Ed.132 Ago-Set 2014 - Revista Principios

Transcrição

Ed.132 Ago-Set 2014 - Revista Principios
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Editorial
Na polarização entre avanço
e retrocesso, Marina reforça a
oposição conservadora
A
tragédia que ceifou a vida de Eduardo Campos teve um impacto significativo nas águas
da sucessão presidencial. Pelas mãos deste
infortúnio, Marina Silva se tornou candidata a presidente e, depois de rapidamente pactuar com os banqueiros, reconfigurou o processo eleitoral.
Vale a pena percorrer a sinopse dos fatos desde o
dia do sinistro.
A nação reagiu com espanto e comoção ante a
perda inesperada de uma liderança que se projetava
como força renovadora. Entretanto, na mesma noite daquele atroz 13 de agosto, entremeio ao luto e
ao espanto, a oligarquia financeira, ostensivamente, sem nenhum constrangimento, entrava em cena
com o intuito de tentar se apropriar da tragédia, de
administrá-la a serviço daquilo que é sua obsessão
nestas eleições: impedir a qualquer custo a reeleição
da presidenta Dilma Rousseff.
Uma infantaria de jornalistas e “cientistas políticos” — os berrantes da grande mídia — fez soar uma
diretiva do “mercado”: sem demora, o PSB deveria
anunciar o nome de Marina Silva no lugar do líder
precocemente morto.
Diante de hesitações no ninho dos tucanos sobre qual cenário lhes seria mais conveniente, veio
a ordem do comando supremo do consórcio oposicionista (oligarquia financeira e a grande mídia,
setores mais conservadores das classes dominantes): antes de tudo, garantir o segundo turno. E a
probabilidade de havê-lo, vociferou o “mercado”, é
com Marina na cabeça de chapa do PSB. Mas, e se
a Marina ultrapassar Aécio e ir para segundo turno? “Paciência”, tudo menos Dilma. Em círculo de
aço, assim se fechava o estratagema da oligarquia
financeira, anunciado às escâncaras pelos veículos
de comunicação.
Antes de o nome da líder da Rede ser ungido,
a grande mídia fez desfilar uma romaria de personagens da nata das alas mais conservadoras das
classes dominantes, quase rogando para que Marina aceitasse a candidatura. Gente graúda da alta
finança, em “off ” ou às claras – e, pasmem, mesmo
O debate de ideias e propostas deixará mais claros para o
eleitor os reais compromissos de cada candidatura
barões de um setor do agronegócio – derramaramlhe elogios, com mensagens do tipo: “mercados não
temem Marina”. Provas e contraprovas de que Marina adotara a bula do rentismo foram apresentadas aos montes. Ou por suas próprias palavras ou
por declarações de seu “guru” liberal, o economista
Eduardo Giannetti.
No dia 17 de agosto, data da cerimônia fúnebre
de Eduardo Campos, houve, por assim dizer, uma
transferência simbólica da capital da República para Recife. Dezenas e dezenas de lideranças nacionais
presentes, entre elas a presidenta Dilma Rousseff,
governadores de vários estados, o ex-presidente Lula, e também o candidato tucano Aécio Neves e, é
claro, Marina Silva, até então companheira de chapa de Eduardo Campos. Um mar de gente — calculou-se mais de cem mil pessoas, gente do sertão,
do agreste, do litoral, da Capital — em contrição e
homenagem ao neto de Miguel Arraes. Uma verdadeira romaria do povo em tributo ao líder que lhe foi
arrancado por uma tragédia.
A presença de Dilma Rousseff e de Aécio Neves,
do ex-presidente Lula e de expoentes do campo político hostil ao ciclo progressista que vigora no país
desde 2003, para além da civilidade, simboliza que o
significado do legado e a herança de Eduardo estão,
objetivamente, em disputa entre o campo político
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conservador e o campo político de esquerda. É certo
que Eduardo Campos — que apoiou os dois mandatos de Lula, que foi seu ministro e que também
sustentou parte do mandato de Dilma — como candidato a presidente da República se apresentou um
duro crítico do atual governo. Mas, embora acossado
pela mídia, nunca atacou o ex-presidente Lula, ao
contrário, manteve a coerência e sempre sublinhou
os méritos do governo lulista.
Caso Eduardo Campos, poupado da tragédia, não
fosse para o segundo turno, que posição adotaria?
Efetivamente, ninguém poderá responder a esta
pergunta. Portanto, os tucanos, os “marineiros” , as
forças conservadoras que tentam profanar sua memória política, na tentativa de transformá-lo num
ícone do campo político conservador, no elenco dos
que nutrem ou se moveram pelo preconceito e ódio
ao ciclo político aberto pela vitória de Lula em 2002,
o fazem por pura má-fé e manipulação política.
A decisão do PSB de indicar Marina como candidata a presidente da República, tal como veio a
se oficializar por sua direção nacional, no dia 20 de
agosto, embora tomada com ares de unanimidade,
logo veio a revelar as contradições entre históricos
dirigentes do partido de Miguel Arraes e sua “hóspede”. Isto se manifestou, por exemplo, com o grito
de protesto do secretário-geral da legenda, Carlos Siqueira. A tensão persiste, embora a pressão do pragmatismo seja grande.
Marina sobe nas pesquisas de sondagens de intenção de voto com o mantra falsificador da chamada “nova política” com o qual tenta engabelar setores
sociais descontentes e pactuando com os banqueiros
todos os compromissos exigidos pelo rentismo, como é caso da anunciada “independência” do Banco
Central.
O consórcio da oposição conservadora sustentava até então como opção número 1, o tucano Aécio
Neves. Mas se Aécio ficar na poeira, como indicam
as pesquisas, parte do bloco das classes dominantes
que apoia o tucano, de mala e cuia, passará a apoiar
Marina. Jornalões já ostentam manchetes: “Para
derrotar Dilma, mercado ‘marinou’”. Quando escrevemos este texto, final de agosto, a oligarquia financeira vive um entreato e se fraciona: uma parte já
migrou para a candidata da Rede-PSB, outra ainda
tenta “salvar” a candidatura de Aécio.
Por que o “mercado” não “marinaria”? A cada segundo Marina repete que através de lei vai instituir a
independência do Banco Central, leia-se, retirá-lo da
esfera do governo federal e subordiná-lo à égide do
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capital financeiro. E mais, vejamos as declarações da
herdeira do Itaú, senhora Maria Alice Setubal, e de
Maurício Rands, ambos responsáveis pelo plano de
governo de Marina: “Não vamos propor reduzir a taxa de juros por decreto. (...) É pelas leis do mercado
que vai haver uma redução da taxa de juros”. O Programa de governo, anunciado no dia 29 de agosto,
é um arremedo embelezado do programa neoliberal
dos trágicos anos 1990, desta feita, acrescentando
uma cereja no topo do bolo: a independência do BC,
“o quanto mais rápido possível”.
Assim, a essência da sucessão presidencial não se
alterou. As eleições de outubro seguem polarizadas
por dois projetos, por dois caminhos opostos: avanço
versus retrocesso. Podemos afirmar, com certeza, que
tal polarização se agudizou. Neste confronto, Dilma
Rousseff representa o polo da mudança e do avanço; Aécio Neves e Marina Silva, o retrocesso. Basta
conferir os programas, a plataforma de campanha,
as declarações dos postulantes e o campo político e
social que os sustenta.
A presidenta Dilma Rousseff é a liderança capaz
de, com base nas conquistas dos últimos 11 anos,
conduzir o país a uma nova etapa de desenvolvimento. Dilma como presidenta soube defender o Brasil
no período em que os efeitos da grande crise mundial
do capitalismo passaram a afetar com mais danos as
economias dos países em desenvolvimento. Dilma se
proclama compromissada, em um novo mandato, a
realizar as reformas estruturais de que o país precisa e empreender transformações que alavanquem
o crescimento da economia do país e elevem, ainda
mais, a qualidade de vida do povo brasileiro.
Princípios, coerente com a linha editorial que adotou desde 2003, nesta hora em que a nação está polarizada em dois campos políticos bem nítidos – avanço
versus retrocesso –, torna público o seu apoio à campanha de reeleição da presidenta Dilma Rousseff.
Nesta reta final, o confronto se acirra. A oposição
conservadora, apoiada nas pesquisas, tenta criar artificialmente a euforia do “já ganhou”. É imperativo
ao campo político democrático, popular e patriótico
desencadear um grande movimento político, social,
eleitoral que abarque uma vigorosa luta de ideias,
reuniões, plenárias, atos de rua, intenso diálogo com
os eleitores. A quarta vitória do povo, com a reeleição de Dilma Rousseff, segue ao alcance das mãos da
Nação, mas requer intensa luta nas múltiplas frentes
da campanha.
Adalberto Monteiro
Editor
Sumário
Copa 2014
5
11
Entrevista com Aldo Rebelo
A Copa que reacendeu o Brasil................
Outro grande legado da Copa
Laurindo Lalo Leal Filho.............................
5
A organização do futebol brasileiro
e o sentido das mudanças
Antonio Rodrigues........................................
13
Para que o 7 x 1 não seja em vão
Fernando Damasceno e
Cláudio Gonzalez..........................................
18
Eleições 2014
32
Não há “terceira via”, mas dois
projetos em confronto
Renato Rabelo ...........................................
24
30
O discreto charme de Marina Silva
Sérgio Saraiva ..............................................
As mulas-sem-cabeça de Aécio Neves
e Marina Silva
Osvaldo Bertolino.........................................
32
Estratégia nacional-popular x Plano
Real “puro sangue”
Elias Jabbour.................................................
38
43
Sindicalistas e estudantes defendem
governo e reeleição de Dilma
Cézar Xavier...................................................
43
Brasil
O Brasil acabou?
Projeto nacional e impasses
na gestão territorial do Brasil
Evaristo Eduardo de Miranda...................
47
Com a Cúpula de Fortaleza,
BRICS aceleram tendência a
um mundo policêntrico
Ronaldo Carmona.........................................
51
Entrevista com Manoel Rangel
51
58
Uma política de Estado para o
cinema e o audiovisual..........................
3
Sumário
132/2014
Internacional
Califado: reino de terror que
serve ao imperialismo
Lejeune Mirhan.............................................
64
Elementos de reflexão sobre a
conjuntura política colombiana: paz,
governo, sociedade e Constituinte
Pietro Alarcón................................................
72
A guerra criminosa de Israel contra o
povo palestino
Socorro Gomes..............................................
78
64
História
84
1914 – guerra e revolução
José Carlos Ruy.............................................
Anos 1990: a dinâmica
macroeconômica a partir do Plano
Real e a nova (des)configuração
do mundo do trabalho
Tamara Naiz Silva.........................................
90
Teoria
84
96 96
A esquerda brasileira e o marxismo
contemporâneo
João Quartim de Moraes.............................
101
Sociedade dos Amigos de Lênin
Redação....................................................
Cultura
A morte do touro Mão de Pau:
o encantamento de
Ariano Suassuna
Joan Edesson de Oliveira......................
106
Resenhas
Rui Facó, o marxismo com a
cara do Brasil
José Carlos Ruy......................................
110
Blogueiros, uni-vos
(mas nem tanto...)
Felipe Bianchi e Altamiro Borges........
111
4
101
Copa 2014
Entrevista com Aldo Rebelo
A Copa que reacendeu o Brasil
André Cintra e Cláudio Gonzalez*
Em entrevista à Princípios, o ministro do
Esporte, Aldo Rebelo, faz um balanço da
organização e do legado do Mundial-2014.
Segundo Aldo, para além dos números,
o “ponto alto” do evento foi “a qualidade
espiritual do nosso povo”, que levou a Copa
a ser “celebrada no mundo inteiro” e ainda
despertou “um sentimento de confiança” na
população. De quebra, diz o ministro, “o Brasil
sai do Mundial ainda mais credenciado para
organizar os Jogos Olímpicos de 2016”
5
P
rincipal nome do governo federal à frente
da Copa do Mundo, o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, não acredita no ditado
segundo o qual “a estatística é a arte de
torturar os números até que eles confessem”.
Mas, ao receber a reportagem da Princípios para
esta entrevista exclusiva, seu único pedido é, por
assim dizer, uma renúncia às eloquentes estatísticas
do Mundial-2014. “Não vamos falar dos números,
certo? Isso já foi esmiuçado naquela coletiva – e nem
é o mais importante para avaliar o que foi a Copa.”
Na coletiva a que Aldo se refere, realizada em 14
de julho, um dia depois da final do torneio, a presidenta Dilma Rousseff apresentou, ao lado de 17
ministros, o balanço da Copa. Números expressivos
foram anunciados, como a marca de um milhão de
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estrangeiros que visitaram o Brasil durante o Mundial. A própria Dilma, porém, fez questão de ressaltar que o povo brasileiro foi o maior trunfo do País
para promover, com incontestável sucesso, a “Copa
das Copas”.
Aldo Rebelo compartilha dessa visão. Os números, por excelência, são mensuráveis – e o maior legado da Copa, a seu ver, é intangível. “O que ficou
mesmo – o ponto alto do Mundial no Brasil – foi a
qualidade espiritual do nosso povo. Fizemos uma
Copa celebrada no mundo inteiro principalmente
por esse fator, que nem é material. ”Mesmo sem o
hexacampeonato da Seleção Brasileira, há muito a
comemorar, diz o ministro. “A Copa reacendeu no
País um sentimento de confiança, de otimismo, de
capacidade, de superação de desafios.”
Princípios: Há conAldo Rebelo,
ministro do Esporte
senso de que o Brasil
se destacou na organização do Mundial-2014. Quais foram os principais
desafios enfrentados
na fase de preparação?
Aldo Rebelo: A Copa do
Mundo é um evento
previsível. Para quem
vai organizar, há sempre a referência das úl“Sempre tive a ideia
timas edições. O que podemos
de que realizaríamos
fazer é balancear nossos próprios desafios com aqueles que
a Copa do Mundo
foram superados lá atrás, por
dentro de nossas
países como Alemanha, Japão,
França e África do Sul. Tivemos
condições e com toda
a particularidade de fazer a Coa tranquilidade – até
pa num país-continente, onde
construímos os 12 estádios e
porque o Brasil já fez
preparamos – ou adaptamos
coisas mais difíceis e
– a infraestrutura urbana. Os
aeroportos não foram reformamais importantes do
dos para servir à Copa. Brasília
que a Copa.
já precisava de um aeroporto
novo. De 2003 para 2013, sem
O que ficou mesmo –
Copa nenhuma, o movimento
o ponto alto do evento
ali passou de 2 milhões para 16
milhões de passageiros. Houve
– foi a qualidade
a preocupação com a segurança
espiritual do nosso
por causa dos acontecimentos
durante a Copa das Confederapovo”
ções.
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Princípios: Em que medida a Copa das Confederações
funcionou como um grande
evento-teste para o
Mundial?
Aldo Rebelo: A preparação
para a Copa das Confederações foi uma espécie
de antessala ou vestibular para a organização
da Copa do Mundo. Dos
12 estádios, seis ficaram
prontos. Toda a metodologia de acompanhamento das
obras foi desenvolvida lá. A cada mês, sabíamos exatamente o
quanto a construção de estádios
tinha evoluído. Com base nessa
evolução – de três, quatro ou cinco pontos percentuais ao mês –,
podíamos variar o ritmo das obras
e rever as necessidades de mão
de obra, matérias-primas e equipamentos. Era possível projetar
o prazo para o término da construção – a data em que o estádio
estivesse 100% executado.
Princípios: Além desse planejamento, a que se pode atribuir o sucesso da Copa?
Aldo Rebelo: Sempre tive a ideia
de que realizaríamos a Copa do
Mundo dentro de nossas condições e com toda a tranquilida-
Copa 2014
Foto: Agência Brasil
de – até porque o Brasil já fez
coisas mais difíceis e mais importantes do que a Copa. Hoje,
ninguém fala mais de aeroporto, mobilidade urbana ou segurança. O que ficou mesmo – o
ponto alto do Mundial no Brasil
– foi a qualidade espiritual do
nosso povo. Fizemos uma Copa celebrada no mundo inteiro
principalmente por esse fator,
que nem é material.
A Copa reacendeu no País
um sentimento de confiança,
de otimismo, de capacidade, de
superação de desafios. Acima de
tudo, deu ao mundo também a
ideia de um país que pode reunir
capacidade, competência execuPresidenta Dilma reuniu ministros para relatar à imprensa balanço positivo da Copa
tiva e emoção – essa qualidade
espiritual do nosso povo de receber e tratar bem o turista. O mundo percebeu isso
taram na desorganização, na imprevidência– mas não
e divulgou com muita nitidez o Brasil – o que vai retinham convicção nem certeza dessa aposta. Agiam
sultar em investimentos para o País e até em credibipara desgastar o governo e, principalmente, para colidade na agenda internacional. Já somos o país mais
locar em xeque uma das qualidades da presidenta da
requisitado para as forças de paz da ONU.
República, que é capacidade gerencial. O objetivo político da campanha contra a Copa era manchar essa
Princípios: Ao que parece, a boa organização do
capacidade.
Mundial ajudou até a inviabilizar grandes manifestações. Se houvesse problemas no comanPrincípios: Um dos eixos da organização da Codo de um ou outro plano operacional, o clima de
pa foi a gestão integrada entre União, estados e
insatisfação poderia ter aumentado?
municípios. Além de instituir a Matriz de ResAldo Rebelo: Creio que não. Haveria, nesse caso, mais
ponsabilidades, o governo federal conseguiu
um sentimento de decepção do que de protesto. As
estabelecer uma relação permanente com as 12
pessoas que criticavam a preparação da Copa precidades-sede, que são administradas pelas mais
viam uma baderna, um protesto geral – achavam
diversas forças políticas. Qual balanço o senhor
que o comportamento do povo seria diferente. Mas
faz desse processo?
a população acolheu bem o evento, as seleções, os
Aldo Rebelo: Agora mesmo acabei de enviar os agradevisitantes. Os críticos só reconheceram as qualidades
cimentos a todos os governadores e prefeitos envoldo nosso povo porque não tinham mais outro arguvidos, a todos os secretários municipais e estaduais
mento a defender.
da Copa. Tivemos um bom entendimento. Independentemente dos partidos que governavam, foi um
Princípios: Havia sinceridade nas críticas à Copa
ambiente de muita cooperação. Graças a isso, pudeou era uma espécie de oportunismo, com viés
mos antecipar os problemas, fazer as coisas e enconpolítico?
trar as soluções.
Aldo Rebelo: As críticas não foram sinceras. As pessoas podem ser conduzidas por má-fé, e os críticos da
Princípios: A Fifa é acusada de mercantilizar o
Copa não eram ignorantes. Estamos falando de um
futebol e a Copa a um tal ponto de impedir a ida
país que construiu esta base física, este território e esda população mais pobre aos estádios. Na Copa
tas metrópoles; que se tornou a sétima economia do
no Brasil se evidenciou este problema e se abriu
mundo; que tem a agricultura mais pujante e compeuma janela de oportunidades para que se mude
titiva do Planeta; que fabrica aviões e computadores.
esse cenário?
Como um país desses se atrapalharia com a Copa do
Aldo Rebelo: A Fifa tem interesses comerciais, como
Mundo? Por razões políticas e ideológicas, eles apostodos os promotores de grandes eventos. Mas, pa-
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Foto: Bruno Santos
ra você ter uma ideia, a arrecadação
de patrocínio dos Jogos Olímpicos é
muito maior que a da Copa – e a receita da Fifa, de US$ 4 bilhões, não é
quase nada do que gira no mundo do
dinheiro. Mesmo com todas as críticas à Fifa, conseguimos ao menos 50
mil ingressos para indígenas e beneficiários do Bolsa Família. Havia uma
cota, a categoria 4, em que os ingressos para a Copa eram mais baratos,
em média, do que os do Campeonato
Brasileiro. Os operários que trabalharam nos estádios também ganharam
ingressos.
Torcedores estrangeiros em geral elogiaram opções de transporte para ir aos jogos
Princípios: Mas a Copa não induz ainda mais à mercantilização
do futebol?
