apontamentos sobre o espaço físico e o desejo gay em narrativas

Transcrição

apontamentos sobre o espaço físico e o desejo gay em narrativas
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
149
APONTAMENTOS SOBRE
O ESPAÇO FÍSICO E O DESEJO GAY EM
NARRATIVAS DE TEMÁTICA HOMOERÓTICA
Antonio de Pádua Dias da Silva1
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes2
RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir o significado que o espaço físico adquire na literatura
gay e, em conseqüência, transfere a carga valorativa assumida para as personagens da
fábula, quando estas são vistas em suas relações afetivo-amorosas. Parte-se da idéia de
que a noção de espaço redimensiona a significação do comportamento e das “identidades
homossexuais”, vinculando às relações dos sujeitos um caráter depreciativo, menor e
sujo. Enfatizam-se os lugares fechados onde o amor gay pode ser paradoxalmente vivido
sem o estigma discriminatório (porque liberto da vigilância), ao mesmo tempo em que só
é possível nos ambientes fora do convívio social.
Palavras-chave: Literatura Gay; Espaço Físico; Negação do Desejo.
RÉSUMÉ
Cet essai est une analyse de la relation entre l’espace physique et l’identité gay. On
concentre la recherche sur la discussion culturelle que interpret la condition gay comme
moins, négatif. L’espace physique, ainsi, projette des aspects negatives dans personage
gay et attribute à elles un caractère très inférieur. On donne emphase aux places fermés
où l’amour gay est vivant sans discrimination.
Mots-clé: Literature Gai; Espace Physique; Negation du Desire.
Introdução
A literatura homoerótica tem se revelado importante fonte de conhecimento
sobre e reflexão do desejo gay,3 uma vez que, lida sob o viés da “confissão”
projetada nas páginas da ficção, muito diz daquilo que o leitor procura na escrita
de si ou da escrita do eu:4 estatutos de verdade ficcionalizados, capazes de
1
Doutor em Letras pela Universidade Federal de Alagoas. Professor do Mestrado em
Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba.
2
Bolsista do PIBIC da Universidade Estadual da Paraíba.
3
A noção de desejo gay é aqui discutida conforme pensa Sedgwick (1998): um modo de
vida, uma subcultura, uma maneira de se fazer existir, contrastando com a noção de
comportamento. Desejo implica aspectos psíquicos categorizados em estrutura;
comportamento, apenas interferência temporal ou outra qualquer intervenção.
4
Escrita de si ou escrita do eu parte da noção foucaultiana de que as narrativas em
primeira pessoa, na contemporaneidade, são fortes argumentos e instrumentos de emersão
de uma nova identidade autoral: a do escritor que parece confessar seu cotidiano, seus
desejos e angústias na escrita vazada de subjetividade porque não muito bem demarcada
150
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
subverter o caráter estético que distanciava o escritor do texto, tornando este
envolto por uma aura em que cotidiano e desejos não eram possíveis de serem
impressos nas experiências das personagens. Quando estas “vivências” surgiam,
eram apenas invenção, assim como as personagens de ficção. Um dos elementos
“internos” da narrativa que nos chama a atenção, a priori, é o espaço físico,
bastante lido na tendência naturalista e aqui recuperado sem o sentido
“determinista” dado a ele naquele momento estético.
O estudo do espaço na literatura, de uma maneira geral, revela que diversos
aspectos que permeiam as personagens podem ser interpretados a partir deste
marcador. Na concepção de Dimas (1987), torna-se importante elemento textual,
porque pode definir, em muitas obras ou em gêneros específicos, importantes
caracterizações para o leitor preocupado em encontrar na órbita espacial algo que
ilumine sua interpretação. Isso se torna relevante à medida que o aspecto espacial
só adquire sentido, segundo nossa leitura, se vinculado ao “estatuto” das
personagens. Problematizar os sujeitos ficcionais, neste caso, é perceber onde eles
estão situados. Relacionar assim o ser ao seu estar, de modo que, descobrir onde
se passa uma ação, no plano da enunciação ficcional, e quais as eventuais funções
deste espaço no desenvolvimento do enredo (e na interferência psíquica da
personagem), torna-se relevante à leitura da literatura de ficção.
O objetivo deste ensaio é descrever, basicamente a partir da leitura de
narrativas homoeróticas, a construção do espaço ficcional e a sua relação
semântica para a caracterização da “identidade” da personagem gay nessa
literatura. Admite-se que esse marcador literário constitui importante elemento da
narrativa de ficção por favorecer as relações entre os sujeitos gays, representados
na fábula das obras, marcadas por aspectos de aceitação, tolerância e homofobia,
ora respaldando as relações gays, ora tornando-as improdutivas, negadas e “sujas”
do ponto de vista cultural.
A relação entre a construção do espaço ficcional e a temática homoerótica
na literatura constitui a problemática central deste ensaio. A literatura homoerótica
(SILVA, 2007a, 2007b; BARCELLOS, 2006) – aquela em que se lê, no plano
geral da obra, a temática, a vivência e os desejos gays – será o ponto de partida
dessa reflexão para observarmos em que aspectos os espaços nela construídos
contribuem para interferir na condição homoafetiva das personagens e suas
relações com as demais personagens. Como acreditamos que esse marcador
espacial tem um sentido próprio na literatura homoerótica, defendemos a idéia
dessa literatura poder caracterizar assim, dentre outros tantos elementos, um
gênero literário específico como já foi proposto (SILVA, 2007b).
Trabalhamos com a hipótese de que, sendo a relação homoerótica concebida
como transgressora pelo discurso dominante (falocêntrico e de base heterossexual), e sendo esta relação abordada de maneira central na literatura gay, os
do ponto de vista técnico. A verdade é um dos critérios pelo qual o leitor irá “julgar” a
obra que lê, fato que se distancia da forte tendência acadêmica de ler o texto de ficção
sem a intervenção do autor. Vale salientar que a escrita de si não se iguala ao biografismo
tão pertinente no século XIX.
