústrias, o trabalho do osso seria assim seguramente feito com recurso a outros tipos de
utensílios. Ou, dito de outra forma, os produtos de fase plena eventualmente retocados para
Tecnologia lítica
127
uso como ferramenta destinada ao trabalho das matérias duras de origem animal devem
encontrar-se ou no grupo tipológico das lâminas retocadas ou no da utensilagem comum
(lâminas denticuladas ou com entalhes). Quanto às indústrias do Magdalenense final, a
reduzida dimensão da amostra recolhida in situ no Olival da Carneira não permite tirar
conclusões seguras acerca de um eventual uso exclusivo como núcleos deste tipo de
artefactos. A existência de buris de bisel fino sobre suporte laminar tanto em Carneira I como
na Bairrada (ver vol. II, capítulos 41 e 44) indica, com efeito, que nestas indústrias também
poderá ter havido buris/utensílios.
3.4.4. Os buris nas indústrias portuguesas
No que diz respeito ao significado tecnológico e funcional dos buris e à frequência com que
eles foram usados, as indústrias portuguesas podem agrupar-se, assim, em três conjuntos:
•
indústrias de buris/núcleos, usados como método preferencial de produção de lamelas
(Aurignacense, Gravettense antigo, Magdalenense final de fácies Rossio do Cabo e de
fácies Carneira);
•
indústrias onde há coexistência de buris/utensílios e de buris/núcleos, os primeiros
provavelmente usados para o trabalho do osso, os segundos usados para a debitagem de
lamelas, mas de forma secundária em relação ao método clássico de debitagem de
núcleos prismáticos (Gravettense final, Proto-Solutrense e Magdalenense superior);
•
indústrias sem buris, onde as lamelas são obtidas a partir de núcleos prismáticos e o
trabalho do osso deverá ter sido executado com recurso a outros tipos de ferramentas
(Fontesantense, Solutrense médio, Magdalenense antigo de fácies Cerrado Novo).
Deste modo, as indústrias de buris/utensílios são, sobretudo, aquelas que também contêm
quantidades importantes de lamelas de dorso, conforme é revelado de forma eloquente pelos
gráficos da Fig. 3.21. As percentagens de buris calculadas após eliminação dos inventários
tipológicos da utensilagem lamelar, por um lado, e das classes de artefactos que, do ponto de
vista funcional, deverão na realidade corresponder a núcleos («raspadeiras» espessas, peças
esquiroladas e buris sobre suporte de fase inicial), por outro, são homogeneamente baixas,
isto é, sempre inferiores a 5%. No entanto, deve ter-se em conta que se trata de valores
mínimos, e que a consideração do material sobre lasca implicaria, por exemplo, subidas
importantes precisamente em duas das indústrias em que se observam valores mais altos:
Terra do Manuel (escavações de 1940-42) e Vale da Mata (especialmente esta última, como
já anteriormente se referiu). Juntamente com a de Vale Comprido - Barraca, essas duas
colecções são aquelas em que a percentagem de buris assim calculada é mais elevada e,
simultaneamente, são aquelas em que a frequência das armaduras microlíticas de dorso
(calculada de modo idêntico, isto é, com exclusão dos utensílios retocados que na realidade
serão núcleos) apresenta picos pronunciados, o que as diferencia nitidamente de todas as
outras, embora essa frequência também seja elevada no Cerrado Novo, uma das indústrias em
que não parece haver buris/utensílios. Nesta última, porém, a grande maioria das armaduras é
constituída por lamelas Dufour, de Areeiro e de dorso marginal, e não por lamelas de dorso,
como acontece nas outras três.
Parece assim confirmar-se, até certo ponto, o padrão de covariação entre buris e lamelas
de dorso que tem sido assinalado por diversos autores. Na região cantábrica, por exemplo, a
ocorrência de buris em quantidades importantes é de modo geral concomitante de frequências
igualmente elevadas de lamelas de bordo abatido, facto que Straus (1992:138-139) considera
significativo do ponto de vista funcional, embora de interpretação difícil. Neste caso, porém,
seria necessário filtrar os dados relativos à covariação das duas classes mediante a discussão
da verdadeira natureza tecnológica e funcional dos buris das jazidas da região, sem o que o
128
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 3.22 - Os diferentes tipos de núcleos como forma de optimização da debitagem (obtenção do máximo de gume
por unidade de massa) em função da morfologia do volume inicial.
Tecnologia lítica
129
carácter genuíno do referido padrão resulta de avaliação difícil. A consulta da Fig. 3.21 é, a
este respeito, muito elucidativa. Utilizando como instrumento de medida os índices
tipológicos tradicionais, em que são tomados em consideração «utensílios» retocados que na
realidade são núcleos, o padrão de covariação seria obscurecido, com efeito, por excepções
mais numerosas do que a regra: os valores mais elevados do índice de buril coincidiriam com
valores nulos ou muito baixos de frequências de armaduras microlíticas de dorso (Vale de
Porcos e Vale Comprido - Barraca); e índices de buril bastante mais elevados do que na Terra
do Manuel (1940-42) coincidiriam, na Terra do José Pereira e nos níveis magdalenenses do
Olival da Carneira, com valores de armaduras retocadas praticamente nulos.
O facto de a inexistência ou raridade dos buris se verificar em indústrias caracterizadas
pelo uso de pontas líticas de suporte laminar (Fontesantense e Solutrense médio) é também
seguramente significativo do ponto de vista funcional, e é confirmado pelo facto de, nos
conjuntos proto-solutrenses caracterizados pela produção de grandes quantidades de pontas
(Vale Comprido - Encosta), o peso dos buris ser significativamente inferior ao verificado nos
outros conjuntos da mesma época. Os dados de momento à nossa disposição não permitem,
porém, ir além destas constatações e procurar uma explicação sólida para este padrão de
variabilidade industrial.
3.5. Exploração da matéria-prima e tipos de núcleos
Da análise realizada neste capítulo conclui-se que artefactos tradicionalmente classificados
como pertencendo à categoria funcional dos utensílios correspondem na realidade, de um
modo geral, a núcleos, constituindo formas alternativas de extracção de lamelas e de
pequenas lascas destinadas a serem usadas como barbelas, seja em bruto seja após
transformação por retoque. A escolha das diferentes estratégias de debitagem através das
quais se pode conseguir a obtenção de tais produtos está obviamente condicionada pela
morfologia inicial do volume de matéria-prima (Fig. 3.22).
Deste modo, a predominância de uma ou de outra estratégia nesta ou naquela etapa de
uma sequência cultural concreta é determinada, em grande medida, por opções técnicas
tomadas logo no momento de arranque do processo de exploração do bloco de matéria-prima.
Do modo como este é inicialmente conformado ou dividido dependerá, com efeito, a
obtenção dos volumes de morfologia mais adaptada à aplicação das técnicas de produção de
barbelas que se pretende pôr em prática. Num segundo momento, a escolha cultural incide na
selecção para reaproveitamento, de entre os diversos tipos de volumes produzidos ao longo
do processo de redução do bloco inicial, daqueles cuja forma corresponde ao pretendido para
a execução da estratégia que se tem em mente.
Nas indústrias em que há produção de lâminas, a extracção destas últimas faz-se sempre a
partir de núcleos prismáticos, tornando necessária a conformação de volumes espessos de
forma paralelipipédica que serão debitados segundo o comprimento. A conformação e a
manutenção dos núcleos prismáticos, por sua vez, cria resíduos de morfologia e dimensões
variadas. O seu reaproveitamento origina outros núcleos, cuja tipologia será em primeiro
lugar condicionada por essa volumetria: quando a forma inicial é paralelipipédica, mas
delgada, a opção mais racional para maximizar a quantidade de gume obtida por unidade de
massa é a exploração segundo a largura, isto é, a conformação dos volumes para serem
debitados como «buris»; quando se trata de formas cónicas baixas, a melhor forma de atingir
esse objectivo é a exploração segundo a espessura, isto é, a conformação dos volumes para
serem debitados como «raspadeiras» espessas (carenadas ou afocinhadas).
130
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Em certas indústrias, nomeadamente naquelas em que não há produção de lâminas, pode
acontecer que estes métodos de produção sejam utilizados de forma exclusiva. Quando assim
é, o primeiro passo na sequência de exploração dos blocos de matéria-prima lítica consiste na
respectiva redução deliberada a pequenos fragmentos angulosos, os quais, consoante a sua
morfologia, serão subsequentemente explorados ou como «buris» ou como «raspadeiras»
espessas. É o que se passa, por exemplo, na indústria do Mesolítico inicial do Areeiro III, em
Rio Maior (ver capítulo 5). No Paleolítico Superior, esta estratégia simples, rápida e eficiente
de obter barbelas também está documentada, coexistindo, enquanto cadeia operatória
separada, com sistemas de produção baseados na debitagem de núcleos prismáticos e no
concomitante reaproveitamento dos subprodutos da sua exploração. Uma tal coexistência
verifica-se, por exemplo, em indústrias proto-solutrenses como a do Gato Preto (ver vol. II,
capítulo 14).
As peças esquiroladas, finalmente, representam uma terceira forma de proceder à
extracção de barbelas, utilizada sobretudo em contextos de carência de matéria-prima, nos
quais se torna necessário reaproveitar como núcleos mesmo os suportes (brutos ou retocados)
de espessura reduzida. É vulgar, nos contextos em que a técnica é utilizada, que, antes do seu
abandono, as lâminas extraídas em fase plena da debitagem, ou os utensílios (pontas, facas ou
raspadeiras) sobre elas fabricados, vejam assim serem «espremidas» ao máximo as
potencialidades de produção de gume contidas na massa de matéria-prima que representam.
4. ECONOMIA
4.1. Aprovisionamento em matérias-primas líticas
Durante o Paleolítico Superior português, a rocha preferencialmente utilizada como matéria-prima para a indústria da pedra lascada foi o sílex, designação que, neste trabalho, foi
utilizada de modo muito abrangente, por forma a incluir uma vasta gama de tipos de rochas
siliciosas (chert, calcedónia, jaspe, etc.) nem sempre fáceis de diferenciar pelo não geólogo.
Em praticamente todos os conjuntos, no entanto, havia quantidades maiores ou menores de
restos relacionados com o talhe de outras rochas duras de fractura conchoidal, em particular o
quartzo e o quartzito. Embora apenas de forma episódica ou localizada (seja no tempo seja no
espaço), o basalto, o xisto, o grés, o calcário e o cristal de rocha também foram trabalhados
por lascamento (especialmente o último). Nalguns dos contextos magdalenenses de ar livre
do sítio de Cabeço de Porto Marinho está ainda documentado o uso do grés para a fabricação
de artefactos polidos, de que, no entanto, apenas se recolheram fragmentos. A respectiva
funcionalidade é-nos, por isso, desconhecida, mas tudo leva a crer que se trataria de objectos
usados como suporte para a realização de trabalhos de tratamento de plantas ou de colorantes
minerais.
Apesar da preferência geral pelo sílex, existe uma variabilidade considerável na
frequência com que se recorreu a outras matérias-primas, em especial ao quartzo e ao
quartzito. À partida, a explicação dessa variabilidade pode ser concebida em função de pelo
menos três tipos de comportamentos distintos:
•
uso do quartzo ou do quartzito como materiais de primeira escolha para a obtenção de
artefactos com uma funcionalidade específica, isto é, para tarefas em que as respectivas
propriedades físicas ou mecânicas tornassem mais vantajoso o uso dessas rochas;
•
uso do quartzo ou do quartzito como materiais de primeira escolha, em substituição do
sílex e como resultado de uma preferência cultural por essas matérias-primas;
•
uso do quartzo ou do quartzito enquanto materiais de segunda escolha, sempre que a
distância em relação às fontes em que se fazia o abastecimento em sílex obrigasse a
recorrer a matérias-primas locais.
No que diz respeito à primeira possibilidade, o impacto de um eventual comportamento
desse tipo na constituição dos conjuntos líticos é difícil de avaliar sem o recurso a estudos
traceológicos especificamente concebidos para a determinação do uso dado às lascas brutas
de quartzo e de quartzito (que, na maior parte das indústrias, constituem a esmagadora
maioria dos produtos saídos da debitagem dessas matérias-primas). Quando retocado, com
efeito, o material em quartzo e quartzito não ocorre em formas que lhe sejam próprias ou,
dito de outra forma, não há tipos de utensílios retocados fabricados em quartzo ou quartzito
de forma exclusiva ou preferencial.
Neste apartado, procurar-se-á, assim, fundamentalmente, investigar até que ponto as
características do registo arqueológico permitem documentar a ocorrência dos outros dois
tipos de comportamentos e, em primeiro lugar, avaliar se a distância em relação às fontes
influenciava de facto o recurso ao sílex: só poderá argumentar-se que o peso acrescido do
quartzo ou do quartzito num determinado contexto é consequência da distância a que o sítio
se encontra em relação às fontes da matéria-prima preferida — o sílex — se for possível
demonstrar que distâncias da ordem de grandeza em questão influenciam igualmente o modo
132
Economia
como este último é explorado. Com efeito, a resposta a uma situação de penúria de sílex não
tem necessariamente que ser a de recorrer a outras matérias-primas que o substituam, uma
vez que é possível conceber uma gama variada de alternativas cuja adopção permitiria
solucionar o problema da escassez. Dois exemplos apenas: economização extrema, com
aproveitamento exaustivo de toda a massa disponível, abandonada apenas quando reduzida ao
estado de esquírolas; ou organização, sempre que necessário, de expedições logísticas
propositadamente organizadas para a obtenção de sílex nas fontes distantes em que era
possível realizar a sua extracção.
A opção por recorrer a matérias-primas de segunda escolha disponíveis nas imediações
do sítio ocupado é também, portanto, uma opção cultural, relacionada em última análise com
a dimensão dos territórios, a existência e as modalidades de funcionamento de eventuais
mecanismos de troca a longa distância, e a organização do sistema de povoamento. O
afastamento do sítio em relação às fontes da matéria-prima preferida é, por isso, apenas um
dos factores a ter em consideração na análise dos sistemas de aprovisionamento, embora,
como é natural, esse factor se vá tornando cada vez mais decisivo na estruturação destes
últimos à medida que a ordem de grandeza das distâncias vai aumentando.
No caso da região em análise, a Estremadura (definida como os terrenos da orla litoral
compreendidos entre o Tejo e o Mondego), o simples conhecimento da respectiva geologia
básica permite avançar, a este respeito, duas caracterizações importantes relacionadas com a
disponibilidade natural das diferentes matérias-primas. A primeira, é a de que o quartzo e o
quartzito podem efectivamente, de um modo geral, ser considerados como matérias-primas
locais, isto é, disponíveis a uma distância dos sítios que não ultrapassaria os 5-10 km.
Excepto nos pontos mais altos do Maciço Calcário Estremenho, as formações detríticas
contendo seixos de quartzo e quartzito de tamanho adequado — quer se trate de depósitos
miocénicos de cobertura ou de terraços fluviais do Plio-plistocénico, uns como outros
constituídos a partir da drenagem dos terrenos do soco paleozóico com que a região confina a
oriente e onde as referidas rochas são muito frequentes, seja em afloramento seja em filão —
apresentam uma distribuição generalizada e bastante homogénea. A segunda, é a de que a
distribuição das fontes de sílex não parece poder ser considerada como constituindo em si
mesma um impedimento absoluto ao uso exclusivo dessa matéria-prima, se tal exclusividade
fosse exigida pela tecnologia lítica ou pelas tradições culturais das populações que habitaram
a Estremadura durante o Paleolítico Superior. Conforme se pode constatar pela consulta do
mapa da Fig. 4.1, não há, com efeito, qualquer ponto da região situado a distância superior a
30 km de uma das fontes de sílex actualmente conhecidas. Este facto é tanto mais
significativo quanto a prospecção sistemática das jazidas de matéria-prima está ainda quase
totalmente por fazer, e que a respectiva densidade será seguramente muito maior, portanto, do
que a sugerida pelo referido mapa.
A bibliografia paleolítica abunda, aliás, em exemplos de transporte sistemático das
matérias-primas líticas a distâncias consideravelmente superiores a esses 30 km, que os
estudos de Geneste (1992:20) levaram a considerar, no caso do Sudoeste da França, como o
limite (definido em relação à jazida de cujos artefactos se pretende estudar a proveniência)
para além do qual se situaria uma «zona de frequentação ocasional». Um exemplo bem
conhecido é o do sílex cor de chocolate das montanhas do sul da Polónia, o qual, no
Tardiglaciar, chega a representar 90% do total de artefactos líticos em sítios arqueológicos
situados a distâncias de 200-300 km em relação à fonte (Gamble 1986:336). Situações
semelhantes encontram-se igualmente documentadas no Novo Mundo, como acontecia no
caso da jazida paleoíndia de Wapanucket 8 (Massachussets), onde a totalidade do sílex
utilizado provinha do vale do Hudson, a 240 km de distância (Fiedel 1992:70). A jazida
solutrense de Fressignes (França) constitui um outro exemplo, não tão extremo e mais
próximo geograficamente, de contextos em que a grande maioria do sílex é originário de
Economia
133
Fig. 4.1 - Jazidas de sílex (tanto primárias como secundárias) da Estremadura. Só foram assinaladas as que são de
conhecimento directo do autor. As notícias explicativas da Carta Geológica de Portugal indicam a existência de
calcários com silicificações noutros pontos do território, e as prospecções levadas a cabo por Aubry (comunicação
pessoal), na região a sul de Coimbra, e por Shokler (comunicação pessoal), na região entre Lisboa e Rio Maior,
permitiram já detectar diversas outras jazidas. Os círculos indicam a área de 30 km de raio situada em torno de
cada uma das fontes assinaladas. Conforme se pode verificar, não existe nenhum ponto da região em que uma
ocupação humana nela instalada apenas dispusesse de jazidas de sílex situadas na «zona de frequentação
ocasional» (a mais de 30 km de distância).
fontes situadas a dezenas de km de distância: na decapagem 12 do quadrado E7, era de 86% a
percentagem, em massa, do material cuja fonte distava mais de 60 km (Aubry 1991:115-131,
311). Neste caso, porém, uma tal preferência por certas variedades de sílex de proveniência
longínqua era concomitante da exploração sistemática de uma matéria-prima alternativa
disponível nas imediações: o quartzo de filão, de que havia afloramentos a menos de 50 m de
distância, e cuja massa total era superior à do sílex, embora não tivesse sido utilizado para a
fabricação de utensílios retocados. O carácter único, no contexto do Solutrense francês, de
que, segundo Aubry, se reveste esta exploração do quartzo em Fressignes está, assim, com
toda a probabilidade, relacionado funcional e economicamente com o carácter igualmente
único da dependência extrema em relação a fontes de sílex muito distantes das ocupações que
aqui tiveram lugar. Nas jazidas do Paleolítico Superior francês, com efeito, a percentagem de
materiais alóctones não ultrapassa, em regra, os cerca de 50% do total de artefactos líticos
(Geneste 1992:31).
Assim, num primeiro momento, a abordagem do caso português terá de começar pela
tentativa de esclarecer se o aprovisionamento em matérias-primas líticas se fazia de forma
semelhante à documentada no final do Paleolítico Superior polaco ou antes, como parece à
partida mais lógico, segundo as modalidades menos extremadas que parecem características
do Sudoeste da França. O que implica, em primeiro lugar, tentar determinar qual a origem do
sílex utilizado nas jazidas e o significado de que em cada caso se revestirá um eventual
recurso ao quartzo e ao quartzito.
134
Economia
Fig. 4.2 - Localização dos sítios arqueológicos do Paleolítico Superior da bacia de Rio Maior.
4.1.1. Sílex: aprovisionamento e circulação
A observação da presença ou ausência de geodes nos núcleos das colecções provenientes dos
diversos sítios do Paleolítico Superior da região de Rio Maior (cuja localização se apresenta
na Fig. 4.2) deu origem à constatação de que, no caso dos situados nas imediações da
povoação de Azinheira, as percentagens de peças com geodes eram significativamente
superiores às apuradas para os situados no Vale Comprido e nas imediações da povoação da
Senhora da Luz (Fig. 4.3). O estudo da frequência com que os nódulos brutos existentes nas
jazidas de sílex conhecidas na Azinheira e em Vale Comprido apresentam geodes ainda não
foi feito, mas parece lógico presumir que estas características das colecções reflectem em
grande medida as do material disponível nas jazidas em cada caso mais próximas. As
observações preliminares já realizadas por J. Shokler (comunicação pessoal) no quadro de um
trabalho de prospecção e caracterização dos recursos em sílex da região apontam no sentido
de confirmar esta interpretação. Sob o ponto de vista da natureza dos nódulos de sílex nela
disponíveis, a bacia de Rio Maior parece, assim, poder ser dividida em duas partes: a poente
da linha de separação constituída pelos cursos do Maior (a sul da cidade) e da ribeira da Pá,
sua afluente (a norte), a ocorrência de geodes é rara; a nascente dessa linha, é relativamente
frequente que os nódulos de sílex contenham geodes.
Em última análise, esta diferenciação deve estar relacionada com uma origem geológica
distinta. Na bacia de Rio Maior, com efeito, a expressão «jazidas de sílex» deve entender-se
como correspondendo a pontos do território em que se verifica uma ocorrência concentrada
de nódulos, não havendo (ou não sendo conhecidas) quaisquer jazidas em posição primária.
Essas concentrações localizam-se no interior das extensas formações detríticas de idade
terciária que recobrem as zonas de topografia mais elevada. A explicação para o facto de as
formações em questão conterem nódulos de sílex reside certamente no facto de estes últimos
corresponderem a materiais redepositados que se encontrariam originalmente embalados nos
calcários da orla meridional do Maciço Calcário Estremenho (Serra de Candeeiros e Planalto
Economia
135
Fig. 4.3 - O aprovisionamento em sílex no Paleolítico Superior da bacia de Rio Maior. A ocorrência de geodes nos
núcleos (gráficos de barras implantados sobre a carta da Fig. 4.2) permite distinguir os sítios das imediações da
Azinheira (19% no Gato Preto) dos sítios das imediações de Vale Comprido (1% na colecção proveniente das
escavações feitas por Heleno na Terra do Manuel em 1940-42). No que respeita a este último grupo de jazidas, a
percentagem de nódulos de córtex de tipo 3 (ou seja, daqueles em que a superfície externa é totalmente constituída
por miolo rolado) é consideravelmente superior nas das imediações da Senhora da Luz do que nas situadas no
próprio Vale Comprido, junto à fonte de matéria-prima, verificando-se precisamente o inverso com os nódulos em
que o córtex é de tipo 1 (espesso, pulverulento).
136
Economia
de Santo António). As características em parte distintas dos nódulos de sílex existentes nas
formações detríticas terciárias situadas de cada lado da acima referida linha divisória podem
ser muito simplesmente, portanto, uma consequência do facto de serem igualmente distintas
tanto as áreas de captação de sedimentos dos agentes erosivos que lhes deram origem como
as jazidas primárias de sílex existentes nessas duas presumíveis áreas de captação diferentes.
Seja como for, desta situação resulta que é necessário ter em conta, num estudo desta
natureza, o facto de ser possível encontrar nódulos avulsos ou dispersos em praticamente
qualquer ponto da região, mesmo se situado relativamente longe das zonas de concentração
mais importante. Por outro lado, a subsequente erosão das formações detríticas terciárias teve
necessariamente como consequência o arrastamento de nódulos de sílex para o fundo dos
vales, onde, hoje em dia, podem ser facilmente encontrados, tanto em depósitos modernos de
aluvião como em terraços fluviais de idade plistocénica.
Não existem ainda estudos que permitam saber se é possível, na bacia de Rio Maior,
discriminar com segurança os nódulos provenientes das aluviões dos provenientes das
formações detríticas terciárias. À partida, porém, parece lógico admitir que os primeiros,
sujeitos a processos de mobilização mais prolongados e mais recentes, tenderão a apresentar
superfícies externas sem córtex de alteração (isto é, constituídas exclusivamente por miolo
rolado) com maior frequência do que os segundos. Admitindo a validade deste pressuposto, a
comparação dos sítios arqueológicos de Vale Comprido com os da Senhora da Luz (cujos
conjuntos de núcleos se caracterizam em ambos os casos por muito baixas percentagens de
geodes e que, portanto, podemos presumir reflectirem um aprovisionamento feito no interior
de um mesmo território, o situado a poente do curso da ribeira da Pá) permite revelar um
padrão muito interessante (Fig. 4.3): a percentagem de peças em que a superfície externa é
totalmente constituída por miolo rolado (córtex do tipo 3) varia entre 9% e 15% nos sítios do
Vale Comprido, estando compreendida entre 21% e 37% nos sítios da Senhora da Luz;
inversamente, a percentagem de peças em que a superfície externa é constituída por um
córtex de alteração de tipo 1 (espesso, pulverulento) varia entre 24% e 40% nos sítios do
Vale Comprido, e entre 16% e 22% nos sítios da Senhora da Luz.
Aceitando as premissas dos raciocínios acima expendidos quanto ao significado, em
termos de proveniência, da presença/ausência de geodes e da variação da natureza do córtex
dos núcleos de sílex, verifica-se assim que, de um modo geral, aos três agrupamentos
espaciais de estações do Paleolítico Superior da bacia de Rio Maior correspondem três
territórios de abastecimento de matérias-primas distintos: predominantemente nas formações
terciárias a nascente da ribeira da Pá e do rio Maior no caso da Carneira, do Gato Preto e de
Vale de Porcos; predominantemente nas formações terciárias a poente desta linha divisória
no caso das três jazidas de Vale Comprido (Barraca, Cruzamento e Encosta);
predominantemente nas aluviões dos cursos de água que drenam estas últimas formações no
caso das jazidas das imediações da Senhora da Luz (Vales, Terra do Manuel e Casal do
Felipe). Apesar de geograficamente mais próxima do primeiro agrupamento do que do
terceiro, é também com este último que se relacionam, com base na análise das características
dos núcleos, as ocupações gravettenses de Cabeço de Porto Marinho. Inversamente, a Terra
do José Pereira, situada na Senhora da Luz, apresenta uma frequência de geodes nos núcleos
(18%) praticamente idêntica à verificada em Vale de Porcos (16%), o que pode ser
interpretado como indiciando um abastecimento feito predominantemente ou na zona da
Azinheira ou em fontes ainda desconhecidas de características idênticas situadas a poente da
Senhora da Luz.
Em linha recta, a distância entre esta povoação e o Vale Comprido é inferior a 2,5 km.
Distâncias desta ordem de grandeza eram suficientes, portanto, para se reflectirem de forma
marcada na estrutura do abastecimento em matérias-primas líticas, o que indica que, pelo
menos nas épocas representadas pela amostra de sítios que foi estudada, e nas zonas (como a
Economia
137
bacia de Rio Maior) em que o sílex é um recurso com uma distribuição razoavelmente
homogénea na paisagem, esse abastecimento devia ser essencialmente local. Isto é, devia ser
realizado no interior de um território restrito situado em torno do acampamento,
provavelmente no quadro da execução das tarefas de subsistência quotidianas, e não como
uma actividade organizada logisticamente, envolvendo expedições às fontes preparadas
exclusivamente com essa finalidade.
Os dados recolhidos nas estações de ar livre da região de Torres Novas (Fonte Santa e
Casal do Cepo) também são compatíveis com esta caracterização, conforme se referiu já a
propósito do estudo monográfico da última (ver vol. II, capítulo 29). Com efeito, embora as
frequências de geodes sejam nelas semelhantes (respectivamente 9% e 7%), indicando uma
mesma origem geológica primária, as duas colecções de núcleos apresentam percentagens
muito diferentes de peças com córtex dos tipos 1 (15% e 2%, respectivamente) e 3 (15% e
38%, respectivamente). É uma situação idêntica à que resulta da comparação dos sítios de
Vale Comprido com os da Senhora da Luz, e que, portanto, pode ser interpretada como
indicando um aprovisionamento feito predominantemente: em fontes aluviais no caso do
Casal do Cepo, situado numa zona em que as formações de cobertura são já terraços
plistocénicos do Tejo; nas formações detríticas terciárias que bordejam a orla meridional da
Serra d'Aire no caso da Fonte Santa, situada menos de 10 km a NNW do Casal do Cepo,
numa zona onde os cursos de água actuais entalham esse tipo de formações.
As remontagens efectuadas com o material lítico da camada 2 da Lapa do Anecrial (ver
vol. II, capítulo 10) mostram, por outro lado, que a circulação das matérias-primas nem
sempre se faria sob a forma de nódulos brutos. O bloco de sílex cinzento, por exemplo, viajou
sob a forma de núcleo pré-formado para a debitagem de lâminas, podendo presumir-se que a
respectiva conformação tenha sido executada no acampamento residencial (de localização
não conhecida), em antecipação de qualquer necessidade eventualmente surgida no decurso
da deslocação em cujo contexto se deu a curta estada na cavidade. Até que ponto esta prática
era generalizada ou apenas pontual é, porém, algo que os dados à nossa disposição não
permitem ainda esclarecer. O mesmo contexto continha também, com efeito, vestígios da
debitagem de outros nódulos de sílex introduzidos sem descorticamento, bem como de seixos
de quartzo que, em dois casos, haviam sido objecto de remoção de finas lascas corticais,
provavelmente para efeito de teste às respectivas aptidões para o talhe realizado no momento
da respectiva recolha.
4.1.2. Quartzo e Quartzito: solução de recurso e preferência cultural
No quadro de um abastecimento fundamentalmente local, realizado no interior de uma área
de cerca de 5 km de raio situada em torno do acampamento, a caracterização do significado
do recurso ao quartzo ou ao quartzito tem de ser feita mediante a comparação da composição
dos espólios líticos de sítios arqueológicos que reúnam duas condições: a de neles estar
provada a realização local de actividades de talhe, por um lado; e, por outro lado, a de que
tenham sido objecto de escavações modernas. Com efeito, conforme se demonstrou nos
diversos estudos monográficos incluídos no vol. II, os artefactos de quartzo e quartzito estão
representados nas colecções antigas em percentagem muito inferior à verificada nas
colecções modernas provenientes das mesmas jazidas. Representação que, note-se ainda,
transmite também uma imagem muito deformada da composição original dos conjuntos
líticos produzidos nestas matérias-primas, uma vez que está sobretudo a cargo de núcleos ou
de utensílios retocados (sendo muito provável, conforme se pôde inferir com base nas
recolhas de superfície realizadas em 1988 na Terra do Manuel — ver vol. II, capítulos 18 e
19 — que os restos de debitagem em quartzo e quartzito tenham sido descartados pelos
escavadores no próprio local da escavação).
138
Economia
Quartzo e quartzito
Variação inter-sítios no Grav ettense antigo
Quartz o
15
Sílex
16
Sílex
853
Basalto
14
Cris tal de rocha
7
Quartzito
25
Gruta do Caldeirão - camada Jb
Quartzito
107
Quartz o
35
Vale Comprido - Cruzamento
Fig. 4.4 - Comparação das frequências do sílex, do quartzo e do quartzito em dois contextos do Gravettense antigo
que foram objecto de escavações modernas. A percentagem das duas últimas rochas é muito mais elevada na
camada Jb do Caldeirão, situada a cerca de 15 km da mais próxima fonte de sílex conhecida, do que em Vale
Comprido - Cruzamento, estação que não dista mais do que algumas centenas de metros de uma jazida desta
última matéria-prima.
Parece claro, à partida, que uma tal comparação só pode saldar-se por um de três
resultados possíveis, os quais podem ser resumidos da seguinte forma:
•
no caso de sítios contemporâneos situados a distâncias consideravelmente diferentes das
fontes de sílex, o facto de a percentagem do quartzo e do quartzito ser sempre mais
elevada nos que se encontram a maior distância dessas fontes pode ser tomada como
indicando que a utilização das duas rochas teria sido feita a título de solução de recurso;
•
a constatar-se, pelo contrário, que as percentagens em questão se mantêm constantes,
estaríamos perante uma contradição com o padrão revelado pela análise das estações da
bacia de Rio Maior, isto é, perante um aprovisionamento essencialmente não local
determinado por uma preferência absoluta pelo sílex (de raiz cultural ou de fundamento
tecnológico);
•
finalmente, a verificarem-se variações importantes na frequência do quartzo e do
quartzito em conjuntos líticos provenientes de sítios situados a distâncias sensivelmente
idênticas das fontes de sílex, poder-se-ia concluir estarmos perante um caso de
preferência (sistemática ou pontual) por essas matérias-primas alternativas, havendo
então que averiguar se essa preferência se verificaria apenas nas indústrias de um
determinado período ou se ocorreria de forma aleatória ao longo do tempo, caso em que
teria de ser atribuída a factores situacionais (natureza das actividades, por exemplo).
Devido às limitações das colecções antigas, a comparação entre sítios contemporâneos
situados a distâncias muito diferentes das fontes de sílex apenas pôde ser levada a cabo para
os casos apresentados nas Figs. 4.4 e 4.5. No que respeita ao Gravettense antigo, ela foi feita
para os conjuntos provenientes de Vale Comprido - Cruzamento (estação situada junto a uma
das fontes de matéria-prima conhecidas na bacia de Rio Maior) e da camada Jb da Gruta do
Caldeirão. No caso desta última, a jazida de sílex mais próxima é a existente a norte de
Economia
139
Fig. 4.5 - Comparação das frequências do sílex, do quartzo e do quartzito em quatro contextos magdalenenses que
foram objecto de escavações modernas. A percentagem das duas últimas rochas é muito mais elevada na camada
Eb do Caldeirão, situada a cerca de 15 km da mais próxima fonte de sílex conhecida, do que no Cabeço de Porto
Marinho, estação que se encontra a menos de 5 km de distância de uma jazida desta última matéria-prima.
Caxarias, a qual está situada, em linha recta, a cerca de 15 km da cavidade (Fig. 4.1), embora
seja possível recolher nódulos de sílex avulsos nas aluviões do rio Nabão, que corre a apenas
algumas centenas de metros de distância. Os seixos de quartzo e quartzito, pelo contrário, são
extremamente abundantes nas cascalheiras miocénicas de cobertura e nos terraços fluviais
plistocénicos existentes nas imediações da gruta. Neste contexto, o facto de os gráficos da
Fig. 4.4 revelarem que, no Caldeirão, o sílex corresponde a apenas 25% dos restos líticos,
contra 85% em Vale Comprido - Cruzamento, tem necessariamente que ser atribuído ao
impacto do factor distância em relação às fontes. Na jazida de Tomar, a utilização do quartzo
e, sobretudo, do quartzito, é claramente, portanto, uma solução de recurso, caracterização que
é reforçada pelo facto de a Fig. 4.5 revelar que este padrão se mantém quando a comparação
é feita para contextos mais tardios, do final do Paleolítico Superior. A percentagem do sílex,
com efeito, é sempre superior a 80% nos três contextos de Cabeço de Porto Marinho que
foram tomados como representativos das ocupações deste local no Magdalenense antigo e no
Magdalenense superior (ver vol. II, capítulo 42); entre os materiais recolhidos na camada Eb
da Gruta do Caldeirão (sala do fundo e quadrados O/13-15), camada em que se encontravam
embalados vestígios de ocupações das mesmas duas épocas (ver vol. II, capítulo 40), essa
percentagem é, porém, de apenas 37%.
A análise da variação diacrónica do recurso ao quartzo e ao quartzito em sítios de uma
mesma região situados em todos os casos a distâncias inferiores a 5 km de fontes de sílex
conhecidas foi feita para o Paleolítico Superior da bacia de Rio Maior. Os resultados obtidos
são os apresentados no gráfico da Fig. 4.6. O quartzito apresenta percentagens sempre baixas,
variando entre um máximo de 11% em Vale Comprido - Cruzamento (Gravettense antigo) e
um mínimo de 1% nas camadas 3-4 do Olival da Carneira (Magdalenense final), e as
oscilações da respectiva curva não parecem ser temporalmente direccionadas. Já quanto ao
quartzo, porém, é patente o elevado peso que esta matéria-prima tem nos contextos
atribuíveis ao Proto-Solutrense, onde varia entre os 22% do nível médio do locus III de
Cabeço de Porto Marinho e os 43% do Gato Preto. A importância que o quartzo tem nesta
época é ainda confirmada pelos dados da camada 2 da Lapa do Anecrial (ver vol. II, capítulo
140
Economia
Fig. 4.6 - Variação diacrónica das percentagens do quartzo e do quartzito nos sítios arqueológicos da bacia de Rio
Maior que foram objecto de escavações modernas. A importância do quartzo no Proto-Solutrense resulta de uma
preferência cultural, não podendo ser atribuída à distância dos sítios em relação às fontes de sílex, que em todos os
casos representados no gráfico é inferior a 5 km.
10), onde esta matéria-prima ocorria numa percentagem de 31% dos efectivos e de 46% do
peso total de restos líticos, e onde eram de quartzo quatro dos nove volumes líticos
introduzidos na cavidade sob a forma de nódulo bruto ou de núcleo já conformado e que
foram objecto de operações de debitagem no quadro da ocupação em causa.
Durante o Proto-Solutrense, o quartzo é, portanto, objecto de uma procura deliberada, e
não uma matéria-prima utilizada apenas como solução de recurso. A Fig. 4.7, em que se
utilizaram os dados existentes para as duas colecções modernas de efectivos mais numerosos
(as da camada 2s da Terra do Manuel e do nível médio do locus III de Cabeço de Porto
Marinho), mostra, por outro lado, que a exploração desta matéria-prima se fazia segundo
técnicas idênticas às utilizadas para o sílex, embora com finalidades distintas. Com efeito:
•
as duas matérias-primas apresentam os mesmos tipos de núcleos (prismáticos, carenados
e buris sobre suporte de fase inicial), e em proporções basicamente idênticas;
•
os núcleos prismáticos de ambas as matérias-primas são explorados para a obtenção dos
mesmos tipos de produtos (lâminas, lamelas e lascas), os diversos estados de exaustão em
que foram abandonados permitindo a observação de cicatrizes da extracção das três
categorias de suportes (embora, no caso de Cabeço de Porto Marinho, todos os núcleos
prismáticos de quartzo encontrados fossem «para lamelas»);
•
a quase totalidade dos produtos alongados de quartzo, porém, é constituída por lamelas,
as lâminas sendo raras e os resíduos de golpe de buril ocorrendo em percentagens da
ordem de grandeza das apuradas para o sílex;
•
quando transformados por retoque, os suportes de quartzo dão origem a utensílios de
apenas dois grupos, o das raspadeiras (geralmente peças sobre lasca) e o do fundo comum
(entalhes, denticulados e raspadores), as lamelas produzidas tendo seguramente como
destino um uso enquanto barbelas brutas, à semelhança do que anteriormente (no capítulo
3 deste volume) se sugeriu já ser também o caso de boa parte do material lamelar em
sílex destas indústrias.
Economia
141
Sílex e quartzo
Economia das matérias-primas no Proto-Solutrense
Terra do Manuel
(1988-89, cam. 2s)
CPM III
(nív el médio)
2
1
19
2
9
1
31
27
8
6
21
Sílex
utensílios
funcionais
Quartzo
raspadeiras
buris
7
Sílex
fundo comum
Quartzo
armaduras
101
111
7
40
2
43
170
167
32
restos de
debitagem
Quartzo
Sílex
lâminas
5
8
71
lamelas
Sílex
Quartzo
resíduos de golpe de buril
16
9
4
1
22
13
7
3
Sílex
para lâminas
34
10
núcleos
prismáticos
Quartzo
Sílex
para lamelas
Quartzo
para lascas
30
13
13
2
3
6
6
19
Sílex
4
Quartzo
prismáticos
tipos de
núcleos
carenados
17
Sílex
2
Quartzo
buris com suporte de fase inic ial
Fig. 4.7 - Modalidades da exploração do sílex e do quartzo em dois contextos proto-solutrenses que foram objecto
de escavações modernas. Debitadas segundo técnicas idênticas a partir de núcleos do mesmo tipo, as duas
matérias-primas foram transformadas de forma diferenciada, o quartzo sendo quase exclusivamente destinado à
produção de barbelas brutas, com reaproveitamento para utensílios de gume lateral de algumas das lascas
produzidas no quadro dos processos de conformação e reavivamento dos núcleos.
142
Economia
As práticas de gestão dos recursos líticos existentes no Proto-Solutrense podem ser
definidas, portanto, como correspondendo não só a uma autêntica economia da debitagem (tal
como todos os restantes sistemas de produção lítica documentados no Paleolítico Superior
português — ver capítulo 3 deste volume), mas também a uma verdadeira economia da
matéria-prima (Perlès 1991): a produção de suportes laminares é quase exclusivamente feita
em sílex, e destina-se presumivelmente à obtenção de utensílios para uso como faca,
raspadeira ou ponta; o quartzo é essencialmente explorado para a obtenção de barbelas, com
aproveitamento secundário para raspadeiras ou utensílios do fundo comum das lascas obtidas
no quadro dos processos de conformação dos núcleos prismáticos.
No que diz respeito ao quartzo e ao quartzito, parece assim poder concluir-se que, embora
este último tenha de um modo geral sido utilizado como solução de recurso, em situações de
carência de sílex, já o primeiro, embora objecto de uma utilização do mesmo tipo na maior
parte das indústrias, desempenhou noutras, em particular no Proto-Solutrense (não podendo
excluir-se que o mesmo tenha também acontecido nos momentos ainda mal documentados,
ou mesmo de todo desconhecidos, da sequência cultural-estratigráfica), um papel de matéria-prima de primeira escolha para a fabricação de determinadas classes de artefactos.
Não deve daqui inferir-se, no entanto, que o uso diferenciado das principais matérias-primas exploradas tenha constituído um exclusivo do Proto-Solutrense. Ele é aqui mais
facilmente posto em evidência pelo facto de as rochas em questão — «sílex» em geral, e
quartzo — serem facilmente distinguíveis. É muito possível, porém, que algo de semelhante
se venha a verificar nas outras indústrias quando for possível desagregar aquela categoria
geral nas diversas variedades distintas que nela foram subsumidas. Uma situação que ilustra
bem o quão verosímil é essa eventualidade é, por exemplo, a da frequência com que, no
Solutrense médio e superior, se recorreu à calcedónia como matéria-prima de eleição para a
fabricação de pontas líticas.
4.2. Demografia e territórios
4.2.1. Territórios de abastecimento...
O facto de o abastecimento em sílex ser predominantemente local não significa que a
circulação das matérias-primas (seja sob a forma de nódulos seja sob a forma de produtos de
debitagem brutos ou de suportes retocados) não tenha envolvido distâncias consideráveis.
Uma vez que, no que respeita ao Paleolítico Superior, não parece haver quaisquer indícios da
existência de sistemas regulares de troca baseados numa divisão regional do trabalho, no
quadro da qual determinados grupos se teriam especializado na extracção e exportação de
certos recursos minerais, as áreas de circulação das matérias-primas líticas podem ser
interpretadas, portanto, como correspondendo, no essencial, às áreas no interior das quais se
traçariam os itinerários das deslocações efectuadas pelos diferentes grupos humanos. Ou seja,
como indicando de forma aproximada os limites e dimensões dos respectivos territórios.
Para que seja possível proceder à determinação de áreas deste tipo é obviamente
imprescindível que se disponha de uma cartografia detalhada dos recursos, bem como de
meios de diagnóstico que permitam reconhecer com segurança a proveniência geológica e
gitológica exacta das amostras arqueológicas, em particular no que respeita ao sílex, a rocha
mais abundantemente utilizada na época em análise. Em Portugal, porém, os estudos deste
tipo estão em fase muito embrionária, pelo que uma tal determinação segura da proveniência
das muitas variedades de sílex representadas nos conjuntos arqueológicos ainda não é
possível. Os poucos indícios que sobre este assunto pudemos recolher no contexto dos
estudos monográficos apresentados no vol. II são os que se apresentam de seguida.
Economia
143
O caso de interpretação aparentemente mais fácil é o que diz respeito à distribuição
geográfica de uma variedade de sílex creme com inclusões translúcidas que é bastante
comum em todos os sítios da costa de Torres Vedras (Cova da Moura, Vale Almoinha, Vale
da Mata, Cerrado Novo e Rossio do Cabo) e de que apenas conhecemos peças avulsas
noutras três jazidas: Gruta do Furadouro (uma ponta de Vale Comprido), Terra do José
Pereira (um núcleo) e Terra do Manuel (uma lamela de dorso truncada no espólio das
escavações de 1940-42), a primeira situada na Serra de Montejunto e as outras duas em Rio
Maior. Parece bastante provável que este facto signifique que se trata de uma matéria-prima
de distribuição natural confinada às jazidas geológicas de sílex da região de Torres Vedras, a
sua presença na Serra de Montejunto e em Rio Maior indicando que, durante o Gravettense
final e o Proto-Solutrense, toda esta área pertenceria ao território de um mesmo grupo.
Uma outra região que, com base no mesmo tipo de raciocínio, poderia estar também
incluída nesse território, é a das colinas a norte de Lisboa. Conforme se assinalou a propósito
do estudo monográfico dos materiais provenientes do respectivo «Nível III» (ver vol. II,
capítulo 25), o espólio da Gruta de Salemas continha, com efeito, uma lasca e uma lamela de
sílex verde oliva com inclusões translúcidas, matéria-prima que também está documentada
em Vale Almoinha por um esboço de folha de loureiro, e que constitui provavelmente
(Aubry, comunicação pessoal) uma variedade do sílex creme com o mesmo tipo de inclusões
cuja distribuição geográfica se discutiu no parágrafo anterior.
Inversamente, a ausência destas matérias-primas nos sítios do Gravettense final, do
Proto-Solutrense e do Solutrense médio existentes nas regiões mais a norte (bacias do
Almonda e do Nabão, Maciço Calcário Estremenho, Serra do Sicó) pode ser tomada como
indicando que estas regiões pertenceriam já a áreas de aprovisionamento diferentes. Do ponto
de vista da exploração dos recursos minerais, os dois sítios solutrenses da bacia do Almonda
(a zona AMD1 da Galeria da Cisterna, na rede cársica da nascente do rio, e o Casal do Cepo)
apresentam, aliás, uma característica comum, não encontrada em nenhum dos outros sítios
solutrenses conhecidos na região entre Tejo e Mondego: o uso de seixos achatados de xisto
para a fabricação de folhas de loureiro (como a ilustrada sob o nº 4 da Fig. 29.17 do vol. II).
Uma vez que o uso desta rocha não pode ser considerado como uma solução de recurso
ditada por dificuldades de abastecimento, trata-se, portanto, de uma escolha cultural (tradição
de grupo ou hábito individual). Sendo assim, e aceitando como legítima a hipótese de a bacia
do Almonda pertencer efectivamente a uma área de aprovisionamento diferenciada, torna-se
possível colocar igualmente a hipótese de essa diferenciação também poder estar revestida de
um significado étnico. Tenha-se ainda em conta, por outro lado, que nenhuma das folhas de
loureiro encontradas no Casal do Cepo, todas importadas, estava fabricada em sílex de
Cambelas. Ou seja, em Vale Almoinha (ver vol. II, capítulo 36) está documentada a produção
local de numerosas peças foliáceas em sílex creme com inclusões translúcidas que foram
integralmente exportadas do sítio (excepto no caso das partidas por acidente de talhe ocorrido
no decurso do processo de fabrico). Mas no Casal do Cepo, onde todas as peças foliáceas
foram importadas, nenhuma é dessa matéria-prima. Se este facto não permite, dadas as
reservas inerentes aos raciocínios pela negativa e à pequena dimensão da amostra de folhas
de loureiro do Casal do Cepo, considerar como provado que as duas regiões pertenceriam a
territórios distintos, ele é, pelo menos, compatível com essa caracterização.
Com os dados actualmente à nossa disposição não é possível, no entanto, estimar os
limites do mais setentrional desses dois territórios, embora, dada a sua relativa proximidade
geográfica com as jazidas de Torres Novas, se possa colocar a hipótese de as ocupações
solutrenses da Gruta do Caldeirão estarem também nele incluídas. Um dos aspectos mais
interessantes da cultura material representada nos estratos da jazida do Nabão datados do
máximo glaciário são as falanges de veado perfuradas, que parecem não poder ser
144
Economia
Fig. 4.8 - Territórios de abastecimento na Estremadura portuguesa do máximo glaciário. A proposta de
delimitação assinalada no mapa deve ser considerada mais como um modelo a testar pela investigação futura do
que como um padrão emergente da informação empírica disponível, ainda demasiado parca. As áreas designadas
como «do Maciço» e «de Cambelas» poderão corresponder a territórios étnicos, o que permitiria explicar o facto
de um tipo de adorno muito comum na Gruta do Caldeirão, as falanges de veado perfuradas, não ter sido
encontrado em nenhuma das outras jazidas solutrenses de gruta actualmente conhecidas nas áreas «do Mondego» e
«de Cambelas».
interpretadas senão como objectos de adorno (ver vol. II, capítulos 9 e 27). Noutras grutas
com ocupações solutrenses importantes, como por exemplo Salemas e a Buraca Grande, este
tipo de adornos não é conhecido. É possível, portanto, que estejamos, tal como no caso das
folhas de loureiro em xisto, perante um outro exemplo de artefactos interpretáveis como
marcadores étnicos, tanto mais que, no Caldeirão, eles se encontram ao longo de toda a
sequência solutrense (camadas I-Fa). A ser assim, a ausência de falanges de veado perfuradas
na Buraca Grande, que não pode ser explicada em termos funcionais, uma vez que nos
estratos solutrenses desta jazida havia outros tipos de adornos, nomeadamente pendentes em
canino de veado (Aubry e Moura, comunicação pessoal), pode indicar que a região do Sicó
pertenceria já a um território étnico diferente daquele em que se incluía o vale do Nabão.
Apesar de diferentes no que respeita à presença de falanges de veado, as três grutas
(Salemas, Caldeirão e Buraca Grande) têm em comum o facto de em todas elas estar bem
representado um outro tipo de adornos, as conchas perfuradas de Littorina obtusata.
Aceitando que cada uma delas pertenceria a um de três territórios distintos (tanto do ponto de
vista do aprovisionamento como do ponto de vista étnico), este facto implica que todos eles
se estendessem até às regiões costeiras em que as conchas podiam ser recolhidas. As
fronteiras entre esses territórios poderiam ter tido um traçado NW-SE, paralelo ao da
orientação geral da rede hidrográfica, e a cada um deles corresponderia, aceitando este
modelo de delimitação, uma área de cerca de 4000 km² (Fig. 4.8).
Economia
145
Áreas de aprovisionamento de dimensão semelhante podem ser igualmente reconstituídas
para o Solutrense de outras regiões do Sudoeste da Europa. Na região cantábrica, por
exemplo, Straus (1977) assinala que 104 das 107 pontas de base côncava conhecidas (isto é,
97% do total) provêm de jazidas situadas na parte ocidental da província de Santander e na
parte oriental da província de Oviedo, isto é, provêm de uma região com 165×25 km, ou seja,
com uma área de cerca de 4000 km². Conforme assinalado por Rasilla (1989), a quase
totalidade destas peças é fabricada em quartzito, a sua distribuição geográfica podendo ser
interpretada, portanto, como reflectindo uma adaptação local à matéria-prima disponível, uma
vez que o sílex é nesta zona raro e, de um modo geral, de má qualidade. Deste modo, a folha
de loureiro de base côncava seria a solução tecnomorfológica encontrada para a fabricação de
um tipo funcional de ponta (de lança?) que, noutros contextos, seria fabricado em sílex, mas
que, nesta região, devido aos condicionalismos do aprovisionamento em matérias-primas
líticas, tinha de ser fabricado em quartzito. A ser assim, os limites da distribuição geográfica
do tipo em questão podem efectivamente ser tomados como correspondendo aos das áreas de
aprovisionamento em matérias-primas líticas dos grupos humanos que durante o máximo
glaciário habitaram a região situada entre a baía de Santander e a foz do rio Sella.
No Sudoeste de França, os estudos de proveniência dos recursos minerais estão já
bastante desenvolvidos, tendo os dados existentes para o Solutrense sido recentemente
sumariados por Aubry (1991:258-264). Da leitura da Fig. 75 deste trabalho (na qual se baseia
a nossa Fig. 4.9), parece resultar a possibilidade de discriminar três áreas de abastecimento
distintas, no interior das quais se daria a quase totalidade das deslocações de matérias-primas
documentadas pelos conjuntos líticos provenientes dos sítios nelas incluídos: a primeira área
Solutrense francês
Territórios de abastecimento em sílex
ire
Lo
Ch
er
Ind
re
Creu
se
Ch
ar
en
te
Vien
ne
nne
Dro
Isle
e
nn
ro
Ga
Dordogne
re
zè
Vé
ze
rrè
Co
Lot
P ontas crenadas de grande tamanho
A brigos com frisos esculpidos
0
km
100
Fig. 4.9 - Territórios de abastecimento no Solutrense francês (segundo Aubry 1991:Fig. 75). O facto de, na região
das Charentes, a cultura material se diferenciar claramente da das regiões adjacentes sugere a possibilidade de estas
áreas de abastecimento corresponderem a territórios étnicos. A dimensão dos dois territórios meridionais é da
mesma ordem de grandeza da que, na Estremadura portuguesa, corresponderia às áreas «de Cambelas» e «do
Maciço».
146
Economia
corresponderia aos vales do Dordogne, do Vézère, do Corrèze e do Lot; na segunda, incluir-se-iam as bacias do Charente, do Isle e do Dronne; a terceira, correspondendo às terras da
margem esquerda do Loire, estaria centrada na bacia do Creuse e com ela se relacionariam
também alguns poucos sítios localizados nos vales do Vienne e do Cher. Com um raio de
aproximadamente 35-40 km, as duas primeiras áreas teriam, assim, uma superfície de 4000-5000 km², ou seja, seriam da ordem de grandeza das que, com dados muito mais precários,
se estimaram para os casos da Estremadura e da faixa cantábrica. A terceira, porém, teria uma
área consideravelmente superior, de cerca de 9500-10 000 km².
No caso francês, parece haver também uma certa correspondência entre os limites dessas
áreas de abastecimento e os dos grupos regionais identificados por Smith (1966:269, 389-390) com base em argumentos de natureza tipológica. Segundo este autor, a cultura material
das jazidas situadas na bacia do Charente diferencia-se claramente da representada nas da
bacia do Vézère pela importância da indústria óssea e pela fabricação de pontas crenadas de
grande tamanho, sendo igualmente nela que se localizam os dois únicos casos conhecidos de
esculturas parietais solutrenses (Roc de Sers e Fourneau du Diable). Nas passagens citadas,
Smith afirma ainda que os sítios do Corrèze e do Lot apresentam características que
permitem diferenciá-los, sob o ponto de vista da cultura material, dos do Dordogne e do
Vézère, em contradição aparente com o facto de, segundo os dados acima apresentados,
pertencerem à mesma área de aprovisionamento. Noutros pontos do seu trabalho (p. 190),
admite, no entanto, que o carácter esparso dos vestígios e a reduzida importância das
ocupações tornam perfeitamente legítima (em particular no caso do vale do Corrèze) a
hipótese de esses sítios estarem relacionados com deslocações sazonais de grupos que,
durante a maior parte do ano, estariam estabelecidos mais a jusante (ou seja, nos vales do
Dordogne ou do Vézère).
4.2.2. ...e seu significado paletnológico
O significado exacto, em termos étnicos, destas áreas de aprovisionamento, é, no entanto,
muito difícil de estabelecer. Os dados apresentados por Binford (1983:110-117) para os
esquimós Nunamiut do norte do Alasca indicam que a área residencial utilizada por um grupo
de oito famílias ao longo de um período de cinco anos tinha uma dimensão da ordem dos
3500 km², implicando uma densidade populacional da ordem dos 0,01 hab./km². No entanto,
o território de cada bando era, na realidade, consideravelmente maior, estando dividido em
diversas áreas exploradas de forma sequencial, de modo a permitir a recuperação dos
recursos esgotados durante a estada anterior. Nas regiões árcticas, esse tempo de recuperação
é particularmente longo, especialmente no caso dos salgueiros cuja madeira é usada como
combustível, de tal modo que uma determinada área de residência costuma ser deixada «em
pousio» por períodos de duração não inferior a 25 anos. Em consequência, cada bando teria
de ter permanentemente à sua disposição territórios com dimensões da ordem dos 20 000 a
25 000 km², as densidades populacionais, portanto, sendo ainda mais baixas (cerca de 0,002
hab./km²). Campbell (1988:149-156), porém, indica que, no norte do Alasca, numa região
com cerca de 320 000 km², os efectivos das populações aborígenes (Taremiut e Nunamiut)
puderam ser estimados em cerca de 4000 indivíduos; ou seja, que essa região teria conhecido
uma densidade populacional da ordem dos 0,01 hab./km², semelhante à que resultaria da
utilização simultânea, sem «pousio», das diversas áreas residenciais com dimensões de cerca
de 3500 km² que, no modelo de Binford, apenas podiam ser objecto de um uso sequencial,
intervalado.
Na Terra do Fogo, cujas características ambientais constituem provavelmente a melhor
analogia moderna para a situação vigente na costa ocidental da Península Ibérica durante o
máximo glaciário, os dados etnográficos indicam que, nos 38 000 km² habitáveis da Isla
Grande, viveriam, à data do início da colonização de origem europeia, cerca de 3500 a 4000
Economia
147
pessoas pertencentes às etnias de caçadores Selk'nam (Ona) e Haush (Chapman 1986:35).
Bate (comunicação pessoal), no entanto, considera estes números bastante exagerados. Uma
estimativa baseada no número de territórios (haruwen), que é, para as duas etnias
mencionadas, de 80, e no facto de cada um ser ocupado por uma linhagem diferente
(Chapman 1986:39, 86-92), unidade social que podemos presumir ter a dimensão do bando
(Service 1966), levaria a uma redução daqueles números para metade. Mesmo assim, a
densidade populacional obtida (cerca de 0,05 hab./km²) seria 5 (segundo os números de
Campbell) a 25 vezes (segundo os números de Binford) superior à registada entre os povos
caçadores do Alasca.
Alguns autores têm procurado estimar as densidades populacionais do Paleolítico
Superior europeu com base na determinação da capacidade de carga (carrying capacity) do
meio. Para o caso da parte oriental das Astúrias, Straus (1986), por exemplo, calculou que a
obtenção do alimento e das matérias-primas animais necessárias à subsistência de um bando
humano exigiria que este último abatesse todos os anos cerca de uma centena de veados. A
uma taxa anual de abate da ordem dos 10% dos efectivos das manadas (ou seja, que não
ultrapassasse os limites a partir dos quais a sobrevivência da espécie ficaria em perigo), teria
assim de haver, no mínimo, cerca de um milhar de veados por cada bando, ou seja, a uma
média de 16 ha por veado, a dimensão do território mínimo exigido pela subsistência de cada
bando seria da ordem dos 160 km². Um tal nível de densidade dos recursos cinegéticos
permitiria, portanto, densidades populacionais humanas da ordem dos 0,15 hab./km². Uma
vez que os terrenos montanhosos do interior apenas seriam explorados de forma sazonal ou
logística, nomeadamente para a caça dos ungulados de alta montanha — a cabra-montês e a
camurça — esses valores, porém, só deviam ser atingidos nas regiões mais favoráveis ao
veado, ou seja, na estreita faixa costeira a norte da Sierra de Cuera, cuja extensão, no máximo
glaciário, seria de cerca de 15 km. Deste modo, tomando a região na sua globalidade, as
densidades populacionais máximas seriam bastante inferiores, e aproximar-se-iam mais dos
0,05 hab./km² acima referidos para o caso da Terra do Fogo. O número de habitantes de um
território de cerca de 4000 km² como o que corresponde à área de distribuição das pontas de
base côncava seria, portanto, da ordem das duas centenas de pessoas.
As simulações em computador realizadas por Wobst (1974) indicam precisamente que
esse é o valor mínimo abaixo do qual deixa de ser viável o funcionamento de redes de
acasalamento fechadas, tornando possível a formulação da hipótese segundo a qual a área de
aprovisionamento correspondente à parte oriental das Astúrias e à parte ocidental da
província de Santander poderá igualmente ter tido um significado étnico. Essas duas centenas
de pessoas corresponderiam, aliás, à dimensão (estimada com base nos critérios acima
referidos) dos efectivos populacionais da etnia Haush da Terra do Fogo, à qual pertenciam os
onze territórios existentes no extremo SE da Isla Grande (Chapman 1986:39). Os cálculos de
Straus fornecem, por outro lado, resultados da mesma ordem de grandeza dos obtidos por
Bailey et al. (1986) para a região grega do Epiro, cujas características paleogeográficas
(estreita faixa de planície costeira entalada entre o mar e altas montanhas englaciadas) e
recursos faunísticos (veado, cabra, auroque, cavalo) eram, no máximo glaciário, muito
parecidos com os da região cantábrica. O estudo preliminar do território de captação de
recursos (site catchment) dos sítios do Paleolítico Superior escavados por Bailey et al. indica,
com efeito, que a área de 204 km² situada em torno da jazida de Asprochaliko, por exemplo,
teria permitido alimentar uma população não superior a seis a sete pessoas no Inverno (13 a
14 no Verão), ou seja, apenas teria permitido uma densidade populacional da ordem de
grandeza dos 0,05 hab./km².