Aldo Rebelo: Não partilho e até desconfio da unanimicriaram Flamengo, Palmeiras, Corinthians, São Paudade contra a Fifa. Em qualquer lugar onde se realize
lo, Vasco da Gamaetc. O Estado só chegou ao futebol
a Copa do Mundo – nos Estados Unidos, na Alemanha
nos anos 1940, com Getúlio Vargas. O mercado – que
ou na África do Sul –, o evento não será popular. O
é mais dos anos 1980-90 – chega com dinheiro e emproblema é que, em relação ao futebol, há um preconpresários, mas sem valores.
ceito. Não vejo uma cobrança igual à de elitização de
Até então, os jogadores eram artesãos, pagos pelos
outros eventos que são produzidos a um custo muito
admiradores de sua arte. O mecenas era o torcedor.
elevado, como os torneios de Wimbledon ou Roland
Recentemente, o governo teve de socorrer alguns de
Garros, o Grande Prêmio de Mônaco da Fórmula 1 ou
nossos heróis, os ex-campeões mundiais, que vivem
um show da Madonna. Tenho uma opinião crítica em
em situação difícil e ganharam uma pensão. O merrelação à Fifa, mas também tenho uma crítica a essa
cado melhorou a renda do futebol e passou a pagar
crítica que se faz.
melhor seus artistas. Hoje, os jogadores ganham forO poder da Fifa não está baseado na Europa ou
midavelmente bem. Mas o dinheiro, ao mercantilinos Estados Unidos – mas também nos asiáticos, nos
zar o futebol, transforma o torcedor numa espécie de
africanos e nos latinos. A Fifa e o Vaticano são dois
consumidor em busca de resultados. Não é bom. O
centros de projeção geopolítica que não estão sob conque liga os torcedores a seus clubes é o afeto, a paixão,
trole do eixo de poder que governa o mundo. Numa
a fantasia. A mercantilização rompe com esses valores
questão sobre a Síria, o Vaticano pode ter uma posição
e quebra essa relação.
independente. A ONU não reconhece a Palestina, mas
a Fifa tem uma posição diferente e chega a reconhePrincípios: O clima festivo nas ruas surpreendeu?
cer os palestinos como membros plenos, com direito
Aldo Rebelo: A Copa é um evento que tem muita força,
a disputar as Eliminatórias para a Copa. Isso não a
muito apelo. Quando era na Itália ou no México, a
exime de seus erros, mas provavelmente incomoda
gente já parava tudo. Com uma Copa no Brasil, toaqueles que, para além dos erros da Fifa, censuram
do mundo ia querer ver e partilhar. A diferença é que
seu não-alinhamento a certo eixo de poder.
não foi só no Brasil. Quando o Pentágono alterou seu
horário de trabalho, a porta-voz foi questionada pelos
Princípios: O que afasta o torcedor dos estádios?
jornalistas: “Vão alterar a agenda só para acompaAldo Rebelo: O que estamos vendo, como diria Caetano
nhar a Copa?”. E ela respondeu: “Sim, o mundo não
Veloso, é “a força da grana que ergue e destrói coisas
produz eventos que reúnam tantos países como a Cobelas”. Há empresários que têm mais força e faturam,
pa para uma agenda positiva”. De fato, é o único amanualmente, mais do que Flamengo e Corinthians.
biente, a única instância, em que o Irã pode derrotar
É uma deformidade, uma morbidez, que precisa ser
os Estados Unidos sem que isso tenha consequências,
combatida. Os clubes de futebol nasceram à margem
como ocorreu na Copa da França. Ao término do jogo,
de duas formidáveis instituições da sociedade moeles se confraternizaram e se abraçaram. Onde mais,
derna – o mercado e o Estado. Não foram estes que
além da Copa, é possível uma coisa dessas?
8
Copa 2014
Princípios: Seja pela invasão de turistas sul-americanos, seja pelo desempenho de suas seleções,
a Copa foi um marco para duas ou três gerações
de torcedores do continente. Como se explica
esse fenômeno?
Aldo Rebelo: Os latino-americanos, mas principalmente
os sul-americanos, não chegaram a jogar em casa, mas é
como se fosse a casa da família. Ainda que haja distância, somos vizinhos. Até mesmo do Equador e do Chile, somos vizinhos indiretamente. Para o europeu, que
atravessou o Atlântico, é mais difícil. Mas os sul-americanos, todos eles – o argentino, o uruguaio, o chileno,
o colombiano –, estão habituados a jogar aqui na Libertadores da América, se sentem confortáveis e ficaram
mais à vontade na Copa. O Equador já levou até título
no Maracanã, com a LDU, contra o Fluminense.
gestão do futebol. Quem promoveu as mudanças foi
essa gente que acreditava que o mercado daria dinamismo ao futebol brasileiro. São pessoas que hoje se
comportam, cinicamente, como se não tivessem nada
a ver com essa legislação. O governo, então, tem muitos limites. O que tentamos fazer agora é reestruturar
a dívida dos clubes.
Princípios: O governo vai mesmo comprar essa
briga?
Aldo Rebelo: Às vezes, há pessoas que acham estranho
renegociar R$ 4 bilhões em dívidas de clubes de futebol. Mas é menos do que se sonega de impostos em
um único dia no Brasil. Somos um país que paga,
por ano, mais de R$ 300 bilhões de juros da dívida
pública e mais de R$ 300 bilhões de juros da dívida
privada. Por que não renegociar
Princípios: Por que o Brasil
R$ 4 bilhões com instituições que
detém a sétima maior ecosão fundadoras da identidade na“Com as reformas
nomia do mundo, mas está
cional? Não haverá perdão nem
neoliberais dos anos
abaixo de países como Turanistia. Os clubes vão pagar as
quia e Ucrânia na economia
dívidas e assumir compromissos
1990 e por força da
do futebol?
– de gestão, de transparência, de
Lei Pelé, o Estado
Aldo Rebelo: A participação do furesponsabilidade com o pagamentebol no PIB do Brasil, hoje, é em
to dos tributos e das obrigações
foi afastado da
torno de 1%. Temos de dobrar
trabalhistas futuras.
gestão do futebol.
esse número, chegar a 2%. É o
O problema no nível trabaprimeiro passo para melhorar a
lhista não é dos jogadores que
Quem promoveu as
participação do futebol brasileiro
ganham R$ 400 mil ou R$ 600
mudanças foi essa
no PIB internacional do futebol.
mil,mas, sim, da imensa maioria
Vinte por cento desse PIB munque ganha um ou dois salários
gente que acreditava
dial estão nas mãos dos ingleses
mínimos. Muitas vezes, esses joque o mercado daria
e uns 18%, com os alemães. Degadores trabalham e não recebem.
pois vêm Espanha, Itália, outros
Vamos pôr isso tudo como contradinamismo ao futebol
países – e o Brasil lá embaixo.
partida. Multa não resolve, porbrasileiro”
É preciso cuidar do nosso fuque o clube recorre. Se os salários
tebol, e temos problemas estruatrasarem, a punição será técnica,
turais para resolver. Nosso princomo perda de pontos e rebaixacipal campeonato tem uma média de público inferior
mento. Com isso, conseguimos oferecer a perspectiva
à de uma liga, à dos Estados Unidos, que até antes
de tirar os clubes do sufoco e tornar o futebol brasileide ontem era amadora. Temos uma média de público
ro mais competitivo, sem recorrer a patrocinadores ou
menor do que a da Liga Chinesa, que até outro dia
a detentores de direitos de imagem ou de TV.
nem existia. Há menos público nos estádios brasileiros do que na Liga de Críquete da Índia. A Alemanha
Princípios: A realização da Copa pode ser um
e a Inglaterra têm populações bem menores que a
divisor de águas? Podemos aproveitar o legado
nossa, mas uma média de público no futebol maior.
do evento – como 12 arenas de padrão internacional e novos protocolos – para iniciar um
Princípios: A goleada de 7 a 1 da Alemanha sobre
ciclo de desenvolvimento e modernização do
a Seleção Brasileira, na semifinal da Copa do
nosso futebol?
Mundo, ajudou a desencadear um debate sobre
Aldo Rebelo: É o que deve ser feito. Precisamos mea organização do futebol no País. Como o goverlhorar a gestão do espetáculo, a credibilidade. Quanno federal pode contribuir nessa discussão?
do você menos espera, aparece um juiz como aquele
Aldo Rebelo: Com as reformas neoliberais dos anos
Edílson Pereira de Carvalho, que foi preso, e nos obri1990 e por força da Lei Pelé, o Estado foi afastado da
gou a refazer um monte de partidas. Agora mesmo,
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houve outra confusão – se rebaixava ou não rebaixaPrincípios: Depois da Copa, é mais difícil atacar
va a Portuguesa. Como é que a partida termina com
a Olimpíada?
um resultado que pode mudar 15 dias depois? Essas
Aldo Rebelo: É importante que o Brasil tenha um amcoisas precisam ser enfrentadas. Os clubes precisam
biente de crítica e fiscalização aos atos dos governanse fortalecer para conseguir segurar os astros. Bons
tes. Mas, para a Copa, os irresponsáveis e aventureiros
jogadores atraem mais público.
previram atrasos, caos aéreo, manifestações. A Copa
As arenas modernas, confortáveis, seguras e hiseria uma hecatombe, porque assim estaria anunciagiênicas ajudam nisso. Imagine uma senhora ou
do. Era como se bastasse a profecia do caos para que o
uma moça que precisasse ir ao banheiro em algum
caos se realizasse. O que esses críticos mais perderam
de nossos estádios antigos. Era uma tragédia, algo
não foi a aposta numa Copa caótica. Essa é uma perconstrangedor. Mesmo o saudosismo em relação aos
da temporária. A crítica perdeu a credibilidade, e isso,
geraldinos é de gente que nunca foi a uma geral –
de certa forma, é lamentável. Vão dizer o que, agora,
que via tudo pelo “Canal 100”
da Olimpíada? Mesmo se houver
e achava bonito. Eu fui a uma
problemas, o comportamento degeral e sei que é horrível. A viles tenderá a ser mais cauteloso,
“Mesmo o saudosismo
são do jogo, rente ao gramado,
mais cuidadoso. Primeiro, vão ter
em relação aos
é péssima – e ainda lhe jogam
de esperar os fatos.
tudo de cima, da arquibancada.
geraldinos é de gente
O geraldino precisa ir ao estádio,
Princípios: Os atrasos registraque nunca foi a uma
mas em condições dignas, por
dos em algumas obras da Comeio de uma política que assepa servem de alerta para os
geral – que via tudo
gure a presença da população de
Jogos de 2016?
pelo ‘Canal 100’ e
baixa renda.
Aldo Rebelo: O fator tempo é um
ativo difícil. Não há como recuperáachava bonito. Eu fui
-lo. Se precisarmos de mais tijolo,
a uma geral e sei que é
de cimento ou de aço, é só encoPrincípios: Cada vez mais,
mendarmos que vamos ter em
nossos jovens craques sohorrível”
nham em jogar na Europa e
mãos. Se perdemos o tempo, não
serem reconhecidos entre os
dá para repor na loja. Mesmo lemelhores do mundo. Como
vando isso em conta, vamos, sim,
convencê-los de que vestir a camisa da Seleção
dar conta de cumprir o cronograma. Há, fundamentalBrasileira é mais importante, ainda mais numa
mente, duas obras importantes para a Olimpíada. Uma
Copa do Mundo?
delas é a Vila Olímpica, que teve os prédios erguidos e
Aldo Rebelo: Eu me lembro da seleção americana de
vai comportar 18 mil atletas. A outra é o Parque Olímbasquete – o “time dos sonhos” – que disputou a
pico, que está dividido em duas áreas – Jacarepaguá
Olimpíada de 1992, em Barcelona. Todos os jogae Deodoro. Sessenta por cento das obras em Deodoro
dores eram milionários, mas jogaram pelos Estados
já ficaram prontas – parte delas, aliás, foi feita para os
Unidos e arrasaram. Às vésperas da primeira partiJogos Mundiais Militares, realizados em 2011. Em Jada, contra os angolanos, um repórter perguntou a
carepaguá, a maior parte das obras foi iniciada.
um dos jogadores: “O que você sabe de Angola?”. E
o jogador: “Não conheço nada, mas sei que eles vão
Princípios: Os resultados da Copa podem atrair
mais investidores na Olimpíada?
se dar muito mal”(risos). A seleção jogava não pelo
Aldo Rebelo: Em março de 2012, a Olimpíada do Rio –
salário, mas pelo país deles. Queriam que os Estados
Unidos conquistassem o título de uma maneira que
que tinha acabado de começar a vender as cotas de
patrocínio – já havia arrecadado mais em patrocínio
marcasse época.
do que a Olimpíada de Londres, que ocorreria dois
Os nossos jogadores, sobretudo os que jogam em
meses depois. Um banco que patrocinava a Copa entimes de ponta, são todos celebridades. Não sei até
que ponto julgam a Copa do Mundo como uma coisa
trou na disputa por uma cota, mas perdeu para uma
importante para eles. Muitos saíram daqui muito ceinstituição que fez uma oferta mais de três vezes superior. A Olimpíada tem tudo para ser um sucesso.
do. A Seleção também fica muito exposta como mercadoria, submetida ao calendário de patrocinadores,
*Os jornalistas André Cintra e Cláudio Gonzalez
como os “jogos da Nike”. Isso desgasta a relação da
entrevistaram Aldo Rebelo no apartamento do
Seleção com os torcedores – e também a relação dos
ministro em São Paulo no dia 26/07/2014
próprios jogadores com a Seleção.
10
Copa 2014
Outro grande legado da Copa
A
Tiragens de jornais e revistas em queda, audiências
de telejornais despencando são as respostas do
público, cada vez mais consciente de que, por esses
meios, não escapa do pensamento único.
E, sem dúvida, essa tomada de consciência é um dos
maiores legados da Copa realizada no Brasil
Laurindo Lalo Leal Filho*
lém de estádios, aeroportos e alguns novos
serviços de transporte, a Copa do Mundo no
Brasil deixou um outro grande legado: a
certeza de que precisamos ampliar a liberdade de expressão no país.
Restritas a alguns jornalões diários, a revistas semanais monocórdicas (com exceção da Carta Capital)
e a um conjunto oligopolizado de emissoras de rádio
e TV, a informação homogênea – já denunciada há
muito tempo pela mídia alternativa – tornou-se cristalina na Copa.
A revista semanal de maior tiragem chegou a
anunciar que devido ao ritmo das obras dos estádios o Brasil só teria condições de realizar a Copa
Pessimismo da mídia e histeria anti Copa cederam lugar à paixão do povo pelo futebol
11
132/2014
em 2038. Mas não foi só ela que vendeu essa menAo que tudo indica, no entanto, lá como cá, a
tira aos brasileiros. Foi a mais descarada, sem dúpopulação não foi na onda da mídia. Estádios, ruas
vida, não contando no entanto com o privilégio da
e praças lotaram, nunca houve tantos turistas cirexclusividade.
culando pelo Brasil ao mesmo tempo como durante
Basta consultar os jornais ou
a Copa. Talvez pudesse ter vindo
conseguir acesso aos telejornais
mais, não fossem os fantasmas
dos últimos anos para constatar
plantados pela mídia.
Ao que tudo indica,
que todos rezaram pela mesma
Até a crítica de que o ex-presino entanto, lá como
cartilha. O objetivo era desacredidente Lula exagerou ao propor à
tar da capacidade do governo braFIFA um número maior de cidacá, a população
sileiro de oferecer as condições nedes-sede foi por água abaixo. Tonão foi na onda da
cessárias para a realização de um
das deram conta do recado.
evento desse porte.
Diante de tudo isso os meios
mídia. Estádios, ruas
A expressão “imagina na Code comunicação sequer fizeram
e praças lotaram,
pa” foi uma das mais ouvidas em
autocrítica e, claro, não se responaeroportos, rodoviárias, avenidas e
sabilizam pelas perdas causadas
nunca houve tantos
estradas congestionadas e até em
ao país. Basta ver que a torcida
turistas circulando
filas de bares e restaurantes, nos
contra não desapareceu. Pequenos
últimos tempos. Refletia a expecpelo Brasil ao mesmo incidentes, comuns a qualquer
tativa negativa criada pela mídia
grande evento, ganharam destempo como durante
em torno do evento.
taque. Para não falar da mesma
O clima ruim propagado desrevista, antes mencionada, que
a Copa. Talvez
sa forma se alastrou mundo afora.
soltou a manchete no meio da Copudesse ter vindo
Equipes estrangeiras de jornalispa: “Só alegria até agora”. O “até
tas baseadas no Brasil são raras.
agora” era revelador da intenção.
mais, não fossem os
Na maioria dos casos a cobertura
Ao transitar das questões esfantasmas plantados
do país é realizada por apenas um
tritamente políticas para as polícorrespondente que se pauta, invatico-esportivas a mídia tradicional
pela mídia
riavelmente, pela mídia nativa.
deu uma contribuição importanDeu no que deu. Até uma
te para a revelação a um público
Brazuca (bola oficial desta Copa) incandescente
mais am-plo do seu papel disseminador de um pense aproximando como um meteoro mortal sobre o
samento único, antagônico aos interesses da ampla
Rio de Janeiro ilustrou a capa de uma revista alemaioria da população brasileira.
mã. O Brasil era um perigo para quem por aqui se
Tiragens de jornais e revistas em queda, audiênaventurasse neste 2014. Governos de alguns paícias de telejornais despencando são as respostas do
ses alertaram seus cidadãos para esses riscos.
público, cada vez mais consciente de que, por esses
Tentava-se destruir em pouco tempo todo o esmeios, não escapa do pensamento único.
forço empreendido pelo governo brasileiro, a parComo através do mercado não há solução para
tir de 2002, para fazer do país um ator respeitado,
o problema – ao contrário, ele só joga a favor da
não apenas pelas transformações que operava inconcentração da propriedade dos meios –, resta a
ternamente, mas também por sua seriedade e casaída única da presença do Estado, regulando a copacidade de ação política no cenário internacional.
municação para ampliar a liberdade de expressão.
Basta lembrar o protagonismo de Brasília, ao
A consciência dessa necessidade por camadas
lado do governo turco, ao alinhavar com o Irã um
cada vez mais amplas da população é, sem dúviacordo nuclear estimulado e depois boicotado pelos
da, um dos maiores legados da Copa realizada no
Estados Unidos.
Brasil.
Há uma cena impagável no filme Habemus Papam, do diretor italiano Nanni Moretti, quando
após a morte do Papa o seu sucessor (representado
* Laurindo Lalo Leal Filho é professor de
pelo excelente Michel Piccoli) reluta em assumir
comunicação da ECA/USP e diretor/apresentador do
o posto. Um dos cardeais, desesperado com a deprograma VerTV da TV Brasil
mora, alerta que daquele jeito logo o presidente do
Brasil estaria por lá para ajudar a encontrar uma
solução.
Artigo publicado originalmente no site Carta Maior, atualizado.
12
Copa 2014
A organização do futebol
brasileiro e o sentido das
mudanças
(1)
Antonio Rodrigues*
O Governo Federal pode e precisa agir em face desse
patrimônio nacional e econômico, que é o futebol
profissional. Deveria incidir, entre outros pontos, sobre
o consórcio entre a grande mídia e os cartolas, pois,
além de os direitos de transmissão representarem a
maior parcela da receita dos grandes clubes, violarem
o direito dos torcedores, são incompatíveis com a
natureza pública das concessões de radio-televisão
13
A
132/2014
pós a eliminação da Seleção Brasileira na Coque a discussão do tema, até aqui, muito pouco ou
pa de 2014 tornou-se lugar comum afirmar
quase nada revela, e pelo andar da carruagem talvez
que o futebol brasileiro precisa mudar. Além
seja reduzida a muito barulho por nada.
do placar do “Mineiraço”, a grande mídia
muito contribuiu para a vulgarização da
Os “leopardos” da CBF avessos à
necessidade de mudanças no futebol atramudança
vés do espaço dado, imediatamente após
a derrota, à nem sempre sincera indigAs mazelas do futebol nacional e reivindicação
nação dos “especialistas”, os quais, salvo honrosas
por mudanças são tão antigas quanto a própria orexceções, praticaram contorcionismos verbais para
ganização desportiva do país. Em 1938, Tomás Mazequilibrar o discurso mudancista com a cumplicidazoni, pioneiro do jornalismo esportivo, constatava o
de baseada em interesses comuns que mantêm de
fato de que o futebol brasileiro, nas décadas antecelonga data com a direção da CBF. Por outro lado, é
dentes (!), passava a impressão de uma fábrica próspera,
inegável que o clamor por mudanças no futebol brasiprodutiva e dinâmica, mas muito mal dirigida, com fases
leiro reflete também a posição declarada das maiores
até de verdadeiros colapsos. A reflexão desesperançada
autoridades do país diretamente responsáveis pela
do cronista concluía que o suceder-se dos anos nos deu
realização da Copa, ainda que as
uma experiência suficiente para não
recentes manifestações do governo
levarmos a sério a política dos clubes
revelem cuidado em calibrar o tom
e esperar algo da mentalidade dos diA questão é
da crítica ao status quo da organirigentes (“Problemas e aspectos do
estrutural dos
zação desportiva para não perder o
nosso futebol”, São Paulo, 1939).
foco da celebração dos muitos rePassados 76 anos, os ecos das paproblemas e
sultados positivos obtidos pelo país
lavras de Mazzoni reverberam na
descaminhos da
fora do campo.
denúncia do Bom Senso F.C., publiChamam a atenção dois recencada em 14 de julho de 2014 sob o
organização do
tes pronunciamentos de autoritítulo “Porque a tragédia da Copa
futebol brasileiro.
dades da República que ilustram
não afetará a CBF – As artimanhas
o referido discurso pró-mudanças
dos cartolas para impedir a muDesde sempre,
dança” (4).
pós-goleada. Dois dias depois do
quando se fala em
O texto do Bom Senso F.C. jo“massacre” de Belo Horizonte, em
ga
luzes sobre a manobra dos 47
10 de julho de 2014, durante briemudanças o tema
dirigentes do futebol profissional
fing da FIFA, o ministro do Esporte,
vem à tona; no
brasileiro para “blindar” preventiAldo Rebelo, afirmou que o futebol
vamente a direção da CBF contra
brasileiro precisa de mudanças. A derentanto, muda-se
as reivindicações por mudanças
rota para a Alemanha evidencia ainda
para ficar no
na estrutura de poder e gestão da
mais essa necessidade (2) No dia seentidade diante do fracasso da
guinte, 11 de julho, a presidenta
mesmo lugar
Seleção na Copa. A “blindagem”
Dilma Rousseff declarou em enfoi concretizada pela eleição antrevista à GloboNews que o grande
tecipada da diretoria para o próximo quadriênio
aprendizado daquele dia [08-07-2014] é a consciência de
(2015-2019), pois o pleito que deveria ocorrer entre
que nós temos de mudar o futebol brasileiro (3).
os meses de outubro de 2014 e abril de 2015 – porDiante de toda a retórica em favor das mudanças
tanto, após o final da Copa – foi realizado no mês
é preciso destacar que o significado forte desta palade abril de 2014, elegendo o candidato único da sivra traduz a ideia de transformação e, nesse sentido,
tuação, Marco Polo Del Nero. A manobra garantiu
mudar quer dizer modificar um estado, modelo ou
a sobrevida do modelo tradicional de governança
situação pré-definidos. Contudo, a palavra mudança
instituído pelo primeiro presidente da entidade,
também quer dizer troca de lugar; mudar, no caso, sigJoão Havelange, prócer da organização do futebol
nifica apenas deslocar algo ou alguém de um local ou
brasileiro desde 1956, quando se tornou dirigente
função para outro. Neste último sentido, a mudanda antiga Confederação Brasileira de Desportos –
ça não equivale à transformação; ao revés, não raro
CBD (antecessora da CBF). Por mais de meio século
mudanças são realizadas para manter o estado das
Havelange influiu decisivamente na organização do
coisas no mesmo lugar. Portanto, é de todo pertinenfutebol nacional, quer como dirigente da CBD/CBF
te especular sobre qual é o sentido das apregoadas
quer como presidente da FIFA. Em 1989, Havelanmudanças necessárias ao futebol brasileiro, uma vez
14
Copa 2014
Lei “Maguito Vilela” permitiu às
“entidades sem fins lucrativos”
continuarem livremente
contribuindo para a fortuna de
cartolas como João Havelange
(e.) e Ricardo Teixeira
ge fez de seu então genro, Ricardo Teixeira, presidente da CBF. Após 23 anos no comando, acossado
por denúncias de corrupção, Teixeira transmitiu o
cargo a José Maria Marin, que agora entroniza o
cartola paulista Del Nero, legítimo representante da
oligarquia do futebol brasileiro.