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
151
elementos espaciais refletem esse “desvio”, configurado em ambientes fechados,
isolados e com tendências a esconder as relações desviantes das personagens
envolvidas. Do ponto de vista cultural, supomos que os espaços pelos quais
deslizam as personagens reflitam os desejos e a vivência dos sujeitos homoeróticos, de acordo com a época a que cada obra se refere.
Dessa maneira, a reflexão sobre espaço e literatura é discutida a partir de
críticos da literatura como Dimas (1987), Moisés (1981), Schüler (1989), Soares
(1993), Santos & Oliveira (2001) e Gancho (2006), no intuito de definir o espaço
ficcional e quais suas possíveis funções em um texto literário.
Primeiramente, apresentamos um breve panorama teórico da noção de
espaço e as variações semânticas vinculadas a ela, precisando assim a definição
adotada neste trabalho. Em seguida, discutimos os aspectos que adquire o espaço
físico na literatura homoerótica, aqui tomada como corpus de análise: BomCrioulo (2002), de Adolfo Caminha; O segredo de Brokeback Mountain (2006),
de Annie Proulx; Sobre rapazes e homens (2006), de Antonio de Pádua Dias da
Silva. O recorte de gênero recaiu apenas sobre narrativas, sejam elas romances ou
contos. Apenas uma obra de poemas – Outros sabores (2005, de Rafael Luz
Serafim, foi aqui abordada quanto à relação espaço físico e identidade gay).
Discutindo o espaço na narrativa
Espaço (físico, social, psicológico), ambiente e ambientação são termos
utilizados pelos estudiosos da literatura para se referirem aos locais ficcionais,
sobretudo nas narrativas, uma vez que, do ponto de vista da teoria da literatura,
dificilmente o texto poético (exceção feita ao gênero épico e aos poemas narrados)
traduz em seu interior uma preocupação com a espacialização física.
Antonio Dimas (1987), em obra que trata especificamente dessa temática
no romance, faz referência ao espaço e à ambientação distintamente. Ao discutir
esse elemento a partir de estudo de Lins (1976 citado por Dimas, 1987), afirma o
autor que esse marcador narrativo é descrito como fazendo referência a dados da
realidade; quando utiliza o termo ambientação/ambiente faz menção aos
significados simbólicos que podem ser estabelecidos a partir dos filtros de cada
texto. Concordando com esse crítico, Gancho (2006, p. 27) afirma que “O termo
espaço, de um modo geral, só dá conta do lugar físico onde ocorrem os fatos da
história; para designar um ‘lugar’ psicológico, social, econômico etc., empregamos o termo ambiente”.
Os demais autores consultados não fazem distinção entre espaço e ambiente,
pois os tomam como sinônimos. Santos & Oliveira (2001), por exemplo, abordam
o conceito de espaço a partir da perspectiva determinista (que concebe apenas os
componentes físicos) e psicológico-social (no qual os espaços são referentes aos
lugares sociais representados e/ou à configuração de cenários íntimos das mentes
das personagens), embora aconselhem não reduzir o espaço a essas duas
perspectivas (uma, determinista; a outra, psicológica e social), que, por vezes, funcionam como camisas-de-força, inflexibilizando, portanto, um maior aprovei-
152
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
tamento do termo, uma vez que ambas as perspectivas podem estar imbricadas ou
até mesmo configurar como inseparáveis (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 81).
Assim, na esteira de Soares (1993), adotamos como definição de espaço
ficcional o conjunto de elementos paisagísticos em um texto literário, quer se
apresente exterior e físico ou interior e psicológico, onde são situadas as ações das
personagens. Aqui, o conceito é entendido de maneira generalizada e, partindo de
uma percepção do espaço físico mediada por valores, projetamos significados por
meio de impressões culturais no intuito de, assim, tentar inferir em que medidas
os cenários guardam tocaias5 na construção das obras de temática homoerótica,
estudadas neste ensaio.
As funções desse elemento, de maneira geral, para os críticos a que fazemos
referência, são situar as personagens no tempo, no espaço, no grupo social; ser a
projeção dos conflitos vividos pelos sujeitos ficcionais ou estar em conflito com
os mesmos; bem como fornecer indícios para o andamento do enredo,
principalmente em narrativas policiais (GANCHO 2006, p. 29). Todavia, Dimas
(1987) adverte que toda tipologia literária deve ser vista numa perspectiva
relativizada, uma vez que podemos encontrar várias modalidades de apresentação
espacial, às vezes dispersas ao longo das páginas, às vezes de modo contíguo,
quando não mesclado, cabendo a nós leitores detectá-las e avaliá-las em sua
funcionalidade (DIMAS 1987, p. 32).
Sabemos que a geografia literária é discutida com relevância nas
narrativas. Na poesia não há, a rigor, a preocupação analítica com esse marcador
“típico” da prosa, salvo quando este aparece como “a natureza”, e na poesia épica,
segundo Moisés (1981, p. 44-45). Esse mesmo crítico ainda afirma que “A poesia
não remete para lugar algum, nem se situa em espaço algum: é a-geográfica”
(1981, p. 44) Todavia, no que tange à questão de limites de análise do texto
literário em prosa e poesia, concordamos com a afirmação de Santos & Oliveira
(2001), que amplia e flexibiliza as possibilidades da interpretação:
No texto literário, tanto em formas poéticas quanto em formas narrativas, é possível
simular simultaneidade onde normalmente se encontra sucessão, propor a
coordenação de elementos a princípio subordinados, instigar derivas nos caminhos
já traçados, incerteza onde há normas a serem respeitadas, liberdade de olhar
quando o olhar tende a ser aprisionado. (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 77-78).
