apontamentos sobre o espaço físico e o desejo gay em narrativas
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apontamentos sobre o espaço físico e o desejo gay em narrativas
Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 149 APONTAMENTOS SOBRE O ESPAÇO FÍSICO E O DESEJO GAY EM NARRATIVAS DE TEMÁTICA HOMOERÓTICA Antonio de Pádua Dias da Silva1 Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes2 RESUMO O objetivo deste artigo é discutir o significado que o espaço físico adquire na literatura gay e, em conseqüência, transfere a carga valorativa assumida para as personagens da fábula, quando estas são vistas em suas relações afetivo-amorosas. Parte-se da idéia de que a noção de espaço redimensiona a significação do comportamento e das “identidades homossexuais”, vinculando às relações dos sujeitos um caráter depreciativo, menor e sujo. Enfatizam-se os lugares fechados onde o amor gay pode ser paradoxalmente vivido sem o estigma discriminatório (porque liberto da vigilância), ao mesmo tempo em que só é possível nos ambientes fora do convívio social. Palavras-chave: Literatura Gay; Espaço Físico; Negação do Desejo. RÉSUMÉ Cet essai est une analyse de la relation entre l’espace physique et l’identité gay. On concentre la recherche sur la discussion culturelle que interpret la condition gay comme moins, négatif. L’espace physique, ainsi, projette des aspects negatives dans personage gay et attribute à elles un caractère très inférieur. On donne emphase aux places fermés où l’amour gay est vivant sans discrimination. Mots-clé: Literature Gai; Espace Physique; Negation du Desire. Introdução A literatura homoerótica tem se revelado importante fonte de conhecimento sobre e reflexão do desejo gay,3 uma vez que, lida sob o viés da “confissão” projetada nas páginas da ficção, muito diz daquilo que o leitor procura na escrita de si ou da escrita do eu:4 estatutos de verdade ficcionalizados, capazes de 1 Doutor em Letras pela Universidade Federal de Alagoas. Professor do Mestrado em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba. 2 Bolsista do PIBIC da Universidade Estadual da Paraíba. 3 A noção de desejo gay é aqui discutida conforme pensa Sedgwick (1998): um modo de vida, uma subcultura, uma maneira de se fazer existir, contrastando com a noção de comportamento. Desejo implica aspectos psíquicos categorizados em estrutura; comportamento, apenas interferência temporal ou outra qualquer intervenção. 4 Escrita de si ou escrita do eu parte da noção foucaultiana de que as narrativas em primeira pessoa, na contemporaneidade, são fortes argumentos e instrumentos de emersão de uma nova identidade autoral: a do escritor que parece confessar seu cotidiano, seus desejos e angústias na escrita vazada de subjetividade porque não muito bem demarcada 150 Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536 subverter o caráter estético que distanciava o escritor do texto, tornando este envolto por uma aura em que cotidiano e desejos não eram possíveis de serem impressos nas experiências das personagens. Quando estas “vivências” surgiam, eram apenas invenção, assim como as personagens de ficção. Um dos elementos “internos” da narrativa que nos chama a atenção, a priori, é o espaço físico, bastante lido na tendência naturalista e aqui recuperado sem o sentido “determinista” dado a ele naquele momento estético. O estudo do espaço na literatura, de uma maneira geral, revela que diversos aspectos que permeiam as personagens podem ser interpretados a partir deste marcador. Na concepção de Dimas (1987), torna-se importante elemento textual, porque pode definir, em muitas obras ou em gêneros específicos, importantes caracterizações para o leitor preocupado em encontrar na órbita espacial algo que ilumine sua interpretação. Isso se torna relevante à medida que o aspecto espacial só adquire sentido, segundo nossa leitura, se vinculado ao “estatuto” das personagens. Problematizar os sujeitos ficcionais, neste caso, é perceber onde eles estão situados. Relacionar assim o ser ao seu estar, de modo que, descobrir onde se passa uma ação, no plano da enunciação ficcional, e quais as eventuais funções deste espaço no desenvolvimento do enredo (e na interferência psíquica da personagem), torna-se relevante à leitura da literatura de ficção. O objetivo deste ensaio é descrever, basicamente a partir da leitura de narrativas homoeróticas, a construção do espaço ficcional e a sua relação semântica para a caracterização da “identidade” da personagem gay nessa literatura. Admite-se que esse marcador literário constitui importante elemento da narrativa de ficção por favorecer as relações entre os sujeitos gays, representados na fábula das obras, marcadas por aspectos de aceitação, tolerância e homofobia, ora respaldando as relações gays, ora tornando-as improdutivas, negadas e “sujas” do ponto de vista cultural. A relação entre a construção do espaço ficcional e a temática homoerótica na literatura constitui a problemática central deste ensaio. A literatura homoerótica (SILVA, 2007a, 2007b; BARCELLOS, 2006) – aquela em que se lê, no plano geral da obra, a temática, a vivência e os desejos gays – será o ponto de partida dessa reflexão para observarmos em que aspectos os espaços nela construídos contribuem para interferir na condição homoafetiva das personagens e suas relações com as demais personagens. Como acreditamos que esse marcador espacial tem um sentido próprio na literatura homoerótica, defendemos a idéia dessa literatura poder caracterizar assim, dentre outros tantos elementos, um gênero literário específico como já foi proposto (SILVA, 2007b). Trabalhamos com a hipótese de que, sendo a relação homoerótica concebida como transgressora pelo discurso dominante (falocêntrico e de base heterossexual), e sendo esta relação abordada de maneira central na literatura gay, os do ponto de vista técnico. A verdade é um dos critérios pelo qual o leitor irá “julgar” a obra que lê, fato que se distancia da forte tendência acadêmica de ler o texto de ficção sem a intervenção do autor. Vale salientar que a escrita de si não se iguala ao biografismo tão pertinente no século XIX. Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 151 elementos espaciais refletem esse “desvio”, configurado em ambientes fechados, isolados e com tendências a esconder as relações desviantes das personagens envolvidas. Do ponto de vista cultural, supomos que os espaços pelos quais deslizam as personagens reflitam os desejos e a vivência dos sujeitos homoeróticos, de acordo com a época a que cada obra se refere. Dessa maneira, a reflexão sobre espaço e literatura é discutida a partir de críticos da literatura como Dimas (1987), Moisés (1981), Schüler (1989), Soares (1993), Santos & Oliveira (2001) e Gancho (2006), no intuito de definir o espaço ficcional e quais suas possíveis funções em um texto literário. Primeiramente, apresentamos um breve panorama teórico da noção de espaço e as variações semânticas vinculadas a ela, precisando assim a definição adotada neste trabalho. Em seguida, discutimos os aspectos que adquire o espaço físico na literatura homoerótica, aqui tomada como corpus de análise: BomCrioulo (2002), de Adolfo Caminha; O segredo de Brokeback Mountain (2006), de Annie Proulx; Sobre rapazes e homens (2006), de Antonio de Pádua Dias da Silva. O recorte de gênero recaiu apenas sobre narrativas, sejam elas romances ou contos. Apenas uma obra de poemas – Outros sabores (2005, de Rafael Luz Serafim, foi aqui abordada quanto à relação espaço físico e identidade gay). Discutindo o espaço na narrativa Espaço (físico, social, psicológico), ambiente e ambientação são termos utilizados pelos estudiosos da literatura para se referirem aos locais ficcionais, sobretudo nas narrativas, uma vez que, do ponto de vista da teoria da literatura, dificilmente o texto poético (exceção feita ao gênero épico e aos poemas narrados) traduz em seu interior uma preocupação com a espacialização física. Antonio Dimas (1987), em obra que trata especificamente dessa temática no romance, faz referência ao espaço e à ambientação distintamente. Ao discutir esse elemento a partir de estudo de Lins (1976 citado por Dimas, 1987), afirma o autor que esse marcador narrativo é descrito como fazendo referência a dados da realidade; quando utiliza o termo ambientação/ambiente faz menção aos significados simbólicos que podem ser estabelecidos a partir dos filtros de cada texto. Concordando com esse crítico, Gancho (2006, p. 27) afirma que “O termo espaço, de um modo geral, só dá conta do lugar físico onde ocorrem os fatos da história; para designar um ‘lugar’ psicológico, social, econômico etc., empregamos o termo ambiente”. Os demais autores consultados não fazem distinção entre espaço e ambiente, pois os tomam como sinônimos. Santos & Oliveira (2001), por exemplo, abordam o conceito de espaço a partir da perspectiva determinista (que concebe apenas os componentes físicos) e psicológico-social (no qual os espaços são referentes aos lugares sociais representados e/ou à configuração de cenários íntimos das mentes das personagens), embora aconselhem não reduzir o espaço a essas duas perspectivas (uma, determinista; a outra, psicológica e social), que, por vezes, funcionam como camisas-de-força, inflexibilizando, portanto, um maior aprovei- 152 Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536 tamento do termo, uma vez que ambas as perspectivas podem estar imbricadas ou até mesmo configurar como inseparáveis (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 81). Assim, na esteira de Soares (1993), adotamos como definição de espaço ficcional o conjunto de elementos paisagísticos em um texto literário, quer se apresente exterior e físico ou interior e psicológico, onde são situadas as ações das personagens. Aqui, o conceito é entendido de maneira generalizada e, partindo de uma percepção do espaço físico mediada por valores, projetamos significados por meio de impressões culturais no intuito de, assim, tentar inferir em que medidas os cenários guardam tocaias5 na construção das obras de temática homoerótica, estudadas neste ensaio. As funções desse elemento, de maneira geral, para os críticos a que fazemos referência, são situar as personagens no tempo, no espaço, no grupo social; ser a projeção dos conflitos vividos pelos sujeitos ficcionais ou estar em conflito com os mesmos; bem como fornecer indícios para o andamento do enredo, principalmente em narrativas policiais (GANCHO 2006, p. 29). Todavia, Dimas (1987) adverte que toda tipologia literária deve ser vista numa perspectiva relativizada, uma vez que podemos encontrar várias modalidades de apresentação espacial, às vezes dispersas ao longo das páginas, às vezes de modo contíguo, quando não mesclado, cabendo a nós leitores detectá-las e avaliá-las em sua funcionalidade (DIMAS 1987, p. 32). Sabemos que a