Os cálculos acima referidos dizem respeito a valores máximos, como os que é legítimo
supor terem sido atingidos no extremo sul do continente americano ao fim de dez milénios de
ocupação. Está por demonstrar, porém, que uma situação desse tipo já tivesse sido atingida
148
Economia
no continente europeu há cerca de 20 000 anos. No entanto, pelo menos no caso das regiões
da Península Ibérica a sul do Ebro, esses dez milénios correspondem igualmente ao espaço de
tempo que, ao atingir-se o máximo da última glaciação, havia decorrido desde a substituição
de populações causada pela chegada do Homem de Crô-Magnon (espaço de tempo que, no
caso das restantes regiões do Sudoeste da Europa, seria ainda superior em mais outros cinco a
dez milénios). Tendo em conta a semelhança nas economias de caça, baseadas na exploração
de ungulados de médio porte (o veado na Península Ibérica, o guanaco na Terra do Fogo) e de
roedores (coelho e lebre na Península Ibérica, tucutuco e cururo na Terra do Fogo), e a
duração idêntica das duas trajectórias históricas, o uso das densidades populacionais dos
Selk'nam e dos Haush como valores de referência válidos para as regiões do Paleolítico
Superior situadas a sul do Ebro parece portanto legitimado, tanto mais que eles encontram
confirmação suplementar no facto de os cálculos baseados na capacidade de carga do meio
apontarem para valores idênticos. É também essa, aliás, a ordem de grandeza dos números
avançados por diversos autores, como por exemplo Cohen (1977), para a densidade
populacional da Terra no final do Paleolítico.
A aceitação do modelo fueguino resulta igualmente de um simples raciocínio por
exclusão de partes, isto é, por eliminação das alternativas concebíveis. Suponhamos que as
áreas de aprovisionamento em matérias-primas líticas com uma superfície da ordem dos
4000 km² identificadas em diversas regiões da Europa ocidental corresponderiam antes a
cada uma das áreas de residência utilizadas ciclicamente pelos bandos Nunamiut (Binford
1983), isto é, que, no Paleolítico Superior, os territórios de cada bando abrangessem, na
realidade, áreas da ordem dos 20 000 a 25 000 km². A zona de concentração das pontas de
base côncava em quartzito identificada na parte ocidental da faixa cantábrica poderia assim,
por exemplo, ser interpretada como correspondendo a uma área nuclear de residência
utilizada por um bando de caçadores durante um período de, por exemplo, cinco anos, findo o
qual o grupo se deslocaria para áreas adjacentes do seu território, mais ricas em sílex. A
partir do momento em que aí se instalava passava a usar esta matéria-prima, e a fabricar
sobretudo folhas de loureiro de base apontada e pontas crenadas. As raras pontas de base
côncava encontradas no País Basco e nos Pirenéus poderiam ser interpretadas, neste quadro,
como utensílios ainda fabricados numa área de residência anterior situada a ocidente, depois
transportados durante a subsequente deslocação para a nova área nuclear de residência, e só
nesta última usadas e finalmente abandonadas. A ser assim, porém, toda a faixa cantábrica,
da foz do Nalón à foz do Bidasoa, não teria sido suficiente para conter de forma permanente
nem sequer um único bando de caçadores, o que parece de todo improvável, tendo em conta a
riqueza e variabilidade do registo arqueológico da região.
Por outro lado, os condicionamentos ambientais que, em última análise, determinam as
baixas densidades do povoamento humano no norte do Alasca, não existiam no Sudoeste da
Europa, nem mesmo durante o máximo glaciário. As análises antracológicas indicam que as
árvores (carvalhos, pinheiros, vidoeiros) nunca deixaram de estar presentes na paisagem,
como o demonstram os estudos feitos em Portugal (Figueiral 1993) e na França mediterrânica
(Bazile-Robert 1981). Os biomas respectivos não podem, por isso, ser assimilados ao deserto
polar em que vivem os Nunamiut, onde os salgueiros anões que crescem ao longo das linhas
de água constituem uma fonte de combustível lenhoso única e de reconstituição demorada. A
principal espécie animal caçada, pelo menos no caso da Península Ibérica, também não era a
rena, mas sim o veado, ou seja, uma espécie territorial que não realiza migrações anuais de
centenas ou milhares de km. As alternativas parecem poder reduzir-se, assim, a duas: as áreas
de aprovisionamento com dimensões da ordem dos 3500 a 4000 km² corresponderiam a
territórios de bandos individuais, ou de agrupamentos de bandos reunidos em redes de
acasalamento separadas, com consciência da sua identidade (etnias)? Ou, dito de outra forma,
conteriam populações da ordem dos 25 a 40 indivíduos, ou da ordem dos 250 a 400, isto é,
suportariam densidades populacionais da ordem dos 0,01 ou dos 0,05 hab./km²?
Economia
149
No estado actual dos nossos conhecimentos, não é possível dar uma resposta concludente
a esta questão. No entanto, pelo menos a partir do Gravettense final, está bem documentada a
existência no Sudoeste da Europa, ao nível da cultura material, de particularismos regionais
bastante marcados. Como já anteriormente se referiu, é o caso, por exemplo:
•
do carácter restrito à Estremadura portuguesa da distribuição das indústrias de tipo
fontesantanse;
•
do carácter restrito às Astúrias orientais e à metade ocidental da província de Santander
da distribuição das pontas de base côncava;
•
da prática de esculpir frisos nos abrigos habitados, e de fabricar pontas crenadas de
grande tamanho, que parece característica dos grupos do Solutrense superior das bacias
do Charente, do Isle e do Dronne, em França.
A produção e reprodução deste tipo de particularismos ao longo de vários séculos não
parece viável no quadro de bandos agrupando apenas quatro ou cinco famílias, e obriga,
portanto, a considerar que os territórios em questão deviam corresponder ao habitat de
unidades sociais de mais elevado grau de complexidade, em cujo interior se realizaria a
transmissão das tradições responsáveis por esses particularismos. Ao mesmo tempo, porém, o
facto de estes últimos se expressarem no quadro de tecnocomplexos com uma distribuição
geográfica quase continental indica que as fronteiras deviam ser fluidas, e que a troca de
informações (e de pessoas) entre os diferentes agrupamentos étnicos se faria de forma
generalizada e fácil, implicando uma difusão rápida (instantânea, à escala temporal permitida
pelos métodos cronométricos actualmente existentes) de ideias e de objectos.
Parece claro, portanto, que valores próximos do acima referido limite superior (0,05
hab./km²) são os que melhor se ajustarão à realidade, pelo menos no que respeita às regiões
meridionais. É muito possível, porém, que nas regiões de clima periglaciar do norte da
Europa, onde a subsistência se baseava na rena, as densidades populacionais variassem, pelo
contrário, em torno do limite inferior (0,01 hab./km²), ou que fossem até bastante mais
baixas, talvez mesmo próximas dos valores indicados por Binford (isto é, que, nessas zonas,
os territórios de cada bando tivessem dimensões da ordem dos 20 000 a 25 000 km²). O facto
de as áreas de aprovisionamento em sílex da bacia do Loire serem duas vezes maiores do que
as das bacias do Charente e do Vézère (Fig. 4.9) pode, aliás, ser tomado como exemplo
concreto dessa rarefacção do povoamento nas regiões que, durante o máximo glaciário,
constituíam a fronteira norte do habitat humano.
Desta revisão sumária dos dados arqueológicos e etnográficos resulta, assim, um reforço
da hipótese anteriormente formulada segundo a qual, durante o Solutrense, a Estremadura
portuguesa teria sido habitada por uma unidade reprodutiva que, embora em contacto
permanente com as suas semelhantes das outras regiões habitadas da Península Ibérica, devia
corresponder a «uma entidade histórica estável e autoconsciente» (Zilhão 1987a:56). Por
outro lado, como já se referiu, parece possível discriminar no interior da região três
subdivisões territoriais mais pequenas que poderíamos designar, de norte para sul, como a
«área do Mondego», a «área do Maciço» e a «área de Cambelas» (Fig. 4.8). Os dados são
demasiado precários para que possamos considerar a respectiva individualização como
definitivamente provada, e os respectivos limites como insusceptíveis de modificação futura.
Por maioria de razão, seria temerário arriscar uma caracterização social destes grupos,
embora talvez não seja inútil indicar as alternativas que a este respeito parecem, de momento,
mais fundamentadas: a de cada um deles corresponder a uma etnia diferenciada ou, mais
simplesmente, a bandos ou agrupamentos de bandos partilhando áreas de aprovisionamento e
algumas tradições, mas situados todos eles no interior de uma mesma fronteira étnica.
150
Economia
A mesma insuficiência dos dados também não permite a elaboração de modelos
respeitantes às relações existentes entre estes grupos e os territórios adjacentes, a norte do
Mondego e a sul do Tejo. À partida, pelo menos duas hipóteses parecem admissíveis: a de
que se tratasse de regiões com um povoamento de densidade e intensidade semelhantes às
documentadas na Estremadura, a raridade dos vestígios existentes para lá das fronteiras desta
última sendo consequência de factores ligados à conservação diferencial das jazidas, ou à
prospecção preferencial dos terrenos calcários situados entre Tejo e Mondego; ou a de que se
tratasse de áreas marginais, apenas objecto de expedições logísticas levadas a cabo por
destacamentos de caçadores oriundos desta última região. No caso dos sítios de arte parietal
de ar livre da bacia do Douro — Mazouco (Jorge et al. 1981) e vale do Côa (Bahn 1995;
Baptista e Gomes 1995; Rebanda 1995; Zilhão 1995a, 1995b, 1995c; Zilhão et al. 1995a) —
a hipótese de uma dependência funcional em relação ao povoamento da Estremadura parece
claramente inverosímil. Tudo indica, neste caso, que se tratará de vestígios de uma ocupação
do Alto Douro português com relações na Meseta norte, cujo povoamento humano está hoje
em dia bem provado (pelo menos para o Magdalenense) na vizinha província de Salamanca, e
tanto por sítios de habitat (La Dehesa — Fabian 1986) como por sítios artísticos (Siega Verde
— Balbín et al. 1991).
Quanto ao Alentejo, as características dos dois sítios arqueológicos conhecidos (a Gruta
do Escoural e a estação de ar livre do Monte da Fainha — ver vol. II, capítulos 8 e 39),
também não permitem optar decididamente por qualquer das alternativas esboçadas no
parágrafo anterior. Com efeito, a ocupação do primeiro (em pelo menos duas épocas
diferentes — Aurignacense e Solutrense) é sempre esparsa e representada por quantidades
muito reduzidas de artefactos; e o facto de apresentar numerosas pinturas e gravuras parietais
não é, por si só, suficiente para comprovar que a área circundante constituísse um território
habitado em permanência. Na região cantábrica, por exemplo, são conhecidos diversos casos
de grutas decoradas situadas em terreno montanhoso, apenas visitadas esporadicamente e no
contexto de actividades especializadas (Chufín, por exemplo). Por outro lado, é certo que a
grande maioria das peças foliáceas do esconderijo da Fainha estava, segundo os relatos dos
achadores, fabricada em matérias-primas locais (jaspe e xisto jaspóide), não havendo material
indubitavelmente feito em sílex da Estremadura que permitisse documentar a inclusão da
zona de Évoramonte no interior de circuitos de exploração logística de grupos com essa
proveniência. Conforme se argumentou no quadro do estudo monográfico do sítio, o facto de
a reserva de material nele constituída ter sido fabricada com matérias-primas locais não
significa, porém, que não se destinasse a servir de apoio a indivíduos ou grupos de caçadores
em viagem pela zona mas baseados noutras regiões, hipótese que permitiria explicar, por
exemplo, a presença em sítios da Estremadura (como Vale Almoinha) de folhas de loureiro
em jaspe sem que, no entanto, essa matéria-prima esteja representada entre os resíduos de
talhe neles recolhidos.
4.3. Sistemas de povoamento e subsistência
As caracterizações avançadas no apartado anterior reportam-se às sociedades humanas do
máximo glaciário, isto é, às do Gravettense final, do Proto-Solutrense e do Solutrense. A
carência dos dados não permite avaliar, de momento, até que ponto as estimativas quanto aos
valores da densidade populacional e às dimensões dos territórios que então existiriam se
podem também aplicar ao Aurignacense, ao Gravettense antigo e ao Magdalenense. No que
respeita a esta última época, a ocorrência das modificações ambientais referidas no capítulo 2
deste volume, e que se terão traduzido na reflorestação precoce dos planaltos e montanhas
calcárias da Estremadura, poderá, sem dúvida, ter tido um impacto importante nos sistemas
de povoamento e subsistência. O significado e direcção das transformações sofridas por estes
Economia
151
últimos, porém, são algo que, por enquanto, só estamos em condições de averiguar de forma
muito indirecta. A argumentação que seguidamente se apresentará deve ser considerada,
portanto, como respeitando apenas a um período do Paleolítico Superior que, embora
relativamente curto, é aquele a que pertence a grande maioria das jazidas conhecidas: o
período entre cerca de 23 000 e cerca de 18 000 BP.
4.3.1. Formulação de um modelo
Na Estremadura, a disposição dos relevos, orientados segundo um eixo NE-SW, implica que
os cursos de água da região possam ser divididos em dois grandes grupos: o dos afluentes e
subafluentes do Tejo, que drenam as regiões interiores; e o dos rios e ribeiros que correm
directamente para o mar ou, a norte, para o Mondego, e que drenam as terras da faixa litoral
situada entre a linha de costa e essa crista de relevos axial. Foi com base nestas
características fisiográficas da região que, anteriormente (Zilhão 1987a:Fig. 15), se propôs
um modelo de utilização do espaço segundo o qual os diferentes territórios de subsistência
estariam estruturados ao longo dos vales fluviais, de modo a terem acesso, de montante para
jusante, aos recursos propiciados pelos ecosistemas de altitude, pelos ecosistemas das terras
baixas, e pelos ecosistemas ribeirinhos (fluviais, no caso dos territórios da bacia do Tejo, mas
também estuarinos e marinhos no caso dos da orla litoral). Seguindo nas suas linhas gerais o
modelo proposto por Straus (1986) para a região cantábrica, esses territórios eram concebidos
como centrados nas terras baixas que, como vimos no capítulo 2, estariam cobertas, durante o
máximo glaciário, por landes e charnecas apresentando manchas de pinhal bravo esparso nos
interflúvios arenosos e fornecendo pastagem abundante para os grandes herbívoros (cavalo,
auroque, veado). Os planaltos, montanhas e colinas calcárias, cobertos de estepes e prados
alpinos, mas abrigando igualmente manchas de pinhal silvestre, embora também habitados
pelos veados, seriam sobretudo território dos caprídeos (cabra-montês e camurça), e teriam
sido objecto de uma exploração logística levada a cabo por destacamentos especializados que
transportariam de volta para os acampamentos-base o produto das caçadas. No entanto, a
partir da Primavera, quando o solo deixasse de estar coberto de neve, podiam ter funcionado
também como habitat sazonal, para onde os grupos humanos (ou parte deles) se deslocariam,
talvez seguindo as deslocações de curta distância dos veados.
Cada um desses vales poderia ser assimilado, assim, a uma «área nuclear de residência»
(Binford 1983:110-117), ocupada de forma prolongada, plurianual, por um bando de
caçadores englobando diversas famílias (oito, no caso do exemplo fornecido pelo autor
citado). Tomando a bacia do Almonda como exemplo típico do que seria cada uma dessas
áreas (Fig. 4.10), estaríamos perante um território de subsistência com uma dimensão da
ordem dos 300 km² (ou 450, integrando nele também a Serra d'Aire e parte do planalto de São
Mamede), quase duas (ou três) vezes maior do que a que seria suficiente, segundo os cálculos
de Straus (1986), para alimentar de forma sustentada um bando cuja economia se baseasse na
caça ao veado. Esses 450 km² corresponderiam, aliás, à área média dos haruwen existentes na
Terra do Fogo (obtida dividindo pelo respectivo total de 82 os 38 000 km² de área habitável
da Isla Grande — Chapman 1986).
Deste modo, na hipótese de uma ocupação humana de densidade próxima dos valores
máximos anteriormente discutidos, poderia supor-se que cada um dos mais importantes vales
fluviais existentes na «área do Maciço» (os do Nabão, do Almonda, do Alviela, do Alcobaça
e do Lis) corresponderia ao território de um bando, a referida área sendo habitada, assim, por
pelo menos cinco bandos, que poderiam ter constituído um agrupamento étnico separado. Na
hipótese de uma ocupação de densidade mais baixa, poderia admitir-se, em alternativa, por
exemplo, que toda esta região seria habitada por apenas dois bandos: um deles utilizaria os
terrenos da bacia do Tejo, explorando sequencialmente, enquanto as outras eram deixadas
«em pousio», as várias áreas nucleares de residência aí potencialmente discrimináveis (vales
152
Economia
do Nabão, do Almonda e do Alviela); o outro seguiria uma estratégia semelhante, mas
estruturada a partir da exploração dos terrenos situados entre a linha de costa e os relevos do
Maciço Calcário Estremenho. Nesta hipótese, seria necessário, em consequência, reunir a
totalidade dos grupos situados entre Tejo e Mondego para conseguir formar uma unidade
reprodutiva com dimensão suficiente para poder funcionar como etnia diferenciada.
No que com a subsistência se relaciona, porém, as diferenças entre as duas hipóteses
dizem mais respeito à intensidade da exploração do território disponível do que às
modalidades dessa mesma exploração. Em ambas as situações é possível supor, por exemplo,
que as terras baixas que circundam o Maciço teriam funcionado como área de residência
durante o Inverno, e que a exploração económica das terras altas dos Planaltos de Santo
António e de São Mamede tenha sido sempre logística (durante todo o ano), ou sazonal.
Neste último caso, parece lógico admitir uma utilização sobretudo estival, podendo ainda
aventar-se a possibilidade de, na estação quente, o bando se desagregar em grupos mais
pequenos (unifamiliares, por exemplo). Por outro lado, a posição central ocupada pelo
Maciço Calcário Estremenho tornaria ainda obrigatório que este funcionasse como rota de
passagem de indivíduos ou grupos deslocando-se do Tejo para a costa, ou vice-versa, e
propiciaria a sua utilização como palco de reunião ou agregação temporária de bandos
diferentes para a realização de cerimónias, acordos ou celebrações (Conkey 1980).
Tomando uma vez mais a bacia do Almonda como caso típico, um tal sistema de
utilização do espaço implicaria a formação de diferentes tipos de sítios, a que deveriam
corresponder conteúdos arqueológicos também eles diversos e que fosse possível relacionar
com a variabilidade funcional das ocupações (Fig. 4.10). Nas terras baixas entre o Arrife da
Serra d'Aire e o Tejo, por exemplo, deveria haver sítios residenciais relativamente grandes,
como poderá ser, por exemplo, o da Fonte Santa (ver vol. II, capítulo 11), onde foi possível
identificar três zonas contíguas, mas separadas, de concentração de materiais, com áreas de
aproximadamente 50 m² cada uma, as quais poderão corresponder aos vestígios deixados por
diferentes unidades familiares acampadas em conjunto. No Arrife e na Serra, por outro lado,
deveria haver, nomeadamente em gruta, sítios de natureza diferente: de apoio a expedições
logísticas realizadas a partir desses acampamentos-base (esconderijos ou reservas de
equipamento, bivaques, posições de caça, acampamentos episódicos); ou de ocupação
unifamiliar sazonal. E, de facto, tanto as ocupações documentadas na Galeria da Cisterna da
rede cársica da nascente do Almonda (ver vol. II, capítulo 28), por um lado, como as mais
recentemente descobertas na Lapa do Picareiro (ver vol. II, capítulo 49), por outro,
apresentam características que se ajustam razoavelmente a uma ou outras destas definições,
entendidas no sentido que lhes é dado por Binford (1983).
4.3.2. Exploração dos recursos animais
O teste sério de um modelo deste tipo, porém, não é ainda possível, dado o estado
embrionário em que actualmente se encontram os estudos que seriam imprescindíveis para o
efeito, em particular os respeitantes à anatomia económica e à sazonalidade dos conjuntos
faunísticos. Apesar disso, é possível extrair dos dados existentes algumas indicações de
interesse. O Quadro 4.1 apresenta os poucos elementos actualmente à nossa disposição que
estão relacionados com a economia de caça das populações do máximo glaciário e que,
conforme se pode constatar pela respectiva consulta, se resumem a listas das espécies que
estão representadas nas diferentes jazidas (excluindo os carnívoros). Cardoso (1992:484)
fornece referências quantitativas, mas o estudo realizado por este autor foi orientado
sobretudo por preocupações de natureza paleontológica, pelo que os totais (e, portanto, as
percentagens) por ele obtidas se referem apenas a uma parcela dos espólios faunísticos
utilizados: a constituída pelas peças identificáveis e mensuráveis. Aceitando que a imagem
produzida por essas referências não deformará demasiado a realidade das colecções, pode
Economia
153
Fig. 4.10 - Território do «bando do Almonda». Admitindo que a «área do Maciço» corresponderá ao território de
uma etnia, e tendo em conta os efectivos mínimos necessários ao funcionamento de uma unidade reprodutiva de
fronteiras externas bem definidas, obter-se-iam níveis de densidade populacional tais que a cada um dos bandos
que integrariam essa entidade étnica corresponderiam territórios de subsistência com áreas entre 400 e 500 km².
Essas áreas seriam da mesma ordem de grandeza que as dos caçadores-recolectores da Terra do Fogo e que as
estimadas com base nos cálculos de Straus (1986) para a capacidade de carga das paisagens abertas do
Pleniglaciário da região cantábrica. Deste modo, os sítios actualmente conhecidos na bacia do Almonda podem
servir de base à construção de um modelo sobre a forma como esses territórios de subsistência terão sido utilizados
de modo a tirar partido da configuração geomorfológica da Estremadura. O local de residência circularia pelas
terras baixas da margem esquerda do Tejo e da orla litoral, sendo a exploração das terras altas das serras e dos
planaltos feita a partir de expedições logísticas ou no quadro do estabelecimento, na estação boa, de habitats
sazonais (porventura unifamiliares).
concluir-se que, nas jazidas arqueológicas (Salemas), o veado é a espécie mais abundante, o
mesmo acontecendo também nas Fontainhas. Em Cascais, porém, as espécies mais numerosas
são o cavalo e o auroque. Este último, por outro lado, está ausente do espólio recolhido nas
camadas Fa-I da Gruta do Caldeirão. O javali, apesar de quase sempre representado, aparece
em percentagens muito pequenas, inferiores a 1% (excepto em Salemas, onde corresponde a
quase 5% dos restos estudados). O coelho, cujos restos não foram considerados por Cardoso,
é, pelo contrário, sempre bastante abundante, pelo menos a avaliar pelos dados da sequência
do Caldeirão onde, porém, não chegava nunca a atingir a importância que viria a ter nos
estratos magdalenenses sobrejacentes.
Dada a sua escassez, a interpretação destes dados é difícil. O seu valor reside sobretudo
no facto de permitirem avançar algumas hipóteses que, naturalmente, terão de ser entendidas
como sujeitas a confirmação futura. Assim, em primeiro lugar, a composição do espólio do
Algar de Cascais sugere que o cavalo e o auroque seriam mais abundantes na paisagem do
que o veado, e que a concentração da caça nesta espécie é, portanto, o resultado de uma
escolha económica e não um simples reflexo do facto de ser o herbívoro mais numeroso na
região. Por outro lado, o auroque estava ausente do espólio recolhido nas Fontainhas,
ausência que, dada a dimensão razoável desse espólio (542 restos identificados), pode ser
considerada como indicando que a espécie não frequentaria as terras altas do Maciço
Calcário (a jazida fica situada na Serra de Montejunto, a cerca de 400 m de altitude). Os
154
Economia
poucos exemplares recolhidos em Salemas (dois restos, 1,4% do total analisado por
Cardoso), portanto, devem provir de caçadas efectuadas no fundo dos vales dos rios de Lousa
ou de Loures (partindo do princípio de que o conjunto faunístico escavado na jazida foi
acumulado pelo homem e não pelos carnívoros, embora as características da ocupação
humana obriguem a colocar igualmente a hipótese inversa). Neste quadro, a ausência do
auroque no Caldeirão torna-se perfeitamente compreensível, tendo em conta as características
da paisagem envolvente, e sugere que, no decurso da sua estada na cavidade, o raio de acção
dos grupos humanos aí estabelecidos não atingiria os habitats preferidos desta espécie, que
podemos presumir estarem situados na ampla planície aluvial do Nabão, a jusante de Tomar
(que, em linha recta, não estariam a mais de 5 km de distância). Dito de outra forma, essa
ausência pode ser tomada como sintoma de que a ocupação da cavidade se faria no contexto
de actividades relacionadas com a exploração dos ecosistemas do Maciço Calcário. Não
tendo ainda sido completado o respectivo estudo arqueozoológico, não é possível avaliar a
sazonalidade dessa ocupação. O facto de, no Neolítico antigo, os indicadores disponíveis,
relacionados com a caça do javali, apontarem para uma frequentação da área apenas durante a
estação quente (Rowley-Conwy 1992), pode ser tomado, porém, como indício forte de que a
utilização paleolítica da gruta também deve ter obedecido a um padrão semelhante.
No que diz respeito aos recursos aquáticos, a única espécie de peixe representada na
Gruta do Caldeirão é a dourada (Sparus auratus) que, no entanto, ocorre em número reduzido
(quatro dentes) e apenas nos níveis magdalenenses. Dado que se trata de uma espécie
estuarina, e considerando a distância de quase 60 km, em linha recta, a que a jazida se situa
da costa, é muito provável que a presença destes restos não tenha um significado económico e
esteja antes relacionada com o seu uso como objectos de adorno. O mesmo se dirá dos restos
de dourada que Roche (1979:757) refere ter recolhido no «solo magdalenense» da Lapa do
Suão, o qual, como se demonstrou no vol. II (capítulo 34), é, na realidade, de época
solutrense. A exploração de moluscos bivalves está documentada já no Moustierense final
pelas lapas (Patella sp.) da Gruta da Figueira Brava, na costa de Sesimbra (Antunes 1990-91), sendo portanto muito provável que esta actividade económica tivesse subsistido ao
longo de todo o Paleolítico Superior. No entanto, nas jazidas entre Tejo e Mondego, os seus
vestígios são praticamente inexistentes, excepção feita aos restos de Mytilus que Roche
(1979:757) também refere ter encontrado nos níveis da Lapa do Suão que neste trabalho se
atribuíram ao Solutrense. As espécies malacológicas de interesse económico (além do
mexilhão, também a ostra, a lapa, a navalheira e a amêijoa) mencionadas por Roche noutra
publicação (1982:14) devem, assim, ter sido recolhidas nos níveis realmente magdalenenses
da cavidade (que ele havia atribuído ao Epipaleolítico), os quais, conforme se argumentou no
vol. II (capítulo 45), deverão datar da fase superior do período.
A ausência de vestígios da exploração dos recursos costeiros nos níveis solutrenses das
grutas estremenhas está certamente relacionada com a grande extensão da plataforma
continental que foi submergida pela transgressão do Pós-glaciar. Mesmo a Gruta da Furninha,
actualmente situada à beira-mar, devia estar, durante o máximo glaciário, a 20-30 km de
distância da linha de costa. Na região cantábrica, onde a plataforma continental é muito mais
estreita, a quantidade de conchas (sobretudo de lapas) existente nos estratos é tão grande,
nalguns sítios solutrenses e magdalenenses, que o seu peso chega a superar o dos ossos de
mamíferos (González Sainz e González Morales 1986; Straus 1992). O afastamento em
relação à costa dos sítios em questão, porém, terá sido, no máximo, de uma vintena de km, e
de um modo geral bastante menos. Na Estremadura portuguesa, os sítios de localização
similar que eventualmente tenham existido estão actualmente debaixo de água, pelo que a
ausência de vestígios da exploração dos recursos marinhos nos sítios conhecidos não pode ser
tomada como sintoma de que a respectiva importância económica devia ser reduzida, pelo
menos para os grupos cujos territórios de subsistência estavam situados entre o Maciço
Calcário e o mar.
Economia
155
QUADRO 4.1
Faunas do máximo glaciário
Espécies representadas nas jazidas da Estremadura (a)
Caldeirão
Sítios arqueológicos
Anecrial Almonda (b)
Salemas
Sítios paleontológicos
Fontainhas
Cascais
l
Cavalo (Equus caballus)
l
Javali (Sus scropha)
l
l
l
l
Veado (Cervus elaphus)
l
l
l
l
l
l
l
Gamo (Dama dama)
l
Auroque (Bos primigenius)
Camurça (Rupicapra rupicapra)
l
Cabra-montês (Capra pyrenaica)
l
Lebre (Lepus capensis)
l
Coelho (Oryctolagus cuniculus)
l
Aves
l
l
l
l
l
l
l
l
l
(a) segundo Zilhão (1987a, dados não publicados) e Cardoso (1992)
(b) Galeria da Cisterna
A partir do Magdalenense final, quando a linha de costa começa a aproximar-se da sua
posição actual, a situação modifica-se substancialmente. Em sítios datados de entre 9500 e
10 000 BP, como a camada 1 do Abrigo das Bocas (ver vol. II, capítulo 50) e a Gruta do
Casal Papagaio (Arnaud e Bento 1988), perto de Fátima, assiste-se, nessa altura, à formação
de autênticos concheiros. Esta última jazida é especialmente interessante em termos
comparativos já que, aquando da sua ocupação, estaria situada a 40 km da linha de costa, isto
é, mais ou menos à mesma distância que, no máximo glaciário, separava do mar jazidas como
as da Furninha, da Casa da Moura, ou da Lapa do Suão, onde, no entanto, os moluscos
marinhos estão ausentes ou representados apenas de forma marginal. Nestas circunstâncias, a
situação verificada no Pré-Boreal não pode atribuir-se apenas ao facto de a linha de costa
estar agora mais perto. Ela implica também, seguramente, modificações importantes nas
estratégias de subsistência, as quais, portanto, podemos presumir estarem agora muito mais
dependentes do meio aquático do que durante o Paleolítico Superior.
Quanto à pesca de rio, a avaliação do facto de não terem ainda sido recolhidos
testemunhos dessa actividade tem de levar em linha de conta que, tanto em Espanha (Straus
1992:151) como em França (Hayden et al. 1987), é só a partir do Magdalenense superior que
ela se encontra bem documentada. Em Portugal, porém, há apenas duas jazidas de gruta, e
uma de abrigo, com depósitos do Magdalenense superior e final: a Gruta do Caldeirão, o
Abrigo das Bocas, e a Lapa do Suão. Na primeira, cujos sedimentos foram integralmente
crivados, uma parte substancial dos quais a água, não havia efectivamente restos de peixe. Na
segunda, as escavações foram feitas em finais dos anos 30, pelo que não seria de esperar que
tais restos fossem reconhecidos e guardados. E, na terceira, a grande maioria dos depósitos
do Magdalenense superior havia já sido removida por escavações antigas antes do início dos
trabalhos de Roche. Neste contexto, a ausência de provas da exploração dos recursos animais
de água doce não pode, por enquanto, ser considerada significativa do ponto de vista da
economia das populações. O facto de a arte rupestre paleolítica do vale do Côa incluir
diversas representações de peixes sugere, aliás, que a pesca de rio devia ter desempenhado,
efectivamente, um papel de certo relevo na subsistência dos grupos humanos do interior da
Península Ibérica.
156
Economia
4.4. Diferenciação funcional dos sítios
Uma das formas de testar as hipóteses de caracterização funcional dos sítios que, segundo o
modelo proposto, resultariam da simples consideração da respectiva implantação geográfica,
é a de confrontá-las com os padrões de variabilidade revelados pela análise do respectivo
conteúdo antrópico. A combinação das duas abordagens — localização espacial e
composição dos espólios — exige uma comparação sistemática prévia, com base em critérios
funcionais, dos diversos contextos. É o que se fará em seguida, com consciência plena de que
a determinação exacta e detalhada das actividades realizadas em cada sítio é presentemente
impossível, uma vez que não há análises traceológicas dos materiais e que, em qualquer dos
casos, as margens de incerteza associadas aos resultados desse tipo de estudos ainda são
demasiado elevadas. A comparação limitar-se-á, assim, a dois parâmetros relacionados com a
fabricação e o uso dos artefactos líticos: o fraccionamento espacial das cadeias operatórias
(isto é, a presença ou ausência, em cada conjunto, das diversas fases dos sistemas de
exploração da pedra documentados na época em questão); e o peso relativo que em cada
conjunto têm as actividades de produção, por um lado, e as actividades implicando o uso e
abandono de armaduras, que podemos presumir estarem relacionadas com a caça, por outro.
4.4.1. Critérios de análise
Nos Quadros 4.2-4.5 apresentam-se os dados quantitativos e qualitativos que foi possível
obter, os quais serviram de base à elaboração dos Quadros 4.6-4.7 e das Figs. 4.11-4.13. De
forma a permitir a inclusão na análise de todas as colecções, apenas foram consideradas as
categorias de artefactos que se pode presumir não estarem sub-representadas nas antigas.
Assim, no que respeita aos núcleos, só se contaram os de sílex, dado que, nas colecções
antigas, os materiais em quartzo e quartzito (quando representados) correspondem sempre a
peças isoladas. Nas colecções modernas, pelo contrário, eles podem chegar a constituir uma
percentagem importante da categoria, nomeadamente nas indústrias do Proto-Solutrense, pelo
que a sua inclusão implicaria uma distorção importante dos resultados decorrentes da
comparação quantitativa dos conjuntos. No que diz respeito ao sílex, excluíram-se também os
fragmentos de núcleo, de forma a permitir a confrontação com os conjuntos magdalenenses
analisados por Bicho (1992), em cujo estudo este tipo de peças não foi tido em consideração.
Já no que respeita aos «utensílios retocados» da lista-tipo, porém, optou-se por não excluir
das colecções modernas as peças fabricadas em matérias-primas que não o sílex, dado
constituirem, de modo geral, uma parcela muito minoritária dos conjuntos, sendo por isso
negligenciável, neste caso, o risco diagnosticado para os núcleos. A única situação em que
isso não acontecia era a das camadas I e Ja da Gruta do Caldeirão, na qual, excluindo as
armaduras, cerca de 2/3 dos «utensílios retocados» eram de quartzo ou quartzito: a exclusão
destes últimos acarretaria, por conseguinte, uma subida dos valores do rácio «pontas
líticas ÷ utensílios domésticos» para números idênticos aos apurados para Vale Almoinha e
para o nível II de Salemas (ver Fig. 4.12). Por outro lado, tal como se argumentou no capítulo
3 deste volume, as «raspadeiras espessas», os buris sobre suporte de fase inicial e as peças
esquiroladas devem ser considerados como núcleos de tipo especial destinados à produção de
barbelas (Quadro 4.2). Em consequência, no Quadro 4.3, estas peças foram contadas
separadamente, em coluna própria.
A exclusão dos núcleos de quartzo e quartzito da análise obrigou a tomar atitude
semelhante em relação às lâminas e lamelas deles extraídas. Por outro lado, tanto no que
respeita aos suportes alongados em sílex como no que respeita às pontas, os valores
reportados no Quadro 4.3 são os referentes aos respectivos números mínimos. A opção por
este indicador deveu-se ao facto de que, como se mostrou no capítulo 3, as lamelas partidas
Economia
157
QUADRO 4.2
«Utensílios retocados» da lista-tipo
Caracterização funcional
Utensílios
domésticos (a)
Pontas de
projéctil em pedra (b)
Barbelas para pontas
de projéctil em osso (a)
Núcleos
para barbelas (c)
• raspadeiras finas
(tipos 1-10 e 14a-b)
• pontas de
Chatelperron
• microgravettes
(tipos 51a-e)
• raspadeiras espessas
(tipos 1-13 e 15)
• furadores
(tipos 23-26)
• pontas de la Gravette
e de Vachons
• geométricos
• buris sobre suporte de
fase inicial
• buris sobre suporte de
fase plena, laminar ou
lamelar
• pontas de Casal do
Felipe
• lâminas retocadas
(tipos 65-67)
• entalhes,
denticulados,
raspadores e raclettes
(tipos 74-75, 77 e
78a-b)
• pontas de Vale
Comprido
• pontas de face plana
• folhas de loureiro e de
salgueiro
• pontas crenadas
• pontas solutrenses de
pedúnculo axial
• pontas magdalenenses
de pedúnculo axial
• lamelas de dorso
• lamelas de dorso
truncadas
• peças esquiroladas
• lamelas de dorso
denticuladas
• lamelas de dorso
solutrenses
• lamelas Dufour, de
Areeiro e de dorso
marginal
• pontas microlíticas
(tipos 91a-e)
(a) caracterização realizada com base nos resultados da generalidade dos estudos traceológicos
(b) tenha-se em conta a possibilidade de alguns destes tipos de pontas poderem na realidade corresponder, do
ponto de vista funcional, a facas, nomeadamente no que diz respeito às pontas de Chatelperron e de Vale
Comprido, por um lado, e às folhas de loureiro e de salgueiro, por outro
(c) caracterização realizada com base nos argumentos contextuais e tecnológicos apresentados no capítulo 3
devem estar sub-representadas nas colecções antigas, o mesmo devendo acontecer com as
pontas, dada a grande diferença existente entre as percentagens de peças inteiras e partidas
nos dois sítios fontesantenses conhecidos (ver vol. II, capítulos 11 e 15): no Casal do Felipe,
escavado por Heleno, as peças consideradas como pertencendo aos estados de fragmentação
I1 e I2 correspondem a 38% do total; na Fonte Santa, escavada em 1989-90, a percentagem,
porém, é de apenas 11%. No que respeita às barbelas retocadas, no entanto, é muito difícil
encontrar um critério de contagem que permita calcular o número mínimo de exemplares
representado pelos fragmentos. Com efeito, nem sempre é possível identificar estes últimos
como proximais ou distais, sendo ainda necessário ter em conta que, em muitos casos, a
fragmentação pode ter sido intencional (para eliminação das extremidades do suporte, por
exemplo). Deste modo, utilizou-se o total de peças de cada colecção (tanto inteiras como
partidas), no pressuposto de que este indicador permitiria uma avaliação correcta do peso
relativo das armaduras microlíticas nos espólios das diferentes jazidas, tanto no caso das
escavações antigas como das modernas.
Compilados estes dados, que são apresentados no Quadro 4.3, calcularam-se
seguidamente os diversos índices que constam do Quadro 4.4, utilizando-se para o efeito as
fórmulas referidas em nota a este último. O Índice de Produção (IP) pretende avaliar o peso
das actividades de talhe, medido através do rácio entre o número de núcleos e o número de
utensílios retocados, nestes últimos incluindo-se apenas os que se pode supor terem sido
utilizados de forma corrente no quadro dos diferentes tipos de actividades domésticas
presumivelmente levadas a cabo nos acampamentos residenciais (corte da carne, curtimenta
das peles, trabalho da madeira ou das matérias duras de origem animal). Além das armaduras
e das peças que na realidade devem ter sido utilizadas como núcleos, excluíram-se deste
conjunto de «utensílios domésticos» os grupos tipológicos funcionalmente ambíguos, tais
158
Economia
QUADRO 4.3
Variabilidade funcional inter-sítios
Composição dos conjuntos líticos
Núcleos
de
sílex (a)
Utensílios retocados
para lâminas
para
e lamelas (b) barbelas (c)
domésticos
pontas
barbelas
Lâminas e
lamelas de
sílex (d)
Aurignacense
Vale de Porcos I
Vale de Porcos II
Pego do Diabo, cam. 2
108
30
-
93
23
-
84
5
-
30
2
3
-
7
157
48
-
Gravettense antigo
Vale Comprido - Barraca
Vale Comprido - Cruzamento
Salemas, nível III (e)
Caldeirão, cam. Jb
179
40
4
-
96
16
-
209
31
1
1
109
18
6
6
-
25
16
-
221
15
5
-
Fontesantense
Casal do Felipe
Fonte Santa
71
161
50
115
38
135
98
231
28
104
2
10
220
592
Gravettense final e Proto-Solutrense
Terra do Manuel (1940-42)
Terra do Manuel (1988-89), cam. 2s
Cova da Moura (Cambelas)
CPM III, nível médio
Terra do José Pereira
Vales da Senhora da Luz
Gato Preto
Vale Comprido - Encosta
Caldeirão, cam. I/Ja
Almonda, zona AMD1, cam. 3/3a
111
45
8
56
99
172
16
308
2
-
75
27
6
20
48
92
158
-
89
31
11
29
51
40
42
105
-
354
72
19
52
133
215
37
540
11
-
8
7
2
1
191
6
1
254
14
2
8
4
3
1
1
1156
172
13
215
180
277
7
1365
8
1
Solutrense médio
Casal do Cepo
Vale Almoinha
74
54
74
22
23
36
187
147
63
159
2
387
152
Solutrense superior
Salemas, nível II
Almonda, zona AMD1, cam β
Olival da Carneira, cam. 5
2
4
1
2
4
1
18
12
17
12
5
9
-
12
1
28
4
47
107
67
39
19
28
42
26
1
18
66
50
14
10
19
16
12
17
36
39
51
67
22
89
41
33
45
106
230
161
179
35
37
36
55
1
-
8
22
175
978
44
8
27
49
6
24
89
404
460
372
133
136
199
178
Magdalenense
Caldeirão, cam. Eb (f)
CPM I, nível inferior
Cerrado Novo
Vale da Mata
CPM IIIS, nível médio
CPM IIIT, nível superior
Pinhal da Carneira
Carneira II
Olival da Carneira, cam. 3/4
(a) total (excluindo fragmentos)
(b) prismáticos de sílex; nos contextos magdalenenses (CPM I, CPM IIIS, CPM IIIT, PC e CAR II), analisados por Bicho (1992)
estimou-se o total deste tipo de peças como sendo igual à média dos respectivos valor mínimo (núcleos definidos como para
lâminas ou para lamelas) e máximo (acrescentando-lhes os definidos como mistos) possíveis segundo os critérios utilizados no
presente trabalho
(c) núcleos para barbelas tipologicamente incluídos entre os «utensílios retocados» (ver Quadro 4.2)
(d) número mínimo (inteiras + proximais)
(e) inclui as três lamelas Dufour atribuídas ao Aurignacense
(f) quadrados da sala e da parte final do corredor; não existindo informação sobre a fragmentação do material, o número mínimo
de lâminas e lamelas foi calculado como igual a metade do total de suportes alongados (inteiros e partidos) contabilizados no
inventário geral (ver vol. II, capítulo 40)
Economia
159
QUADRO 4.4
Variabilidade funcional inter-sítios
Índices de actividades económicas
Índice de
Índice 1 de Índice 2 de
Índice de Produção de Índice 1 de Índice 2 de Actividades Actividades
Produção
Barbelas Exportação Exportação Logísticas Logísticas
Siglas (a)
IP (b)
IPB (c)
IE1 (d)
IE2 (e)
VP I
VP II
PGD
6,40
17,50
0,00
44
14
0,59
0,48
35
15
0,00
0,00
2,33
VCB
VCC
SLM-III
3,56
3,94
0,83
54
44
20
0,43
1,07
14
9
0,23
0,00
2,67
CF
FS
1,11
1,28
35
46
0,23
0,19
37
33
0,29
0,45
Gravettense final e Proto-Solutrense
Terra do Manuel (1940-42)
TM I
Terra do Manuel (1988-89), cam. 2s
TM II
Cova da Moura (Cambelas)
CMCB
CPM III, nível médio
CPM III
Terra do José Pereira
TJP
Vales da Senhora da Luz
VSL
Gato Preto
GP
Vale Comprido - Encosta
VCE
Caldeirão, cam. I/Ja
CAL-I/Ja
0,56
1,06
1,00
1,63
1,13
0,99
1,57
0,76
0,18
45
41
58
34
34
19
72
25
0,06
0,16
0,46
0,09
0,27
0,33
52
21
18
27
37
0,12
33
0,02
0,10
0,11
0,00
0,01
0,00
0,00
0,35
0,55
Solutrense médio
Casal do Cepo
Vale Almoinha
CC
VALM
0,52
0,61
24
40
0,19
0,14
49
56
Solutrense superior
Salemas, nível II
Olival da Carneira, cam. 5
SLM-II
OCN-5
0,33
0,42
67
20
0,08
0,07
CAL-Eb
CPM I
CN
VM
CPM IIIS
CPM IIIT
PC
CAR II
OCN-3/4
0,47
0,78
0,63
0,73
0,59
1,17
3,16
2,31
1,07
81
43
27
43
63
54
76
49
56
0,04
Aurignacense
Vale de Porcos I
Vale de Porcos II
Pego do Diabo, cam. 2
Gravettense antigo
Vale Comprido - Barraca
Vale Comprido - Cruzamento
Salemas, nível III
Fontesantense
Casal do Felipe
Fonte Santa
Magdalenense
Caldeirão, cam. Eb
CPM I, nível inferior
Cerrado Novo
Vale da Mata
CPM IIIS, nível médio
CPM IIIT, nível superior
Pinhal da Carneira
Carneira II
Olival da Carneira, cam. 3/4
0,16
0,11
0,04
0,08
0,14
0,08
0,07
IAL1 (f)
44
0,72
0,19
0,11
0,15
0,34
1,08
0,94
0,42
38
IAL2 (g)
0,50
0,00
0,18
0,21
0,76
6,07
0,25
0,23
0,73
1,36
0,11
(a) usadas nas Figs. 4.11 e 4.12
(b) [núcleos de sílex (excluindo fragmentos) + núcleos especiais para barbelas] : utensílios domésticos
(c) núcleos especiais para barbelas : [núcleos de sílex (excluindo fragmentos) + núcleos especiais para barbelas] × 100
(d) núcleos prismáticos para lâminas e lamelas : número mínimo de lâminas e lamelas
(e) frequência relativa das peças sem córtex e de secção trapezoidal entre os restos laminares de debitagem
(f) número mínimo de pontas líticas : utensílios domésticos
(g) número de barbelas : utensílios domésticos
160
Economia
QUADRO 4.5
Variabilidade funcional inter-sítios
Fraccionamento das cadeias operatórias (a)
Importação sem
produção local (b)
L
UD
P
B
Aurignacense
Vale de Porcos I
Vale de Porcos II
Pego do Diabo, cam. 2
Salemas, nível III
Escoural
l
l
l
l
l
l
l
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l
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l
l
l
l
l
l
Solutrense médio
Casal do Cepo
Vale Almoinha
Monte da Fainha
Magdalenense
Caldeirão, cam. Eb
CPM I, nível inferior
Cerrado Novo
Vale da Mata
CPM IIIS, nível médio
CPM IIIT, nível superior
Rossio do Cabo
Pinhal da Carneira
Carneira II
Bairrada
Olival da Carneira, cam. 3/4
B
Produção para
exportação (d)
L
UD
P
B
l
Fontesantense
Casal do Felipe
Fonte Santa
Solutrense superior
Salemas, nível II
Almonda, zona AMD1, cam β
Olival da Carneira, cam. 5
l
l
Gravettense antigo
Vale Comprido - Barraca
Vale Comprido - Cruzamento
Salemas, nível III
Caldeirão, cam. Jb
Gravettense final e Proto-Solutrense
Terra do Manuel (1940-42)
Terra do Manuel (1988-89), cam. 2s
Cova da Moura (Cambelas)
CPM III, nível médio
Terra do José Pereira
Vales da Senhora da Luz
Anecrial, cam. 2
Gato Preto
Vale Comprido - Encosta
Caldeirão, cam. I/Ja
Almonda, zona AMD1, cam. 3/3a
L
Produção
local (c)
UD
P
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
(e)
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l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
l
(a) L = lâminas e lamelas de sílex; UD = utensílios domésticos; P = pontas; B = barbelas (brutas e retocadas)
(b) material cuja fabricação não pode ser local, dada a ausência no espólio das categorias relevantes (matérias-primas, núcleos ou
suportes)
(c) material cuja fabricação local é demonstrada pela reconstituição das sequências de talhe ou sugerida pelo respectivo
abandono no sítio em quantidades proporcionalmente significativas
(d) material cuja fabricação local está demonstrada pela presença de núcleos, restos de preparação ou de debitagem inicial (no
caso das lâminas e lamelas), ou pela presença de suportes brutos ou esboços, estando porém ausentes (ou presentes em
quantidades desproporcionadamente pequenas) os suportes alongados de debitagem plena ou os utensílios cuja obtenção
constituía a finalidade última das cadeias operatórias executadas no sítio
(e) transformação de suportes importados
Economia
161
como os compósitos e as truncaturas, bem como as lascas retocadas, susceptíveis de sub-representação nas colecções antigas. As lâminas de dorso foram igualmente ignoradas, dado
se tratar de material raro na quase totalidade das indústrias e que, além disso, se encontra de
um modo geral muito partido, sendo em muitos casos possível que corresponda a fragmentos
de pontas e não necessariamente a facas como, de um modo geral, deve de facto acontecer. O
Índice de Produção de Barbelas (IPB), por sua vez, é a percentagem do total de núcleos que
corresponde às peças incluídas entre os «utensílios retocados» da lista-tipo mas que, no
presente trabalho, se interpretaram como núcleos de tipo especial destinados à extracção de
barbelas («raspadeiras» espessas, buris sobre suporte de fase inicial e peças esquiroladas).
Computaram-se igualmente dois Índices de Exportação. O primeiro (IE1) é um índice
de produtividade aparente das debitagens de suportes alongados documentadas em cada sítio,
obtido mediante o cálculo do rácio entre o número de núcleos prismáticos em cujas
superfícies eram observáveis negativos de lâminas ou de lamelas e o número mínimo de
lâminas e lamelas documentado entre os restos de talhe. Partia-se do pressuposto de que o
aparecimento de valores anormalmente baixos indicaria, desde que fosse possível pôr de
parte explicações de natureza tafonómica, que uma parte importante deste tipo de produtos
teria sido removida do local de produção, seja sob a forma de utensílios retocados seja sob a
forma de suportes destinados a transformação ulterior ou a uso sem modificação. De forma a
obter confirmação suplementar das indicações fornecidas pelo primeiro, e com base no
pressuposto de que os produtos preferencialmente seleccionados para exportação teriam sido
os obtidos em fase plena da debitagem, calculou-se igualmente um segundo índice (IE2), o
qual corresponde assim, muito simplesmente, à percentagem de peças sem córtex e de secção
trapezoidal apurada para o conjunto das lâminas de cada colecção.
Os Índices de Actividades Logísticas, finalmente, são rácios calculados com o objectivo
de medir o peso relativo que em cada um dos contextos analisados teriam tido as actividades
relacionadas com a caça, tomando em ambos os casos por denominador a correspondente
quantidade de utensílios domésticos. No primeiro desses índices (IAL1) utilizou-se como
numerador a quantidade (número mínimo de exemplares) de pontas líticas, razão pela qual o
respectivo cálculo só fazia sentido para as indústrias em que há efectivamente produção de
artefactos deste tipo (Fontesantense, Gravettense final, Proto-Solutrense, Solutrense). No
segundo (IAL2), utilizou-se como numerador a quantidade de barbelas retocadas, pelo que
apenas foi calculado para as indústrias em que está documentada a produção sistemática de
armaduras microlíticas de dorso (Aurignacense, Gravettense antigo e final, Solutrense
superior, Magdalenense). É necessário ter em conta, porém, que os resultados fornecidos por
estes indicadores têm de ser interpretados com bastantes cautelas. Em certas indústrias, com
efeito, a função de barbelas pode ter sido desempenhada, no todo ou em parte, por objectos
não retocados (ver capítulo 3 deste volume); e, noutras, a função de pontas pode ter sido
desempenhada exclusiva ou quase exclusivamente por objectos fabricados em madeira ou
osso que não se conservaram.
De um modo geral, no entanto, as indústrias sem pontas líticas caracterizam-se pela
produção de barbelas retocadas em quantidades significativas, pelo que, nessas indústrias, a
variação do peso das actividades logísticas acabará por se reflectir na variação dos valores do
IAL2. Não pode excluir-se, porém, que tenha havido momentos da sequência cultural em que
o equipamento de caça tivesse sido constituído apenas por pontas ósseas armadas de barbelas
brutas. Torna-se necessário ter em conta, assim, a possibilidade de que os valores nulos ou
praticamente nulos apurados tanto para o IAL1 como para o IAL2 em três das colecções do
período de transição entre o Gravettense e o Solutrense (Terra do José Pereira, Vales da
Senhora da Luz e Gato Preto) estejam relacionados precisamente com uma situação desse
género, embora não seja de momento essa a interpretação para que nos inclinamos (ver
capítulo 5). Se se vier a confirmar que assim é, nem um nem outro destes dois índices teriam
162
Economia
Fig. 4.11 - Variabilidade funcional dos espólios líticos do Paleolítico Superior estremenho. Os conjuntos do
Aurignacense e do Gravettense inicial diferenciam-se claramente dos restantes pelo facto de a quantidade de
núcleos ser muito superior à de utensílios domésticos e de, além disso, a produtividade aparente dos núcleos para
suportes alongados ser muito baixa. A deficiência dos conjuntos laminares em peças de debitagem plena (sem
córtex e de secção trapezoidal) sugere que essa anomalia de produtividade deve ser causada, na realidade, pelo
facto de essas peças, que constituíam o objectivo final das sequências de talhe, terem sido na sua maior parte
exportadas, as jazidas em questão funcionando em grande medida, portanto, como oficinas de talhe.
então qualquer utilidade do ponto de vista da discriminação funcional das jazidas desta
época, a qual, aliás, seria assim extremamente difícil de realizar, pelo menos a partir das
características dos espólios líticos. A caracterização funcional destas três jazidas que se
propõe no Quadro 4.7 teria pois, nesse caso, de ser sujeita à necessária revisão.
4.4.2. Agrupamentos...
As Figs. 4.11 e 4.12 ilustram, sob forma gráfica, os resultados da comparação dos valores
obtidos para os índices calculados a partir da composição dos conjuntos analisados. Da sua
consulta resulta a possibilidade de discriminar quatro agrupamentos diferentes:
•
o Grupo 1 é o constituído pelas colecções de cariz claramente oficinal, em que o valor do
rácio «núcleos ÷ utensílios domésticos» é superior a 3,5 e em que, simultaneamente, a
produtividade dos núcleos prismáticos, medida em função da quantidade de suportes
alongados abandonados nas jazidas, se revela anormalmente baixa, isto é, apresenta
valores da ordem das duas lâminas ou lamelas por cada núcleo; pertencem a este grupo as
colecções provenientes de Vale Comprido - Barraca, de Vale Comprido - Cruzamento e
de Vale de Porcos, as quais (com uma única excepção, a representada pelo espólio das
escavações de Heleno nesta última jazida), por outro lado, são precisamente as que
apresentam percentagens mais baixas de lâminas sem córtex e de secção trapezoidal;
Economia
163
Fig. 4.12 - Variabilidade funcional dos espólios líticos do Paleolítico Superior estremenho. A quantidade de
pontas do nível II de Salemas (e das camadas I/Ja do Caldeirão, se se excluir a utensilagem fabricada sobre
matérias-primas locais) é muito superior à verificada em todos os outros contextos em que o equipamento de caça
era armado desta forma. Essa desproporção seria ainda mais marcada, aliás, se também fossem consideradas as
peças de proveniência incerta, que são na sua maioria solutrenses, caso em que o rácio correspondente subiria para
1,38. No Aurignacense e no Gravettense inicial, caracterizados por pontas de osso ou madeira armadas de barbelas
líticas, o nível III de Salemas e o Pego do Diabo também se diferenciam claramente pelo peso das barbelas, o
mesmo se passando, no que ao Magdalenense diz respeito, em Vale da Mata.
164
Economia
•
o Grupo 2 é o constituído pela grande maioria das colecções analisadas, e corresponde
àquelas em que a quantidade de núcleos é inferior, igual, ou apenas ligeiramente superior,
à de utensílios domésticos, e em que, portanto, se pode considerar que as actividades de
produção terão estado em equilíbrio com as relacionadas com o uso destes últimos; ou
seja, em que as ocupações que produziram essas colecções terão tido uma componente
predominantemente residencial;
•
o Grupo 3 é o constituído pelas colecções que, embora satisfazendo a condição acima
enunciada, se diferenciam pelos valores elevados de um ou outro dos dois Índices de
Actividades Logísticas; encontram-se incluídas neste grupo as colecções provenientes do
Pego do Diabo (camada 2), do Caldeirão (camadas I e Ja), de Salemas (níveis II e III), de
Vale Almoinha e de Vale da Mata;
•
o Grupo 4, finalmente, é o constituído pelas colecções provenientes de Carneira II e de
Pinhal da Carneira, as quais apresentam características intermédias entre as dos Grupos 1
e 3; ou seja, o rácio «núcleos ÷ utensílios domésticos» é mais elevado do que o normal,
mas nem a produtividade aparente da debitagem é tão baixa quanto nos sítios oficinais,
nem a frequência das barbelas retocadas é tão alta como nas jazidas logisticamente
especializadas (embora os valores atingidos pelo Índice de Produção de Barbelas se
contem entre os mais elevados de todas as colecções analisadas); os dados de que se
dispõe para a jazida do Rossio do Cabo (ver vol. II, capítulo 50) apontam também para a
sua inclusão neste grupo, dada a composição do respectivo espólio lítico (com mais
armaduras microlíticas de dorso e mais núcleos, em particular no que respeita aos de tipo
especial para barbelas, do que utensílios domésticos).
Tomando em consideração os elementos apresentados no Quadro 4.5, a caracterização de
alguns destes grupos pode tornar-se bastante mais precisa. No referido quadro incluíram-se
também as colecções para as quais se não possuíam dados quantitativos ou em que estes eram
insuficientes para o cálculo dos diversos índices que se pretendia obter e que, por isso, não
foram consideradas nos Quadros 4.3-4.4 nem nas Figs. 4.11-4.12. É o caso, nomeadamente,
do conjunto proveniente das camadas 3/3a da Galeria da Cisterna (rede cársica do Almonda),
que apresenta características idênticas às de alguns dos integrados no Grupo 3: os que se
diferenciam de todos os restantes por neles não estar documentada, de um modo geral, a
produção local dos utensílios ou dos suportes brutos que integram os conjuntos em questão.
No Pego do Diabo, por exemplo, não havia sequer quaisquer núcleos, e em duas das situações
em que essa produção local foi considerada provada — as das camadas I/Ja e Jb da Gruta do
Caldeirão — o que estava em causa era a fabricação de utensílios domésticos, obtidos quase
sempre a partir de suportes debitados em rochas disponíveis localmente (quartzito e quartzo).
As pontas ou barbelas líticas destas três camadas eram todas em sílex e tinham sido todas elas
importadas, o mesmo se passando também em Salemas (ver vol. II, capítulos 25 e 37). No
nível III desta jazida, a produção local de utensílios domésticos apenas poderá ter sido feita a
partir de núcleos como os que aí foram recolhidos, cuja matéria-prima era, em todos os casos,
um sílex existente nos calcários em que se abre a cavidade. Algumas das barbelas retocadas
também pareciam ter sido fabricadas neste tipo de matéria-prima mas, não tendo sido
recolhido no nível III nenhum núcleo para lamelas, a sua produção local não pode ser
demonstrada. No nível II, a presença de um núcleo para lamelas indica a debitagem local
deste tipo de produtos e, portanto, a possibilidade de algumas das lamelas brutas e retocadas
abandonadas na jazida terem sido fabricadas no próprio sítio. Parece claro, no entanto, que a
grande maioria terá sido importada, o mesmo se passando com as pontas crenadas, em
relação às quais a única fase de fabrico que os vestígios recolhidos permitem provar ter sido,
nalguns casos, realizada localmente, é a que diz respeito à transformação de suportes brutos
importados: uma das peças, com efeito, apresentava um retoque incompleto e estava partida
em dois fragmentos recolados, as características da fractura indicando tratar-se de um
acidente de talhe.
Economia
165
Ao contrário do que se passa nestas quatro jazidas de gruta (Caldeirão, Almonda,
Salemas e Pego do Diabo), nos dois outros conjuntos integrados no Grupo 3, os provenientes
de Vale Almoinha e de Vale da Mata, a produção de armaduras está amplamente
documentada. No primeiro caso (ver vol. II, capítulo 36), é bastante claro, aliás, que se
podem distinguir dois agrupamentos bastante distintos no conjunto das folhas de loureiro.