Havelange/Teixeira e seus vassalos ditam os
rumos e as regras do jogo por mais de 60 anos. A
toda evidência, este apego ao poder deriva muito
menos da paixão pelo esporte e muito mais dos interesses econômicos relativos ao football business, como demonstram apenas os números extraídos dos
balanços da CBF e dos clubes brasileiros, isto é, de
suas contabilidades por dentro. Mudam nomes, mudam regras, mas tudo continua como sempre e, se
é verdade que muita coisa mudou desde os tempos
de Mazzoni, a nação aturdida pelas recentes blitzes
alemã e holandesa contempla os cartolas da CBF e
constata, assombrada, a verdade da máxima da personagem criada por Tommaso di Lampedusa na obra
Il Gatopardo (O Leopardo): se queremos que tudo fique
como está, é preciso que tudo mude. A frase de Tancredi
se aplica perfeitamente ao futebol brasileiro. Senão
vejamos.
Mudanças para ficar no mesmo lugar
e os negócios do futebol
As mudanças legislativas relativas à falácia (para
não dizer fraude) que sustenta serem os clubes de
futebol profissional no Brasil “entidades sem fins
econômicos” – mais que um exemplo paradigmático da aplicação da frase de Lampedusa – constituem
a materialização da mudança como expediente de
engodo. A questão é estrutural para a compreensão
dos problemas e descaminhos da organização do
futebol brasileiro porque diz respeito aos entraves
políticos e administrativos que impedem a criação
de condições objetivas para a formação dos nossos
atletas e qualificação geral das competições nacionais profissionais (5). Desde sempre, quando se fala em mudanças no futebol brasileiro o tema vem
à tona; no entanto, muda-se para ficar no mesmo
lugar. Senão vejamos.
Ao estabelecer originalmente as bases de organização dos desportos em todo o país durante a ditadura do
Estado Novo, Getúlio Vargas proibiu a organização e
funcionamento de entidade desportiva de que resulte lucro
para os que nela empreguem capitais sob qualquer forma
(Decreto-Lei nº 3.199/41). Cinquenta e dois anos
depois, com o objetivo de instituir normas gerais sobre desporto, a “Lei Zico” (Lei nº 8.672/93), dentre
dezenas de assuntos tratados, deu aos clubes a faculdade de transformarem-se em sociedades comerciais
com finalidades desportivas; porém, a despeito da autorização legal, a “falta de apetite” dos dirigentes
esportivos para empreender levou-os a ignorar a
faculdade prevista em lei e continuar fruindo das
muitas benesses de que seus clubes e eles próprios
gozam em decorrência do status de “entidades filantrópicas”.
Passados menos de cinco anos da publicação da
“Lei Zico” sobreveio a “Lei Pelé” (Lei nº 9.615/98). A
nova lei, igualmente no bojo de dezenas de disposições atinentes às normas gerais sobre desporto, tornou
obrigatória a constituição ou contratação de sociedades
com fins econômicos ou comerciais para a prática de atividades relacionadas a competições de atletas profissionais.
Porém, às vésperas do término do prazo concedido
pela lei para efetivação das mudanças, a famigerada
15
132/2014
“bancada da bola” obteve do ex-presidente FHC a
criado um arcabouço legal adequado e suficiente
edição da Medida Provisória nº 2.011/2000, que repara a regulação da exploração e gestão do futeconverteu a obrigatoriedade imposta aos clubes à mera
bol profissional – não resolveu os graves problemas
faculdade. A medida provisória foi sacramentada pela
criados pela dissimulação dos negócios do futebol,
“Lei Maguito Vilela” (Lei nº 9.981/2000) que garanque continua operando através de uma estrutura de
tiria às “entidades sem fins lucrativos” continuarem
governança arcaica e carcomida por intermitentes
livremente contribuindo para a fortuna de seus diridenúncias de corrupção, cuja base é formada por
gentes e parceiros de negócios, como comprovam os
clubes em regra mal geridos por dirigentes acopatrimônios de Havelange, Teixeira et caterva.
bertados sob o manto dos estatutos jurídicos das
A questão da regulamentação legal da explo“entidades sem fins lucrativos”, que os protegem
ração econômica do futebol emergiria, uma vez
das normas tributárias e da responsabilidade civil
mais, em 2003; porém,
e penal pelos atos praticados
desta feita, a lei sancioà frente das entidades do funada pelo ex-presidente
tebol.
Lula não foi preordenada
a instituir normas gerais e
Duas propostas de
mudar totalmente a “Lei
mudanças legislativas
Pelé”; tampouco injetou
cirúrgicas e uma ação
gás no debate estéril sopolítico-administrativa
bre o direito (faculdade)
ou dever (obrigatoriedaVisto que as mudanças
de) dos clubes de futebol
amplas, gerais e irrestritas,
profissional de transforcomo nos casos do Decretomarem--se em empre-Lei nº 3.199/41, Leis Zico
sas. A Lei nº 10.672/2003
e Pelé, sempre tenderam a
concentrou-se, cirurgiregular o sistema desporticamente, no tema do modelo de
vo
nacional
garantindo a manuA principal inovação
exploração e gestão do futebol
tenção do status quo, penso que
legal deve incidir
profissional, alterando a “Lei Peo governo federal muito poderia
lé” para dispor que estas atividacontribuir com mudanças no sensobre o consórcio
des constituem exercício de atividade
tido da transformação caso tome a
entre a grande mídia e
econômica, sujeitando-se à obseriniciativa de encaminhar duas
vância dos princípios da transpaos cartolas. Os direitos inovações legais de âmbito esperência financeira e administrativa e
cífico e uma ação político-admide transmissão
da moralidade na gestão desportiva,
nistrativa.
dentre outros, independentemenA principal inovação legal derepresentam a maior
te de sua forma de constituição
ve incidir sobre o consórcio entre
parcela da receita
jurídica. Além disso, reconheceu
a grande mídia e os cartolas. Os
a organização desportiva do país
direitos de transmissão represendos grandes clubes
como patrimônio cultural brasileiro
tam a maior parcela da receita dos
e passam longe
de elevado interesse social, inclusive
grandes clubes e passam longe dos
para legitimar a atuação do Minisbalanços dos pequenos e médios.
dos balanços dos
tério Público na sua proteção e deAlém disso, os acordos financeiros
pequenos e médios
fesa. Concomitantemente à procelebrados pelos grandes clubes
mulgação da Lei nº 10.672/2013,
acabam por violar até mesmo o dio ex-presidente Lula promulgou a
reito dos torcedores, privando-os
Lei nº 10.671/2013, o Estatuto de Defesa do Torcede acesso às partidas graças a cláusulas de excludor, que instituiu um regime jurídico especial, arsividade incompatíveis com a natureza pública das
ticulado com o Código de Defesa do Consumidor,
concessões de radiotelevisão. É preciso criar uma lepara a proteção e defesa dos direitos individuais e
gislação específica que garanta a aplicação dos princoletivos dos torcedores brasileiros frente à organicípios da transparência financeira e da moralidade
zação desportiva.
nas negociações de direitos de transmissão; respeite
Não obstante, a realidade revela que a vigência
o direito dos torcedores, bem como institua a disdas leis promulgadas em 2003 – apesar de terem
tribuição solidária das receitas. Não parece justo ou
16
Copa 2014
Outra mudança
que deve ocorrer
na legislação é
a majoração da
idade mínima
para contratação
de jogadores
brasileiros por
clubes estrangeiros
e a proteção dos
direitos dos jovens
atletas; atualmente
é possível levar
adolescente para
fora do país a partir
dos 14 anos
adequado ao fortalecimento do
futebol profissional brasileiro
que meia dúzia
de grandes clubes, “sem fins
econômicos”,
açambarque
praticamente
todos os recursos gerados por
competições que
só
acontecem
com a participação de dezenas
de clubes de menor porte. O novo modelo deve
prever a distribuição igualitária de parte dos
recursos a todos
os participantes da competição, combinada com a
distribuição de parcela segundo o desempenho das
equipes.
Outra mudança que deve ocorrer na legislação
é a majoração da idade mínima para contratação
de jogadores brasileiros por clubes estrangeiros e a
proteção dos direitos dos jovens atletas; atualmente é possível levar adolescente para fora do país a
partir dos 14 anos. Por outro lado, os clubes devem
garantir aos atletas a formação necessária à cidadania e ao desenvolvimento sadio, garantindo ao
atleta adolescente a escolarização e o convívio com
a família.
Por fim, mas não menos importante, do governo
federal que anseia por mudanças depende exclusivamente a iniciativa de promover, diretamente ou
através de convênios, a fiscalização do cumprimento
das leis já em vigor pelos clubes, federações e CBF,
principalmente no que diz respeito à administração
de recursos públicos repassados e ao equilíbrio das
contas das entidades. Tanto o Ministério do Esporte
quanto os órgãos de controle, em especial o TCU e o
Ministério Público, cada um nos limites de suas competências, devem atuar para garantir a moralidade e
a transparência na gestão das entidades do futebol
brasileiro. Só assim poderemos criar condições para
alcançar a excelência dentro de campo e voltar a ostentar com orgulho a legenda de país do futebol.
*Antonio Rodrigues do Nascimento é advogado
e professor de Direito, especialista em Direito
Administrativo e Direito das Relações de Consumo,
autor de Futebol & relação de consumo (Editora
Manole, 2013)
Notas
(1) Artigo originalmente publicado no Blog do Sorrentino – Projetos para o Brasil: http://waltersorrentino.com.br/2013/03/25/
futebol-torcida-consumidor/
(2) http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2014/07/ministro-dos-esportes-pede-mudancas-no-futebol-brasileiro-marca-profunda.html. Acesso em 24/07/2014.
(3) http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2014/07/globonews-eleicoes-renata-lo-prete-entrevista-dilma-rousseff-pt.html.
Acesso em 24/07/2014.
(4)https://medium.com/@BomSensoFC/por-que-a-tragedia-da-copa-nao-afetara-a-cbf-a10386edfad2.
Acesso
em
24/07/2014.
(5) Futebol & relação de consumo. São Paulo: Manole, 2013.
17
132/2014
Para que o 7 x 1 não seja em vão
Fernando Damasceno e Cláudio Gonzalez*
Criado em setembro de 2013, Bom Senso
Futebol Clube ganha força após a Copa e passa
a contar com o apoio da presidenta Dilma
Foto: Roberto Stuckert Filho/ PR
Q
18
Presidenta Dilma Rousseff e o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, recebem Atletas do Bom Senso Futebol Clube
uando o árbitro mexicano Marco
Rodriguez apitou o final de jogo no
início da noite do último dia 8 de julho, no Estádio do Mineirão, em Belo Horizonte (MG), as reações pelo
Brasil afora foram as mais diversas.
Diante do placar de 7 a 1, da Alemanha sobre os anfitriões da Copa
do Mundo de Futebol, houve quem se limitasse a
chorar e outros que se viram enfurecidos. Não faltaram também os que preferiram beber para esquecer
a humilhação, tampouco os que saíram à caça de explicações razoáveis para tamanho vexame.
Foi grande o choque de realidade entre os que
tentaram entender a diferença abissal entre o futebol demonstrado por Brasil e Alemanha. Até a semi-
Copa 2014
final da Copa do Mundo, o time comandado por Luiz
Felipe Scolari nem de longe chegou a encantar o povo, mas suas vitórias serviram ao menos para que a
esperança a respeito do título fosse mantida. Diante
da goleada acachapante, restaram poucas dúvidas: o
“país do futebol” deixou de ser vanguarda e passou
à condição de aprendiz do esporte mais praticado em
todo o planeta.
Se essa constatação foi notada pela maioria da
população em um momento de dor, não faltaram
no meio esportivo determinados personagens que
há tempos alertavam para as carências do futebol
brasileiro dentro e fora de campo. Entre jornalistas
(poucos), dirigentes, empresários, árbitros, técnicos
e atletas, sempre houve vozes dissonantes e com capacidade de incomodar aqueles que comandam há
décadas a estrutura do futebol brasileiro. A partir dessa linha de pensamento, nos últimos anos ninguém
obteve mais destaque e exibiu maior capacidade de
organização do que o Bom Senso Futebol Clube.
Líderes e estratégia
organização do futebol no país: (1) mudanças no
calendário; (2) fair-play (jogo limpo) financeiro; e
(3) alterações para o conforto dos torcedores.
Discrepância em campo
Quando os atletas do Bom Senso mencionam o
problema do atual calendário, alguns dados saltam
aos olhos. Dos 684 clubes brasileiros, 583 não contam
com uma programação com atividades esportivas que
contemplem os 12 meses do ano. “Os clubes menores
e, consequentemente, todos os seus profissionais, são
muito prejudicados”, diz o trecho de um dos documentos do movimento.
De fato, o cenário é preocupante para os clubes
que estão longe da elite do esporte nacional. Por conta
da falta de planejamento da Confederação Brasileira
de Futebol (CBF), há equipes que disputarão em 2014
apenas 15 jogos oficiais, enquanto potências como
São Paulo, Corinthians ou Flamengo, com o acúmulo
de competições, poderão entrar em
campo até 85 vezes este ano.
Times principais
Diante desse cenário, pelo Brasil
disputam cerca de 68 afora é fácil encontrar atletas profissionais que trabalham apenas três
partidas por ano. Na
ou quatro meses por ano. Enquanto
isso, entre os clubes da primeira diEuropa, a média é de
visão o que se vê é um grande des50 jogos. Enquanto
gaste físico pelo excesso de jogos e
isso, é fácil encontrar a queda acentuada da qualidade do
futebol apresentado. A elite nacional
no Brasil atletas
joga cerca de 68 partidas por ano. Na
Inglaterra, a média é de 50 jogos; na
profissionais de
Espanha, 48; Na Itália, 45; e na Aletimes menores que
manha, nova campeã do mundo, os
principais atletas jogam em média
trabalham apenas
41 vezes na mesma temporada.
A articulação do movimento se
iniciou em meados de 2013, quando foi divulgado o calendário do
futebol brasileiro para 2014 – ano
marcado pela realização da Copa do
Mundo no país. Devido ao evento,
os jogadores teriam menor tempo
de férias e uma pré-temporada reduzida, elementos que, na opinião
dos líderes do Bom Senso, trariam
prejuízo à qualidade dos espetáculos e riscos à preparação física dos
atletas.
Entre as principais lideranças
três ou quatro meses
que se reuniram para debater alternativas ao modelo inicialmente
Finanças em dia
por ano
proposto para 2014 estavam jogadores consagrados, como o meia
O Bom Senso bate firme em
Alex (Coritiba), o goleiro Rogério Ceni (São Paulo),
uma tecla: os clubes brasileiros não podem gastar
o zagueiro Paulo André (ex-Corinthians, atualmente
mais dinheiro do que o montante que arrecadam. Sono futebol chinês) e o goleiro Dida (Internacional),
mente ao governo federal, as equipes devem cerca de
entre outros de menor fama. Desde então, milhares
R$ 2,5 bilhões.
de atletas – tanto da elite nacional quanto de divisões
“Isso ocorre porque não há controle financeiro efeinferiores – já manifestaram seu apoio ao Bom Senso
tivo sobre os clubes”, diz um dos documentos do Bom
e vêm ajudando na escolha de prioridades de discusSenso. “A falta de regulamentação permite a criação de
são para sua categoria.
uma bolha inflacionária”, corrobora o texto, que defenApós cerca de um ano de fundação do movide o chamado “jogo limpo” financeiro para assegurar
mento, inúmeros debates e diante da derrota soque as contas dos clubes não entrem em colapso.
frida pela seleção brasileira na Copa do Mundo,
A ideia dos atletas é criar uma espécie de agênos jogadores decidiram escolher três pontos como
cia reguladora para monitorar as atividades finanprioridade em sua estratégia por mudanças para a
ceiras dos clubes, dotada de autoridade para aplicar
19
132/2014
sanções como multas e penas esportivas em caso de
descumprimento das normas. O modelo é inspirado
na fórmula que vem sendo aplicada com sucesso em
cinco ligas europeias. Um dos resultados esperados
pelo Bom Senso é o de estimular investimentos em
longo prazo nos clubes, como na formação de atletas
e na infraestrutura, em detrimento do pagamento
de transferências milionárias e salários estratosféricos.
O cliente deveria ter
razão
vos extracampo para deixar de acompanhar in loco
os jogos de seu time.
O Bom Senso vê potencial no futebol brasileiro
para que o público volte a lotar as arenas do país,
mas crê que para isso é preciso unidade para enfrentar os interesses envolvidos, dos quais fazem
parte atores importantes como diversas autoridades
políticas, emissoras de televisão e
a própria estrutura arcaica que se
chavão que
propõe a organizar os espetáculos.
O velho
estabelece a relação
entre quem compra
e quem vende um
produto não tem
condições de ser
seguido à risca nos
estádios brasileiros
O velho chavão que estabelece a
relação entre quem compra e quem
vende um produto não tem condições de ser seguido à risca nos estádios brasileiros. Os atletas perceberam que o espetáculo por eles
protagonizado poderia apresentar
mais atrativos do que os atualmente oferecidos. Não é por acaso que
o Campeonato Brasileiro é apenas
o 18º torneio que mais recebe torcedores em todo o
mundo.
Seja pela má qualidade de transporte público
oferecido, pelo preço dos ingressos, pela falta de
segurança e comodidade ou pelo horário dos jogos
(muitos deles se encerram à meia-noite, durante a
semana), o torcedor brasileiro tem inúmeros moti-
Apoio do Palácio do
Planalto
Pouco antes do começo da Copa do Mundo, a presidenta Dilma
Rousseff e o ministro do Esporte,
Aldo Rebelo, receberam em Brasília representantes do Bom Senso.
Nesse primeiro contato, os atletas
puderam expor algumas de suas
ideias para modernizar o futebol
no país.
Após o primeiro encontro, alguns dos atletas se
mostraram satisfeitos pelo posicionamento da presidenta, que teria ficado “estarrecida” com alguns dos
relatos. Segundo os jogadores, Dilma se comprometeu na ocasião em ajudá-los em quatro frentes: fortalecer a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte
(LRFE); apoiar a democratização da estrutura políti-
Manifesto define diretrizes de luta dos atletas
Confira a seguir a íntegra da ata da primeira reunião do Bom Senso Futebol Clube e seu Manifesto de fundação:
“Hoje, dia 30 de setembro de 2013, reunimos pela primeira vez parte do grupo signatário do movimento Bom Senso F.C., que já conta com o apoio de mais
de 300 atletas das Séries A e B do Campeonato Brasileiro.
O encontro contou com a presença de 20 jogadores de vários clubes do país
e teve como objetivo definir propostas centrais para questões que têm repercutido no rendimento dos atletas e na qualidade do nosso futebol, tais como:
1- Calendário do futebol nacional
2- Férias dos atletas
3- Período adequado de pré-temporada
4- Fair-play Financeiro
5- Participação nos conselhos técnicos das entidades que regem o futebol
Ao fim da reunião, um documento foi assinado por todos os atletas presentes.
O mesmo será encaminhado à CBF requisitando um encontro para que possam
ser debatidos os temas acima, visando a benefícios ao futebol brasileiro.
Bom Senso Futebol Clube, Por um futebol melhor. Para quem joga, Para quem torce, Para quem transmite, Para
quem patrocina. Para quem apita. Por um futebol melhor para todos”.
20
Copa 2014
ca do esporte; garantir maior
segurança nos estádios; e
criar um Grupo de Trabalho
para desenvolvimento de
um Plano Nacional de Desenvolvimento do Futebol.
Após o resultado decepcionante na Copa, Dilma chamou novamente o Bom Senso
ao Palácio do Planalto. Uma
das medidas já anunciadas
pela presidenta diz respeito à
criação de mecanismos que
sirvam para evitar a migração
precoce dos talentos brasileiros para outros países.
Para tanto, o governo federal encomendou, junto à Fundação Getúlio Vargas,
um estudo que analisará os mercados futebolísticos
da França, Inglaterra e Polônia, países nos quais os
direitos econômicos dos atletas são exercidos prioritariamente pelos clubes, e não por empresários.
Legados da Copa
Antes da realização da Copa do Mundo no Brasil,
muito se discutia sobre os legados que seriam deixados após a realização do evento. Hoje se sabe que
muitos deles (como os estádios e as obras de infraestrutura) permanecerão, mas foi somente após o vexame dentro de campo que a sociedade vislumbrou
a possibilidade de mudanças mais profundas na organização do futebol brasileiro.