geografia literária é discutida com relevância nas narrativas. Na poesia não há, a rigor, a preocupação analítica com esse marcador “típico” da prosa, salvo quando este aparece como “a natureza”, e na poesia épica, segundo Moisés (1981, p. 44-45). Esse mesmo crítico ainda afirma que “A poesia não remete para lugar algum, nem se situa em espaço algum: é a-geográfica” (1981, p. 44) Todavia, no que tange à questão de limites de análise do texto literário em prosa e poesia, concordamos com a afirmação de Santos & Oliveira (2001), que amplia e flexibiliza as possibilidades da interpretação: No texto literário, tanto em formas poéticas quanto em formas narrativas, é possível simular simultaneidade onde normalmente se encontra sucessão, propor a coordenação de elementos a princípio subordinados, instigar derivas nos caminhos já traçados, incerteza onde há normas a serem respeitadas, liberdade de olhar quando o olhar tende a ser aprisionado. (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 77-78). Apropriamo-nos desta fala porque, em muitos poemas contemporâneos, e de temática homoerótica, a exemplo da obra Outros sabores, de Rafael Luz Serafim (2005), há menções diretas a espaços que servem de pano de fundo aos desejos do sujeito poético. Seja uma padaria, um shopping center ou o interior de um ônibus, alguns poemas remetem o leitor a espaços físicos, o que nos fez observar os cenários descritos nestes poemas, ainda que contrariem regras clássicas de estudos de análise literária, que resistem a tratar os ambientes representados no poema. 5 Termo utilizado por Dimas (1987) para designar o que ele também chama de “armadilhas virtuais de um texto”. Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 153 Não é nosso objetivo discutir a noção de espaço físico na poesia, mas não podíamos deixar de nos posicionar quanto ao que entendemos sobre esse elemento “narrativo”, porque há um momento em que trazemos à tona “cenas instaladas” em espaços ou ambientes que definem com bastante precisão a identidade da personagem envolvida no momento. Dito isto, fica evidente que a noção de espaço aqui adotada é bastante ampla, de forma que contempla as representações deste marcador em quaisquer gêneros literários. Vejamos, então, como são construídas as noções de espaço na literatura gay. Homoerotismo em Bom-crioulo A narrativa Bom-Crioulo (2002) de Adolfo Caminha, publicada em 1895 e inscrita na história da literatura como naturalista, é considerada o primeiro romance de tema exclusivamente homoerótico da literatura brasileira (sem querer relegar a discussão de outras questões ou motivos presentes na obra como a representação do negro numa sociedade ainda preconceituosa). Nessa obra, o homoerotismo masculino é o motivo através do qual se estrutura a história. O negro Amaro (vulgo Bom-Crioulo, p. 52) e o grumete Aleixo, protagonistas da narrativa (não esquecemos que D. Carolina constitui o terceiro elemento protagonista), vestem os uniformes da marinha nacional e ocupam, sobretudo, dois espaços marcantes na obra: a corveta – cenário cuja descrição abre o romance e onde se inicia a paixão de Amaro por Aleixo, e subseqüente relacionamento – e o quarto da Rua da Misericórdia – lugar onde se desenvolve a relação desses dois marujos, apontando para diferentes aspectos semânticos, de acordo com a evolução do enredo. A corveta, “a velha e gloriosa corveta” (p. 13), como assim a descreve o narrador, é o cenário central onde se passa a fábula. Conhecemos as personagens nesse espaço. Amaro – escravo fugido que encontrou sua liberdade ao servir a Marinha – permanece na embarcação e passa a associar esse lugar de destaque à sua liberdade, lembrando-se sempre dele, atribuindo-lhe boas referências. A vida em alto mar, a chegada de Aleixo e a paixão avassaladora que desperta em Amaro constituem relatos ocorridos nesse espaço, que funciona para Bom-Crioulo como o cenário que implica ou denota mudança de vida, um lugar de recomeço. É importante ressaltar que, apesar de a influência do meio sobre os indivíduos ser uma característica marcante do romance realista-naturalista, na obra de Caminha o homoerotismo de Amaro não é colocado pelo narrador heterodiegético como fruto de uma influência do ambiente em que a personagem vive. Embora se mencione a prática de relações sexuais entre marujos (e até entre os de patente superior), a identidade de Amaro não é atravessada por essas práticas, sendo sua condição homoafetiva apresentada enquanto “força da natureza”, pois “Não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a natureza impunha-lhe esse castigo”. (CAMINHA, 2002, p. 46), limitando a causa do seu desejo homoerótico ao fator instintual – não podemos deixar de lado o fator raça que contribui para a leitura cultural sobre Amaro. Assim, o narrador 154 Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536 paradoxalmente desloca a identidade gay dessa personagem da influência do meio, atribuindo-lhe um caráter “essencialista”. A relação de Amaro e Aleixo se consuma com o primeiro contato sexual dos marujos, no convés da corveta, em uma área coberta do navio, onde dormiam e se refugiavam do frio: um lugar escuro, escondido, que abrigou o “delito contra a natureza”, fato importante para ambas as personagens: “Onde quer que estivessem haviam de lembrar daquela noite fria dormida sob o mesmo lençol na proa da corveta, abraçados, como um casal de noivos em plena luxúria da primeira