Um é constituído por peças que, do ponto de vista tipológico, podem ser consideradas como
acabadas: quase todas partidas, por vezes com estigmas que indicam o respectivo uso como
ponta de projéctil, estão fabricadas em matérias-primas de cuja debitagem no próprio sítio
não há indícios probantes. O outro é constituído por peças manufacturadas em matérias-primas locais (como o sílex creme com inclusões translúcidas que aparece em todas as
estações do Paleolítico Superior da costa de Torres Vedras): consideradas inacabadas do
ponto de vista tipológico, estão geralmente inteiras (ou partidas por acidente de fabrico), e a
sua fase inicial de produção decorre na jazida, conforme provado tanto pelos numerosos
restos de talhe (lascas de adelgaçamento bifacial, nomeadamente) como pelas extensas áreas
corticais presentes nalgumas peças. Embora as armaduras predominem sobre os utensílios
domésticos, não se trata exclusivamente, portanto, de material importado, razão pela qual se
justifica a consideração destas jazidas como pertencendo a um tipo diferente do representado
pelas restantes estações do Grupo 3. A de Vale Almoinha encontra-se, aliás, bastante próxima
das do Grupo 2 (ver adiante), e a de Vale da Mata, embora com um pendor oficinal bastante
menos marcado que as do Grupo 4, pode considerar-se próxima destas, dado com elas
partilhar não só a característica de ter muitas armaduras como, também, a de nelas estarem
representadas tanto a fase inicial (produção) como a final (abandono) do ciclo de vida deste
tipo de artefactos.
Ao ler-se o Quadro 4.5, é necessário ter em conta, igualmente, a dificuldade que sempre
existe em fundamentar de forma inquestionável as caracterizações referentes à prática de
produção para exportação. No que diz respeito às colecções do Grupo 1, essa caracterização
baseia-se apenas nos argumentos quantitativos anteriormente expendidos, ou seja, não é
apoiada de forma independente por outro tipo de observações (como, por exemplo, as que se
fizeram no parágrafo anterior a propósito das folhas de loureiro de Vale Almoinha). Sendo
uma caracterização pela negativa, está condicionada pelo facto de se basear, em grande
medida, na exclusão, por menos lógicas, das outras explicações teoricamente possíveis que
poderiam ser propostas para os padrões observados. O facto de as escavações de Heleno na
região de Rio Maior terem sido feitas na mesma época e pela mesma equipa (e, tudo leva a
crer, com os mesmos critérios), não permite, por exemplo, atribuir a raridade das lamelas e
dos resíduos de golpe de buril de Vale de Porcos I ao modo como os trabalhos de campo
foram conduzidos, uma vez que este tipo de produtos é abundante noutros espólios de história
semelhante. Por sua vez, este facto permite considerar como fidedignos os dados obtidos para
Vale de Porcos II, embora, neste caso, a referida raridade se transforme numa quase total
ausência, certamente em virtude do impacto de factores tafonómicos, uma vez que se trata de
recolhas de superfície efectuadas em jazida afectada por lavras fundas e queimadas recentes.
Do mesmo modo, os valores anómalos dos índices de produtividade aparente dos núcleos
para lâminas e lamelas apurados para o conjunto de Vale Comprido - Cruzamento (escavado
modernamente) confirmam que as características idênticas do espólio de Vale Comprido - Barraca não podem ser atribuídas à circunstância de se tratar de uma colecção antiga.
O facto de as sociedades de caçadores-recolectores se caracterizarem por sistemas de
povoamento em que há sempre uma componente maior ou menor de itinerância (Binford
1983) implica, por outro lado, que em todos os sítios em que está documentada a prática de
actividades de talhe da pedra seja previsível que os artefactos neles produzidos sejam em
maior ou menor parte transportados quando o acampamento é mudado e, por conseguinte,
que venham a ser descartados em pontos do território diferentes daquele em que foram
fabricados. Ou seja, implica necessariamente que à produção esteja associada a exportação e
166
Economia
que, do mesmo modo, a ela esteja também associada a importação (tanto a dos blocos de
matéria-prima bruta que serão debitados no sítio como a dos objectos trazidos pelo grupo
quando pela primeira vez se instala nele): o acima referido exemplo de Vale Almoinha é uma
boa ilustração deste truísmo. É óbvio, portanto, que a importação e exportação de artefactos
se terá verificado em todas as jazidas que forneceram as colecções integradas no Grupo 2, ou
seja, aquelas em que a componente residencial é claramente predominante. O que diferencia
alguns dos conjuntos do Grupo 3 é, como acima se viu, o facto de neles estar documentada a
importação, sem produção local, de certas classes de artefactos. Do mesmo modo, o que
diferencia os conjuntos do Grupo 1 é o facto de, estando neles documentada a produção local
dessas classes, não haver indícios do seu uso ou abandono nas jazidas em que foram
produzidos, ou de a escala em que se deu um tal uso ou abandono estar em desproporção
marcada com as quantidades efectivamente fabricadas. Ou seja, o facto de as respectivas
cadeias operatórias se encontrarem espacialmente fraccionadas, as economias da pedra
representadas nessas jazidas correspondendo, portanto, a sistemas em que há sítios dedicados
quase exclusivamente à produção de suportes (que, deste modo, podemos caracterizar como
oficinas de talhe), e outros em que esses suportes são efectivamente consumidos.
Conforme revelado pelo Quadro 4.5, esta produção para exportação parece encontrar-se,
no que respeita às lâminas e lamelas, apenas nas indústrias do Paleolítico Superior inicial
(Aurignacense e Gravettense antigo), entre as quais o único outro tipo de conjunto lítico
actualmente conhecido é precisamente o seu oposto (ou complementar): aquele em que se
verifica uma importação sem produção local tanto dos suportes alongados como das pontas e
barbelas obtidas a partir da transformação por retoque desse tipo de suportes. No que diz
respeito às barbelas, verificou-se, no entanto, que há igualmente produção para exportação
em duas outras jazidas, as do Anecrial (camada 2) e do Gato Preto. Não seria correcto,
porém, equiparar estes dois contextos aos de Vale Comprido (Barraca e Cruzamento) e de
Vale de Porcos. Na realidade, a ausência de vestígios de abandono de barbelas usadas nas
duas jazidas proto-solutrenses está certamente relacionada com o facto de se tratar de locais
de ocupação efémera e única. Num contexto como este, as actividades de talhe poderão ter
estado determinadas por necessidades momentâneas e muito específicas como, por exemplo,
a fabricação de equipamento de caça novo, incluindo a produção das barbelas líticas para o
armar. É perfeitamente concebível que essas armas tenham sido levadas pelos ocupantes do
sítio após o abandono do acampamento, sem chegarem a ter sido usadas. E que, por outro
lado, não tenha chegado a haver descarte local do equipamento cuja danificação terá
determinado a necessidade de executar as referidas tarefas de produção, embora, na Lapa do
Anecrial, pareça ter sido precisamente isso o que aconteceu: no nível de ocupação da
camada 2 desta jazida, a produção de armaduras (barbelas) para exportação está com efeito
ligada ao abandono de uma armadura (ponta) usada, partida, que não parece ter sido
fabricada localmente. No que respeita aos sítios do Paleolítico Superior inicial, porém, as
dimensões das jazidas e das colecções que nelas foram recolhidas indicam estarmos perante
palimpsestos de ocupações repetidas, pelo que as ausências nelas observadas ganham um
significado que não podem ter nos dois contextos proto-solutrenses referidos: o de definirem
um padrão de comportamento recorrente que, portanto, podemos considerar, de facto, como
característico dos sistemas de produção lítica em causa, e não como mera consequência de
acasos situacionais, que apenas nos dariam informação (valiosa, mas incompleta) acerca do
funcionamento de uma parte desses sistemas, não sobre o da sua totalidade.
A consulta do Quadro 4.5 permite ainda, finalmente, documentar a existência de outro
agrupamento constituído por duas colecções cujas características não tornavam possível a sua
consideração nos Quadros 4.3-4.4 e a sua inclusão nos gráficos das Figs. 4.11-4.12: as do
Monte da Fainha e da camada β da Galeria da Cisterna (rede cársica do Almonda). São
colecções que não contêm quaisquer restos de talhe e que são constituídas exclusivamente
por armaduras líticas inteiras, não usadas, ou seus suportes.
Economia
167
4.4.3. ...e seu significado
Do ponto de vista da composição dos conjuntos líticos que os integram, chega-se assim à
conclusão de que os diversos contextos arqueológicos actualmente conhecidos no Paleolítico
Superior português podem ser agrupados nas cinco categorias discriminadas no Quadro 4.7.
Por analogia com os casos melhor documentados ou melhor caracterizados, e sem esquecer,
quando necessário, as devidas reservas, foram também incluídas nesse quadro as colecções
que não puderam ser objecto de estudo monográfico (ver vol. II, Parte V), bem como aquelas
para as quais apenas se dispõe de dados parcelares. As categorias em questão definem-se da
forma proposta no Quadro 4.6.
Destas cinco categorias, as de fronteiras mais bem definidas são as oficinas de talhe, os
bivaques, e as reservas ou esconderijos. Todas elas correspondem a tipos de sítios bem
conhecidos em diversos sistemas de povoamento documentados etnograficamente (Binford
1980, 1983; Ericson e Purdy 1984). A individualização das oficinas de talhe foi já discutida
de forma exaustiva no apartado anterior. Quanto aos bivaques, do que acima foi dito resulta
que se trata de contextos que se definem em primeiro lugar pelo facto de as armaduras
dominarem os conjuntos líticos mas não serem fabricadas localmente, característica que, em
teoria, pode ser concebida como decorrente de cenários de utilização de natureza bastante
diversificada. Dado que, porém, se trata em todos os casos de jazidas de gruta, é provável que
essa utilização tenha estado quase sempre ligada às vantagens que a respectiva implantação
geográfica oferecia para a realização de tarefas de natureza logística. Assim, os bivaques em
questão podem ter estado relacionados, por exemplo, com um uso dessas cavidades como
abrigo de recurso no contexto de expedições de caça, ou como posto de observação dos
movimentos dos animais. A localização favorável de tais sítios para a execução desse tipo de
tarefas pode ter determinado, por sua vez, rotinas de uso dos locais, acabando por dar origem,
com o tempo, à acumulação de vestígios em quantidades importantes mas que, no entanto,
foram abandonados no quadro de múltiplos episódios de ocupação. É o que se deve ter
passado, por exemplo, no caso de Salemas, cavidade cujos vestígios arqueológicos, tanto no
que diz respeito aos níveis do Paleolítico Superior inicial como aos do Solutrense,
correspondem seguramente a palimpsestos produzidos por uma utilização que, embora
intermitente, terá visto as suas características funcionais manterem-se inalteradas ao longo
dos séculos, tal como, aliás, também deverá ter acontecido, com toda a probabilidade, no caso
das ocupações pré-solutrenses do Caldeirão.
Já no que respeita ao Solutrense, porém, as ocupações documentadas nesta última
cavidade apresentam características que as afastam consideravelmente das registadas nos
níveis correspondentes de Salemas. Embora o estudo dos materiais ainda não tenha sido
concluído, os elementos disponíveis (ver vol. II, capítulo 27) mostram que o número de
pontas líticas do Caldeirão é muito inferior ao das que se recolheram em Salemas, e está,
além disso, em relativo equilíbrio com a representação dos utensílios domésticos em sílex
(entre os quais se incluem raspadores, entalhes, denticulados e raspadeiras). Estes factos
aproximam a jazida de Tomar dos sítios classificados como acampamento-base, embora se
mantenha uma diferença importante, a que diz respeito ao fraccionamento da cadeia
operatória das pontas, cuja fase inicial não parece estar representada na jazida. É certo que
entre as folhas de loureiro há esboços abandonados, e que os restos de talhe incluem lascas de
adelgaçamento bifacial, pelo que se pode afirmar com segurança que, no período solutrense,
a fabricação deste tipo de peças estava incluída entre as tarefas industriais executadas durante
a estada na cavidade. Tudo indica, porém, que os artefactos em questão terão dado entrada no
sítio já sob a forma de esboços, dado não haver quaisquer indícios da produção local de
suportes de sílex com dimensões adequadas a uma ulterior transformação em folhas de
loureiro. O mesmo se dirá da produção de pontas pedunculadas, aliás representadas de forma
168
Economia
QUADRO 4.6
Variabilidade funcional inter-sítios
Definições utilizadas na classificação das ocupações
oficinas de talhe
contextos do Grupo 1, cujos espólios líticos se caracterizam pela natureza exclusiva ou quase
exclusiva das actividades de produção para exportação, o que se traduz numa preponderância absoluta
dos núcleos sobre os utensílios domésticos e num défice aparente de suportes alongados (em relação à
escala em que a sua produção está documentada pelos núcleos)
acampamentos-base
contextos do Grupo 2, em cujos espólios líticos estão representadas, nas suas diversas fases
(aquisição, debitagem, retoque e abandono), todas as cadeias operatórias existentes num dado sistema
de produção lítica, e que se caracterizam ainda pelo equilíbrio entre, por um lado, as actividades
envolvendo a produção de artefactos líticos em geral e, por outro lado, o consumo de utensílios
domésticos em particular, estes últimos ocorrendo em proporções que não são significativamente
inferiores às dos relacionados com as actividades de caça
bivaques
(posições
de caça)
parte dos contextos do Grupo 3, aqueles em que suportes alongados e armaduras líticas têm de ter sido
integralmente importados, visto não estar documentada a sua produção local (quando provada, esta
última diz exclusivamente respeito, em geral, à fabricação de utensílios domésticos a partir das
matérias-primas existentes nas imediações)
reservas ou
esconderijos
contextos do tipo Almonda ou Monte da Fainha, espacialmente muito circunscritos, em que não há
indícios de qualquer actividade de talhe e em que todos os artefactos são pontas líticas inteiras, não
usadas, ou respectivos suportes brutos prontos para transformação por retoque
acampamentos
episódicos
parte dos contextos do Grupo 3, aqueles em cujos espólios líticos os artefactos ligados às actividades
de caça, embora predominem sobre os ligados às domésticas, são pelo menos em certos casos de
produção local, esta última não incidindo necessariamente, por outro lado, apenas nas matérias-primas
existentes nas imediações dos sítios, mesmo no que diz respeito à fabricação de utensílios domésticos;
e também os do Grupo 4, nos quais o peso das actividades de produção é importante, em particular no
que diz respeito à produção de armaduras microlíticas (conforme resulta da quantidade importante de
núcleos especiais para barbelas existentes nesses contextos), embora não se verifique uma dominação
clara dos utensílios domésticos pelos núcleos
quase exclusiva por peças partidas, a maioria das quais com estigmas de fractura por impacto.
No que diz respeito a estes tipos de pontas, portanto, a jazida deverá ter funcionado apenas
como «cemitério», isto é, como local de descarte para o material inutilizado no contexto das
actividades de caça realizadas nele ou a partir dele. Exceptuam-se dois casos de objectos
provavelmente partidos por acidente de fabricação (uma ponta crenada e um esboço para
ponta de Parpalló), cujos suportes, porém, também não parece terem sido debitados no sítio.
A estas características da cadeia operatória das pontas junta-se o facto de as rochas locais
(quartzo e quartzito) constituirem uma percentagem muito importante dos restos de talhe.
Tudo se passa, portanto, como se estivéssemos perante um sítio a que os grupos humanos
chegam com uma certa quantidade de equipamento logístico, o qual, à medida que a
ocupação vai decorrendo, vai sendo usado, descartado e substituído por peças sobressalentes
fabricadas localmente a partir de suportes também eles importados. Concomitantemente,
porém, recorre-se à debitagem expedita das rochas disponíveis nas imediações para a
obtenção dos instrumentos de gume cortante necessários à execução da grande maioria das
tarefas domésticas levadas a cabo durante a estada no local. Este padrão é compatível com a
hipótese de os níveis solutrenses da cavidade terem sido formados no contexto de ocupações
relativamente curtas, por grupos de efectivos reduzidos, e com repartição equilibrada entre
tarefas logísticas e domésticas. Ou seja, com a hipótese de corresponderem ao tipo de
ocupações unifamiliares sazonais sugerido pelo modelo de uso do território anteriormente
inferido a partir das características paleogeográficas da região e dos paralelos etnográficos
julgados procedentes. Embora os dados disponíveis para a Buraca Grande sejam também
muito parcelares, eles sugerem que o espólio artefactual dos níveis solutrenses deverá
apresentar uma composição semelhante ao da Gruta do Caldeirão (Aubry, comunicação
pessoal). Nestes dois casos, portanto, tratar-se-á provavelmente de acampamentos-base, mas
de natureza distinta dos representados na generalidade das jazidas de ar livre.
Economia
169
Entre as jazidas interpretadas como acampamentos-base merece também menção especial
a de Vale Almoinha. O valor elevado do rácio «pontas líticas ÷ utensílios domésticos» no
respectivo espólio resulta da inclusão no numerador da fórmula das folhas de loureiro
inacabadas (30 peças) e dos esboços de folhas de loureiro (51 peças) deixados no local após o
termo da ocupação. Contando como pontas líticas apenas as peças acabadas e usadas, o valor
em questão baixaria substancialmente, fixando-se em parâmetros não muito superiores aos
registados na grande maioria das jazidas que foram consideradas como bases residenciais. A
aproximação a estas últimas, aliás, seria ainda mais significativa se se tivesse igualmente em
conta, por um lado, que cerca de 40% das 57 pontas de face plana também correspondiam a
peças obtusas, inacabadas, e, por outro, que a interpretação funcional das folhas de loureiro
não é simples. Em muitos casos, com efeito, poderá tratar-se de peças usadas como facas, o
que, para efeitos do cálculo do acima referido rácio, implicaria um aumento do denominador
e, portanto, uma descida ainda mais acentuada do respectivo valor.
QUADRO 4.7
Variabilidade funcional inter-sítios
Caracterização das ocupações (a)
Contextos logísticos
Oficinas
de talhe
Acampamentos-base
Bivaques
Acampamentos
episódicos
(posições de caça)
Escoural
Pego do Diabo
Salemas
Estrada da Azinheira
Vale Comprido
Buraca Escura ?
Caldeirão ?
Casa da Moura ?
Covão ?
Furninha ?
Fontainhas ?
Salemas
Vascas
Almonda
Buraca Grande ?
Buraca Escura
Caldeirão
Casa da Moura ?
Furadouro ?
Picareiro ?
Salemas
Picos
Vascas
Anecrial ?
Casa da Moura ?
Escoural
Furninha ?
Lapa da Rainha
Ourão ?
Poço Velho ?
Salemas
Suão ?
Baío
Passal
Porto Dinheiro
Rua de Campolide
Vale Comprido
Gravettense
inicial
Gravettense
final
e
Proto-Solutrense
Outros
sítios (b)
Vale de Porcos
Vascas
Aurignacense
Fontesantense
Reservas ou
esconderijos
Casal do Felipe
Fonte Santa
Açude do Alvorão ?
CPM
Cova da Moura ?
Gato Preto ?
Terra do Manuel
Terra do José Pereira
Vales
Vale Comprido
Anecrial
Solutrense
Buraca Grande ?
Caldeirão ?
Casal do Cepo
Olival da Carneira
Vale Almoinha
Magdalenense
Bairrada
CPM
Caldeirão
Cerrado Novo
Olival da Carneira
Bocas ?
Carneira II ?
Pinhal da Carneira ?
Rossio do Cabo ?
Suão ?
Vale da Mata ?
Almonda
Monte da Fainha
Buraca Grande
Cabana da Horta
Carneira I
Picareiro
Vascas
(a) incluíram-se sítios para os quais, apesar de não haver dados quantitativos precisos, a composição das colecções fornece
elementos qualitativos suficientes para uma caracterização funcional minimamente segura; assinalaram-se com um ponto de
interrogação os sítios em que a interpretação é problemática devido ao carácter incompleto ou preliminar das análises
disponíveis, a questões de natureza tafonómica, ou ao carácter truncado (ou cuja representatividade não é possível avaliar com
segurança) dos conjuntos líticos (em particular no caso dos provenientes de escavações antigas)
(b) achados isolados, documentos avulsos em colecções misturadas ou em sítios de contexto deposicional não reconstituído, e
outros sítios sem elementos suficientes para a elaboração de uma proposta de caracterização
170
Economia
Parece assim justificada a caracterização funcional aqui adoptada, a qual corrige até certo
ponto a interpretação que, por contraste com a estação de Vale Comprido - Encosta, se havia
anteriormente (Zilhão 1987a:32-33, Fig. 15) proposto para Vale Almoinha: a de que se
trataria de um possível exemplo de acampamento temporário. Com efeito, embora a estada no
local (que tudo indica ser singular, conforme se depreende das condições de jazida — ver
vol. II, capítulo 36) não tenha certamente sido muito prolongada, a quantidade e a natureza
dos vestígios não parece compatível com a hipótese de se tratar de uma ocupação de carácter
tão fugaz como a documentada no nível proto-solutrense da Lapa do Anecrial, que aqui se
tomou como protótipo da categoria «acampamento episódico». Parece mais lógico admitir,
portanto, que estejamos também, no caso de Vale Almoinha, perante vestígios de uma
ocupação residencial, porventura unifamiliar e de duração limitada a alguns dias ou semanas,
isto é, do tipo das sugeridas pela composição dos palimpsestos solutrenses do Caldeirão. Ou
seja, como se sugeriu já (Zilhão 1992a:157), que sítios como o de Vale Almoinha constituam
o equivalente funcional ao ar livre, em zonas desprovidas de grutas, de jazidas como a da
referida cavidade cársica do vale do Nabão.
Outra jazida cuja classificação funcional não se encontra isenta de uma certa
ambiguidade é a da Cova da Moura, cuja classificação tem de ser acompanhada de fortes
reservas, dada a dimensão reduzida (somente 100 peças) do espólio dela proveniente,
aparentemente contraditória com uma tal caracterização. Deve ter-se em conta, no entanto,
que há diversos indícios que apontam para que esta jazida se encontrasse em posição
secundária, os seus elementos constituintes tendo sido dispersos por uma área considerável,
originando uma densidade de vestígios baixa, em virtude da qual os trabalhos de escavação
foram suspensos ao fim de pouco tempo (ver vol. II, capítulo 24). O facto de se tratar de uma
colecção pequena explica-se assim, em nossa opinião, pela história pós-deposicional da
jazida e não pela natureza da ocupação nela documentada. A estrutura do espólio lítico é,
com efeito, idêntica, no essencial, à das restantes estações de ar livre que foram consideradas
como acampamentos-base, e muito diferente da de todos os contextos logísticos de gruta. O
mesmo se dirá, aliás, do nível solutrense do Olival da Carneira, em que a área escavada
também foi pequena e onde as condições de jazida eram semelhantes às que foram inferidas
para a jazida de Cambelas.
A caracterização da Cova da Moura e de Vale Almoinha como bases residenciais resulta,
portanto, da aplicação do espírito da definição acima proposta, em que os aspectos essenciais
não são nem a área da jazida nem a dimensão da colecção dela proveniente mas sim os que
dizem respeito à representação das diversas fases dos sistemas de produção lítica e à
diversidade das tarefas industriais executadas. De um modo geral, porém, há sempre que ter
em conta uma possível explicação alternativa: a de as características cujo reconhecimento
determina a classificação como acampamento-base serem consequência de estarmos perante
palimpsestos de ocupações penecontemporâneas mas de funcionalidade distinta e que, ao
ficarem homogeneizadas em unidades estratigráficas indivisíveis, dão a impressão de
reflectirem a execução simultânea (e não sequencial ou cíclica, como na realidade teria
acontecido) das diferentes tarefas em questão. Embora esta possibilidade não possa ser
excluída no caso dos sítios de gruta que em certas épocas se considerou terem funcionado
como acampamentos-base, ela já parece de aceitação mais difícil no caso dos sítios de ar
livre. Não havendo, nestes últimos, os constrangimentos espaciais que sempre se verificam
nos sítios de gruta ou de abrigo, seria de esperar, com efeito, que as diferentes ocupações que
eles porventura tivessem conhecido apresentassem uma certa segregação espacial, e que a sua
diferenciação funcional não tivesse ficado completamente obliterada, mesmo em caso de
ocupação repetida e intensa, ou de ocorrência de perturbações pós-deposicionais importantes.
Tendo a maior parte das jazidas de ar livre analisadas neste trabalho sido objecto de
escavações antigas ou, no caso das modernamente escavadas, tendo as áreas afectadas sido,
de um modo geral, relativamente pequenas, a referida possibilidade não pode ser avaliada, no
Economia
171
entanto, com a profundidade necessária. Mesmo assim, é possível dar dois exemplos que
apontam claramente para que uma tal interpretação alternativa deva ser considerada como
pouco verosímil.
O primeiro é o representado pela Fonte Santa, onde a área intervencionada continha três
concentrações bem delimitadas horizontalmente, apesar de as condições de jazida não serem
as melhores, uma vez que o nível arqueológico era relativamente superficial e, por isso, sofria
de perturbações causadas tanto pelas lavras anualmente realizadas no terreno como pela
plantação e arranque de pelo menos uma geração de árvores de fruto. Embora o carácter
simultâneo da ocupação das três áreas tenha sido considerado como constituindo a explicação
mais lógica desta distribuição (ver vol. II, capítulo 11), é igualmente possível que estejamos
antes perante vestígios de três momentos de ocupação sequencial do sítio (pelo mesmo grupo
ou por grupos diferentes). Seja como for, o que é certo é que as três ocupações se revelaram
funcionalmente idênticas e que, portanto, a caracterização do local como tendo servido para a
instalação de acampamentos-base não pode ser questionada com base em argumentos como o
apresentado no parágrafo anterior. O segundo exemplo é o representado pelos níveis
magdalenenses da estação de Cabeço de Porto Marinho. Neste caso, foi possível demonstrar
(nomeadamente pelas datações 14C) que, ao contrário do que provavelmente terá acontecido
na Fonte Santa, os diversos loci da referida época que foram escavados na jazida
correspondiam a núcleos de ocupação claramente diferenciados no tempo. Também aqui,
porém, não se tratava de ocupações sucessivas de funcionalidade complementar ou, pelo
menos, distinta, e que, caso os respectivos espólios tivessem sido misturados, podiam ter
dado origem a uma colecção com as características acima consideradas como definidoras dos
sítios de tipo acampamento-base. Pelo contrário, cada um desses núcleos de ocupação
apresentava espólios líticos cuja composição, do ponto de vista funcional, era, tal como
sucedia na jazida de Torres Novas, no essencial idêntica (conforme se pode constatar, para os
níveis do Magdalenense superior de CPM IIIS e CPM IIIT, pela simples consulta do Quadro
4.4 e das Figs. 4.11-4.12).
Embora os dados existentes sejam escassos e de qualidade muito variável, estes dois
exemplos servem ainda para ilustrar o facto de tudo indicar que, mesmo no caso dos sítios
que poderão ter sido simultaneamente ocupados por mais do que uma unidade familiar (como
o da Fonte Santa), as áreas afectadas por essa ocupação terão sido relativamente pequenas. O
mesmo parece acontecer também no que diz respeito a cada um dos episódios de ocupação
identificados em sítios de ar livre utilizados de forma recorrente (como o de Cabeço de Porto
Marinho). É possível que estas reduzidas dimensões dos sítios residenciais indiquem que a
duração das estadas dos grupos nos diversos pontos do território em que estabeleciam os seus
acampamentos tendessem a ser, de um modo geral, pouco prolongadas, ou seja, que as
mudanças de acampamento fossem frequentes. A ser assim, teríamos aqui mais um paralelo
com os padrões de comportamento verificados na Terra do Fogo. Com efeito, a não ser em
casos excepcionais (cerimónias, festas, agregação junto a baleias varadas nas praias), as
famílias de caçadores Selk'nam «rara vez permaneciam mais de uma semana num mesmo
sítio» e bastava o facto de matarem três guanacos para que «imediatamente a sua choça fosse
trasladada para o local de abate, o que era mais fácil do que transportar a carne para o
acampamento» (segundo Gallardo, citado por Chapman 1986:38, 41).
A classificação de uma determinada jazida como acampamento-base não acarreta, assim,
qualquer pressuposto relacionado com a duração da estada, que tanto pode ter sido de alguns
dias como de várias semanas. Em certos casos, como o do Gato Preto, a análise dos contextos
sugere inclusivamente ocupações bastante efémeras, razão pela qual a sua inclusão nesta
categoria teve de ser acompanhada das necessárias reservas (Quadro 4.7). A confirmarem-se
os indícios de mobilidade relativamente elevada (pelo menos quando comparada com a dos
caçadores etnograficamente documentados das regiões subárcticas) dos grupos humanos do
172
Economia
Paleolítico Superior da Estremadura, a jazida do Gato Preto, aliás, pode ser considerada
precisamente como termo de transição no continuum que necessariamente deverá então
existir entre a categoria de acampamento-base e a categoria de «acampamento episódico»
inspirada nas características da ocupação proto-solutrense da camada 2 da Lapa do Anecrial.
Conforme se argumentou a propósito do respectivo estudo monográfico (ver vol. II, capítulo
10), tudo indica, com efeito, que essa ocupação deverá corresponder a uma estada muito
curta, provavelmente uma noite apenas. Por outro lado, a área da cavidade que continha estes
vestígios não tinha sido objecto de qualquer outra utilização, embora houvesse indícios da
subsequente frequentação humana de áreas adjacentes. Trata-se, portanto, de um tipo de
jazida muito diferente do representado, por exemplo, pela Gruta de Salemas, embora a quase
ausência de utensílios domésticos no espólio (em particular de raspadeiras) indique um
espectro de actividades industriais muito limitado, provavelmente relacionado em exclusivo
com a reparação do equipamento de caça. Deste modo, se o Gato Preto pode ser tido como
termo de transição entre o acampamento-base e o acampamento episódico, não é impossível
que a ocupação proto-solutrense da Lapa do Anecrial corresponda afinal, por seu lado, a um
termo de transição entre esta última categoria e a do bivaque logístico.
Por outro lado, com excepção da Lapa do Anecrial, a categoria dos acampamentos
episódicos apenas contem jazidas magdalenenses (Quadro 4.7). A principal diferença que as
ocupações nela incluídas apresentam quando comparadas com as que foram classificadas
como acampamentos-base é a que diz respeito às percentagens relativamente elevadas de
armaduras, nalguns casos (Carneira II, Pinhal da Carneira, Rossio do Cabo) acompanhadas de
valores elevados do Índice de Produção de Barbelas. Em nenhuma destas três estações,
porém, o rácio «barbelas ÷ utensílios domésticos» atingia valores tão elevados como em Vale
da Mata. Este facto é de interpretação problemática, podendo aventar-se, por exemplo, a
hipótese de estar relacionado com questões de tradição: enquanto na época representada por
esta última jazida os suportes destinados a funcionar como barbelas seriam retocados de
forma sistemática (sendo portanto reconhecíveis enquanto tal), naquelas três jazidas do
Magdalenense final essa função podia ter sido desempenhada, em parte, por suportes brutos
(não reconhecíveis enquanto barbelas, e implicando um deflacionamento dos valores do
referido rácio). No entanto, se a comparação for restringida aos contextos que se presume
terem sido penecontemporâneos de Vale da Mata (os do Magdalenense superior de Cabeço
de Porto Marinho), isto é, se o factor cronológico-cultural for eliminado, a diferenciação
mantém-se: de um lado, um conjunto com percentagens muito elevadas de armaduras
microlíticas de dorso; do outro, conjuntos em que essas percentagens são relativamente
baixas. Diferenciação que, note-se, também não seria afectada, nem na forma nem no
conteúdo, se considerássemos que os buris, ao invés do que se concluiu no capítulo 3 deste
volume, não são na realidade núcleos mas sim utensílios.
À primeira vista, parece claro, portanto, que também no Magdalenense existirá, pelo
menos em algumas das suas fases, uma diferenciação real entre contextos com muitas
armaduras e contextos com poucas armaduras. Ao contrário do que se passa nas épocas
anteriores, os primeiros, porém, não parecem caracterizar-se nunca por um fraccionamento
marcado das cadeias operatórias. Todas as jazidas, mesmo as de gruta, parecem agora conter
não só armaduras mas também, tal como acontecia no nível proto-solutrense da Lapa do
Anecrial, núcleos, restos de debitagem lamelar realizada localmente, e utensílios domésticos.
É preciso ter em conta, porém, que se trata de contextos que, do ponto de vista tafonómico,
são muito distintos deste último, pelo menos no caso de Vale da Mata, que é o que de forma
menos ambígua se individualiza em relação a todos os restantes, devido à muito elevada
quantidade de armaduras microlíticas de dorso que continha o respectivo espólio. Dada a área
da mancha de dispersão dos vestígios, por um lado, e o tamanho da colecção, por outro, esta
classificação da jazida de Cambelas só pode ser aceite, portanto, se se admitir estarmos
perante um palimpsesto de múltiplas ocupações funcionalmente idênticas, todas elas com
Economia
173
características semelhantes às do Anecrial, isto é, em que a produção e reparação do
equipamento de caça teria constituído a actividade industrial dominante, senão mesmo
exclusiva. Um tal uso repetido poderia explicar-se como consequência da importância que ao
longo das gerações terá mantido um recurso fixo existente no sítio, recurso que seria o
principal responsável da atracção exercida pelo local sobre os grupos de caçadores do
Magdalenense superior em deslocação pelos terrenos da margem esquerda do estuário do
Sizandro: a nascente que existe na base da encosta em que se localiza a estação.
Uma explicação deste tipo poderia ser válida igualmente no caso da Lapa do Suão, onde,
apesar de não haver contagens disponíveis, a impressão que resulta da análise das colecções
provenientes das escavações antigas (ver vol. II, capítulos 34 e 45) é também a de que as
barbelas retocadas são claramente mais numerosas do que os utensílios domésticos. Já no
caso do Rossio do Cabo, porém, as indicações disponíveis acerca das condições de jazida dos
materiais apontam para que estejamos perante uma ocupação única (ver vol. II, capítulo 50).
E, no que respeita a Carneira II e ao Pinhal da Carneira, também não se vê qual poderá ter
sido o atractivo especial dos pontos exactos em que se situam as duas concentrações e que
teria determinado essa eventual reutilização sucessiva. Tudo indica, aliás, que a zona de
Carneira deverá corresponder antes a uma extensa jazida arqueológica de características
semelhantes à de Cabeço de Porto Marinho, ou seja, em que houve uma utilização prolongada
mas intermitente, originando uma diferenciação horizontal das sucessivas ocupações, cada
uma das quais tendo mantido uma certa individualização espacial. Admitindo que assim é, ou
seja, admitindo que estamos perante vestígios de ocupações singulares e não de palimpsestos
de ocupações múltiplas, a dimensão das colecções e a intensidade da ocupação (sugerida,
pelo menos no caso do Rossio do Cabo, pela forte antropização dos sedimentos) não são
compatíveis com o conceito de acampamento episódico. Os vários contextos magdalenenses
que no Quadro 4.7 e na Fig. 4.13 foram reunidos sob esta categoria estariam bastante mais
próximos, portanto, dos acampamentos-base que se identificaram no Cerrado Novo ou no
Caldeirão do que do tipo de ocupação representado pelo nível proto-solutrense da Lapa do
Anecrial.
Deste modo, a diferenciação das jazidas magdalenenses em agrupamentos definidos com
base na composição das indústrias líticas parece ser muito menos evidente do que nos outros
períodos do Paleolítico Superior. É possível, aliás, encontrar argumentos suplementares em
favor da posição segundo a qual a validade de uma tal diferenciação terá de ser encarada com
muitas reservas, sobretudo se se tiver em conta que o factor decisivo da variabilidade
registada é o relacionado com as barbelas. Até que ponto a quantidade em que estas últimas
são recolhidas nas jazidas é directamente comparável com a dos utensílios domésticos é, de
facto, uma questão controversa. A própria natureza deste tipo de artefactos é propícia à
criação de situações em que o abandono de quantidades grandes se dá de forma concentrada e
bastante localizada, quer no tempo (no quadro de episódios de reparação intensiva do
equipamento de caça, por exemplo), quer no espaço (nas áreas em que essa reparação tenha
sido realizada por um indivíduo ou grupo de indivíduos), e é, portanto, susceptível de induzir
variações bastante aleatórias da respectiva frequência. Por outro lado, deve notar-se que em
nenhuma das quatro jazidas magdalenenses de gruta ou abrigo (ou seja, com preservação da
matéria orgânica) até ao momento conhecidas em Portugal se acharam pontas ósseas em
quantidades significativas. Se admitirmos que tais pontas desempenhariam, nesta época, um
papel equivalente ao das pontas líticas das indústrias solutrenses, seremos então obrigados a
concluir que não há verdadeiramente, durante o Magdalenense, contextos de gruta em que a
componente logística predomine de forma clara sobre a residencial. Assim sendo, não parece
muito lógico, portanto, admitir que isso pudesse ter acontecido nas jazidas de ar livre (em que
o problema só pode ser avaliado a partir da variação na frequência das barbelas). Conclusão
que, aliás, é reforçada substancialmente pela constatação de que os contextos logísticos do
Gravettense identificados na Casa da Moura e em Salemas se caracterizam por, além de
174
Economia
pontas e barbelas líticas, também terem bastantes zagaias em osso e haste de cervídeo (ver
vol. II, capítulos 12 e 25), pelo que não se pode contra-argumentar que a respectiva raridade
nos contextos magdalenenses de gruta seria apenas manifestação do carácter marginal que a
indústria óssea eventualmente teria tido, de um modo geral, em todos os sistemas
tecnológicos do Paleolítico Superior português.
A assimilação de certos contextos magdalenenses à categoria de acampamento episódico
resulta portanto de um paralelismo com o nível proto-solutrense da Lapa do Anecrial que é
mais formal do que real. Tudo indica, com efeito, que, em relação aos indicadores aqui
considerados, as jazidas do final do Paleolítico Superior devam ser consideradas como um
continuum em que qualquer separação é arbitrária.
4.4.4. Variação diacrónica
A Fig. 4.13 resume, sob a forma de distribuição geográfica classificada por tipos de sítios e
períodos cronológicos, os resultados da análise funcional dos conjuntos líticos. Da sua
consulta resulta, em primeiro lugar, a constatação de que, durante o máximo glaciário, essa
distribuição parece corresponder de forma praticamente perfeita às expectativas decorrentes
do modelo teórico anteriormente proposto. Tanto a Bacia Terciária do Tejo como as terras
baixas da orla costeira apresentam vestígios importantes de povoamento nas regiões que
foram objecto de trabalhos de prospecção. Os sítios em causa podem caracterizar-se, na
generalidade dos casos, como de tipo residencial, e as ocupações de natureza logística estão
representadas pelo uso esporádico de pequenas cavidades localizadas nos afloramentos
calcários de baixa altitude (embora, nalguns casos, a verdadeira natureza dessas ocupações
tenha de ser considerada como sujeita a dúvida, dado tratar-se de contextos que foram
objecto de escavações antigas de que, muitas vezes, apenas chegaram até nós documentos
avulsos). Na periferia do Maciço Calcário Estremenho, porém, surgem algumas grutas de
maiores dimensões em que há níveis solutrenses cujos espólios líticos indiciam ocupações
residenciais por grupos pequenos e durante períodos limitados. As jazidas do Picareiro e do
Anecrial, por seu lado, documentam a frequentação humana do alto da Serra de Aire e do
Planalto de Santo António, porventura no quadro de expedições logísticas ou de viagens entre
o Tejo e a costa seguindo rotas que atravessavam as terras altas.
O padrão revelado pelos mapas correspondentes ao Aurignacense e ao Gravettense
inicial, períodos em que o número de sítios conhecidos é bastante mais reduzido, parece, à
primeira vista, significativamente diferente. Conforme se alertou já no capítulo 2 deste
volume a propósito da região de Rio Maior, é necessário ter em conta, porém, a possibilidade
de essa diferença poder ser uma consequência das condições menos favoráveis à preservação
de jazidas de ar livre que devem ter existido no início do estádio isotópico 2. Alerta que será
necessário levar em consideração também no que respeita às regiões costeiras, onde, apesar
de desconhecido ao ar livre, o Paleolítico Superior inicial está documentado, embora com
reservas, através da ponta de la Gravette da Furninha e do conjunto formado pela indústria
óssea da Casa da Moura (cuja cronologia exacta, porém, se encontra ainda sujeita a
confirmação). O achado avulso de outras duas gravettes em grutas situadas na Serra de
Montejunto (Covão e Furadouro) permite, por seu lado, tal como o contexto «perigordense»
de Salemas, documentar a frequentação das regiões mais elevadas dos maciços calcários. Não
há assim, pelo menos de momento, quaisquer indícios seguros de que o povoamento do
Paleolítico Superior inicial tenha sido substancialmente diferente do sugerido pela
distribuição das jazidas do período correspondente ao máximo da última glaciação, pelo
menos no que diz respeito aos aspectos relacionados com a extensão geográfica do sistema.
Economia
175
Fig. 4.13 - Distribuição geográfica e funcionalidade (baseada na composição dos espólios líticos) dos sítios do
Paleolítico Superior. A existência de oficinas de talhe nas fases iniciais e a ausência de bivaques logísticos no final
podem resultar de modificações nas estratégias de povoamento ou no modo de circulação dos recursos líticos. Os
«acampamentos episódicos» do Magdalenense devem corresponder a extremos de uma variação contínua em que a
circulação da matéria-prima sob a forma de núcleos impede a diferenciação entre sítios residenciais e logísticos.
176
Economia
O mesmo se dirá, aliás, do Magdalenense. Em trabalhos anteriores (Zilhão 1987a:46),
tinha-se discutido, com base na localização das estações então conhecidas, a hipótese de o
povoamento desta época se ter concentrado na orla costeira, talvez como consequência de um
eventual acréscimo do peso assumido pela exploração dos recursos aquáticos na economia de
subsistência. Já nessa altura, porém, se teve o cuidado de rodear essa sugestão das maiores
reservas, baseadas no carácter muito insuficiente dos dados à nossa disposição. Reservas que,
note-se, são reforçadas por algumas descobertas recentes. A jazida da Bairrada, por exemplo,
mostra que as terras baixas da margem norte do Tejo continuaram a ser ocupadas durante esta
época. A Lapa do Picareiro, por seu lado, prova a persistência de uma frequentação humana
dos pontos mais elevados dos maciços calcários até ao Holocénico inicial, época que está
também representada na Gruta do Casal Papagaio, situada perto de Fátima, em pleno coração
do Planalto de São Mamede. Os resultados dos trabalhos arqueológicos realizados nesta
última jazida (Arnaud e Bento 1988) sugerem, aliás, que não deverá ter sido senão a partir de
10 000 BP que a exploração dos recursos aquáticos se começou a revestir de uma importância
acrescida, que não tinha nem no Solutrense nem no Magdalenense. E a descoberta de que o
vale do Côa conheceu uma importante ocupação humana até ao final do Magdalenense
(Zilhão et al. 1995a) confirma sem margem para dúvidas, por seu lado, que o interior da
Península, apesar da falta de acesso aos recursos costeiros, continuou a ser habitável, e
habitado, ao longo de todo o Tardiglaciar.
Não parece, assim, que haja, ao longo do Paleolítico Superior, uma variação diacrónica
significativa relacionada com a intensidade da frequentação e da exploração das várias sub-regiões geográfica e ecologicamente diferenciáveis no interior da Estremadura. Isso não
significa necessariamente, porém, que não tenha havido variação quanto ao modo como os
grupos humanos circulavam pelo território de forma a adquirir os recursos de que dependia a
sua subsistência. No que respeita ao Magdalenense, por exemplo, parece deixar de haver
sítios logísticos ou, pelo menos, parece que deixa de ser possível diferenciar de forma clara
os sítios logísticos dos sítios residenciais. E, no que respeita ao Paleolítico Superior inicial, as
jazidas conhecidas parecem obedecer a uma dicotomia bastante pronunciada, opondo sítios
de ar livre com características de oficina de talhe, de um lado, e sítios de gruta com
características de bivaque logístico, de outro, sem que se encontrem documentadas estações
que correspondam à definição de acampamento-base que aqui foi utilizada.
No caso do Magdalenense, é inteiramente concebível que essas diferenças se relacionem,
de facto, com a ocorrência de modificações importantes no sistema de povoamento e de
subsistência. Os elementos de informação de que dispomos apontam para o desenvolvimento
de uma paisagem mais fechada e, nomeadamente, para a colonização dos maciços calcários
pela floresta mediterrânica. Em consequência, espécies animais como a cabra-montês, a
camurça e o cavalo devem ter deixado de habitar a região estremenha, pelo menos a avaliar
pela sua ausência nos níveis magdalenenses da Gruta do Caldeirão, nos quais a estratégia
adoptada para fazer face a essa transformação na estrutura dos recursos cinegéticos parece ter
sido a de, por um lado, intensificar a caça dos cervídeos e, por outro, incrementar de forma
muito significativa a exploração dos lagomorfos, em particular do coelho, cujos restos são
muito abundantes nesses níveis (Zilhão 1987a, 1992a). Não é de excluir, portanto, que, num
cenário deste tipo, a mobilidade residencial se tenha tornado bastante mais elevada do que
anteriormente, e que o sistema de povoamento tenha começado a pender de forma acentuada
para o polo «forrageador» da variabilidade conhecida entre os caçadores-recolectores actuais
(Binford 1980), por contraste com a situação vigente durante o Solutrense, em que estaria
mais próximo do polo «colector». As diferentes ocupações tenderiam naturalmente, a ser
assim, para uma segregação muito menos marcada entre tarefas domésticas e logísticas, o que
explicaria a raridade dos contextos magdalenenses com percentagens elevadas de armaduras
(pontas ósseas e barbelas líticas) e o facto de os poucos que se encontram nessas condições
parecerem não representar senão um dos extremos de uma distribuição unimodal.
Economia
177
Já no que respeita ao Paleolítico Superior inicial, porém, uma explicação deste tipo
parece ser de aceitação bastante mais difícil, uma vez que a inexistência de acampamentos-base não pode corresponder, obviamente, a um reflexo genuíno da realidade passada. Essa
inexistência obriga, portanto, à busca de formas alternativas de explicar o padrão observado.
A hipótese que, naturalmente, surge em primeiro lugar, é a de que a imagem dos sistemas de
povoamento do Aurignacense e do Gravettense inicial que chegou até nós se encontre
severamente truncada, faltando na amostra de jazidas actualmente existente pelo menos uma
categoria inteira de sítios. É igualmente concebível, no entanto, que as definições de
acampamento-base e de oficina de talhe que se utilizaram neste estudo não sejam as mais
adequadas à apreensão do verdadeiro significado da composição dos espólios líticos das
jazidas de ar livre destas épocas.
Até que ponto a primeira alternativa corresponde efectivamente à realidade só poderá ser
esclarecido, porém, quando mais sítios forem descobertos. No caso do Aurignacense, por
exemplo, seria necessário que fossem descobertas jazidas em que tivessem sido abandonados
utensílios de suporte laminar (ou lâminas brutas) em quantidade desproporcionadamente
superior à que seria de esperar tendo em conta a dimensão da amostra de núcleos. Jazidas
com essas características, em particular se situadas a distância importante das fontes de
matéria-prima, constituiriam o equivalente residencial de jazidas logísticas como a do Pego
do Diabo, onde foram abandonadas barbelas retocadas não fabricadas localmente, e
validariam a caracterização dos sítios de ar livre actualmente conhecidos na região de Rio
Maior como correspondendo efectivamente a oficinas de talhe. Para que estas existam, é
necessário, de facto, que existam igualmente sítios que lhes sejam complementares do ponto
de vista funcional, nos quais tenha sido usado e abandonado o material delas exportado. Isto
é, que estejamos perante uma economia da pedra em que a matéria-prima circula sob a forma
de suportes ou de utensílios acabados, e não sob a forma de nódulos brutos ou de núcleos pré-formados, implicando uma marcada segregação espacial entre produção e consumo. Sendo já
conhecidos locais quase exclusivamente dedicados à produção, e locais em que apenas se
verifica o consumo de armaduras, falta a descoberta de locais em que haja fundamentalmente
consumo de utensílios domésticos para que se possa considerar como provado ter sido
efectivamente desta forma que se encontrava organizado o sistema de produção lítica do
Aurignacense (e, portanto, com toda a probabilidade, também o do Gravettense inicial).
A interpretação alternativa é a que consiste em considerar como bases residenciais os
sítios que até aqui temos vindo a definir como oficinas de talhe. Para que essa interpretação
pudesse ser aceite, haveria que admitir que, na realidade, uma boa parte das lascas e lâminas
brutas de debitagem teriam sido usadas como utensílios não retocados, o que implicaria uma
diminuição considerável dos valores do rácio «núcleos ÷ utensílios domésticos». No caso de
Vale de Porcos I, por exemplo, a contagem como utensílios domésticos das 77 lâminas sem
córtex e de secção trapezoidal existentes no espólio (que podemos supor terem sido usadas
como facas) faria descer de 6,00 para apenas 1,76 o valor do referido rácio. Mesmo tendo em
conta que a adopção de critério semelhante acarretaria também uma diminuição dos valores
apurados para os contextos considerados como residenciais, não há dúvida, assim, que Vale
de Porcos I se aproximaria destes últimos de forma apesar de tudo muito significativa (a
título de comparação, o valor que se obteria para o nível médio do locus III de Cabeço de
Porto Marinho seria de 1,04, e o do Gato Preto manter-se-ia, inalterado, em 1,57). Já no caso
das duas jazidas gravettenses de Vale Comprido (Barraca e Cruzamento), a correcção dos
valores do Índice de Produção a que se chegaria mediante a aplicação desse critério seria, no
entanto, praticamente insignificante — de 3,56 para 2,87 no caso da primeira, e de 3,94 para
3,55 no caso da segunda. Tanto no caso das jazidas aurignacenses como no das gravettenses
continuariam por explicar, por outro lado, as muito baixas produtividades aparentes dos
núcleos, as quais, aliás, não sofreriam em termos comparativos qualquer alteração importante
178
Economia
Fig. 4.14 - Factores que condicionam a variabilidade funcional inter-sítios na sua dimensão diacrónica. Tendo em
conta os critérios adoptados neste estudo (baseados exclusivamente na composição dos espólios líticos), a
ocorrência de modificações no sentido do polo «forrageador» das estratégias de povoamento e de subsistência,
pode ser responsável, por exemplo, pela ausência, no Magdalenense, de contextos classificáveis como logísticos.
Essa mesma ausência, porém, pode dever-se apenas às mudanças ocorridas na tecnologia lítica, a miniaturização
da utensilagem dando origem a economias da pedra baseadas na circulação de nódulos e núcleos, nas quais, em
consequência, o fraccionamento espacial das cadeias operatórias é muito menos marcado do que nos sistemas de
produção lítica característicos das épocas precedentes.
se integrássemos no denominador do índice os suportes alongados transformados em
utensílios, que não correspondem, nestes contextos do Paleolítico Superior inicial, a
proporções do total de lâminas e lamelas significativamente diferentes das apuradas para os
de épocas mais recentes.
No estado actual da questão, parece, portanto, que a primeira alternativa deverá ser a
mais correcta. Ou seja, o sistema de povoamento do Paleolítico Superior inicial terá sido, no
essencial, idêntico ao do Solutrense, ou seja, terá assentado numa polarização entre sítios
logísticos e sítios residenciais, devendo a existência de oficinas de talhe (tipo que não está
documentado, pelo menos até ao momento, no Solutrense) ser atribuída a causas relacionadas
com o funcionamento do subsistema tecnológico. Assim sendo, torna-se necessário colocar a
questão de saber se não será também no domínio deste subsistema, e não no das estratégias
de povoamento e subsistência, que residirá a explicação do carácter bastante menos
polarizado que apresenta a variabilidade funcional dos espólios líticos magdalenenses. Em
vez de determinada em última análise pelas transformações ambientais decorrentes do
arranque precoce do processo de deglaciação na fachada atlântica da Península, essa situação
podia, na realidade, ter decorrido simplesmente da adopção de um sistema tecnológico mais
flexível, de tal modo que a diferenciação funcional das ocupações e das jazidas, embora real,
teria deixado de se manifestar de forma evidente na composição dos conjuntos líticos.
As indústrias magdalenenses distinguem-se de forma clara das suas antecessoras pela
miniaturização acentuada da utensilagem (ver capítulo 5 deste volume): o equipamento de
caça passa a ser constituído quase exclusivamente por pontas em madeira ou osso armadas de
pequenas barbelas de suporte lamelar, muitas vezes de dimensões pigmeias; e os utensílios
domésticos deixam de ser fabricados sobre lâmina, correspondendo, de um modo geral, a
peças sobre lasca cujo pequeno tamanho sugere uma utilização como parte activa de
ferramentas compósitas, com cabo de osso ou de madeira. Num sistema deste tipo, é
perfeitamente concebível que a independência em relação às fontes de matéria-prima lítica
tenha aumentado de forma considerável, razão pela qual se não justificariam as ocupações
especializadas em tarefas extractivas; e, simultaneamente, que deixasse de fazer sentido o
Economia
179
transporte de material sobressalente sob a forma de suportes destinados a acabamento futuro,
ou a sua acumulação em reservas ou esconderijos. A circulação da matéria-prima pode fazer-se de modo muito mais eficiente, com efeito, sob a forma de pequenos blocos debitados à
medida das necessidades e nos mais diferentes contextos situacionais. Deste modo, as cadeias
operatórias de produção e utilização de barbelas apareceriam aos nossos olhos como
completas, e haveria sempre lugar ao abandono de núcleos, mesmo no quadro de ocupações
em que as tarefas de natureza logística tivessem sido predominantes.
Vistas as coisas deste modo, a variação diacrónica evidenciada pelo Quadro 4.7 e pela
Fig. 4.13 poderia ser explicada muito simplesmente como resultado das transformações
ocorridas nas economias da pedra praticadas pelos grupos de caçadores que habitaram a
Estremadura portuguesa ao longo dos vinte mil anos que durou o Paleolítico Superior,
produzindo uma sequência em que seria possível discriminar três momentos bem
caracterizados. O primeiro (tipificado pelo Aurignacense), corresponderia a um sistema em
que a matéria-prima teria circulado essencialmente sob a forma de suportes. O segundo
(tipificado pelo Solutrense), corresponderia a um sistema em que a matéria-prima teria
circulado tanto sob a forma de suportes como sob a forma de nódulos brutos e de núcleos pré-formados. O terceiro (tipificado pelo Magdalenense), corresponderia a um sistema em que a
matéria-prima teria circulado sobretudo sob a forma de nódulos ou de núcleos pré-formados.
Parece mais razoável, no entanto, admitir, em conformidade com o esquema da Fig. 4.14,
que a diferenciação funcional dos sítios tenha de ser considerada como decorrendo de
processos relacionados com os dois subsistemas: o da economia de subsistência, por um lado,
e o da tecnologia, em particular a tecnologia lítica, por outro. O facto de as sequências
culturais do Paleolítico Superior do Sudoeste europeu apresentarem um paralelismo notável,
apesar da diversidade ecológica importante que terá existido nestas regiões durante a última
glaciação, sugere, porém, que o subsistema tecnológico terá evoluído de forma relativamente
independente, e que não deve ter havido nenhuma relação directa de causa-efeito entre as
transformações eventualmente ocorridas ao nível da subsistência e as mudanças verificadas
nos sistemas de produção lítica. Torna-se assim ainda mais importante, por maioria de razão,
averiguar a parte que caberá a cada qual na variação diacrónica da tipologia dos sítios que
parece observar-se na Estremadura portuguesa entre o princípio e o fim do período. Neste
estudo, quase só pudemos dispor de indicadores relacionados com o subsistema tecnológico.
A verificação das hipóteses aqui avançadas depende agora, em grande medida, da aquisição
de dados relacionados com a economia de subsistência, nomeadamente quanto à sazonalidade
das ocupações e aos padrões de variação inter-sítios que eventualmente tenham existido no
que respeita à natureza dos recursos explorados.
5. SEQUÊNCIA CULTURAL
No presente capítulo caracterizar-se-ão, pela ordem cronológica anteriormente apresentada
(ver capítulo 3, Quadro 3.1), os diferentes momentos da sequência cultural-estratigráfica do
Paleolítico Superior português. Do Quadro 3.1 consta igualmente a listagem dos contextos
arqueológicos atribuíveis a cada um desses momentos, enquanto a localização geográfica das
jazidas, classificadas segundo critérios funcionais, pode ser encontrada na Fig. 4.13 do
capítulo 4.
A definição sumária a que se pretende chegar assentará na consideração de quatro
vectores: economia da pedra; produção de suportes alongados; fabricação de armaduras;
fósseis directores. No que diz respeito ao primeiro, deve ter-se em conta o alerta já expresso
na introdução metodológica aos estudos monográficos compilados no vol. II: a reconstituição
dos sistemas de produção lítica foi realizada mediante a técnica da «remontagem mental»
(Pelegrin 1986) e, portanto, fornece uma imagem média da realidade, empobrecida dos casos
particulares, que não deve ser entendida como esgotando o repertório das soluções técnicas
utilizadas pelos artesãos das diversas épocas. Como é natural, a natureza generalizadora das
reconstituições propostas acentua-se ainda mais quando, como acontece no presente capítulo,
se passa do estudo dos conjuntos líticos em si mesmos para um nível de análise mais
abstracto, em que desses conjuntos, agrupados cronologicamente, se procuram deduzir os
elementos comuns que, pela sua recorrência, podem ser considerados como exclusivamente
dependentes da tecnologia de base, não afectados pela influência de factores situacionais.
Essa abordagem global permite por outro lado, no contexto das conclusões a que se
chegou nos capítulos anteriores, diferenciar as fácies funcionais das cronológicas, em
particular através da identificação de situações de complementaridade indiciadoras da
existência de sistemas complexos e polimórficos em que as diferentes cadeias operatórias
podem estar fraccionadas espacialmente. Finalmente, deve ainda ter-se em conta que, tal
como se fez aquando da análise monográfica dos diversos conjuntos, também neste caso se
deve subentender que as reconstituições feitas se referem à exploração do sílex. As
estratégias seguidas no que respeita às outras matérias-primas serão abordadas apenas na
medida em que estas últimas desempenhem um papel industrialmente relevante.
5.1. Aurignacense
5.1.1. Cronologia
O único contexto atribuível ao Aurignacense para o qual existem dados cronométricos é o da
camada 2 da Gruta do Pego do Diabo (ver vol. II, capítulo 7), onde se obtiveram, a partir de
amostras constituídas por fragmentos de ossos de grandes mamíferos, duas datações 14C
convencionais. Conforme se argumentou a propósito do estudo monográfico da jazida, o
resultado da amostra proveniente da base da camada — 28 120 -780
+860 BP (ICEN-732) — pode
ser considerado como uma boa medida da idade do contexto arqueológico em questão. Dele
se depreende, por conseguinte, que a ocupação aurignacense da cavidade terá tido lugar entre
≈27 000 e ≈29 000 BP. Os materiais avulsos recolhidos nas outras duas ocupações de gruta
atribuíveis ao Aurignacense (Salemas e Escoural) são tipologicamente idênticos aos do Pego
do Diabo, não havendo, assim, quaisquer razões para supor que a sua idade seja diferente.
182
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.1 - Sistema de exploração do sílex reconstituído a partir da análise dos espólios aurignacenses.
5.1.2. Fácies
Estes três contextos de gruta diferenciam-se claramente dos de ar livre (Vascas e Vale de
Porcos). Nos primeiros apenas está representada a fase final das cadeias operatórias do sílex
(abandono de utensílios importados), enquanto nos segundos, situados junto a fontes de
matéria-prima, as actividades de talhe estão orientadas para a produção maciça de suportes
destinados a exportação.
Conforme se argumentou no capítulo 4, essa diferenciação é seguramente de carácter
funcional, pelo que a interpretação mais parcimoniosa dos dados é a de que os dois conjuntos
de jazidas devem representar poses situacionais distintas de um sistema tecnológico único. A
ser assim, estaremos perante contextos de deposição penecontemporânea, os de gruta
constituindo exemplos das ocupações de tipo logístico em que seriam usados e descartados
alguns dos utensílios (neste caso, barbelas líticas para pontas de osso ou madeira) fabricados
sobre os suportes produzidos nos de ar livre. A atribuição a estes últimos de uma cronologia
tardia, idêntica à obtida para o Pego do Diabo, está em conformidade, aliás, com os
paralelismos industriais marcados que resultam da comparação dos conjuntos líticos de Vale
de Porcos com os do Aurignacense recente da região franco-cantábrica (ver capítulo 6).
5.1.3. Economia da pedra
O sistema de exploração do sílex documentado pelas jazidas aurignacenses conhecidas até ao
momento é o que se procurou esquematizar na Fig. 5.1. Os volumes de matéria-prima eram
inicialmente conformados como núcleos prismáticos mediante descorticamento e extracção
de lâminas de crista e, seguidamente, eram explorados a partir de um eixo de debitagem
único. A preparação dos planos de percussão era, de um modo geral, feita por abrasão da
cornija, embora por vezes se recorresse igualmente à facetagem. Nas peças que apresentavam
vestígios da exploração de planos de percussão opostos, essa exploração era feita de forma
sequencial, não alternada. O uso de percutores moles em fase plena da debitagem é sugerido
pela reduzida dimensão dos talões e, também, pelo facto de uma percentagem elevada (77%)
das lâminas sem córtex e de secção trapezoidal, extraídas em fase plena da debitagem, ter
talão labiado.