Apropriamo-nos desta fala porque, em muitos poemas contemporâneos, e de
temática homoerótica, a exemplo da obra Outros sabores, de Rafael Luz Serafim
(2005), há menções diretas a espaços que servem de pano de fundo aos desejos do
sujeito poético. Seja uma padaria, um shopping center ou o interior de um ônibus,
alguns poemas remetem o leitor a espaços físicos, o que nos fez observar os
cenários descritos nestes poemas, ainda que contrariem regras clássicas de estudos
de análise literária, que resistem a tratar os ambientes representados no poema.
5
Termo utilizado por Dimas (1987) para designar o que ele também chama de
“armadilhas virtuais de um texto”.
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
153
Não é nosso objetivo discutir a noção de espaço físico na poesia, mas não
podíamos deixar de nos posicionar quanto ao que entendemos sobre esse elemento
“narrativo”, porque há um momento em que trazemos à tona “cenas instaladas”
em espaços ou ambientes que definem com bastante precisão a identidade da
personagem envolvida no momento. Dito isto, fica evidente que a noção de
espaço aqui adotada é bastante ampla, de forma que contempla as representações
deste marcador em quaisquer gêneros literários. Vejamos, então, como são
construídas as noções de espaço na literatura gay.
Homoerotismo em Bom-crioulo
A narrativa Bom-Crioulo (2002) de Adolfo Caminha, publicada em 1895 e
inscrita na história da literatura como naturalista, é considerada o primeiro
romance de tema exclusivamente homoerótico da literatura brasileira (sem querer
relegar a discussão de outras questões ou motivos presentes na obra como a
representação do negro numa sociedade ainda preconceituosa). Nessa obra, o
homoerotismo masculino é o motivo através do qual se estrutura a história. O
negro Amaro (vulgo Bom-Crioulo, p. 52) e o grumete Aleixo, protagonistas da
narrativa (não esquecemos que D. Carolina constitui o terceiro elemento
protagonista), vestem os uniformes da marinha nacional e ocupam, sobretudo,
dois espaços marcantes na obra: a corveta – cenário cuja descrição abre o romance
e onde se inicia a paixão de Amaro por Aleixo, e subseqüente relacionamento – e
o quarto da Rua da Misericórdia – lugar onde se desenvolve a relação desses dois
marujos, apontando para diferentes aspectos semânticos, de acordo com a
evolução do enredo.
A corveta, “a velha e gloriosa corveta” (p. 13), como assim a descreve o
narrador, é o cenário central onde se passa a fábula. Conhecemos as personagens
nesse espaço. Amaro – escravo fugido que encontrou sua liberdade ao servir a
Marinha – permanece na embarcação e passa a associar esse lugar de destaque à
sua liberdade, lembrando-se sempre dele, atribuindo-lhe boas referências. A vida
em alto mar, a chegada de Aleixo e a paixão avassaladora que desperta em Amaro
constituem relatos ocorridos nesse espaço, que funciona para Bom-Crioulo como
o cenário que implica ou denota mudança de vida, um lugar de recomeço.
É importante ressaltar que, apesar de a influência do meio sobre os
indivíduos ser uma característica marcante do romance realista-naturalista, na
obra de Caminha o homoerotismo de Amaro não é colocado pelo narrador
heterodiegético como fruto de uma influência do ambiente em que a personagem
vive. Embora se mencione a prática de relações sexuais entre marujos (e até entre
os de patente superior), a identidade de Amaro não é atravessada por essas
práticas, sendo sua condição homoafetiva apresentada enquanto “força da
natureza”, pois “Não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a natureza
impunha-lhe esse castigo”. (CAMINHA, 2002, p. 46), limitando a causa do seu
desejo homoerótico ao fator instintual – não podemos deixar de lado o fator raça
que contribui para a leitura cultural sobre Amaro. Assim, o narrador
154
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
paradoxalmente desloca a identidade gay dessa personagem da influência do
meio, atribuindo-lhe um caráter “essencialista”.
A relação de Amaro e Aleixo se consuma com o primeiro contato sexual dos
marujos, no convés da corveta, em uma área coberta do navio, onde dormiam e se
refugiavam do frio: um lugar escuro, escondido, que abrigou o “delito contra a
natureza”, fato importante para ambas as personagens: “Onde quer que estivessem
haviam de lembrar daquela noite fria dormida sob o mesmo lençol na proa da
corveta, abraçados, como um casal de noivos em plena luxúria da primeira
coabitação”. (CAMINHA, 2002, p. 46)
Antes desse momento, já fazia parte dos planos de Bom-Crioulo alugar,
quando aportassem no Rio de Janeiro, um quarto na Rua da Misericórdia para
morarem juntos. Quando chegam a terra, recorrem à portuguesa D. Carolina,
amiga antiga de Amaro, que alugava quartos na citada rua e que arranja um
“quartinho” a pedido do amigo:
O quarto era independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão
roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico. [...] Todo o dinheiro que apanhava
era para compra de móveis e objetos de fantasia rococó, “figuras”, enfeites, coisas
sem valor, muita vez trazidas de bordo... Pouco a pouco o pequeno cômodo foi
adquirindo uma feição nova de bazar hebreu, enchendo-se de bugigangas,
amontoando-se caixas vazias, búzios grosseiros e outros acessórios ornamentais. O
leito era uma “cama de vento” já muito usada, sobre a qual Bom-Crioulo tinha zelo
de estender, pela manhã, quando se levantava, um grosso cobertor encarnado “para
ocultar nódoas”. (CAMINHA, 2002, p. 54)
No trecho acima, percebemos o cuidado da personagem Amaro para com o
cômodo que se tornou um “ninho de amor” entre ele e Aleixo, ninho cuja
caracterização é bastante sugestiva: conforme é comparado a um “sótão roído pelo
cupim” e ornamentado com “objetos de fantasia rococó”, “coisas sem valor”,
“caixas vazias”, os elementos que compõe essa geografia ajudam a inferir que o
ambiente é tão sem propósito quanto a relação das personagens. A configuração
imagética desse ambiente parece confinar a relação à esquisitice, ao pouco valor,
àquilo que é somente “ornamental” e provisório, assim como são filtrados os
objetos do quarto que abrigava o casal gay.