coabitação”. (CAMINHA, 2002, p. 46) Antes desse momento, já fazia parte dos planos de Bom-Crioulo alugar, quando aportassem no Rio de Janeiro, um quarto na Rua da Misericórdia para morarem juntos. Quando chegam a terra, recorrem à portuguesa D. Carolina, amiga antiga de Amaro, que alugava quartos na citada rua e que arranja um “quartinho” a pedido do amigo: O quarto era independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico. [...] Todo o dinheiro que apanhava era para compra de móveis e objetos de fantasia rococó, “figuras”, enfeites, coisas sem valor, muita vez trazidas de bordo... Pouco a pouco o pequeno cômodo foi adquirindo uma feição nova de bazar hebreu, enchendo-se de bugigangas, amontoando-se caixas vazias, búzios grosseiros e outros acessórios ornamentais. O leito era uma “cama de vento” já muito usada, sobre a qual Bom-Crioulo tinha zelo de estender, pela manhã, quando se levantava, um grosso cobertor encarnado “para ocultar nódoas”. (CAMINHA, 2002, p. 54) No trecho acima, percebemos o cuidado da personagem Amaro para com o cômodo que se tornou um “ninho de amor” entre ele e Aleixo, ninho cuja caracterização é bastante sugestiva: conforme é comparado a um “sótão roído pelo cupim” e ornamentado com “objetos de fantasia rococó”, “coisas sem valor”, “caixas vazias”, os elementos que compõe essa geografia ajudam a inferir que o ambiente é tão sem propósito quanto a relação das personagens. A configuração imagética desse ambiente parece confinar a relação à esquisitice, ao pouco valor, àquilo que é somente “ornamental” e provisório, assim como são filtrados os objetos do quarto que abrigava o casal gay. Em terra, no quarto da Misericórdia, nem se falava! – ouro sobre azul. Ficavam em ceroulas, ele e o negro, espojavam-se à vontade na velha cama de lona, muito fresca pelo calor, a garrafa de aguardente ali perto, sozinhos, numa independência absoluta, rindo e conversando à larga, sem que ninguém os fosse perturbar – volta na chave por via das dúvidas... (CAMINHA, 2002, p. 55) A referência ao espaço do quarto, que não por acaso é alocado na Rua da Misericórdia e, por conseguinte, chamado pelo narrador de “quarto da Misericórdia”, é marcada de significados, como o próprio termo traz em sua base semântica: de clemência, porque é o quarto da com-paixão, onde ali, e somente ali, os desejos de Bom-Crioulo eram atendidos, pois podia desfrutar da beleza do Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 155 jovem Aleixo, senti-lo como sempre o quis; ali eles estavam livres da repressão, independentes assim como “o quarto era independente” (p. 54). “Eles viviam um para o outro” (p. 59), fato que cronologicamente durou quase um ano, restando daquele lugar a lembrança de um cenário de amor, um lugar secreto onde a realização do desejo gay era possível. Conforme o romance se desenvolve, e novas tramas invadem o fato narrado, Bom-Crioulo é obrigado a deixar a corveta para servir em outro navio, o couraçado. Aleixo, já entediado do negro, parece não sofrer com a separação, e acaba se envolvendo com D. Carolina, que o “mimara” na pretensão de conquistálo. Em suas vindas à terra, Aleixo não encontrava mais Amaro (que estava preso), e o quarto da Rua da Misericórdia (antes, um ninho de amor) agora configura um cenário repugnante e de más lembranças para o jovem marujo: Como tudo mudara naquela casa depois que o negro saíra! O sótão, o misterioso sótãozinho estava abandonado, Aleixo não queria saber dele, odiava-o, porque ali é que se tinha feito escravo de Bom-Crioulo, ali é que tinha “perdido a vergonha”. O pobre quarto era como um lugar de maldições: vivia trancado à chave, lúgubre e poeirento. [...] o retrato do imperador, a cama de lona, os cacaréus, de Bom-Crioulo e do grumete, aquilo tudo que dantes fazia o encanto dos dois amigos tinha desaparecido. Nada restava agora daquele viver comum. (CAMINHA, 2002, p. 95) Dessa forma, percebemos a corveta e o quarto da Misericórdia: espaços marcantes dessa narrativa de Adolfo Caminha. Os cenários se sobressaem de tal forma que determinam como a relação dos protagonistas deve se manter às escondidas nesses ambientes fechados e reservados, sobretudo o quarto da Misericórdia, com sua aura de mistério e trancado à chave, ambiente que podia acolher secretamente os desejos homoafetivos das personagens. Em Amores no masculino (2006), de André Ranzatti, em uma das primeiras cenas onde acontece o contato físico entre Bruno e Fernando, lemos que, depois de saírem de um ambiente público – um restaurante – dirigiram-se à garagem do mesmo, que “era escura e não havia nenhum manobrista [...] Em menos de dois segundos estávamos nos beijando” (p. 19). É nesse clima de “esconderijo” que as relações afetivo-amorosas das personagens gays acontecem, não porque o espaço privado seja o único adequado, no contexto ocidental, para o exercício do sexo e das sexualidades, mas porque, em se tratando da experiência gay, os “faróis” da vigilância social não podem alcançar os “suspeitos”. Daí não bastar o espaço privado – o quarto, o banheiro, por exemplo. A rotina a dois dos “namorados” acontece longe dos olhares, dos sussurros, dos prédios ou casas em que habitam pessoas não gays. Numa mesma perspectiva do que estamos defendendo, encontramos em Música para quando as luzes se apagam (2007), de Ismael Caneppelle, a experiência do amor gay num espaço (uma rua qualquer) vinculado a um tempo (madrugada), quando o silêncio é o momento