Sequência cultural
183
Fig. 5.2 - Dimensões e características técnicas do conjunto das lâminas e lamelas de Vale de Porcos, e sua
comparação com o material equivalente das outras colecções do Paleolítico Superior estremenho. Note-se, além da
largura média claramente superior do conjunto aurignacense, o carácter mais afilado e mais robusto dos suportes
lamelares nele incluídos, sugerindo que uma sua parte significativa poderá corresponder, na realidade, a «resíduos
de golpe de buril» não reconhecíveis como tal.
A obtenção de suportes de proporções laminares constituía o objectivo final das
sequências de debitagem dos núcleos prismáticos, conforme indicado pelo facto de a largura
média do conjunto das lâminas e lamelas de Vale de Porcos ser de cerca de 2 cm, e de ser de
85% a percentagem do total de suportes alongados que são lâminas (Fig. 5.2). No contexto da
argumentação anteriormente expendida acerca do significado tecnológico dos buris desta
jazida (ver capítulo 3), a produção de lamelas devia ser assegurada sobretudo através da
debitagem desse tipo especial de núcleos, conforme se depreende do facto de os «resíduos de
golpe de buril» serem uma vez e meia mais numerosos do que as lamelas extraídas de núcleos
prismáticos, e de a quantidade de buris ser duas vezes e meia superior à dos núcleos «para
lamelas» (ver vol. II, capítulo 4).
184
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Os suportes dos buris eram seleccionados de entre as lascas e lâminas da fase inicial de
descorticamento e conformação, as quais serviram também como suporte preferencialmente
usado na fabricação de diversas categorias de utensílios domésticos. Os suportes laminares de
debitagem plena não exportados devem ter sido utilizados sobretudo como facas (utensílios
de gume lateral). A ausência de peças retocadas sobre lamela aponta para que este tipo de
suportes tenha sido usado em bruto ou objecto de exportação sistemática. Parece legítimo
supor, assim, que as armaduras abandonadas nos sítios logísticos, onde a respectiva produção
local não se encontra documentada, tenham sido originalmente fabricadas, pelo menos em
parte, nestas jazidas de carácter oficinal.
5.1.4. Produção de suportes alongados
A largura média das lâminas brutas sem córtex e de secção trapezoidal, produzidas em fase
plena da debitagem dos núcleos prismáticos, é de cerca de 2 cm, pelo que o objectivo da
debitagem pode ser definido como correspondendo à obtenção de lâminas com essa largura-padrão. A sua espessura variaria em torno dos 0,6 cm, e o respectivo comprimento, que,
tendo em conta as dimensões de abandono dos núcleos, devia variar em torno dos 7 a 8 cm,
podia atingir com frequência valores superiores a 10 cm. Conforme resulta da consulta da
Fig. 5.2, este tipo de produtos pode ser considerado, no contexto do Paleolítico Superior
português, como de grandes dimensões, e parece constituir por si só, mesmo na ausência dos
fósseis directores retocados, um indicador cronológico seguro (pelo menos no estado actual
dos nossos conhecimentos).
As lamelas de Vale de Porcos distinguem-se das recolhidas nas restantes jazidas por a
média dos respectivos índices de alongamento ser mais elevada e por, inversamente, a dos
índices de carenagem ser mais baixa (Fig. 5.2). Esta diferença métrica traduz-se, do ponto de
vista qualitativo, em suportes mais afilados e mais robustos, como os que poderão ter sido
extraídos de núcleos de tipo buril. Não pode excluir-se, assim, que uma boa parte das peças
desta jazida integradas entre as lamelas correspondam na realidade, do ponto de vista técnico,
a «resíduos de golpe de buril» que não foram reconhecidos como tal.
5.1.5. Armaduras microlíticas
As armaduras das três jazidas de gruta são classificáveis de duas formas: como lamelas
Dufour no caso de todas as peças do Escoural e de Salemas, e de seis das sete peças do Pego
do Diabo; e como lamela de dorso ou de dorso marginal no caso da restante peça desta última
jazida.
As lamelas Dufour são tipologicamente homogéneas e, sempre que a extremidade distal
está conservada, verifica-se que se trata de objectos de morfologia pontiaguda (Fig. 5.3).
Com excepção de uma peça inacabada do Escoural, todas apresentam retoque alterno; o
retoque que afecta a face inferior apresenta um ângulo de 45° e é, com bastante frequência,
consideravelmente invasor. As duas peças inteiras, uma do Escoural e outra do Pego do
Diabo, apresentam um comprimento situado entre 2,5 e 3 cm, e as dimensões dos fragmentos
conservados sugerem que as restantes seriam quase todas maiores. O perfil plano e o carácter
afilado dos suportes são compatíveis com a hipótese de se tratar de produtos extraídos de
buris. A lamela de dorso ou de dorso marginal do Pego do Diabo é uma peça curta e de perfil
torcido, cujo suporte poderá ter sido extraído de uma raspadeira espessa (carenada ou
afocinhada). Enquanto as primeiras são assimiláveis ao subtipo Dufour de Demars e Laurent
(1989:102), embora dele se distingam pelo facto de se tratar de objectos apontados, a segunda
pode ser perfeitamente integrada no subtipo Roc de Combe dos mesmos autores. A
diferenciação destes subtipos, que se baseia no perfil e dimensões dos suportes tem, assim,
com toda a probabilidade, um fundamento técnico, conforme se sugere na Fig. 5.3.
Sequência cultural
185
Fig. 5.3 - Armaduras microlíticas do Aurignacense. As lamelas Dufour são mais alongadas e de relação
largura:espessura mais normalizada do que as peças classificadas da mesma forma nos restantes conjuntos do
Paleolítico Superior inicial. O subtipo Dufour, sempre apontado, parece ser exclusivamente aurignacense (o
exemplar ilustrado, proveniente da Gruta do Escoural, foi ampliado para o dobro do seu tamanho natural), e os
seus suportes extraídos de buris carenados (e respectivas variantes, tais como o buril de Vachons aqui ilustrado,
proveniente de Vale de Porcos). Os suportes das peças de subtipo Roc de Combe, por seu lado, deverão ter sido
extraídos de raspadeiras carenadas (como a aqui ilustrada, que, no entanto, não é uma peça aurignacense mas sim
fontesantense, proveniente da jazida epónima).
186
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
A consulta da Fig. 5.3 permite constatar igualmente que, do ponto de vista métrico, as
armaduras microlíticas do Aurignacense constituem um conjunto altamente normalizado. Os
três exemplares de Salemas são os únicos que se afastam em certa medida do padrão, embora
seja preciso ter em conta que a sua cronologia é incerta, uma vez que as lamelas Dufour e de
dorso marginal podem ocorrer no Gravettense e no Proto-Solutrense, períodos em que a
jazida também foi habitada. O facto de se estar perante pequenos fragmentos sem
extremidade distal não permite avaliar se esta última seria apontada, situação que não ocorre
nunca nas peças dos períodos mais recentes, as quais, por outro lado, são em cerca de 75%
dos casos de retoque unilateral inverso, e somente em cerca de 25% de retoque bilateral
alterno, como é de regra nas peças aurignacenses e como acontece nos três exemplares de
Salemas.
O facto de a maior parte do material corresponder a peças partidas não permitiu que a
comparação dos respectivos comprimentos fosse feita com amostras significativas. Os
gráficos da Fig. 5.3, porém, sugerem que, além de normalizadas no que respeita à relação
entre largura e espessura, as lamelas Dufour aurignacenses são também, para comprimentos
idênticos, muito mais estreitas do que as peças equivalentes do Gravettense e do Proto-Solutrense. Nenhuma das dez peças inteiras destes períodos tinha um alongamento maior do
que 4, ao passo que nas duas peças inteiras do Pego do Diabo e do Escoural o valor desse
índice era de cerca de 6, as dimensões dos restantes fragmentos indicando uma relação entre
comprimento e largura da mesma ordem de grandeza. Inversamente, para larguras idênticas,
as peças de Salemas, Pego do Diabo e Escoural tendem a apresentar espessuras mais
elevadas. Este facto resulta em índices de carenagem mais baixos, cuja média é, para as 14
peças das três jazidas, de 3,39±0,70, contra 4,03±0,88 no caso das 23 peças provenientes de
sete contextos gravettenses e proto-solutrenses, diferença que é estatisticamente válida ao
nível de significância de 0,05 (teste t).
No caso português, portanto, o subtipo Dufour tem a particularidade de ser sempre de
extremidade apontada, e parece ser um tipo de barbela retocada exclusivo do Aurignacense.
A sua ausência no Gravettense pode estar relacionada com o facto de os suportes tecnica e
dimensionalmente equivalentes, extraídos de buris, terem passado a ser transformados em
microgravettes. No Proto-Solutrense, em que a produção de barbelas é realizada a partir de
núcleos especiais do tipo «raspadeira» espessa e os buris são raros (ver capítulo 3), é natural
que os suportes obtidos, quando retocados, tendessem a dar origem sobretudo a peças do
subtipo Roc de Combe (ou dos tipos lamela de Areeiro e lamela de dorso marginal — nºs 90b
e 90c da lista tipológica utilizada neste trabalho — ver vol. II, capítulo 2).
A especificidade das peças aurignacenses permite propor a sua diferenciação como tipo
distinto, o qual se poderia designar como ponta Dufour e definir da seguinte forma:
«armadura microlítica de perfil plano, robusta e afilada, de alongamento superior a 4,
apontada por retoque bilateral alterno que afecta integralmente os dois bordos e, na face
inferior, é semi-abrupto e consideravelmente invasor». Tendo em conta o número reduzido de
contextos aurignacenses até ao momento conhecidos em Portugal, uma tal proposta tem de
ser feita, necessariamente, sob reserva de confirmação por novos achados, razão pela qual se
optou por não lhe dar acolhimento na lista-tipo apresentada no vol. II.
Sequência cultural
187
5.2. Gravettense antigo
5.2.1. Cronologia
O único contexto atribuível ao Gravettense antigo que, até ao momento, foi objecto de
datação cronométrica, é o de Vale Comprido - Cruzamento (ver vol. II, capítulo 22). A média
dos resultados obtidos para duas amostras de sílex queimado analisadas no Laboratório do
Museu Britânico pelo método da Termoluminescência foi de 27 900±2200 BP (Bowman e
Debenham, comunicação pessoal). Tendo em conta o desvio-padrão do resultado, por um
lado, e, por outro lado, a subestimação em relação à idade real das amostras inerente às
cronologias baseadas no 14C (que é de 3500 anos por volta de 18 000 BP — Bard et al.
1990), esse resultado deve ser interpretado como correspondendo a uma idade compreendida
entre ≈22 000 e ≈27 000 anos de radiocarbono. Os indícios de continuidade com o sistema de
exploração do sílex documentado no Aurignacense, bem como os paralelismos com o
Gravettense inicial da região franco-cantábrica (ver capítulo 6), permitem precisar um pouco
mais essa ampla cronologia, e situar a ocupação do sítio na metade mais antiga do referido
intervalo, ou seja, tal como se indicou no Quadro 3.1, por volta de 26 000 BP (em anos de
radiocarbono).
Há ainda mais três jazidas de ar livre: Vascas (Conjunto 1), Vale Comprido - Barraca e
Estrada da Azinheira. Todas apresentam características semelhantes, tanto do ponto de vista
tecnológico como do ponto de vista económico (ver vol. II, capítulos 16, 21 e 48). A datação
dos contextos de gruta é problemática, a não ser no caso da camada Jb da Gruta do Caldeirão,
situada em posição imediatamente sobrejacente a um Moustierense final datado de ≈28 000
BP e para a qual se dispõe já de um resultado 14C (OxA-5542): 26 020±320 BP (ver vol. II,
capítulo 9). Neste caso, porém, a escassez e carácter indiferenciado do espólio não permitem
uma caracterização industrial independente, e não se pode excluir a hipótese de o horizonte
de sedimentação em causa estar antes relacionado com o Aurignacense (embora também não
tenham sido recolhidos quaisquer artefactos atribuíveis a esse período). Já no que diz respeito
à Casa da Moura, porém, uma tal alternativa parece poder ser afastada com segurança. O
contexto atribuído ao Gravettense inicial é o constituído pela indústria óssea das escavações
de Delgado, atribuição que se baseia nos paralelos com o material equivalente proveniente de
Salemas, jazida em que está associado a armaduras microlíticas claramente gravettenses e
contido em depósitos subjacentes a uma sequência solutrense (ver vol. II, capítulos 12 e 25).
Não havendo datações absolutas para o Gravettense de Salemas, a sua atribuição a uma
fase inicial do tecnocomplexo deve, no entanto, ser considerada sob reserva e sujeita a
confirmação (e o mesmo se dirá também, portanto, do contexto da Casa da Moura). Tanto
mais quanto, de momento, não temos à nossa disposição elementos suficientes para avaliar
até que ponto o padrão de presença/ausência que constitui o principal argumento em que essa
atribuição se baseia poderá estar influenciado por factores situacionais ou económicos como,
por exemplo, a natureza das matérias-primas (o argumento consiste, recorde-se, no facto de
serem inexistentes nos contextos do Gravettense final as pontas microlíticas de dorso,
espessas e de base truncada, que constituem uma proporção tão significativa do conjunto das
armaduras de Salemas).
5.2.2. Fácies
Admitindo que os contextos de gruta e de ar livre são, de facto, penecontemporâneos, as
diferenças existentes entre ambos devem, no essencial, ser de carácter funcional, tal como se
argumentou no capítulo 4 e também, a propósito do Aurignacense, no apartado anterior. Nas
188
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
grutas, com efeito, apenas está representada a fase final das cadeias operatórias do sílex
(abandono de utensílios importados), ao passo que, nos sítios de ar livre, situados junto a
fontes de matéria-prima, as actividades de talhe estão orientadas para a produção maciça de
suportes destinados a exportação (Fig. 5.4).
Não se pode, porém, excluir a hipótese de que algumas das diferenças evidenciadas pela
comparação dos espólios recuperados nas diversas jazidas estejam antes relacionadas com o
facto de terem sido subsumidas na categoria «Gravettense antigo» diferentes unidades crono-estratigráficas mais finas que a escassez dos dados não permite, de momento, discriminar
com segurança. A ser assim, essas diferentes unidades caracterizar-se-iam por apresentarem
sistemas de exploração da pedra semelhantes, as suas particularidades próprias manifestando-se, sobretudo, no que diz respeito à tipometria das armaduras líticas.
De facto, conforme revela a Fig. 5.5, as pontas microlíticas de dorso do Nível III de
Salemas dividem-se em dois grupos claramente distintos, sendo as de base truncada bastante
mais espessas do que as de base apontada. Por outro lado, no seu conjunto, estas peças são
em média bastante mais espessas do que as de Vale Comprido - Barraca. Conforme já se
referiu por ocasião do estudo monográfico da jazida de Salemas (ver vol. II, capítulo 25), a
diferenciação morfométrica das armaduras nela recolhidas pode, no entanto, ter causas
diversas, como, por exemplo: existência no Nível III de ocupações múltiplas, englobadas
pelos escavadores numa única unidade estratigráfica; diferente funcionalidade específica das
pontas espessas de base truncada e das pontas finas de base apontada; condicionalismos
inerentes à exploração do sílex local, matéria-prima de que são feitas as peças de base
truncada, os quais poderão ser responsáveis pela maior espessura dos respectivos suportes.
O significado da presença na Furninha e em duas grutas da Serra de Montejunto de
pontas de la Gravette também não é claro, e a discussão das alternativas possíveis é, nestes
casos, ainda mais dificultada pelo facto de se tratar de achados avulsos sem proveniência
estratigráfica precisa (ver vol. II, capítulo 48). É possível que a ausência deste tipo de peças
tanto nos sítios de ar livre como em Salemas, jazidas em que as armaduras líticas são
Fig. 5.4 - Sistema de exploração do sílex reconstituído a partir da análise dos espólios do Gravettense antigo.
Sequência cultural
189
Fig. 5.5 - Pontas microlíticas do Gravettense antigo. Os tipos representados são dois: microgravettes (51a) e seus
fragmentos terminais (51c) ou basais (51d); pontas de dorso curvo (91a). A diferenciação em função do
delineamento do dorso não é reproduzida, porém, ao nível das dimensões das peças. A este respeito, parece ser
mais importante a forma da base: em Salemas, as peças de base truncada são significativamente mais espessas do
que as de base apontada, sendo estas últimas, por sua vez, mais espessas do que o material equivalente de Vale
Comprido - Barraca. Dado que as pontas de base truncada de Salemas são feitas num sílex local de fraca
qualidade, e que a amostra das de base apontada é de reduzida dimensão, não é possível, no entanto, caracterizar
de forma segura estas diferenças como tendo um significado cultural (cronológico ou étnico).
exclusiva ou quase exclusivamente de dimensões microlíticas, indique que, em Portugal, as
pontas laminares de dorso rectilíneo sejam sobretudo características de uma fase do
tecnocomplexo gravettense ainda não individualizada (porventura um «Gravettense médio»
posterior à fácies representada em Vale Comprido, conforme se sugeriu no Quadro 3.1). A
recente descoberta de uma ponta de la Gravette em níveis subjacentes aos da ocupação proto-solutrense da Buraca Escura (ver vol. II, capítulo 48) é compatível com essa possibilidade.
5.2.3. Economia da pedra
O sistema de exploração do sílex inferido a partir dos espólios líticos das jazidas do
Gravettense antigo conhecidas até ao momento encontra-se esquematizado na Fig. 5.4. Após
descorticamento, os volumes de matéria-prima eram conformados como núcleos prismáticos
(sendo a técnica da crista, porém, muito pouco utilizada), explorados a partir de um único
eixo de debitagem. A abrasão da cornija era extremamente rara, sendo a preparação dos
planos de percussão feita, de um modo geral, por facetagem, operação que, no caso de Vale
Comprido - Barraca, deixou vestígios em 30% dos núcleos para lâminas e das lâminas sem
córtex e de secção trapezoidal, e em 25% das lamelas de largura >0,9 cm. A raridade dos
talões labiados sugere que a debitagem laminar seria realizada com percutores duros.
Ao contrário do que se verificava em Vale de Porcos, o objectivo final das sequências de
debitagem dos núcleos prismáticos parece ter consistido na obtenção de suportes com
proporções lamelares. Assim o indica o facto de, em Vale Comprido - Barraca, a razão entre
núcleos «para lamelas» e «para lâminas» ser, aproximadamente, de 9:1. Neste contexto, a
largura média relativamente elevada do conjunto dos suportes alongados só pode explicar-se
pela exportação sistemática das lamelas que, portanto, estariam sub-representados no espólio
abandonado na jazida, em conformidade com a respectiva caracterização como oficina de
talhe.
Os suportes dos buris eram seleccionados de entre as lascas e as lâminas da fase inicial
de debitagem, as quais serviram também de suporte preferencialmente usado na fabricação de
diversas categorias de utensílios domésticos. Os suportes de debitagem plena de proporções
laminares são raros (o que se compreende, tendo em conta o que acima se disse a propósito
dos objectivos da debitagem), e os que foram transformados em utensílios retocados deram
sobretudo origem a peças de gume lateral (lâminas retocadas, entalhes, denticulados, etc.).
190
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.6 - Composição dos conjuntos de buris das três jazidas do início do Paleolítico Superior com conjuntos
suficientemente numerosos de «utensílios retocados». Os buris carenados e afins, abundantes no Aurignacense,
desaparecem no Gravettense antigo, onde predominam de formam clara os buris sobre truncatura.
Uma parte dos utensílios sobre lamela, cuja largura média ronda os 0,9 cm, pode
igualmente ser incluída na classe das ferramentas de gume lateral, mas a grande maioria é
constituída por armaduras de bordo abatido, algumas apontadas (microgravettes e pontas de
dorso curvo), outras obtusas (lamelas de dorso). As lamelas de dorso truncadas existem, mas
são raras, o mesmo acontecendo com as lamelas Dufour e de dorso marginal, cuja
diferenciação em relação às peças aurignacenses designadas da mesma forma foi discutida no
apartado anterior. A produção dos suportes dessas lamelas de retoque inverso ou marginal
deve ter sido realizada a partir da debitagem de «raspadeiras» espessas, artefactos que,
embora na maior parte dos casos pouco típicos, estão representados em Vale Comprido - Barraca por exemplares de diversa tipologia, incluindo carenados e afocinhados.
5.2.4. Produção de lamelas
As características do espólio de Vale Comprido - Barraca apontam para que a produção de
lamelas tenha sido feita a partir de núcleos prismáticos explorados de forma sequencial, ou
seja, em fase plena ou final de sequências de talhe em que, inicialmente, se produziram
lâminas. No entanto, conforme se argumentou no capítulo 3, a finalidade do «retoque» da
esmagadora maioria das peças classificadas entre os buris também deve ter sido a da
extracção de suportes lamelares. Tendo em conta que, nesta colecção, os «resíduos de golpe
de buril» são 1,7 mais numerosos do que as lamelas extraídas de núcleos prismáticos, e que a
quantidade de buris é quase duas vezes e meia superior à dos núcleos «para lamelas», é bem
possível, inclusivamente, que essa estratégia alternativa tenha sido responsável pela produção
de uma percentagem muito significativa, senão mesmo maioritária, de tais suportes.
A quantidade de núcleos «para lamelas» que tinha uma lasca como suporte era de apenas
27 peças, ou seja, 20% do total de núcleos prismáticos. O total de buris da colecção era de
189, 60% dos quais sobre lasca ou lâmina de anverso total ou parcialmente cortical. Estes
factos são compatíveis com a hipótese de a técnica do golpe de buril corresponder a uma
modalidade de reaproveitamento, para a extracção de lamelas, dos desperdícios de dimensão
adequada produzidos na fase inicial de conformação dos núcleos, embora haja também uma
meia dúzia de peças de bisel fino sobre suporte laminar de fase plena (incluindo alguns buris
de Noailles) que poderão ter sido usados como utensílios no sentido funcional do termo. Esta
situação é idêntica à que se encontrou no Aurignacense de Vale de Porcos, mas com uma
diferença importante: a técnica de extracção conducente ao abandono de volumes com a
tipologia de buril arqueado, carenado ou de Vachons é agora praticamente inexistente, e os
buris sobre truncatura predominam claramente sobre os diedros (Fig. 5.6). Uma forma
Sequência cultural
191
Fig. 5.7 - Artefactos líticos característicos do Gravettense antigo. Vale Comprido - Barraca: 1. buril de Vale
Comprido; 2. buril de Noailles. Salemas (Nível III): 3. microgravette de base truncada.
aparentemente exclusiva destas indústrias é o buril de Vale Comprido: de bisel muito fino,
mas fabricado sobre suporte bastante espesso, e em que a truncatura, marcadamente côncava,
é quase um entalhe (Fig. 5.7).
5.3. Fontesantense
5.3.1. Cronologia
Conforme se argumentou no quadro do respectivo estudo monográfico (ver vol. II, capítulo
11), as datações TL obtidas para a jazida da Fonte Santa não podem ser aceites. Deste modo,
e uma vez que também não existem dados cronométricos para a jazida do Casal do Felipe
(ver vol. II, capítulo 15), a avaliação da idade das indústrias fontesantenses tem de ser feita,
necessariamente, a partir de considerações de natureza tecnotipológica e estratigráfica. Os
elementos a este respeito disponíveis são os seguintes:
•
a jazida do Casal do Felipe estava situada numa posição de sopé de vertente,
verosimilmente embalada em sedimentos coluvionares, ou seja, na mesma situação
geomorfológica que as jazidas do máximo glaciário existentes na região de Rio Maior
(ver capítulo 2);
•
a ganga observada nas peças do Casal do Felipe correspondia a um sedimento arenoso
avermelhado semelhante ao das camadas 2 e 2s da Terra do Manuel;
•
a camada 2s desta última jazida continha um fragmento de ponta de Casal do Felipe,
fóssil director do Fontesantense, e a colecção proveniente das escavações de Heleno na
jazida continha também um exemplar do tipo (ver vol. II, capítulos 18 e 19);
•
a camada I da Gruta do Caldeirão, para a qual se obteve uma datação de ≈23 000 BP (ver
vol. II, capítulo 9), continha uma raspadeira sobre suporte laminar de talão labiado
absolutamente indiferenciável, até nas suas pequenas dimensões (comprimento apenas
ligeiramente superior a 3 cm), de peças equivalentes provenientes da Fonte Santa;
•
é nas indústrias do Gravettense final (como a representada pelo espólio proveniente das
escavações de Heleno na Terra do Manuel), datadas de ≈22 000 BP, que se encontram os
paralelos mais próximos para a tecnologia utilizada na debitagem laminar do
Fontesantense, tanto do ponto de vista métrico como do ponto de vista do método de
preparação dos planos de percussão.
192
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.8 - Sistema de exploração do sílex reconstituído a partir da análise dos espólios do Fontesantense.
Nestas circunstâncias, tudo leva a crer que as indústrias fontesantenses deverão ter uma
cronologia tardia dentro do Gravettense e, com toda a probabilidade, corresponder à fácies
crono-cultural que terá imediatamente antecedido a respectiva fase terminal, de afinidades
proto-magdalenenses. Estando esta última datada de ≈22 000 BP (ver adiante), parece
razoável sugerir para o Fontesantense uma datação em torno dos 23 000 anos antes do
presente, conforme se fez no Quadro 3.1.
5.3.2. Economia da pedra
Casal do Felipe e Fonte Santa são os únicos contextos até ao momento conhecidos que se
podem incluir no Fontesantense. Havendo apenas dois sítios, ainda por cima funcionalmente
idênticos (trata-se em ambos casos de jazidas de ar livre que, como se viu no capítulo 4, são
classificáveis como bases residenciais), o sistema de exploração do sílex inferido a partir dos
respectivos espólios líticos (Fig. 5.8) tem necessariamente de ser considerado sob reserva de
confirmação por achados futuros. Comparando-o com os de épocas anteriores, a principal
diferença observada consiste no facto de as cadeias operatórias fontesantenses serem
caracterizadas por um fraccionamento espacial muito menos marcado: com efeito, deixa de
haver oficinas de talhe, e não se conhecem ocupações logísticas especializadas, em gruta. No
que respeita às primeiras, essa ausência é provavelmente genuína, uma vez que não há nos
sítios residenciais quaisquer indícios de importação maciça de suportes e que, por outro lado,
também não se conhecem sítios com essa funcionalidade nas épocas subsequentes. Quanto às
segundas, é mais provável que estejamos perante um padrão resultante menos dos
comportamentos humanos do passado que da insuficiência dos dados de que dispomos para
os reconstituir.
Nos acampamentos-base, a estratégia de produção utilizada baseava-se na conformação
como núcleos prismáticos de volumes de matéria-prima introduzidos no sítio sob a forma de
nódulos brutos recolhidos nas imediações, processo durante o qual a técnica da crista só
raramente era utilizada. A omnipresença dos talões labiados, mesmo entre o material cortical,
sugere o uso de percutores moles em todas as operações de talhe, desde a fase inicial de
conformação até à fase plena de produção de lâminas e de lamelas. Os planos de percussão
eram cuidadosamente preparados, e sempre por abrasão da cornija. O objectivo final das
Sequência cultural
193
Fig. 5.9 - A presença de quantidades significativas de núcleos prismáticos achatados como indício de uma
exploração exaustiva da matéria-prima. É nos períodos em que o equipamento de caça é armado com pontas
líticas, e nomeadamente no Fontesantense, que esse tipo de núcleos é mais comum, e em que é maior a eficiência
da debitagem, pelo menos se medida em função da quantidade de gume teoricamente passível de obtenção no
momento em que o núcleo é abandonado.
sequências de debitagem dos núcleos prismáticos consistia na obtenção de suportes de
largura compreendida entre 1 e 1,5 cm, destinados a transformação ulterior, seja em
utensílios de gume lateral (facas) seja em pontas de zagaia líticas (pontas de Casal do Felipe).
O material residual (lascas e lâminas corticais produzidas na fase inicial de conformação dos
núcleos), por sua vez, era reaproveitado como suporte para raspadeiras e para os diferentes
tipos de utensílios do fundo comum; e também, no caso dos volumes de maior dimensão,
como suporte para núcleos de diversos tipos, em muitos casos destinados igualmente à
produção de lâminas e de lamelas (na Fonte Santa, com efeito, 23% dos núcleos prismáticos
eram sobre lasca).
De um modo geral, a produção de barbelas era realizada a partir da debitagem de peças
esquiroladas embora, no Casal do Felipe, fosse igualmente importante a exploração para esse
efeito de «raspadeiras» espessas. A técnica do golpe de buril, embora documentada, só muito
raramente foi utilizada. Na Fonte Santa, a obtenção de esquírolas pela técnica bipolar
representava frequentemente um aproveitamento final, para a produção de elementos de
gume cortante, de material que se havia tornado inutilizável no quadro da função para que
originalmente havia sido produzido ou retocado (lâminas brutas, facas, raspadeiras), e pode
ser considerada um caso particular de uma estratégia de exploração exaustiva da matéria-prima, da qual, aliás, existem outros indícios importantes. É o caso, nomeadamente, das
reduzidas dimensões de abandono dos núcleos «para lascas», as quais sugerem que, nalguns
casos, os núcleos para lâminas e lamelas deviam continuar a ser debitados para a produção de
pequenas lascas (ou de esquírolas) mesmo após ter sido ultrapassada a possibilidade de deles
extrair suportes alongados com as dimensões ideais. E é também o caso da existência na
colecção de uma quantidade significativa de núcleos prismáticos achatados (11% do total,
percentagem que, no Casal do Felipe, era, aliás, ainda mais elevada — 20%).
194
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.10 - Dois tipos de núcleos característicos das indústrias fontesantenses, ambos provenientes da jazida
epónima: 1. núcleo prismático achatado, destinado à extracção de lâminas e de lamelas; 2. «carapaça de tartaruga».
Conforme se assinalou nos estudos monográficos dos dois conjuntos, estes núcleos
achatados caracterizam-se por apresentarem uma razão entre comprimento e peso mais
elevada do que os restantes. Isto é, por, para peso idêntico, permitirem, em teoria, a extracção
de produtos mais compridos, portanto com maior quantidade de gume. A Fig. 5.9 mostra, por
outro lado, que, se adoptarmos a relação entre essas duas variáveis como medida de
eficiência, esta é mais elevada, de um modo geral, precisamente nas colecções em que há
percentagens significativas de núcleos achatados. Curiosamente, essas colecções pertencem
todas elas a indústrias em que a debitagem está orientada de forma preponderante para a
produção de pontas líticas: pontas de Casal do Felipe do Fontesantense, pontas de Vale
Comprido do Proto-Solutrense e pontas de face plana do Solutrense médio. A única excepção
é a de Vale Comprido - Cruzamento, jazida que, no entanto, é funcionalmente diferente das
restantes, e onde, tratando-se de uma oficina de talhe, a finalidade última da produção de
lâminas (a qual tem um peso bastante maior do que na estação vizinha, e verosimilmente
penecontemporânea, de Vale Comprido - Barraca) pode ter consistido na obtenção de
suportes para pontas de la Gravette, integralmente exportados, seja em bruto seja após
transformação por retoque.
Parece lógico, deste modo, relacionar esta morfologia particular de uma parte importante
dos núcleos abandonados nas jazidas fontesantenses (veja-se o nº 1 da Fig. 5.10) com o facto
de o objectivo final das sequências de talhe ser a obtenção de suportes para pontas. Podem
conceber-se, no entanto, explicações alternativas, sendo uma delas, por exemplo, a de que se
trataria em boa parte de núcleos cujo suporte seria uma lasca, essa morfologia estando
correlacionada, portanto, com a prática de reaproveitar as lascas de descorticamento como
suportes para núcleos prismáticos, hipótese que encontra apoio no facto de 75% dos núcleos
achatados de Vale Comprido - Encosta serem, efectivamente, sobre lasca. No entanto, as
percentagens equivalentes apuradas para as outras colecções em que há quantidades
significativas de núcleos achatados (Fonte Santa, Casal do Felipe e Casal do Cepo) não se
afastam das apuradas para a frequência do atributo entre os restantes núcleos prismáticos.
Tendo em conta que o suporte de um núcleo nem sempre é reconhecível no seu estado de
abandono, é muito possível, porém, que, nesses casos, a percentagem de núcleos achatados
que são sobre lasca tenha sido subestimada. Por outro lado, as colecções em que a
percentagem de núcleos prismáticos sobre lasca é mais elevada (sempre superior a 40%) são
as magdalenenses (ver adiante), as quais, a avaliar pelo gráfico da Fig. 5.9, são também
aquelas que mais se afastam, para baixo, da recta de regressão entre as duas variáveis. Deste
modo, apesar de essa percentagem também apresentar valores relativamente elevados em
Sequência cultural
195
Fig. 5.11 - Pontas de Casal do Felipe. 1. inacabada; 2. grande; 3. média; 4. pequena. Proveniência: 1 e 3, Fonte
Santa; 2 e 4, Casal do Felipe. As peças medidas foram as classificadas nos estados de fragmentação I1 e I2 (ver
vol. II, capítulos 11 e 15).
colecções como as de Vale Comprido - Encosta (37%), Vale Almoinha (29%), Fonte Santa
(23%) e Casal do Felipe (17%), é obrigatório concluir que a natureza do suporte apenas pode
explicar de forma parcial a morfologia achatada apresentada por uma parte significativa dos
núcleos para lâminas e lamelas destas jazidas.
Um outro tipo de núcleo característico do Fontesantense é a «carapaça de tartaruga»
(Fig. 5.10, nº 2). Classificado, para efeitos analíticos, entre os núcleos prismáticos com um
plano de percussão, este tipo representa uma forma de transição entre o núcleo piramidal e a
«raspadeira» carenada, diferindo destas últimas pelo facto de os levantamentos serem
realizados a partir de toda a periferia do suporte, sem estarem confinados a uma «frente».
Embora presente na Fonte Santa, ele é bastante mais comum no Casal do Felipe, jazida em
que as «raspadeiras» espessas também são bastante mais numerosas. Esse facto pode explicar
que a «eficiência» da exploração dos núcleos, medida segundo o critérios da Fig. 5.9, seja no
Casal do Felipe menor do que na Fonte Santa, uma vez que a espessura das «carapaças de
tartaruga» se traduz naturalmente em pesos de abandono superiores à média.
5.3.3. Armaduras
O fóssil director do Fontesantense é a ponta de Casal do Felipe. Trata-se de uma ponta
simétrica, em que o ápice está situado sobre o eixo de debitagem e resulta da convergência de
dois bordos modificados pela aplicação de um retoque bilateral abrupto executado sobre
suportes laminares ou lamelares de extremidade obtusa (veja-se o nº 1 da Fig. 5.11 para
exemplo de uma ponta inacabada em que ainda é possível discernir a morfologia original).
De um modo geral, esse retoque está confinado à metade distal do suporte, a metade proximal
permanece em estado bruto, e a intersecção entre a parte retocada e a parte bruta dos bordos
forma um ângulo bem marcado. Nas peças mais curtas, porém, o retoque arranca por vezes da
zona proximal, o que se deve à preocupação em manter o comprimento da ponta dentro de
limites mínimos. Com efeito, na Fonte Santa, onde o comprimento total destes objectos é em
média 7 mm inferior ao verificado no Casal do Felipe, o comprimento médio da extremidade
apontada é idêntico, no entanto, ao das peças desta última jazida.
O nº 3 da Fig. 5.11 representa uma peça com as dimensões médias apuradas para o
conjunto dos artefactos deste tipo provenientes das duas jazidas e cujo comprimento era
mensurável ou reconstituível. Os nºs 2 e 4, por sua vez, representam os extremos do
196
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
respectivo intervalo de variação. Os comprimentos totais estão situados entre os 3 e os 6 cm,
sendo a respectiva média de 4 cm, enquanto o comprimento da extremidade apontada varia
em torno dos 2 cm. A largura e a espessura, medidas na zona mediana, são quase sempre as
do suporte, e variam entre 1 e 1,5 cm, no caso da primeira, e entre 2 e 4 mm, no caso da
segunda. Trata-se, portanto, de material bastante normalizado, tanto do ponto de vista
morfológico como do ponto de vista métrico, em conformidade com a hipótese, sugerida pela
respectiva forma, de se tratar de objectos destinados a funcionar como extremidade
perfurante de zagaias, e que deviam ser montados axialmente sobre os respectivos cabos de
madeira. É no mesmo sentido que aponta o facto de ser possível observar estigmas de
impacto em algumas dessas peças, em particular no exemplar ilustrado sob o nº 3 da
Fig. 5.11, que apresenta um levantamento burinante associado à superfície de fractura.
5.4. Gravettense final
5.4.1. Cronologia
A forma como se deu a passagem do Gravettense ao Proto-Solutrense será objecto de uma
discussão mais aprofundada no apartado seguinte. Diga-se desde já, porém, que se trata de
um processo em três etapas, a primeira das quais caracterizando-se por um uso moderado do
quartzo e por frequências importantes de lamelas de dorso truncadas. As outras duas têm em
comum o facto de este tipo de barbelas ocorrer em percentagem baixa ou nula e de,
simultaneamente, o quartzo corresponder a uma percentagem elevada dos restos líticos. A
etapa intermédia, de características transicionais, foi integrada no bloco das indústrias proto-solutrenses, pelo que não será tida em conta na discussão que se segue. Tratar-se-á aqui,
portanto, apenas das indústrias da primeira fase, que são as que se optou por definir como do
Gravettense final, dadas as suas afinidades com o Proto-Magdalenense ou Perigordense VII
da sequência francesa (ver capítulo 6).
Só existem datações radiométricas para dois dos contextos listados no Quadro 3.1 como
pertencentes ao Gravettense final. No que diz respeito ao nível inferior do locus II de Cabeço
de Porto Marinho, e conforme se referiu a propósito do respectivo estudo monográfico (ver
vol. II, capítulo 13), os resultados obtidos não são, no entanto, fidedignos. A ocupação com
lamelas de dorso bitruncadas da Buraca Escura, porém, está compreendida entre dois níveis
datados de 22 700±740 BP (OxA-5523), por baixo, e de 21 820±200 BP (OxA-5524), por
cima (ver vol. II, capítulo 48). Este momento da sequência crono-estratigráfica portuguesa
deverá ter, portanto, uma cronologia absoluta de ≈22 000 anos BP, conforme sugerido, aliás,
pelas suas marcadas semelhanças industriais com o Proto-Magdalenense francês.
5.4.2. Fácies
Casa da Moura e Vascas são contextos constituídos por artefactos triados em colecções
misturadas provenientes de escavações antigas (ver vol. II, capítulos 12 e 16). Os materiais de
Picos (ver vol. II, capítulo 48) foram recolhidos numa área pequena, constituem um conjunto
de dimensão insuficiente para permitir caracterizações precisas, e ainda não foram objecto de
estudo aprofundado. Devido aos problemas tafonómicos existentes em CPM II, só foi
possível analisar uma colecção de algumas centenas de artefactos proveniente de uma área de
apenas 3 m². A integridade absoluta da colecção proveniente das escavações de Heleno na
Terra do Manuel está por demonstrar, não se podendo pôr de parte a hipótese de nela estarem
igualmente incluídos materiais relacionados com as ocupações proto-solutrenses da zona (ver
vol. II, capítulo 18). A Buraca Escura, finalmente, está ainda em escavação, pelo que os
dados de que a seu respeito se dispõe são muito esparsos (ver vol. II, capítulo 48).
Sequência cultural
197
Fig. 5.12 - Sistema de exploração do sílex reconstituído a partir da análise dos espólios do Gravettense final.
Nestas condições, o facto de os dados à nossa disposição apontarem para a possibilidade
de diferenciar pelo menos três fácies industriais distintas tem de ser encarado com as devidas
reservas. No caso da Terra do Manuel, porém, não parece razoável pôr seriamente em
questão a interpretação proposta para o sítio no capítulo 4: a de que deverá ter funcionado
como base residencial. O número reduzido de artefactos, o carácter incompleto das cadeias
operatórias, e o facto de, no grupo dos «utensílios retocados», as armaduras desempenharem
um papel preponderante ou exclusivo, sugere que as ocupações que a Buraca Escura
conheceu devem ter sido de tipo especializado, em relação com actividades logísticas. O
conjunto proveniente da Casa da Moura apresenta características semelhantes, mas as
vicissitudes por que passou a colecção não nos permitem ter a certeza de que o material que
chegou até nós constitui uma amostra representativa da situação original existente na jazida.
Tudo indica, portanto, que o padrão de diferenciação funcional entre sítios de ar livre de
vocação residencial e sítios de gruta de vocação logística que caracterizará as indústrias do
máximo glaciário já nesta altura se encontraria estabelecido. Por esclarecer permanece o
problema respeitante ao significado preciso do conjunto de Picos, dominado por buris de
bisel fino sobre suporte laminar: fácies especializada do Gravettense final representado na
Terra do Manuel (em que há bastantes peças tecnica e tipologicamente idênticas), ou fácies
cronológica sem outros paralelos conhecidos até ao momento?
5.4.3. Economia da pedra
O deficiente conhecimento que temos das condições de jazida de grande parte das colecções
desta época, a que já se aludiu no parágrafo anterior, obriga a que, no essencial, a
reconstituição do sistema de produção lítica do Gravettense final que aqui se proporá
(Fig. 5.12) seja baseado nas conclusões extraídas do estudo da colecção proveniente das
escavações realizadas por M. Heleno na Terra do Manuel entre 1940 e 1942. Pelas mesmas
razões, essa reconstituição tem de ser considerada, necessariamente, como provisória e
sujeita a confirmação futura.
198
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Tal como no Fontesantense, os volumes de matéria-prima introduzidos no sítio sob a
forma de nódulos brutos recolhidos nas imediações eram conformados mediante processos
em que a técnica da crista só raramente era utilizada. O uso de percutores moles, pelo menos
se aceitarmos que a presença de talões labiados é uma consequência desse uso, porém, estava
confinado à fase plena de produção de lâminas e de lamelas, durante a qual se recorria
frequentemente à preparação dos planos de percussão, de um modo geral por abrasão da
cornija, só muito raramente se utilizando a facetagem. Outra diferença importante com o
Fontesantense é a que diz respeito à estratégia seguida na produção de suportes alongados.
Enquanto no período anterior se tinha por objectivo a obtenção de produtos de largura
altamente normalizada, na Terra do Manuel a gama de produtos extraídos era bastante ampla,
nela se incluindo lâminas de dimensões relativamente grandes (de largura até 2 cm e de
comprimento que podia atingir os 7 a 10 cm). Tal como no Gravettense antigo, e ao contrário
do que sucedia no Aurignacense, os núcleos a partir dos quais este tipo de produtos era
obtido continuavam depois a ser explorados para a produção de lâminas mais estreitas e de
lamelas, muitas vezes após reavivamentos dos planos de percussão e mudanças de orientação
do eixo de debitagem.
O material residual (lascas e lâminas corticais produzidas na fase inicial de conformação
dos núcleos) era reaproveitado como suporte para raspadeiras e para os diferentes tipos de
utensílios do fundo comum, e também, no caso dos volumes de maior dimensão, como
suporte para núcleos de diversos tipos, por vezes destinados igualmente à produção de
suportes alongados. Os utensílios retocados preferencialmente fabricados sobre lâminas da
fase plena da debitagem eram as facas, embora esse tipo de produtos também tenha servido
de suporte para raspadeiras e buris. No que respeita a estes últimos, conforme se discutiu
anteriormente (ver capítulo 3), é possível que se trate efectivamente, nestas indústrias, de
utensílios no sentido funcional do termo. As facas estavam representadas tanto por
exemplares de dorso oposto a um gume bruto (Fig. 5.13, nº 4) como por exemplares de gume
com retoque contínuo, denticulado, ou com entalhes. Entre as peças dos tipos 65 e 66 ocorria
com frequência um retoque de morfologia virtualmente idêntica à do que, com base na sua
análise dos materiais líticos provenientes dos abrigos franceses de Laugerie-Haute e do Blot,
Bosselin (1991) definiu como «retoque proto-magdalenense» (ver Fig. 5.13, nºs 1-2).
O reaproveitamento do material produzido na fase inicial da debitagem para a produção
de suportes de armaduras microlíticas mediante a conformação de núcleos do tipo
«raspadeira» espessa ou buril de bisel espesso também está documentado na Terra do
Manuel. Dado que se trata de uma escavação antiga, não é possível, porém, eliminar
completamente a hipótese, a que já acima se aludiu, de essa presença se dever a uma
contaminação por eventuais ocupações proto-solutrenses de cuja diferenciação estratigráfica
os escavadores se não tenham apercebido. No entanto, estes tipos de artefactos estavam
igualmente representados na ocupação da base do nível inferior do locus II de Cabeço de
Porto Marinho, pelo que se optou por considerar que esta estratégia de produção de lamelas
constituía efectivamente uma componente genuína do sistema de produção lítica do
Gravettense final. O facto de o índice técnico das «raspadeiras» espessas apresentar na
colecção da Terra do Manuel (escavações de 1940-42) o segundo valor mais elevado de todo
o Paleolítico Superior português (24,62 — ver Quadro 3.12) torna extremamente difícil de
aceitar, aliás, a hipótese segundo a qual este tipo de núcleos corresponderia, na íntegra, a
material intrusivo.
Sequência cultural
199
Fig. 5.13 - Terra do Manuel (1940-42). «Fósseis directores» do Gravettense final: 1-2. lâminas com retoque
contínuo de tipo proto-magdalenense; 3. lamela de dorso e truncatura inversa; 4. lâmina de dorso.
As pontas de Vale Comprido, características do Proto-Solutrense, e representadas por
alguns exemplares de grande tipicidade no espólio das escavações feitas por Heleno na Terra
do Manuel, são de todo inexistentes, porém, em Cabeço de Porto Marinho e na Buraca
Escura. Na Gruta do Caldeirão (ver vol. II, capítulo 9), pelo contrário, estavam representadas
nas camadas I — para a qual se possui uma data de 22 900±380 BP (OxA-1940) — e Ja, que
lhe é subjacente. É possível que a explicação destas discrepâncias resida em fenómenos do
tipo acidente de amostragem, ou que decorra das especificidades funcionais das diversas
ocupações consideradas, ou ainda que tenha um fundamento tafonómico. Seja como for,
manda a prudência que, nestas circunstâncias, se considere como não demonstrada, embora
verosímil, a hipótese de a invenção do tipo e, portanto, da cadeia operatória relacionada com
a sua produção, ter tido lugar ainda no Gravettense final, razão pela qual ela não foi tida em
consideração na Fig. 5.12.
5.4.4. Armaduras microlíticas
Mesmo admitindo que, em pequena parte, o equipamento de caça seria armado de pontas
líticas montadas axialmente nos cabos das zagaias, a composição dos espólios indica que, no
Gravettense final, as pontas destas últimas deviam ser fabricadas, na sua quase totalidade, em
madeira, osso ou corno. A abundância de lamelas de dorso que caracteriza estas indústrias
sugere, por outro lado, que tal tipo de objectos se destinaria a funcionar como barbelas dessas
pontas, o mesmo acontecendo com as raras lamelas Dufour e de dorso marginal com suporte
extraído de «raspadeiras» espessas.
Apesar desta sua semelhança estrutural com as indústrias magdalenenses (ver adiante), os
conjuntos de armaduras microlíticas do Gravettense final diferenciam-se facilmente dos do
Paleolítico Superior tardio. Da simples consulta da Fig. 5.14 resulta, com efeito, que o
material gravettense é em média significativamente maior (com 5 a 7 mm de largura, contra 3
a 5 mm nos conjuntos magdalenenses medidos) e que, além disso, é constituído em grande
parte (40 a 60% do total) por peças truncadas ou bitruncadas, que são bastante mais raras no
Magdalenense. Deve ainda ter-se em conta, por outro lado, que as percentagens indicadas na
200
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.14 - Os conjuntos de lamelas de dorso do Gravettense e do Proto-Solutrense diferenciam-se claramente dos
magdalenenses, tanto do ponto de vista métrico como do ponto de vista tipológico. No Magdalenense, as lamelas
de dorso são significativamente mais estreitas, e a percentagem que se apresenta truncada não é nunca superior a
20%, enquanto no Gravettense final e no Proto-Solutrense essa percentagem varia entre 40 e 60%. Inversamente, é
só no Solutrense superior, primeiro, e no Magdalenense superior (VM, CPM IIIS e CPMIIIT), depois, que as
lamelas de dorso denticuladas ocorrem em proporção significativa.
Fig. 5.14 não representam senão valores mínimos: no caso da Terra do Manuel, com efeito,
85% das lamelas de dorso são peças partidas, em muitas das quais a extremidade em falta
podia, originalmente, apresentar-se truncada. O nº 3 da Fig. 5.13 constitui um bom exemplo
do que deviam ser, quando inteiras, as proporções das lamelas de dorso truncadas do
Gravettense final e da fase inicial do Proto-Solutrense, e evidencia outra idiossincrasia
observada com certa frequência nas peças deste tipo: a disposição inversa da truncatura.
5.5. Proto-Solutrense
5.5.1. Cronologia
Os limite inferior do intervalo de tempo correspondente ao Proto-Solutrense é o indicado pela
cronologia de cerca de 22 000 BP que se atribuiu ao Gravettense final. Ainda não foram
encontrados em Portugal contextos que possamos incluir de forma segura na etapa industrial
que teoricamente deverá ter existido entre o Proto-Solutrense e o Solutrense médio — o
Solutrense inferior. Parece razoável admitir, no entanto, que a passagem a este último já
estaria consumada por volta de 21 000 BP. Estas estimativas são compatíveis com os dados
cronométricos actualmente disponíveis. As datações 14C para a camada 2s da Terra do
Manuel (ver vol. II, capítulo 19), para a lareira da camada 2 da Lapa do Anecrial (ver vol. II,
capítulo 10), e para a base do nível 2b da Buraca Escura (ver vol. II, capítulo 48), apontam,
precisamente, para que as respectivas ocupações tenham tido lugar entre 22 000 e 21 000 BP.
Sequência cultural
201
Fig. 5.15 - Correlação estratigráfica dos níveis arqueológicos identificados no decurso de escavações modernas e
modelo da passagem do Gravettense ao Proto-Solutrense. Dado que, nas escavações antigas, os artefactos de
quartzo apenas foram guardados de forma selectiva, não é possível precisar se os conjuntos de Terra do José
Pereira e de Vales da Senhora da Luz deverão ser atribuídos ao segundo ou ao terceiro momento do processo de
transição. O mesmo acontece com os sítios do Anecrial e do Gato Preto, devido ao carácter especializado das
respectivas ocupações. A colecção de Vale Comprido - Encosta pode ser considerada como representativa de um
momento final do processo, em que a transição para a tecnologia proto-solutrense estaria já concluída.
Fig. 5.16 - Uma outra forma de conceber a transição do Gravettense ao Proto-Solutrense. Simplificada no que diz
respeito ao faseamento cronológico, esta alternativa tem como consequência, no entanto, um aumento considerável
da variabilidade interna de cada um dos dois únicos momentos considerados.
202
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
No entanto, a data de 23 490±280 BP (ICEN-423) que foi obtida para o nível médio do
locus III de Cabeço de Porto Marinho parece estar, à primeira vista, em contradição com esta
caracterização. Deve notar-se, porém, como se referiu a propósito do respectivo estudo
monográfico (ver vol. II, capítulo 13), que o resultado em causa deve ser considerado como
anómalo, dado o nível subjacente ter produzido três datações estatisticamente idênticas —
23 050±750 BP (ICEN-428), 22 700±350 BP (SMU-2475) e 21 080±850 BP (ICEN-850) —
cuja média indica que a respectiva ocupação terá tido lugar por volta de 22 300 BP. Neste
contexto, e tendo em conta que os dois níveis se encontravam separados por depósitos
estéreis com 20-30 cm de espessura, parece claro que a ocupação do nível médio pode ser
considerada de forma segura como tendo tido lugar depois de 22 000 BP.
5.5.2. Fácies
A correlação das estratigrafias de Cabeço de Porto Marinho e da Terra do Manuel
(escavações de 1988-89) indica que, após o termo da etapa industrial caracterizada pela
abundância das lamelas de dorso e de dorso truncadas (o Gravettense final de que se tratou no
apartado anterior), e antes do pleno estabelecimento do sistema tecnológico baseado nas
pontas de Vale Comprido (o Proto-Solutrense), a sequência cultural conhece uma etapa de
transição de características industriais mistas (Fig. 5.15). Deve ter-se em conta, porém, que
existem formas alternativas de realizar a referida correlação (a qual, antes do mais, deve ser
considerada, portanto, como um modelo a testar pela investigação futura). Uma vez que as
frequências das lamelas de dorso e das pontas de Vale Comprido podem estar afectadas por
problemas relacionados com a amostragem ou a funcionalidade das ocupações, é possível,
com efeito, propor esquemas mais simples, em que haja lugar para apenas duas etapas, mas
de variabilidade interna muito mais acentuada, como, por exemplo, o da Fig. 5.16.
No estado actual dos nossos conhecimentos, a alternativa apresentada na Fig. 5.15 parece
ser a mais sólida. Isto é, deve haver efectivamente uma etapa intermédia (a que também
deverá pertencer a jazida de ar livre da Cova da Moura, em Cambelas — ver vol. II, capítulo
24), que se individualiza, nomeadamente, pela elevada frequência com que se recorria ao uso
do quartzo, individualização que a consulta da Fig. 5.17 permite facilmente constatar. No que
respeita a este aspecto, deve ainda ter-se em conta, aliás, que os valores apurados para a
camada 2 da Terra do Manuel podem estar algo inflacionados pelo facto de ser possível, em
consequência da deformação sofrida pelos depósitos e das incertezas da decapagem
(agravadas pelas condições de jazida), que nela tenha sido incluído material proveniente da
camada 2s subjacente. Do mesmo modo, é igualmente necessário ter presente que a
composição do espólio recolhido na Sondagem 2 de Vale Comprido - Eucaliptal se presume
ser, no que respeita às matérias-primas líticas, representativa da situação originalmente
existente em Vale Comprido - Encosta, o que, todavia, não pode ser considerado como
indubitavelmente demonstrado (ver vol. II, capítulo 23).
A aceitação do modelo expresso na Fig. 5.15 não deixa de implicar, mesmo assim, o
reconhecimento de que há, para além dos contextos logísticos de gruta (como os de Salemas e
Furadouro — ver Quadros 3.1 e 4.6), praticamente definidos apenas pela presença de pontas
líticas (nalguns casos identificadas a posteriori em colecções antigas misturadas), uma
variabilidade acentuada na composição dos espólios líticos proto-solutrenses cujas causas
não são de natureza cronológica. Concretamente, o modelo da referida Fig. suscita dois
problemas: o do posicionamento exacto das ocupações da Lapa do Anecrial e do Gato Preto
(ver vol. II, capítulos 10 e 14); e o da razão de ser das diferenças observadas entre os espólios
de Vales da Senhora da Luz e Terra do José Pereira (ver vol. II, capítulos 17 e 20), por um
lado, e de Vale Comprido - Encosta, por outro. A primeira questão não pode ser resolvida por
enquanto, uma vez que a componente de produção de lamelas a partir de «raspadeiras»
Sequência cultural
203
Fig. 5.17 - A individualização de uma etapa intermédia no processo de transição do Gravettense ao Proto-Solutrense, evidenciada pela seriação dos contextos arqueológicos: segundo a frequência do quartzo (admitindo
que a composição em matérias-primas do espólio da Sondagem 2 de Vale Comprido - Eucaliptal é representativa
da originalmente existente em Vale Comprido - Encosta, e considerando apenas as escavações modernas); e
segundo a frequência das lamelas de dorso e de dorso truncadas, cuja ordem decrescente coloca na posição
correcta do ponto de vista estratigráfico os contextos provenientes de uma mesma sequência (TM II e CPM II).
espessas, que corresponde à quase totalidade das actividades de talhe documentadas nos dois
contextos em causa, está representada ao longo de todo o processo de transição. Quanto à
segunda, apresentar-se-ão de seguida os elementos que poderiam contribuir para uma
resposta, mas, como se verá, também não é possível, de momento, optar por qualquer das
alternativas concebíveis.
A raridade das pontas de Vale Comprido na Terra do José Pereira (uma só), e a sua
ausência em Vales da Senhora da Luz, sugerem uma integração na etapa intermédia desse
processo. Igualmente admissível, porém, seria a interpretação alternativa segundo a qual as
actividades de talhe realizadas nestas duas jazidas estariam orientadas mais para a produção
de facas do que para a de pontas, acontecendo o inverso em Vale Comprido - Encosta, caso
em que teríamos de aceitar a contemporaneidade dos três sítios. Há, aliás, dois outros factos
que parecem apontar neste último sentido: o de em Vales haver apenas uma lamela de dorso
truncada, tipo que se encontrava de todo ausente na Terra do José Pereira; e o de as lamelas
de dorso assinaladas nas contagens tipológicas das duas jazidas terem um retoque atípico que
permitiria igualmente a respectiva classificação como peças de dorso marginal. Usando a
frequência das lamelas de dorso e de dorso truncadas como elemento de seriação (Fig. 5.17),
depararíamos, aliás, uma vez mais, com o modelo em três etapas adoptado na Fig. 5.15, e as
três colecções escavadas por Heleno apareceriam integradas precisamente na última delas.
No caso de Vales, porém, é preciso ter em conta que apenas cinco lamelas brutas (ou
seja, menos de 5% de um total de 105) tinham uma largura ≤6 mm, situação que, no entanto,
era a de 68% das lamelas de dorso e de dorso truncadas da Terra do Manuel (1940-42). Este
facto obriga a considerar uma explicação alternativa: a de a colecção de Vales representar
uma ocupação de características idênticas à da camada 2s da Terra do Manuel (1988-89) mas
em que a escavação tenha sido feita sem crivagem, o material de menores dimensões, tanto
bruto como retocado, estando, portanto, em falta. Uma explicação deste tipo seria compatível
com o facto de o conjunto em causa ter sido interpretado, aquando do respectivo estudo
monográfico, como escavado no contexto de uma fase inicial (1938-39) de sondagem da área
onde, subsequentemente (1940-42), se viria a realizar a exploração extensiva da jazida que
viria a ficar conhecida como Terra do Manuel. No caso da Terra do José Pereira, porém, o
carácter eventualmente deficiente das operações de crivagem, ou a sua não realização, já não
pode servir de explicação aceitável, uma vez que a percentagem das lamelas brutas de largura
≤6 mm é bastante mais alta (24%, correspondendo a 29 peças de um total de 120).
204
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
A consideração deste factor obriga a que seja igualmente discutida a integridade da
colecção de Vale Comprido - Encosta, cuja percentagem de lamelas brutas de largura ≤6 mm
era inferior a 3% (três peças numa amostra medida de 110) e em que, portanto, a ausência de
armaduras microlíticas de dorso podia também, em teoria, ser considerada como uma
consequência dos métodos de escavação utilizados. Neste caso, porém, não há dúvida que os
sedimentos foram crivados, não só porque existem testemunhas fidedignas sobrevivas que
assim o afirmam (e a descoberta na periferia do sítio dos montículos de seixos acumulados
pelos trabalhadores permite confirmá-lo), como também porque a natureza dos depósitos
(areias eólicas finas) não permitiria que a escavação fosse feita de outro modo. Não havendo
razões para supor que a malha dos crivos utilizados fosse diferente da utilizada na mesma
altura, e pela mesma equipa, na Terra do Manuel, não parece legítimo, assim, pôr em causa o
carácter genuíno da ausência de barbelas retocadas em Vale Comprido - Encosta, o mesmo é
dizer, nas indústrias do final do processo de transição do Gravettense para o Proto-Solutrense.
5.5.3. Economia da pedra
A principal diferença com o Gravettense final apresentada pelo sistema de exploração do
sílex reconstituído a partir da análise do espólio lítico de Vale Comprido - Encosta é a que
diz respeito à provável coexistência de três cadeias operatórias distintas (Fig. 5.18): uma
destinada à produção de pontas de Vale Comprido; outra destinada à produção de facas; e
outra destinada à produção de lamelas. Tal como nas fases anteriores do Paleolítico Superior,
os resíduos da fase inicial de conformação dos núcleos são reaproveitados: como suporte para
raspadeiras e utensílios do fundo comum, por um lado; e como suporte de núcleos para
lâminas, lamelas e esquírolas, por outro, neste aspecto assumindo papel de particular relevo,
especialmente na etapa intermédia do processo de transição, os núcleos carenados
(«raspadeiras» espessas), frequentemente fabricados em quartzo.