O Brasil, no entanto, tem condições de ir além. Daqui a exatos dois anos, em 5 de agosto de 2016, o Rio
de Janeiro receberá as Olimpíadas. Assim como o futebol, a estrutura que comanda os demais esportes no
país também apresenta uma série de problemas que
podem ser enfrentados por atletas de outras modalidades, dirigentes e até mesmo pelo governo federal.
Após a Copa, o Bom Senso divulgou uma Carta
Aberta na qual expôs suas críticas mais profundas à
CBF. Para mudar o esporte no país, os atletas pedem
maior democracia. “A falta de visão que desorienta o
nosso futebol é resultado direto deste processo político arcaico, em que treinadores, jogadores, árbitros
e executivos não têm quaisquer instrumentos para
incidir nas decisões relevantes do futebol no país”,
diz o texto, que tem como um alvo bem definido
o futebol, mas cujo conteúdo se estende às demais
modalidades esportivas do país.
Protestos em campo
marcam ascensão
do Bom Senso
C
riado em setembro de 2013, foram
necessários cerca de dois meses
para que o Bom Senso Futebol Clube
ganhasse maior visibilidade perante o cenário esportivo no Brasil.
A tática encontrada por seus líderes
exigiu um nível elevado de articulação. Sua
primeira manifestação ocorreu na 30ª rodada do Campeonato Brasileiro daquele ano,
já no final de outubro, quando os atletas
de todas as dez partidas da Série A deram
abraços coletivos antes dos jogos, para
demonstrar sua união.
Mas foi na 34ª rodada, já em meados de
novembro, que os atletas deram um passo
mais ousado diante da torcida e das câmeras
que transmitiam as partidas. Diante da indiferença da Confederação Brasileira de Futebol
(CBF) em estabelecer um diálogo para debater mudanças na estrutura do futebol no país,
em todos os jogos os atletas decidiram ficar
imóveis e com os braços cruzados durante
os 30 segundos iniciais de cada partida.
Seja pela TV ou ao vivo, nos estádios, o
recado dos atletas aos dirigentes se tornou
claro: o Bom Senso já contava com apoio o
bastante para iniciativas mais ousadas, como uma greve ampla, caso a CBF não aceitasse dialogar com o movimento.
*Da redação
21
132/2014
O goleiro do São Paulo, Rogério Ceni, fala durante evento de apresentação das propostas do Bom Senso F. C.
Líderes do Bom Senso se
destacam pela eloquência
A
fortável, tranquilão, vou jogar 90 minutos, tomar banho e
vou embora para casa. E o torcedor? O cara sai de casa
ou do trabalho, precisa ir para o estádio dez horas da
noite, assistir ao jogo, voltar para casa, e ainda precisa
acordar sete horas da manhã no outro dia. Poxa, isso
é desumano. Por isso que os estádios estão vazios. A
CBF é apenas uma sala de reuniões” – Alex, meia do
Coritiba, ao Diário Lance!
“Acho que a CBF não tem uma interferência dentro do futebol tão
grande. A CBF cuida apenas da
Seleção Brasileira. Quem realmente cuida do futebol brasileiro é a
Globo. A gente sabe que a Globo
trabalha na dependência da novela. A gente brinca aqui no Coritiba
que os jogos de quarta-feira só rolam depois do último
bei--jo da novela. Pô, a gente joga bola dez horas da
noite. Eu, que vou jogar, vejo uma situação ruim, preciso
ficar no hotel o dia inteiro esperando um jogo dez horas
da noite. Isso é ruim. Mas estou dentro de um hotel, con-
“Não acho que a seleção fracassou
tanto. As pessoas perderam a razão
e se deixam levar pela emoção e pelo placar de 7 a 1. Minha visão não
mudou por causa da Copa e nem minhas críticas. O Brasil, fazendo tudo
errado, chegou à semifinal. Algumas
informações: 70% dos atletas profissionais ficam desempregados seis meses por ano, clubes
grandes acumulam dívidas, dirigentes nunca são punidos,
clubes pequenos estão jogados às traças, jogadores entram na justiça do trabalho e podem esperar por até dez
anos pra receber os atrasados, a formação e a capacitação de profissionais é empírica e insuficiente e a média de
público nos estádios tem a 18ª posição no ranking mundial, atrás até de Estados Unidos e Austrália. Se não estamos no fundo do poço, estamos bem próximos dele. E a
solução dada pelos dirigentes do futebol brasileiro é trocar
a comissão técnica, o coordenador, o médico e o assessor
de imprensa da seleção. Tem que ter muita cara de pau,
não? Imagine se trilharmos o caminho correto? Seremos
imbatíveis” – Paulo André, zagueiro do Shanghai Shenhua, ao Diário do Centro do Mundo.
companhar entrevistas de jogadores de futebol,
seja no Brasil ou no exterior, costuma ser uma tarefa entediante. Cada vez mais tutelados por assessores de imprensa, os atletas se acostumaram a dizer
frases triviais, sem procurar qualquer tipo de polêmica ou
contestação em relação ao ambiente que os cerca.
Se em outros tempos o Brasil contou com exceções
como Sócrates, Afonsinho, Casagrande e Romário, hoje alguns dos líderes do Bom Senso demonstram ter a
capacidade de dialogar de igual para igual com outros
setores da sociedade, a fim de obter maiores conquistas para sua classe profissional e colocar o dedo em
algumas das feridas que há décadas atingem o futebol
nacional. Confira algumas dessas frases:
22
Capa
23
132/2014
Não há “terceira via”, mas dois
projetos em confronto
Morte trágica de Eduardo Campos e ascensão de uma nova
candidata embaralham o jogo eleitoral, mas não mudam a
essência da disputa presidencial, que continua girando em torno
de dois projetos de país: o democrático-nacional-popular liderado
por Dilma Rousseff e o financista-conservador de base neoliberal
representado pelas candidaturas de Aécio Neves e Marina Silva
N
Renato Rabelo*
o atual estágio, em agosto, a campanha
eleitoral presidencial no Brasil atingiu o
nível mais elevado de virulência da oposição contra a candidata Dilma Rousseff, que representa o novo ciclo político
progressista inaugurado por Luiz Inácio
Lula da Silva em 2003.
As forças políticas conservadoras internas e externas, vinculadas à dominância liberal
financeira do capitalismo, não suportam mais, tudo
fazem e tudo farão para barrar um quarto mandato
presidencial (completando 16 anos) das forças democráticas, populares e progressistas. “É demais”,
julgam eles! E intensificam por todos os modos a
contratendência reacionária.
No terreno da economia
O baixo crescimento (que se transformou em elemento importante da campanha) e a inflação (superdimensionada pelas forças conservadoras) têm sido
dois temas frequentemente utilizados pela oposição
para atacar o governo. Ela apregoa o fracasso da economia numa aposta contra o Brasil. No caso do baixo
crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a tática
oposicionista é clara: retiram os índices brasileiros do
ambiente internacional – isolando-os da interferência
externa de uma crise do capitalismo mundial que vem
desde 2008 influenciando os mercados em todos os
continentes. É bastante elucidativo o gráfico que ilustra este artigo, onde trazemos a lista do crescimento do
24
PIB por regiões, países e blocos econômicos ao longo
do tempo, comparados com o crescimento do Brasil.
Na primeira coluna apresentamos os PIBs de regiões, países e blocos durante o primeiro governo de
Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Depois, a mesma lista durante o segundo governo FHC, e assim sucessivamente durante os dois governos de Luiz Inácio
Lula da Silva e no atual governo de Dilma Rousseff. A
linha dos índices de crescimento do PIB no Brasil está
marcada em amarelo e os países que cresceram mais
que o Brasil em azul. Você verá que durante os dois governos de FHC praticamente todos os países cresceram
mais do que o nosso. Enquanto nos dois governos de
Lula e nestes três primeiros anos do governo Dilma, o
Brasil inverteu esta tendência crescendo bem mais do
que importantes países do chamado mundo desenvolvido, como Estados Unidos, França, Alemanha, entre
outros. O mais interessante é verificar na coluna do
período exato da crise do sistema financeiro mundial
(desencadeada a partir dos EUA) que de 2008 a 2013
o desempenho brasileiro foi bem acima do da maioria
dos países e regiões, ficando abaixo apenas do PIB da
China, da Índia, da Turquia e Polônia.
Em outras palavras – ao contrário de informar a
realidade dos fatos –, a oposição tenta enganar os eleitores extraindo os índices do seu contexto econômico
concreto. Mas temos de encarar a condição objetiva:
não há uma reação de superação dessa situação em
curto prazo no plano econômico. Antes, a ampliação da
distribuição de renda e maior inclusão social se faziam
com maior crescimento da economia. Esta situação po-
Eleições 2014
de que a inflação declina neste ano. E agora, Aécio?
Como fazer a campanha sistemática de que há um
“estouro inflacionário” inevitável? A inflação no período Lula e Dilma sempre esteve sob controle, diferente sim, do último mandato de Fernando Henrique
Cardoso quando a inflação disparou.
Outro aspecto importante dos ataques oposicionistas é motivo de forte disputa que se acirra neste
momento. Refere-se à política externa do Brasil, ou
seja, a linha de inserção soberana do país iniciada
pelo primeiro governo de Lula, continuada por Dilma. Isto contraria sobejamente os interesses das
forças conservadoras e dos
grandes círculos financeiCrescimento real do PIB
ros. Estes setores defendem
Médias anuais (%)
essencialmente a volta a um
alinhamento automático no
FHC FHC Lula Lula
Total Total
Dilma
Crise
plano econômico e político
1
2
1
2
FHC Lula
Países, regiões
Acumulado
com os EUA e a Europa.
e blocos
2003 2013
1995 1999 2003 2007 2011 1995 2003
2008
Contrariando esta ban1998 2002 2006 2010 2014 2002 2010
2013
deira oposicionista, em meados de julho realizou-se em
Mundo
3,5
3,4
4,7
3,2
3,4
3,4
3,9
3,8
2,9
Fortaleza, no Ceará, talvez a
Economias
3,0
2,7
2,8
0,6
1,7
2,9
1,7
1,6
0,7
reunião mais importante do
Avançadas
BRICS (Grupo integrado por
Área do Euro 2,4
2,4
2,0
0,2
0,4
2,4
1,1
0,8
-0,3
Brasil, Rússia, Índia, China e
União
2,7
2,6
2,6
0,3
0,8
2,7
1,5
1,2
-0,1
África do Sul). E agora, dianEuropeia
te do êxito histórico desta 6ª
Maiores
2,8
2,4
2,5
0,2
1,7
2,6
1,4
1,4
0,5
Cúpula do BRICS, se reforça
economias
a ação comum do Bloco em
1 EUA
3,9
2,9
3,2
0,3
2,3
3,4
1,7
1,8
1,0
decisões fundamentais que
2 China
9,5
8,4
11,0 10,8
8,0
8,9
10,9
10,2
9,0
abre caminho para alcance de
3 Índia
6,3
5,3
8,6
8,1
5,3
5,8
8,3
7,5
6,4
uma nova ordem mundial. E
4 Japão
1,0
0,7
1,8
0,0
1,0
0,8
0,9
0,9
0,1
a presidenta demonstrou sua
influente liderança trazendo
5 Alemanha
1,5
1,7
1,2
0,7
1,6
1,6
1,0
1,1
0,7
ao Brasil todos os países da
6 Rússia
-3,0
6,5
7,2
2,4
2,6
1,7
4,8
4,3
1,7
União de Nações Sul-Ameri7 Brasil
2,5
2,1
3,5
4,6
2,0
2,3
4,0
3,5
3,0
canas (Unasul) e o quarteto
8 França
2,2
2,4
1,9
0,2
0,8
2,3
1,0
1,0
0,1
da Comunidade de Estados
9 Reino Unido
3,7
2,9
3,3
-0,3
1,5
3,3
1,5
1,4
-0,2
Latino-Americanos e Caribe10 Itália
1,8
1,8
1,2
-0,9
-0,8
1,8
0,2
-0,2
-1,5
nhos (Celac), quando o Brasil
viveu uma semana de “gran11 Indonésia
1,5
3,3
5,3
5,8
6,0
2,4
5,5
5,7
5,9
des negócios” – os múltiplos
12 México
2,8
1,8
3,4
1,2
3,0
2,3
2,3
2,5
1,7
e proveitosos acordos realiza13 Espanha
3,7
4,0
3,5
0,0
-0,5
3,9
1,8
1,0
-1,0
dos com a China, Rússia e os
14 Canadá
3,2
3,6
2,7
0,9
2,1
3,4
1,8
1,9
1,3
outros membros do BRICS.
15 Coreia
3,9
7,6
4,1
3,5
3,1
5,7
3,8
3,5
2,9
Mais importante ainda:
nesta reunião de cúpula foi
16 Turquia
6,2
0,8
7,5
2,3
4,3
3,5
4,8
4,9
3,3
assinado o acordo de cons17 Austrália
4,1
3,5
3,2
2,7
2,8
3,8
3,0
3,0
2,5
tituição do Novo Banco de
18 Polônia
6,3
2,8
4,8
4,3
2,8
4,5
4,5
4,0
3,1
Desenvolvimento (NBD) pa19 Holanda
3,7
2,6
2,0
0,9
-0,1
3,2
1,4
0,9
-0,3
ra o BRICS. A sede do banco
20 África do Sul
2,6
3,2
4,6
2,7
2,6
2,9
3,6
3,4
2,2
ficará na China e o primeiro
presidente será indiano. O
Fonte: FMI. (para 2014 World Economic Database April 2014)
dia amortecer, em certo grau, as contradições básicas
entre os setores dominantes do sistema e as políticas
de maior conquista social. Agora com crescimento modesto é que as forças conservadoras vão explorar onde
poderão mais promover a cizânia, estimulando a desconfiança e o descrédito no governo, no meio empresarial e no seio do povo.
A outra temática recorrente é a questão da inflação. Verificamos com a divulgação do Índice Nacional
de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) na primeira semana de agosto que ingressamos no quarto mês
consecutivo de queda na inflação. A previsão geral é
25
132/2014
Brasil indicou o primeiro presidente do Conselho de
Administração do banco, que terá como objetivo o financiamento de projetos de infraestrutura em países
emergentes – com capital inicial de US$ 50 bilhões,
mas que poderá chegar a US$ 100 bilhões.
ra no Pinel”, disse Holanda Barbosa. A prática desmascarou, assim, um conceito básico da ortodoxia
neoliberal.
Daí a desconfiança crescente dos monopólios financeiros e do conjunto das forças conservadoras
em relação ao governo da presidenta Dilma. Eles
A América Latina e o Brasil
não querem perder. Ao contrário, impõem garantias para ganhar mais, nesse momento de crise gloNo caso da América Latina, com o avanço políbal financeira e econômica e de baixa do crescimentico das esquerdas e das forças democráticas – em
to econômico em seu conjunto. Isso se reflete agora
luta contra as forças conservadoras e pró-imperiano embate aceso acerca do aumento real contínuo
listas, fundamentalmente –, estamos diante do emdo salário mínimo, da manutenção de elevado nível
bate entre o projeto democrático popular, e suas
de emprego, da contenção da elevação dos juros, de
variantes, e as imposições do projeto financeiro
diminuição do superávit primário, de câmbio meliberalizante, assentado nos paradigmas neolibenos valorizado, e de protagonismo do Estado, não
rais. Por isso que, no caso do Brasil, afirmamos que
do mercado, na distribuição de renda e na condunos encontramos, nestas eleições
ção da economia.
de 2014, diante de uma encruziOra, diante dessa situação, o
lhada: avançar no projeto demoprincipal candidato da oposição, AéO atual governo
crático e popular, aprofundando
cio Neves, em função de seus comfaz esforços para
as mudanças, ou retroceder ao
promissos fundamentais, é quem
projeto da oligarquia financeira
incorpora o projeto liberal e finanenfrentar a situação
neoliberalizante. Estão em jogo,
ceiro e vai defender a volta ao aliatual sem penalizar
assim, a perspectiva e o futuro do
nhamento principal com os EUA e
Brasil, com suas implicações, pela
seus aliados. O resultado é que Aécio
os trabalhadores
dimensão do país, no contexto do
procura resgatar Fernando Henrique
e nem recuar dos
curso político e econômico neste
Cardoso, e a fonte de seu modelo e
continente – reforçando ou abaprojeto para o país. Por isso cerca-se
investimentos
lando o caminho democrático e
dos ideólogos e condutores da polítisociais. A linha
popular.
ca neoliberal aplicada na década de
Nas condições atuais do Brasil,
1990 pelos governos de FHC, como
de distribuição
na luta entre continuar o avanço
Pedro Malan e Armínio Fraga. Esse
de renda foi o
das mudanças ou retroceder, com
é o seu lado e o seu rumo.
a predominância do baixo cresPortanto, diante da questão de
próprio motor do
cimento da economia, se eleva a
fundo de “quem pagará a conta?”,
desenvolvimento,
radicalização. Nessa situação qual
o lado que assume Aécio não pode
o fundo da questão? Em última
ser o dos trabalhadores, ou seja,
desde Lula, seguido
instância é: quem pagará a conta?
da maioria do povo. O seu modelo
por Dilma
Por isso, quando a presidenta Dile projeto real é identificado com a
ma afirma não ter sido “eleita palinha de compromissos com a olira trair a confiança do povo, nem
garquia financeira e seus sócios, e a
para arrochar o salário dos trabalhadores”, mesmo
hegemonia política do imperialismo estadunidense e
numa situação de impacto da crise mundial do cadas grandes potências capitalistas.
pitalismo e do baixo crescimento econômico do país,
A prova maior disso é que nos altos círculos finanela toma posição ao lado dos trabalhadores: estes
ceiros e monopolistas não se escondem a preferência
não deverão pagar a conta!
e esforço pela vitória da oposição, protagonizada pela
Sim, o atual governo faz esforços para enfrentar
candidatura Aécio. Porta-vozes desses círculos afira situação atual sem penalizar os trabalhadores e
mam que em um “choque de credibilidade” – ou seja,
nem recuar dos investimentos sociais. A linha de
dar-lhes as garantias de suas exigências – “um goverdistribuição de renda foi o próprio motor do deno Aécio teria muito mais força do que um segundo
senvolvimento, desde Lula, seguido por Dilma. O
governo Dilma” para assim agir. Dizem, com Aécio o
salário mínimo subiu em termos reais, caíram o
“aperto fiscal será maior, a Selic deverá subir mais, o
desemprego, o trabalho informal e a desigualdade:
realinhamento de tarifas de serviços públicos poderá
“se alguém dissesse isso em 2002 iam trancar o caser feito rapidamente”. Isso é só a ponta do iceberg.
26
Eleições 2014
Sabemos quem ganha efetivamente com isso.
Estas medidas são parte das políticas impopulares,
deixadas escapulir em um pronunciamento pelo presidenciável Aécio. A sua lógica maior é que a única saída passa pelo resgate – primeiro dos donos do
grande capital – para depois (se der) transferir certa
renda para uma parte da população. Em suma, governam voltados para atender a um terço da população. Assim foi realmente o que aconteceu durante o
período de governo de FHC.
Oposição camufla seu projeto
Em consequência destes fatores é que os principais candidatos da oposição não apresentam
abertamente seus projetos, não deixando explícita
qual a sua real alternativa. Suas práticas tornam-se
expressão de notória contradição. Em recente entrevista do presidenciável Aécio Neves para órgãos
conjuntos da mídia e sites da internet, e agora no
Jornal Nacional da TV Globo, ele procura se apresentar como candidato da “mudança” (Qual mudança?); evita ser especifico na apresentação de
propostas, principalmente na área econômica, para
não perder votos. No terreno político, o tucano não
tem como dizer que a articulação de um eventual
governo seu será diferente da do modelo atual de
alianças; na área social Aécio promete manter programas sociais, numa atitude de disfarce no contexto eleitoral.
Nos meios intelectuais, “cientistas políticos” e
outros menos cotados tendem a nivelar a candidatura de Dilma com os demais da oposição. Defendem um ponto de vista de que há uma ausência
de projeto e propostas em todos, neste período da
luta politica-eleitoral. Apresentam um quadro em
que os três candidatos principais não entusiasmam,
não reacendem a esperança.
A oposição não podendo apresentar um projeto
explícito se concentra no viés antiDilma. Desde a
antecipação da campanha presidencial, há um ano,
o consórcio oposicionista, tendo os grandes grupos
monopolistas da mídia verberando para milhões,
vem deflagrando de fato uma contínua e crescente
campanha de descrédito da presidenta Dilma, atiçando o descontentamento, açulando o preconceito contra a primeira mulher presidenta do Brasil,
inflando até o rancor em camadas médias altas da
população.
A campanha midiática e da oposição formal
encadeia um movimento a outro, passando assim
sucessivamente pelo vaticínio de uma “tempestade
perfeita”que arrastaria o Brasil para uma aguda crise, ao recorrente apelo de apagão elétrico que não
surge, ao denuncismo eleitoral contra a Petrobras,
enquanto a própria Goldman Sachs elege a estatal
brasileira como investimento prioritário na área de
energia na região; aos vaticínios de pesado alarmismo acerca da inviabilidade da realização da Copa
Mundial de Futebol no Brasil. Vejam que um após
outro anúncio não se confirmam.
A situação chega ao paroxismo quando se busca
de qualquer modo, através de pretextos gratuitos,
culpar a presidenta por tudo o que acontece. A realização da Copa no Brasil foi um grande êxito de
organização, segurança e hospitalidade. Desconsolados com isso, encontraram na desastrosa derrota
do Brasil diante da Alemanha o fato que pudesse
reverter o êxito da Copa, açulando a perspectiva de
que a derrota da Seleção prejudicaria Dilma na corrida eleitoral.