de se sentir só e as pessoas não podem “ser incomodadas” com os relacionamentos gays, uma vez que dormem e, simbolicamente, estão anestesiadas para as questões que envolvem os menores 156 Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536 socioculturais. Assim, a personagem-narrador, em torno de quem todas as outras personagens orbitam, vive suas experiências em ambientes onde ele e os amigos consomem maconha, ingerem bastante bebida alcoólica e estão envolvidos em relações sexuais de várias naturezas: “Sentamos na praça da Univates e ficamos conversando e fumando [...] Não tinha ninguém na rua àquela hora da madrugada e, mesmo se tivesse, era tanta neblina que só chegando muito perto para enxergar a gente” (p. 33). Embora nem a relação sexual nem o uso de drogas tenha acontecido neste encontro, altas horas da madrugada e numa rua isolada pelos habitantes que dormiam e pela neblina que ajudava o encontro furtivo dos dois, a experiência gay aproxima-se de uma relação mais “profunda”, propiciada pelo espaço/tempo, pois “quando ele ficou sozinho comigo, não veio com esses papos de sexo como a maioria dos meninos fazem. Falou coisas mais profundas. Coisas que não se conversam normalmente” (p. 33). Por esse ângulo, então, a experiência das personagens foi positiva, mesmo em um espaço e num horário que denunciam a exclusão dos diferentes sexuais, obrigados que são a viverem seus afetos “distantes” dos que habitam o corpo social e em espaços propícios às “relações efêmeras” ou sem sentido: cubículos sujos, lugares escondidos que jamais prenunciariam uma base que solidificaria a relação gay. A ambientação “pesada”, “carregada”, movida ao uso de bebida alcoólica, ao uso de maconha ou outros entorpecentes, ambientes escuros, sujos e preenchidos por pessoas de “índole” suspeita, vem constituir espaços de vivência da experiência gay em Morangos mofados (1985), de Caio Fernando Abreu. Essa ambientação pode ser visualizada em contos como “O dia que Urano entrou em Escorpião (velha história colorida)”, “Pela passagem de um grande amor”, “Além do ponto”, “Terça-feira gorda” e outras da mesma obra. A geografia natural de Brokeback Mountain Já O segredo de Brokeback Mountain (2006), de Annie Proulx, deixa entrever no título o espaço que dá vida ao amor dos “vaqueiros” Ennis del Mar e Jack Twist: a montanha Brokeback. No conto norte-americano, o narrador menciona diversos lugares do oeste dos Estados Unidos, a procedência das personagens, por onde eles passam, marcando cronologicamente o tempo. Foi em 1963 que os protagonistas se conheceram, tiveram que cuidar de um rebanho de ovelhas cujo pasto de verão ficava na montanha Brokeback (PROULX, 2006, p. 8). Eles exerciam funções diferentes: um cuidava das ovelhas, o outro, da comida em um acampamento. Numa noite, motivados pelo abuso de bebida alcoólica, impelidos pela solidão e condicionados por uma forte atração até então “desconhecida” deles, dormem juntos, ocorre o contato sexual, o primeiro de muitos que embalariam aquele verão num vasto local isolado. Como de fato foi. Eles nunca falavam sobre sexo, deixavam acontecer, a principio só na barraca à noite, depois em plena luz do dia com o sol batendo, e à noite no Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 157 clarão do fogo [...] Só havia os dois na montanha pairando no ar eufórico e amargo, olhando de cima o dorso da águia e os faróis rastejantes dos veículos na planície, suspensos acima dos assuntos corriqueiros e longe dos mansos cachorros de fazenda que latiam quando escurecia. Eles se achavam invisíveis [...] (PROULX, 2006, p. 20). Após deixarem a montanha, as personagens se separam, reencontrando-se quatro anos depois, para se manterem unidos, embora os encontros íntimos não acontecessem frequentemente, e, quando ocorriam, era em lugares isolados ou, como Ennis chegou a dizer, “num fim de mundo...” (p. 38), devido às circunstâncias socioculturais em que estavam inseridos e que os impediam de viver uma relação plena. Os espaços rurais e as belas paisagens dos lugares por onde Ennis e Jack passam em seus encontros, conforme são descritas, configuram o que Dimas (1987) e Moisés (1981) denominam locus amoenus, expressão latina utilizada para classificar paisagens naturais como esta: O rio cor de chá corria veloz com o degelo da neve, uma faixa de bolhas nas rochas altas, lagos e rodamoinhos fluindo. Os salgueiros de galhos ocre balançavam rígidos, os amentos carregados de pólen qual impressões digitais amarelas. Os cavalos beberam e Jack apeou, apanhou um pouco de água gelada com a mão, gotas cristalinas pingando dos dedos, um brilho molhado na boca e no queixo. (PROULX, 2006, p. 46) A configuração do espaço na obra de Annie Prouxl revela tão somente aquilo que o título traduzido remete, ou seja, um segredo. Os protagonistas refugiam-se em um paraíso natural, construído sob uma geografia composta por montanhas, campinas, bacias hidrográficas; e, apesar de serem espaços abertos, ao ar livre, os vaqueiros atravessavam esses cenários com o objetivo de esconder a relação homoerótica, de poderem viver o desejo sentido por eles, num lugar afastado de todos (por conta do medo, do preconceito, da discriminação). Além disso, a montanha Brokeback torna-se, especialmente, símbolo do amor entre os dois, o começo de tudo, o desejo de Jack que, ao morrer, pede para suas cinzas serem espalhadas lá; ela acompanha Ennis na eterna lembrança de um cartão postal, que este guarda como recordação do amor dedicado ao “amigo”. Os espaços urbanos de Outros sabores Dos poemas de Rafael Luz Serafim (2005), nove nos chamaram atenção porque fazem menção a espaços, sejam eles lugares reais como cidades e estados brasileiros (é o caso dos poemas “Reencontro na Cidade Baixa”, “Aprontes em Fortaleza” e “Onde estará meu amor?”) ou a determinados cenários como um shopping, um cinema, que funcionam como pontos de encontro do sujeito poético com outros com quem se relaciona (é o caso do poema “Crônica do Bate-Trapo”, que remete também ao espaço virtual do chat). 