A cadeia operatória destinada à produção de pontas de Vale Comprido é, com toda a
probabilidade, uma inovação introduzida na etapa intermédia do processo de transição do
Gravettense para o Proto-Solutrense e está descrita na Fig. 5.19. O ponto de partida é
constituído por núcleos de tendência piramidal debitados à pedra a partir de um plano de
percussão liso, produzindo suportes (lâminas ou lascas alongadas) de bordos convergentes e
de talão espesso, subsequentemente adelgaçado por retoque dorsal. A cadeia operatória
destinada à produção de facas é de tradição gravettense, e dá origem a produtos de talão
relativamente pequeno, labiado, preparado por abrasão da cornija, a extracção fazendo-se
com toda a probabilidade mediante o recurso a percutores moles. Esta estratégia é bastante
importante na referida etapa intermédia, mas tende a desaparecer no Proto-Solutrense pleno
onde, no entanto, ainda está representada. O retoque aplicado aos suportes transformados
ainda corresponde, em exemplares avulsos da Terra da José Pereira, à norma proto-magdalenense, mas, em Vale Comprido - Encosta, isso já não acontece em nenhum caso.
Nesta última jazida, uma percentagem importante (20%) dos núcleos prismáticos foi
abandonada com cicatrizes de levantamentos laminares ainda observáveis nas respectivas
superfícies de debitagem, e o comprimento dos núcleos «para lascas» (36% do total) era, em
média, de quase 4,5 cm. Assim, é muito provável, pelo menos no caso da debitagem à pedra
de suportes para pontas de Vale Comprido (tipo de que há apenas um exemplar — em 202 —
de dimensões lamelares), que, em muitos casos, as sequências de talhe realizadas no quadro
das duas cadeias operatórias acima referidas tenham sido abortadas sem que os volumes em
exploração tenham sido aproveitados para a produção sistemática de lamelas. Por outro lado,
a largura média das lamelas brutas era de cerca de 1 cm. Ou seja, a esmagadora maioria
destas peças corresponde em boa verdade à cauda de uma distribuição normal (a dos produtos
Sequência cultural
205
Fig. 5.18 - Em cima: sistema de exploração do sílex reconstituído a partir da análise dos espólios do Proto-Solutrense. Em baixo: a remontagem do material em sílex cinzento pintalgado recolhido na camada 2 da Lapa do
Anecrial demonstra que há coexistência entre a produção de lâminas e lamelas feita a partir de núcleos prismáticos
e a produção de lamelas e esquírolas feita a partir de «raspadeiras» espessas; no caso em apreço, os suportes destas
últimas são constituídos por material de reavivamento dos planos de percussão, cuja extracção foi determinada
pela necessidade de proceder a uma reconversão da estratégia de talhe prevista, em virtude de ter falhado a
tentativa inicial de obter lâminas usando como guia uma das arestas criadas pelo processo de conformação do
núcleo.
206
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.19 - A cadeia operatória de produção e utilização de pontas de Vale Comprido, reconstituída por
experimentação a partir dos dados da jazida epónima (segundo Zilhão e Aubry 1996). Os suportes, lâminas ou
lascas alongadas de bordos convergentes, são debitados à pedra a partir de núcleos de tendência piramidal e em
que o rebordo do plano de percussão apresenta uma morfologia denticulada. Os produtos obtidos apresentam um
talão espesso, subsequentemente adelgaçado por retoque dorsal, o qual se estende frequentemente ao longo da
parte proximal de um ou de ambos os bordos. Trata-se quase sempre de um retoque marginal, igualmente aplicado
à extremidade distal, com o objectivo de a apontar, quando os suportes são naturalmente obtusos. Alguns
exemplares apresentam um retoque mais extenso, por vezes (mas raramente) evocando já o característico retoque
plano solutrense. Essa maior extensão pode resultar de um reaproveitamento após fractura, conforme é patente
nalguns exemplares, que apresentam os bordos profundamente denticulados ou indícios claros de a ponta ter sido
reparada. Os estigmas de utilização presentes nalgumas peças (levantamentos burinantes e fracturas em lingueta)
indicam tratar-se de pontas de projéctil.
Sequência cultural
207
Fig. 5.20 - Pontas de Vale Comprido da jazida epónima: 1. subtipo BA; 2. subtipo LA; 3. subtipo RE.
alongados, cujo intervalo inter-quartis está compreendido entre 1,2 e 1,9 cm — ver Quadro
3.8 e Fig. 3.11), e, inclusivamente, pode ter sido obtida de forma acidental no quadro das
operações de produção de lâminas. Como a hipótese de os suportes lamelares de menor
dimensão estarem sub-representados em resultado do uso de métodos de recolha deficientes
não parece, como acima se viu, de aceitar, esta estrutura do conjunto lítico de Vale
Comprido - Encosta não pode deixar de ser considerada como genuína. Sendo assim, é muito
provável que, na maior parte dos casos, a produção das poucas lamelas pequenas e estreitas
de largura inferior a 8 mm existentes na colecção (cerca de 5% de um total de 1963 lâminas e
lamelas, ou seja, cerca de uma centena) tenha sido realizada mediante uma cadeia operatória
separada.
Essa produção de lamelas, verosimilmente destinadas a um uso como barbelas brutas,
poderá em boa parte ter sido realizada mediante a exploração de «raspadeiras» espessas,
técnica que permitia igualmente a obtenção de esquírolas ou pequenas lascas de contorno
regular e comprimento <2 cm, de funcionalidade certamente idêntica. Em Vale Comprido - Encosta, por exemplo, este tipo de núcleos estava representado por 48 exemplares (tome-se
em conta, para efeitos comparativos, que os núcleos prismáticos «para lamelas» eram, nesta
jazida, 108). As remontagens realizadas na Lapa do Anecrial demonstram que a exploração
de carenados coexistia efectivamente com a extracção de lâminas e lamelas a partir de
núcleos prismáticos, ou seja, que era uma componente de um sistema de produção lítica de
características polimórficas, e não um sistema completo independente. Conforme já se
argumentou anteriormente (Zilhão e Aubry 1996), estes resultados permitem demonstrar que
o chamado «Aurignacense V» da sequência franco-cantábrica não é senão uma fácies de
actividade especializada do Proto-Solutrense, fácies de que as jazidas do Anecrial e do Gato
Preto constituem exemplos portugueses equivalentes.
No que respeita a esta última, a análise dos materiais e a realização, por F. Almeida, de
remontagens preliminares, mostra uma variante interessante da produção de carenados. Ao
contrário do Anecrial, onde o respectivo ponto de partida é, no que respeita ao sílex,
constituído pelo material residual produzido no contexto do reavivamento de núcleos
prismáticos destinados à extracção de lâminas e lamelas, os suportes das «raspadeiras»
carenadas e afocinhadas do Gato Preto são obtidos de forma imediata e expedita através da
divisão dos nódulos de sílex em pequenos volumes angulosos, prontos a debitar.
208
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
5.5.4. Pontas de Vale Comprido
As pontas cuja obtenção constitui a causa final de uma das cadeias operatórias acima
descritas são peças robustas, de espessura compreendida entre 4 e 8 mm, largura variando em
torno dos 2 cm, e comprimento que, sendo em média de 5 cm, pode chegar a atingir os 8 cm.
A extensão do retoque permite discriminar três subtipos (Fig. 5.20): BA (base adelgaçada),
em que a única transformação sofrida pelo suporte foi o adelgaçamento dorsal do talão; RE
(retoque extensivo), em que os bordos foram extensivamente modificados e a ponta se
apresenta retocada; e LA (lâmina apontada), um subtipo intermédio, com retoque parcial dos
bordos (geralmente na zona proximal adjacente ao talão) ou da ponta. Em alguns exemplares,
raros (2% do total), o bolbo também foi eliminado, e, em certos casos igualmente raros (3%
do total), a modificação do suporte foi levada a cabo por retoque plano.
É possível que, de um modo geral, esta diferenciação em subtipos tenha um carácter
ontogenético, isto é, que as pontas BA e LA correspondam frequentemente a peças
inacabadas, ou que as poucas pontas RE correspondam a exemplares em que a maior
extensão do retoque decorre da necessidade de reparar os danos provocados pelo uso nos
gumes laterais ou na ponta. Em certos casos, como acontece com o exemplar ilustrado sob o
nº 1 da Fig. 5.20, parece claro, porém, que o adelgaçamento dorsal do talão foi efectivamente
suficiente para produzir uma ponta funcional e que, portanto, as peças do subtipo BA podem
corresponder também a objectos prontos a usar. A ocorrência de levantamentos burinantes
associados a superfícies de fractura, as quais apresentam por vezes a característica
morfologia em lingueta, demonstra que este tipo de objectos se destinava a servir de
extremidade lítica, perfurante, de armas de arremesso, embora não se possa excluir uma
utilização paralela de alguns exemplares como lâmina de instrumentos encabados com gume
lateral cortante (facas).
5.5.5. Fundamento da variabilidade inter-sítios
A natureza exacta das referidas armas continua, no entanto, por precisar, embora seja
bastante provável que se trate de material distinto do que, em época anterior, era armado com
pontas de Casal do Felipe. Com efeito, o peso das peças deste último tipo recolhidas nas duas
jazidas fontesantenses variava entre 1 e 3 g (com uma única excepção, a de uma peça com
4 g), e era em média (calculada sobre um total de 32 peças pertencentes aos estados de
fragmentação I1 e I2) de 1,7 g. O peso das 124 pontas de Vale Comprido inteiras da jazida
epónima, porém, variava entre 1 e 30 g, era em média de 8 g, e o intervalo inter-quartis da
respectiva distribuição ia de 5 a 10 g. O comportamento balístico de projécteis armados com
pontas deste peso seria com certeza diferente, e a largura bastante maior das bases dessas
pontas (quase sempre superior a 2 cm, contra pouco mais de 1 cm nas da Fonte Santa)
determinava seguramente processos de encabamento distintos.
O estudo realizado por Plisson e Geneste (1989:80, 90-91) sobre as pontas crenadas do
Solutrense francês fornece paralelos interessantes, que permitem propor uma interpretação da
razão de ser das diferenças existentes entre as pontas fontesantenses e proto-solutrenses
portuguesas. Nesse estudo, os autores referidos demonstram que o universo por si analisado
se divide em dois agrupamentos dimensionais. As mais pequenas apresentam um peso que,
oscilando entre 2 e 11 g, é em média de 4,3 g, o que as coloca no limite de variação das
pontas de flecha e indica que deviam constituir armaduras de projécteis ligeiros, com cabos
de diâmetro situado em torno dos 8-9 mm. As maiores, de peso superior a 8 g, deviam ser
montadas sobre projécteis mais pesados, arremessados à mão ou através de propulsor, e
dispondo de cabos mais robustos, de diâmetro compreendido entre os 12 e os 15 mm. Neste
contexto, parece legítimo admitir que as pontas de Casal do Felipe seriam funcionalmente
Sequência cultural
209
QUADRO 5.1
Variabilidade inter-sítios no Proto-Solutrense
Hipótese baseada na especificidade funcional das cadeias operatórias e no modelo da transição em duas etapas
Sítios
Cadeia operatória predominante
Actividades principais
Vales da Senhora da Luz
Gato Preto
Vale Comprido - Encosta
Produção de facas
Produção de barbelas
Produção de pontas
Domésticas
Fabricação de flechas ou zagaias
Fabricação de dardos ou lanças
equivalentes às pontas crenadas de pequeno tamanho, e que as de Vale Comprido serviriam
para armar dardos ou até, pelo menos no caso das maiores, lanças ou outros tipos de
projécteis arremessados de perto, sem ajuda mecânica.
Deste modo, é muito provável que, no Proto-Solutrense, as pontas destinadas a armar os
projécteis mais leves (flechas ou zagaias) fossem, em grande parte (senão mesmo na sua
totalidade), fabricadas em osso ou haste de cervídeo, e que, portanto, a componente
«Aurignacense V» do sistema de produção lítica então vigente corresponda ao processo de
fabrico das respectivas barbelas. Nesse caso, a marcada variabilidade inter-sítios que parece
caracterizar o período poderia ser interpretada como função do papel predominante (ou até
exclusivo) que determinado tipo de actividades teria tido nas diferentes ocupações (Quadro
5.1). Como é óbvio, um modelo deste tipo pressupõe que essas ocupações tenham sido
contemporâneas. Em alternativa, porém, pode sempre argumentar-se, como acima se referiu,
que a fabricação de pontas de dardo ou de lança em pedra só se terá tornado verdadeiramente
popular na etapa final, ou plena, do Proto-Solutrense; ou seja, que a não representação da
cadeia operatória para pontas de Vale Comprido em jazidas como Gato Preto e Vales da
Senhora da Luz não é mais do que um simples reflexo do facto de ambas datarem da etapa
intermédia da transição.
5.6. Solutrense médio
5.6.1. Cronologia
Os contextos atribuíveis de forma segura ao Solutrense médio actualmente conhecidos são
apenas quatro: camada H da Gruta do Caldeirão, Casal do Cepo, Vale Almoinha e Monte da
Fainha (ver vol. II, capítulos 27, 29, 36 e 39). No Quadro 3.1 foram também considerados
como tendo tido ocupação deste período alguns sítios onde se fizeram achados avulsos ou
com condições de jazida mal esclarecidas, dado que, por um lado, esses achados incluíam
folhas de loureiro e que, por outro, nesses sítios não havia, tanto quanto se sabe, pontas
pedunculadas. É o caso, especificamente, das grutas da Furninha e do Escoural, da Lapa do
Anecrial (camada 1), e do conjunto proveniente de Vale Comprido - camada A (ver vol. II,
capítulos 8, 10, 23 e 32).
Dispomos actualmente de quatro datações absolutas 14C para este período. Em Vale
Almoinha, duas amostras de carvões de madeira recolhidos nas escavações de Heleno deram
os resultados de 20 380±150 BP (ICEN-71), para a zona SIII, e de 19 940±180 BP (OxA-5676), para a lareira da zona AIII. No Caldeirão, a datação por acelerador de duas amostras
de osso da camada H deu os resultados de 20 530±270 BP (OxA-2511) e de 19 900±260 BP
(OxA-1939). A caracterização da cronologia deste período como estando centrada em torno
de 20 500 BP parece assim, nestas circunstâncias, pouco controversa, tanto mais quanto,
como adiante se verá, a ocupação de Vale Almoinha já deverá estar relacionada com um
momento de transição para o Solutrense superior.
210
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
5.6.2. Fácies
Com efeito, o espólio lítico recolhido na jazida de Cambelas continha pontas crenadas (um
exemplar inacabado e dois fragmentos, um dos quais duvidoso) e folhas de salgueiro (uma
inteira e dois fragmentos), utensílios geralmente considerados característicos da etapa
seguinte da sequência cultural do Sudoeste europeu (Smith 1966). Tendo também em conta a
datação obtida para a jazida (relativamente precoce para um Solutrense superior), poderia
assim argumentar-se, seguindo Straus (1983a, 1987, 1991, 1992), que a diferenciação entre
Solutrense médio e superior seria improcedente. Ou seja, que essa datação confirmaria a
hipótese por ele defendida segundo a qual a distribuição das pontas pedunculadas estaria
determinada por factores ligados aos acidentes de amostragem ou à funcionalidade das
ocupações e não constitui, portanto, um critério aceitável de subdivisão cronológica.
Do ponto de vista funcional, porém, a jazida de Cambelas é do mesmo tipo da do Casal
do Cepo, na qual não havia pontas crenadas. Ambas correspondem a ocupações de natureza
residencial, e trata-se em ambos os casos de sítios onde as actividades de talhe incluem uma
componente de fabrico de armaduras — as pontas de face plana — de módulo e gabarito
semelhante à das pontas de pedúnculo lateral do Solutrense superior (ver adiante). Por outro
lado, na sequência do Caldeirão, as pontas pedunculadas só estão documentadas a partir da
camada Fb. Dado tratar-se de um sítio de gruta, onde seria de esperar que as tarefas de
natureza logística tivessem um peso importante e onde, portanto, houvesse lugar a abandono
frequente de armaduras inutilizadas, não parece que a respectiva ausência na camada H possa
ser convenientemente explicada com base em argumentos de natureza funcional (embora seja
certo que, nessa camada, também não havia pontas de face plana). Já no que diz respeito ao
Casal do Cepo, porém, é bastante claro que a melhor explicação para a ausência das pontas
crenadas é a de que o papel funcional desempenhado por estas últimas caberia ainda, na
época em que a jazida foi ocupada, às pontas de face plana.
Por outro lado, a existência de horizontes crono-estratigráficos com folhas de loureiro
mas sem pontas crenadas está bem documentada em sequências-chave de França e Espanha,
como são, por exemplo, as de Laugerie-Haute, Parpalló, e Mallaetes (Pericot 1942; Smith
1966; Fortea e Jordá 1976; Fullola 1979; Bordes 1984). Nestas circunstâncias, parece óbvio
que a interpretação mais prudente da datação e das características industriais da jazida de
Cambelas é a de que respectiva ocupação terá tido lugar num momento em que já estaria em
curso a transição para a etapa seguinte da sequência cultural. Ou seja, que o contraste entre o
espólio de Vale Almoinha, com raras pontas crenadas, e o do Casal do Cepo, onde elas estão
de todo ausentes, é de natureza cronológica e não funcional.
Isso não significa de modo nenhum, como é evidente, que este último factor de
variabilidade não tenha também tido um impacto importante nas características dos espólios
do Solutrense médio que chegaram até nós. Achados isolados como o da Furninha, por
exemplo, poderão estar relacionados com ocupações logísticas de tipo bivaque, enquanto que
o facto de a jazida do Monte da Fainha conter exclusivamente esboços de folhas de loureiro
concentrados num espaço muito reduzido indica que devia tratar-se de uma reserva ou
esconderijo (ver capítulo 4).
5.6.3. Economia da pedra
O sistema de produção lítica reconstituído a partir da análise das colecções provenientes dos
sítios residenciais de ar livre de Vale Almoinha e Casal do Cepo (Fig. 5.21) é radicalmente
diferente do que existia durante o Proto-Solutrense, não sendo actualmente conhecidos os
processos através dos quais se deu a substituição de um pelo outro. Do ponto de vista da
Sequência cultural
211
Fig. 5.21 - Sistema de exploração do sílex reconstituído a partir da análise dos espólios do Solutrense médio.
economia da pedra, o Solutrense médio representa, com efeito, um regresso ao padrão
fontesantense, embora com pequenas diferenças ao nível da técnica de extracção dos suportes
alongados. A principal novidade é a que diz respeito à reintrodução de um processo de
fabrico de utensílios cuja tradição, em Portugal, se havia perdido desde o início do Paleolítico
Médio: o do afeiçoamento bifacial, utilizado na obtenção das peças foliáceas designadas
tradicionalmente como folhas de loureiro.
O objectivo final da debitagem dos núcleos prismáticos, de um modo geral preparada
através de uma facetagem cuidada («microfacetagem»), é a obtenção de suportes alongados.
Tanto em Vale Almoinha como no Casal do Cepo, os intervalos inter-quartis da distribuição
das respectivas larguras têm como limite inferior 1 cm, e como limite superior 1,5 cm. No
entanto, só as peças maiores eram objecto de transformação por retoque, como se depreende
do facto de, em ambas as jazidas, a largura média das facas e das pontas de face plana ser
precisamente de ≈1,5 cm. As mais estreitas deviam ser utilizadas em bruto, nomeadamente
como barbelas, embora a forma mais comum de obtenção de produtos com essa função fosse,
pelo menos em Vale Almoinha, a da extracção de esquírolas pela técnica bipolar. Em
consequência, as peças esquiroladas estão quase tão bem representadas no respectivo espólio
como os núcleos prismáticos. No Casal do Cepo, o mesmo objectivo era atingido sobretudo
através da exploração exaustiva destes últimos, que eram retomados para a obtenção de
esquírolas após verem exaurida a sua capacidade de produção de lâminas e de lamelas (o que
explica em parte a importante percentagem de peças achatadas apurada para o conjunto dos
núcleos prismáticos da colecção — 27%). Os produtos corticais obtidos nas fases de
conformação e de debitagem inicial de lâminas eram reaproveitados como suporte para a
fabricação de raspadeiras e de outros utensílios do fundo comum. Em certos casos, muito
raros, verificava-se igualmente a sua utilização para a extracção de lamelas, quer pela técnica
do golpe de buril quer pela técnica do núcleo carenado («raspadeira» espessa).
212
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Quando o objectivo era a extracção de suportes destinados a transformação em pontas de
face plana, os núcleos eram debitados a partir de dois planos de percussão opostos explorados
de forma alternada. Em consequência, este tipo de pontas apresenta com muita frequência
anversos bidireccionais, o atributo em causa tendo sido registado em 49% das pontas de face
plana de Vale Almoinha e do Casal do Cepo em que foi possível realizar a respectiva
observação. Por outro lado, nesse mesmo universo, a percentagem de talões facetados era de
68%, e a das peças de perfil direito de 44%. Tudo indica, conforme anteriormente se
argumentou (ver capítulo 3), que exista uma certa correlação entre estes factos, ou seja, que a
produção de suportes para pontas de face plana tenha sido realizada através de uma cadeia
operatória em grande medida separada, e que a escolha do método de extracção utilizado
tenha sido determinada pela intenção de assim obter produtos de perfil plano ou apenas
ligeiramente côncavo. Embora parte desses suportes tenha acabado por dar também origem a
raspadeiras e facas, a extracção de lâminas e de lamelas destinadas a ser transformadas em
utensílios destes tipos, ou a ser usadas como barbelas brutas, aparenta no entanto, de um
modo geral, ter sido feita de forma mais expedita, a partir de núcleos com um só plano de
percussão (ou dois opostos, mas explorados de forma sequencial) e que não eram objecto de
preparação de modo tão frequente. Assim o indica, com efeito, o facto de serem bastante
inferiores, neste universo, as percentagens de talões facetados e de peças com anverso
bidireccional (que, no caso das facas, eram de 42% e de 32%, respectivamente).
5.6.4. Pontas de face plana
Embora haja alguns exemplares avulsos classificáveis nos subtipos A e C de Smith (1966), a
quase totalidade das pontas de face plana de Vale Almoinha e do Casal do Cepo é assimilável
ao subtipo B do referido autor, para quem, aliás, estas peças gráceis, em forma de lágrima,
ligeiramente desviadas (em geral para a direita), e em que o retoque plano é parcial (e, em
geral, aplicado apenas ao longo do bordo esquerdo da face superior ou, para eliminação do
bolbo, à extremidade proximal da face inferior), são precisamente as típicas do Solutrense.
Esta definição assenta na perfeição às peças das duas jazidas portuguesas, cuja variabilidade
morfológica releva, no essencial, do facto de se tratar em muitos casos de exemplares
inacabados (Fig. 5.22). A observação destes últimos indica que, de um modo geral, as
operações de retoque se fariam segundo uma ordem determinada: primeiro, o afeiçoamento
da base; depois, a eliminação do bolbo; a seguir, a modificação do contorno dos suportes pela
aplicação de retoque plano às zonas mesiais dos bordos; e, finalmente, o retoque em ponta da
extremidade distal. Esta última operação era tornada necessária pelo facto de os suportes de
morfologia convergente serem raros: 14% das lâminas brutas de Vale Almoinha, nenhuma no
Casal do Cepo. Deste modo, as extremidades obtusas dos suportes tinham também de ser
devidamente retocadas, a não ser quando houvesse já uma ponta natural, o que só acontecia
em 22% das peças de Vale Almoinha, e em 23% das do Casal do Cepo.
Do ponto de vista dimensional, os suportes das pontas de ambas as jazidas eram já muito
normalizados, sobretudo no que respeita à espessura, que em 89% dos exemplares inteiros ou
de comprimento reconstituível (num total de 56 peças) estava compreendida entre 3 e 6 mm,
e era em percentagem idêntica ≤5 mm. Esta espessura reduzida era certamente determinada
em grande medida pela técnica de extracção, e implica que o retoque plano apresentado por
este material fosse com toda a probabilidade aplicado por pressão, conforme se depreende
das reconstituições experimentais conhecidas (veja-se, por exemplo, Aubry 1991:181). A
largura, por sua vez, variava, em 88% das peças do mesmo universo, entre 1 e 2 cm, e devia
ser deliberadamente buscada em função dos requisitos exigidos pela técnica de encabamento.
O comprimento, finalmente, tinha uma amplitude de variação um pouco maior: a mais curta
das peças medidas tinha 2,7 cm, a maior tinha 5,9 cm, e 86% apresentavam para este
parâmetro valores compreendidos entre 3 e 5 cm.
Sequência cultural
213
Fig. 5.22 - Pontas de face plana do Solutrense médio do Casal do Cepo. 1.-2. peças inacabadas; 3. peça descartada
após fractura de uso. Observe-se o retoque basal inverso eliminando o bolbo, presente nos três exemplares e, nas
peças inacabadas, o carácter bidireccional das cicatrizes dos anversos, indicando a extracção dos suportes a partir
de núcleos com dois planos de percussão explorados de forma alternada.
Os pesos variavam entre 1 e 5 g, sendo em média de 2,6 g, isto é, eram da mesma ordem
de grandeza dos apurados para as pontas de Casal do Felipe das jazidas fontesantenses. A sua
funcionalidade devia ser, portanto, a mesma, ou seja, devia tratar-se de armaduras montadas
axialmente como extremidade perfurante de flechas ou zagaias com cabos de madeira de
diâmetro inferior a 1 cm. A presença de estigmas de impacto nalgumas peças do Casal do
Cepo permite confirmar, aliás, que este material terá efectivamente sido utilizado como ponta
de projéctil. Por outro lado, o padrão diferencial de calcinação apresentado pelas peças das
várias classes de fragmentação recolhidas no Casal do Cepo parece indicar que a fixação
deste material devia ser feita por colagem com mastique. Nessa jazida, com efeito, 75% das
pontas queimadas correspondiam a fragmentos proximais, sugerindo tratar-se de material
partido em consequência de utilização, o choque térmico evidenciado pelo sílex resultando da
respectiva submissão ao fogo, realizada com o objectivo de derreter o produto de fixação e,
por essa via, proceder à recuperação do cabo para uso ulterior.
5.6.5. Folhas de loureiro
O estudo das folhas de loureiro é uma tarefa dificultada por se tratar, de um modo geral, de
objectos intensamente curados, com uma biografia complexa, devida ao facto de a sua
fabricação exigir um investimento relativamente elevado. Nos sítios arqueológicos, as etapas
melhor documentadas da respectiva «ontogénese» costumam, por isso, ser a inicial (peças
abandonadas no local de fabrico em virtude da ocorrência de acidentes de talhe) e a final
(peças partidas, abandonadas nos locais de habitat após inutilização definitiva). O achado de
peças acabadas intactas, de forma e proporções correspondentes aos padrões de produção a
que os artesãos procuravam obedecer, é relativamente raro, e constitui indício de que, no
passado, o local de deposição poderá ter sido usado para o estabelecimento de reservas ou
esconderijos, cujo conteúdo acabou por ser esquecido ou abandonado. Usando essas peças
como fonte fidedigna para a reconstituição dos referidos padrões, podem distinguir-se entre
as folhas de loureiro do Solutrense médio português cinco agrupamentos relacionáveis com
alguns dos subtipos diferenciados por Smith (1966) para o Solutrense francês:
•
peças de base convexa, assimiláveis ao subtipo C, com um comprimento da ordem dos 7-8 cm e uma largura variando em torno dos 2,5 cm, as quais constituem a grande maioria
dos exemplares conhecidos nas jazidas da Estremadura (Fig. 5.23, nº 6);
214
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
•
peças de base convexa, mas de pequenas dimensões, que podem ser consideradas como
miniaturas do subtipo C, de largura variando em torno dos 1,5 cm, e cujo comprimento
não devia, de um modo geral, ultrapassar os 5 cm (Fig. 5.23, nº 4);
•
peças de base apontada, de face inferior lisa ou apenas muito parcialmente retocada,
assimiláveis ao subtipo G (ponta de Badegoule), e de módulo semelhante ao das de
subtipo C (Fig. 5.23, nº 5);
•
peças muito alongadas, estreitas e de bordos subparalelos, assimiláveis ao subtipo L, com
um comprimento que, no único exemplar onde ele é passível de estimação, devia ser, no
mínimo, de cerca de 13 cm (Fig. 5.23, nº 1);
•
peças assimétricas, assimiláveis ao subtipo M, diferindo das de subtipo C sobretudo pela
sua largura excessiva, de que resulta uma morfologia em crescente, opondo um bordo
acentuadamente encurvado a outro praticamente direito, e uma extremidade distal de
ângulo bastante aberto (Fig. 5.23, nº 7).
Os exemplares ilustrados na Fig. 5.23 são os que se consideraram mais representativos de
cada um desses agrupamentos. Nalguns casos, porém, as peças em questão provêm de
contextos de estratigrafia insegura, pelo que poderão datar do Solutrense superior. Apesar
disso, a existência dos subtipos em questão no Solutrense médio é sugerida pelo achado de
exemplares fragmentados recolhidos em contextos mais seguros, nomeadamente em Vale
Almoinha e na Gruta do Caldeirão (camada H). Dadas as datações obtidas para estes últimos,
e o facto de, no Casal do Cepo, só estar documentado o subtipo C, não pode excluir-se,
porém, que o aparecimento das restantes formas na jazida de Cambelas esteja relacionado
com o facto, igualmente sugerido, conforme acima se referiu, pela presença das pontas
pedunculadas e das folhas de salgueiro, de a ocupação nela representada pertencer já a um
momento de transição para o Solutrense superior.
Há igualmente alguns exemplares cujas morfologia e dimensões os colocam numa
posição intermédia entre os subtipos C e L. É o caso da peça ilustrada sob o nº 2 da Fig. 5.23,
proveniente do esconderijo da Galeria da Cisterna (Gruta do Almonda), onde estava
associada a pontas crenadas. Com um comprimento de 10,5 cm e uma largura de 2,5 cm, ela
apresenta bordos perfeitamente paralelos em cerca de metade da sua extensão, os quais
convergem gradualmente, na extremidade proximal, para formar uma base convexa, e de
forma mais marcada, na extremidade distal, para formar uma ponta aguçada, ligeiramente
desviada para a direita. A peça ilustrada sob o nº 3 da mesma Fig. 5.24, proveniente da
camada H da Gruta do Caldeirão, é um objecto de módulo absolutamente idêntico e que,
originalmente, devia apresentar a mesma morfologia. Depois de partida, no entanto, a
respectiva base foi reaproveitada mediante o afeiçoamento de um espigão na superfície de
fractura, e foi já nesse estado que finalmente se transformou em vestígio arqueológico. A
interpretação do utensílio resultante deste reaproveitamento é difícil, sendo possível conceber
pelo menos duas funções diferentes, consoante se opte por uma ou outra das formas de
orientação propostas: com o espigão para baixo, como faca encabada pela base; com o
espigão para cima, como furador. Seja como for, este é um exemplo concreto do carácter
curado deste tipo de peças foliáceas, e de como a forma e função que tinham na fase final da
sua «ontogénese» não corresponde necessariamente às da respectiva fase inicial.
Em publicações anteriores (Zilhão 1984b, 1987a), assinalou-se a existência em Vale
Almoinha de folhas de loureiro atribuíveis aos subtipos A, D, E, F, H, I, J, e K de Smith
(1966). A revisão da colecção permitiu, no entanto, afastar essa caracterização. As peças em
questão correspondiam na realidade a fragmentos ou esboços cuja classificação, no que
respeita à forma inicial, antes da fractura, ou final (a que se pretendia chegar após o termo do
processo de afeiçoamento), não é possível. As peças que nesses trabalhos foram atribuídas
aos subtipos A e K, por exemplo, devem mais provavelmente, na realidade, ser fragmentos de
Sequência cultural
215
Fig. 5.23 - Folhas de loureiro. Com os nºs 1 e 4-7 ilustram-se os cinco subtipos conhecidos em Portugal (ver texto).
Sob o nº 3, ilustra-se, orientada de duas formas diferentes, uma peça idêntica à ilustrada sob o nº 2 mas que, após
fractura, foi reaproveitada (como faca de espigão basal ou como furador). 1. Grutas do Poço Velho; 2. Gruta do
Almonda (Galeria da Cisterna); 3. Gruta do Caldeirão (camada H); 4. Gruta da Furninha; 5. Gruta de Salemas
(nível II); 6. Vale Almoinha; 7. Monte da Fainha.
216
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
objectos cuja morfologia original seria semelhante à das folhas de loureiro do Monte da
Fainha que foram classificadas como de subtipo M. Quanto às incluídas no subtipo I, a
manutenção da sua classificação enquanto tais exigiria uma revisão da definição dada por
Smith, para quem se trata de miniaturas do subtipo A. No caso português, com efeito, as
peças de pequenas dimensões a que acima se fez referência são de base convexa e não de
base apontada.
Apesar de integrados numa mesma categoria tipológica, parece evidente que, do ponto de
vista funcional, os diferentes tipos de objectos ilustrados na Fig. 5.24 corresponderão, na
realidade, a categorias completamente distintas. As folhas de loureiro miniatura, de módulo e
peso semelhantes aos das pontas de face plana, podem ter sido usadas igualmente como ponta
de flecha ou de zagaia. As de subtipo M, por seu lado, apresentam perfil e proporções que
excluem uma utilização como extremidade de projéctil e parecem mais próprios de utensílios
de gume lateral cortante, isto é, deverão ter sido usadas como facas. As restantes, de peso
claramente superior ao das pontas de face plana, poderão, à semelhança do que anteriormente
se aventou para o caso das pontas de Vale Comprido, ter sido usadas como armaduras de
dardos ou de lanças. Nalguns casos, a observação de estigmas de impacto característicos
(levantamentos burinantes associados às superfícies de fractura) permite confirmar, de facto,
a utilização como armadura de projéctil de folhas de loureiro de módulo semelhante à da peça
de subtipo C ilustrada sob o nº 6 da Fig. 5.23.
Esta verosímil diversidade de funções não significa, porém, que a classificação conjunta
deste material seja inteiramente destituída de sentido, uma vez que ele se caracteriza por uma
homogeneidade importante no que respeita aos processos de fabrico. O ponto de partida da
cadeia operatória tanto pode ser constituído por nódulos brutos em forma de seixo achatado
ou de plaqueta como por lascas ou lâminas de grandes dimensões, debitadas expressamente
ou correspondendo a desperdícios da fase inicial de conformação dos núcleos prismáticos. O
adelgaçamento bifacial é realizado, tal como acontece na fase plena de produção das lâminas
extraídas dos núcleos, mediante a microfacetagem dos planos de percussão. O pré-tratamento
térmico está documentado em diversos exemplares de Vale Almoinha, pôde ser observado no
esboço proveniente da camada 1 da Lapa do Anecrial, e é também patente em algumas peças
da Gruta do Caldeirão, uma das quais recolhida na camada H, conforme se demonstrou no
contexto do estudo monográfico dos respectivos níveis solutrenses.
5.7. Solutrense superior
5.7.1. Cronologia
Existem actualmente duas datações absolutas fidedignas para contextos do Solutrense
superior: a da camada Fc da Gruta do Caldeirão, onde uma amostra de osso de veado deu o
resultado de 18 840±200 BP (OxA-2510); e a do Conjunto 9 da Buraca Grande, onde uma
amostra de carvão de madeira deu o resultado de 17 850±200 BP (Gif-9502). As sequências
estratigráficas das duas cavidades apresentam um paralelismo notável (ver vol. II, capítulos 9,
27 e 49). Em ambos os casos, os respectivos níveis solutrenses estão imediatamente
subjacentes a depósitos com indústrias magdalenenses, e em ambos os casos estão separados
destes últimos por discordâncias bem marcadas (relacionadas com hiatos de erosão ou de
sedimentação). Deste modo, parece legítimo admitir para a camada Fa do Caldeirão, que
encima a estratigrafia solutrense da jazida e para a qual as tentativas de datação até agora
realizadas se revelaram infrutíferas (os resultados obtidos têm de ser considerados anómalos,
dado estarem em desacordo com a ordem de sucessão das camadas), uma cronologia
semelhante à indicada pela data da Buraca Grande, que foi obtida a partir de uma amostra
colhida no extremo topo dos níveis solutrenses.
Sequência cultural
217
Aceitando-se este paralelo, a sequência de camadas Fa-Fc da jazida de Tomar teria sido
depositada entre ≈19 000 e ≈18 000 BP conforme, aliás, se havia já argumentado no quadro
do estudo monográfico dos respectivos contextos pré-magdalenenses. Tendo em conta a
datação obtida para a jazida de Vale Almoinha, e o facto de ser provável que a respectiva
indústria corresponda já a um momento de transição entre o Solutrense médio e o superior,
este último (entendido na sua acepção tradicional de indústrias solutrenses com pontas
pedunculadas) pode ser definido cronologicamente como tendo um limite inferior situado por
volta de 20 000 BP, e como tendo-se prolongado até cerca de 18 000 BP.
Esta definição tem de ser encarada, no entanto, com duas reservas importantes. A
primeira é a de que não dispomos de qualquer informação directa acerca do período
compreendido entre ≈16 000 e ≈18 000 BP, pelo que não podemos excluir a hipótese de a
tecnologia solutrense ter continuado a ser utilizada mesmo depois desta última data. A
segunda é a de que, inversamente, também não é possível garantir que o Solutrense superior
se tenha de facto prolongado até ≈18 000 BP. Com efeito, a resolução do Conjunto 9 da
Buraca Grande não era suficiente para permitir a discriminação estratigráfica dos diferentes
momentos de ocupação da cavidade representados pelos vestígios recolhidos nesses níveis. E,
por outro lado, nas zonas in situ da camada Fa da Gruta do Caldeirão, não foi encontrada
qualquer peça foliácea, o único artefacto lítico característico sendo uma ponta crenada de
dorso. Ora, como adiante se verá, existem alguns indícios de que, tal como no sul de Espanha
(Fortea et al. 1983), o Solutrense superior terá sido seguido, em Portugal, de uma etapa
industrial de tipo solutreo-gravettense. Por conseguinte, torna-se forçoso encarar também
com a devida consideração a possibilidade de o conteúdo arqueológico da camada Fa estar já
relacionado com ocupações desta última época.
5.7.2. Fácies
No Olival da Carneira, porém, as pontas de dorso e pedúnculo lateral apareciam associadas a
uma ponta crenada de retoque plano (ver vol. II, capítulo 30), e no esconderijo da Galeria da
Cisterna do Almonda apareciam associadas a folhas de loureiro (ver vol. II, capítulo 28).
Embora seja necessário ter em conta que as condições de jazida verificadas na estação de Rio
Maior não eram suficientemente boas para que pudesse ser completamente posta de parte a
hipótese de o espólio recolhido corresponder a um palimpsesto de ocupações sucessivas,
estes factos sugerem que os três tipos de artefactos poderão ter sido de uso contemporâneo; e
que, portanto, também deverão ter sido contemporâneos de um outro tipo de armadura
pedunculada, a ponta de Parpalló, cuja presença está bem documentada na camada Fb do
Caldeirão.
As pontas de face plana características do Solutrense médio, por seu lado, já não
apareciam nem nas camadas Fa-Fc do Caldeirão nem em Salemas ou no Olival da Carneira.
Este desaparecimento poderá estar funcionalmente ligado à concomitante presença nesses
contextos de pontas crenadas, ou seja, pode indicar que umas terão sido substituídas pelas
outras, possivelmente em relação com mudanças ocorridas na tecnologia de encabamento. A
ser assim, é possível, dada a presença incipiente do tipo em Vale Almoinha, que as pontas
crenadas de afinidades franco-cantábricas tenham sido as primeiras pontas pedunculadas do
Solutrense superior português a ser inventadas, e que só subsequentemente tenham sido
introduzidas as pontas de afinidades mediterrânicas: de dorso e crena, por um lado, e de
pedúnculo e aletas, por outro. Estas últimas, aliás, poderiam representar também elas o termo
final de um processo de desenvolvimento tecnológico cujo ponto de partida, neste caso,
teriam sido as folhas de loureiro de módulo idêntico existentes em Vale Almoinha, em que a
presença de estigmas de impacto evidencia uma utilização como pontas de projéctil.
218
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Os dados existentes não são suficientes, porém, para permitir uma avaliação adequada
destas ideias. Só a continuação da investigação poderá vir a determinar se, de facto, as três
variedades de pontas pedunculadas foram introduzidas no equipamento dos caçadores
solutrenses de forma simultânea ou se, pelo contrário, essa introdução se deu segundo uma
certa ordem. A verificar-se, esta última hipótese permitiria realizar uma subdivisão
cronológica mais fina do período, o qual, no actual estado dos conhecimentos, parece ter uma
duração mais de duas vezes superior à dos que o precederam.
Enquanto a questão não se esclarecer, porém, não resta outra alternativa que não seja a de
considerar a variação inter-sítios na presença ou ausência dos diferentes tipos de pontas do
Solutrense superior como determinada pela funcionalidade dos sítios e, sobretudo, pelos
acasos da amostragem. O peso preponderante que terá tido este último factor ressalta de
forma muito evidente, aliás, da consulta da listagem de sítios com vestígios de ocupações do
Solutrense superior que consta do Quadro 3.1: os contextos que resultam de trabalhos
modernos ainda não foram objecto de estudo e publicação pormenorizados (Buraca Grande,
Caldeirão, Lapa da Rainha, Suão), são provenientes de áreas pequenas e com baixa densidade
de achados (Olival da Carneira, Almonda), ou correspondem a materiais de superfície ou em
posição secundária, cujas condições de jazida são problemáticas ou se encontram por
esclarecer (Porto Dinheiro, Rua de Campolide, Ourão); e os provenientes de escavações
antigas são, com excepção de Salemas, constituídos por achados avulsos reconhecidos pela
sua tipologia no interior de espólios misturados (Baío, Passal, Casa da Moura, Poço Velho).
Consequentemente, é só com as reservas que nestes casos são de rigor que as
caracterizações funcionais propostas no Quadro 4.6 devem ser encaradas. Se não parece
haver grandes dúvidas quanto à natureza altamente especializada da ocupação de Salemas, ou
à interpretação como esconderijo do contexto do quadrado M15 da Galeria da Cisterna do
Almonda, já no que respeita ao carácter residencial das ocupações da Buraca Grande e do
Caldeirão é necessária, evidentemente, uma confirmação adicional. Tanto mais quanto, a ser
assim, seria nesta época que ocupações de gruta com essas características apareceriam pela
primeira vez no registo arqueológico estremenho.
5.7.3. Economia da pedra
O Olival da Carneira é a única das jazidas de natureza residencial estudadas em que foi
possível observar indícios de uma representação razoavelmente completa dos diferentes
aspectos do sistema de exploração do sílex que seria praticado nesta época. A insuficiência
quantitativa do espólio recolhido não permite, no entanto, uma reconstituição segura das
respectivas modalidades. Em qualquer dos casos, conjugando essas observações com as
realizadas nas restantes jazidas, é possível elaborar um esquema provisório, a confirmar por
trabalhos futuros.
O histograma das larguras das lâminas e lamelas da camada 5 do Olival da Carneira
sugere uma debitagem de produtos alongados de tipo gravettense (comparem-se as Figs. 30.5
e 18.2 do vol. II), isto é, em que as lâminas de largura superior a 1,4 cm representam a cauda
de uma distribuição onde a grande maioria das peças apresenta larguras variando em torno de
1 cm e está contida num intervalo com amplitude de 0,8 cm. A presença de talões labiados e
de peças com vestígios de abrasão da cornija parece apontar igualmente para uma ruptura
com a tecnologia praticada no Solutrense médio, durante o qual a preparação dos planos de
percussão dos núcleos se fazia por facetagem.
Uma percentagem elevada das pontas crenadas apresenta anversos bidireccionais
(Fig. 5.24), atributo que foi registado em 32% do total de peças em que ele era passível de
observação. No caso mais restrito das peças de tipologia franco-cantábrica, a percentagem era
Sequência cultural
219
Fig. 5.24 - Dimensões e atributos das pontas crenadas do Solutrense superior. Note-se a percentagem importante
de peças de anverso bidireccional, e o agrupamento em quatro grupos dimensionais: cantábricas de largura na
junção inferior a 1 cm; cantábricas de largura na junção superior a 1,15 cm; mediterrânicas de comprimento total
entre 4,5 e 5,5 cm; e mediterrânicas de comprimento total entre 3 e 4 cm. Além das diferenças respeitantes ao
modo de retoque, as pontas mediterrânicas diferenciam-se das cantábricas também pelo facto de apresentarem
pedúnculos mais curtos.
ainda mais elevada (42%), encontrando-se nessa situação, aliás, três das quatro peças de
Salemas classificadas como esboços por se encontrarem ainda em fase incipiente de
transformação (na outra não foi possível realizar um diagnóstico seguro). Estes valores são da
mesma ordem de grandeza dos apurados para Vale Almoinha e Casal do Cepo, onde eram de
43% e 54%, respectivamente, as percentagens de pontas de face plana com anverso
bidireccional. Tudo indica, portanto, que, no Solutrense superior, a produção de suportes para
pontas também se faria a partir da exploração alternada de núcleos com dois planos de
percussão opostos, ou seja, que, neste aspecto, o sistema de produção lítica se encontraria em
continuidade plena com o documentado no período antecedente. Continuidade que decorreria
provavelmente da circunstância de o objectivo da debitagem ser idêntico, isto é, de se
pretender a obtenção de produtos laminares de perfil direito, como ocorria em quase dois
terços dos exemplares em que o atributo era passível de observação (Fig. 5.24).
220
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
O peso importante de que se reveste a produção de lamelas está seguramente relacionado
com o facto de uma parte das pontas crenadas ter sido fabricada sobre suportes de pequena
dimensão (ver adiante). Mas não só: outra das inovações tecnológicas documentadas no
Solutrense superior é, com efeito, o reaparecimento das lamelas de dorso, de que existem 16
exemplares na colecção dada como proveniente do Nível II de Salemas, dos quais dois são
classificáveis como lamela de dorso solutrense (Smith 1966). Sob o ponto de vista das
dimensões, trata-se de material comparável ao produzido durante o Gravettense, em média
significativamente maior do que as peças equivalentes abandonadas nas jazidas de época
magdalenense (Fig. 5.14).
5.7.4. Pontas crenadas
Sob o ponto de vista tipológico, as pontas crenadas do Solutrense português dividem-se em
dois grupos, ambos com paralelos nas restantes regiões da Península Ibérica (Fig. 5.25): com
retoque simples ou plano, ditas de tipo franco-cantábrico; e de retoque abrupto, formando um
dorso no bordo oposto à crena, ditas de tipo mediterrânico. Os dois tipos coexistem nas
mesmas jazidas, pelo que não podem ser considerados marcadores étnicos, isto é, não há
partes da Estremadura onde só exista um tipo e outras partes onde só se encontre o outro. A
não ser que se venha a revelar que estamos perante variantes de significado cronológico, os
dois tipos devem corresponder, portanto, a soluções estilísticas usadas indiferentemente com
uma mesma função, ou de forma mutuamente exclusiva, com funções diferentes. É claro em
ambos os casos, porém, que se trata de pontas de projéctil, conforme foi demonstrado pelos
estudos de Geneste e Plisson (1986), Plisson e Geneste (1989) e Chadelle et al. (1991), e
resulta da observação dos estigmas de impacto presentes em peças de ambas as tipologias.
O facto de esses estigmas poderem ser observados tanto em pontas que apresentam
retoque plano elaborado como em peças de retoque simples indica que estas últimas não
podem ser consideradas como esboços das primeiras. Isto é, mostra que poderá vir a ser
possível, com base nesse critério, e quando a amostra disponível tiver dimensão suficiente,
proceder a uma subdivisão tipológica mais precisa das pontas cantábricas. De momento, dir-se-á apenas, a este respeito, que as peças estremenhas parecem dividir-se em dois grupos,
sendo um constituído pelos raros exemplares (todos provenientes de Salemas) que têm um
retoque bifacial total, elaborado (Fig. 5.25, nº 3), e o outro constituído pelas restantes, entre
as quais se pode observar uma gradação contínua na extensão do retoque plano, desde peças
em que ele é total no anverso, passando por peças em que ele é bifacial parcial e acabando em
peças que apenas apresentam um retoque simples, curto, dos bordos e da ponta. Quanto ao
respectivo contorno, porém, todas têm uma morfologia fusiforme, que se inscreve numa oval
alongada, tal como no tipo B de Plisson e Geneste (1989). O tipo A destes autores (de
morfologia rectilínea, inscrevendo-se num triângulo alongado) permanece desconhecido, por
enquanto, em Portugal.
Do ponto de vista dimensional, trata-se, no seu conjunto, de peças de módulo idêntico ao
das pontas de face plana do Solutrense médio (Fig. 5.22; Quadro 5.2). No entanto, uma
análise atenta permite, a esta respeito, algumas caracterizações mais precisas (veja-se a
Fig. 5.24).
No que respeita às pontas cantábricas verifica-se assim que:
•
o comprimento total é altamente normalizado, estando compreendido entre 4 e 5,5 cm; a
única excepção é a peça do Quintal da Fonte (vol. II, Fig. 31.5, nº 1), a qual, no entanto,
aparenta estar inacabada e, após a conclusão do retoque (que visaria, com toda a
probabilidade, a obtenção de uma peça de retoque elaborado), veria certamente as suas
dimensões reduzirem-se para tamanho idêntico ao das peças equivalentes de Salemas;
Sequência cultural
221
Fig. 5.25 - Pontas crenadas do Solutrense superior: 1. mediterrânica pequena (Caldeirão); 2. mediterrânica grande
(Salemas); 3. cantábrica elaborada, larga na junção do pedúnculo com a ponta (Salemas); 4. cantábrica de retoque
plano parcial, estreita na junção do pedúnculo com a ponta (Salemas).
QUADRO 5.2
Pontas crenadas do Solutrense superior
Dimensões (reais ou estimadas, em cm) e índices
m±dp
Comprimento total
Largura mediana
Espessura mediana
Alongamento
Carenagem
Comprimento do pedúnculo
Largura na junção
Comprimento do pedúnculo/Comprimento
Cantábricas
intervalo
4,63±0,58
1,16±0,19
0,36±0,08
4,20±0,54
3,36±0,62
1,55±0,31
1,13±0,20
0,34±0,05
[4,00-6,27]
[0,89-1,68]
[0,25-0,63]
[3,32-5,00]
[2,04-4,61]
[1,17-2,58]
[0,89-1,68]
[0,25-0,43]
Mediterrânicas
intervalo
N
m±dp
19
32
29
19
29
24
33
19
4,39±0,77
1,00±0,20
0,36±0,12
4,64±0,89
2,84±0,62
1,21±0,28
0,98±0,23
0,27±0,05
[3,00-5,10]
[0,58-1,27]
[0,24-0,58]
[3,23-6,21]
[1,98-3,72]
[0,76-1,56]
[0,75-1,40]
[0,22-0,33]
N
8
10
11
8
10
7
10
7
•
os pedúnculos apresentam um comprimento que, em média, corresponde a cerca de um
terço do comprimento total e varia entre 25 e 43% deste último;
•
as larguras na junção do pedúnculo com a ponta apresentam uma distribuição bimodal,
permitindo a divisão das pontas cantábricas em dois grupos, um em que o parâmetro
referido varia entre 9 e 10 mm, e outro em que ele é ≥11,5 mm; no entanto, há duas peças
com valores intermédios, pelo que não é de excluir a hipótese de, eventualmente, esta
bimodalidade ser uma consequência do carácter insuficiente da amostra de que
actualmente dispomos.
No que respeita às pontas mediterrânicas, verifica-se que:
•
os pedúnculos são mais pequenos do que os das pontas de estilo cantábrico, tanto em
termos absolutos (a diferença sendo válida do ponto de vista estatístico para um nível de
significância de 0,05 — teste t) como em termos relativos (o respectivo comprimento não
ultrapassando nunca os 33% do comprimento total);
•
há dois grupos bem diferenciados no que respeita aos comprimentos, um de módulo
semelhante ao das pontas cantábricas, isto é, em que o referido parâmetro apresenta
valores compreendidos entre 4,5 e 5,5 cm, e outro em que se incluem as peças com 3 a
4 cm de comprimento.
222
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Algumas peças, provavelmente inacabadas, não puderam ser incluídas em nenhum dos
agrupamentos tipológicos. Trata-se de objectos com pedúnculo lateral que apresentam uma
extremidade naturalmente apontada (ou mesmo, no caso das peças classificadas como lâmina
ou lamela crenada, obtusa) mas em que não há nem dorso oposto à crena nem retoque plano.
Com excepção de uma peça de Salemas, trata-se de material proveniente de jazidas em que o
tipo cantábrico era inexistente (caso do Almonda), ou em que o tipo mediterrânico estava
representado por peças típicas (caso da Carneira). Deste modo, e tendo ainda em conta que as
respectivas dimensões permitem o seu enquadramento num ou noutro dos dois agrupamentos
de peças mediterrânicas acima referidos (ver Fig. 5.24), é possível que estes exemplares
«inacabados» correspondam, efectivamente, a esboços de pontas deste último tipo.
Conjugando os atributos estilísticos e dimensionais, temos assim, aparentemente, quatro
agrupamentos de pontas crenadas:
 cantábricas de largura na junção ≥11,5 mm (incluindo as de retoque elaborado);
 cantábricas de largura na junção ≤10 mm;
 mediterrânicas de comprimento ≥4,5 cm;
 mediterrânicas de comprimento ≤4 cm.
A avaliação do significado desta variabilidade é, de momento, praticamente impossível.
A hipótese de o último destes quatro grupos ter um significado cronológico será discutida
mais adiante. Quanto aos restantes, pode conceber-se que estejam relacionados com a
existência de um equipamento de caça diversificado e altamente especializado, em que a
diferentes modos de arremesso (manual ou com propulsor), calibres das hastes (mais finas ou
mais grossas, mais longas ou mais curtas), e tipos de utilização (caça dos vários tipos de
animais), corresponderiam diferentes tipos de armaduras. Todas, porém, seriam montadas
axialmente, e todas entrariam na categoria das pontas de projéctil ligeiras, com peso que não
deveria, de um modo geral, ultrapassar os 5 g.
5.7.5. Pontas de pedúnculo axial
Um dos aspectos mais interessantes do Solutrense da Espanha mediterrânica é a existência de
uma categoria de pontas de pedúnculo axial que os pré-historiadores do país vizinho
classificam como pertencendo a um tipo único, a ponta de pedúnculo e aletas ou ponta de
Parpalló (Fullola 1985). A observação das ilustrações publicadas por Pericot (1942) sugere,
no entanto, a existência de variedades distintas que nos parece útil discriminar, de modo a
avaliar até que ponto se revestirão de significado cronológico, funcional ou cultural/étnico.
Usando exemplares da jazida epónima como peças-tipo, essas variedades, num total de
quatro, parecem-nos ser as que se apresentam na Fig. 5.26. As três primeiras (normal,
alongada, flecha) também existem em Portugal. Até ao momento, porém, não foi encontrado
no nosso país qualquer exemplar com a morfologia de pedúnculo curto e bordos côncavos
dita «em abeto». Na lista tipológica usada neste trabalho referenciou-se igualmente um outro
tipo, a «lamela de pedúnculo axial» (ver vol. II, capítulo 2). Porém, conforme se argumentou
a propósito do estudo monográfico dos materiais solutrenses de Salemas, é muito possível
que os raros exemplares assim classificados correspondam, na realidade, a esboços de pontas
crenadas de dorso.
Do ponto de vista dimensional, as pontas normais e alongadas das jazidas portuguesas
são claramente maiores do que as da jazida valenciana, conforme evidenciado sem margem
para dúvidas pelos gráficos da Fig. 5.26. Para a elaboração destes últimos, utilizou-se uma
amostra constituída pelas peças ilustradas por Pericot (1942), amostra que se partiu do
princípio ser representativa do conjunto. Essa representatividade é confirmada, aliás, pelo
facto de ser de 3,6±0,7 cm a média dos respectivos comprimentos, a qual se verifica, assim,
ser ligeiramente superior (mas estatisticamente idêntica) à de 3,3 cm apurada por Fullola
Sequência cultural
223
Fig. 5.26 - Pontas de pedúnculo axial do Solutrense superior da Estremadura e do Parpalló. A consideração dos
índices tipométricos e da morfologia dos bordos permite distinguir, na jazida de Valencia, os quatro tipos
ilustrados (segundo Pericot 1942:Fig. 21, nºs 2 e 5 e Fig. 26, nºs 1 e 5). Em Portugal (1. Caldeirão - normal;
2. Passal - alongada; 3. Salemas - flecha) só não é conhecida a variedade em abeto, mas as pontas normais e
alongadas são consideravelmente maiores do que as do Parpalló, e parecem subdividir-se em três grupos: grandes,
com 6 cm de comprimento; médias, com 4,5-5 cm de comprimento; e pequenas, com 3 cm de comprimento (classe
representada por um único exemplar, proveniente de Salemas).
(1985) para o conjunto de todas as peças de pedúnculo axial do Solutrense superior e do
Solutreo-gravettense do Parpalló que se encontravam inteiras (incluindo também, portanto, as
flechas e abetos que se excluíram dos nossos cálculos). Sendo globalmente maiores, as peças
portuguesas parecem dividir-se, no entanto, em três classes dimensionais, embora não se
possa excluir a hipótese de esta segregação ser um artefacto da insuficiência da amostra
actualmente disponível (ou dos erros que sempre ocorrem quando se procura estimar o
comprimento original de peças partidas).
224
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Seja como for, os estigmas de impacto presentes em diversos exemplares, em particular
nos de Salemas, Caldeirão e Poço Velho, indicam que se trata sempre, independentemente do
tamanho, de pontas de projéctil. Idêntica função devem ter tido as flechas. Os três exemplares
de Salemas, única jazida em que o tipo foi até agora encontrado, tinham um comprimento
compreendido entre 3,3 e 3,8 cm, pelo que, do ponto de vista dimensional, se agrupam com a
pequena ponta normal da mesma jazida.
5.7.6. Existe um Solutreo-gravettense em Portugal?
Entre o material proveniente dos níveis solutrenses da Buraca Grande encontra-se uma zagaia
praticamente completa, com pequena fractura apical (Fig. 5.27, nº 1). Curta e de secção
circular, a referida peça apresenta uma base monobiselada, correspondendo o bisel a mais de
um terço do comprimento total da peça. Na sequência do Parpalló, é só já na metade superior
do Solutreo-gravettense (a partir dos 4,25 m) que começam a aparecer zagaias com estas
características (Pericot 1942; Aura 1989).
Por outro lado, segundo Villaverde e Peña (1981:105), as pontas crenadas de dorso do
Parpalló, que aparecem pela primeira vez nos níveis do Solutrense superior, entre 4,75 e
5,25 m de profundidade, sofrem uma diminuição acentuada de tamanho nos níveis solutreo-gravettenses, entre 3,75 e 4,75 m: enquanto, nos primeiros, o seu comprimento médio é de
3,39 cm, esse valor baixa, nos segundos, para 2,86 cm, entre 4,25 e 4,75 m de profundidade, e
para 2,81 cm, entre 3,75 e 4 m. Neste quadro, é possível, portanto, que a diferenciação das
pontas estremenhas de tipo mediterrânico em dois agrupamentos dimensionais (Fig. 5.24)
esteja relacionada precisamente com o facto de as mais pequenas pertencerem já a contextos
de ocupação humana assimiláveis ao Solutreo-gravettense da Espanha mediterrânica.
O facto de, no Caldeirão, as pontas mediterrânicas não existirem nas camadas Fb-Fc, e de
os três exemplares achados, todos pequenos, serem provenientes de Fa (um) e da base da
camada Eb sobrejacente (os outros dois), pode ser interpretado como dando algum
fundamento estratigráfico a essa hipótese. A qual sai igualmente reforçada da constatação de
que, nas jazidas (Almonda, Carneira e Salemas) em que há associação entre folhas de
loureiro ou pontas crenadas de retoque plano, por um lado, e pontas mediterrânicas, por
outro, estas últimas pertencem quase todas ao agrupamento de tamanho maior, em que o
comprimento é ≥4,5 cm. As excepções são as representadas por algumas peças de tipologia
indeterminada (inacabadas?) dessas jazidas, que poderão corresponder a esboços de pontas
mediterrânicas pequenas, e pela jazida do Baío onde, porém, estamos perante recolhas de
superfície, e não é possível assegurar, portanto, que as pontas cantábricas e as folhas de
loureiro são, de facto, contemporâneas da pequena ponta mediterrânica integrada na colecção
proveniente deste local. A qual, aliás, inclui também materiais claramente magdalenenses,
pelo que, conforme se argumentou no estudo monográfico (ver vol. II, capítulo 35), se trata
certamente de um conjunto de origem espacialmente diversificada e não de um contexto
selado, atribuível a uma única época.