Em terra, no quarto da Misericórdia, nem se falava! – ouro sobre azul. Ficavam em
ceroulas, ele e o negro, espojavam-se à vontade na velha cama de lona, muito fresca
pelo calor, a garrafa de aguardente ali perto, sozinhos, numa independência
absoluta, rindo e conversando à larga, sem que ninguém os fosse perturbar – volta
na chave por via das dúvidas... (CAMINHA, 2002, p. 55)
A referência ao espaço do quarto, que não por acaso é alocado na Rua da
Misericórdia e, por conseguinte, chamado pelo narrador de “quarto da
Misericórdia”, é marcada de significados, como o próprio termo traz em sua base
semântica: de clemência, porque é o quarto da com-paixão, onde ali, e somente
ali, os desejos de Bom-Crioulo eram atendidos, pois podia desfrutar da beleza do
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
155
jovem Aleixo, senti-lo como sempre o quis; ali eles estavam livres da repressão,
independentes assim como “o quarto era independente” (p. 54). “Eles viviam um
para o outro” (p. 59), fato que cronologicamente durou quase um ano, restando
daquele lugar a lembrança de um cenário de amor, um lugar secreto onde a
realização do desejo gay era possível.
Conforme o romance se desenvolve, e novas tramas invadem o fato narrado,
Bom-Crioulo é obrigado a deixar a corveta para servir em outro navio, o
couraçado. Aleixo, já entediado do negro, parece não sofrer com a separação, e
acaba se envolvendo com D. Carolina, que o “mimara” na pretensão de conquistálo. Em suas vindas à terra, Aleixo não encontrava mais Amaro (que estava preso),
e o quarto da Rua da Misericórdia (antes, um ninho de amor) agora configura um
cenário repugnante e de más lembranças para o jovem marujo:
Como tudo mudara naquela casa depois que o negro saíra! O sótão, o misterioso
sótãozinho estava abandonado, Aleixo não queria saber dele, odiava-o, porque ali é
que se tinha feito escravo de Bom-Crioulo, ali é que tinha “perdido a vergonha”. O
pobre quarto era como um lugar de maldições: vivia trancado à chave, lúgubre e
poeirento. [...] o retrato do imperador, a cama de lona, os cacaréus, de Bom-Crioulo
e do grumete, aquilo tudo que dantes fazia o encanto dos dois amigos tinha
desaparecido. Nada restava agora daquele viver comum. (CAMINHA, 2002, p. 95)
Dessa forma, percebemos a corveta e o quarto da Misericórdia: espaços
marcantes dessa narrativa de Adolfo Caminha. Os cenários se sobressaem de tal
forma que determinam como a relação dos protagonistas deve se manter às
escondidas nesses ambientes fechados e reservados, sobretudo o quarto da
Misericórdia, com sua aura de mistério e trancado à chave, ambiente que podia
acolher secretamente os desejos homoafetivos das personagens.
Em Amores no masculino (2006), de André Ranzatti, em uma das primeiras
cenas onde acontece o contato físico entre Bruno e Fernando, lemos que, depois
de saírem de um ambiente público – um restaurante – dirigiram-se à garagem do
mesmo, que “era escura e não havia nenhum manobrista [...] Em menos de dois
segundos estávamos nos beijando” (p. 19). É nesse clima de “esconderijo” que as
relações afetivo-amorosas das personagens gays acontecem, não porque o espaço
privado seja o único adequado, no contexto ocidental, para o exercício do sexo e
das sexualidades, mas porque, em se tratando da experiência gay, os “faróis” da
vigilância social não podem alcançar os “suspeitos”. Daí não bastar o espaço
privado – o quarto, o banheiro, por exemplo. A rotina a dois dos “namorados”
acontece longe dos olhares, dos sussurros, dos prédios ou casas em que habitam
pessoas não gays.
Numa mesma perspectiva do que estamos defendendo, encontramos em
Música para quando as luzes se apagam (2007), de Ismael Caneppelle, a
experiência do amor gay num espaço (uma rua qualquer) vinculado a um tempo
(madrugada), quando o silêncio é o momento de se sentir só e as pessoas não
podem “ser incomodadas” com os relacionamentos gays, uma vez que dormem e,
simbolicamente, estão anestesiadas para as questões que envolvem os menores
156
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
socioculturais. Assim, a personagem-narrador, em torno de quem todas as outras
personagens orbitam, vive suas experiências em ambientes onde ele e os amigos
consomem maconha, ingerem bastante bebida alcoólica e estão envolvidos em
relações sexuais de várias naturezas: “Sentamos na praça da Univates e ficamos
conversando e fumando [...] Não tinha ninguém na rua àquela hora da madrugada
e, mesmo se tivesse, era tanta neblina que só chegando muito perto para enxergar
a gente” (p. 33).
Embora nem a relação sexual nem o uso de drogas tenha acontecido neste
encontro, altas horas da madrugada e numa rua isolada pelos habitantes que
dormiam e pela neblina que ajudava o encontro furtivo dos dois, a experiência gay
aproxima-se de uma relação mais “profunda”, propiciada pelo espaço/tempo, pois
“quando ele ficou sozinho comigo, não veio com esses papos de sexo como a
maioria dos meninos fazem. Falou coisas mais profundas. Coisas que não se
conversam normalmente” (p. 33). Por esse ângulo, então, a experiência das
personagens foi positiva, mesmo em um espaço e num horário que denunciam a
exclusão dos diferentes sexuais, obrigados que são a viverem seus afetos
“distantes” dos que habitam o corpo social e em espaços propícios às “relações
efêmeras” ou sem sentido: cubículos sujos, lugares escondidos que jamais
prenunciariam uma base que solidificaria a relação gay.