158 Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536 É preciso salientar que os espaços, nesses poemas, não são descritos, eles são apenas mencionados de modo a servirem de pano de fundo aos desejos expressos pelo sujeito poético. No poema “Padeiro safado”, quando lemos o primeiro verso, temos: “Nunca imaginei gostar tanto de uma padaria [...]” (p. 100); ou ainda na primeira estrofe do poema “Roça-roça no Buzão”: ônibus lotado é o que há quando passa aquele gatinho por detrás de você aquele aperto gostoso aquele calor no pescoço um roça-roça tudo de bom! (SERAFIM, 2005, p. 98) ou ainda na segunda estrofe do poema “No vestiário”: [...] no vestiário compartilhamos o mesmo armário mantemos contato físico intenso... às escondidas [...] (SERAFIM, 2005, p. 94) Esses trechos remetem a ambientes físicos que atravessam o desejo expresso nos poemas, porém, neste último, além da referência ao espaço do vestiário, há menção ao espaço psicológico, o armário, que pode significar a impossibilidade de o sujeito assumir a condição gay, como bem remete o texto de Bachelard (1988, p. 91): “o espaço interior do armário é um espaço de intimidade, um espaço que não se abre para qualquer um” (grifo nosso); então, no poema, a relação se dá secretamente, pois ambos os indivíduos estão presos ao armário, à nãoaceitação plena da orientação sexual que os determina culturalmente como sujeitos. A ambigüidade expressa pelo verso “compartilhamos o mesmo armário” nos permite assim interpretar que os sujeitos mantêm secretas suas identidades e relação. Esta imagem também é mencionada no poema “Saindo do armário”, no qual é expressa a insatisfação e o incômodo do eu-poético em não conseguir se libertar, se assumir, enfim, “sair do armário”: Quem são meus cicerones? Sinto-me um hóspede de mim mesmo Um estranho, em recluso Num claustro absurdo Cadeado no peito! Fecho-me a todos os tipos de emoções O que será que eu desejo? [...] Do cabide faço meu páreo Tenho que sair do armário! (SERAFIM, 2005, p. 57) Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 159 Outros sabores (2005), por questões de estilo do autor ou motivos que referendam a escrita do sujeito, aborda questões contemporâneas relativas aos sujeitos gays: reivindicações, desejos e comportamentos; portanto, a linguagem, os termos e os ambientes refletem a emergência de uma cultura, de uma vivência específica (a subcultura gay), com os dilemas, conquistas e desgraças dos indivíduos de sexualidade divergente da heteronormatividade ainda considerada “modelo”. Espaços que falam sobre rapazes e homens Sobre rapazes e homens (2006), de Antonio de Pádua Dias da Silva, é uma obra composta por catorze contos curtos que abordam, através da linguagem do corpo, do desejo e do erotismo, o que, nas palavras de Souza (2007, p. 390), “há de mais íntimo nas relações homoafetivas de corpos e identidades marcadas pela homoafetividade”. Sabemos que a circunstância espacial pouco conta em narrativas curtas como os contos desta obra, segundo Moisés (1981, p. 108); todavia, os cenários onde ocorrem, principalmente, as relações sexuais e os jogos de desejos, em alguns contos, revelam aspectos importantes à configuração do espaço na literatura gay. Superficialmente, a maioria dos contos nos remete a espaços, seja um quarto (em “Passional ao extremo”) seja a descida à margem de um rio, onde as personagens quase não podem ser vistas (em “Agente da passiva”), bem como a imagem de uma poça que serve de palco para a descrição de um estado depressivo (em “Esquema D”). Mas, em especial, três contos configuram cenários similares: ambientes fechados, escondidos. Estes ambientes são mais bem descritos, se comparados com as demais narrativas da obra, deixando sugestivamente pistas que são associadas ao espaço da vivência da relação homoerótica dos personagens, como discutiremos adiante. Em “Esquema F”, as personagens (um homem e um garoto) encontram-se num espaço fechado e escondido do olhar do pai do menino – o pai aqui representa a repressão, os valores morais que impedem o garoto de “travar-se” com seu objeto de desejo, o falo (SOUZA, 2007, p. 391). Diante desse temor, o homem se reveste do papel do pai e ordena que o “molequinho gostoso” (p. 74) o obedeça, “descendo sua boca ao pau dele” (p.74) e, assim, naquele ambiente, inicia o enlace de desejo de uma relação aparentemente pedófila: No espaço mais apertado daquela loja, no fundo, bem ao fundo, numa sala escura, um pouco vazia, um pouco suja, um pouco úmida. Numa sala no fim daquela loja, como vias de despejo, como acesso a expulsão de detritos Ele e ele. Ambos navegando um barco cujo destino era um porto de sujeira. (SILVA, 2006, p. 76) Nesse contexto, o “caráter” espacial parece determinar a relação homoerótica que ali se desenvolve. O ambiente caracterizado como sujo e vazio permite a interpretação de que