Finalmente, assinale-se ainda que a camada Fa do Caldeirão forneceu também uma ponta
de zagaia de secção circular e com ranhura longitudinal (ver vol. II, Fig. 27.6, nº 3), tipo que
é desconhecido nos níveis do Solutrense superior do Parpalló mas que se encontra
representado por uma peça virtualmente idêntica (Ripoll 1986:Fig. 26) no Solutrense I de
Cueva de Ambrosio. Neste nível não havia quaisquer folhas de loureiro, as pontas de
pedúnculo e aletas estavam representadas por apenas dois exemplares, e o cortejo das
armaduras líticas era dominado pelas pontas crenadas de dorso, num total de 30, às quais se
encontravam associadas 16 lamelas de bordo abatido (Ripoll 1986:192-193). Ou seja, trata-se
claramente de um contexto solutreo-gravettense, à luz do qual parece lógico interpretar os
Sequência cultural
225
Fig. 5.27 - A zagaia da Buraca Grande (segundo Aubry e Moura 1994). Note-se o grande tamanho do bisel, que
corresponde a metade ou mais de metade do comprimento total da peça, característica que, na sequência do
Parpalló, só ocorre na parte superior dos níveis solutreo-gravettenses, de onde são provenientes os dois exemplares
ilustrados com os nºs 2-3 (segundo Pericot 1942:Fig. 36 nºs 4-5).
poucos elementos disponíveis no Caldeirão, tanto no que respeita à indústria lítica como à
óssea, como indicando que a jazida terá conhecido, efectivamente, uma ocupação de natureza
semelhante, cujos respectivos vestígios se conservaram em horizontes estratigráficos
correspondentes ao contacto entre as camadas Fa e Eb, isto é, intermédios entre o Solutrense
superior e o Magdalenense.
Deste modo, embora as perturbações sofridas pelos depósitos, tanto no Caldeirão como
na Buraca Grande, não tenham infelizmente permitido a conservação dos respectivos
vestígios em níveis bem individualizados, tudo leva a crer que, em ambas as jazidas, o
Solutrense superior terá efectivamente sido seguido de uma etapa industrial de características
solutreo-gravettenses.
5.8. Magdalenense
5.8.1. Economização do sílex
De um modo geral, as indústrias do Magdalenense português diferenciam-se das do
Paleolítico Superior inicial e do Solutrense pelo facto de a produção de lâminas se revestir de
um carácter claramente marginal (Figs. 5.28-5.30). Ou seja, são indústrias que podem ser
definidas, do ponto de vista tecnológico, como baseadas numa debitagem orientada para a
produção de lascas e de lamelas, condicionamento que, ao determinar em grande parte as
características das utensilagens, contribui igualmente para a explicação do contraste com as
épocas anteriores que também se verifica ao nível tipológico. A única excepção parcial a esta
norma geral é a representada pelas indústrias da fácies Carneira, nas quais parece verificar-se
uma certa tendência de regresso ao padrão gravettense descrito na Fig. 3.11, caracterizado
pela extracção deliberada de lâminas de largura razoável durante as fases inicial e plena de
sequências de debitagem de núcleos prismáticos que, antes de abandonados, são explorados
de forma exaustiva para a produção de grandes quantidades de lamelas.
226
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.28 - Variação diacrónica das dimensões dos núcleos prismáticos. É patente a diminuição de tamanho que se
verifica no Magdalenense, culminando uma tendência cujo arranque parece datar do Solutrense médio. No
extremo final do período, representado pelas indústrias da fácies Carneira, porém, verifica-se uma inversão dessa
tendência, relacionada com um incremento da produção de lâminas, que é marginal ou inexistente na grande
maioria das fácies magdalenenses anteriores.
Fig. 5.29 - Variação diacrónica do índice laminar da utensilagem. O índice convencional, calculado sobre a
totalidade dos utensílios da lista-tipo, evidencia uma quebra acentuada no Magdalenense, a qual se verifica
também, embora de forma menos acentuada, quando o índice é calculado apenas sobre a totalidade dos «utensílios
domésticos» (tal como definidos no Quadro 4.2). É nas indústrias caracterizadas por uma estratégia de debitagem
de tipo Cerrado Novo que essa quebra mais se faz sentir: os valores obtidos pouco se afastam do zero.
Sequência cultural
227
Fig. 5.30 - Variação diacrónica das características dos conjuntos de raspadeiras funcionais. As raspadeiras curtas
predominam sobre as alongadas no Magdalenense, ao invés do que acontece no Paleolítico Superior inicial e no
Solutrense. A diminuição de tamanho que se verifica nas raspadeiras «sobre lasca» (tipo 8) indica que a
preponderância das curtas sobre as alongadas é, tal como a exploração mais exaustiva dos núcleos prismáticos e a
descida do índices laminares da utensilagem, um fenómeno relacionado com o facto de, no Magdalenense, o sílex
ser objecto de uma maior economização.
Na Fig. 5.28 pode encontrar-se uma primeira comprovação dessa norma. A análise da
variação diacrónica da percentagem dos núcleos prismáticos que são «para lâminas» mostra
que este parâmetro não ultrapassa os 5% nas indústrias magdalenenses, ao passo que, nos
períodos anteriores, é, em regra, superior a 10%. As duas únicas excepções são as do Gato
Preto, que se explica pelo carácter funcionalmente especializado do sítio, em que apenas está
representada uma das componentes do sistema de produção lítica polimórfico que existia no
Proto-Solutrense; e a do Casal do Felipe, que se explica pelo modo como é feita a definição
do atributo (ver vol. II, capítulo 2), e que é anulada pelo facto de o peso médio dos núcleos
prismáticos da Fonte Santa (39 g) ser praticamente idêntico ao apurado para a jazida
penecontemporânea de Rio Maior (43 g), apesar de a percentagem de núcleos «para lâminas»
ser de 22% na primeira e nula na segunda. O facto de os dois indicadores apresentarem
variações diacrónicas de intensidade e sinal idênticos mostra, por outro lado, que a tendência
para o desaparecimento das lâminas deve estar relacionada com factores ligados à economia
do sílex. Com efeito, embora o peso médio dos núcleos tenda a aumentar ligeiramente no
Proto-Solutrense, a partir do Solutrense médio parece verificar-se uma diminuição sustentada
dos valores desse parâmetro, que não volta a aumentar para valores semelhantes aos do
Paleolítico Superior inicial senão no Magdalenense final de fácies Carneira.
A Fig. 5.29 confirma, para o universo dos utensílios, as conclusões extraídas da análise
dos núcleos. Uma vez mais com o Gato Preto como excepção, o índice laminar calculado
para a totalidade dos utensílios retocados da lista-tipo atinge o seu valor mínimo no
Gravettense antigo, onde é de 18% em Vale Comprido - Barraca. Em contraste, no
Magdalenense, esse índice não ultrapassa nunca os 10% que atinge nas camadas 3-4 do
Olival da Carneira. Deve ter-se em conta, no entanto, que esta variação está afectada por dois
228
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
factores que podem acentuar as diferenças de forma artificial: o primeiro, é o de a lista-tipo
incluir artefactos que, do ponto de vista funcional, correspondem na realidade a núcleos; o
segundo, é o de, em muitas indústrias, a produção de lâminas estar directamente relacionada
com a fabricação de pontas de zagaia em pedra de suporte laminar que, salvo raríssimas
excepções, não existem no Magdalenense. Se, de forma a eliminar o impacto destes factores,
o índice for calculado apenas para os «utensílios domésticos» (tal como definidos no Quadro
4.2), a diferença mantém-se, mas é só no caso da fácies representada na jazida do Cerrado
Novo que ela aparece como muito marcada.
Restringindo a análise ao universo das raspadeiras, porém, encontramos outros
indicadores que confirmam que o carácter marginal de que se reveste a produção de lâminas
está ligado, de facto, a uma diminuição geral do tamanho dos artefactos líticos fabricados em
sílex (Fig. 5.30). O primeiro, é o que diz respeito à variação recíproca da importância das
raspadeiras de suporte alongado (tipos 1-2 e 5) e curto (tipos 8-10). A relação entre estes dois
grupos inverte-se de forma radical na passagem ao Magdalenense, em que é claramente
favorável às curtas numa proporção de pelo menos 1,5:1, precisamente inversa da que se
verifica na jazida pré-magdalenense em que (provavelmente pelas razões já anteriormente
enunciadas) o predomínio das raspadeiras de suporte alongado é menos esmagador — a do
Gato Preto. Por outro lado, o comprimento médio das peças de tipo 8 («sobre lasca»),
escolhidas como termo de comparação por estarem representadas em praticamente todas as
indústrias do Paleolítico Superior, diminui igualmente de forma muito marcada a partir do
Magdalenense, onde não ultrapassa os 2,5 cm, contra valores compreendidos entre 3 e 5 cm
nas indústrias do Gravettense, do Proto-Solutrense e do Solutrense.
5.8.2. Indústria óssea e armaduras microlíticas
A orientação da debitagem para a produção de suportes alongados de dimensões lamelares é
concomitante, portanto, de uma tendência para a exploração mais exaustiva dos núcleos de
sílex. Ou seja, há no Magdalenense um aproveitamento maior desta matéria-prima, e é
certamente em consequência de uma tal opção económica que, nesta época, o equipamento de
caça passa a ser exclusivamente armado de pontas fabricadas em madeira ou matéria dura de
origem animal (pelo menos a avaliar pela ausência de pontas líticas de calibre semelhante ao
das documentadas em épocas anteriores).
O reduzido número de ocupações magdalenenses de gruta conhecidas até ao momento
não permitiu ainda, no entanto, uma documentação satisfatória dessa componente
fundamental do armamento das populações magdalenenses da Estremadura, de que só se
conhecem os poucos fragmentos recolhidos na camada Eb da Gruta do Caldeirão (ver vol. II,
capítulo 40). Conforme se assinalou no respectivo estudo monográfico, o material em questão
é constituído predominantemente por peças de secção aplanada, que não existem nos níveis
solutrenses subjacentes. Na sequência do Parpalló, aliás, este tipo de secção também só
ocorre em zagaias provenientes dos níveis magdalenenses (Aura 1984-85).
Por conseguinte, o nosso conhecimento do equipamento de caça da parte final do
Paleolítico Superior está limitado, no essencial, aos micrólitos, os quais correspondem
seguramente à parte fabricada em pedra de utensílios compostos. São bastante abundantes em
quase todas as jazidas magdalenenses, e podem dividir-se, do ponto de vista morfológico, em
três grandes grupos, conforme se argumentou a propósito do estudo monográfico do espólio
proveniente de Vale da Mata (ver vol. II, capítulo 47):
•
curtos, de extremidade em ponta de ângulo pouco agudo (geométricos e lamelas Dufour,
de Areeiro e de dorso marginal);
Sequência cultural
229
•
alongados, de extremidade obtusa (lamelas de dorso, incluindo escalenas, truncadas e
denticuladas);
•
muito afilados, de extremidade aguçada (pontas de dorso curvo ou rectilíneo, com ou sem
a base retocada).
Dado que os três grupos coexistem em diversas jazidas, uma das formas possíveis de
interpretar esta diferenciação é a de lhe conceder um significado funcional. Ou seja, admitir
que cada grupo estaria destinado a armar, mediante uma fixação com mastique, um tipo
diferente de ponta de osso ou madeira. Ou, ainda, que os dois primeiros corresponderiam a
material destinado a ser montado como barbelas, ao passo que, no caso das peças muito
afiladas (em particular no que diz respeito às de maior robustez, como as pontas espessas, de
dorso curvo e de Malaurie, que caracterizam o Magdalenense final de fácies Carneira),
estaríamos antes perante objectos destinados a funcionar como pontas montadas axialmente
sobre cabos de projécteis ligeiros. O peso e as dimensões das referidas armaduras são
compatíveis, aliás, com a hipótese de se tratar, por exemplo, de pontas de seta, hipótese cuja
consideração é tanto mais obrigatória quanto tudo indica que, nesta época, o arco e a flecha já
estariam em uso (embora não se possa excluir uma invenção anterior). Com efeito, o
Ahrensbourguense dos Países Baixos e do norte da Alemanha, datado do Dryas III e,
portanto, contemporâneo das indústrias portuguesas da fácies Carneira (ver adiante), contem
armaduras de sílex (as pontas de Ahrensbourg), de que se encontraram exemplares ainda
montados como extremidade perfurante de flechas de pinho nas quais se podia observar o
característico entalhe basal destinado ao encaixe na corda do arco (Rozoy 1978).
Se uma tal diferenciação fosse de raiz exclusivamente funcional, então a análise, sob os
pontos de vista da diacronia e da distribuição regional, da variação existente na composição
dos conjuntos de armaduras microlíticas, teria de ser feita separadamente para cada grupo.
Isto é, deveria ter como objectivo a determinação do modo como, de época para época, ou de
região para região, variaram as armaduras de cada classe, quer sob o ponto de vista da forma
quer sob o ponto de vista das dimensões: por exemplo, se, no que diz respeito às barbelas
curtas, os geométricos foram a certa altura substituídos por lamelas de Areeiro, ou se os
trapézios são maiores em certas jazidas do que noutras suas contemporâneas. Não é seguro,
no entanto, que, na realidade, seja esse, ou apenas esse, o fundamento da diferenciação
observada. Por outro lado, a análise funcional dos conjuntos líticos realizada no capítulo 4
sugere que, por razões ligadas seja ao sistema de povoamento seja à tecnologia do trabalho da
pedra, o fenómeno das ocupações altamente especializadas parece deixar de existir no
Magdalenense. Os espólios recuperados nos diversos sítios parecem agora, com efeito,
revestir-se de características mais ou menos idênticas do ponto de vista das actividades que aí
foram executadas, pelo menos tanto quanto é legítimo inferir estas a partir da composição
estrutural daqueles. Sendo assim, parece pouco verosímil a hipótese de a variação existente
nas proporções em que cada um dos três grupos de armaduras acima referidos se encontra
representado nas várias jazidas ser causada por factores ligados à eventual preponderância de
tarefas relacionadas com determinados tipos de equipamentos de caça, utilizados em
simultâneo e de forma invariável ao longo dos seis milénios (em anos de radiocarbono) que
durou o Magdalenense.
A realidade é com certeza bastante mais complexa. Em Cabeço de Porto Marinho, aliás,
verifica-se uma clara diferença, de significado diacrónico, na diversidade dos conjuntos
microlíticos, quase exclusivamente constituídos por lamelas de dorso no nível inferior do
locus I mas que, nos níveis médio e superior dos loci IIIS e IIIT, se enriquecem
consideravelmente em pontas e em lamelas de Areeiro e de dorso marginal, ausentes no
primeiro (ver vol. II, capítulo 42). Por outro lado, é certo que esta diferenciação em três
grupos tem, pelo menos até certo ponto, um significado tecnológico (modo de extracção, ou
seja, tipo de núcleo de onde foram obtidos os respectivos suportes). Conforme se referiu a
230
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.31 - Variação da estrutura dos conjuntos industriais magdalenenses, medida em função da tipologia das
armaduras microlíticas e dos núcleos utilizados para a extracção dos respectivos suportes. Diferenciam-se
nitidamente as diversas fácies cujas características e cronologia se apresentam na Fig. 5.32. Apesar de partilharem
com os contextos do Mesolítico inicial escavados em Areeiro III a abundância de lamelas Dufour, de Areeiro, e de
dorso marginal, os conjuntos escavados no Cerrado Novo, no Rossio do Cabo e no Pinhal da Carneira afastam-se
claramente deles pelo facto de as «raspadeiras» espessas serem minoritárias em relação aos buris e aos núcleos
prismáticos.
propósito do estudo de Bairrada, Vascas e Carneira (ver vol. II, capítulos 41, 43 e 44), há
nestas jazidas percentagens significativas de pontas que são fabricadas sobre resíduos de
golpe de buril. E, conforme se referiu a propósito do estudo do Cerrado Novo, as lamelas de
Areeiro e de dorso marginal são seguramente, em grande parte, fabricadas sobre suportes
extraídos de «raspadeiras» espessas.
Dado que, actualmente, não existem elementos suficientes para estudar sob a perspectiva
funcional a variação inter-sítios das armaduras microlíticas do Magdalenense, optar-se-á, na
análise comparativa que se segue, por partir do princípio de que se trata de objectos que, no
essencial, são a esse respeito idênticos, isto é, destinados a ser montados como barbelas de
Sequência cultural
231
Fig. 5.32 - Cronologia das fácies magdalenenses datadas pelo radiocarbono ou pela termoluminescência. Os
elementos existentes indicam que a variabilidade industrial observada no interior do tecnocomplexo é de
fundamento cronológico, e permitem atribuir aos diversos momentos crono-estratigráficos da sequência os
conjuntos homogéneos provenientes de escavações antigas (Cerrado Novo, Vale da Mata, Rossio do Cabo) ou de
escavações modernas não datadas (Bairrada, Olival da Carneira).
pontas de osso ou de madeira. Ou seja, por partir do princípio de que a representação
diferencial dos diversos tipos de micrólitos incluídos em cada um dos agrupamentos acima
referidos estará relacionada sobretudo com factores ligados à tradição e à tecnologia. Nos
exemplos conhecidos de flechas de madeira do Paleolítico Superior final ou do início do
Mesolítico verifica-se, aliás, uma grande variação na forma como, mesmo em conjuntos
contemporâneos, as respectivas hastes são armadas (ou não) com pontas ou com barbelas de
pedra (Clarke 1978; Rozoy 1978). Esses exemplos mostram ainda: que o mesmo tipo lítico
pode desempenhar indiferentemente os dois papéis; que, muitas vezes, se usam para o efeito
simples suportes brutos e não armaduras retocadas; e que os micrólitos utilizados como
elementos de gume de utensílios encabados, presumivelmente destinados a funções
domésticas (facas), ou relacionadas com o tratamento de plantas, são de tipologia idêntica à
dos que foram montados como pontas ou barbelas de flechas. Nestas circunstâncias, não
parece que a opção de considerar a eventual variabilidade funcional das ocupações como
sendo um factor no essencial irrelevante para a análise da variação tipológica da utensilagem
microlítica acarrete a introdução nos resultados obtidos de uma fonte de erro significativa.
Foi partindo desse pressuposto que se elaboraram os gráficos da Fig. 5.31, através dos quais
se procurou analisar a estrutura da composição em armaduras microlíticas e em núcleos para
lamelas dos diferentes conjuntos líticos do Magdalenense e do Mesolítico inicial para que se
dispunha de dados quantitativos.
A inclusão dos conjuntos mesolíticos foi ditada pela intenção de averiguar a
eventualidade de que alguma das indústrias não datadas, ou para as quais ainda não foram
encontrados paralelos paleolíticos em Portugal, datasse já, na realidade, de época pós-
232
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
-magdalenense. O que se verifica, porém, é que os conjuntos de Areeiro III se diferenciam
nitidamente dos restantes pelo facto de mais de 80% das armaduras microlíticas
corresponderem a lamelas de Areeiro e de dorso marginal, e pelo facto de os núcleos para
lamelas serem, na sua grande maioria, «raspadeiras» espessas (embora, no Teste VI,
predominassem os buris, situação que, no entanto, deve ser tomada como não representativa e
constitui, aliás, uma excelente ilustração dos perigos inerentes à consideração de amostras
provenientes de áreas muito pequenas, como era a que correspondia a este locus, onde só
foram escavados 3 m²). Nenhuma das restantes indústrias pós-solutrenses analisadas neste
trabalho (nomeadamente aquelas para as quais se não dispõe ainda de datação absoluta, como
a do Cerrado Novo) apresenta características idênticas, pelo que parece legítimo excluir a
acima referida eventualidade.
Se tivermos em conta as datações absolutas obtidas para estes contextos, verificamos que
as diferenças apresentadas pelos agrupamentos que a consideração conjugada dos referidos
gráficos permite evidenciar têm um significado cronológico. A Fig. 5.32 apresenta um
esquema da sequência crono-estratigráfica tal como os dados actualmente disponíveis a
permitem conceber, sendo de realçar as enormes lacunas existentes, nomeadamente no que
respeita ao período situado entre ≈14 000 e ≈12 500 cal BC, para o qual os dados disponíveis
se resumem à datação absoluta por acelerador de uma vareta decorada da Buraca Grande (ver
vol. II, capítulo 50). O referido esquema tem, apesar disso, a virtude de fornecer critérios de
datação relativa para os conjuntos provenientes de escavações antigas e permite, tal como se
fez no Quadro 3.1, integrar uma boa parte destes últimos nas subdivisões actualmente
reconhecíveis no interior do período de tempo compreendido entre ≈17 000 e ≈9000 cal BC.
5.8.3. Magdalenense antigo de fácies CPM
Os três conjuntos de Cabeço de Porto Marinho caracterizam-se pelo facto de as armaduras
microlíticas serem constituídas, em mais de 90%, por peças de bordo abatido, e por terem
proporções equilibradas dos diversos tipos de núcleos, embora com predominância dos
prismáticos e dos buris sobre as «raspadeiras» espessas. Da comparação realizada entre o
material do nível inferior do locus I e o dos níveis médio e superior dos loci IIIS e IIIT
resulta, ainda, a possibilidade de individualizar o primeiro (que corresponde ao momento
mais antigo da sequência, situado entre ≈17 000 a ≈16 000 cal BC), com base em três
critérios: a raridade, ou mesmo total ausência, de pontas (isto é, as armaduras microlíticas são
praticamente todas lamelas de dorso); o muito baixo índice laminar da debitagem; e o peso
importante do quartzo e do quartzito. A abundância do quartzito nos níveis de base da
camada Eb da Gruta do Caldeirão está em concordância, pois, com as datações absolutas para
ela obtidas, que indicam contemporaneidade com a ocupação da jazida de Rio Maior.
5.8.4. Magdalenense antigo de fácies Cerrado Novo
Embora partilhando com as do Mesolítico inicial e as da fácies magdalenense representada
no Rossio do Cabo a predominância das lamelas Dufour, de Areeiro, e de dorso marginal, a
indústria do Cerrado Novo (Fig. 5.33), de cuja homogeneidade não parece haver quaisquer
razões para duvidar, afasta-se delas pelo facto de o método de extracção de lamelas mais bem
documentado ser o da debitagem de núcleos prismáticos. A diferença em relação à fácies
Rossio do Cabo é especialmente importante, dado os buris serem extremamente raros no
Cerrado Novo, ao contrário do que se passa com os raspadores, de que não há um único
exemplar nem no Rossio do Cabo nem no Pinhal da Carneira, mas que são muito abundantes
na jazida de Cambelas, onde, frequentemente, foram obtidos por retoque inverso ou alterno.
O grupo da utensilagem comum inclui ainda um tipo especial, próximo da raclette, que se
optou por designar como «raspador de Vascas» (ver vol. II, capítulo 2), e cujas características
resultam da aplicação de um retoque de raspador a suportes curtos obtidos a partir da
Sequência cultural
233
Fig. 5.33 - Artefactos característicos do Magdalenense antigo de fácies Cerrado Novo, todos provenientes do sítio-tipo: 1. lamela de Areeiro; 2. raspadeira afocinhada espessa; 3. raspador; 4. raspador de Vascas.
debitagem «em rodelas de chouriço» (Cheynier 1939) de núcleos de sílex de forma cilíndrica.
Quanto à hipótese de estarmos perante uma fácies do Mesolítico inicial, a sua verosimilhança
parece ser, como já acima se referiu, bastante reduzida, por razões que têm a ver tanto com o
contexto deposicional como com a indústria. De facto, a quase totalidade das jazidas desse
período conhecidas ao longo da costa estremenha tem uma componente importante de
concheiro, componente de que não há, no Cerrado Novo, quaisquer indícios seguros. Por
outro lado, o «raspador de Vascas» parece ser exclusivo do Magdalenense, e permanece
desconhecido, até ao momento, nos contextos mesolíticos portugueses.
O paralelo mais próximo actualmente conhecido para esta indústria é, assim, como se
assinalou a propósito do estudo monográfico da jazida, o Magdalenense antigo tipo B da zona
Talude do Parpalló, caracterizado pelo aparecimento, pela primeira vez na longa sequência
paleolítica da jazida, de um utensílio que Aura (1989) assimila às raclettes da lista-tipo de
Sonneville-Bordes e Perrot (1954-56). Na realidade, porém, como se depreende das
ilustrações, trata-se de um objecto em tudo idêntico aos nossos «raspadores de Vascas», e que
ocorre em percentagens semelhantes às verificadas no Cerrado Novo, onde o índice
tipológico respectivo é de 6,9 (10,3, se a indústria for deslamelizada), ou seja, praticamente
idêntico ao apurado para a camada 6 de Parpalló-Talude, onde é de 8,1.
Este tipo não parece estar documentado no Magdalenense antigo do nível inferior do
locus I de Cabeço de Porto Marinho, o qual, dada a sua datação absoluta, deve corresponder à
primeira manifestação em Portugal do sistema tecnológico que virá substituir as indústrias de
base laminar que até então caracterizavam o Paleolítico Superior. A confirmarem-se, estes
factos poderão significar que a sequência magdalenense portuguesa é, pelo menos nos seus
momentos iniciais, paralelizável com a do Parpalló, e que a fácies reconhecida no Cerrado
Novo poderá corresponder a um momento imediatamente posterior ao representado naquele
locus da jazida de Rio Maior. Este último poderia assim corresponder, por sua vez, ao
Magdalenense antigo tipo A que, na jazida valenciana, se encontra em posição intermédia
entre o Solutreo-gravettense e os níveis com «raspadores de Vascas». A verificação desta
hipótese exigiria a realização de uma nova análise tipológica dos conjuntos escavados em
Cabeço de Porto Marinho, de forma a determinar com precisão o significado crono-estratigráfico do tipo lítico em causa, que não foi diferenciado nas contagens de Bicho
(1992) mas que, no entanto, também existe na estação (Marks, comunicação pessoal), embora
em contextos do locus VI cuja datação não é, de momento, suficientemente segura.
A ser assim, o aparecimento do «raspador de Vascas» seria concomitante de
modificações importantes ocorridas ao nível da morfologia das barbelas. Com efeito, as
lamelas Dufour, de Areeiro e de dorso marginal não existem no nível inferior do locus I de
234
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Cabeço de Porto Marinho, ausência para cuja explicação não é possível, ao contrário do que
acontece no caso do Parpalló, invocar eventuais deficiências da crivagem. A aceitação do
esquema de correlação acima proposto depende, portanto, da verificação futura de uma
condição: a de que, no Magdalenense antigo tipo A representado nas camadas 11-9 do
Parpalló-Talude e, possivelmente, na jazida de Rio Maior, as armaduras microlíticas fossem
constituídas de forma praticamente exclusiva por lamelas de dorso; mas que, no
Magdalenense antigo tipo B representado nas camadas 8-6 do Parpalló-Talude e, com toda a
probabilidade, no Cerrado Novo, houvesse, além da correspondente ao aparecimento dos
«raspadores de Vascas», uma outra inovação, a da generalização de uma preferência pelas
lamelas Dufour, de Areeiro e de dorso marginal.
De momento, porém, esta hipótese não é passível de verificação, não podendo sequer
excluir-se que os critérios de classificação utilizados por diferentes investigadores tenham
também a sua influência nestas discrepâncias. Torna-se obrigatória, assim, a consideração de
uma hipótese alternativa, a de que estes últimos tipos de armaduras microlíticas apenas
ocorram em quantidades significativas a partir do Magdalenense superior e, sobretudo, no
Magdalenense final. Poderia, nesse caso, argumentar-se que a fácies representada no Cerrado
Novo dataria, por hipótese, do período compreendido entre ≈10 500 e ≈10 000 cal BC, e
corresponderia, afinal, ao produto de um processo de evolução tecnológica cujo ponto de
partida seria a fácies representada no Rossio do Cabo e no Pinhal da Carneira. Como parte
desse processo, e talvez em resultado de modificações ocorridas no equipamento de caça, as
pontas afiladas (as microgravettes) e os núcleos destinados à extracção dos respectivos
suportes (os buris) teriam desaparecido. Esta hipótese é compatível com a identidade
existente entre as duas fácies no que respeita à estratégia seguida na debitagem de suportes
alongados a partir de núcleos prismáticos, que em ambos os casos se encontra orientada de
forma exclusiva para a obtenção de lamelas. Mas é contraditória com a total ausência de
continuidade entre ambas verificada no que respeita a uma das mais importantes
características da indústria do Cerrado Novo: o peso tipológico dos raspadores, e em
particular dos «raspadores de Vascas», que, como acima se referiu, são de todo inexistentes
nas duas jazidas conhecidas que se atribuem à fácies Rossio do Cabo.
Nestas circunstâncias, tudo indica que o Cerrado Novo date efectivamente do
Magdalenense antigo, conforme, aliás, já anteriormente havia sido defendido (Zilhão 1986b),
apesar de em trabalhos mais recentes (Zilhão 1993e:169) se ter admitido, com base nos
paralelos com o Pinhal da Carneira, uma integração no Magdalenense final. A diferenciação
com a fácies representada em Cabeço de Porto Marinho, por seu lado, deverá ter um
conteúdo crono-cultural e não funcional ou regional e, no quadro do paralelo com a sequência
do Parpalló-Talude, indica que a ocupação documentada na jazida de Cambelas será algo
mais recente. No estado actual dos conhecimentos, não é possível concretizar o grau de
afastamento temporal existente entre os dois momentos, mas o referido paralelo aponta para
que sejam contíguos, pelo que a fácies Cerrado Novo do Magdalenense antigo deverá, assim,
conforme se sugere na Fig. 5.32, ter uma cronologia situada entre ≈16 000 e ≈14 000 cal BC.
É o que resulta igualmente da consideração das datações disponíveis para a área principal da
escavação de Pericot no Parpalló. Segundo Davidson (1986), o nível 1,5-1,7 m foi aí datado
pelo 14C de 13 800±380 BP (Birm-519), ou seja, de ≈14 600 cal BC. Na zona Talude, o topo
dos níveis do Magdalenense antigo tipo B está a cerca de 1,5 m de profundidade. A referida
data deve corresponder, pois, ao limite superior do intervalo de tempo durante o qual se deu a
acumulação desses níveis.
É a esta fácies que, por outro lado, deverá igualmente atribuir-se uma parcela importante
da componente magdalenense de Vascas, mais concretamente as lamelas de Areeiro e os
«raspadores de Vascas» do Conjunto 4 (analisado no capítulo 43 do vol. II), e também,
provavelmente, uma parte considerável, senão mesmo a totalidade, das «raspadeiras»
Sequência cultural
235
Fig. 5.34 - Artefactos característicos do Magdalenense superior de Vale da Mata: 1. buril diedro desviado; 2. buril
sobre truncatura côncava; 3. ponta de dorso unilateral (microgravette); 4. lamela escalena; 5. ponta de dorso duplo
e base retocada (microgravette ou ponta de Malaurie); 6. lamela de dorso denticulada; 7. triângulo.
espessas e dos raspadores do Conjunto 6 (cuja lista tipológica se apresenta no capítulo 3 do
mesmo volume). As pontas de dorso, em particular as de Malaurie e de dorso curvo, porém,
deverão corresponder já a vestígios de ocupações do Magdalenense superior e final. Tendo o
estudo dos materiais revelado a existência nesta jazida de componentes industriais múltiplas,
misturadas pela escavação, não deve constituir objecto de surpresa, com efeito, que a parte do
espólio atribuída ao Magdalenense corresponda também ela a momentos de ocupação crono-estratigraficamente distintos.
5.8.5. Magdalenense superior
Apesar de apresentarem uma estrutura que, no essencial, é idêntica à dos conjuntos da mesma
jazida datados da fase inicial do Magdalenense antigo, os espólios do Magdalenense superior
de Cabeço de Porto Marinho (que as datações absolutas situam entre ≈12 000 e ≈11 000
cal BC) diferenciam-se pela sua maior diversidade tipológica. Os conjuntos de armaduras
incluem agora quantidades significativas de pontas microlíticas, de que não se conhecem
quaisquer exemplares nos níveis do Magdalenense antigo (e que também estão ausentes do
espólio recolhido no Cerrado Novo), e de lamelas de dorso denticuladas (Fig. 5.14). Outra
diferença importante com o Magdalenense antigo é a respeitante ao aumento significativo do
rácio lâminas:lamelas. Neste contexto, parece pacífica a atribuição a este período do conjunto
magdalenense de Vale da Mata (onde foram recolhidas as lamelas e pontas de dorso
ilustradas na Fig. 5.34), e também, com elevada probabilidade, de grande parte do material
proveniente das escavações antigas na Lapa do Suão (ver vol. II, capítulo 45). Os materiais
do Conjunto 6 da Buraca Grande (ver vol. II, capítulo 50) são também magdalenenses e, tal
como em Vale da Mata, incluem uma de ponta de pedúnculo axial assimilável à «ponta de
Ahrensbourg» (Aubry e Moura, comunicação pessoal). É provável, por isso, que também
datem deste momento, embora a vareta decorada datada por acelerador de ≈13 000 BP
indique que devemos estar perante um palimpsesto que inclui igualmente alguns vestígios de
ocupações ocorridas em etapas antigas e intermédias da sequência magdalenense.
Uma das características mais interessantes do espólio lítico de Vale da Mata é a
existência de bastantes buris de bisel fino fabricados sobre suportes laminares não corticais
(Fig. 5.34). Esta indústria é mesmo, de todas as que foram analisadas, a que tem o rácio rgb:b
(«resíduo de golpe de buril:buril») mais elevado, e também a única em que a percentagem de
lâminas de fase plena transformadas em buris é superior à das transformadas em raspadeiras
(Figs. 3.19-3.20). Conforme se argumentou no capítulo 3, é possível que este facto indique
236
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
estarmos, no caso das peças com estas características, perante utensílios no sentido funcional
do termo. No que diz respeito a Cabeço de Porto Marinho, porém, Bicho (1992:243) afirma
que os buris são quase sempre sobre lasca, sendo «muito raras» as peças sobre lâmina ou
lamela. A existência de uma diferença importante entre as duas jazidas no que respeita à
importância recíproca dos buris/núcleos e dos buris/utensílios é igualmente revelada pela
comparação das espessuras médias dos respectivos suportes: de 1,49±0,30 a 1,67±0,51 cm
nos diversos contextos do Magdalenense superior da jazida de Rio Maior (onde o rácio rgb:b
varia entre 0 e 0,10), contra 0,79±0,34 cm em Vale da Mata (onde o rácio rgb:b é de 5,81). O
uso de «resíduos de golpe de buril» como suporte de armaduras microlíticas, em especial de
pontas, está bem documentado tanto nesta última jazida como no Conjunto 4 de Vascas.
A diferença entre Vale da Mata e Cabeço de Porto Marinho está de acordo, por outro
lado, com a tendência evidenciada pela Fig. 3.21, que mostra como as indústrias com mais
buris/utensílios são, de um modo geral, as que têm percentagens mais elevadas de armaduras
microlíticas de dorso. Ora, o índice tipológico corrigido das armaduras era, no nível médio do
locus IIIS de Cabeço de Porto Marinho, de 17, e no nível superior do locus IIIT, de 18, contra
75 em Vale da Mata. Conforme se discutiu no capítulo 4, não é impossível que esta diferença
entre indústrias com muitas e com poucas barbelas tenha um significado funcional, embora,
de momento, tudo aponte para que, no Magdalenense, a distribuição do índice tipológico em
questão seja unimodal. Se, porém, se vier a verificar, no futuro, que esse índice covaria, de
facto, com outros (nomeadamente com o dos buris/utensílios), a questão terá, como é óbvio,
de ser reaberta. De momento, porém, não há elementos suficientes para permitir uma
abordagem mais aprofundada e, muito menos, para optar com segurança por qualquer das
várias possibilidades teoricamente concebíveis de interpretar o contraste a este respeito
existente entre a jazida de Rio Maior e a de Cambelas.
A comparação das colecções de Cabeço de Porto Marinho datadas de ≈12 000 cal BC
com as datadas de ≈11 000 cal BC indica, por outro lado, que parece verificar-se, nestes
últimos, uma certa tendência para a diminuição do índice laminar da debitagem. É possível
que se trate de um prenúncio do desaparecimento praticamente total das lâminas que
caracteriza as indústrias que, em princípio, lhes sucedem: as da fácies Rossio do Cabo.
5.8.6. Magdalenense final de fácies Rossio do Cabo
O conjunto de Pinhal da Carneira diferencia-se pelo facto de apresentar percentagens
elevadas de lamelas Dufour, de Areeiro e de dorso marginal, e por os buris dominarem de
forma esmagadora entre os núcleos para lamelas. A debitagem de suportes alongados segue
uma estratégia de tipo Cerrado Novo, em que a produção de lâminas é praticamente acidental.
Estas características são idênticas às da indústria escavada por L. Trindade no Rossio do
Cabo (ver vol. II, capítulo 50), razão pela qual (e de forma a evitar confusões com a fácies
documentada nos outros loci da jazida de Carneira) se optou por tomar a jazida da costa de
Torres Vedras como sítio epónimo desta etapa da sequência crono-cultural portuguesa. A sua
cronologia, atendendo ao resultado obtido para o Pinhal da Carneira, deverá estar situada
entre ≈11 000 e ≈10 500 cal BC.
Conforme se assinalou a propósito do estudo monográfico das colecções (ver vol. II,
capítulo 44), esta fácies representa, se a sua inserção cronológica estiver correcta, um
momento de ruptura industrial marcada, ensanduichada como está entre o Magdalenense
superior e o Magdalenense final de fácies Carneira, ambos caracterizados, em comparação
com os momentos anteriores da sequência, por uma importância acrescida da debitagem
laminar. A não existir a reversão representada pela fácies Rossio do Cabo, aqueles dois
momentos estariam em óbvia continuidade técnica e tipológica, não sendo difíceis de
conceber as modalidades da passagem gradual de um sistema de produção a outro.
Sequência cultural
237
Fig. 5.35 - Artefactos característicos do Magdalenense final de fácies Carneira (1-2. Carneira I; 3. Bairrada; 4-5. Olival da Carneira): 1. raspadeira ogival; 2. ponta de dorso rectilíneo e base truncada (ponta de Malaurie);
3. ponta de dorso curvo (ponta azilense); 4. trapézio; 5. microburil.
Estas observações obrigam a colocar a hipótese de, contrariamente ao que até agora tem
sido pressuposto, a fácies Rossio do Cabo ser já de época mesolítica. A amostra que foi
datada no Pinhal da Carneira, e em cujo resultado se apoia a idade entre 11 000 e 10 500 cal
BC que lhe temos vindo a atribuir, foi recolhida, com efeito, sob o nível arqueológico,
embora em contacto com ele (Marks, comunicação pessoal). É possível, portanto, que
represente apenas a idade mínima de uma ocupação que poderia ter tido lugar já no Pré-Boreal, como outras das que se documentaram na região de Rio Maior, nomeadamente em
Cabeço de Porto Marinho. Que esta hipótese não deve ser excluída à partida indica-o também
o facto de as características da indústria lítica da fácies Rossio do Cabo representarem um
termo de transição lógico, do ponto de vista técnico, entre as indústrias laminares com
produção de pontas a partir de buris da fácies magdalenense de Carneira, por um lado, e as
indústrias lamelares com produção de barbelas a partir de «raspadeiras» espessas da fácies
mesolítica do Areeiro III, por outro.
No estado actual dos conhecimentos, a questão tem de ficar em aberto. A jazida do
Rossio do Cabo já foi destruída, pelo que a sua datação absoluta é de todo impossível. Só a
continuação da escavação do Pinhal da Carneira poderá, eventualmente, carrear novos dados
para o seu esclarecimento. Até lá, a posição mais prudente parece ser a de aceitar que a
datação de que dispomos é válida e, portanto, que os momentos finais da sequência
magdalenense se terão caracterizado pela ocorrência de oscilações industriais aparentemente
desprovidas de direccionamento temporal.
5.8.7. Magdalenense final de fácies Carneira
A Fig. 5.35 ilustra exemplares dos tipos líticos característicos desta fácies do extremo final
do Paleolítico Superior provenientes das diversos contextos nela incluídos. Os conjuntos de
Carneira II e do Olival da Carneira diferenciam-se pelo facto de apresentarem uma
componente geométrica desenvolvida, constituída de forma quase exclusiva por trapézios. No
que diz respeito aos núcleos, trata-se de indústrias em que os buris são claramente
predominantes. A colecção proveniente das escavações de M. Heleno em Carneira I contem
igualmente, além dos trapézios, pontas robustas e afiladas, de dorso e base truncada,
assimiláveis à ponta de Malaurie, bem como pontas de dorso curvo, espesso e cruzado. Estes
dois tipos de pontas, o último passando por vezes ao segmento, encontram-se igualmente na
Bairrada e nas camadas 0-1 do Abrigo das Bocas (para as quais se obtiveram datações
compreendidas entre ≈10 000 e ≈9000 cal BC — ver vol. II, capítulo 50); nem uma nem outra
destas duas jazidas, porém, continha trapézios.
238
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 5.36 - Tipo de suporte e modo de retoque para obtenção de pontas azilenses e de Malaurie, de dorso cruzado
espesso, nas indústrias de fácies Carneira.
É possível que esta diferenciação interna da fácies Carneira esteja relacionada com
factores funcionais. Dados os argumentos acima expostos, há, no entanto, uma alternativa
mais verosímil: a de que ela reflicta a existência de dois momentos cronológicos distintos,
que a resolução das estratigrafias e dos métodos de datação absoluta ainda não permitiu
distinguir. É isso, pelo menos, o que parece acontecer no Sudoeste da França, onde o abrigo
de La Borie del Rey forneceu uma sequência do Dryas III em que, na base (níveis ditos
«protolaborienses»), ainda não há trapézios, os quais surgem nos níveis médios (ditos
«laborienses», e para os quais se obteve uma data 14C de 10 350±340 BP) e, sobretudo, nos
superiores (ditos «epilaborienses» e para os quais há uma data 14C de 9870±320 BP), em que
há «uma microlitização geral» e um «desaparecimento das pontas de Malaurie, substituídas
por lamelas de dorso pontiagudas, dardos, micropontas azilenses e lamelas de truncatura
oblíqua» (Bordes 1984:306-309); ao longo de toda a sequência, e tal como em Carneira II e
no Olival da Carneira, os buris são numerosos, e o respectivo índice tipológico convencional
é superior ao das raspadeiras.
A subida acentuada do «rácio lâminas:lamelas» que se verifica nas indústrias da fácies
Carneira (Fig. 3.11) não encontra correspondência num recurso acrescido às lâminas para
transformação em raspadeiras ou outros «utensílios domésticos» (Fig. 5.29). Por outro lado,
os dois microburis proximais recolhidos no Olival da Carneira eram, em ambos os casos,
suportes de fase plena com talão labiado e abradido. Conforme se argumentou a propósito do
estudo monográfico da indústria das camadas 3-4 do Olival da Carneira, é muito provável que
a finalidade com que os núcleos prismáticos eram explorados para a produção de lâminas e
de lamelas largas tenha sido, portanto, a de obter suportes para a fabricação de trapézios. O
que é compatível com o facto de, nesta jazida, o intervalo de variação das larguras dos sete
trapézios recolhidos nas camadas 1-4 (de 0,60 a 1,18 cm, para uma média de 0,87±0,20 cm)
corresponder ao intervalo de variação em que se encontravam 64% das lâminas e lamelas
brutas (81% das quais eram não corticais). Era esse também o módulo do material recolhido
em Carneira I e Carneira II.
Outra característica importante destas indústrias é a elevada percentagem de núcleos do
tipo buril de bisel espesso (Fig. 5.31). Conforme se argumentou no estudo monográfico das
indústrias da Bairrada e de Carneira, o recurso frequente à técnica do golpe de buril deve
estar relacionado, neste caso, com a necessidade de obter produtos alongados destinados a
transformação nos tipos de pontas microlíticas (azilenses ou de Malaurie, mas quase sempre
Sequência cultural
239
espessas e estreitas) que são mais comuns nas duas jazidas. O achado na Bairrada de
exemplares incompletos permitiu concluir, com efeito, que o processo de fabricação destas
últimas começava pela selecção de suportes que, de um modo geral, eram à partida robustos e
apresentavam já um dorso natural (Fig. 5.36).
O retoque consistia na regularização deste dorso natural por levantamentos abruptos
cruzados, os quais, intersectando o bordo oposto, permitiam a obtenção de uma extremidade
apontada (Fig. 5.35, nºs 2-3). A debitagem de buris constitui um modo expedito de produzir
suportes com tais características, pelo que não é de admirar a boa representação deste tipo de
artefactos nos espólios da época. A análise das pontas do espólio proveniente das escavações
de Heleno na Carneira permitiu constatar, no entanto, que suportes de características
similares também podiam ser obtidos no quadro da exploração regular de núcleos
prismáticos, nomeadamente através da extracção de lamelas «de esquina», em que o dorso
natural resulta de o levantamento ser feito mediante o uso como guia de uma das arestas
laterais da superfície de debitagem.
6. TENDÊNCIAS E CONTEXTO
A natureza dos dados à nossa disposição apenas permite abordar o problema das tendências
de longo prazo da sequência crono-estratigráfica portuguesa a partir das indústrias líticas. No
estado actual, ainda muito embrionário, dos conhecimentos, a busca de uma explicação
global, de natureza antropológica, para as mudanças ocorridas nesse campo é, porém, em
grande medida, prematura. Isso não significa que não seja possível realizar, desde já, alguns
avanços nessa direcção, o que passa, em primeiro lugar, por procurar descobrir padrões de
correlação entre os desenvolvimentos ocorridos nos diversos domínios empíricos pertinentes
para a construção de uma tal explicação. No presente capítulo, começar-se-á precisamente
por averiguar a eventual existência e características de tais padrões e, tentando não esquecer
as limitações impostas pelo atraso da investigação, avançar algumas hipóteses para a
interpretação do seu significado. Procurar-se-á igualmente situar no contexto mais geral do
Sudoeste europeu os desenvolvimentos ocorridos em território português e, nesse quadro,
analisar a respectiva relevância para a discussão dos problemas relacionados com as
modalidades e causas das transformações tecnológicas, económicas e sociais por que
passaram as sociedades de caçadores que habitaram esta região do mundo ao longo dos
últimos vinte mil anos da Era Quaternária.
6.1. Indústrias líticas e sistema de adaptação
A consulta do Quadro 6.1 permite constatar a existência de algumas coincidências temporais
interessantes entre a ocorrência de transformações no ambiente e na subsistência, por um
lado, e na economia do sílex, por outro. A substituição de sistemas de produção lítica
baseados na circulação de suportes por sistemas baseados na circulação de núcleos, por
exemplo, parece ser um processo em três etapas cujos limites cronológicos coincidem
aparentemente com os das grandes transformações ambientais que tiveram lugar durante o
Paleolítico Superior. Do mesmo modo, a relativa homogeneidade tecnológica do complexo
magdalenense parece relacionada com o processo de implantação estabilizada do bosque
mediterrânico nas regiões calcárias, cujo arranque se deverá ter dado por volta de 16 000 BP,
precisamente quando surgem no registo arqueológico as primeiras indústrias miniaturizadas
constituídas quase exclusivamente por lascas e lamelas transformadas por retoque.
Poderia assim colocar-se a hipótese de as referidas simultaneidades representarem mais
do que simples coincidências, traduzindo antes a existência de importantes nexos causais
entre os dois domínios. A passagem de uma tecnologia orientada para a produção de pontas
líticas (Solutrense) a uma tecnologia orientada exclusivamente para a produção de pontas
ósseas com barbelas de pedra (Magdalenense), por exemplo, poderia ser concebida como
ditada pelas mudanças na composição das faunas cinegéticas decorrentes da alteração das
condições ambientais provocada pelo início da deglaciação. Do mesmo modo, a anterior
passagem do Gravettense ao Solutrense poderia ser interpretada como uma consequência dos
esforços de adaptação das populações humanas às rigorosas condições ambientais vigentes
durante o máximo glaciário, que teriam exigido armamento mais eficiente. É esse, aliás, o
ponto de vista de autores como Straus (1991:442): «As pontas foliáceas e crenadas eram
provavelmente parte de uma tecnologia desenvolvida para fazer face à degradação das
condições climáticas. (...) As novas armas podem ter ajudado a amortecer os efeitos
desfavorecedores de um ambiente adverso, a permitir uma maior margem de erro, e a
melhorar as expectativas de sobrevivência a longo prazo, mesmo se a maior parte das
espécies caçadas continuavam a ser as de antes».
242
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Tendências e contexto
243
É muito provável, de facto, que as mudanças ocorridas nos sistemas adaptativos tenham
influenciado até certo ponto estes processos de evolução tecnológica. Há que ter em conta,
porém, o facto de eles se terem dado igualmente noutras regiões da Europa em que as
condições ambientais prevalecentes eram muito diferentes. Em França ou na Alemanha, por
exemplo, a tecnologia utilizada a partir de 16 000 BP também se baseava na produção de
pontas ósseas armadas de barbelas líticas, razão pela qual, aliás, a designação originalmente
dada a esta época nesses países — o Magdalenense — acabou por ser adoptada também na
Península Ibérica. Nas regiões a norte dos Pirenéus, porém, o clima era de tipo periglaciar e a
principal espécie caçada era a rena, ou seja, as condições ambientais e a base da subsistência
faziam com que, nessas regiões, a situação fosse, do ponto de vista do sistema de adaptação,
completamente diferente da que existia em Portugal.
O determinismo ecológico absoluto perfilhado por Straus, e que uma leitura apressada do
Quadro 6.1 pareceria à primeira vista justificar, corresponde, portanto, a uma visão redutora,
simplista e, logo, em grande parte equivocada, da realidade. O próprio Straus, aliás, tem
consciência da importância do obstáculo que os dados empíricos representam para o seu
ponto de vista. No trabalho acima referido, a propósito da constatação de que a substituição
de tecnologias baseadas em pontas líticas por tecnologias baseadas em pontas ósseas é um
fenómeno que se repete por diversas vezes ao longo da sequência do Paleolítico Superior e do
Mesolítico da Europa, ele acaba por ser obrigado a reconhecer, com efeito, que, «se esse
padrão cíclico é real, a sua explicação representa um desafio fascinante para os pré-historiadores processualistas!» (Straus 1991:443).
Os exemplos citados mostram, portanto, que as transformações na cultura material
ocorridas ao longo do Paleolítico Superior se deram, em grande medida, com independência
das oscilações verificadas nas condições ambientais e dos ajustamentos que, em resultado, as
populações humanas tiveram de ir fazendo nos seus sistemas de povoamento e subsistência.
Ou seja, mostram que essas transformações devem ser consideradas como um processo
essencialmente cultural, que releva de desenvolvimentos relacionados com a capacidade
humana de inovar e com os processos de selecção e de difusão das inovações que se vão
produzindo constantemente. Por exemplo, o facto de, a certa altura, os caçadores paleolíticos
da Europa ocidental terem modificado o seu equipamento de caça, substituindo as pontas
ósseas do Gravettense final pelas pontas líticas do Solutrense, não significa que isso se deva
necessariamente ao facto de estas últimas serem mais eficientes. A razão de ser da sua
adopção pode ter residido, muito simplesmente, em fenómenos de «moda», com causas que
não são ergonómicas ou ecológicas mas sim puramente sociais, ligadas ao funcionamento de
sistemas de interacção a longa distância. A avaliação do grau de verosimilhança destas
formas de explicação alternativas obriga a tomar em consideração, por conseguinte, os dados
existentes quanto ao contexto regional em que se integravam as populações humanas do
Paleolítico Superior português e às relações por elas mantidas com as do resto do continente.
6.2. Contexto regional
Tal como acima se referiu para o caso do Magdalenense, o facto de as diferentes unidades da
sequência cultural-estratigráfica portuguesa serem designadas da mesma forma que em
Espanha e em França é, à partida, sintoma da existência de um grande paralelismo no modo
como se deram as transformações ocorridas na cultura material do Paleolítico Superior da
Europa ocidental. O facto de isso se ter verificado num contexto de enorme diversidade
ecológica parece constituir, assim, uma primeira confirmação de que é de facto ao nível das
relações inter-grupos que deverá ser buscada a parte fundamental da explicação de tais
transformações. Poderá sempre argumentar-se, porém, que a coincidência nas designações é
mais de forma do que de conteúdo e, logo, que as semelhanças detectadas entre as duas
244
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
sequências decorrem de uma transposição abusiva da terminologia franco-cantábrica para
Portugal. Dadas as suas implicações, a questão tem de ser discutida de forma explícita e a
existência do referido paralelismo exige, por conseguinte, a demonstração desenvolvida que
se procurará fazer de seguida.
6.2.1. Aurignacense
Os alicerces das diferentes propostas de organização do Aurignacense que têm vindo a ser
propostas ao longo das últimas décadas baseiam-se, em grande medida, na interpretação de
duas sequências-chave do Sudoeste da França: as dos abrigos de La Ferrassie e de Pataud. A
mais recente sistematização é a de Delporte (1991), que retoma nas suas linhas gerais a de
Sonneville-Bordes (1958). Combinando os dados das escavações antigas de Peyrony com os
provenientes dos trabalhos por si dirigidos mais recentemente em La Ferrassie, Delporte
reconhece a existência de seis etapas industriais, diferenciadas com base na variação das
frequências de quatro classes de artefactos: lâminas aurignacenses, raspadeiras, buris e
pontas de osso (Quadro 6.2).
No que diz respeito às indústrias líticas, porém, a avaliação do significado da variação
identificada por Delporte tem de levar em conta o facto de as percentagens por ele calculadas
terem sido obtidas sobre um universo que inclui tanto núcleos (as «raspadeiras» espessas e os
buris) como utensílios (as raspadeiras finas e as lâminas aurignacenses). Em parte, portanto,
as diferenças entre os diversos níveis podem ser simplesmente funcionais, isto é, relacionadas
com a variação verificada de zona para zona (ou de ocupação para ocupação) no peso das
actividades oficinais. É em particular isso, com toda a probabilidade, o que se verifica com as
oscilações verificadas no peso relativo de «raspadeiras» espessas e raspadeiras finas, ou com
os padrões de presença/ausência das lamelas Dufour. Se considerarmos apenas a variação das
categorias homólogas, a sequência aurignacense pode reduzir-se, assim, do ponto de vista da
tecnologia da pedra, a dois momentos apenas (embora a consideração da indústria óssea
possa eventualmente permitir outras subdivisões mais precisas): uma fase inicial em que os
núcleos especiais para barbelas são quase todos do tipo «raspadeira» espessa; e uma fase final
em que estas são substituídas pelos buris, carenados e diedros.
QUADRO 6.2
Crono-estratigrafia do Aurignacense francês
A sequência de La Ferrassie, segundo Delporte (1991)
Fase
Níveis
Idade BP
Indústria
Arcaico
(0)
K7
Antigo
(I)
K6, K5
Médio
(IIa)
K4, K3c
«raspadeiras» espessas muito abundantes; raspadeiras sobre lâmina raras;
buris carenados/arqueados raros
Médio
(IIb)
K3b, K3a, K2
«raspadeiras» espessas e raspadeiras finas sobre lâmina em proporções
idênticas; buris carenados/arqueados raros; pontas romboidais
Médio
(IIc)
J, I2, I1, H
desaparecimento das «raspadeiras» afocinhadas e diminuição das carenadas;
grande aumento dos buris carenados/arqueados; pontas romboidais grandes
Recente
(III-IV)
Gf, GsN,
GsS, F, Els
«raspadeiras» afocinhadas e buris numerosos (12%); sem pontas de base
fendida nem lâminas aurignacenses
33 200±570
(GrN-5751)
29 000±850
(OxA-405)
«raspadeiras» carenadas e afocinhadas; lâminas aurignacenses; pontas de
base fendida
desaparecimento das lâminas aurignacenses; buris arqueados/carenados raros;
incremento dos buris diedros; pontas pequenas de secção cilíndrica
Tendências e contexto
245
É também este o ponto de vista de Brooks (1982), a qual, baseando-se na sequência de
Pataud, considera haver apenas duas tendências de significado diacrónico na variabilidade
das indústrias aurignacenses do Sudoeste da França: a primeira, diz respeito ao facto de os
buris (em particular os arqueados/carenados) serem raros na base da sequência; e a segunda,
ao facto de, no topo, se registar uma diminuição da frequência das lâminas retocadas. Os
dados cronométricos obtidos (Delibrias e Fontugne 1990) indicam, por outro lado, que este
processo de evolução industrial terá tido lugar entre os 34 250±675 BP (GrN-4507) da parte
inferior da estratigrafia (nível 14, atribuído ao Aurignacense inferior) e os 26 600±800 BP
(OxA-690) da respectiva parte superior (nível 6, atribuído ao Aurignacense final).
A posição de Rigaud (1993) quanto à possibilidade de a sequência aurignacense ser
objecto de uma organização interna muito detalhada é ainda mais céptica do que a de Brooks.
Para ele, o único critério baseado nas indústrias líticas que permite uma diferenciação
cronológica do tecnocomplexo é o da frequência das peças com retoque aurignacense, que
seriam características da fase inicial. A variação nas percentagens de peças carenadas
(«raspadeiras» e buris) seria desprovida de sentido direccional e relacionar-se-ia com o facto
de, no Aurignacense, terem coexistido dois subsistemas tecnológicos distintos, um baseado
na produção de pontas de osso, e outro baseado na produção de pontas compósitas, armadas
de barbelas. Os níveis em que as peças carenadas e as lamelas Dufour estivessem bem
representadas corresponderiam simplesmente, assim, a ocupações em que as actividades de
fabricação de equipamento pertencente ao segundo subsistema teriam sido mais importantes.
Os níveis em que esses tipos líticos fossem raros ou inexistentes, portanto, não seriam
necessariamente de época diferente, essa raridade ou ausência podendo decorrer, muito
simplesmente, do facto de as actividades neles fossilizadas estarem relacionadas sobretudo
com o subsistema das pontas de osso.
Os elementos publicados por Bernaldo de Quirós (1982:212-226) para a região cantábrica
parecem ser compatíveis com estes pontos de vista. Os buris carenados são sempre raros, e
em todas as indústrias das três fases discriminadas pelo autor há «raspadeiras» espessas e
buris diedros (estes últimos quase sempre mais numerosos do que os sobre truncatura), tipos
de núcleos cujas variações de frequência, calculada pela lista-tipo, não evidenciam qualquer
tendência diacrónica determinada. O principal factor de diferenciação crono-estratigráfica é,
portanto, a indústria óssea, cuja evolução segue em linhas gerais a descrita por Delporte para
La Ferrassie, o mesmo se passando também na Catalunha (Soler e Maroto 1993).
Qualquer que seja o ponto de vista adoptado, não parece que seja legítimo pôr em dúvida,
assim, a existência na sequência do Sudoeste da Europa de paralelos claros para as indústrias
que em Portugal se atribuíram ao tecnocomplexo em discussão. Vale de Porcos, por exemplo,
apresenta uma estrutura idêntica à do Aurignacense IIc de Delporte, e Vascas (Conjunto 5),
com a sua predominância dos buris diedros, à do Aurignacense III/IV. Em ambos os casos, a
preponderância dos buris sobre as «raspadeiras» espessas indica, na concepção de Brooks,
um posicionamento numa fase tardia da sequência, e a ausência quase total do retoque
aurignacense, que Rigaud considera exclusivo da fase inicial, aponta no mesmo sentido.
Atendendo às datações absolutas obtidas para Pataud e para Ferrassie, estes paralelos
permitem situar as indústrias portuguesas no período compreendido entre ≈30 000 e ≈27 000
BP, em conformidade com os resultados obtidos para o Pego do Diabo. Por outro lado, o
facto de as ocupações aurignacenses desta cavidade apenas estarem representadas por
armaduras (tal como, aliás, acontecia com as do Escoural e de Salemas) encaixa-se de forma
perfeita na visão de um Aurignacense com elevada variabilidade funcional inter-sítios
propugnada por Rigaud.
246
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
6.2.2. Gravettense
Segundo Sonneville-Bordes (1958) e Bordes (1984), o Perigordense superior (Gravettense)
de França subdivide-se em quatro momentos cronológicos distintos, embora unidos por um
elemento comum: o uso do retoque abrupto para a fabricação de armaduras e barbelas
(gravettes, microgravettes e lamelas de dorso). Um factor suplementar de unidade, a nível
tecnológico, é o de a debitagem de lâminas e lamelas a partir de núcleos prismáticos se fazer
no quadro de um único esquema de exploração, isto é, de forma sequencial (Rigaud 1993).