Em suma, estamos no curso de um grande
embate político e ideológico, da luta polarizada e
radicalizada entre dois projetos opostos de desenvolvimento e mudança; em vez do debate aberto e
comparativo de programas, o principal candidato
da oposição é inespecífico (os demais também),
prega uma “mudança”, escondendo seu conteúdo
essencial – mudar para trás –, falseia a realidade,
concentra sua tática em desacreditar a presidenta
açulando o preconceito e o ódio; numa demonstração de fachada eleitoral, visando a ganhar votos na área popular, faz promessa sem autoridade
para isso, de manter programas sociais de Lula e
Dilma.
Temos a convicção e a confiança de que a presidenta é uma liderança capaz de renovar a esperança e conduzir o Brasil a uma nova etapa de
desenvolvimento. Nesse sentido, ela chega à conclusão de que alcançamos o limiar de um “novo
ciclo histórico” em nosso país para consolidar e
aprofundar ainda mais as conquistas (Convenção
Nacional do PT). Em decorrência disto, apresenta o que ela define como um Plano de Transformação Nacional, concebido para realizar
o grande conjunto de mudanças. Convergindo
com essa assertiva é que o PCdoB ofereceu à candidata um conjunto de ideias e propostas ao seu
governo.
O avanço das mudanças, conforme o Partido
tem assinalado, para além de uma necessária coalizão ampla, exige o protagonismo de uma esquerda
forte e da mobilização dos movimentos sociais. E
para que tenhamos uma esquerda forte no Brasil
é indispensável, nestas eleições, a vitória do projeto eleitoral dos comunistas que será construída em
sinergia com a grande mobilização nacional pela
vitória de Dilma e dos nossos aliados.
27
132/2014
Pouco antes desta edição de Princípios ir para a gráfica, ocorreu o acidente aéreo que tirou a vida do exgovernador de Pernambuco e candidato à presidência da República pelo PSB, Eduardo Campos, junto com
os dois pilotos da aeronave e quatro assessores do candidato. Diante do trágico acontecimento, Princípios
pediu ao autor do artigo, Renato Rebelo, que incluísse no texto algumas reflexões sobre esta perda trágica
para a política brasileira e avaliasse os impactos e o significado da candidatura de Marina Silva. Veja abaixo:
Antes de mais nada, é preciso
Ao mesmo tempo, é preciso
dizer que o PCdoB sempre teve
registrar que a candidatura de
uma relação muito próxima com
Eduardo Campos, ao se distanciar
o PSB e com o ex-governador.
do campo de esquerda, levado a
Compartilhamos do espanto e da
buscar alianças e compromissos à
dor que o Brasil sente pela morte
direita do espectro político e, posdo amigo e companheiro de lutas
teriormente, na incorporação de
Eduardo Campos e nos solidarizaMarina Silva ao PSB, passou a vimos com o sofrimento dos famiver um dilema que refletia em poliares e amigos de todas as vítimas
sições contraditórias no esboço de
desta tragédia.
seu programa. Este ainda não tiMarina não tem
A relação política e amizade
nha chegado a ter uma fisionomia
entre o PCdoB e o candidato e
definida, apesar de emitir indicacompromissos
presidente do PSB vem de longe.
ções de um modelo de desenvolnítidos com a
Desde o início de sua militância
vimento nacional comprometido
política no movimento estudantil
com as exigências impostas pesoberania do Brasil,
e intensifica-se nas jornadas com
los grandes círculos financeiros
com o avanço
Miguel Arraes à frente do governo
globalizados e brasileiros, nas
de Pernambuco, seu avô e grancondições atuais da grande crise
democrático,
de amigo dos comunistas. Essa
financeira e econômica mundial.
com a política de
parceria política se eleva quando
Portanto, exprimindo um sentio PCdoB apoia as campanhas de
do político de alcance nacional
valorização da
Eduardo ao governo de Pernamcontrário à estratégia e tática,
renda do trabalho,
buco, em 2006 e em 2010, fazendo
defendidas pelo PCdoB. Ora, departe também da sua equipe de
pois da morte trágica de Eduardo
do salário mínimo
governo.
Campos, o PSB homologou a cane de garantia de
Na esfera nacional, nos dois
didatura de Marina Silva à presigovernos do presidente Lula, quer
dência da República, após grande
elevado nível de
seja como presidente do PSB, depressão da mídia reacionária e de
emprego. Ela tem
putado federal ou ministro de Estarepresentantes do grande capital
do, Campos partilhou com o nosso
financeiro, resultando um arranjo
real compromisso
Partido de várias iniciativas com o
de mútuo interesse pragmático,
com interesses
intuito de apoiar o governo e fazer
entre Marina e o PSB.
avançar as mudanças.
alienígenas e
Candidatura de Marina
Na atual sucessão presidencial,
tendenciosos
vem embalada pelo disembora legitimamente Eduardo
curso neoliberal
tenha optado por um caminho dide ONGS
ferente do nosso, vínhamos preinternacionais
A tendência que vai prevalecenservando o diálogo e o respeito redo, considerando os últimos aconcíproco e nunca o PCdoB duvidou
tecimentos, é de Marina se comda possibilidade de reencontro poprometer mais com o modelo neoliberal de resgate da
lítico.
oligarquia financeira dentro e fora do país. Mas, em
Neste sentido, avaliamos que a morte repentina
decorrência da realidade contraditória que passou a vide Eduardo Campos é uma tragédia que não apenas
ver o PSB, muitas lideranças desse Partido defendem
ceifou a vida de um pai de família, um companheiro
posições que se aproximam do campo democrático
de lutas, um amigo de muitas jornadas. Ela roubou
progressista.
da nação uma liderança promissora.
28
Eleições 2014
As primeiras sondagens de opinião, de forma
planejada pelo consórcio oposicionista, foram realizadas num ambiente de comoção provocada pela
morte repentina de Eduardo Campos. Ainda é preciso acompanhar os desdobramentos sobre o curso
político-eleitoral para se certificar das tendências
predominantes.
Entretanto os acontecimentos recentes já demonstram que a candidatura de Marina Silva altera o quadro eleitoral. Ela já tinha obtido um
quinto dos votos válidos na eleição presidencial de
2010. Além disso, agora, os grandes grupos midiáticos agem semeando uma imagem messiânica da
candidata da Rede/PSB e capitalizando para ela o
sentimento irradiado de insatisfação nos diversos
estratos sociais. Assim, pode-se presumir maior
competitividade dessa candidatura, abrindo com
seu ingresso na disputa maior possibilidade de realização de segundo turno.
Diante dessa nova situação podemos dizer que
vai se conformando um realinhamento de forças que
não foge à polarização fundamental: entre a tendência democrática, nacional e popular e a tendência financeira liberal, de base neoliberal. Essa polarização
existe no Brasil hoje e em geral na América Latina,
obviamente, diferenciando o nível de consequência
e avanço dos projetos em cada país. Em nosso país
agora, tendo presente o que está em jogo e o sentido histórico das eleições presidenciais, a propalada
“terceira via” serve a quem? É um expediente político que serve objetivamente à direita, aos estratos
dominantes conservadores, aos defensores de matiz
neoliberal.
A prova é que são eles a bradar interessados na
existência dessa terceira via de aparência, numa tentativa de contar com dois planos de ação, A e B, cuja
estratégia comum de seus propósitos é: interromper
o ciclo político aberto por Lula no Brasil, derrotando
agora a presidenta Dilma na reeleição à presidência
da República. A candidatura de maior confiança desses círculos financeiro-liberal-conservadores é de Aécio Neves, portanto, o plano A; mas, eles procuram
considerar um plano B, que também possa servir aos
seus interesses, desta feita por meio da candidatura
de Marina, que pode até se tornar a alternativa principal do campo oposicionista, conforme a evolução da
situação. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso já afirmava desde antes, que seria válida a vitória
de qualquer candidato, uma vez que derrotasse a presidenta Dilma e as forças progressistas. E agora, com
a candidatura de Marina dando sinais de se inclinar
à direita, altos representantes do sistema financeiro e
seus acólitos se assanham em vender essa candidatura como protagonista de uma “nova política”.
Uma nova encruzilhada
Desde há muito Marina vem dando acenos de
aproximação com as forças reacionárias e revanchistas contrárias ao período Lula/Dilma, concentrando
seu alvo de ataque nessa última. Apesar disso, Marina
demonstra certa incompatibilidade na relação com os
tucanos, vide sua contrariedade nas alianças acordadas pelo PSB em São Paulo, Paraná, Santa Catarina. Na
área econômica, agora na disputa presidencial, figuras
proeminentes e instituições da alta finanças vêm abertamente destacando em Marina suas afinidades com
as definições, diretrizes e determinações da oligarquia
financeira. Eles se exprimem confiantes, sugerindo ser
uma possível aliada a suas exigências. Em prova disso, Marina tem demonstrado ser moldável e ajustada
aos paradigmas neoliberais e dobrável aos interesses
geopolíticos dos Estados Unidos e Europa, contrária à
nova situação advinda no esforço de integração sul e
latino-americana, e na parceria geoestratégica formada
pelo BRICS. Marina incorpora uma cênica messiânica,
diz que a tragédia recém-acontecida “estava escrita”,
portando-se como uma predestinada pela “providência
divina” a salvar o Brasil da “velha política” e dos “novos costumes”. Isso nos permite dizer que ela assume
um perfil obscurantista e fundamentalista, distante do
curso do avanço civilizacional.
Marina não tem compromissos nítidos com a soberania do Brasil, com o avanço democrático, com a
política de valorização da renda do trabalho, do salário mínimo e de garantia de elevado nível de emprego.
Ela tem real compromisso com interesses alienígenas e
tendenciosos de ONGS internacionais, estando afastada do desafio de firmar a inserção soberana do Brasil,
elevar o seu protagonismo no atual contexto internacional. É dever dos comunistas dizer forte e em bom
tom para o povo brasileiro que, nestas eleições de 2014,
estamos diante de uma encruzilhada: as mudanças
democráticas e progressistas, o ascenso social de vastas camadas empobrecidas da população, a extensão
do mercado interno, e a elevação do papel do Brasil
na cena internacional, iniciados em 2003, só poderão
seguir e avançar com a reeleição da presidenta Dilma,
sendo ela apoiada em todos os sentidos pelo ex-presidente Lula; fora desse caminho – seguindo o outro
caminho da encruzilhada –, temos a convicção de que
faremos um caminho de volta, de retrocesso das conquistas econômicas com distribuição de renda, do progresso social e da afirmação soberana do Brasil. Essa é
a grande batalha de sentido nacional diante do povo
brasileiro nas eleições de 2014.
* Renato Rabelo é presidente nacional do Partido
Comunista do Brasil
29
132/2014
O discreto charme de Marina Silva
Sérgio Saraiva*
Marina Silva personifica uma contradição sedutora, sorri para a
modernidade enquanto se apresenta confiável ao conservadorismo.
Depois de Collor de Mello e FHC, é o novo ilusionismo da direita
Marina e o olhar às nuvens
M
arina é um caso de radicalismo improvável de ser posto em prática. Alimenta simultaneamente esperanças nos extremos
do nosso espectro político. A extrema-esquerda e a
direita se unem para apoiá-la. “Terceira via” paradoxal, Marina faz oposição ao centro.
Um governo Marina é a garantia da traição a um
dos lados que hoje a apoiam.
No entanto, messiânica, parece trazer em si a
certeza das ações necessárias para a consecução de
cada uma dessas esperanças. Marina não tem a solução dos problemas, Marina seria a solução. Mas
uma solução que não se dá à maçada de apresentar
propostas concretas.
Marina encarna um discurso de crítica ao sistema. Mas é algo pensado para ser vago, fugidio. É como olhar as nuvens. Cada um vê nelas o que quer
ver, as nuvens em momento algum se responsabilizam por nossos sonhos, apenas os inspiram.
Marina tem um quê de modernidade que se expressa em um falar protofilosófico que parece ser
compreensível apenas aos iniciados, mas, sem dúvida, transmite confiança no que fala. E, assim, afasta
o contraditório. Para fazer o contraditório é necessário entender os argumentos do interlocutor. Se o que
se ouve não passar de um jogo de palavras pretensamente modernoso, como contraditá-lo?
Marina pode ser tudo, mas tola ela não é, vai adiar
o quanto puder o debate sobre suas contradições.
Marina Silva é um poço de
contradições
Marina tem origem no movimento ecológico,
mas há muito isso deixou de ser seu campo de militância. Alguém se lembra da última causa na qual
Marina esteve à frente, dando a cara à tapa? 30
Vinda das classes populares, de pequenos agricultores e extrativistas da floresta amazônica, Marina tornou-se ícone da classe média urbana do Sudeste e Sul. Já há tempo que o Acre deixou de ser seu
referencial.
Na Folha de S.Paulo, a colunista Eliane Cantanhêde, dias atrás, saudava uma das características de
Marina que deve ajudá-la em muito na conquista
de votos – é evangélica. Mas Marina não encarna a
“nova política”, aquela na qual não se trata eleitores
como se fossem parte do “curral eleitoral” do candidato?
Questionar Marina sobre sua posição em relação à
descriminação do aborto é ocioso. Mas ninguém ainda perguntou à Marina a sua posição sobre o ensino
religioso nas escolas públicas. Ou sobre o currículo
escolar das aulas de ciências no ensino fundamental
ou de biologia no ensino médio. Musa dos “verdes”,
é criacionista. Sua posição sobre esses assuntos seria
muito relevante para seus eleitores.
Apesar de ser lembrada pela causa ecológica, Marina é apoiada por banqueiros e industriais. A Natura e o Itaú são quase parte do seu partido. Se é que
não são o seu “partido”, já que o Rede ainda habita o
campo das possibilidades.
Eleições 2014
Alguém já ouviu uma palavra de Marina sobre a
manutenção das conquistas sociais dos últimos 12
anos? O Bolsa Família, o PROUNI, o PRONATEC, o
“Mais Médicos” e a recomposição do valor do salário
mínimo, por exemplo?
O que sabemos de Marina a respeito da política
econômica? Que Marina defende a ortodoxia neoliberal expressa no tripé – metas de inflação, superávit
primário e câmbio flutuante.
Música para os ouvidos da especulação financeira.
Metas de inflação são alcançadas, no mais das
vezes, com juros altos e trazendo a inevitável redução da atividade econômica, mas altos ganhos ao setor financeiro. O superávit primário vai garantir os
recursos necessários para pagar os tais juros, mas,
com a redução da atividade econômica, a solução é o
corte dos gastos sociais. E o câmbio flutuante garante os ganhos de capital pela simples intermediação
financeira praticada por fundos de investimentos internacionais ou sediados em “paraísos fiscais” e nos
coloca vulneráveis a ataques especulativos que realimentam o processo de especulação. Por fim, com a
livre circulação de capitais, base da ideia de câmbio
flutuante, está assegurada a expatriação integral dos
lucros dos “investidores internacionais” e dos investidores internacionais. Algum jornalista já questionou Marina sobre isso
e se isso não seria uma retomada do modelo do governo FHC?
E quanto ao papel do Banco Central na condução da política econômica? Bom, em relação a
isso, Marina já se posicionou. E claro, ela é favorável à autonomia do Banco Central – não autonomia formal, mas autonomia de facto.
“Nós não defendemos a formalização da autonomia do Banco Central. Na realidade, a autonomia já faz parte das leis que pertencem a
esse ramo do direito. Mesmo que (a autonomia)
não seja formalizada ela se estabelece a partir do
consenso social, político cultural. (Se isso fosse
para o debate do Congresso), criaria um risco de
colocar em discussão uma questão como essa. Se
um grupo decidir que não terá autonomia, nós
estaríamos diante de uma fragilização dos instrumentos de política macroeconômica que não
é desejada. Não há necessidade de institucionalização”. Um exemplo da prolixidade a serviço da dissimulação de intenções. E pensar que Aécio apanhou um bocado por ter
se comprometido com as tais “medidas impopulares”.
Há ainda outras questões em aberto em relação a
um hipotético governo de Marina Silva.
Marina é uma adversária do agronegócio – os
tais “latifundiários”. Ocorre que o agronegócio não
é mais, no Brasil, apenas a agricultura e a pecuária tradicionais. O conceito correto para nós é o da
agroindústria. Trata-se da nossa área de maior desenvolvimento tecnológico, um dos nossos maiores
empregadores, inclusive com empregos de nível superior, e a principal fonte de exportações brasileiras
e uma das nossas garantias contra a inflação. Qual
será a fonte de receitas que Marina irá buscar para
substituí-lo? Turismo ecológico?
É bom que se pergunte isso a Marina. Como
também sobre qual a sua opinião em relação à área
da mineração, da exploração do pré-sal e da geração de energia elétrica. E sobre a privatização e o
papel do Estado como indutor do desenvolvimento
econômico.
Precisamos conversar sobre Marina
Aécio não conseguiu formar empatia com o eleitor, patina na casa dos 20% de intenções de voto
há meses. Só cresce agregando “in extremis” o voto
de ódio antipetista. Mas nem assim as pesquisas
apontam uma vitória, sequer um segundo turno é
garantido. Tem, além disso, todo o passivo dos seus
governos e correligionários em Minas.
Marina não. Pode-se moldá-la às expectativas
dos sonhadores, dos indecisos e dos insatisfeitos. E,
com ela, é possível odiar o PT sem ter de baixar ao
nível do calão, de mandar a presidente da República
“tomar no ....”.
Garante a volta do conservadorismo ao poder,
mas com a leveza de uma “sacerdotisa dos povos da
floresta”.
Um símbolo charmoso e dissimulado como o
foram os ares de modernidade e dinamismo com
Collor de Mello e de intelectualidade com Fernando Henrique Cardoso. E esses governos foram o que
foram.
Por tudo isso, aqueles que defendem a posição
da esquerda, da socialdemocracia, precisam muito
falar sobre Marina, apontar mais uma tentativa de
engodo.
Depois de Collor de Mello e FHC, Marina é o novo
ilusionismo da direita.
*Sergio Saraiva é pedagogo e químico com pós-graduação
em gerência da produção. Durante 20 anos foi operário do
ABC paulista, professor universitário e da rede pública de
ensino. Atualmente trabalha com consultoria e treinamento
na área de gestão Texto publicado originalmente em: http://jornalggn.com.br/blog/sergio-saraiva
31
132/2014
As mulas-sem-cabeça de Aécio
Neves e Marina Silva
Osvaldo Bertolino*
O debate sobre o atual quadro econômico brasileiro, no
âmbito da campanha eleitoral da sucessão presidencial,
é talvez a maior vitrine de pessoas e ideias que resistem
ferozmente ao avanço das concepções progressistas no Brasil
CABEÇAS DO NEOLIBERALISMO: André Lara Resende, Armínio Fraga, Edmar Bacha,
Eduardo Gianetti, Elena Landau, Gustavo Franco, Neca Setubal e Pedro Malan
32
O
Eleições 2014
vocabulário das principais cabeças
cio Lula da Silva (especialmente o período em que
ideológicas dos projetos das duas canAntônio Palocci reinou absoluto como ministro da
didaturas da direita – Armínio Fraga
Fazenda). Ele fez eco às palavras da candidata que
(Aécio Neves), André Lara Resende e
tem defendido o chamado “tripé” (superávit primáEduardo Giannetti (Marina Silva) – é
rio, câmbio flutuante e metas de inflação).
o samba de uma nota só do velho projeto neoliberal, que de tanto ser repetido
Receita de Simonsen
dói nos ouvidos: independência do
Banco Central (em bom português:
O Brasil conhece bem essa reentregar a gestão da economia braceita. A rigor, ela começou a ser imO samba de uma
sileira ao sistema financeiro interplementada ainda nos governos da
nacional), melhorar o ambiente de
ditadura militar de 1964. Em 1979,
nota só do velho
negócios, simplificar tributos, reo então ministro do Planejamento,
projeto neoliberal,
verter políticas consideradas interMário Henrique Simonsen, ao deivencionistas na economia e abrir
xar o comando da equipe econôque de tanto ser
mais o país à competição internamica recomendou ao seu sucessor,
repetido dói nos
cional. Os três professam a religião
Antônio Delfim Netto, suas ideias
de Wall Street e não deixam dúsobre “estabilidade”, “necessidade
ouvidos, inclui:
vidas a respeito do diapasão pelo
de ajustes” e “austeridade fiscal”.
independência
qual estão afinando as propostas
Por trás das palavras de Simonsen
dos seus candidatos.
estavam concepções plantadas pedo Banco
Na tradução para um idioma
la ditadura e que resultaram, nos
Central, melhorar
menos áspero, o que eles propõem
anos 1980, na famosa “década
são medidas como um novo plaperdida”. Somava-se ao diagnóstio ambiente
no de privatizações, contenção do
co conservador a afirmação de Side negócios,
salário mínimo e revisão da polímonsen de que o Brasil não teria
tica de desonerações, o incentivo
como sustentar o ritmo vigoroso de
simplificar tributos,
ao consumo. Eles fazem parte de
crescimento dos anos 1970 e que
reverter políticas
um grupo integrado por rostos
“duros ajustes” eram necessários.
O resultado? Bem, não é preciso
bem conhecidos, ícones da nefasconsideradas
muito conhecimento sobre econota “era FHC”, como Edmar Bacha,
intervencionistas
mia para saber quem pagou a conta
Gustavo Franco e Elena Landau.
daquele desastre. As marcas na viAécio Neves reforçou os chavões
na economia e
da do país foram profundas: inflaneoliberais ao falar sobre as muabrir mais o país
ção fora de controle por longos 15
danças que pretende realizar, caanos, o que originou uma sucessão
so seja eleito. Citou entre elas “a
à competição
de fracassados planos econômicos;
redução da intervenção do Estado
internacional
pouco investimento em atividades
na economia” e a adoção de mediprodutivas; descrédito internaciodas “para deixar nossos custos de
nal e por aí a lista segue. Chegamos
produção menos onerosos”. Aécio
à “estabilidade” da “era FHC” e por consequência ao
também listou, nos itens da sua plataforma econôfundo do poço. A reedição dessa ladainha agora inmica, o “resgate dos pilares da nossa economia, codica que infelizmente aquela história está querendo
mo estabilidade da moeda, responsabilidade fiscal e
renascer das cinzas. Mais uma vez, duas correntes
livre flutuação do câmbio”.
de opinião divergentes marcam o debate econômico.