a relação entre ambos receba esse mesmo atributo negativo, 160 Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536 “um porto de sujeira”. Após a relação sexual, o estado da sala também é descrito negativamente pelo narrador: “No chão, uma porção de bosta misturada a sangue e sêmen. O cheiro de merda já impregnava o ar daquele ambiente [...]” (SILVA, 2006, p. 79). Em seguida, o homem e o menino são flagrados pelo pai do último; o primeiro foge, deixando pai e filho em uma situação embaraçada. Esta última descrição é semelhante a de O segredo de Brokeback Mountain (2006) e a de “Sargento Garcia”, de Caio Fernando Abreu (1985). Quanto ao primeiro texto, a cena reporta-se ao momento em que é narrado o estado do quarto de motel, após o reencontro amoroso dos dois vaqueiros: “O quarto fedia a sêmen, fumaça, suor e uísque [...]” (PROULX, 2006, p. 30). No que respeita ao segundo texto, remete ao primeiro contato de Hermes com o Sargento Garcia, momento que, plasticamente, é saturado de sensações que o remetem a elementos significativos da relação homossexual (bosta, suor) e à relação simbólica de poder exercida entre eles (cavalo). O ambiente em que ocorrem as sensações descritas é também “fechado”, embora não tão singular quanto o quarto e outros ambientes similares. O cenário militar, neste caso, remete ao espaço homossocial, discutido por Sedgwick (1998). O espaço recluso também é descrito em “Esquema N”. Dotado de anacolutos, o texto conta de um rapaz que ao chegar a um bar é ligeiramente conduzido pelo balconista, por força do desejo, ao banheiro do estabelecimento, um ambiente sujo: [...] bem lá dentro havia um banheiro imundo o vaso sanitário estava saturado de merda esborrotava naquela catinga imunda de muitos cus cagões que por ali tinham cagado o mijo dos bêbados corria solto pelo chão já manchado de cálcio petrificado sal e branco sob o líquido amarelecido e podre que escorria dos poços de urinas que se acumulavam ali [...] (SILVA, 2006, p. 94-95). Naquele lugar, o eu-narrador envolve-se em desejos com o homem, que é tão sujo quanto o ambiente que parece denegrir a personagem, mas ao mesmo tempo “contribuía para tudo dar certo” (SILVA, 2006, p. 95). A relação se dá entre a dicotomia sexo/amor, sujo/limpo. Os elementos paisagísticos parecem realmente afirmar que, além de caracterizar aquele encontro como proibido e secreto, também o adjetiva como sujo, assim como o ambiente no qual ele ocorre, engendrando um discurso preconceituoso, bastante visível no cotidiano de sociedades ainda remanescentes dos ideais heterossexuais e machistas como a brasileira: o de que a relação gay é “suja”, porque pecaminosa ou antinatural. De todas as histórias, é em “...Crime perfeito não deixa suspeito” que o espaço adquire projeção mais relevante, não servindo apenas para situar o exercício do sexo entre as personagens, mas também para caracterizá-las. Cidinho, protagonista do conto, é apresentado a partir da interferência de elementos paisagísticos da sua casa: Cidinho era Euclides Carneiro de Arruda, 25 anos, filho de pais desconhecidos. Sobrevivente da Liberdade, rua Paraná, s/n. Sua casa não era casa: uns muros Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 161 somente erguidos porque o resto fora derrubado com fortes chuvas em invernos anteriores. Uns cacos ficaram como que abandonados. Também como que soterrado, Cidinho ali habita. (SILVA, 2006, p. 41) A partir desse fragmento, notamos o quanto a configuração espacial interfere na caracterização da personagem. O estado de sua casa que “não era casa”, apresentada como abandonada, destruída, nos permite entender que também Cidinho, “o veado mais escroto do bairro” (p. 42), é tão abandonado e decadente quanto o estado de sua residência, onde “como que soterrado” ele habita. O narrador-personagem vigia Cidinho através de uma fenda no muro “que dava acesso a todo o visual de onde ele dormia” (SILVA, 2006, p. 43). Então, somos levados ao interior do lar de Cidinho para “assistir” ao envolvimento físico dele com a personagem Zenóbio, estereótipo do machão, “o que mais batia em veado, o que mais era cachorro, o que mais tinha força”, e agora “se entregava aos prazeres com a classe que mais detestava na vida, a dos veados.” (SILVA, 2006, p. 44 [grifo nosso]). Na casa, “por sobre ruínas, lodo, concretos como que exumados, dois rapazes pareciam conhecer segredos que nunca ouvira antes falar.” (SILVA 2006, p. 44), Cidinho, Zenóbio e, posteriormente, o eu-narrador dão vazão aos seus impulsos libidinais, fazendo o leitor ficar, como diz Ribeiro Neto (2006) em prefácio à obra, “com a carne em pé” diante da montagem narrativa do sexo entre as três personagens. Situar onde ocorrem os momentos de desejos entre as personagens é a principal função do espaço nos curtos contos desse autor. São espaços fechados e escondidos dos olhares repressores da ordem vigente; ambientes que mostram o íntimo das personagens, onde os medos, desejos e angústias do homem, sobretudo os de orientação homoafetiva, são exibidos. A caracterização dos espaços saturados de elementos paisagísticos indicadores de valor negativo ou menor – sujos, escuros e cheios de excrementos – parecem transpor o significado destes para as relações desenvolvidas entre as personagens, sutilmente denegrindo-as, rotulando-as como transgressoras, sujas e que, portanto, devem se manter escondidas, não vindo à luz para que a mancha que macula a orientação sexual