A ambientação “pesada”, “carregada”, movida ao uso de bebida alcoólica,
ao uso de maconha ou outros entorpecentes, ambientes escuros, sujos e
preenchidos por pessoas de “índole” suspeita, vem constituir espaços de vivência
da experiência gay em Morangos mofados (1985), de Caio Fernando Abreu. Essa
ambientação pode ser visualizada em contos como “O dia que Urano entrou em
Escorpião (velha história colorida)”, “Pela passagem de um grande amor”, “Além
do ponto”, “Terça-feira gorda” e outras da mesma obra.
A geografia natural de Brokeback Mountain
Já O segredo de Brokeback Mountain (2006), de Annie Proulx, deixa
entrever no título o espaço que dá vida ao amor dos “vaqueiros” Ennis del Mar e
Jack Twist: a montanha Brokeback. No conto norte-americano, o narrador
menciona diversos lugares do oeste dos Estados Unidos, a procedência das
personagens, por onde eles passam, marcando cronologicamente o tempo.
Foi em 1963 que os protagonistas se conheceram, tiveram que cuidar de um
rebanho de ovelhas cujo pasto de verão ficava na montanha Brokeback
(PROULX, 2006, p. 8). Eles exerciam funções diferentes: um cuidava das
ovelhas, o outro, da comida em um acampamento. Numa noite, motivados pelo
abuso de bebida alcoólica, impelidos pela solidão e condicionados por uma forte
atração até então “desconhecida” deles, dormem juntos, ocorre o contato sexual, o
primeiro de muitos que embalariam aquele verão num vasto local isolado.
Como de fato foi. Eles nunca falavam sobre sexo, deixavam acontecer, a principio
só na barraca à noite, depois em plena luz do dia com o sol batendo, e à noite no
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
157
clarão do fogo [...] Só havia os dois na montanha pairando no ar eufórico e amargo,
olhando de cima o dorso da águia e os faróis rastejantes dos veículos na planície,
suspensos acima dos assuntos corriqueiros e longe dos mansos cachorros de
fazenda que latiam quando escurecia. Eles se achavam invisíveis [...] (PROULX,
2006, p. 20).
Após deixarem a montanha, as personagens se separam, reencontrando-se
quatro anos depois, para se manterem unidos, embora os encontros íntimos não
acontecessem frequentemente, e, quando ocorriam, era em lugares isolados ou,
como Ennis chegou a dizer, “num fim de mundo...” (p. 38), devido às
circunstâncias socioculturais em que estavam inseridos e que os impediam de
viver uma relação plena. Os espaços rurais e as belas paisagens dos lugares por
onde Ennis e Jack passam em seus encontros, conforme são descritas, configuram
o que Dimas (1987) e Moisés (1981) denominam locus amoenus, expressão latina
utilizada para classificar paisagens naturais como esta:
O rio cor de chá corria veloz com o degelo da neve, uma faixa de bolhas nas rochas
altas, lagos e rodamoinhos fluindo. Os salgueiros de galhos ocre balançavam
rígidos, os amentos carregados de pólen qual impressões digitais amarelas. Os
cavalos beberam e Jack apeou, apanhou um pouco de água gelada com a mão, gotas
cristalinas pingando dos dedos, um brilho molhado na boca e no queixo.
(PROULX, 2006, p. 46)
A configuração do espaço na obra de Annie Prouxl revela tão somente
aquilo que o título traduzido remete, ou seja, um segredo. Os protagonistas
refugiam-se em um paraíso natural, construído sob uma geografia composta por
montanhas, campinas, bacias hidrográficas; e, apesar de serem espaços abertos, ao
ar livre, os vaqueiros atravessavam esses cenários com o objetivo de esconder a
relação homoerótica, de poderem viver o desejo sentido por eles, num lugar
afastado de todos (por conta do medo, do preconceito, da discriminação). Além
disso, a montanha Brokeback torna-se, especialmente, símbolo do amor entre os
dois, o começo de tudo, o desejo de Jack que, ao morrer, pede para suas cinzas
serem espalhadas lá; ela acompanha Ennis na eterna lembrança de um cartão
postal, que este guarda como recordação do amor dedicado ao “amigo”.
Os espaços urbanos de Outros sabores
Dos poemas de Rafael Luz Serafim (2005), nove nos chamaram atenção
porque fazem menção a espaços, sejam eles lugares reais como cidades e estados
brasileiros (é o caso dos poemas “Reencontro na Cidade Baixa”, “Aprontes em
Fortaleza” e “Onde estará meu amor?”) ou a determinados cenários como um
shopping, um cinema, que funcionam como pontos de encontro do sujeito poético
com outros com quem se relaciona (é o caso do poema “Crônica do Bate-Trapo”,
que remete também ao espaço virtual do chat).
158
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
É preciso salientar que os espaços, nesses poemas, não são descritos, eles
são apenas mencionados de modo a servirem de pano de fundo aos desejos
expressos pelo sujeito poético. No poema “Padeiro safado”, quando lemos o
primeiro verso, temos: “Nunca imaginei gostar tanto de uma padaria [...]” (p.
100); ou ainda na primeira estrofe do poema “Roça-roça no Buzão”:
ônibus lotado é o que há
quando passa aquele gatinho por detrás de você
aquele aperto gostoso
aquele calor no pescoço
um roça-roça tudo de bom! (SERAFIM, 2005, p. 98)
ou ainda na segunda estrofe do poema “No vestiário”:
[...]
no vestiário
compartilhamos o mesmo armário
mantemos contato físico intenso... às escondidas [...]