Marina Silva ainda não se pronunciou longamente sobre o tema, mas o seu rumo não difere em nada
Obsessão nacional
deste de Aécio. Contudo, em recente entrevista à revista Época, das Organizações Globo, Lara Resende
A primeira coloca a “estabilidade” acima de tudisse que “não há nenhuma garantia de que mais
do; a segunda defende que o país deve buscar crescer
interferência do Estado signifique necessariamenmais e mais e explica que isso não será possível sem
te menos desigualdade”. Falando ao jornal Folha de
as medidas que procuram destravar o país. Os conserS. Paulo, Giannetti disse que um eventual governo
vadores, como sempre, gostam de manipular esse tipo
Marina seria similar à segunda gestão de Fernando
de debate. Há algum tempo, o instituto de pesquisa
Henrique Cardoso (FHC) e à primeira de Luiz Iná-
33
132/2014
para ilustrar a convicção e o sectarismo dessa ideia
Vox Populi, de Belo Horizonte, perguntou aos brasileiros se eles preferem mais inflação e mais emprego ou
do que a teoria do bolo – seus defensores têm o ar
a mesma inflação com o mesmo desemprego. Apenas
de quem está sempre descobrindo a pólvora. Na “era
11% preferiram a segunda opção, contra 38% que disFHC” vimos isso com nitidez.
seram aceitar mais inflação se fosse
Dizia-se, com a habitual obvieacompanhada de mais emprego. Foi
dade para encaixar um sofisma, que
o sinal para que uma série impreso bolo (a economia nacional) era
O desenvolvimento
sionante de bobagens começasse a
um só e tinha de ser dividido em
do país, ao contrário
aparecer na mídia. Os ‘’comentarispartes iguais. Não adiantava querer
tas’’ não perderam a oportunidade
aumentar as partes enquanto o bolo
do que dizem os
para atacar o governo exatamente
fosse o mesmo. A análise monetáconservadores,
por esse flanco: a fictícia ameaça da
ria-culinária que faziam tinha como
volta da inflação.
mandamento principal a contenção
deve sim ser uma
O desenvolvimento do país, ao
da inflação, sacrificando o desenobsessão nacional.
contrário do que dizem os conservolvimento. E era ilustrada com um
vadores, deve sim ser uma obsessão
exemplo matemático – diziam que
Sem um horizonte
nacional. Sem um horizonte econôo bolo tem 100 unidades, logo deve
econômico claro,
mico claro, não há como destravar
ser dividido em partes que somam
a economia para que ela cresça de
100 ao final. Esta foi, por exemnão há como
forma autossustentável. Cresciplo, a propaganda da “Lei de Resdestravar a
mento sustentado quer dizer que o
ponsabilidade Fiscal”, que blindou
país consegue financiá-lo de forma
o superávit primário. Um engodo,
economia para que
não-inflacionária e sem pressões
está claro. Responsabilidade fiscal é
ela cresça de forma
externas. Infelizmente, a economia
uma ideia saudável, não resta dúbrasileira, combalida pela gestão devida, mas ela tem de estar a serviço
autossustentável
sastrosa dos anos da ditadura e da
de uma causa ainda mais justa: a
“era FHC” – e que avançou pelo goresponsabilidade social.
verno Lula com Antônio Palocci –, ainda está longe de
alcançar esse objetivo. Muito mais longe do que dizem
Diagnóstico simples
essas pessoas que pedem mais “estabilidade” mesmo
à custa de menos produção e menos investimento púA teoria era a de que quando são destinadas 80
blico. Felizmente, o país se livrou da ditadura “ortodounidades para consumo e 40 para investimentos, o
resultado de 120 era a inflação. Para eles, não havia
xa” e ingressou num debate sério e democrático para
outro caminho. Esta ladainha foi sempre repetida na
definir o caminho do seu desenvolvimento.
“era FHC” – o então presidente da República chegou a
Teoria do bolo
dizer que a Marcha dos 100 mil, que inundou Brasília
com um mar de gente para protestar contra a sua poEm um país com tantas carências, assim que um
lítica econômica, era “ a marcha dos sem rumo”. Qual
problema sai da linha de frente outros ocupam seu
seria a alternativa? Segundo eles, não havia.
lugar. E essas carências, que de fato são grandes,
Ignoraram essa coisa simples de que fórmulas
continentais, só serão resolvidas com anos e anos de
matemáticas não devem substituir o desenvolvicrescimento econômico. E só se consegue crescer por
mento de um povo que habita uma região cheia de
muito tempo com planejamento. E com debate deriquezas naturais. A política econômica de um país
mocrático – ideia proscrita dos manuais da “ortodonão pode ser determinada por simples conceitos moxia”. Infelizmente, ainda é muito presente em nosnetários. Esta autossuficiência dos neoliberais esclaso cotidiano aquele mecanismo ingrato que impede
rece muitas coisas sobre os problemas sociais e ecoque o país discuta seu futuro. Um exemplo disso é o
nômicos do Brasil. E suscita novas indagações sobre
mais recente falatório em torno da questão fiscal, os
a atualidade do dilema inflação e desenvolvimento –
investimentos estatais.
as opiniões divergentes continuam e o tempo ainda
A direita, é óbvio, tem interesse em atravancar o
não lhe trouxe solução.
progresso do país. Seguir à risca a sua receita seria
Eles ignoram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A suposição
repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do
da existência deste diagnóstico é o erro fundamenbolo, levada a cabo nos anos de ditadura, que partiu
o Brasil em dois países antagônicos. Nada melhor
tal dos neoliberais – que tratam política econômica
34
Eleições 2014
e a sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex-presidente do Banco Central na “era FHC”, Gustavo
Franco, certa vez afirmou que não discutia mais o
dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo
ele, não era mais tema científico, mas emocional e
religioso. Mas muita coisa já ficou esclarecida nestes
últimos anos dos governos Lula e Dilma Rousseff.
Tom de profecias
Uma delas é que o dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da
economia brasileira. Já é alguma coisa saber disso.
E já se sabe não apenas que esta é a grande questão
como também que não existem uma ou duas causas
determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento. Há sim uma variada relação de causas e
efeitos igualmente importantes, monetários e estruturais. E isso tornou-se claro depois da experiência
dos neoliberais na “era FHC”, quando todo o tempo
foram afirmadas teses ditas únicas para a economia
brasileira que chegaram a resultados melancólicos.
Com o desmentido de promessas feitas em tom
de profecias pelos czares da economia na “era FHC”,
cresceram as evidências de que, à época, o país tomara o caminho errado. Mesmo os continuadores
dessa política na primeira fase do governo Lula, com
o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci à frente,
que se empolgaram e sectarizaram-se na defesa de
teses ‘“ortodoxas” – talvez por supor que estavam no
exercício de um poder absoluto –, foram repudiados
por todos os que não rezam pela cartilha neoliberal.
Eles incorreram na soberba do galo que pensa que
o sol nasce porque ele canta. Segundo sua teoria, a
gestão da economia só poderia dar resultados positivos se estivesse submetida às suas elucubrações e
por isso cantavam para que o sol nascesse.
O debate que interessa
O Brasil se livrou desse mantra e, em certa medida, passou a valorizar a necessidade de mecanismos
para melhorar a vida da população. A constatação de
que o impacto do crescimento econômico sobre o bem-estar da população é decisivo levou imediatamente à
pergunta (particularmente importante para os países
com muitas pessoas pobres, como é o caso do Brasil):
como distribuir a riqueza de forma eficiente? Entre
os fatores determinantes para a melhor utilização dos
recursos disponíveis está o papel do Estado.
No fundo, esse é o debate que realmente interessa. Economias do tamanho da brasileira não costumam crescer a taxas acima de 5% ao ano. Mas o
Brasil não só necessita dessa taxa como precisa que
O dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da
grande questão da economia brasileira
ela seja contínua. Para reduzir a pobreza, elevando a
renda per capita, estudos mostram que o PIB precisa
crescer entre 5% e 6% ao ano apenas para incorporar a mão de obra que está entrando anualmente no
mercado de trabalho. Ou seja: além de crescer, o Brasil precisa distribuir a renda e se desenvolver.
Melhorias infraestruturais
Entre o final dos anos 1960 e o início da década
de 1980, o Brasil cresceu a taxas anuais superiores
a 8%. Nem por isso as desigualdades de renda diminuíram na mesma proporção. Comparemos esses
dados com alguns números da Finlândia, que não
cresceu tanto. Sua população de 5 milhões de habitantes tem uma renda per capita em torno de US$
20 mil, segundo o Banco Mundial. Sob diversos parâmetros – expectativa de vida, taxa de mortalidade infantil, índices de escolaridade –, os finlandeses
têm características de país muito mais desenvolvido
que o Brasil.
A questão é que países desenvolvidos já possuem
usinas de energia, estradas e outras infraestruturas
para atender a suas necessidades. Nesses casos, o
crescimento tende a ser naturalmente mais lento.
Mas no Brasil ainda há muito por fazer. O país precisa, desesperadamente, de melhorias infraestruturais. Ou seja: o Brasil não só pode como deve crescer
acima de 5%.
Reflexão de Raúl Prebisch
O pensamento progressista latino-americano há
tempos discute os obstáculos impostos ao desenvolvimento do subcontinente. A Comissão Econômica
Para a América Latina (Cepal) foi a referência maior
nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora
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132/2014
Boa oferta de empregos e aumento da renda do trabalhador são conquistas do atual governo que ficarão seriamente ameaçadas
com o retorno das políticas neoliberais
de Raúl Prebisch sobre os vínculos desiguais entre
as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior coordenação entre os países da
América Latina para superar óbices como a deterioração continuada dos termos de nosso intercâmbio
com a Europa e os Estados Unidos.
Sabemos que no Brasil esse desafio não foi enfrentado. O país levou a cabo um extenso programa de substituição de importações, modernizou seu
parque industrial, mas manteve largos segmentos
inteiramente à margem do processo produtivo, sem
acesso às benesses do crescimento. Com poucos governos de visão social, o Estado esteve por muito
tempo ausente não apenas da tarefa de distribuir
renda mas também da de habilitar toda a sociedade
a participar da dinâmica produtiva.
A máquina pública expandiu-se, mas para contemplar interesses elitistas, sem atenção aos reclamos da maioria da população. Na “era neoliberal”,
o assédio institucionalizado de setores privilegiados
aos canais de decisão foi explícito. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público
se vê refém do privado.
Estado virtuoso
Essa situação começou a mudar com a eleição
de Lula em 2002. Com o avanço da cidadania, a
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sociedade também avançou. Multiplicaram-se as
instâncias de representação. Os movimentos populares abriram espaços cada vez mais amplos para o debate público, atuando como uma verdadeira
ágora desses novos tempos. Mas o Estado ainda
precisa ser mais bem cobrado no desempenho de
suas tarefas. Os nichos historicamente privilegiados devem estar sob o crivo de segmentos sociais
mais vigilantes para impor limites à privatização
do Erário.
O governo federal tem feito esforços para democratizar o Estado, para que ele se torne mais transparente e responsável. No entanto, precisa acelerar
a recuperação da sua capacidade gerencial a fim de
fazê-lo cumprir o seu papel. Ou melhor: o Estado
precisa se credenciar para cumprir finalmente a meta de universalização dos serviços públicos. Pode-se
dizer que estamos passando de um Estado do mal-estar social para a possibilidade de se ter um Estado
virtuoso, que assegure a todos brasileiros condições
satisfatórias de vida. Governar sem essa premissa,
como querem os gurus econômicos de Aécio Neves
e Marina Silva, equivale a soltar na praça mais uma
dessas mulas-sem-cabeça que os neoliberais tanto
gostam de cultuar.
*Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e
colaborador da revista Princípios
Eleições 2014
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132/2014
Estratégia
nacional-popular x Plano Real
“puro sangue”
Elias Jabbour*
Dilma e seus aliados representam o processo histórico,
cuja realização pode colocar o país diante de um
horizonte inteiramente novo, com mais possibilidades
de desenvolvimento. Aécio, por sua vez, é expressão
do velho. É o Plano Real “puro sangue”, com todas
as suas consequências nas arenas da economia, da
política e da democracia
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O
Eleições 2014
período iniciado com a eleição de Lula
em 2002 deve ser observado partindo
do princípio de processo histórico. Importante salientar isso na medida em que
no Brasil, e no mundo, começaram a
desmoronar as verdades absolutas vendidas como mercadorias baratas na década de 1990. Por exemplo, a estória do “fim da história” e a vitória acachapante do ideário/dogma liberal
expressaram-se numa verdadeira pasteurização do
discurso político, notadamente na Europa e nos EUA,
da direita e da esquerda. Fenômeno este que não ocorreu, da mesma forma, na periferia do sistema. Mais:
como nunca – nos últimos 30 anos – ficaram tão claras diante do público as reais diferenças entre direita
e esquerda. E o que significa de fato a contradição entre processo histórico(progresso) x apostasia(retrocesso).
Processo histórico x apostasia
Evidente que a correlação de forças, notadamente numa formação social complexa como a
brasileira, joga água no moinho de determinadas
institucionalidades, sendo a principal delas a implantada em 1994 com o advento do Plano Real, consolidada com a imposição da política de metas de
inflação em 1999 que transformou a “estabilidade
monetária” de política de governo em política efe-
tiva de Estado. O que não impossibilita demarcação
de fronteira neste aspecto na mesma proporção em
que o país deixa de deslanchar em função desta excrescência. Eis um aspecto central do acúmulo estratégico de forças no rompimento das institucionalidades
criadas no citado ano de 1994.
Visão de processo histórico, transformações qualitativas
no âmbito da superestrutura e possibilidade de superação
do quadro instituído em meados da década de 1990 são
os elementos que possibilitam demonstrar as diferenças programáticas entre os principais candidatos
à presidência da República. É evidente que Dilma e
seus aliados consequentes representam o processo histórico, cuja realização pode colocar o país diante de
um horizonte inteiramente novo e marcado por mais
possibilidade de desenvolvimento.
Aécio Neves, por sua vez, é expressão do “velho”,
da apostasia, que ainda não se compadeceu de sua
proscrição. É o Plano Real “puro sangue” com todas as suas consequências nas arenas da economia,
da política e da democracia. Enfim, a radicalização
de posições é expressão concreta do atual estágio do
processo histórico iniciado em 2002. Por outro lado,
o cenário demanda estratégia e visão estratégica sofisticada, sob o risco da vitória da apostasia.
Banco de Desenvolvimento do BRICS
ou o FMI?
Dilma e
seus aliados
representam
o processo
histórico, cuja
realização
pode colocar o
país diante de
um horizonte
inteiramente
novo e marcado
por mais
possibilidade de
desenvolvimento
Existem diferentes formas e formatos
de apresentar ideias e intenções. A linguagem falada pode dar mais condição
de explicitude, dependendo da ocasião. O
que está escrito é algo mais elaborado e,
dialeticamente, com grande margem ao
superficial, com maior mediação. Porém,
sempre indicando um rumo, um caminho
e uma estratégia. A essência é perfeitamente observável dependendo da espessura da própria aparência.
Exemplo desta relação está no próprio
programa e discurso do candidato oposicionista. Quando o assunto é tido como
de “fronteira”, as diferenças de forma diminuem. Vejamos pelo menos dois pontos
de fronteira, sua essência e forma de agitação, nos campos da política externa e da
macroeconomia.
As Diretrizes Gerais do Plano de Governo do PSDB, em sua página 56 (“Política Externa”) dispõe sobre,
Reexame das políticas seguidas no tocante
à integração regional para, com a liderança do
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132/2014
dos pacotes de financiamento que o FMI organiza.
Não há muita clareza sobre esse tópico, mas volta e
meia aparece a ideia que o novo fundo poderia ‘competir’ com o FMI e montar programas alternativos
de apoio em ‘outras bases’, o que apenas pode ser
tomado como um bom roteiro para um romance de
A possibilidade de subentendimento do enunciaficção científica, onde o contribuinte morre no fim”
do, ou seja, a declaração de apostasia fica latente em
(3).
circunstâncias públicas. “Primazia da liberalização
O objetivo é a defesa do FMI, levando em conta
comercial” é algo que cala fundo. A exposição públio princípio para o qual foi criado eesquecendo-se do
ca deste objetivo estratégico foi utilizada como forma
que ocorreu a quem precisou deste fundo. A forma
de demarcar fronteira com o governo antes, durante
é a ironia típica de um tecnocrata cuja verdade nune depois da Cúpula do BRICS (Brasil, Rússia, Índia,
ca escapa de sua mente. O argumento é o “bolso”
China e África do Sul) realizada em Fortaleza. O
do contribuinte financiando uma verdadeira “avenobjetivo sob formato de “agitação
tura”, ignorando – evidente – os
e propaganda” foi estampado no
custos sociais e políticos da alterAcordos bilaterais de nativa dada pelo FMI ao combate à
título da matéria publicada no Estadão (2), onde se lê, “Aécio sinaliza
inflação no Brasil. Gustavo Franco
livre comércio com
mudança na política externa”. No
deveria ser mais consequente, copaíses do centro do
corpo da citada matéria, o reaciolocando na ponta do lápis os prenarismo ficou escancarado quanjuízos ao “bolso do contribuinte”
sistema significam
do propôs que a política externa
anexos aos juros da dívida externa
aplicação integral da e das condicionalidades impostas
brasileira “prioriza o alinhamento ideológico e promove alianças
por ocasião da quebra do país em
Lei das Vantagens
apenas com países vizinhos”. Isso
1999 seguido pelo “socorro” do
Comparativas
após o país fechar uma aliança com
FMI de US$ 40 bilhões.Trata-se da
oBRICS em torno da formação de
“face externa” do Plano Real e Gusno comércio
um banco de desenvolvimento com
tavo Franco ao menos é honesto ao
internacional,
capital inicial de US$ 50 bilhões.
colocar em prova suas convicções e
Na verdade, trata-se, anexa a este
as de seu candidato a presidente da
redundando em
acordo, da planificação do comércio
República.
mais proscrição da
externo nacional alçado ao grau de
questão financeira plausível de solução.
O candidato da
indústria
A liberalização financeira seria um
“Preferência pela
Liquidez”
retrocesso sem precedentes quando o oposto é praticado justamente por países como
A política externa pode ser vista como extensão
a Alemanha e os Estados Unidos. Esta forma de plade uma opção, radical ou não, da política macroeconificação é uma tendência, quase uma lei objetiva
nômica. A liberalização comercial deve ser precedida
do processo de desenvolvimento. É desta forma que
por sua congênere cambial. Acordos bilaterais de lideve se observar a ascensão dos países BRICS no cevre comércio com países do centro do sistema signário internacional. A apostasia possível é o reverso
nificam aplicação integral da Lei das Vantagens Comdesta tendência.
parativas no comércio internacional, redundando em
Neste sentido, seria interessante questionar o
mais proscrição da indústria – o que, visto em procescandidato da oposição acerca das relações do Brasil
so histórico, não passa de mais uma face da apostasia
com o BRICS, e seu banco de desenvolvimento, e o
incutida numa “visão puro sangue”, fundamentalisque seu governo faria diante da iminência de uma
ta e ultraortodoxa dos piores “pais do Plano Real”
crise cambial: recorreria aos parceiros do BRICS ou
(FMI, PUC-Rio).
ao FMI?
Existem medidas cuja impopularidade não pode
Pergunta de resposta não distante. Um alto memser expressa pelo próprio candidato, independentebro da tropa de choque oposicionista, Gustavo Franmente de a estabilidade monetária ainda ser uma poco, responde à questão sem meias palavras: “A ideia
lítica oficial de Estado sob as hostes de uma corrida
de um novo fundo para complementar a atuação e os
contra qualquer inflação imediata, a ser criada e no
recursos do FMI é bem-vinda, mas ociosa, pois nada
horizonte. Aécio não pode dizer que colocará a taxa
impede que cada um dos países do Brics participe
Brasil, restabelecer a primazia da liberalização comercial
e o aprofundamento dos acordos vigentes e para, em relação ao Mercosul, paralisado e sem estratégia, recuperar seus
objetivos iniciais e flexibilizar suas regras a fim de poder
avançar nas negociações com terceiros-países (1).
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Eleições 2014
Letícia Moreira/FolhaPress
de juros na casa dos 20%, independentemente da vontade daqueles que sustentam
sua candidatura (a grande
finança).Por outro lado,
promete – de forma evasiva
– que “o ganho real do salário mínimo será mantido”,
assim como promete a ampliação e o aprimoramento
do Bolsa Família (4). Uma
promessa de difícil realização. É algo que vai de encontro ao seu próprio programa
e pelos que o escreveram:
uma tecnocracia liberal fanatizada pelo equilíbrio possível e somente possível nos
marcos do “mercado livre”.
O povo e suas necessidades,
para essa tecnocracia, não
Aécio com Armínio Fraga e João Dória Jr., do extinto “Cansei”: programa tucano atende ao
passam de um ponto longe
que há de mais maléfico na agenda do capital
da curva em suas modelagens econométricas.
Prova disso é o que pensa e expressa o principal
da década de 1990 enquadra-se como uma das condiassessor econômico de Aécio, e ex-presidente do
ções sinequa non, tanto para compreender o processo
Banco Central, Armínio Fraga, que, questionado soiniciado em 2002, quanto para vislumbrar uma nova
bre a política de ajustes do salário mínimo vigente,
etapa de desenvolvimento, é muito objetivo que o
deixa claroque o salário mínimo “é outro tema que
candidato da oposição represente a apostasia aberta
precisa ser discutido. O salário mínimo cresceu muiao processo histórico brasileiro atual e seu ciclo.
to ao longo dos anos. É uma questão de fazer conta.