Na sua fase antiga, a principal característica do Gravettense é a grande abundância dos
buris sobre truncatura. A presença de pontas de Font-Robert, de buris de Noailles e de
elementos de dorso truncados permite diferenciar um Perigordense V em que estes tipos (cuja
contemporaneidade foi demonstrada pela escavação do abrigo de Flageolet 1) ocorrem em
proporções cuja variabilidade é determinada por factores funcionais (Laville e Rigaud 1973),
de um Perigordense IV em que as armaduras são exclusivamente constituídas por gravettes e
por flechinhas. Segue-se um Perigordense VI mal definido, em que o principal elemento de
diagnóstico é a importância das lâminas truncadas ou bitruncadas e, a terminar a sequência,
um Perigordense VII ou Proto-Magdalenense caracterizado pela abundância da indústria
óssea, pelas numerosas armaduras microlíticas de dorso, e pela utilização de um novo tipo de
retoque, o «retoque proto-magdalenense» (Bosselin 1991). A datação radiométrica da
estratigrafia de Pataud (Mellars et al. 1987) permitiu estabelecer que esta sequência se
desenvolve entre cerca de 27 000 BP e cerca de 22 000 BP. Os dois resultados obtidos para
os níveis da jazida atribuídos ao Perigordense IV foram, com efeito, de 28 400±1100 BP
(OxA-169) e de 26 000±1000 BP (OxA-581), enquanto que o obtido para o nível atribuído ao
Proto-Magdalenense foi de 22 000±600 BP (OxA-162).
Os dados existentes para as indústrias espanholas desta época são relativamente esparsos
e dificilmente comparáveis com os de França. Nas indústrias da região cantábrica descritas
por Bernaldo de Quirós (1982), os buris diedros são sempre mais numerosos que os sobre
truncatura, e os utensílios característicos do Perigordense V são, de um modo geral, raros,
embora estejam presentes em certas jazidas (pontas de Font-Robert em Bolinkoba e Pendo,
buris de Noailles em Bolinkoba, Morín e Castillo). Não havendo datações absolutas
aceitáveis para os níveis estudados por aquele autor, é difícil avaliar o significado destes
factos. É possível, por exemplo, que eles indiquem estarmos perante indústrias que, na sua
grande maioria, pertencerão já às fases mais recentes do tecnocomplexo, equivalentes aos
Perigordenses VI e VII da sequência francesa. A mesma ausência de datações absolutas
impede uma melhor caracterização dos níveis gravettenses da Espanha mediterrânica, os
quais, porém, segundo Villaverde e Martí (1984), se diferenciariam da norma francesa pela
raridade dos buris. As contagens de Bernaldo de Quirós (1982) e de Miralles (1982) indicam,
por outro lado, que as «raspadeiras» espessas continuam presentes nas indústrias desta época.
As fases inicial e final da sequência francesa têm equivalência evidente na sequência
portuguesa, tanto do ponto de vista cronológico como do ponto de vista tecnológico: as
indústrias de tipo Vale Comprido - Barraca, no primeiro caso, e de tipo Terra do Manuel
(1940-42) no segundo. De um modo geral, o Gravettense português caracteriza-se ainda, tal
como o francês, por estratégias de debitagem orientadas para a produção sequencial de
lâminas e de lamelas. A ausência de conhecimentos sobre as características de que se terão
revestido as fases médias do tecnocomplexo em território português não permite especular
sobre o significado da ausência de pontas de Font-Robert nas nossas jazidas, nem sobre o da
presença esporádica de buris de Noailles, tanto no Gravettense antigo como no final. As
indústrias de tipo fontesantense não encontram paralelo nem em Espanha nem em França, e
parecem corresponder a uma idiossincrasia lusitana. No entanto, a deficiência dos dados
disponíveis para as regiões mediterrânicas não permite excluir a hipótese de esta fácies vir
um dia a ser reconhecida no sul de Espanha.
Tendências e contexto
247
6.2.3. Proto-Solutrense
Tomando como padrão a estratigrafia de Laugerie-Haute, Sonneville-Bordes (1958) e Bordes
(1984), seguindo Peyrony, definiram a passagem do Gravettense ao Solutrense como um
processo em quatro etapas: Perigordense VII; Aurignacense V; Proto-Solutrense; Solutrense
inferior. O significado da primeira, durante algum tempo controverso, é hoje claro: trata-se,
como acima se referiu, do termo final da sequência gravettense. A segunda e a terceira são
mais controversas: Demars (1985) é de opinião que também podem ser atribuídos ao
«Aurignacense V» alguns conjuntos líticos provenientes de sítios de ar livre das regiões de
Corrèze e dos Pirenéus, mas essa atribuição não foi até agora corroborada por datações
absolutas; e a presença de contextos proto-solutrenses tem sido diagnosticada em Trilobite e
Badegoule, mas a respectiva equivalência aos níveis da jazida epónima é muito questionável
(Smith 1966; Rasilla 1984b). Deste modo, é apenas em Laugerie-Haute que esses momentos
intermédios parecem estar documentados de forma segura, pelo menos no que respeita ao
território francês. Conforme se tem vindo a defender ao longo deste trabalho e se argumentou
já em publicações diversas (Zilhão 1994a; Zilhão e Aubry 1996), tudo leva a crer, porém, que
o «Aurignacense V» seja uma entidade taxonómica sem valor crono-estratigráfico, tal como
resulta, aliás, de uma análise atenta da sequência de Laugerie-Haute.
Inicialmente identificado por Peyrony no lado Oeste do abrigo, o «Aurignacense V» foi
também encontrado por Bordes no lado Este, circunstância que teria permitido precisar a
respectiva posição estratigráfica (Bordes 1959; Sonneville-Bordes e Bordes 1958): posterior
ao Proto-Magdalenense, e contido numa «pirâmide» ou «construção tronco-cónica» cujo topo
assentaria sobre a camada com que terminava a sequência perigordense. Anteriormente,
porém, Bordes (1958) tinha representado essa construção como assentando sobre a camada
31, por si atribuída ao Solutrense inferior (Fig. 6.1). Conforme no-lo relata o próprio autor
(Bordes 1984:173), não foi senão depois de D. de Sonneville-Bordes ter encetado o estudo
dos materiais, e assinalado a presença no Solutrense inferior da camada 31 de «raspadeiras»
espessas semelhantes às do «Aurignacense V» de Peyrony, que foi tomada a decisão de
rectificar a interpretação da sequência, rectificação que afectou também o próprio desenho do
corte. Em consequência, as «raspadeiras» espessas dos níveis do Proto-Magdalenense e do
Solutrense inferior passaram a ser consideradas como contaminações. Deste modo, embora a
sua presença na camada 36 (proto-magdalenense) seja mencionada por Bordes (1958:232),
que, inclusivamente, ilustra três exemplares (Fig. 21, nºs 5-7), os artefactos deste tipo
aparecem reduzidos a uma só peça na única publicação tipológica exaustiva da utensilagem
proto-magdalenense do sítio publicada pelo escavador (Bordes 1978). Smith (1966), aliás,
diz-nos também: que «...separámos os utensílios do Aurignacense V que se encontravam no
Solutrense inferior escavado em 1957 no lado Este...» (p. 64); e que na camada 31 ainda
havia «uma raspadeira carenada atípica e três raspadeiras afocinhadas espessas», apesar de
«tudo ter sido feito para eliminar os utensílios suspeitos provenientes das imediações da
pirâmide do Aurignacense V» (p. 111-112).
Esta interpretação das «raspadeiras» espessas do Proto-Magdalenense e do Solutrense
inferior como intrusivas é tanto mais estranha quanto nem Peyrony, nem Bordes, nem Smith
assinalam perturbações estratigráficas de magnitude semelhante em qualquer outro momento
da sequência de Laugerie-Haute. Além disso, percebe-se mal como é que tais perturbações
poderiam ter originado a dispersão vertical das «raspadeiras» espessas sem que o mesmo
tivesse acontecido com as lamelas de dorso truncadas, as grandes lâminas de retoque proto-magdalenense, ou as pontas de face plana. Tudo indica, portanto, que a rectificação do corte
e da estratigrafia tenha sido feita por influência do preconceito segundo o qual as
«raspadeiras» espessas de Laugerie-Haute só podiam representar um Aurignacense (o que,
assim sendo, tinha ainda a implicação adicional de fornecer um fundamento estratigráfico à
teoria, tão cara a Bordes, do desenvolvimento em paralelo dos filos aurignacense e
perigordense). Para que essa rectificação ficasse coerente com a teoria tornava-se necessário,
248
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Fig. 6.1 - Laugerie-Haute Este. As duas versões do corte das escavações de Bordes e as razões por que a
topografia, a posição e as dimensões da «pirâmide» foram modificadas a posteriori.
Tendências e contexto
249
porém, encontrar uma «gaveta» sedimentar em que esta indústria fantasma pudesse ter estado
contida. Escolheu-se para o efeito a «pirâmide», em cujo interior as peças afocinhadas
pareciam ser mais abundantes, e que passou a ser considerada como o local de proveniência
original das «raspadeiras» espessas das camadas adjacentes. Para isso, a sua base foi puxada
para baixo, acrescentando-se pedras que não existiam no corte de 1958 ao corte publicado em
1959, que é, no resto, absolutamente idêntico. Deste modo, a parte inferior da «pirâmide»
passou a assentar no topo da camada 36, proto-magdalenense (tornando possível a atribuição
da estrutura a um momento pré-solutrense da sequência, sem o que a classificação como
Aurignacense do conjunto lítico nela supostamente contido não seria viável), e não, como as
observações estratigráficas originais tinham indicado, no topo da camada 31, datada do
Solutrense inferior (Fig. 6.1).
Se os efeitos desta «engenharia» crono-estratigráfica forem revertidos, isto é, regressando
à estratigrafia real do sítio, tal como observada no terreno por Bordes, a verdadeira natureza
do «Aurignacense V» de Laugerie-Haute resulta, à luz dos dados obtidos em Portugal,
perfeitamente clara: uma concentração localizada de núcleos carenados, datando do Proto-Solutrense ou do Solutrense inferior, provavelmente relacionada com ocupações curtas e
especializadas, do tipo das representadas pelo Gato Preto e pela camada 2 da Lapa do
Anecrial. Ou seja, é uma fácies funcional, resultante do carácter predominante ou exclusivo
que em certos momentos ou em certos lugares podem ter tido as actividades de produção de
barbelas a partir da debitagem de «raspadeiras» espessas. Cadeia operatória que, portanto,
estaria representada em Laugerie-Haute, tal como em Portugal, ao longo de todos os
momentos da passagem do Gravettense final ao Solutrense inferior, embora com um peso
extremamente variável. O paralelismo com a sequência portuguesa descrita no capítulo 5
encontra reforço suplementar, aliás, na constatação de que a camada 31 do lado Este de
Laugerie-Haute também continha pontas de Vale Comprido, tipo que, embora não
reconhecido como tal de forma explícita, pode também ser identificado facilmente entre o
material proveniente de certos sítios mediterrânicos (Baume d'Oullins, por exemplo) ilustrado
por Combier (1967).
A confirmação final da validade desta revisão da interpretação bordesiana da estratigrafia
de Laugerie-Haute acaba de ser dada, aliás, pelos resultados da escavação de emergência
realizada recentemente noutra jazida de Les Eyzies, o Abri Casserole (Detrain et al. 1991;
Aubry et al. 1995). Conforme se depreende da consulta do Quadro 6.3, esta nova sequência
confirma que o Proto-Solutrense tem uma entidade crono-estratigráfica bem definida, e que,
ao contrário do que pretende Rasilla (1994b), é plenamente justificada a associação a essa
entidade da indústria de Vale Comprido - Encosta. Ela confirma também, por outro lado, a
tradicional divisão do Solutrense em três etapas, e vem reforçar a hipótese segundo a qual o
facto de ainda não terem sido encontrados em Portugal contextos bem individualizados
QUADRO 6.3
A passagem do Gravettense ao Solutrense no Sudoeste da França
Estratigrafia arqueológica do Abri Casserole (Les Eyzies de Tayac) (a)
Nível
Atribuição cultural
Pontas líticas
Barbelas
7
Solutrense «superior»
Pontas crenadas e folhas de loureiro
Lamelas de dorso
8
Solutrense «médio»
Pontas de face plana e folhas de loureiro
Lamelas brutas
8b
Solutrense «inferior»
Pontas de face plana
Lamelas brutas
9
Proto-Solutrense
Suportes para pontas de Vale Comprido
Lamelas de retoque marginal
10
Proto-Solutrense
Pontas de Vale Comprido
Lamelas de retoque marginal
10b
Gravettense final
—
Lamelas de dorso bitruncadas
(a) segundo Detrain et al. (1991) e Aubry et al. (1995)
250
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
atribuíveis ao Solutrense inferior (embora dele existam indícios tanto em Vale Comprido - Encosta como na Gruta do Caldeirão) deve resultar do carácter lacunar dos conhecimentos e
não de haver, nesta época, diferenças significativas entre as indústrias portuguesas e as do
Sudoeste da França.
A caracterização do modo como se deu a passagem do Gravettense ao Solutrense em
Espanha é, de momento, difícil. Não obstante, os indícios de que se dispõe sugerem que o
processo terá sido idêntico, na suas linhas gerais, ao que está documentado na Estremadura
portuguesa e na Aquitânia, como, aliás, seria de esperar, tendo em conta a posição geográfica
intermédia das restantes regiões habitadas da Península Ibérica. Na região cantábrica, por
exemplo, a sequência de El Pendo apresenta dois níveis (o III e o IV) que Bernaldo de Quirós
(1982) assimilou ao Aurignacense V em virtude do seu conteúdo industrial e da sua posição
estratigráfica: ricos em «raspadeiras» espessas e com algumas lamelas de dorso e de dorso
marginal, esses níveis assentavam sobre um horizonte com abundantes lamelas de dorso
truncadas (o nível V) que pode ser paralelizado com o Proto-Magdalenense de Laugerie-Haute. Infelizmente, a sequência encontra-se afectada por um hiato: o nível II da jazida
corresponde já a um Magdalenense superior, não havendo, por isso, qualquer registo dos
episódios industriais correspondentes às etapas seguintes da transição.
As descrições disponíveis para as sequências clássicas da região de Valencia (Parpalló e
Mallaetes) não identificam nenhum episódio de aumento dos carenados no final da sequência
gravettense (Pericot 1942; Fullola 1979; Villaverde e Martí 1984). Recentemente, porém,
Soler (1994) referiu a existência de contextos provenientes de escavações antigas realizadas
em grutas situadas nas imediações de Serinya, no norte da Catalunha, em que se verifica uma
associação entre carenados e lamelas de dorso e de dorso marginal, por um lado, e pontas
aparentemente idênticas às do tipo de Vale Comprido, por outro. Ou seja, a sequência catalã
deverá ser também ela idêntica, no período compreendido entre ≈22 000 e ≈21 000 BP, à
acima descrita para Portugal e para França.
6.2.4. Solutrense
No que respeita ao período subsequente, de ≈21 000 a ≈18 000 BP, o paralelismo entre as
sequências de França e do sul de Espanha encontra-se actualmente estabelecido sem margem
para dúvidas. As jazidas com estratigrafias mais completas (Laugerie-Haute, Casserole e
Parpalló) evidenciam a divisão tripartida clássica que foi sistematizada por Smith (1966), e as
datações actualmente disponíveis para Laugerie-Haute, Mallaetes e Parpalló sugerem que a
passagem de uma etapa a outra se terá dado em simultâneo nas três jazidas (à escala de
resolução permitida pelo radiocarbono). A ordem de aparecimento dos fósseis directores
solutrenses na sequência do Caldeirão indica, por seu lado, que a referida divisão também
deverá ser válida em Portugal, e os resultados cronométricos disponíveis para essa sequência
confirmam que a desenvolução do tecnocomplexo se terá dado em sincronia com as outras
regiões do Sudoeste europeu (Zilhão 1991, 1994a).
Na região cantábrica, porém, a situação é mais complicada. Contrariando Jordá (1955) e
Corchón (1971), Straus (1983a, 1987, 1991, 1992) tem vindo a defender que a variabilidade
interna do Solutrense da Espanha setentrional deve ser explicada pela aleatoriedade das
amostragens e pela funcionalidade dos sítios, factores que determinariam integralmente a
presença das pontas crenadas em certos contextos e a sua ausência noutros. Mais
recentemente, Rasilla (1994a) rebateu convincentemente esta interpretação, demonstrando a
existência de níveis atribuíveis a um Solutrense médio em diversas jazidas, em particular nas
de La Viña e de Las Caldas, objecto de escavações modernas. Além de não terem pontas
crenadas, estes níveis diferenciam-se dos do Solutrense superior por uma série de outras
características industriais importantes: grande tamanho das peças, uso exclusivo do sílex, e
Tendências e contexto
251
ausência de lamelas de dorso. Para Rasilla, porém, a sequência cantábrica apresenta, mesmo
assim, diferenças importantes com a das restantes regiões da Europa ocidental: inexistência
de um Solutrense inferior, substituído por um Perigordense final que se prolongaria até ao
episódio de Laugerie, isto é, até ≈20 000 BP; e desfasamento cronológico de um milénio na
desenvolução da sequência Solutrense médio/Solutrense superior, o primeiro datando de
entre 20 000 e 19 000 BP e o segundo de entre 19 000 e 18 000 BP.
Este modelo apoia-se, no entanto, em correlações sedimentológicas cujo valor deve ser
considerado extremamente duvidoso, pelo menos à luz da crítica a que os pressupostos do
método de Laville, ainda muito utilizado em Espanha, têm sido ultimamente submetidos
(Campy 1990). Os argumentos cronométricos (Rasilla e Llana 1994), por seu lado, são
igualmente muito pouco convincentes, dado basearem-se apenas na datação da sequência de
Las Caldas. Aqui, com efeito, as amostras dos níveis 12 base e 16, atribuídos ao Solutrense
médio, deram os resultados de 19 480±260 BP (Ly-2426) e 19 510±380 BP (Ly-2428),
respectivamente, os quais, porém, são estatisticamente idênticos ao do mais antigo nível
atribuído ao Solutrense superior, o nível 9: 19 390±360 BP (Ly-2424). Além disso, a
sequência de Las Caldas, tal como já havia acontecido com a de La Riera, escavada por
Straus, está cheia de resultados anómalos, que contradizem a ordem de sucessão das camadas.
O nível 18, que corresponde à base de toda a sequência solutrense, deu, por exemplo, uma
data de 19 000±280 BP (Ly-2429), mais recente do que a do nível 9, supostamente solutrense
superior. E o nível 10, no topo da sequência do Solutrense médio, foi o que deu o resultado
mais antigo: 19 820±390 BP (GaK-6447).
Estes factos sugerem que as sequências de gruta da região cantábrica foram sujeitas a
processos de perturbação pós-deposicional muito importantes, de que os seus escavadores
não se terão dado conta, ou da magnitude de cujas consequências não têm tido a percepção
adequada. A existência de problemas desse tipo não surpreende, aliás, se se tiver presente
que, em La Riera, os dez mil anos de muito densa ocupação solutrense e magdalenense,
repartida por vinte níveis arqueológicos diferentes, se encontravam comprimidos em pouco
mais de 1 m de depósitos (Straus e Clark 1986). Enquanto não dispusermos de uma crítica
tafonómica adequada de sequências como as de La Riera ou de Las Caldas, a utilização das
datações absolutas nelas obtidas para a construção de esquemas crono-estratigráficos muito
detalhados deve ser considerada inútil. Dada a falta de coerência interna das séries, a
selecção como correctas de umas e como incorrectas de outras não é, com efeito, senão um
simples exercício de afirmação do consequente: as datas «boas» são as que se ajustam ao
esquema de correlação industrial e sedimentológica preexistente, as «más» são as que não se
ajustam, a datação cronométrica não constituindo assim, como devia ser, uma forma de
controlo independente da validade do esquema. Do mesmo modo, o facto de haver uma data
de cerca de 20 700 BP para o nível 5 de Morín (Bernaldo de Quirós 1982), atribuído ao
Gravettense e subjacente a outro nível de atribuição idêntica, o nível 4, não pode, à luz do
carácter anómalo das séries de datações obtidas para La Riera e Las Caldas, ser considerado,
por si só, como prova de uma perduração até tão tarde desse tipo de indústrias. Pelo
contrário, parece bastante mais provável, como argumentado noutro lado por Rasilla (1989),
que o facto de, até ao presente, não terem sido identificados níveis atribuíveis ao Solutrense
inferior a norte da cordilheira cantábrica, esteja relacionado com a magnitude dos fenómenos
erosivos que afectaram os preenchimentos cársicos da região durante o episódio de Laugerie.
Embora a identificação no Solutrense cantábrico de uma etapa média, sem pontas
crenadas, nos pareça, assim, perfeitamente lógica, já a hipótese de a sua cronologia se
encontrar tão desfasada da que se encontra documentada no resto da Europa ocidental parece,
pelo contrário, totalmente desprovida de sentido. Na região adjacente de Aragão, aliás, o
Solutrense superior da gruta de Chaves, contido num nível perfeitamente individualizado,
situado entre depósitos estéreis, está bem datado de 19 700±310 BP (GrN-12 681). Conforme
252
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
assinalam Utrilla e Mazo (1994), esta data está plenamente de acordo com as obtidas para
diversos contextos da França mediterrânica (Oullins, Salpêtrière), onde o aparecimento das
pontas crenadas de dorso nas sequências solutrenses se dá por volta de 20 000 BP.
Recentemente, aliás, foram igualmente obtidas datas da mesma ordem de grandeza para o
Solutrense superior do Placard, no Sudoeste da França, onde as camadas 14 e 17 das novas
escavações em curso no sítio deram os resultados de 20 310±220 BP (Gif A-92 083) e
20 210±260 BP (Gif A-92 084) (Clottes et al. 1994). Neste contexto, sai reforçada a
interpretação que, em conformidade com as datações obtidas para a jazida (20 380±150 BP
— ICEN-71 e 19 940±180 BP — OxA-5676), temos vindo a dar da indústria de Vale
Almoinha (Zilhão 1984b, 1994a): a de que se trata de uma indústria de transição entre o
Solutrense médio e o Solutrense superior, correspondendo ao momento em que, numa
indústria de folhas de loureiro e debitagem laminar de tipo Solutrense médio, se manifesta, de
forma ainda muito embrionária, a introdução das inovações tipológicas que definem o
Solutrense superior (a ponta crenada e a folha de salgueiro).
Apesar deste paralelismo geral na cronologia e nas linhas gerais do seu desenvolvimento
interno, o Solutrense não deixa de se caracterizar igualmente por particularismos regionais
bastante marcados. Embora a distribuição aparentemente circunscrita das pontas de Font-Robert e das pontas de Casal do Felipe possa ser sintomática de que tais particularismos já
existiam durante o Gravettense, o carácter demasiado lacunar dos conhecimentos não permite
uma caracterização a este respeito taxativa dos tecnocomplexos pré-solutrenses, tanto mais
que o Gravettense final e o Proto-Solutrense parecem ser, de novo, tal como tinha acontecido
com o Aurignacense, momentos de grande homogeneidade tecnológica à escala de todo o
Sudoeste europeu. No Solutrense, porém, a existência desses regionalismos é absolutamente
inquestionável: as pontas de base côncava, quase sempre em quartzito, são exclusivamente
cantabro-pirenaicas; as pontas crenadas de dorso são mediterrânicas e portuguesas; as pontas
de pedúnculo e aletas também, mas a sua área de distribuição já não atinge a Catalunha; as
folhas de loureiro de grande tamanho (de que são exemplos bem conhecidos as encontradas
no esconderijo de Volgu), bem como as pontas crenadas de retoque elaborado e morfologia
triangular, só se encontram na Aquitânia.
A existência desta diferenciação regional, que se torna sobretudo patente no Solutrense
superior, prenuncia a fragmentação que se verifica entre 18 000 BP e 16 000 BP. Na Espanha
mediterrânica surge, durante este período, o fenómeno industrial designado como Solutreo-gravettense, o qual, como se viu no capítulo 5, deve ocupar igualmente a posição crono-estratigráfica correspondente na sequência portuguesa. Na região cantábrica, há, nesta época,
uma passagem gradual do Solutrense ao Magdalenense, com substituição progressiva das
pontas de pedra por pontas de osso, processo de «desolutreanização» (Rasilla 1994a) que
parece concluir-se por volta de 17 000 BP. No Sudoeste da França, o Solutrense parece
terminar abruptamente ainda antes de 18 000 BP, num momento em que continua a florescer
na Península Ibérica, e dá lugar ao Badegoulense, o qual, segundo Trotignon (1984:96), está
datado de 17 960±350 BP (Ly-1124) na camada 6 do Abri Fritsch, e de 18 260±360 BP (Ly-972) em Laugerie-Haute Oeste.
6.2.5. Magdalenense antigo e superior
À primeira vista, o facto de, em França e na Península Ibérica, o termo «Magdalenense» ser
aplicado à generalidade dos contextos industriais datados do período compreendido entre
16 000 e 12 000 BP poderia dar a entender que a fragmentação a que se aludiu no parágrafo
anterior teria sido um fenómeno temporário. Isto é, que o período em questão teria voltado a
ser caracterizado, como já havia acontecido em momentos anteriores da sequência (fases
iniciais de desenvolvimento do Solutrense, por exemplo), por uma situação de grande
homogeneidade na cultura material das populações que habitavam a extremidade ocidental da
Tendências e contexto
253
Eurásia. Na realidade, porém, uma análise mais atenta dos dados sugere que a tendência para
a diferenciação regional que é já patente durante o Solutrense se mantém, ou se acentua ainda
mais, durante o Magdalenense. O denominador tecnológico comum a todos os conjuntos
industriais classificados como tal é, com efeito, muito simplesmente, o de a utensilagem
óssea conhecer neles uma grande expansão, de um modo geral associada, no capítulo dos
artefactos líticos, à abundância de micrólitos.
Este é, porém, um denominador comum que os referidos contextos partilham com os
conjuntos seus contemporâneos que actualmente se conhecem ao longo de toda a grande
planície eurasiática. A associação entre uma indústria óssea abundante e uma indústria lítica
com muitas lamelas de dorso encontra-se também, com efeito, na Alemanha, na Boémia e na
Morávia, na Polónia, na Ucrânia, na Rússia e na Sibéria (Abramova 1984; Bosinski 1990). A
este respeito, portanto, só os Balcãs e a Península italiana parecem diferenciar-se das
restantes regiões da Europa e da Ásia setentrional: embora as indústrias da parte final do
Paleolítico Superior se caracterizem, também aí, pela produção de grandes quantidades de
micrólitos, a indústria óssea é rara, ou mesmo inexistente (Bordes 1984). Nestas condições, o
termo «Magdalenense» parece não significar muito mais do que «indústrias paleolíticas
eurasiáticas posteriores ao último máximo glaciário e ricas em artefactos fabricados em osso,
marfim ou haste de cervídeo». No interior da vasta área geográfica em questão, porém, a
variação nas indústrias líticas e na tipologia da indústria óssea é bastante grande, e permite a
discriminação de áreas de cultura material bastante mais circunscritas. No que diz respeito ao
Sudoeste da Europa, a respectiva delimitação coincide, nas suas linhas gerais, com a acima
descrita para o período compreendido entre 18 000 e 16 000 BP (Fig. 6.2).
No Sudoeste de França, a subdivisão cronológica tradicional do Magdalenense apoia-se
nas indústrias ósseas. A um Magdalenense II com zagaias pouco típicas, de modo geral de
secção circular ou oval (embora também ocorram exemplares de secção quadrangular),
segue-se um Magdalenense III com varetas semi-cilíndricas, zagaias longas de ranhuras
profundas e zagaias curtas e largas, monobiseladas. As fases seguintes (IV, V e VI)
diferenciam-se pela tipologia dos arpões, que passam de peças com desenvolvimento
embrionário de barbelas a peças com uma fieira de barbelas bem destacadas e, finalmente, a
peças com duas fieiras de barbelas. No capítulo da indústria lítica, porém, não existem
critérios de diferenciação claros, a não ser os que se referem ao aparecimento no
Magdalenense final de alguns tipos específicos, cuja utilidade como fósseis directores é,
porém, muito relativa, dado tratar-se sempre de peças raras. É o caso dos buris bico de
papagaio e de certas categorias de pontas líticas: crenadas de cabeça curta e pedúnculo longo;
de pedúnculo axial (de Teyjat); ou foliáceas (de Laugerie-Basse). De um modo geral, com
efeito, as indústrias magdalenenses das fases III a VI caracterizam-se todas elas por serem de
base laminar, por não conterem «raspadeiras» espessas, e por apresentarem numerosos buris
de bisel fino executados sobre lâminas grandes, na sua maioria diedros. Esta homogeneidade
tipológica, já assinalada por Sonneville-Bordes (1959) e Bordes (1984), foi recentemente
confirmada pelos resultados da análise estatística executada por Bosselin e Djindjian (1988)
sobre uma série de conjuntos provenientes de escavações modernas: o critério que permite a
estes autores diferenciar as três fácies por eles reconhecidas (M0, M1 e M2) é o das variações
na frequência da utensilagem lamelar que, como é óbvio, devem estar relacionadas com o
impacto sobre a composição dos conjuntos de factores ligados à funcionalidade das
ocupações (razão pela qual as indústrias atribuídas à fácies M2, por exemplo, ocorrem ao
longo de todo o intervalo de tempo considerado).
Na região cantábrica, a sistemática do Magdalenense é controversa (González-Sainz e
González-Morales 1986; Barandiáran 1989; Fortea 1989; González-Sainz 1989; Utrilla 1989;
Straus 1992). Todos os autores, porém, concordam em aceitar pelo menos uma divisão em
duas etapas, antiga e recente, separadas por um episódio (o «Magdalenense médio») datado
254
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
de ≈14 000 BP e que se define sobretudo por uma arte móvel com objectos de distribuição
exclusivamente cantabro-pirenaica (contornos recortados e rodelas decoradas com perfuração
central). A fase antiga caracteriza-se, no que respeita à indústria óssea, pela preponderância
das zagaias de secção angulosa, sobretudo quadrangular, mas também triangular; e, na
indústria lítica, pela abundância de «raspadeiras» espessas, muitas delas nucleiformes, tipos
de núcleos que se destinavam seguramente à produção das barbelas brutas ou retocadas que
seriam encaixadas nas profundas ranhuras longitudinais comuns nas zagaias desta época. A
fase recente diferencia-se pelo aparecimento dos arpões, de tipologia semelhante à dos
conhecidos no Sudoeste da França. Tal como nesta última região, porém, as características
tipológicas das indústrias líticas não permitem, por si só, uma diferenciação clara com a fase
inicial, embora pareça haver uma tendência para o reforço da importância dos buris e, no que
respeita à utensilagem lamelar, para um incremento das peças de extremidade apontada em
detrimento das de extremidade obtusa (González-Sainz 1989).
No que respeita à região de Valencia, os dados disponíveis baseiam-se de forma quase
exclusiva na sequência do Parpalló. Conforme já se referiu, esta sequência também sugere
uma diferenciação do Magdalenense em duas etapas, a passagem de uma a outra fazendo-se
igualmente por volta de 14 000 BP (Aura 1984-85, 1989, 1992, 1995). A primeira etapa,
caracterizada pela predominância das zagaias de secção circular e ovalada, pode ainda
subdividir-se, no que à indústria lítica diz respeito, em duas fases, a segunda das quais, o
Magdalenense antigo de tipo B, se define pela abundância dos «raspadores de Vascas». Ao
contrário do que sucede na região cantábrica, é na etapa recente, ao mesmo tempo que
aparecem os arpões, que as zagaias de secção angulosa se tornam mais abundantes. No
capítulo da pedra, a diferença entre esta etapa recente (Magdalenense superior mediterrânico)
e o Magdalenense antigo está muito bem marcada pela mudança radical verificada na
natureza dos suportes transformados por retoque: de indústrias sobre lasca, em que o índice
laminar da utensilagem não ultrapassa os 20%, passa-se a indústrias sobre lâmina, em que o
referido índice é sempre superior a 60%, tanto no Parpalló como em Nerja (Aura 1992).
Note-se, porém, que, conforme se depreende da Fig. IV.6 de outro trabalho do mesmo autor
(Aura 1995:48), as lamelas foram por ele incluídas na computação do índice. A percentagem
de suportes alongados de largura >1,2 cm é, com efeito, significativamente inferior: no caso
dos níveis 4-1 de Parpalló-Talude, 24% apenas.
Tal como se argumentou no capítulo 5, tudo aponta para que, no essencial, a sequência
portuguesa seja idêntica à documentada na região valenciana, pelo menos no que diz respeito
ao período compreendido entre ≈17 000 e ≈14 000 BP, isto é, ao Solutreo-gravettense e ao
Magdalenense antigo. É nesse sentido que aponta também, no capítulo da indústria óssea, o
carácter quase exclusivo das zagaias de secção aplanada nos níveis magdalenenses da Gruta
do Caldeirão (ver vol. II, capítulo 40), onde não foi encontrada nenhuma peça de secção
quadrada como as que tão comuns são no Magdalenense antigo cantábrico. Em Portugal,
porém, ainda não foram descobertos, até ao momento, quaisquer arpões, e as indústrias do
Magdalenense superior parecem, do ponto de vista dos suportes, estar em clara continuidade
com as do Magdalenense antigo: os índices laminares da utensilagem, com efeito, são sempre
baixos (2,76 em Vale da Mata), mesmo quando se deslamelizam os conjuntos (na jazida de
Cambelas, o respectivo valor subiria, nesse caso, para apenas 11,42). Os valores citados por
Aura para a região mediterrânica são nitidamente superiores, o mesmo se passando na região
cantábrica, onde, no Magdalenense superior/final, a percentagem dos suportes laminares na
utensilagem em sílex varia entre 20 e 37% (González-Sainz 1989:195-196).
Quanto aos Pirenéus franceses, com os quais a região cantábrica mantém inúmeros
pontos de contacto ao nível da arte e da indústria óssea, os dados fornecidos por Clottes
(1989) indicam, contraditoriamente, a existência, ao nível da indústria lítica, de diferenças
importantes com as situações descritas por González-Sainz para a Espanha setentrional e por
Tendências e contexto
255
Fig. 6.2 - O Sudoeste europeu entre 18 000 e 12 000 BP. As sequências culturais das três regiões consideradas
evoluem de forma independente, embora globalmente relacionada, relação que se manifesta pela presença de
traços comuns, ora na indústria óssea ora na indústria lítica.
256
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Aura para a região de Valencia. De tipologia cuja variação é praticamente insensível ao
factor diacrónico, a utensilagem do Magdalenense pirenaico (todo ele posterior a 14 000 BP,
ou seja, «médio» e «superior») é globalmente caracterizada pelas suas pequenas dimensões e
por os suportes laminares serem muito raros. No caso da jazida de Les Églises (Clottes 1983),
datada de entre ≈12 000 e ≈13 000 BP, por exemplo, só algumas das raspadeiras são feitas
sobre lâminas curtas. Os buris são todos feitos sobre lascas «espessas e sólidas» (a sua
espessura média sendo de 1,14 cm), e apresentam biseis cuja espessura varia entre 0,2 e
1,2 cm, sendo em média de 0,7 cm (tratando-se portanto, com toda a probabilidade, de
núcleos e não de utensílios). Entre os restos de debitagem, a percentagem de lâminas e de
lamelas é de 19%, e o rácio lâminas:lamelas é de 0,20. Os blocos de sílex debitados como
núcleos prismáticos são explorados até à exaustão, sendo abandonados com dimensões muito
reduzidas: os seus comprimentos máximos, a avaliar pelos exemplares figurados, variam
entre 3 e 4 cm. Na sua globalidade, estes valores encontram paralelo perfeito em Cabeço de
Porto Marinho e Vale da Mata (ver vol. II, capítulos 42 e 47), e a definição das indústrias da
parte final do Magdalenense pirenaico como caracterizadas pela «multiplicação das lamelas
especializadas e dos geométricos» (Clottes 1989:284) confirma a semelhança notável com as
indústrias portuguesas do Tardiglaciar.
A consideração dos dados referentes aos restos de debitagem obriga, no entanto, a uma
certa matização das diferenças que aparentemente existem entre os padrões verificados nas
três regiões (Pirenéus, Portugal e faixa cantábrica) quanto ao peso da produção de suportes
alongados. Assim, em La Riera, nas Astúrias, a percentagem de lâminas e lamelas é de 46%
nas camadas 21-23, de 33% na camada 24, e de 23% na camada 26 (González-Sainz
1989:192). Os valores respeitantes às camadas 24 e 26 são da mesma ordem de grandeza dos
registados nos níveis do Magdalenense superior de Cabeço de Porto Marinho, jazida em que
variam entre 19% e 28%, a primeira destas percentagens sendo idêntica, aliás, à verificada
em Les Églises. O rácio lâminas:lamelas, por seu lado, varia entre 0,35 e 0,66 nos diversos
loci da jazida de Rio Maior, e é de 0,07 em Vale da Mata. Os valores apurados para La Riera
(de 0,16 nas camadas 21-23 a 0,50 na camada 26) e Les Églises (0,20) enquadram-se, por
conseguinte, na margem de variação documentada em Portugal.
É provável, assim, que as discrepâncias existentes entre os dados de Clottes e os de
González-Sainz estejam determinadas mais por aspectos situacionais (funcionalidade das
ocupações, aptidão para o talhe laminar das variedades de matéria-prima disponíveis) do que
por verdadeiras diferenças no sistema de exploração económica do sílex. A influência desses
factores permitiria explicar, nomeadamente, o facto de, nas jazidas cantábricas, a frequência
das lâminas entre o material retocado ser mais elevada do que nas pirenaicas. A este respeito,
a diferença entre La Riera, onde há bastantes buris sobre lâmina e lâminas de retoque
contínuo (Straus e Clark 1986:Fig. 8.108), e Les Églises, onde os primeiros são inexistentes e
as segundas constituem apenas 4% do total de utensílios retocados (contra 15% em La Riera,
nas camadas 21-23, segundo as contagens de González-Sainz), evoca a que existe, em
Portugal, entre Vale da Mata e Cabeço de Porto Marinho. Na primeira, a debitagem de
lâminas de boa qualidade, aproveitadas sobretudo como suportes para buris de bisel fino,
está, com efeito, bem documentada, embora seja uma actividade industrial claramente
minoritária. Na segunda, os buris são espessos, praticamente todos sobre lasca cortical, e as
lâminas transformadas correspondem sobretudo a suportes de raspadeiras ou de peças de
retoque contínuo.
Admitindo a validade desta explicação funcional, é possível, então, que as diferenças
entre o Magdalenense superior português e o de Parpalló e Nerja estejam relacionadas,
também elas, com o facto de, no caso das jazidas de Valencia, estarmos perante ocupações de
gruta de características especializadas. Em consequência disso, o material laminar produzido,
provavelmente em proporções não muito diferentes das encontradas nas jazidas portuguesas,
Tendências e contexto
257
seria objecto de um consumo superior ao verificado no nosso caso, quer nos sítios de Rio
Maior quer em Vale da Mata, dando origem a índices laminares da utensilagem bastante mais
elevados.
A ser assim, as indústrias líticas do Magdalenense superior da Península Ibérica e dos
Pirenéus franceses seriam, sob o ponto de vista das estratégias de produção, no essencial
idênticas, conformando uma área de homogeneidade ao nível da tecnologia básica semelhante
à que existia durante o Solutrense. Tal como acontecia durante esta última época, porém,
continuaria a haver uma diferenciação interna marcada, de limites geográficos aparentemente
coincidentes com os verificados durante o máximo glaciário: uma região cantabro-pirenaica,
cuja unidade se manifesta igualmente no capítulo da produção artística (veja-se o que acima
se disse acerca da definição do «Magdalenense médio»); e uma região ibérica (lusitana,
mesetenha e mediterrânica), cuja unidade parece igualmente manifestar-se através das
extraordinárias semelhanças existentes entre a arte das plaquinhas gravadas do Parpalló
(Villaverde e Martí 1984; Villaverde 1994) e a recentemente descoberta, ao ar livre, no vale
do Côa, a qual, do ponto de vista estilístico, deverá datar do período que vai do final do
Gravettense ao final do Magdalenense (Baptista e Gomes 1995; Zilhão 1995a, 1995b, 1995c).
Mais a norte, na recém-colonizada bacia de Paris e na Bélgica, a tecnologia de base do
Magdalenense era a tradicional do Paleolítico Superior, orientada para a produção de lâminas
de grande tamanho, mediante estratégias que se encontram bem documentadas nas jazidas de
ar livre dos arredores de Paris, como Pincevent, Etiolles ou Marsangy. É o que resulta da
consideração dos dados citados por Schmider (1989) para as dimensões das raspadeiras de
Marsangy e para as da jazida de La Vache (nos Pirenéus), ambas datadas de ≈12 000 BP:
8,84 cm de comprimento médio em Marsangy, contra 2,70 cm (na camada 1) e 3,06 cm (na
camada 4), em La Vache. Segundo Clottes (1983), o valor do mesmo parâmetro em Les
Églises era de 2,69 cm; e, em Cabeço de Porto Marinho, na mesma altura, esse valor era, para
o total das raspadeiras finas do nível médio do locus IIIS, de 2,51 cm, sendo de 2,29 cm em
Vale da Mata. Se admitirmos que a dimensão das raspadeiras é um indicador suficientemente
bom da dimensão dos suportes brutos produzidos, parece claro, portanto, que estes valores
confirmam a existência de uma diferença tecnológica radical entre as regiões do sul e as do
norte (Fig. 6.3).
A avaliar pelos elementos fornecidos por Bordes e Sonneville-Bordes (1979) acerca dos
comprimentos médios das raspadeiras do abrigo Morin, no Périgord, a região da Aquitânia,
situada numa posição geográfica intermediária entre os dois polos tecnológicos referidos no
parágrafo anterior, ter-se-á integrado, ao longo de quase todo o Tardiglaciar, no modelo
representado pelas jazidas da bacia de Paris. Na camada B daquele abrigo, atribuída ao
Magdalenense V, o comprimento médio das raspadeiras apresentava, com efeito, um valor de
cerca de 7,6 cm, baixando depois, ao longo do Magdalenense VI, para valores compreendidos
entre 4,6 e 5 cm, nas camadas A4 a A2, e para cerca de 4,1 cm, na camada A1, que encima a
sequência. Ou seja, terá sido só a partir de momentos cronológicos correspondentes ao
Azilense franco-cantábrico e ao Magdalenense final da Estremadura portuguesa que se terá
dado a reorientação para estratégias como as ibéricas, baseadas essencialmente na debitagem
de lascas e lamelas, dos sistemas de produção lítica das populações que habitavam o Sudoeste
da França.
O facto de, no Magdalenense recente, a presença de arpões constituir um traço de união
entre a Aquitânia e os Pirenéus poderia, no entanto, ser tomado como contraditório com uma
tal caracterização. Na realidade, porém, trata-se de um denominador comum que diz respeito
a um nível tecnológico ainda mais básico que o das estratégias de produção de suportes de
sílex. Ele reflecte simplesmente, com efeito, o facto de um determinado tipo de equipamento
de caça (ou pesca) ter sido introduzido nesta época, do mesmo modo que anteriormente o
258
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
havia sido, por exemplo, o propulsor e, subsequentemente, haveria de acontecer com o arco.
Tal como acontece com as zagaias, é ao nível da variação estilística dos próprios arpões
(forma, decoração), e não ao nível da sua presença/ausência, que tal tipo de objectos poderá
eventualmente ser utilizado como indicador de variação, sincrónica ou diacrónica, na cultura
material das populações do Tardiglaciar do Sudoeste europeu.
Na ausência de tais estudos, o que as indústrias líticas indicam, em primeiro lugar, é que,
no essencial, o Magdalenense francês constitui, até cerca de 12 000 BP, uma entidade distinta
do da Península Ibérica e Pirenéus (e sem que, como o demonstram as jazidas de Rio Maior,
isso possa ser atribuído a factores relacionados com a abundância ou a qualidade da matéria-prima); e, em segundo lugar, que essa diferença parece ser suficientemente importante para
justificar uma repercussão taxonómica ao nível da categoria de tecnocomplexo. Sendo de
toda a conveniência, como é óbvio, manter a designação de Magdalenense para as indústrias
das regiões setentrionais em que se situa a jazida epónima de La Madeleine, haveria que
buscar, assim, uma designação apropriada para as das regiões meridionais do Sudoeste
europeu. A de Epigravettense, utilizada por alguns pré-historiadores espanhóis, deve ser
rejeitada, dadas as conotações de integração no mundo cultural do Mediterrâneo central e
oriental que acarreta. Mais adequada seria seguramente a de Altamirense, em homenagem à
importância arqueológica e artística das ocupações tardiglaciares reconhecidas por M. de
Sautuola, há já mais de cem anos, na jazida epónima de Altamira.
6.2.6. Magdalenense final
A aproximação ao padrão ibérico que se verifica nas indústrias francesas a partir de 12 000
BP pode explicar as semelhanças que voltam a existir entre o Périgord e a Estremadura
portuguesa por volta de 10 000 BP, isto é, quando o Laboriense e o Magdalenense final de
fácies Carneira, indústrias praticamente idênticas, se desenvolvem em ambas as regiões. O
período em questão, porém, é ainda demasiadamente mal conhecido, em pormenor, para que
a análise dos padrões de variação regional possa ser convenientemente abordada, o que, pelo
menos em parte, pode ser devido aos problemas de resolução que afectam os níveis
superiores, tardiglaciares, de grande parte das estratigrafias de gruta e abrigo conhecidas na
região franco-cantábrica. Assinale-se assim, apenas, que fenómenos como o das elevadas
percentagens de lamelas Dufour, de Areeiro, e de dorso marginal, que caracterizam, em
Portugal, o «Magdalenense final de fácies Rossio do Cabo», parecem ocorrer igualmente no
norte de Espanha. Segundo González-Sainz (1989:222), com efeito, ele encontra-se em
conjuntos líticos como os de Paloma, Ekain V e III, e Pendo I, que o autor considera serem
«cronologicamente muito avançados, e já azilenses os dois últimos».
Do mesmo modo, a utilização de suportes lamelares espessos (obtidos a partir da técnica
do golpe de buril ou da extracção de lamelas guiadas pelas arestas laterais das superfícies de
debitagem de núcleos prismáticos) para o fabrico (mediante a regularização de um dorso
natural por retoque abrupto cruzado) de pontas azilenses e de Malaurie como as de Bairrada,
Carneira e Bocas (ver vol. II, capítulos 41, 44 e 50), parece ser característica tanto do
«Magdalenense final de fácies Carneira» da Estremadura como do Azilense da região franco-cantábrica. Peças deste tipo aparecem figuradas, com efeito, por Bordes (1984:Fig. 163,
nº 26), por Sonneville-Bordes e Perrot (1954-56), e por Fernandez-Tresguerres (1980:Fig. 7,
nºs 33-34 e Fig. 11, nºs 51 e 55-56), a primeira sendo proveniente do Abri Pagès (Lot), as
segundas do Mas d'Azil (Pirenéus), e as últimas de Los Azules (Astúrias).
Nem um nem outro dos dois fenómenos, porém, está documentado na Espanha
mediterrânica, pelo menos a avaliar pelas ilustrações fornecidas por Fortea (1973). Aqui, as
indústrias do Allerød e do Dryas III («Epipaleolítico microlaminar») parecem corresponder,
com efeito, a uma espécie de Epimagdalenense superior. A confirmar-se esta impressão, é
Tendências e contexto
259
Fig. 6.3 - Diferenciação geográfica das indústrias do Paleolítico Superior do Sudoeste europeu por volta de 12 000
BP. Embora identicamente caracterizados pela combinação entre micrólitos e pontos de osso, os conjuntos ibéricos
e pirenaicos diferem dos da Aquitânia e da bacia de Paris ao nível da tecnologia de base: nos primeiros, ela está
orientada para a produção de suportes lamelares e de lascas (como já vinha acontecendo desde ≈16 000 BP); nos
segundos, continua a estar orientada para a produção de lâminas de grande dimensão.
possível que ela represente uma modificação importante na paleogeografia humana da
Península: a cultura material das populações do litoral ocidental teria passado a estar sujeita
aos efeitos de um intercâmbio mais privilegiado com o mundo atlântico, ao invés do que
havia acontecido na fase inicial do processo de deglaciação, logo após 18 000 BP, em que os
paralelos apontam para uma forte ligação ao mundo mediterrânico. Embora o povoamento
humano do Alto Douro esteja documentado até cerca de 10 000 BP pelas ocupações da fácies
Carneira ultimamente reconhecidas no vale do Côa (Zilhão et al. 1995a), esta reorientação
para o Atlântico poderá resultar de uma ruptura das comunicações com o Mediterrâneo
causada pelo início do processo de abandono do interior peninsular, onde, após 150 anos de
investigação, continuam a não ser conhecidos quaisquer vestígios arqueológicos (sítios ou,
sequer, artefactos isolados) atribuíveis ao período compreendido entre ≈10 000 e ≈6 000 BP.
6.3. Mecanismos de mudança
As comparações acima apresentadas permitem extrair duas conclusões importantes: a
primeira, é a que diz respeito à confirmação da existência de paralelos significativos entre a
sequência portuguesa e as das restantes regiões do Sudoeste da Europa; a segunda, é a de que
as áreas de homogeneidade encontradas ao nível da tecnologia básica se vão tornando, à
medida que se avança no tempo, cada vez mais restringidas. As respectivas implicações (as
quais, no que respeita à questão dos paralelos, já foram parcialmente abordadas no início
deste capítulo) serão discutidas em seguida.
260
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
6.3.1. Migração e evolução local
No Paleolítico Superior inicial, em particular no Aurignacense, as indústrias, tanto líticas
como ósseas, parecem revestir-se de um grau de homogeneidade bastante elevado e que se
manifesta à escala de todo o continente. Durante o último máximo glaciário, porém, há uma
clara fragmentação dessa unidade, provavelmente relacionada com o isolamento geográfico a
que a França e a Península Ibérica ficaram confinadas, em virtude do avanço das calotes
glaciárias alpina e escandinava. O fenómeno solutrense, com efeito, abarca uma área — a
delimitada pelas «fronteiras» do Ródano, a oriente, e do Loire, a norte — substancialmente
inferior à abrangida pela extensão do Aurignacense. Este processo de fragmentação acentua-se ainda mais durante a deglaciação, de tal modo que, no período entre 14 000 e 12 000 BP,
a Península Ibérica e os Pirenéus se diferenciam nitidamente da Aquitânia e da bacia de Paris
ao nível da tecnologia lítica de base, a qual, como acima se viu, se encontra orientada para a
produção de grandes lâminas nas duas últimas regiões, e para a de lâminas pequenas e de
lamelas nas duas primeiras.
A homogeneidade aurignacense tem sido interpretada como constituindo um fenómeno
determinado pela associação existente entre o aparecimento do tecnocomplexo e a emigração
para a Europa do homem anatomicamente moderno. Com efeito, os dados paleontológicos,
por si sós, apontam já para que, entre ≈40 000 e ≈30 000 BP, o nosso continente tenha
assistido a um processo de substituição de populações (ver capítulo 1). Do contraste que
existe entre essa homogeneidade do Aurignacense à escala continental e a diversidade
regional marcada que caracteriza as indústrias fabricadas pelos últimos neandertalenses pode
legitimamente depreender-se uma conclusão idêntica. Esse contraste é, com efeito, uma das
expectativas que necessariamente decorreriam da hipótese segundo a qual o aparecimento do
Aurignacense nas diversas sequências culturais europeias corresponderia à manifestação
arqueologicamente mais visível da existência de uma ruptura de grande magnitude na
continuidade do povoamento humano da Europa.
Foi pela invocação de processos de natureza semelhante, embora envolvendo grupos
humanos pertencentes à mesma subespécie, que, desde o princípio do século, a generalidade
dos investigadores também procurou explicar as restantes transformações subsequentemente
ocorridas na cultura material das populações do Paleolítico Superior europeu. A concepção
bordesiana de um «Perigordense» evoluindo paralelamente ao Aurignacense, expressão de
uma dualidade tribal que se teria mantido no Périgord ao longo de mais de dez mil anos
(Bordes 1968), é um exemplo bem conhecido do modo como este paradigma se manifestava
sob a forma de explicações históricas concretas. Outro exemplo é o do Solutrense, ruptura
tecnológica considerada emblemática de uma intrusão étnica cujas origens pelo menos três
gerações de pré-historiadores não se cansaram de buscar (Jordá 1955; Smith 1966).
O padrão de diferenciação progressiva em áreas de homogeneidade tecnológica interna
de dimensões cada vez mais reduzidas que caracteriza a Europa paleolítica pós-aurignacense
é contraditório, no entanto, com esse tipo de explicações. Ele indica antes, que, no essencial,
as transformações ocorridas estão relacionadas com um fenómeno de deriva cultural, que se
acentuou à medida que as tradições comuns se foram perdendo num passado cada vez mais
remoto e que o aumento da população, por um lado, e as barreiras geográficas naturais, por
outro, foram limitando a amplitude espacial das esferas de interacção através das quais se
processava a circulação de pessoas, de objectos, e de ideias. A descoberta e aplicação dos
métodos de datação cronométrica, nomeadamente o do radiocarbono, permitiu constatar, por
outro lado, que, no Sudoeste da Europa, a passagem do Aurignacense ao Gravettense (ou a do
Gravettense ao Solutrense) não apresenta qualquer gradiente espacio-temporal que permita
precisar uma «origem» e uma «rota de migração» determinadas. O que os dados indicam,
muito pelo contrário, é que se trata de processos que se dão de forma sincrónica nas diversas
áreas geográficas em que esta parte do continente pode ser subdividida.
Tendências e contexto
261
É certo, porém, que a baixa resolução dos métodos de datação absoluta actualmente
conhecidos e usados implica que a referida contemporaneidade seja muito relativa. De um
modo geral, com efeito, dizer-se que dois acontecimentos ou processos se dão de forma
simultânea em sítios ou regiões diferentes significa apenas, pelo menos para lá de 20 000 BP,
que terão ocorrido no mesmo milénio, o que não quer dizer, portanto, que não possam mesmo
assim estar separados por várias centenas de anos. Alguns autores têm procurado tornear esta
limitação recorrendo a manipulações estatísticas das datas que, porém, padecem muitas vezes
de vícios metodológicos gravíssimos. É o caso, por exemplo, de um trabalho recente de Otte
e Keeley (1992), em que se defende, a partir de uma argumentação baseada nos resultados
cronométricos disponíveis, que o Gravettense terá tido origem na Europa central, de onde
mais tarde terá irradiado para as regiões periféricas. Segundo os autores citados, esses
resultados demonstrariam, com efeito, que o tecnocomplexo é mais recente na Espanha, na
Itália, nos Balcãs, na Ucrânia e na Rússia, do que na França, na Bélgica, na Alemanha, na
Áustria e na República Checa.
Essa «demonstração», no entanto, assenta muito simplesmente no facto de as médias de
todas as datações absolutas obtidas em cada país serem mais antigas no segundo grupo de
países do que no primeiro. Ora, como devia ser evidente para qualquer investigador de bom
senso que tivesse um conhecimento mínimo do Paleolítico Superior europeu, é de todo
impossível que tais médias se revistam de qualquer significado histórico. Dado que o
Gravettense é uma entidade taxonómica com uma duração de vários milénios, a diferença nas
médias entre os dois grupos de países pode resultar simplesmente do facto de, na Europa
central, haver mais jazidas (ou mais jazidas datadas) do Gravettense antigo do que do
Gravettense recente, passando-se o inverso nas restantes regiões consideradas. É o que seria
de esperar, aliás, tendo em conta o facto de, na fase final do Gravettense, a expansão das
calotes de gelo que acompanhou o início do último máximo glaciário ter obrigado as
populações humanas a abandonar de todo, ou a frequentar apenas de forma muito marginal, a
grande planície norte-europeia. O uso da média de todas as datações existentes como
parâmetro de avaliação da idade relativa do tecnocomplexo nas diversas regiões padece,
ainda, de dois outros defeitos porventura ainda mais graves: o de ignorar completamente os
problemas de associação entre amostra e contexto que muitas vezes obrigam a rejeitar
determinados resultados; e o de não ter em conta os problemas de definição implícitos na
classificação de um determinado contexto como sendo gravettense, epigravettense, ou
magdalenense. Resultado: a idade média apurada para o Gravettense de Espanha é de 15 000
anos (Otte e Keeley 1992:Fig. 1)! Sendo pacífico que o Solutrense está difundido por toda a
Península Ibérica desde pelo menos 20 000 BP, isto só pode significar, portanto, que no
cálculo da média para este país foram utilizados resultados patentemente erróneos (e que os
autores citados não podiam deixar de saber que o eram).
O uso de uma «idade média» tão claramente disparatada é revelador da debilidade dos
alicerces do modelo das origens do Gravettense proposto por Otte e Keeley e do carácter
frívolo da argumentação por eles expendida. Se, apesar disso, optámos por não o ignorar, é
porque este exemplo constitui, precisamente por se tratar de um caso extremo, uma boa
ilustração concreta das dificuldades com que depara a utilização de resultados cronométricos
para estabelecer padrões de desfasamento entre desenvolvimentos culturais semelhantes
ocorridos em regiões contíguas. Dificuldades que, como é óbvio, tem de se reconhecer
existirem também quando se procura realizar a demonstração do caso oposto, isto é, se
procura evidenciar padrões de simultaneidade. O facto de as datações absolutas indicarem
que a passagem ao Gravettense é um fenómeno sincrónico à escala de todo o Sudoeste
europeu (e que, portanto, ao contrário do que pretendem Otte e Keeley, ela não é mais
recente na Península Ibérica do que em França), não pode, deste modo, ser considerado como
prova suficiente de que, efectivamente, as coisas se terão passado desse modo. Qualquer
262
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
QUADRO 6.4
Do Aurignacense ao Gravettense em França e na Península Ibérica
Continuidade e inovação no quadro de um processo de desenvolvimento tecnológico local
•
maior economia na exploração dos blocos de sílex, que passam a continuar a ser debitados para a produção de lamelas em
vez de serem abandonados logo que as suas dimensões se revelam insuficientes para a produção de lâminas
•
mudança na técnica de preparação do plano de percussão predominantemente utilizada em fase plena da debitagem, que
deixa de ser a abrasão da cornija para a passar a ser a facetagem
•
continuação da utilização de buris e de «raspadeiras» espessas para a debitagem de lamelas destinadas a uso como
armaduras (brutas ou retocadas)
•
mudança na técnica de conformação dos blocos explorados como buris/núcleos, as peças carenadas/arqueadas
desaparecendo totalmente; aceitando o modelo de Delporte, esta mudança encontrar-se-ia já prenunciada no Aurignacense
final, em que os buris são quase exclusivamente diedros ou sobre truncatura
•
mudança no modo de retoque das armaduras, que passam a ser obtidas por retoque abrupto em vez de semi-abrupto
•
mudança no aproveitamento dado aos suportes laminares, que deixam de ser exclusivamente usados como facas e passam a
servir de suportes para pontas de projéctil desenhadas por retoque abrupto
hipótese de interpretação que, a partir de resultados cronométricos, se baseie na identificação
de determinados desenvolvimentos como contemporâneos, necessita, por conseguinte, de ser
avaliada de forma independente mediante elementos obtidos a partir de vias de investigação
paralelas. Parece lógico, a este respeito, admitir, por exemplo, que a hipótese de sincronia
sairá reforçada se se puder demonstrar que são idênticas, nas regiões (ou sítios) que se está a
comparar, as modalidades através das quais se dá a substituição de um tecnocomplexo por
outro, tanto ao nível dos processos técnicos como ao nível das subdivisões crono-estratigráficas menores.
No que diz respeito à passagem do Gravettense ao Solutrense, a demonstração de que se
trata de uma transição relativamente gradual e não de uma substituição abrupta, e de que as
modalidades e as etapas dessa transição são as mesmas em Portugal e em França, foi já feita
no apartado anterior. Embora não tão pormenorizadas nem tão taxativas, as informações
disponíveis indicam que o mesmo deverá acontecer com a passagem do Aurignacense ao
Gravettense. Tomando as indústrias de Vale de Porcos e de Vale Comprido - Barraca (ver
vol. II, capítulos 4, 5 e 21), cujas equivalências na sequência francesa foram discutidas no
capítulo 5, como representativas dos momentos imediatamente anterior e imediatamente
posterior à transição, essa passagem pode conceber-se, com efeito, como um processo de
evolução tecnológica guiado pelas linhas de força explicitadas no Quadro 6.4. Os elementos
de continuidade apontam para que o Gravettense franco-ibérico tenha as suas raízes nas
indústrias aurignacenses regionais que o antecederam, e nenhuma das inovações cuja
identificação num determinado conjunto lítico nos permite a respectiva atribuição àquele
tecnocomplexo parece poder ser considerada como totalmente exterior ao domínio das
práticas e saberes artesanais já documentados no Aurignacense.