(SERAFIM, 2005, p. 94)
Esses trechos remetem a ambientes físicos que atravessam o desejo expresso
nos poemas, porém, neste último, além da referência ao espaço do vestiário, há
menção ao espaço psicológico, o armário, que pode significar a impossibilidade
de o sujeito assumir a condição gay, como bem remete o texto de Bachelard
(1988, p. 91): “o espaço interior do armário é um espaço de intimidade, um espaço
que não se abre para qualquer um” (grifo nosso); então, no poema, a relação se
dá secretamente, pois ambos os indivíduos estão presos ao armário, à nãoaceitação plena da orientação sexual que os determina culturalmente como
sujeitos. A ambigüidade expressa pelo verso “compartilhamos o mesmo armário”
nos permite assim interpretar que os sujeitos mantêm secretas suas identidades e
relação. Esta imagem também é mencionada no poema “Saindo do armário”, no
qual é expressa a insatisfação e o incômodo do eu-poético em não conseguir se
libertar, se assumir, enfim, “sair do armário”:
Quem são meus cicerones?
Sinto-me um hóspede de mim mesmo
Um estranho, em recluso
Num claustro absurdo
Cadeado no peito!
Fecho-me a todos os tipos de emoções
O que será que eu desejo?
[...]
Do cabide faço meu páreo
Tenho que sair do armário! (SERAFIM, 2005, p. 57)
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
159
Outros sabores (2005), por questões de estilo do autor ou motivos que
referendam a escrita do sujeito, aborda questões contemporâneas relativas aos
sujeitos gays: reivindicações, desejos e comportamentos; portanto, a linguagem,
os termos e os ambientes refletem a emergência de uma cultura, de uma vivência
específica (a subcultura gay), com os dilemas, conquistas e desgraças dos
indivíduos de sexualidade divergente da heteronormatividade ainda considerada
“modelo”.
Espaços que falam sobre rapazes e homens
Sobre rapazes e homens (2006), de Antonio de Pádua Dias da Silva, é uma
obra composta por catorze contos curtos que abordam, através da linguagem do
corpo, do desejo e do erotismo, o que, nas palavras de Souza (2007, p. 390), “há
de mais íntimo nas relações homoafetivas de corpos e identidades marcadas pela
homoafetividade”. Sabemos que a circunstância espacial pouco conta em
narrativas curtas como os contos desta obra, segundo Moisés (1981, p. 108);
todavia, os cenários onde ocorrem, principalmente, as relações sexuais e os jogos
de desejos, em alguns contos, revelam aspectos importantes à configuração do
espaço na literatura gay.
Superficialmente, a maioria dos contos nos remete a espaços, seja um quarto
(em “Passional ao extremo”) seja a descida à margem de um rio, onde as
personagens quase não podem ser vistas (em “Agente da passiva”), bem como a
imagem de uma poça que serve de palco para a descrição de um estado depressivo
(em “Esquema D”). Mas, em especial, três contos configuram cenários similares:
ambientes fechados, escondidos. Estes ambientes são mais bem descritos, se
comparados com as demais narrativas da obra, deixando sugestivamente pistas
que são associadas ao espaço da vivência da relação homoerótica dos
personagens, como discutiremos adiante.
Em “Esquema F”, as personagens (um homem e um garoto) encontram-se
num espaço fechado e escondido do olhar do pai do menino – o pai aqui
representa a repressão, os valores morais que impedem o garoto de “travar-se”
com seu objeto de desejo, o falo (SOUZA, 2007, p. 391). Diante desse temor, o
homem se reveste do papel do pai e ordena que o “molequinho gostoso” (p. 74) o
obedeça, “descendo sua boca ao pau dele” (p.74) e, assim, naquele ambiente,
inicia o enlace de desejo de uma relação aparentemente pedófila:
No espaço mais apertado daquela loja, no fundo, bem ao fundo, numa sala escura,
um pouco vazia, um pouco suja, um pouco úmida. Numa sala no fim daquela loja,
como vias de despejo, como acesso a expulsão de detritos Ele e ele. Ambos
navegando um barco cujo destino era um porto de sujeira. (SILVA, 2006, p. 76)
Nesse contexto, o “caráter” espacial parece determinar a relação homoerótica que ali se desenvolve. O ambiente caracterizado como sujo e vazio permite
a interpretação de que a relação entre ambos receba esse mesmo atributo negativo,
160
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
“um porto de sujeira”. Após a relação sexual, o estado da sala também é descrito
negativamente pelo narrador: “No chão, uma porção de bosta misturada a sangue
e sêmen. O cheiro de merda já impregnava o ar daquele ambiente [...]” (SILVA,
2006, p. 79). Em seguida, o homem e o menino são flagrados pelo pai do último;
o primeiro foge, deixando pai e filho em uma situação embaraçada. Esta última
descrição é semelhante a de O segredo de Brokeback Mountain (2006) e a de
“Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu (1985). Quanto ao primeiro texto, a
cena reporta-se ao momento em que é narrado o estado do quarto de motel, após o
reencontro amoroso dos dois vaqueiros: “O quarto fedia a sêmen, fumaça, suor e
uísque [...]” (PROULX, 2006, p. 30).
No que respeita ao segundo texto, remete ao primeiro contato de Hermes
com o Sargento Garcia, momento que, plasticamente, é saturado de sensações que
o remetem a elementos significativos da relação homossexual (bosta, suor) e à
relação simbólica de poder exercida entre eles (cavalo). O ambiente em que
ocorrem as sensações descritas é também “fechado”, embora não tão singular
quanto o quarto e outros ambientes similares. O cenário militar, neste caso, remete
ao espaço homossocial, discutido por Sedgwick (1998).
O espaço recluso também é descrito em “Esquema N”. Dotado de
anacolutos, o texto conta de um rapaz que ao chegar a um bar é ligeiramente
conduzido pelo balconista, por força do desejo, ao banheiro do estabelecimento,
um ambiente sujo:
[...] bem lá dentro havia um banheiro imundo o vaso sanitário estava saturado de
merda esborrotava naquela catinga imunda de muitos cus cagões que por ali tinham
cagado o mijo dos bêbados corria solto pelo chão já manchado de cálcio petrificado
sal e branco sob o líquido amarelecido e podre que escorria dos poços de urinas que
se acumulavam ali [...] (SILVA, 2006, p. 94-95).