Por quê? Os dois candidatos apresentam, de forMesmo as grandes lideranças sindicais reconhecem
ma inequívoca, um compromisso com a “estabilidaque, não apenas o salário mínimo, mas o salário em
de monetária”. Na prática, Dilma Rousseff é expresgeral, precisa guardar alguma proporção com a prosão de um acúmulo de forças, no campo das ideias,
dutividade, sob pena de, em algum momento, endaqueles que acreditam no investimento como presgessar o mercado de trabalho” (5).
suposto à formação de poupança e estabilidade. Seu
Neste rumo de ajuste macroeconômico a todo
governo foi marcado pela aceleração da transição dos
custo, em seu programa de governo, no item “Popostulados do Plano Real a algo mais nitidamente
lítica Macroeconômica”, fica muito claro o objetivo
desenvolvimentista, acarretando em ruídos políticos
de adotar “o cumprimento inequívoco dos comproque racharam a sociedade brasileiro ao meio.
missos do tripé macro: inflação na meta, ou seja, no
Já Aécio, para alcançar os objetivos expostos em
centro da meta, superávit primário obtido sem artiseu programa de governo, deverá – de forma imediafícios contábeis e câmbio flutuante”. O programa vai
ta – elevar a taxa de juros e promover uma quase “ânum pouco mais fundo ao apontar no item 1 de suas
cora cambial” de forma a promover um “choque de
“diretrizes”, o que segue:
competitividade” semelhante a um “beijo da mulher
aranha” à indústria nacional. Em um país com proAutonomia operacional do Banco Central, que irá levar
blemas estruturais de oferta isso significa mais dea taxa de inflação à meta de 4,5% ao ano. Uma vez atingisindustrialização, queda na renda, da produtividade
da, a meta será reduzida gradualmente, assim como a bando trabalho e da taxa de investimentos como um toda de flutuação, atualmente em mais ou menos 2%. (...).
do redundando em barbárie social no horizonte (6).
Enfim, utilizando a linguagem “deles”, não ocorrerá
Partindo tanto da proposta do candidato quanto
formação de poupança nenhuma, pois a perspectiva
do pressuposto colocado no início do artigo onde a
é de queda brusca do investimento produtivo com
possibilidade de superação do quadro instituído em meados
graves consequências à estabilidade social e nacional.
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132/2014
Um retrocesso neste nível não deverá ocorrer sem
ataques frontais à democracia eaos direitos dos trabalhadores, sem criminalizar brutalmente os movimentos sociais e sem uma reforma política restritiva.
Assim, Aécio Neves torna-se o testa de ferro da Preferência pela Liquidez (7), da troca da inflação pela dívida
pública como forma moderna de base material capaz
de fazer uma classe exercer o poder sobre o restante
da sociedade, partindo do sequestro da subjetividade
e capacidade de formação de pensamento da própria
sociedade. O apoio do oligopólio midiático e da academia colonizada é marcaindelével deste rumo.
“Mais mudanças, mais futuro”
Um slogan que encerra muito em si. Mais mudanças, mais futuro é o nome do documento com as propostas da candidata Dilma Rousseff à presidência
da República (8). Um curto documento-síntese de
imensas realizações e transformações sociais e econômicas pelas quais passou o país desde 2003. Remonta a um interessante processo histórico de retirada de dezenas de milhares de brasileiros da linha
da pobreza. Internaliza uma realidade que demanda,
conforme o próprio documento Um Novo Ciclo de Mudanças.
O plano de governo aponta para a realização de
conceitos e objetivos nodais, entre as quais: “competitividade produtiva”, “sociedade do conhecimento”
e “fortalecimento de um grande mercado de consumo de massas”. A reforma urbana é tratada sob o
acicate do objetivo de “melhorar a qualidade de vida
da população urbana”, que hoje corresponde a 81%
dos brasileiros.
Os governos Lula e Dilma por si retratam um processo histórico intenso e que se radicaliza. Neste aspecto é imprescindível que uma estratégia Nacional-Popular anexa ao processo histórico seja capaz de se
impor à realidade. Aprofundar o rumo de políticas
sociais justas e uma política externa séria, conforme
a prática dos governos Lula e Dilma e o indicado no
próprio documento, é só uma ponta do iceberg.
Os primeiros 12 anos foram a fase do aprofundamento da democracia sob a forma de inclusão social
e maior participação popular nos negócios do Estado. Muito ainda há de ser estudado e avaliado sobre
este período. O passo seguinte, o cotovelo do processo
histórico em andamento, é muito bem posto na proposta de Programa de Governo: aumento da produtividade, cuja base objetiva deverá ser alcançada por
meio de revoluções diversas, entre elas as situadas
nos setores de tecnologia, educação, ampliação massiva da banda larga e de espraiamento e aprofundamento de serviços públicos.
42
Por fim, o futuro só será futuro se forem criadas
condições políticas de superação das institucionalidades criadas no bojo do Plano Real. O espaço de
manobra diante de um cada vez mais curto ciclo econômico vai se esvaindo na mesma proporção em que
a luta política se aprofunda. Acumular forças, travar
o debate de ideias no seio da sociedade e fazer política são meios para que o slogan “Mais mudanças,
mais futuro” saia do papel. O Brasil não pode se dar
ao luxo de outra apostasia de rumos, de mais uma
década de 1990.
Eis o sentido da luta e da estratégia. Nunca o
Brasil precisou tanto de luta quanto de estratégia. E
principalmente, de inteligência.
* Elias Jabbour é doutor e mestre em Geografia
Humana pela FFLCH-USP. Professor-adjunto da
Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e
membro do Comitê Central do PCdoB.
Notas:
(1) Diretrizes Gerais do Plano de Governo – Aécio Neves,
p. 56. Disponível em: http://divulgacand2014.tse.jus.
br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000085/idarquivo/229
?x=1404680555000280000000085
(2) “Aécio sinaliza mudança na política externa”. O Estado de
S. Paulo, 22-07-2014. Disponível em: http://politica.estadao.
com.br/noticias/eleicoes,aecio-sinaliza-mudanca-na-politica-externa-imp-,1532170
(3) “Uma copa para os BRICS”. O Estado de S. Paulo. 27-07-2014.
Disponível em: http://www.trela.com.br/arquivo/uma-copa-para-o-brics
(4) “Governo federal é omisso na área de segurança pública, diz Aécio Neves”. Folha de S. Paulo, 22-05-2014,
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/poderepolitica/2014/05/1457818-governo-federal-e-omisso-na-area-de-seguranca-publica-diz-aecio-neves.shtml
(5) “Gasto público deveria ser limitado por uma lei”. Disponível
em:http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,gasto-publico-deveria-ser-limitado-por-uma-lei-diz-arminio-fraga,181922e
(6) Idem.
(7) Segundo Keynes, a taxa de juros de uma economia determina
a preferência, ou não, pela geração de riqueza via formas
“líquidas” ou “ilíquidas”. O investimento produtivo (D-M-D’)
é uma forma ilíquida de geração de riqueza. A reprodução
partindo de especulação no mercado de valores e pela via
da manobra sobre títulos da dívida pública ou especulação
imobiliária (D-D’) são formas clássicas de “preferência pela
liquidez”. É expressão, também, de poder política da grande
finança sobre a produção.
(8) Mais mudanças, mais futuro. Programa de Governo Dilma
Rousseff – 2014. Disponível em: http://divulgacand2014.
tse.jus.br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000083/idarquivo/194
?x=1404673131000280000000083
Eleições 2014
Sindicalistas e estudantes
defendem governo e reeleição
de Dilma
Cézar Xavier*
Não é difícil entender por que a candidata à reeleição agrega a sua
campanha de apoios os sindicalistas mais influentes, o movimento
estudantil e as principais lideranças jovens do país. Os avanços no
mundo do trabalho e da educação falam por si.
D
iante do quadro de disputa eleitoral
e assimetria no tratamento dado pela
mídia às realizações do governo, setores específicos da sociedade se unem
para defender os avanços alcançados
com a atual aliança de governo. Foi o que
ocorreu nos dias 7 e 11 de agosto, quando represen-
tantes da maioria das centrais sindicais e entidades
estudantis se encontraram com a presidenta Dilma
para declarar seu apoio à candidature à reeleição e
dizer do impacto de seu governo para trabalhadores
e para a juventude estudantil.
Os sindicalistas mais influentes das maiores centrais sindicais do Brasil selaram o apoio, na noite do
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132/2014
dia 7, uma quinta-feira, em um ato promovido no
ves (PSDB), militantes importantes daquela central
Ginásio da Portuguesa, em São Paulo. Na segundadeclararam seu apoio a Dilma. João Carlos Gonçal-feira seguinte, 11 de agosto, Dia do Estudante, em
ves, o ‘Juruna’, enfatizou a unidade com as demais
São Paulo, num evento carregado de entusiasmo jucentrais para garantir mais conquistas para o trabavenil, Dilma convocou a juventude a continuar a luta
lhador brasileiro. “Vários militantes da Força Sindipara garantir mais avanços ao Brasil.
cal estão aqui para exercer o seu direito político. A
Ao lado do ex-presidente Lula e do ministro da Capresidente Dilma está dando continuidade à luta por
sa Civil, Aloízio Mercadante, os presidentes da CTB,
melhores salários e mais emprego, educação e saúCUT, UGT, NCTS, CSB e o secretário-geral da Força
de. Esta busca não se dá de um dia para o outro, se
Sindical reafirmaram, para a plateia lotada por milhadá com a unidade dos trabalhadores e a influência
res de trabalhadores e trabalhadono próximo governo.”
ras de diversos estados, a disposição
O presidente da Central Única
de luta em defesa da reeleição da
dos Trabalhadores (CUT), Wagner
“As diaristas não
presidente Dilma tocando em temas
Freitas, ressaltou que os últimos
polêmicos que a mídia usou para
governos criaram condições míniprecisam mais
atacar o governo democrático e pomas para a luta de classes e fortatrocar sua mão de
pular, como a gestão da Petrobras.
lecimento dos sindicatos, enquanto, mundo afora, o sindicalismo se
obra por um prato
torna irrelevante dada a gravidade
Sindicato forte para a
de comida ou um
da crise econômica e seus procesluta de classes
sos decisórios delegados ao setor
lugar pra dormir
financeiro.“Hoje, temos o merca“Se depender dessa bancada
porque agora temos
do aquecido e a inflação contronão vamos permitir o retrocesso
lada, o que nos permite fazer luta
no Brasil. A Petrobras de antes era
o Bolsa Família e
de classe. Não podemos permitir
marcada por acidentes, e a PetroMinha Casa Minha
que a valorização do salário mínibras de hoje é a do Pré-sal e da Bamo seja destruída, isso, sim, acacia de Búzios. Não queremos retorVida. Agora, ela
baria com a economia brasileira.”
no ao passado do reajuste salarial
coloca o preço no
congelado e da negociação com os
trabalhadores tratados na base da
seu trabalho”.
borrachada da Polícia Militar e da
Futuro sem retrocessos
Ivânia Pereira
Tropa de Choque. Não temos dúvida de que estamos no caminho
Em seu discurso, ex-presidente
correto com a presidenta Dilma”,
Lula concordou que nos governos
declarou Adilson Araújo, presidente da Central dos
anteriores, os trabalhadores não eram tratados com
Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
decência e dignidade. “O futuro deste país começou
Ivânia Pereira, secretária da Mulher Trabalhaem outubro de 2002, quando os trabalhadores tomadora da CTB, que dividiu o microfone com Adilson
ram consciência e o seu destino nas próprias mãos.
Araújo para representar as mulheres cetebistas reO futuro chegou quando a gente vê o filho de uma
forçou o fato do governo ter mantido a estabilidade
empregada doméstica estudando engenharia e o fie geração de emprego, assim como salaries melholho de um pedreiro estudando medicina. Para eles
res e mais direitos trabalhistas, apesar da crise in(os adversários) o futuro é abstrato. Mas o futuro
ternacional. “Precisamos reconhecer o avanço que
é o povo construindo junto uma nova realidade paconquistamos nos últimos anos, a exemplo das trara este país”, disse Lula. Que completou: “O futuro
balhadoras domésticas que não precisam mais trochegou quando a gente teve a coragem de quebrar os
car seu trabalho por um lugar para dormir, porque
preconceitos e eleger a primeira mulher presidenta.
o programa minha casa minha vida já garantiu sua
Enquanto os adversários prometem um futuro que
moradia. As diaristas não precisam mais trocar sua
nem sabem o que é, nós temos orgulho de dizer que
mão de obra por um prato de comida porque agora
o futuro é a reeleição da Dilma”.
temos o Bolsa Família. Agora, ela coloca o preço no
A presidenta agradeceu o apoio e parabenizou os
seu trabalho. Por isso, nós, mulheres, somos Dilma
trabalhadores pela coesão. “Vocês estão dando uma
Rousseff”, afirmou Ivânia.
lição de unidade, consciência, patriotismo e noção
Apesar de Paulo Pereira da Silva, presidente
do que está em jogo: avançar em direção ao futuro
ou retroceder”, ressaltou Dilma.
da Força Sindical, defender o voto em Aécio Ne-
44
Eleições 2014
Dilma ouviu histórias de jovens que conseguiram mudar suas vidas e de suas famílias por meio das oportunidades educacionais
Segundo a presidenta, o projeto de governo implantado desde a eleição do ex-presidente Lula,
mostrou que era possível garantir a estabilidade do
País e “distribuir riqueza e incluir socialmente nossa
população”. “Garantimos que o Brasil não ia jogar
os problemas econômicos nas costas dos trabalhadores”, salientou.
Lembrando que em 2002, a campanha de Lula
foi de esperança para vencer o medo que a direita
tentava impor à população a disputa agora demanda
quea verdade vença o pessimismo, a falsidade e a
desinformação. “Lembro a vocês que diziam que até
a véspera da Copa, diziam que ela seria um fracasso.
Da mesma forma que fomos capazes, faremos juntos
outra vez”, concluiu.
Ao final do ato, Dilma recebeu das mãos dos sindicalistas o Manifesto de Apoio, com propostas da
Agenda da Classe Trabalhadora. Segundo o texto,
falar em choque de gestão, como diz a “oposição
conservadora”, é a “amarga lembrança” do arrocho
salarial e de uma política de austeridade fiscal que
assolara a classe trabalhadora tanto na época da ditadura civil-militar quanto nas “décadas perdidas
para a hegemonia do neoliberalismo”.
No texto, os sindicalistas pedem um debate amplo sobre uma série de questões que já haviam sido
apresentadas antes da campanha pela reeleição de
Dilma, como o fim do fator previdenciário, a redução
da jornada de trabalho para 40 horas, e a revogação
do debate sobre o Projeto de Lei 4.330, de 2004, sobre a terceirização.
Desta vez, porém, os dirigentes cobram de Dilma
o compromisso de que haverá um processo permanente de diálogo. As entidades de representação dos
trabalhadores apontaram dificuldades de diálogo
durante o atual governo, por falta de um fórum permanente. “Ao apoiar a reeleição da presidenta, estamos certos de que a negociação destes e de outros temas importantes para os trabalhadores serão melhor
acolhidos e terão maior possibilidade de negociação
com o governo federal.”
Encontro de gerações
No Dia do Estudante, Dilma tomou conhecimento de histórias de jovens que conseguiram
mudar suas vidas e de suas famílias por meio das
oportunidades educacionais criadas durante o
seu governo e o de Lula. São alunos que acessaram universidades públicas e privadas por meio de
programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES – 1,6 milhão de contratos firmados),
Universidade para Todos (Prouni – 1,4 milhão de
bolsas concedidas), pela Lei de Cotas e outros dispositivos.
Dilma aproveitou para destacar os resultados das
políticas voltadas à juventude, que representam uma
verdadeira revolução educacional no Brasil. São sete
milhões de estudantes a mais nas universidades, 49
mil escolas em tempo integral, 422 escolas técnicas
federais, além de mais de R$ 200 bilhões que serão
destinados à educação nos próximos 10 anos, com o
45
132/2014
investimento em educação chegando a 10% do PIB
O presidente nacional da Juventude do PT,
(hoje representa 6,4%).
Jefferson Lima, destacou que os avanços são imO presidente da União da Juventude Socialista
portantes, mas que a juventude quer mais. “Que(UJS), Renan Macaxeira, destacou o grande comproremos mais direitos e mais oportunidades para
misso do governo Dilma com a educação. “Muitos esos estudantes e a juventude brasileira. Aqui é um
tudantes estão aqui hoje apenas porque seu governo e
pouco da tropa que estará ao seu lado diariamendo presidente Lula acreditaram que o filho do pedreiro
te, avermelhando todo o Brasil, intensificando
também pode virar doutor. Isso é justiça social, avana mobilização. Teve Copa, mas não vai ter segunço da nossa democracia”, afirmou. Ele destacou um
do turno”, reforçou Lima, parafraseando o modado que considera muito relevante, de que o númevimento de oposição ao governo durante a Copa.
ro de eleitores com ensino superior
Mais uma conquista importante no
superou o número de eleitores que
campo educacional foi a aprovasão analfabetos durante o último
ção e sanção do Plano Nacional de
“Confio em vocês
governo. “Isso é o que queremos”,
Educação (PNE). O Plano garante
porque representam
enfatizou Macaxeira.
que mais de R$ 200 bilhões serão
A presidenta Dilma Rousseff
destinados à educação nos próxiuma parte da luta
classificou, visivelmente emocionamos 10 anos, com o investimento
em nova forma,
da, o discurso de Renan Alencar cochegando a 10% do PIB (hoje, remo “primoroso”. “Confio em vocês
presenta 6,4%).
em nova escala,
porque representam uma parte da
Os estudantes brasileiros tamem relação ao que
luta em nova forma, em nova escabém estão chegando ao exterior. Há
la, em relação ao que foi nossa luta
quase 3 anos foi lançado o prografoi nossa luta do
do passado. Confio que vocês serão
ma Ciência sem Fronteiras e desde
passado. Confio que
o meu combate, aqueles que vão
então já foram concedidas 83,2 mil
defender o sentido desse projeto de
bolsas para alunos de 1,1 mil muvocês serão o meu
um país soberano, democrático, em
nicípios estudarem nas melhores
combate, aqueles
que todos possam realizar o sonho
instituições de ensino superior de
que querem realizar”, afirmou a
43 países.
que vão defender
presidenta.
Presente ao encontro, o cano sentido desse
didato petista ao governo de São
Números que falam por si
Paulo, Alexandre Padilha, afirmou
projeto”
que pretende implantar a Lei de
Dilma Rousseff
O Programa Nacional de AcesCotas para acesso a universidaso ao Ensino Técnico e ao Empredes paulistas como USP, Unicamp,
go (Pronatec) tem atualmente 7,8
Unesp e Fatecs. “A cada cidade
milhões de matrículas realizadas e
para onde só se levou presídios,
deve alcançar a meta de 8 milhões de alunos matricuFundação Febem e Fundação Casa, levaremos eslados em setembro de 2014. O programa já conta com
cola técnica estadual para dar mais oportunidades
R$ 14 bilhões em investimento. Ainda na educação, a
aos jovens. Porque o jovem de São Paulo só tem
transformação do Enem (Exame Nacional do Ensino
curso técnico profissionalizante de graça inclusive
Médio) na ferramenta principal voltada ao ingresso
por conta do Pronatec de Dilma Rousseff ”, disse
no ensino superior foi um passo importante para dePadilha.
mocratizar o acesso aos cursos.
Vários jovens relataram o impacto das políticas
Outro pilar relevante foi a expansão das univerpúblicas em suas vidas, tornando-os protagonistas,
sidades por meio do Programa de Apoio a Planos de
ainda jovens, de suas vidas e de suas famílias. FoReestruturação e Expansão das Universidades Federam os casos do estudante baiano, que teve acesso
rais (Reuni). Até 2002, eram 148 campi federais. Hoje
à luz elétrica recentemente, pelo Programa Luz pasão 300 em funcionamento e mais 21 serão abertos
ra Todos, e entrou para a universidade e hoje está
até o fim de 2014. As escolas técnicas federais são outerminando o seu mestrado. Foi tocante o caso da
tro episódio de sucesso. Em 12 anos de governos Lula
jovem empregada doméstica, mãe solteira, que moe Dilma o país alcançou a marca de 422 escolas técnirava na casa de sua patroa, que passou a estudar
cas federais. O número é 3 vezes maior do que o que
pelo Pronatec e hoje é dona do seu destino.
foi construído no Brasil em praticamente um século:
entre 1909 e 2002 foram construídas 140 escolas.
*Cézar Xavier é editor-executivo do portal Grabois
46
Brasil
O Brasil acabou?
Projeto nacional e impasses na gestão territorial do Brasil
Evaristo Eduardo de Miranda*
Cerca de 11 mil áreas que correspondem a mais de 34% do território
nacional têm seu uso e ocupação atribuídos por decretos e leis do
Governo Federal. Embora grande parte seja resultante de pressões
legítimas salta aos olhos a falta de diretrizes de um projeto nacional
para reger o uso e a ocupação de terras no Brasil
Q
uem ou o que define o uso e a ocupação das
terras no Brasil? Mudanças significativas ocorreram recentemente, sobretudo após a Constituinte. Em 25 anos, o governo federalizou mais de
um terço do território nacional destinando-o a unidades de conservação, terras indígenas, comunidades quilombolas, assentamentos de reforma agrária,
áreas militares, projetos de infraestrutura etc.