Nem os dados cronométricos nem os dados cultural-estratigráficos permitem, portanto,
pelo menos nestes dois casos (passagem do Aurignacense ao Gravettense e do Gravettense ao
Solutrense), que a substituição de um tecnocomplexo por outro seja concebida, no Sudoeste
da Europa, como reflectindo a «conquista» de territórios por grupos de origem alóctone que
impõem uma nova cultura material às populações que subjugam. Isso não significa,
evidentemente, que não tenha havido durante o Paleolítico Superior processos de deslocação
de indivíduos e de grupos, e que, em particular, as regiões desabitadas durante o último
máximo glaciário não tenham sido, ao longo do subsequente processo de melhoramento
climático, objecto de uma verdadeira colonização por grupos que transportaram para estas
regiões uma cultura material originalmente desenvolvida mais a sul — o Magdalenense. De
um modo geral, porém, o que os casos analisados indicam é que a explicação das
Tendências e contexto
263
transformações ocorridas ao longo das diversas sequências regionais deve, salvo prova
definitiva em contrário, partir do postulado de que há uma continuidade de povoamento e de
tradição e que, portanto, são as populações locais os agentes dessas transformações.
6.3.2. Organização social e redes de contacto a longa distância
Este postulado não pode ser levado, no entanto, ao extremo de se pretender que as diversas
sequências culturais regionais correspondem a desenvolvimentos totalmente independentes.
A ser assim, os paralelismos que em diversos momentos se verificam entre essas diversas
sequências só poderiam ser explicados como representando um fenómeno de convergência
determinado por uma causa comum, e a aceitação de um postulado de independência total
implicaria necessariamente que uma tal causa comum teria de ser exterior ao sistema cultural,
isto é, teria de ser buscada no domínio das adaptações. Como se viu na parte inicial deste
capítulo, o determinismo ecológico absoluto não constitui, porém, uma alternativa viável para
a explicação dos paralelismos em causa.
Se a oposição entre evolução puramente local e migração corresponde a uma alternativa
falsa, porque nem uma nem outra explicam satisfatoriamente os padrões observados, onde
residirá então o fundamento das transformações culturais que caracterizam a sequência do
Paleolítico Superior? Nesta questão encontram-se subsumidas duas problemáticas distintas,
embora relacionadas. Uma, é a da origem primeira de uma determinada inovação (local onde
ela pela primeira vez foi produzida e razões por que isso aconteceu precisamente aí); a outra,
é a do modo como, e das razões por que, a partir de um certo ponto de origem, essa inovação
se difundiu por uma área geográfica mais alargada. As questões relacionadas com a primeira
problemática são de ordem puramente histórica e, na actualidade, em virtude da baixa
resolução das estratigrafias arqueológicas (onde, com raras excepções, as várias componentes
diferenciadas correspondem a palimpsestos acumulados ao longo de centenas ou mesmo
milhares de anos) e dos métodos cronométricos (que nos obrigam a utilizar o século ou o
milénio como unidade mínima de contagem do tempo), não têm, em geral, resposta possível.
Do ponto de vista científico, portanto, só as questões relacionadas com a segunda das
problemáticas referidas é que podem ser consideradas relevantes e passíveis de abordagem
processual, estando já à nossa disposição diversos modelos de inspiração etnográfica (Wobst
1974, 1976; Dennel 1983; Gamble 1983; Smith 1992) que nos podem guiar de forma profícua
na busca de respostas para elas. Conforme foi demonstrado por estes autores, a estruturação
social das sociedades paleolíticas europeias deve ser concebida como composta por dois
níveis diferentes: o das unidades de subsistência, e o das unidades de reprodução. A unidade
de subsistência, ou bando, ocupa um território que é por si e pelos seus vizinhos reconhecido
como seu, e tem uma dimensão que, nas sociedades de caçadores-recolectores actuais, varia
em torno das vinte e cinco pessoas. Compõem-na o conjunto de famílias normalmente
associado durante pelo menos uma parte do ano para a obtenção dos recursos necessários à
subsistência fisiológica dos indivíduos que integram o grupo, e constitui ao mesmo tempo a
estrutura de enquadramento que permite a protecção e a educação quotidiana das crianças e
dos jovens. A unidade de reprodução corresponde ao conjunto dos grupos de subsistência
com que um determinado bando tem de se relacionar para garantir a cada um dos seus
membros a possibilidade de acasalar. Ela funciona ainda, normalmente, como um sistema de
aliança e uma rede de circulação de informações sobre o ambiente e os recursos da região. A
longo prazo, um tal sistema e uma tal rede são, com efeito, imprescindíveis à sobrevivência,
dado fornecerem um quadro em cujo interior se torna possível encontrar soluções alternativas
que permitam responder adequadamente às situações de carência motivadas pela ocorrência
de flutuações (sazonais, cíclicas ou catastróficas) na abundância dos recursos normalmente
explorados no interior das fronteiras do território de subsistência de cada bando.
264
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Redes de acasalamento
Fig. 6.4 - Modelos teóricos do funcionamento de redes de acasalamento exogâmicas (a) e endogâmicas (b). Em
cada caso, estamos perante indivíduos que vivem em grupos de 20 e têm de escolher o seu par no interior de um
universo de 400, mas sem que para isso tenham de ser obrigados a viajar mais de 200 km. No caso (a), a densidade
da população é baixa, de modo que essas condições só podem ser satisfeitas no quadro de um sistema aberto. No
caso (b), a densidade populacional é suficientemente elevada para permitir a emergência de um sistema fechado.
Extraído de Smith (1992: Fig. 2.1).
Quando as densidades populacionais são baixas, estas unidades de reprodução são de um
modo geral abertas, isto é exogâmicas (Fig. 6.4). Calcula-se, com efeito, que o funcionamento
de sistemas de acasalamento fechados não é viável senão quando se atingem densidades
superiores a 0,1 hab./km² (Smith 1992:13), o que, na Europa, só deverá ter acontecido em
época pós-paleolítica (os números estimados no capítulo 4 para a densidade da população na
Estremadura portuguesa durante o máximo glaciário sendo, recorde-se, da ordem dos
0,05 hab./km²). Dado que, num sistema aberto, cada bando pode ser considerado como
ocupando o centro da unidade de reprodução em que se encontra integrado, não existem de
um modo geral limites rígidos entre os grupos. Em consequência, a circulação de indivíduos,
de objectos trocados, e de ideias difundidas, envolve, frequentemente, distâncias muito
consideráveis. Em princípio, portanto, quanto maior for o carácter flutuante dos recursos e a
incerteza potencial sobre a sua localização espacio-temporal exacta, e muito em especial
quando isso aconteça em regiões planas e de paisagem aberta, maior deverá ser a extensão
abrangida pelas diferentes ramificações desses sistemas abertos.
A uniformidade estilística das estatuetas femininas (as Vénus gravettenses) que, por volta
de 25 000 BP, constituem um elemento tão característico da cultura material de toda a grande
planície norte-europeia, por exemplo, pode ser considerada precisamente como constituindo
uma manifestação arqueológica do funcionamento, durante o Paleolítico Superior inicial da
região, de sistemas desse tipo (Gamble 1983). O mesmo, aliás, se poderia dizer igualmente da
vastidão das áreas geográficas (da ordem das centenas de milhares de km²) por que se
estendem, mesmo após a fragmentação que se verifica a partir do Gravettense, os diferentes
tecnocomplexos do Paleolítico Superior recente. É possível, com efeito, que as fronteiras
entre estes correspondam, pelo menos até certo ponto, aos limites reais que, no passado,
poderão ter efectivamente existido entre diferentes redes de relacionamento a longa distância
evoluindo de forma separada nas várias regiões do continente. Se admitirmos que assim é, a
Tendências e contexto
265
«simultaneidade» (em termos de história de tempo longo) das transformações ocorridas na
cultura material dos caçadores da Aquitânia e da Península Ibérica aquando da passagem do
Aurignacense ao Gravettense e deste ao Solutrense explica-se facilmente. A existência dessas
redes de circulação da informação a longa distância tornava possível a difusão rápida das
inovações a partir de um ponto de origem determinado (mas indeterminável); e a sua adopção
generalizada constituiria testemunho do carácter voluntário da participação dos diversos
grupos na rede, podendo ser interpretada, inclusivamente, como uma manifestação do seu
empenho em conservar essa ligação.
A situação ilustrada pelo esquema da Fig. 6.4, porém, é uma situação teórica que
pressupõe, por um lado, uma distribuição uniforme no terreno dos diversos bandos e, por
outro lado, a inexistência de barreiras que dificultem ou impossibilitem o contacto em certas
direcções. Durante o Paleolítico Superior, porém, essas condições só poderão ter sido
satisfeitas em boa medida na grande planície norte-europeia. No Sudoeste da Europa, o
acidentado do relevo e a grande diversidade ecológica poderão ter originado situações em que
a existência de obstáculos geográficos poderosos, ou de áreas intermédias despovoadas,
viesse a criar barreiras a um tal funcionamento ideal. Ou seja, situações nas quais, em certas
áreas, as redes de relacionamento entre os bandos tendessem a formar unidades de interacção
abrangendo áreas mais restritas. Sem serem formalmente endogâmicas, essas unidades
poderão ter sido constituídas por bandos que, no entanto, mantinham entre si ligações muito
mais estreitas e frequentes (porventura preferenciais) do que com os restantes. A existência
de forma estável de sistemas com estas características exigiria, por outro lado, a realização de
reuniões regulares de todos os que neles participavam, destinadas a consolidar a coesão
interna da rede de relacionamento. A ser assim, deveria ser possível reconhecer no registo
arqueológico locais onde tal agregação tivesse periodicamente lugar. Segundo certos autores,
seria precisamente esse o papel de alguns dos grandes sítios de arte parietal da região franco-cantábrica, nomeadamente o da gruta de Altamira (Conkey 1980).
A grande expansão do fenómeno artístico só parece começar a acontecer, pelo menos no
norte de Espanha, a partir do Solutrense (Straus 1992). Este facto, juntamente com o padrão
de variação estilística regionalmente circunscrita que as indústrias líticas e ósseas a partir de
então evidenciam, pode ser tomado, assim, como sintoma de estarem em funcionamento nesta
época sistemas de interacção social de nível intermédio como os acima referidos. Não se
pode excluir, no entanto, que tais particularismos já existissem desde época mais remota,
conforme, aliás, já anteriormente se aventou com base no carácter aparentemente limitado da
distribuição de certos tipos de pontas gravettenses (de Font-Robert e de Casal do Felipe, por
exemplo). É preciso ter em conta, com efeito, que as características particulares da tecnologia
de afeiçoamento praticada no Solutrense permitem que os artefactos líticos funcionem como
um bom veículo de expressão para os particularismos regionais eventualmente existentes no
interior de um mesmo tecnocomplexo. O facto de isso ainda não ter sido reconhecido de
forma clara no Gravettense pode, assim, dever-se apenas ao facto de a fabricação de pontas
laminares de retoque abrupto ser uma tecnologia em que as possibilidades de variação formal
dos artefactos são à partida mais limitadas (ou, muito simplesmente, ao carácter insuficiente
dos nossos conhecimentos ou dos nossos instrumentos de análise do problema).
Embora uma análise aprofundada do tema extravase claramente do âmbito deste trabalho,
são numerosos os indícios derivados da análise dos padrões de distribuição geográfica das
várias classes de vestígios arqueológicos (sítios, variedades de matérias-primas, tipos líticos,
arte e adornos) que apontam, em conformidade com as expectativas decorrentes das
considerações teóricas acima expostas, para a possibilidade de discriminar no Solutrense
superior da Península Ibérica e do Sudoeste de França diversos níveis de homogeneidade
cultural espacialmente hierarquizados. No esquema da Fig. 6.5 distinguiram-se quatro. Como
é evidente, essa distinção é mediada por pressupostos derivados das estimativas de densidade
266
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
populacional que foram adoptadas para a época, as quais obrigam a considerar que as áreas
de aprovisionamento em matérias-primas líticas incipientemente reconhecidas até ao
momento na Estremadura e na faixa cantábrica são demasiado grandes para poderem
corresponder ao território de um único bando de vinte a trinta indivíduos (ver capítulo 4).
Mas se admitirmos, pelo contrário, que é na realidade esse o caso, isto é, se diminuirmos de
forma drástica os números respeitantes à estimativa de 0,05 hab./km², esses níveis de
homogeneidade reduzir-se-iam então a apenas três, os dois inferiores fundindo-se num só e a
distinção entre «regiões culturais» e territórios de «etnias» deixando de ser procedente.
As informações de que dispomos actualmente a este respeito são ainda muito escassas.
Uma abordagem elaborada dos méritos das várias alternativas de organização e interpretação
dos escalões intermédios entre o território de subsistência de cada bando individual, por um
lado, e o território ocupado por um tecnocomplexo determinado, por outro, não poderia, por
isso, deixar de ser, neste momento, demasiado especulativa. A determinação da equivalência
precisa existente entre as diversas áreas discretas reveladas pela repartição espacial dos
vestígios e as formas de estruturação social dos povos que se encontram documentadas
etnografica ou historicamente foi, a partir dos anos 20, quando o paradigma da «História das
Culturas» se tornou dominante, uma das questões-chave da Arqueologia. As dificuldades
inerentes a essa determinação são, porém, enormes, o que, aliás, Childe (s.d.:20), por
exemplo, reconhecia sem rebuço. O esquema da Fig. 6.5 não deve ser interpretado, por isso,
senão como um contributo modesto para o esclarecimento do problema, elaborado com o
intuito de formalizar um modelo ajustado aos dados que futuramente possa ser objecto de
confrontação empírica. Procurou-se também chamar a atenção para o interesse histórico deste
tipo de questões, as quais, devido ao impacto que sobre a disciplina teve a (justificada)
rejeição processualista das ingénuas leituras étnicas que Breuil e Bordes fizeram das culturas
paleolíticas, não têm merecido dos pré-historiadores, ultimamente, a atenção devida.
Valerá a pena, em qualquer dos casos, referir aqui, a terminar, que a recente revelação do
grande complexo de arte rupestre do vale do Côa pode funcionar, desde já, como um primeiro
teste do modelo. Ela parece confirmar, com efeito, o carácter erróneo da muito difundida
teoria segundo a qual, durante o Paleolítico Superior, o interior da Península teria ficado
despovoado (veja-se, por exemplo, Davidson 1986). Conforme já anteriormente se havia
assinalado (Zilhão 1992a), a teoria em causa baseia-se na aceitação acrítica de um padrão de
distribuição de sítios profundamente distorcido por factores ligados à história da investigação
em Espanha, tradicionalmente orientada em exclusivo para a detecção e escavação de sítios
de gruta. A dimensão e importância deste centro artístico não é compatível com a hipótese de
se tratar de obra de grupos oriundos das regiões litorais que frequentassem episodicamente
(ou sazonalmente) as terras do Côa. Pelo contrário, tudo indica tratar-se de grupos radicados
em permanência nos planaltos do interior peninsular, os quais deixaram igualmente marcas
artísticas da sua existência noutros pontos da Meseta (Pérez 1987), um dos quais, Siega
Verde (Balbín et al. 1991), situado a poucas dezenas de km de distância.
No contexto das problemáticas que aqui se abordaram, a descoberta da arte do Côa tem,
assim, duas implicações importantes: primeiro, a de demonstrar que era realmente possível
ter havido sistemas de interacção que, ligando a Estremadura portuguesa à região franco-cantábrica por intermédio da Meseta, pudessem ter constituído o suporte físico do fluxo de
informação responsável pelo paralelismo que ao longo de praticamente todo o Paleolítico
Superior se verifica entre as sequências culturais desta vasta área geográfica; segundo, a de
reforçar a ideia de que a Península Ibérica terá efectivamente conhecido, durante esta época,
uma ocupação humana bastante mais intensa do que se poderia depreender dos mapas de
repartição de vestígios actualmente disponíveis. Não é por estas razões que a fragilidade das
estimativas de densidade populacional em que se baseou a Fig. 6.5 desaparece, mas não há
dúvida que ela é, pelo menos, consideravelmente minorada.
Tendências e contexto
267
Fig. 6.5 - A variação da cultura material parece revelar a existência de padrões de distribuição espacial
hierarquizados. Como relacionar esses padrões com a organização social das sociedades? O modelo proposto é
uma sistematização dos dados disponíveis que tem como objectivo essencial o de formalizar uma hipótese testável
pela investigação futura.
6.4. Selecção cultural e mobilidade
O tema unificador que subjaz às problemáticas que têm vindo a ser tratadas neste capítulo é o
da relação entre a evolução verificada durante o Paleolítico Superior estremenho ao nível dos
sistemas de povoamento e subsistência, por um lado, e ao nível da cultura material, por outro.
Da argumentação expendida nos apartados anteriores conclui-se que não há nenhuma relação
simples e directa entre ambos os domínios. O facto de fenómenos culturais como a passagem
do Gravettense ao Solutrense se darem de forma simultânea e idêntica em regiões geográficas
afastadas, e no quadro de sistemas adaptativos muito diferentes, impede que a adopção das
pontas de retoque plano possa ser considerada como consequência directa das pressões
exercidas pelo meio, isto é, como um progresso técnico conduzindo a uma caça que as
condições ambientais exigiam mais eficaz. Não há, aliás, quaisquer dados seguros que
apontem para que essa mudança tenha efectivamente originado uma eficiência acrescida: a
existência de diferenças a este respeito significativas entre o armamento gravettense e o
solutrense ainda não foi demonstrada, e é muito duvidoso que alguma vez o possa vir a ser.
268
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
Nestas condições, a mudança em questão só pode ser explicada como um processo
histórico, contingente (aparecimento aleatório de determinada inovação em determinado
lugar e em determinado momento), por um lado, e social (difusão da inovação no quadro de
sistemas de aliança que agrupavam unidades reprodutivas exogâmicas espalhadas por uma
vasta área geográfica), por outro. Isto não significa, no entanto, que não se trate de um
processo evolutivo em parte regido por mecanismos darwinistas, isto é, em que as inovações
retidas sejam apenas as que se revelem vantajosas do ponto de vista adaptativo. Só que a
adaptação não pode ser resumida a uma dimensão apenas, a da economia de subsistência.
Com efeito, muitas inovações que, sob este ponto de vista, são neutras (como terá certamente
acontecido no caso da introdução das pontas de retoque plano) podem acabar por ser
adoptadas em resultado da operação de pressões selectivas funcionando ao nível da
interacção social. A necessidade de manter determinados laços de relacionamento, sem os
quais a sobrevivência dos grupos correria perigo (senão em termos imediatos, pelo menos em
termos mediatos, ligados à reprodução da unidade social), é exemplo desse tipo de pressões.
Como já anteriormente se referiu, é essa necessidade que explicará certamente a rápida
difusão a longa distância das inovações técnicas que periodicamente se foram registando no
Paleolítico Superior do Sudoeste da Europa.
Se não é possível encontrar razões ligadas à interacção com o ambiente que expliquem,
caso a caso, cada uma dessas transformações concretas, isso não significa, no entanto, que
não haja tendências de longo prazo que se façam sentir ao longo de toda a sequência
evolutiva e que, essas sim, estejam relacionadas com os condicionamentos que a natureza
impõe à acção humana. A consulta do Quadro 6.1 e das Figs. 5.28-5.30, mostra, por exemplo,
que há pelo menos três tendências diacrónicas na variação dos conjuntos líticos do
Paleolítico Superior português: a primeira, é a que diz respeito ao facto de a economia do
sílex evoluir ao longo do tempo de sistemas baseados na circulação de suportes para sistemas
baseados na circulação de núcleos; a segunda, é a que diz respeito ao facto de o sílex ser
objecto de um aproveitamento cada vez mais exaustivo, traduzido numa diminuição marcada,
em duas etapas (na passagem do Aurignacense ao Gravettense, e do Solutrense ao
Magdalenense), das massas descartadas (embora o termo final da sequência — as indústrias
da fácies Carneira — represente aparentemente um momento de inversão dessa tendência); a
terceira, é a que diz respeito ao facto de as dimensões da utensilagem magdalenense, em
particular as raspadeiras, serem significativamente mais pequenas.
Uma explicação possível para estes padrões é a de que estas três tendências estejam
ligadas, e que a pressão selectiva que, agindo sobre as populações humanas, determina esta
evolução concreta dos seus comportamentos técnicos, se relacione com a mais fundamental
das características das sociedades de caçadores-recolectores: a de que o seu modo de vida se
baseia na mobilidade (Binford 1983). Com efeito, a miniaturização do material lítico
(provavelmente associada a uma multiplicação do número e da diversidade funcional dos
utensílios encabados, em que a componente de pedra desempenhava apenas o papel de gume
cortante aplicado a um suporte de corno ou de madeira), tornava os grupos menos
dependentes do acesso às fontes, por duas razões: primeiro, porque diminuía o consumo
médio de pedra por actividade; segundo, porque permitia um aproveitamento mais exaustivo
dos blocos de matéria-prima. Simultaneamente, essa miniaturização tornava mais racional a
opção de fazer circular a matéria-prima sob a forma de pequenos blocos debitados à medida
das necessidades, opção que, no Aurignacense, era impraticável, ou muito custosa, dadas as
dimensões necessariamente consideráveis dos núcleos imprescindíveis à obtenção das
grandes lâminas que constituíam o objectivo final do sistema de produção lítica praticado no
início do Paleolítico Superior.
Tendências e contexto
269
Sendo as fontes de matéria-prima pontos fixos da paisagem, por um lado, e recurso de
distribuição irregular e espaçada, por outro, uma tecnologia que tornasse a programação das
actividades menos constrangida pela necessidade de ter em conta os problemas do
aprovisionamento em pedra seria evidentemente vantajosa do ponto de vista da mobilidade
dos grupos humanos. Mais do que uma adaptação específica às novas condições ambientais
criadas pela recolonização dos maciços calcários pelo bosque mediterrânico, como a
coincidência temporal dos fenómenos poderia à primeira vista sugerir, o Magdalenense
estremenho representaria assim, sobretudo, uma solução tecnológica mais facilitadora dessa
mobilidade. O que não significa que as duas coisas não estejam ligadas. Uma das possíveis
interpretações do fundamento da composição dos conjuntos líticos magdalenenses (ver
capítulo 4) é precisamente a de que ela reflectirá talvez uma aproximação maior dos sistemas
de povoamento e subsistência ao polo forrageador, com maior grau de itinerância, causada
por essa transformação ambiental.
7. CONCLUSÃO
7.1. Balanço
1. Em Portugal, o Paleolítico Superior começa com o Aurignacense. As datações absolutas
obtidas até ao momento indicam uma idade posterior a 30 000 BP, e as características
técnicas e tipológicas dos conjuntos líticos apontam no mesmo sentido. A ausência de um
Aurignacense antigo é compatível com a cronologia tardia que tem sido avançada para
diversos contextos moustierenses portugueses e andaluzes. Conjugados, estes dados
sugerem que, nestas regiões, a substituição do Moustierense pelo Aurignacense terá sido
mais tardia do que no resto da Europa, em conformidade com as expectativas do modelo
segundo o qual o fenómeno está ligado à substituição do homem de Neandertal por
populações anatomicamente modernas originárias do Próximo Oriente.
2. A sequência cultural-estratigráfica segue as linhas gerais documentadas nas restantes
regiões do Sudoeste da Europa. No entanto, uma comparação detalhada com os contextos
franceses e espanhóis é dificultada pelo facto de, nesses países, a publicação dos
conjuntos se limitar, de um modo geral, à enumeração dos «utensílios retocados» da lista-tipo e ao cálculo de índices derivados dessas contagens. Muitos desses «utensílios»
(«raspadeiras» espessas, «buris» de bisel espesso, peças esquiroladas) são na realidade
núcleos. As «raspadeiras» espessas, em particular, não são exclusivas do Aurignacense;
trata-se de um tipo de núcleo utilizado em diversas épocas para obter lamelas e esquírolas
destinadas a serem usadas como barbelas (quer em bruto quer após retoque). O uso da
variação recíproca dos índices de raspadeira e de buril como instrumento de diagnóstico
para o posicionamento crono-estratigráfico das indústrias encontra-se por isso viciado,
dado as categorias comparadas não serem homólogas. Essa variação pode estar afectada
por factores ligados à funcionalidade das ocupações, o mesmo acontecendo com a
verificada na frequência das armaduras microlíticas. Com o objectivo de procurar superar
estas limitações do «método Bordes», procurou-se neste estudo abordar os conjuntos
líticos numa perspectiva tecnológica, visando a reconstituição global do sistema de
produção lítica utilizado nas diversas épocas. Para o efeito, além do material retocado,
analisaram-se os restos de debitagem (em especial as lâminas e lamelas) e os núcleos.
3. Por volta de 26 000 BP, o Aurignacense já deverá ter sido substituído, em Portugal, pelo
Gravettense antigo. As grandes lâminas características do primeiro continuam a ser
produzidas, mas os núcleos prismáticos são agora explorados de forma mais exaustiva,
com extracção de lamelas na fase final das sequências de debitagem. A obtenção de
lamelas também é feita mediante a exploração de buris, mas os tipos carenados do
Aurignacense desaparecem, substituídos pelos tipos sobre truncatura, muito abundantes
nas jazidas de fácies oficinal do início do Gravettense. A transformação do material
lamelar faz-se agora por retoque abrupto unilateral (lamelas de dorso e microgravettes) e
não mais por retoque semi-abrupto bilateral (lamelas Dufour dos subtipos Roc de Combe
e Dufour). As ocupações de gruta de ambas as épocas têm em comum a grande
especialização, contendo praticamente apenas armaduras (líticas e ósseas).
4. O achado avulso nalguns contextos de gruta de gravettes grandes, tipo que não ocorre
nem nas jazidas conhecidas do Gravettense antigo nem nas do Gravettense final, pode
indicar que as ocupações responsáveis pelo respectivo descarte terão tido lugar numa fase
média do desenvolvimento do tecnocomplexo, algures por volta de 24 000 BP. Uma
fácies industrial aparentemente circunscrita a Portugal, o Fontesantense, deverá datar de
272
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
cerca de 23 000 BP. Ela caracteriza-se por uma debitagem laminar de elevada qualidade,
preparada por abrasão da cornija e gerando produtos de talão labiado, que se destinava à
produção de suportes para pontas de Casal do Felipe (lâminas e lamelas de ponta
simétrica obtida por retoque bilateral abrupto limitado à parte distal do suporte).
5. Os dados acerca do Gravettense são, como de um modo geral acontece com todo o
Paleolítico Superior inicial, muito lacunares. O fundamento desta situação é em grande
medida de natureza tafonómica. Na bacia de Rio Maior, onde se situa a grande maioria
das jazidas de ar livre conhecidas, as ocupações de fundo de vale desta época parecem ter
sido objecto de uma grande erosão, os seus vestígios encontrando-se em depósitos de
terraço acumulados a jusante. Os sítios conhecidos localizam-se todos nos interflúvios,
onde a cobertura sedimentar é reduzida e a perturbação pós-deposicional forte, tornando
difícil a recuperação de contextos intactos e datáveis. Por altura do máximo glaciário, a
remobilização eólica ou coluvionar dos sedimentos arenosos acumulados na bacia
durante o Plio-plistocénico permite um enterramento rápido e profundo dos vestígios,
sendo as jazidas, por isso, mais abundantes e melhor conservadas. Esse facto, juntamente
com o de as ocupações de gruta, embora mantendo características muito específicas do
ponto de vista funcional, serem agora mais numerosas, permitiu obter uma compreensão
detalhada do processo de passagem do Gravettense ao Solutrense, que é um processo de
evolução tecnológica e não de substituição de populações.
6. O termo inicial desse processo, que deverá ter decorrido entre ≈22 000 e ≈21 000 BP, é
constituído por indústrias equivalentes ao Proto-Magdalenense da sequência francesa: a
debitagem laminar é de boa qualidade, semelhante à do Fontesantense, embora a
preparação cuidada do plano de percussão só seja feita, agora, em fase plena da
debitagem; as lamelas de dorso truncadas são numerosas e devem ter sido usadas como
barbelas; o «retoque proto-magdalenense» está representado entre as lâminas de retoque
contínuo. O termo final é constituído por indústrias equivalentes ao Proto-Solutrense de
Peyrony e Smith. O respectivo fóssil director é a ponta de Vale Comprido, obtida por
adelgaçamento dorsal do talão espesso de suportes convergentes, grandes, debitados com
percutor de pedra. Há indícios da existência de um termo cronologica e industrialmente
intermédio, cuja característica mais visível seria a de o quartzo constituir a matéria-prima
privilegiada para a fabricação de barbelas brutas.
7. A presença de uma cadeia operatória de produção de barbelas a partir de «raspadeiras»
espessas verifica-se em todas as etapas deste processo de transição, e não é exclusiva de
nenhuma delas. Essa presença é, porém, de importância muito variável; por vezes,
acontece mesmo ser essa a única componente industrial representada numa jazida. Trata-se, nos casos conhecidos, de ocupações episódicas e muito especializadas, que não
permitem definir uma unidade crono-estratigráfica independente. Uma análise atenta das
informações disponíveis acerca de Laugerie-Haute indica que o chamado «Aurignacense
V» desta jazida representa com toda a probabilidade um fenómeno semelhante.
8. Não existem ainda contextos individualizados que nos permitam reconstituir com
segurança a tecnologia lítica do Solutrense inferior. Depois, entre ≈20 500 e ≈18 000 BP,
aparece o Solutrense médio, só com pontas de face plana e folhas de loureiro, logo
seguido pelo Solutrense superior, em que as pontas de face plana são substituídas por
pontas pedunculadas de tipologia diversa. Os primeiros exemplares destes novos tipos
parecem ter começado a ser fabricados ainda antes de 20 000 BP. As lâminas e lamelas
destinadas a servir-lhes de suportes são debitadas a partir de núcleos prismáticos com
dois planos de percussão opostos, estratégia que visava obter perfis tão direitos quanto
possível e pode já ser observada nas pontas de face plana do Solutrense médio. O retoque
plano de acabamento era executado por pressão, de forma idêntica à utilizada na fase
Conclusão
273
final de afeiçoamento das folhas de loureiro. O fabrico destas últimas era frequentemente
preparado por aquecimento prévio do sílex.
9. As informações acerca do período subsequente, entre ≈18 000 e ≈16 000 BP, são muito
escassas. Todas as estratigrafias de gruta conhecidas apresentam hiatos de sedimentação
ou de erosão que separam os contextos sedimentares depositados durante o máximo
glaciário dos de época magdalenense ou holocénica. Esses hiatos poderão estar ligados
ao fenómeno de marcado recuo da frente polar (e consequente alteração drástica das
condições climáticas) que se encontra registado nos sedimentos marinhos depositados na
costa portuguesa durante o período em questão. Os indícios disponíveis permitem sugerir,
no entanto, que a sequência cultural terá evoluído em paralelo com a das regiões da
Andaluzia e de Valencia, e que, portanto, as indústrias líticas portuguesas da época
deverão ser integradas no tecnocomplexo solutreo-gravettense.
10. Entre ≈16 000 e ≈10 000 BP os sistemas de produção lítica estão orientados para a
obtenção de barbelas destinadas a armar pontas de osso ou madeira. Em resultado, os
núcleos são explorados para a debitagem de lascas e de lamelas, passando a produção de
lâminas a revestir-se de um carácter marginal, ou chegando mesmo, em certos momentos,
a desaparecer de todo. Esta redefinição dos objectivos da debitagem é acompanhada de
uma diminuição acentuada do tamanho dos utensílios, em particular das raspadeiras. A
variação de sentido cronológica identificada no interior deste período diz respeito
sobretudo à tipologia dos núcleos que são preferencialmente utilizados para a extracção
das lamelas (prismáticos, «raspadeiras» espessas, buris), e à natureza do retoque das
armaduras microlíticas (abrupto ou semi-abrupto) que, em qualquer dos casos, são
sempre mais pequenas, em média, que as do Gravettense final. Por volta de 10 000 BP,
que é a datação obtida para os conjuntos da fácies Carneira, parece registar-se, no
entanto, um certo regresso aos padrões gravettenses, reflectido no peso bastante maior
que as lâminas têm entre os produtos alongados. Esse peso acrescido deve estar
relacionado com uma cadeia operatória específica, visando a extracção de produtos
laminares/lamelares de qualidade, com morfologia muito regular, destinados a servir de
suporte para geométricos (trapézios) fabricados pela técnica do microburil.
11. Estas características aproximam as indústrias líticas portuguesas datadas do período entre
≈16 000 e ≈12 000 BP das do resto da Península Ibérica e dos Pirenéus franceses, mas
afastam-nas radicalmente das suas contemporâneas da Aquitânia e da bacia de Paris, que
continuam a estar orientadas para a produção de lâminas de grande tamanho. O facto de
todas estas indústrias serem designadas como magdalenenses deve-se a que a indústria
óssea conhece em todas elas um desenvolvimento importante (embora, no caso
português, os indícios de que assim é necessitem ainda de confirmação). Do ponto de
vista do trabalho da pedra, porém, trata-se claramente de tecnocomplexos diferentes e,
por isso, seria de toda a conveniência que se adoptassem designações distintas para as
indústrias das regiões meridionais. No interior do grupo constituído por estas últimas há
ainda diferenças importantes na tipologia da indústria óssea, não sendo claro até que
ponto elas têm contrapartida ao nível da tecnologia lítica (o «raspador de Vascas», por
exemplo, não parece ser conhecido na região cantabro-pirenaica).
12. O sistema de produção lítica do Magdalenense meridional traduz-se, pelo menos no caso
português, numa maior economização do sílex, de tal modo que as massas de matéria-prima descartadas sob a forma de núcleos esgotados são de peso médio substancialmente
mais pequeno do que nas épocas anteriores. Este padrão está em conformidade com os
indícios de natureza diversa que apontam para que, no Magdalenense estremenho, o sílex
circulasse sobretudo sob a forma de núcleos. Em contraste, no Paleolítico Superior
inicial, a matéria-prima tendia a circular sobretudo sob a forma de suportes e, por isso, é
274
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
só no Aurignacense e no Gravettense antigo que se encontram jazidas com características
de oficina de talhe. Não só nestas duas épocas mas também no Solutrense e no
Magdalenense, porém, o aprovisionamento em matérias-primas líticas tendia a ser
essencialmente local. Distâncias de poucos km em relação às fontes eram suficientes para
influir na estrutura do aprovisionamento em sílex, levando ao aumento do recurso às
aluviões existentes na vizinhança dos sítios. Distâncias mais consideráveis implicavam
um uso importante do quartzo e do quartzito, embora, no Proto-Solutrense, o uso
sistemático do quartzo para a fabricação de barbelas fosse claramente uma opção
cultural.
13. Seria tentador correlacionar a emergência do sistema magdalenense com a ocorrência,
logo após o máximo da última glaciação, das transformações ambientais que trouxeram o
bosque mediterrânico para os maciços calcários da Estremadura e levaram as populações
humanas a depender fundamentalmente da caça do veado e do coelho. Do mesmo modo,
o Solutrense poderia ser concebido como representando uma adaptação tecnológica ao
clima mais rigoroso e às paisagens mais abertas do máximo glaciário, com a sua maior
diversidade de espécies de grandes herbívoros (os espectros de caça incluíam então, em
proporções não muito diferentes, o veado, o cavalo, o auroque, a cabra e a camurça).
Embora as transformações ambientais tenham certamente desempenhado o seu papel no
surgimento dos fenómenos culturais que designamos por Solutrense e Magdalenense, a
explicação última do seu aparecimento e difusão é de natureza histórica e social. Ela
radicará, tudo o indica, na existência de redes de acasalamento, e correspondentes
sistemas de aliança, abarcando áreas geográficas bastante extensas e permitindo a rápida
adopção das inovações. Em qualquer dos casos, o facto de elas se espalharem por regiões
muito afastadas, de condições ambientais por vezes muito diferentes, é suficiente para
pôr em evidência as insuficiências explicativas do determinismo ecológico.
14. No interior dessas vastas áreas de homogeneidade tecnológica é possível discriminar,
especialmente durante o Solutrense, distribuições espaciais mais circunscritas de
variedades de matérias-primas, de estilos artísticos, de tipos de adornos e de utensílios
líticos e ósseos. Admitindo densidades populacionais de cerca de 0,05 hab./km², ordem
de grandeza das verificadas entre povos de caçadores-recolectores actuais ou subactuais
com sistemas de subsistência idênticos e habitando regiões ambientalmente parecidas,
como os Selk'nam da Terra do Fogo, a área dessas distribuições é demasiado grande para
que possam ser interpretadas como correspondendo ao território de unidades de
subsistência com a dimensão do bando. Este facto sugere a existência de estruturas de
interacção social de nível intermédio, que podemos definir como «etnias». A região
litoral entre Tejo e Mondego poderia ter funcionado nesta época como território de uma
dessas etnias, à qual pertenceriam os diversos bandos cujos territórios de subsistência
seriam constituídos pelas bacias hidrográficas dos principais rios da região. A
distribuição circunscrita de objectos de adorno como as falanges de veado perfuradas do
Caldeirão, ou de matérias-primas líticas como o sílex de Cambelas, mostra que é
igualmente possível conceber formas alternativas de organizar os dados; por exemplo,
sob a forma de três redes de interacção distintas, uma funcionando em torno do Maciço
Calcário Estremenho, outra a sul, entre Rio Maior e Loures, e uma terceira, mais a norte,
centrada no vale do Mondego.
15. A distribuição geográfica e as características industriais dos sítios gravettenses, proto-solutrenses e solutrenses conhecidos indica que, durante o máximo glaciário, o sistema
de povoamento e subsistência estava organizado em torno de acampamentos-base de
duração não muito prolongada, estabelecidos nas terras baixas da bacia terciária do Tejo
ou da orla costeira. As terras altas seriam frequentadas apenas no decurso de viagens ou
de expedições logísticas, em especial no Inverno, quando se deviam encontrar cobertas
Conclusão
275
de neve. É o que se depreende do carácter parcelar de que se reveste a representação das
diferentes cadeias operatórias do sílex nas jazidas de gruta desta época. Não é de excluir,
porém, a possibilidade de, no Verão, essas mesmas jazidas serem utilizadas como habitat
unifamiliar, no quadro de um sistema de agregação/desagregação periódica do bando. O
facto de, nalgumas grutas, terem sido recolhidos restos humanos pertencentes a crianças e
adolescentes, confirma que as áreas em que essas jazidas estão localizadas não eram
frequentadas apenas por caçadores adultos.
16. As diferenças verificadas entre os diversos sítios magdalenenses no que respeita à
composição dos conjuntos líticos são muito menos marcadas. Este facto pode indicar que,
nesta época, os sistemas de povoamento e subsistência se teriam aproximado mais do
polo forrageador. Não é de excluir, porém, que se trate apenas de uma consequência das
mudanças ocorridas no domínio da economia da pedra (passagem a um sistema baseado
na circulação de núcleos). Ou, ainda, que estas mudanças representem o culminar de uma
tendência evolutiva de longo prazo resultante da acção de pressões selectivas
favorecendo as opções técnicas mais facilitadoras da mobilidade dos grupos.
17. Os pontos isolados representados pelas jazidas alentejanas do Escoural e do Monte da
Fainha mostram que a região entre Tejo e Mondego não pode ser considerada como uma
espécie de refúgio rodeado de áreas desabitadas por as condições serem menos propícias.
A descoberta do complexo de arte rupestre paleolítica do vale do Côa e das jazidas
arqueológicas a ele associadas confirma de forma definitiva que o interior da Península
continuou a ser habitado durante o máximo da última glaciação, e que o padrão de
distribuição dos sítios arqueológicos ibéricos dessa época se encontra profundamente
distorcido tanto por razões de natureza tafonómica como por razões ligadas à história da
investigação. A aplicação de filtros tafonómicos permite ainda minimizar o significado
da aparente contradição que existe entre o facto de a quase totalidade dos sítios de habitat
do Paleolítico Superior português estar localizada na Estremadura, e a totalidade dos
sítios de arte parietal estar situada fora dela. Nas grutas da Estremadura com ocupação
paleolítica conhecidas, com efeito, as paredes coevas dessa ocupação já não existem,
conforme o demonstra o facto de os depósitos holocénicos sobrejacentes conterem de um
modo geral abundantes blocos de abatimento. E na bacia do Douro, como não há grutas,
as prospecções têm de ser orientadas para a detecção de habitats de ar livre, o que não
tem acontecido.
7.2. Perspectivas
A parte mais sólida das conclusões a que este estudo pôde chegar é a que diz respeito à
sequência crono-estratigráfica e à definição das características essenciais dos sistemas de
produção lítica das diversas épocas. As lacunas, porém, são muitas, e as caracterizações feitas
necessitam de confirmação ou correcção mediante estudos tecnológicos mais aprofundados,
nomeadamente através da busca sistemática de remontagens em todas as colecções com
potencial para isso.
As caracterizações relacionadas com o ambiente, o sistema de povoamento e o modo de
subsistência são todas elas de natureza bastante frágil. Elas devem ser consideradas como
tentativas de organização racional dos indícios disponíveis com o objectivo de fornecer uma
primeira modelização da realidade passada testável pela investigação futura. Para além da
extrema necessidade de mais dados de natureza estritamente paleoambiental (espectros
polínicos de turfeiras acumuladas durante a última glaciação, por exemplo), o teste desses
modelos só será possível quando a investigação tiver dado um salto qualitativo que passa:
276
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
•
pela generalização das prospecções a todo o território;
•
pela detecção de sítios de ar livre com preservação da matéria orgânica;
•
pelo estudo arqueozoológico de todas as colecções faunísticas, visando nomeadamente
a determinação de padrões de sazonalidade;
•
pela prospecção orientada para a descoberta de jazidas situadas em áreas de plataforma
continental reduzida (Nazaré, Arrábida), onde o impacto da transgressão flandriana
tenha sido mínimo e, por isso, seja possível encontrar ocupações relacionadas com a
exploração dos recursos costeiros.
Os resultados obtidos têm também implicações extra-regionais. A avaliação do
significado desses resultados e a confirmação, correcção ou infirmação das conclusões deles
extraídas necessita de um esforço concertado, envolvendo investigadores de especialidades e
nacionalidades diversas. Assim:
•
a natureza exacta da relação filogenética e do grau de interacção que no passado terá
havido entre os neandertalenses e o homem moderno (e, portanto, o significado
histórico do carácter tardio que teve a substituição do Moustierense pelo Aurignacense
nas regiões a sul do Ebro) tornar-se-á mais fácil de avaliar logo que seja possível
comparar o ADN extraído de restos fósseis de ambas as populações;
•
a cronologia do Aurignacense beneficiaria grandemente da realização de um projecto de
datação directa, por acelerador, dos respectivos fósseis directores ósseos;
•
as modalidades da passagem do Gravettense ao Solutrense no Sudoeste da Europa, e a
interpretação antropológica do processo, tornar-se-iam mais claras a partir do momento
em que fosse possível dispor de dados sobre a natureza exacta do «Aurignacense»
tardio da região cantábrica, e sobre as características tecnológicas das indústrias
gravettenses representadas na base das sequências de Parpalló e de Mallaetes;
•
a reorganização taxonómica do «Magdalenense» da Europa ocidental exige a realização
de estudos tecnológicos e métricos detalhados das indústrias líticas, de modo a superar
as limitações inerentes ao facto de o sistema em vigor se basear numa componente da
cultura material (a indústria óssea) cuja preservação se encontra fortemente
condicionada pelas condições de jazida.
Ao ritmo imposto pelos padrões metodológicos do presente, muitas destas necessidades,
sobretudo as que dependem da realização de trabalhos de campo, representam tarefas para
mais do que uma geração. A validade das conclusões e dos pressupostos em que este trabalho
se baseia serão necessariamente postos à prova em consequência da aquisição de novos
dados. Dessa confrontação deverá certamente resultar a confirmação de alguns resultados já
obtidos e a revelação de deficiências de abordagem ou de informação de momento
insuspeitadas. Se este trabalho se vier a mostrar útil na definição das linhas de acção
destinadas à aquisição desses elementos, terá cumprido plenamente o seu propósito.
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DATAÇÕES ABSOLUTAS
Sítio (a)
Nível
Material
Método
Lab.
Idade BP
2b
2a
2b
Carvão
Ossos
Ossos
14C
14C
14C
ICEN-306
ICEN-490
ICEN-732
2400±80
23 080±490
28 120/+860/-780
R
?
A
7
7
7
Jb
1b
Inferior (-35 cm)
Inferior (-40 cm)
Corte Norte
Osso
Canis lupus
Sílex queimado
Sílex queimado
Sílex queimado
14C
14C
TL
TL
TL
OxA-5542
TO-1102
26 020±320
25 090±220
12 400±2100
26 700±2700
30 300±3900
A
?
R
A
A
9
12
22
22
22
3 (-35 cm)
3 (-30 cm)
3 (-28 cm)
Sílex queimado
Sílex queimado
Sílex queimado
TL
TL
TL
35 300±3600
39 300±4700
40 400±4600
R
R
R
11
11
11
Gravettense final/Proto-Solutrense
Buraca Escura
2e (meio)
CPM II
Inferior
CPM II
Inferior
CPM III
Inferior
CPM III
Inferior
CPM III
Inferior
CPM III
Médio
CPM IIIS
Inferior
CPM IIIS
Inferior
CPM IIIS
Inferior
Terra do Manuel
2s
Capra pyrenaica
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
OxA-5523
ICEN-821
ICEN-692
ICEN-541
SMU-2475
ICEN-428
ICEN-423
SMU-2633
ICEN-691
SMU-2667
ETH-6038
22 700±240
16 080±350
19 030±440
21 080±850
22 710±350
23 050±750
23 490±280
17 515±270
19 220±280
34 730±1890
21 770±210
A
R
R
A
A
A
R
R
R
R
A
48
13, 42
13, 42
13, 42
13, 42
13, 42
13, 42
13, 42
13, 42
13, 42
19
«Aurignacense V»/Proto-Solutrense
Anecrial
1b-2a
Anecrial
2b (lareira)
Anecrial
2b (lareira)
Buraca Escura
2b (base)
Gato Preto
C
Gato Preto
C
Gato Preto
C
Gato Preto
C
Carvão
Carvão
Erica
Equus
Sílex queimado
Sílex queimado
Sílex queimado
Sílex queimado
14C
14C
14C
14C
TL
TL
TL
TL
ICEN-963
ICEN-964
OxA-5526
OxA-5524
23 450/+1470/-1240
21 560±680
21 560±220
21 820±200
4940±640
5100±600
36 500±4500
40 700±5600
A
A
A
A
R
R
R
R
10
10
10
48
14
14
14
14
Proto-Solutrense
Terra do Manuel
Terra do Manuel
Terra do Manuel
2
2
2
Sílex queimado
Sílex queimado
Sílex queimado
TL
TL
TL
7300±700
15 700±1700
16 400±1800
R
R
R
19
19
19
9
Fc
H
H
Fa-topo
Fa-topo
I
4
V.S.
5 (AIII)
5 (SIII)
Carvão
Cervus elaphus
Capra pyrenaica
Osso
Cervus elaphus
Carvão
Cervus elaphus
Ossos
Ossos
Carvão
Carvão
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
17 850±200
18 840±200
19 900±260
20 530±270
20 400±270
21 200/+2300/-1800
22 900±380
25 580/+1820/-1490
20 250±320
19 940±180
20 380±150
A
A
A
A
R
?
?
R
?
A
A
49
9, 27
9, 27
9, 27
9, 27
9, 27
9, 27
49
25, 37
36
36
Aurignacense
Pego do Diabo
Pego do Diabo
Pego do Diabo
Gravettense antigo
Caldeirão
Casa da Moura
VC - Cruzamento
VC - Cruzamento
VC - Cruzamento
Fontesantense
Fonte Santa
Fonte Santa
Fonte Santa
Solutrense
Buraca Grande
Caldeirão
Caldeirão
Caldeirão
Caldeirão
Caldeirão
Caldeirão
Lapa da Rainha
Salemas
Vale Almoinha
Vale Almoinha
Gif-9502
OxA-2510
OxA-1939
OxA-2511
OxA-1938
ICEN-295
OxA-1940
ICEN-789
ICEN-376
OxA-5676
ICEN-71
Avaliação (b)
306
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
DATAÇÕES ABSOLUTAS (continuação)
Sítio (a)
Magdalenense
Bocas I
Bocas I
Bocas I
Buraca Grande
Caldeirão
Caldeirão
Caldeirão
Carneira II
Carneira II
Carneira II
Carneira II
CPM I
CPM I
CPM I
CPM I
CPM I
CPM I
CPM I
CPM I
CPM I
CPM II
CPM II
CPM III
CPM IIIS
CPM IIIS
CPM IIIT
CPM VI
CPM VI
Lapa do Picareiro
Olival da Carneira
Pinhal da Carneira
Nível
Material
Método
Lab.
Idade BP
0+
Fundo
1 (c)
9
Eb-topo
Eb-base
Fa (bolsa)
2
-60/70 cm
-61 cm
-80 cm
Superior
Superior
Superior
Superior
Superior
Inferior
Inferior
Inferior
Inferior
Superior
Médio
Superior
Médio
Inferior
Superior
Médio
Inferior
8
2
4
Bos primigenius
Ossos
Cerastoderma sp.
Vareta decorada
Ossos
Ossos
Ossos
Carvão
Sílex queimado
Sílex queimado
Sílex queimado
Carvão
Carvão
Sílex queimado
Sílex queimado
Sílex queimado
Carvão
Carvão
Sílex queimado
Sílex queimado
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Carvão
Pinus
Carvão
Carvão
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
TL
TL
TL
14C
14C
TL
TL
TL
14C
14C
TL
TL
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
14C
ICEN-900
ICEN-901
ICEN-903
OxA-5522
ICEN-72
ICEN-70
ICEN-69
ICEN-420
9880±220
10 110±90
10 260±70
13 050±100
10 700±380
14 450±890
15 170±740
4280±100
9 800±1200
10 600±1300
11 100±1300
11 680±60
12 220±110
13 400±1600
14 300±1800
15 900±2700
15 820±400
16 340±420
18 800±2200
23 200±2700
11 110±130
15 410±195
11 160±280
11 810±110
14 050±850
10 940±210
10 160±80
15 420±180
12 320±90
5290±170
10 880±90
SMU-2011
ICEN-687
ICEN-542
SMU-2015
SMU-2637
SMU-2476
ICEN-545
ICEN-689
SMU-2668
ICEN-690
SMU-2636
SMU-2634
OxA-5527
ICEN-820
SMU-2635
Avaliação (b)
A
A
A
A
A
A
A
R
A
A
A
?
A
A
A
A
A
?
A
A
?
A
?
A
?
A
?
?
A
R
A
50
50
50
50
9, 40
9, 40
9, 40
44
44
44
44
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
42
50
44
44
(a) CPM - Cabeço de Porto Marinho; VC - Vale Comprido
(b) A - resultado aceite; R - resultado rejeitado; ? - resultado de significado incerto
indicam-se os capítulos do vol. II em que é realizada a crítica tafonómica e arqueológica dos resultados
(c) embora rotulada como proveniente da camada 2, a amostra datada é seguramente do concheiro da camada 1, conforme se
argumenta no estudo monográfico da jazida (vol. II, capítulo 50)
ÍNDICE DAS MATÉRIAS
1. ORIGENS ......................................................................................................................................... 15
1.1. O que é o Paleolítico Superior? ......................................................................................... 15
1.1.1. Critérios tradicionais......................................................................................... 16
1.1.1.1. Indústrias líticas............................................................................... 16
1.1.1.2. Povoamento, subsistência, tipo físico .............................................. 18
1.1.1.3. Arte e indústria óssea....................................................................... 19
1.1.2. Uma definição mais precisa.............................................................................. 19
1.2. Biologia e cultura na «revolução do Paleolítico Superior»................................................ 21
1.2.1. A não-explicação reducionista.......................................................................... 22
1.2.2. Um modelo cultural para a extinção do Homem de Neandertal ....................... 24
1.2.3. Tecnologia lítica e capacidade intelectual ........................................................ 27
1.3. A passagem do Paleolítico Médio ao Superior em Espanha .............................................. 28
1.3.1. Faixa cantábrica e Catalunha ............................................................................ 28
1.3.2. Meseta e Costa mediterrânica ........................................................................... 29
1.4. O Moustierense final em Portugal ..................................................................................... 31
1.4.1. Foz do Enxarrique ............................................................................................ 31
1.4.2. Lapa dos Furos ................................................................................................. 32
1.4.3. Gruta do Caldeirão ........................................................................................... 35
1.4.4. Gruta Nova da Columbeira............................................................................... 35
1.4.5. Gruta da Figueira Brava ................................................................................... 36
1.5. A fronteira do Ebro............................................................................................................ 36
1.5.1. Processos culturais e processos tafonómicos.................................................... 37
1.5.2. Aurignacense a norte, Moustierense a sul......................................................... 40
1.5.3. Implicações paletnológicas............................................................................... 42
1.6. A sequência portuguesa ..................................................................................................... 44
2. AMBIENTE....................................................................................................................................... 47
2.1. Periodização ...................................................................................................................... 47
2.2. Condicionantes globais ...................................................................................................... 50
2.3. Indicadores paleoambientais.............................................................................................. 53
2.3.1. Variação da linha de costa ................................................................................ 53
2.3.2. Temperatura das águas do mar ......................................................................... 53
2.3.3. Glaciarismo....................................................................................................... 54
2.3.4. Geomorfologia periglaciar................................................................................ 55
2.3.5. Preenchimentos cársicos................................................................................... 56
2.3.6. Geoarqueologia das estações de ar livre ........................................................... 58
2.3.7. Palinologia de turfeiras..................................................................................... 61
2.3.8. Macro-restos vegetais ....................................................................................... 61
2.3.9. Moluscos terrestres ........................................................................................... 63
2.3.10. Micromamíferos ............................................................................................. 64
2.3.11. Grandes mamíferos......................................................................................... 64
2.4. Reconstituição ................................................................................................................... 66
2.4.1. Grande interestádio würmiano (antes de 32 000 BP) ....................................... 66
2.4.2. Início do Pleniglaciar (32 000-22 000 BP)....................................................... 67
2.4.3. Máximo glaciário (22 000-18 000 BP)............................................................. 67
2.4.4. Episódio de Lascaux (18 000-16 000 BP) ........................................................ 67
2.4.5. Início da deglaciação (16 000-13 000 BP) ....................................................... 70
2.4.6. Interestádio Bølling/Allerød (13 000-11 000 BP) ............................................ 70
2.4.7. Dryas III (11 000-10 000 BP)........................................................................... 70
3. TECNOLOGIA LÍTICA.................................................................................................................... 71
3.1. Padrões de fragmentação ................................................................................................... 73
3.1.1. Relação com a triagem das colecções e a tafonomia dos sítios......................... 73
308
O Paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, vol. I
3.1.2. Relação com a economia da debitagem ............................................................ 79
3.1.3. Relação com o tamanho das peças.................................................................... 80
3.1.4. Conclusão sobre os padrões de fragmentação .................................................. 82
3.2. Debitagem laminar............................................................................................................. 83
3.2.1. Conformação dos núcleos................................................................................. 83
3.2.2. Preparação e faseamento .................................................................................. 85
3.2.3. Exploração de planos de percussão opostos ou múltiplos ................................ 90
3.2.4. Suportes de fase plena ...................................................................................... 92
3.2.5. Produção de lamelas ......................................................................................... 95
3.2.6. Selecção e transformação ............................................................................... 101
3.3. Produção de barbelas....................................................................................................... 103
3.3.1. As «raspadeiras» espessas como núcleos carenados....................................... 103
3.3.2. As peças esquiroladas como núcleos para esquírolas ..................................... 109
3.3.3. As barbelas líticas na documentação arqueológica e etnográfica ................... 112
3.3.4. Barbelas brutas e barbelas retocadas .............................................................. 115
3.4. Significado tecnofuncional dos buris............................................................................... 116
3.4.1. Os buris como núcleos.................................................................................... 119
3.4.2. Os buris como utensílios................................................................................. 122
3.4.3. Critérios de diferenciação entre buris/núcleos e buris/utensílios .................... 124
3.4.4. Os buris nas indústrias do Paleolítico Superior português.............................. 127
3.5. Exploração da matéria-prima e tipos de núcleos.............................................................. 129
4. ECONOMIA.................................................................................................................................... 131
4.1. Aprovisionamento em matérias-primas líticas ................................................................. 131
4.1.1. Sílex: aprovisionamento e circulação ............................................................. 134
4.1.2. Quartzo e Quartzito: solução de recurso e preferência cultural ...................... 137
4.2. Demografia e territórios................................................................................................... 142
4.2.1. Territórios de abastecimento... ....................................................................... 142
4.2.2. ...e seu significado paletnológico.................................................................... 146
4.3. Sistemas de povoamento e subsistência........................................................................... 150
4.3.1. Formulação de um modelo ............................................................................. 151
4.3.2. Exploração dos recursos animais.................................................................... 152
4.4. Diferenciação funcional dos sítios ................................................................................... 156
4.4.1. Critérios de análise ......................................................................................... 156
4.4.2. Agrupamentos................................................................................................. 162
4.4.3. ...e seu significado .......................................................................................... 167
4.4.4. Variação diacrónica ........................................................................................ 174
5. SEQUÊNCIA CULTURAL............................................................................................................ 181
5.1. Aurignacense ................................................................................................................... 181
5.1.1. Cronologia ...................................................................................................... 181
5.1.2. Fácies.............................................................................................................. 182
5.1.3. Economia da pedra ......................................................................................... 182
5.1.4. Produção de suportes alongados..................................................................... 184
5.1.5. Armaduras microlíticas................................................................................... 184
5.2. Gravettense antigo ........................................................................................................... 187
5.2.1. Cronologia ...................................................................................................... 187
5.2.2. Fácies.............................................................................................................. 187
5.2.3. Economia da pedra ......................................................................................... 189
5.2.4. Produção de lamelas ....................................................................................... 190
5.3. Fontesantense................................................................................................................... 191
5.3.1. Cronologia ...................................................................................................... 191
5.3.2. Economia da pedra ......................................................................................... 192
5.3.3. Armaduras ...................................................................................................... 195
5.4. Gravettense final.............................................................................................................. 196
5.4.1. Cronologia ...................................................................................................... 196
5.4.2. Fácies.............................................................................................................. 196
5.4.3. Economia da pedra ......................................................................................... 197
Índice das matérias
309
5.4.4. Armaduras microlíticas................................................................................... 199
5.5. Proto-Solutrense .............................................................................................................. 200
5.5.1. Cronologia ...................................................................................................... 200
5.5.2. Fácies.............................................................................................................. 202
5.5.3. Economia da pedra ......................................................................................... 204
5.5.4. Pontas de Vale Comprido ............................................................................... 208
5.5.5. Fundamento da variabilidade inter-sítios........................................................ 208
5.6. Solutrense médio ............................................................................................................. 209
5.6.1. Cronologia ...................................................................................................... 209
5.6.2. Fácies.............................................................................................................. 210
5.6.3. Economia da pedra ......................................................................................... 210
5.6.4. Pontas de face plana ....................................................................................... 212
5.6.5. Folhas de loureiro ........................................................................................... 213
5.7. Solutrense superior .......................................................................................................... 216
5.7.1. Cronologia ...................................................................................................... 216
5.7.2. Fácies.............................................................................................................. 217
5.7.3. Economia da pedra ......................................................................................... 218
5.7.4. Pontas crenadas .............................................................................................. 220
5.7.5. Pontas de pedúnculo axial .............................................................................. 222
5.7.6. Existe um Solutreo-gravettense em Portugal? ................................................ 224
5.8. Magdalenense .................................................................................................................. 225
5.8.1. Economização do sílex ................................................................................... 225
5.8.2. Indústria óssea e armaduras microlíticas ........................................................ 228
5.8.3. Magdalenense antigo de fácies CPM.............................................................. 232
5.8.4. Magdalenense antigo de fácies Cerrado Novo................................................ 232
5.8.5. Magdalenense superior ................................................................................... 235
5.8.6. Magdalenense final de fácies Rossio do Cabo................................................ 236
5.8.7. Magdalenense final de fácies Carneira ........................................................... 237
6. TENDÊNCIAS E CONTEXTO ..................................................................................................... 241
6.1. Indústrias líticas e sistema de adaptação.......................................................................... 241
6.2. Contexto regional............................................................................................................. 243
6.2.1. Aurignacense .................................................................................................. 244
6.2.2. Gravettense ..................................................................................................... 246
6.2.3. Proto-Solutrense ............................................................................................. 247
6.2.4. Solutrense ....................................................................................................... 250
6.2.5. Magdalenense antigo e superior ..................................................................... 252
6.2.6. Magdalenense final......................................................................................... 258
6.3. Mecanismos de mudança ................................................................................................. 259
6.3.1. Migração e evolução local.............................................................................. 260
6.3.2. Organização social e redes de contacto a longa distância............................... 263
6.4. Selecção cultural e mobilidade ........................................................................................ 267
7. CONCLUSÃO
271
7.1. Balanço ............................................................................................................................ 271
7.2. Perspectivas ..................................................................................................................... 275
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................. 277
DATAÇÕES ABSOLUTAS............................................................................................................... 309