Naquele lugar, o eu-narrador envolve-se em desejos com o homem, que é
tão sujo quanto o ambiente que parece denegrir a personagem, mas ao mesmo
tempo “contribuía para tudo dar certo” (SILVA, 2006, p. 95). A relação se dá
entre a dicotomia sexo/amor, sujo/limpo. Os elementos paisagísticos parecem
realmente afirmar que, além de caracterizar aquele encontro como proibido e
secreto, também o adjetiva como sujo, assim como o ambiente no qual ele ocorre,
engendrando um discurso preconceituoso, bastante visível no cotidiano de
sociedades ainda remanescentes dos ideais heterossexuais e machistas como a
brasileira: o de que a relação gay é “suja”, porque pecaminosa ou antinatural.
De todas as histórias, é em “...Crime perfeito não deixa suspeito” que o
espaço adquire projeção mais relevante, não servindo apenas para situar o
exercício do sexo entre as personagens, mas também para caracterizá-las. Cidinho,
protagonista do conto, é apresentado a partir da interferência de elementos
paisagísticos da sua casa:
Cidinho era Euclides Carneiro de Arruda, 25 anos, filho de pais desconhecidos.
Sobrevivente da Liberdade, rua Paraná, s/n. Sua casa não era casa: uns muros
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
161
somente erguidos porque o resto fora derrubado com fortes chuvas em invernos
anteriores. Uns cacos ficaram como que abandonados. Também como que
soterrado, Cidinho ali habita. (SILVA, 2006, p. 41)
A partir desse fragmento, notamos o quanto a configuração espacial
interfere na caracterização da personagem. O estado de sua casa que “não era
casa”, apresentada como abandonada, destruída, nos permite entender que
também Cidinho, “o veado mais escroto do bairro” (p. 42), é tão abandonado e
decadente quanto o estado de sua residência, onde “como que soterrado” ele
habita. O narrador-personagem vigia Cidinho através de uma fenda no muro “que
dava acesso a todo o visual de onde ele dormia” (SILVA, 2006, p. 43). Então,
somos levados ao interior do lar de Cidinho para “assistir” ao envolvimento físico
dele com a personagem Zenóbio, estereótipo do machão, “o que mais batia em
veado, o que mais era cachorro, o que mais tinha força”, e agora “se entregava aos
prazeres com a classe que mais detestava na vida, a dos veados.” (SILVA, 2006,
p. 44 [grifo nosso]). Na casa, “por sobre ruínas, lodo, concretos como que
exumados, dois rapazes pareciam conhecer segredos que nunca ouvira antes
falar.” (SILVA 2006, p. 44), Cidinho, Zenóbio e, posteriormente, o eu-narrador
dão vazão aos seus impulsos libidinais, fazendo o leitor ficar, como diz Ribeiro
Neto (2006) em prefácio à obra, “com a carne em pé” diante da montagem
narrativa do sexo entre as três personagens.
Situar onde ocorrem os momentos de desejos entre as personagens é a
principal função do espaço nos curtos contos desse autor. São espaços fechados e
escondidos dos olhares repressores da ordem vigente; ambientes que mostram o
íntimo das personagens, onde os medos, desejos e angústias do homem, sobretudo
os de orientação homoafetiva, são exibidos. A caracterização dos espaços
saturados de elementos paisagísticos indicadores de valor negativo ou menor –
sujos, escuros e cheios de excrementos – parecem transpor o significado destes
para as relações desenvolvidas entre as personagens, sutilmente denegrindo-as,
rotulando-as como transgressoras, sujas e que, portanto, devem se manter
escondidas, não vindo à luz para que a mancha que macula a orientação sexual
que seguem não seja vista e, assim, possa ser mantido limpo o discurso em favor
da heteronormatividade.
Conclusão
Após a discussão a respeito das configurações paisagísticas nas obras em
questão – para assim exemplificar o assunto na literatura de expressão
homoerótica de uma maneira geral, se faz pertinente tecer algumas considerações
finais no que tange a essa poética do espaço, no dizer bachelardiano.
Em trabalho anterior (SILVA, 2007b) discutimos a emergência da literatura
gay enquanto gênero literário. Sem querer adentrar exaustivamente nos aspectos
relevantes ou não desta classificação a que fizemos referência, chamamos a
atenção para o fato de que a expressão literatura gay, como a empregamos
162
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
(SILVA, 2007a e 2007b), pode ser interpretada a partir da autoria – a literatura
feita por escritores gays – e da formulação interna, isto é, do conteúdo da obra.
Descartando a primeira hipótese de interpretação – hipótese com a qual
trabalhamos em todo este trabalho –, foi sobre os aspectos estéticos vinculados às
temáticas do universo gay, mais precisamente a categoria estético-literária do
espaço ficcional, que orientamos nosso estudo.
Como constatamos, os ambientes configurados nos permitem inferir que as
relações homoeróticas das personagens acontecem às escondidas, em espaços
reclusos, que, por vezes, caracterizados banalmente, transferem seus sentidos para
as relações gays dos sujeitos ficcionais, sutilmente definindo-as como
transgressoras, sujas, proibidas, e que, portanto, devem acontecer secretamente,
longe dos olhares da “normalidade” sexual; quando não são fechados, como é o
caso de O segredo de Brokeback Mountain, refletem o intuito das personagens em
se distanciarem, de se moverem para lugares isolados, onde possam adquirir
liberdade de manifestar o desejo homoafetivo, fora da repressão social vigente,
numa falsa ou aparente independência de viver “o amor que não ousa dizer o
nome”.