que seguem não seja vista e, assim, possa ser mantido limpo o discurso em favor da heteronormatividade. Conclusão Após a discussão a respeito das configurações paisagísticas nas obras em questão – para assim exemplificar o assunto na literatura de expressão homoerótica de uma maneira geral, se faz pertinente tecer algumas considerações finais no que tange a essa poética do espaço, no dizer bachelardiano. Em trabalho anterior (SILVA, 2007b) discutimos a emergência da literatura gay enquanto gênero literário. Sem querer adentrar exaustivamente nos aspectos relevantes ou não desta classificação a que fizemos referência, chamamos a atenção para o fato de que a expressão literatura gay, como a empregamos 162 Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, /2007 – ISSN 1516-1536 (SILVA, 2007a e 2007b), pode ser interpretada a partir da autoria – a literatura feita por escritores gays – e da formulação interna, isto é, do conteúdo da obra. Descartando a primeira hipótese de interpretação – hipótese com a qual trabalhamos em todo este trabalho –, foi sobre os aspectos estéticos vinculados às temáticas do universo gay, mais precisamente a categoria estético-literária do espaço ficcional, que orientamos nosso estudo. Como constatamos, os ambientes configurados nos permitem inferir que as relações homoeróticas das personagens acontecem às escondidas, em espaços reclusos, que, por vezes, caracterizados banalmente, transferem seus sentidos para as relações gays dos sujeitos ficcionais, sutilmente definindo-as como transgressoras, sujas, proibidas, e que, portanto, devem acontecer secretamente, longe dos olhares da “normalidade” sexual; quando não são fechados, como é o caso de O segredo de Brokeback Mountain, refletem o intuito das personagens em se distanciarem, de se moverem para lugares isolados, onde possam adquirir liberdade de manifestar o desejo homoafetivo, fora da repressão social vigente, numa falsa ou aparente independência de viver “o amor que não ousa dizer o nome”. Essa mesma relação de “espaço recluso” aparece em obras que não foram tomadas, aqui, como corpo de análise. Em Na ausência dos homens (2007), Philippe Besson constrói uma fábula em torno de um triângulo amoroso envolvendo o escritor Marcel Proust, o soldado Arthur Valès e o “epicentro” fabular: Vincent de L’Étoile, jovem de apenas 16 anos que vive uma relação com o escritor de 46 anos e o soldado de 20 anos. Quando em público com Proust, os contatos entre eles são quase anulados, pois a sociedade da época representada não assimila o desejo gay nas esferas públicas. Tanto com o escritor quanto com o soldado, o jovem se realiza afetiva e sexualmente nos ambientes fechados, escondidos, onde não há a presença de pessoas que possam “denegrir” a imagem deles por causa do contato físico, da identificação com um comportamento “fora das normas vigentes”. Em Stella Manhattan (2000), romance gay de Silviano Santiago, a personagem Viúva Negra usa o nome de Eduardo para alugar um “ambiente” propício aos encontros sadomasoquistas de que é adepto: um pequeno e sujo apartamento num bairro de negros e porto-riquenhos em Nova Iorque. A descrição do ambiente se centra na imagem já aludida nos textos aqui discutidos: paredes, chão, os vãos, tudo que se refere a este espaço recebe uma carga semântica negativa, porque sempre sujo. As personagens que nele se refestelam adquirem a mesma conotação. Percebamos que, nessa narrativa em particular, a fantasia ou perversão (na perspectiva freudiana) sadomasoquista da personagem já a confina num modelo estereotipado de gay “vulgar”, de “bicha louca”, conforme palavras do próprio narrador da obra. A configuração do espaço na literatura gay, a partir das obras aqui discutidas, revelou que as relações homoafetivas são representadas, de maneira mais recorrente, em espaços fechados ou que possam esconder o desejo gay. Da mesma forma que havíamos apontado a temática, nestas obras, como marca para a compreensão de um gênero literário novo (SILVA, 2007b), o espaço como Graphos. João Pessoa, v. 9, n. 2, 2007 – ISSN 1516-1536 163 categoria estético-literária aparece de forma semelhante nos mesmos textos, seja nas descrições, seja no significado que o marcador denota, convergindo para as considerações do autor, que a literatura gay pode constituir um gênero literário, considerando-se os valores estético-poéticos de cada texto estudado. Acreditamos que o breve estudo deste ensaio amplia a discussão da representação dos sujeitos de orientação homoafetiva na literatura em seus espaços de movência, apesar de superficialmente percebermos uma construção “limpa” e sem estereótipos negativos desses sujeitos nas obras estudadas. Ao voltarmos nossa percepção, em especial para o marcador espaço, notamos que os locais onde as relações sexuais acontecem muito as caracterizam negativamente, refletindo, assim, no plano da cultura, a repressão e o tabu de que o desejo gay é transgressor e deve permanecer recluso. O espaço ficcional, então, na chamada literatura gay, parece fechar campos de interpretação para os personagens que habitam as ficções aqui discutidas, corroborando a prática “abusiva” e “discriminatória” de que o gay pode ser uma espécie de projeção do ambiente por onde circula. REFERÊNCIAS ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: Círculo do Livro, 1985. BACHELARD, Gaston. A gaveta, os cofres e os armários. 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