Essa mesma relação de “espaço recluso” aparece em obras que não foram
tomadas, aqui, como corpo de análise. Em Na ausência dos homens (2007),
Philippe Besson constrói uma fábula em torno de um triângulo amoroso
envolvendo o escritor Marcel Proust, o soldado Arthur Valès e o “epicentro”
fabular: Vincent de L’Étoile, jovem de apenas 16 anos que vive uma relação com
o escritor de 46 anos e o soldado de 20 anos. Quando em público com Proust, os
contatos entre eles são quase anulados, pois a sociedade da época representada
não assimila o desejo gay nas esferas públicas. Tanto com o escritor quanto com o
soldado, o jovem se realiza afetiva e sexualmente nos ambientes fechados,
escondidos, onde não há a presença de pessoas que possam “denegrir” a imagem
deles por causa do contato físico, da identificação com um comportamento “fora
das normas vigentes”.
Em Stella Manhattan (2000), romance gay de Silviano Santiago, a
personagem Viúva Negra usa o nome de Eduardo para alugar um “ambiente”
propício aos encontros sadomasoquistas de que é adepto: um pequeno e sujo
apartamento num bairro de negros e porto-riquenhos em Nova Iorque. A descrição
do ambiente se centra na imagem já aludida nos textos aqui discutidos: paredes,
chão, os vãos, tudo que se refere a este espaço recebe uma carga semântica
negativa, porque sempre sujo. As personagens que nele se refestelam adquirem a
mesma conotação. Percebamos que, nessa narrativa em particular, a fantasia ou
perversão (na perspectiva freudiana) sadomasoquista da personagem já a confina
num modelo estereotipado de gay “vulgar”, de “bicha louca”, conforme palavras
do próprio narrador da obra.
A configuração do espaço na literatura gay, a partir das obras aqui
discutidas, revelou que as relações homoafetivas são representadas, de maneira
mais recorrente, em espaços fechados ou que possam esconder o desejo gay. Da
mesma forma que havíamos apontado a temática, nestas obras, como marca para a
compreensão de um gênero literário novo (SILVA, 2007b), o espaço como
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536
163
categoria estético-literária aparece de forma semelhante nos mesmos textos, seja
nas descrições, seja no significado que o marcador denota, convergindo para as
considerações do autor, que a literatura gay pode constituir um gênero literário,
considerando-se os valores estético-poéticos de cada texto estudado.
Acreditamos que o breve estudo deste ensaio amplia a discussão da
representação dos sujeitos de orientação homoafetiva na literatura em seus
espaços de movência, apesar de superficialmente percebermos uma construção
“limpa” e sem estereótipos negativos desses sujeitos nas obras estudadas. Ao
voltarmos nossa percepção, em especial para o marcador espaço, notamos que os
locais onde as relações sexuais acontecem muito as caracterizam negativamente,
refletindo, assim, no plano da cultura, a repressão e o tabu de que o desejo gay é
transgressor e deve permanecer recluso. O espaço ficcional, então, na chamada
literatura gay, parece fechar campos de interpretação para os personagens que
habitam as ficções aqui discutidas, corroborando a prática “abusiva” e
“discriminatória” de que o gay pode ser uma espécie de projeção do ambiente por
onde circula.
REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.
BACHELARD, Gaston. A gaveta, os cofres e os armários. In: A poética do espaço.
Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 87-101.
BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo em questão. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2006. (Coleção Em Questão)
BESSON, Philippe. Na ausência dos homens. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo: Martin Claret, 2002.
CANEPPELLE, Ismael. Música para quando as luzes se apagam. São Paulo: Jaboticaba,
2007.
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. (Princípios).
FOUCAULT, Michel. O que é um autor. 3. ed. Lisboa: Veja Passagens, 1992.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006.
(Princípios)
MOISÉS, Massaud. A análise literária. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1981.
PROULX, Annie. O segredo de Brokeback Mountain. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006.
RANZATTI, André. Amores no masculino. São Paulo: Editora do Autor, 2006.
SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SANTOS, Luiz Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e espaço
ficcionais: Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Texto e
Linguagem)
RIBEIRO NETO, Amador. Um livro e sua linguagem. Textos de desejos. In: SILVA,
Antonio de Pádua Dias da. Sobre rapazes e homens. Campina Grande: EDUEP, 2006. p.
7-13.
SCHÜLER, Donaldo. Espaço. In: Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989. p. 60-72.
164
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536
SEDGWICK, Eve Kosofsky. In-Between Men. In: KIKVIN, J. e RYAN, M. (Orgs.).
Theory of Literature: an Anthology. Oxford: Blackwell, 1998.p.734-752.
SERAFIM, Rafael Luz. Outros sabores – poesias. Salvador, [s.e], 2005.
SILVA, Antonio de Pádua Dias da. Sobre rapazes e homens. Campina Grande: EDUEP,
2006.
______. Considerações sobre uma literatura gay. In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da;
ALMEIDA, Maria de Lourdes Leandro; ARANHA, Simone Dália Gusmão (Orgs.).
Literatura e Lingüística – teoria, análise e prática. João Pessoa: Editora Universitária/
EDUFPB, 2007a, p. 29-40.
. Literatura de expressão gay: um novo gênero ficcional ou abertura para um
velho tema? In: I Colóquio Internacional Cidadania Cultural: diversidade cultural,
linguagens e identidades. Anais. Recife: Elógica Editora, 2007b, p. 113-126.
SOARES, Angélica. Gêneros Literários. 3 ed. São Paulo: Ática, 1993. (Princípios)
SOUZA, Adriana Braz de. Um conto, tu escreves. Tu escreves que eu conto: subversão
de gênero em Sobre rapazes e homens. In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da (Org).
Gênero em questão: ensaios de literatura e outros discursos. Campina Grande: EDUEP,
2007. p. 389-401.
Recebido em fevereiro e aceito para publicação em agosto de 2008.