Sem planejamento estratégico adequado, coordenado ou suficiente, esse conjunto de territórios
resultou essencialmente da lógica e da pressão de
diversos grupos sociais e políticos, nacionais e internacionais. Todos revestidos de suas justificativas
e legitimidades. Mas esse processo anda muito distante de qualquer diretriz estratégica de um projeto
nacional.
O espaço para atribuição de terras reduziu-se rapidamente, apesar da dimensão do país. O estoque
das terras ditas devolutas diminuiu. Destinar terras a
uma finalidade ou a um grupo implica, cada vez mais,
retirá-las de outra e de outros, quase sempre com altos custos e conflitos. De certa forma, o Brasil acabou.
A demanda de terras para atividades privadas
também prossegue em função da necessária e inexorável expansão das cidades, da agropecuária, da
silvicultura, dos complexos industriais, mineradores
e energéticos. O país está diante de um desafio de
gestão territorial, gerador de conflitos cada vez mais
agudos. A definição e a aplicação de um projeto nacional são fundamentais para organizar e direcionar
esse processo, bem como sua avaliação. O debate da
gestão territorial estratégica do Brasil é incontornável.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, até outubro de 2013, 1098 Unidades de Conservação (UC)
ocupavam 17% do Brasil. Aqui, na maioria dos casos, as Unidades de Conservação excluem a presença
humana, enquanto na Europa, Ásia e nos Estados
Unidos pode haver agricultura, aldeias e diversas
atividades nos parques nacionais, sem evocar a ampla visitação turística.
47
132/2014
A atribuição de terras pelo goNas unidades de conservação, a
Aqui, na maioria dos verno
federal não acaba por aí. Sob
legislação ambiental brasileira aincasos, as Unidades
a responsabilidade do Instituto Nada define no seu entorno externo
cional de Colonização e Reforma
uma zona de amortecimento onde
de Conservação
Agrária (INCRA) existem 9.128
as atividades agrícolas (e outras)
excluem a presença
assentamentos, de diversas naturesão limitadas por determinações da
zas e estágios de implantação. Eles
gestão da unidade de conservação
humana, enquanto
ocupam 88,1 milhões de hectares,
(proibição de transgênicos, de pulna Europa, Ásia
ou seja, 10,2% do Brasil ou 14,4%
verizar com aviação agrícola etc.). A
do que resta quando descontado o
largura dessa zona é variável. Estie nos Estados
território já atribuído às áreas promativas avaliam o seu alcance entre
Unidos pode
tegidas. Essa área equivale a quase
10 e 80 milhões de hectares adicioo dobro da cultivada atualmente em
nais (1% a 9% do Brasil).
haver agricultura,
grãos no Brasil.
Segundo a FUNAI, 584 terras
aldeias e diversas
Pelos dados do INCRA e da Seindígenas ocupam aproximadacretaria de Políticas de Promoção da
mente 14% do território nacional.
atividades nos
Igualdade Racial, as 268 áreas quiReunidas, essas duas categorias de
parques nacionais,
lombolas decretadas ocupam ceráreas protegidas, eliminando-se
ca de 2,6 milhões de hectares. No
as sobreposições, ocupam 247 misem evocar a ampla
conjunto, mais de 290 milhões de
lhões de hectares ou 29% do país.
visitação turística
hectares, 34% do território nacional,
Segundo a International Union for
estão atribuídos por decretos. Sem
Conservation of Nature (IUCN), os 11
considerar as áreas militares com
países com mais de dois milhões de
uma superfície total maior que a do estado de Sergipe.
quilômetros quadrados existentes no mundo (ChiO mapa do Brasil com mais de 11.000 áreas atrina, EUA, Rússia etc.) dedicam 9% em média de seus
buídas, essencialmente pelo governo federal, permiterritórios às áreas protegidas. Com quase 30%, o
te visualizar a complexidade da situação atual (MaBrasil é o campeão mundial da preservação.
Mapa 1
48
Brasil
pa 1). Ele ilustra espacialmente o presente desafio
da gestão territorial e fundiária. Cada uma dessas
unidades ou entidades pede um tipo de gestão, avaliação e monitoramento específicos e transparentes.
E implicam custos e investimentos governamentais.
O governo federal continuará atribuindo-se mais
e mais extensões de terra que, na maioria dos casos,
sairão do controle dos estados e municípios. Há estados em que boa parte de seu território já foi “federalizada” por decretos federais de atribuição de áreas
Mapa 2
que estarão por muito tempo sob o controle de órgãos
e instituições federais. No caso do Maranhão, por
exemplo, toda a fachada do litoral está nessa situação.
Além das áreas já atribuídas, existem milhares de
solicitações adicionais para criar ou ampliar unidades de conservação, terras indígenas, assentamentos
agrários e quilombolas. As novas áreas reivindicadas,
cada vez mais, já estão ocupadas pela agricultura,
por núcleos urbanos etc. Como arbitrar e direcionar
esse processo, sem um marco referencial como o de
As novas áreas
reivindicadas, cada
vez mais, já estão
ocupadas pela
agricultura, por
núcleos urbanos
etc. Como arbitrar
e direcionar esse
processo, sem um
marco referencial
como o de um
projeto nacional?
Mapa 3
49
132/2014
um projeto nacional? Esse quadro complexo de ocupação e uso territorial representa um enorme desafio
de governança fundiária e envolve conflitos graves,
processos judiciais, impactos sociais e implicações
econômicas significativas.
Essas demandas adicionais de terras por parte de
grupos, minorias e movimentos sociais, todos com
sua lógica e legitimidade, precisam ser compatibilizadas com o crescimento das cidades e suas demandas sociais e ambientais (áreas verdes, sistemas de
abastecimento de água, de tratamento de esgotos
etc.), com a destinação de locais para geração de
energia, para implantação, passagem e ampliação da
logística, dos meios de transportes, dos sistemas de
abastecimento, armazenagem e mineração.
No planejamento territorial dessas realidades
agrárias e socioeconômicas é necessário considerar,
localizar e incluir geograficamente as quase 50.000
obras do PAC. E agregar, em breve, as futuras ações
do PAC 3, bem como os investimentos estaduais e
privados. Tudo isso tenta se implantar em meio ao
labirinto de terras intocáveis e excluídas dessas finalidades. Aspectos do quadro natural também
são essenciais para contextualizar esses processos
e situações territoriais, pois eles ocorrem em bacias
Mapa 4
50
hidrográficas (gestão da água, hidrovias...), em biomas (biodiversidade, fragilidades...), em contextos
geológicos, pedológicos, climáticos (semiárido, trópico úmido...) etc. Diversas dessas dimensões possuem regras específicas, legislações, marcos jurídicos
e até agências reguladoras.
As soluções não são simples e o melhor compromisso deve ser buscado. Esta também é uma pauta
estratégica para a democracia e para o avanço de um
Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Os sistemas de gestão territorial estratégicos, apoiados em geotecnologias e modelos numéricos e cartográficos, podem ajudar na compreensão do potencial e dos limites
da base de recursos naturais e dos processos de uso e
ocupação das terras. Eles também podem simular cenários, possíveis impactos decorrentes e reduzir conflitos existentes ou potenciais. E deveriam ser utilizados
nas tomadas de decisão nas esferas públicas e privadas
para apoiar um debate mais equilibrado e com visão
estratégica nessa temática. Mas esse debate anda mais
escasso que as terras.
* Evaristo Eduardo de Miranda é doutor em
ecologia, coordenador do Grupo de Inteligência
Territorial Estratégica (GITE) da Embrapa.
Brasil
Com a Cúpula de Fortaleza,
BRICS aceleram tendência a um
mundo policêntrico
Ronaldo Carmona*
Em histórica reunião, aliança entra em nova fase e
potencializa margem de manobra de cada um de seus
integrantes e destes como conjunto diante da anárquica
“ordem” internacional de transição que o mundo vive
A
6ª Cúpula dos países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), recém-realizada na cidade de Fortaleza, por
seus resultados e pelas perspectivas
que aponta, é sem dúvida a mais significativa iniciativa geopolítica brasileira na história recente, tendo em vista suas consequências no grande
jogo da disputa por espaço e poder na “ordem” internacional contemporânea (1). É, assim, um grande lance na geopolítica mundial.
Afinal, as decisões da Cúpula de Fortaleza representam novo e firme passo na diminuição relativa de
poder das potências tradicionais, ao passo que significam claro movimento de aumento da influência
dos novos polos de poder no mundo expresso pelos
países BRICS. Estas decisões e a reiterada e crescente
coesão política em torno dos grandes temas em voga
na situação internacional jogam a favor da tendência
à multipolarização, contribuindo assim para o desfecho e o desenlace da transição no mundo.
51
132/2014
Representando pouco mais de 40% da população
essa ascensão. O ceticismo e a má vontade do Ocimundial e quase ¼ da economia global, os países
dente com os países BRICS – parte ideológica da luBRICS, ao iniciarem um segundo ciclo nas Cúpulas
ta geopolítica em curso no mundo – se contradizem
anuais de Chefes de Estado e de Governo, dão um
com os fatos, já que essa coalizão vai demonstrando
salto de qualidade. Se o primeiro ciclo de Cúpulas
crescente capacidade de coesionar-se tendo em vista
– realizadas entre 2009 e 2013 – foi marcado por
convergirem os interesses nacionais de cada um de
consolidar o BRICS como instrumento de coordenaseus integrantes.
ção política de grandes países em desenvolvimento
quanto aos principais temas da agenda internacioCúpula de Fortaleza atendeu ao
nal, o segundo ciclo inicia-se com a institucionalizainteresse nacional de cada um dos
ção do bloco, através da criação de meios para interpaíses BRICS e deles em seu conjunto
vir mais solidamente na ordem internacional.
A partir da reunião de Fortaleza, o BRICS passa
Atendendo, portanto, ao interesse nacional de
a contar com instrumentos institucionais para opecada um de seus integrantes, a 6ª Cúpula do BRICS
rar mudanças na arquitetura financeira e monetária
constituiu-se em um êxito, solidificando a aliança.
internacional: o Novo Banco de Desenvolvimento
Para o Brasil, a participação no BRICS represen(NDB, em sua sigla em inglês), o Banco do BRICS e
ta um caminho a favor do aumento da margem de
o fundo comum de reservas do BRICS, chamado formalmanobra do país diante de um conturbado cenário
mente de Arranjo Contingente de Reservas (CRA, na
internacional, por meio de aliança com grandes paísigla em inglês).
ses emergentes com interesses naMas em Fortaleza os países
cionais convergentes, essência da
Do ponto de vista
BRICS seguiram avançando na
crescente solidez da aliança. Reperconstrução de uma visão comum
cutirá também sobre seu entorno
geopolítico, o
em um conjunto de temas sensígeográfico e estratégico, como veBanco e o Fundo
veis da agenda global. De grande
remos à frente.
importância política é o posicioEspecificamente na 6ª CúpuBRICS atuam
namento do BRICS, na Declaração
la, ao Brasil, como anfitrião, intediretamente na
de Fortaleza, sobre a situação da
ressava dar passos adicionais na
Ucrânia, francamente favorável ao
consolidação do agrupamento gadiminuição da
rantindo resultados efetivos na refim do conflito, por uma solução
influência dos
união. Não por acaso, o país manopacífica; assim, oposto à tentativa
brou positivamente para garantir o
do “Ocidente” de isolar a Rússia (2).
Estados Unidos
lançamento do NDB em Fortaleza.
Tentativa, aliás, que tem tido como
e da União
Para a Rússia, a reunião de
produto expressiva diminuição das
Fortaleza teve um sentido estraambiguidades da política externa
Europeia junto
tégico chave, sobretudo tendo em
russa pós-soviética, tornando os
aos países em
vista que, diante do retorno do
países BRICS uma prioridade para
protagonismo de Moscou no ceMoscou e solidificando sua aliança
desenvolvimento​
nário internacional, recrudescem
geopolítica com a China.
movimentos das potências estabeA Cúpula de Fortaleza, por seus
lecidas para constrangê-la em seu próprio entorno
resultados, desqualifica a análise (ou melhor, o desejo)
geográfico – vide o avanço da Organização do Tracomum entre os think-thanks e analistas dos grandes
tado do Atlântico Norte (Otan) sobre a Ucrânia. Em
meios de comunicações dos países centrais, segundo
Fortaleza, foi a primeira presença do presidente Puos quais, por sua diversidade cultural e geográfica, os
tin em um foro multilateral pós-Crimeia e o segundo
países BRICS seriam incapazes de celebrar acordos
movimento expressivo de buscar romper a tentatientre si. Para estes, os conflitos prevaleceriam sobre
va de isolamento – o primeiro foi a visita de maio a
a cooperação.
Pequim, ocasião em que assinou importante acordo
Na quadra atual, ao contrário, torna-se o BRICS
energético.
uma sólida aliança tática a favor da transição para a
Mas Obama seguiu sua ofensiva antirrussa e
multipolaridade, no que corresponde ao interesse
numa provocação (extensiva ao país anfitrião da
nacional de seus integrantes na aspiração por muCúpula) anunciou novas rodadas de sanções estandança da posição relativa destes países no sistema
do o presidente Putin em Brasília. A derrubada do
internacional. Com o NDB e o CRA, ademais, o BRIavião da Malaysia Airlines no leste da Ucrânia – dois
CS passa a ter “dentes” adicionais para sustentar
52
Brasil
dias depois da reunião de Fortaleza e aproximadamente no mesmo
momento em que o avião de Putin
retornava a Moscou – somou-se a
essa ofensiva, numa nítida operação que, em termos militares, se
pode denominar como “operação
de bandeira falsa” (3).
Dias depois, foi a vez de Putin
apresentar a retaliação: sendo o 5º
maior importador de produtos agropecuários, Moscou anunciou o cancelamento das compras nos mercados europeu e norte-americano
– apenas a União Europeia exportou
US$ 13,8 bilhões em produtos agrícolas à Rússia em 2013. Num gesto
importante, deu sinais de que buscará no mercado brasileiro parte importante destes
produtos. Também a indústria de Defesa russa, objeto de pesadas sanções ocidentais, poderá buscar o
mesmo caminho junto aos países BRICS.
Para a Índia, a reunião de Fortaleza representou
a primeira viagem internacional do novo primeiroministro, Narendra Modi. É expressivo constatar que
o primeiro encontro de Modi com seus dois grandes
vizinhos – Rússia e China – tenha se dado em solo
brasileiro – a partir do qual pactuou adensamento
da presença indiana na Organização de Cooperação
de Xangai, aliança chave na disputa geopolítica no
heartland do mundo.
As intervenções de Modi reiteraram o compromisso da Índia com o BRICS, reforçado pelo fato de
o primeiro-ministro voltar a Nova Déli com a primeira presidência do NDB – vale lembrar que essa ideia
surgiu na 4ª Cúpula, realizada na Índia em 2012.
Para a China, a participação no BRICS aporta
ao interesse central da política externa chinesa contemporânea: “a busca ativa de um entorno internacional pacífico em benefício de seu próprio desenvolvimento”, nas palavras do presidente Xi Jinping
(4). Ademais, a aliança aporta à aspiração deste país
em adensar sua presença no cenário internacional e
de aumentar sua diversificação financeira. A relação
com grandes países detentores de matérias-primas
também serve ao interesse chinês de garantir o fluxo
regular destes bens ao país, sustentando o desenvolvimento chinês. Neste caso, além da relação com
Brasil, Rússia e África do Sul – grandes detentores
de matériais-primas – a aliança facilita-lhe o acesso
ao entorno destes países, especialmente à América
Latina e ao Caribe e à África (5).
A África do Sul, por sua vez, tem especial interesse em consolidar os compromissos que ela pilotou
na Cúpula de Durban (2013), relativo ao apoio dos
países BRICS à integração africana através do financiamento da infraestrutura: o país ocupa a presidência da União Africana. Tendo em vista este objetivo,
Zuma sai de Fortaleza com um escritório do NDB,
que será inaugurado concomitantemente à sede de
Xangai, renovando compromissos com a prioridade
do governo de Tshwane.
O Banco e o Fundo do BRICS: um novo
Bretton Woods?
Além da renovada e crescente coesão política, a
6ª Cúpula foi marcada, como dissemos, pelo surgimento do Banco e do Fundo do BRICS. Para alguns
analistas, um novo Bretton Woods se desenhou em
Fortaleza. Exageros à parte, foi correta a interpretação da transcendental decisão, expressa nas palavras
do presidente sul-africano, Jacob Zuma, segundo o
qual a reunião foi “a historic and seminal moment which saw for the first time since the post-Bretton Woods Institutions era, the creation of a new and unique financing
initiative” (6).
O Banco (NDB) surge com capital autorizado de
US$ 100 bilhões e capital inicial subscrito de US$
50 bilhões, com contribuições por igual dos cinco
sócios (7). Mas a medida em que se consolide, diz
um analista, “o Banco vai atrair outros depósitos e
crescer dez ou vinte vezes” (8). Isso se explica pela
capacidade de alavancagem própria de uma instituição financeira desta natureza e da possibilidade
de atrair capitais de fundos diversos. A China, por
exemplo, com alta liquidez, poderá no Banco encontrar alternativa de rentabilidade para seus recursos. O Fundo, por sua vez, “um miniFMI”, com
caixa comum de US$ 100 bilhões, é importante se-
53
132/2014
guro contra crises futuras no balanço de pagamentos no Fundo Monetário Internacional (FMI) que a
tos, ameaça presente no contexto da persistência
cadeira correspondente aos países Benelux (Bélgide manobras monetárias dos países ricos, sobretuca, Holanda e Luxemburgo). O G-7 possui 43% dos
do dos Estados Unidos, que, diante da retirada dos
votos no FMI; o BRICS, em seu conjunto, 10,3%, a
estímulos em resposta à crise, têm tomado medidas
despeito de representar cerca de ¼ do Produto Inque geram (uma ainda moderada) saída de divisas
terno Bruto (PIB) mundial.
nas economias emergentes – uma “fuga para liquiVale lembrar que os países BRICS têm aportado
dez”, nas palavras de Belluzzo (9).
significativas quantias de recursos ao FMI no pósDo ponto de vista geopolítico, as iniciativas atuam
-crise, tornando-se, ineditamente credores da instidiretamente na diminuição da influência dos Estados
tuição. Como lembra Paulo Nogueira Batista Júnior,
Unidos e da União Europeia – via instituições que
diretor do FMI indicado pelo governo brasileiro, em
controlam com mão de ferro o FMI e o Banco Mun2012 “a China anunciou US$ 43 bilhões adicionais
dial – junto aos países em desenvolvimento, criando
(ao FMI); o Brasil, a Rússia e a Índia anunciaram
alternativas de financiamento desUS$ 10 bilhões cada; e África do
pojadas das condicionalidades poSul entrará com US$ 2 bilhões. Na
O surgimento das
lítica e econômica aviltantes destas
rodada anterior de levantamento
instituições tradicionais – é certo,
de empréstimos para o FMI em
novas instituições
draconianas para uns e suaves pa2009, os países BRICS entraram
do BRICS gera
ra outros. Por exemplo, a Ucrânia,
com o equivalente a US$ 92 bilhões
com a instalação do direitista gover– a China com US$ 50 bilhões, Braampla expectativa
no pró-Ocidente em Kiev, teve aprosil, Rússia e Índia com US$ 14 bientre os países,
vado em tempo recorde empréstimo
lhões cada” (10).
de US$ 18 bilhões. O mesmo difiO Banco aparece como atrativa
especialmente
cilmente ocorreria, por exemplo, se
alternativa para a alocação de liquipor seu potencial
um país como a Argentina necessidez e das cada vez mais vultosas retasse do mesmo apoio – ao menos
servas em divisas dos grandes países
de avançar no
que aderisse a um pesado programa
emergentes, trocando os títulos “sefinanciamento
de ajuste.
guros” como os treasuries (títulos do
O fato é que as funções precíTesouro norte-americano), de baixa
da infraestrutura
puas do Banco Mundial e do FMI
remuneração, por investimentos
de integração na
– que conforme concebido 70 anos
em potencialmente rentáveis obras
atrás em Bretton Woods, são “fide infraestrutura na América Latina
América Latina e
nanciar o desenvolvimento” e “cone na África, com garantias em opeCaribe e na África
ter crises no balanço de pagamenrações governo a governo.
tos” – são cada vez mais de difícil
No caso da China, o país desde
execução, quer por seus critérios ideológicos ultralibe2009 vem anunciando uma estratégia de reduzir a
rais, que por sua própria dimensão insuficiente diante
exposição – e portanto a vulnerabilidade – de mandas necessidades do mundo atual, caracterizado pela
ter grande parte de suas reservas aplicada em títulos
enorme carência de recursos para infraestrutura e finorte-americanos (11). Aliás, o NDB cabe como luvas
nanciamento do desenvolvimento no mundo, sobrena estratégia chinesa de diversificação monetária e na
tudo pelos países em desenvolvimento; a Unctad (sibusca da internacionalização do renminbi.
gla inglês para Conferência das Nações Unidas sobre
Assim, o surgimento do NDB e a alocação de
Comércio e Desenvolvimento) estima essa demanda
parte das reservas no CRA podem ser lidos como
em US$ 1 trilhão, apenas para infraestrutura.
movimentos de diminuição da exposição dos paíO surgimento do NDB e do CRA decorre, assim,
ses BRICS em relação ao dólar. Há que perguntar-se
da enorme resistência dos países do establishment
quais serão suas consequências em médio e longo
em ceder poder e reformar os organismos finanprazo para a hegemonia do dólar no sistema financeiros internacionais – fato expresso sem meias
ceiro internacional.
palavras no ponto 18 da Declaração de Fortaleza.
Na medida em que isso se manifeste com clareza,
Mesmo diante da enorme carência por recursos
há riscos de recrudescimento da guerra financeira do
no mundo, os países do G-7 resistem em ampliar
G-7 contra o BRICS. Afinal, a governança financeira
o papel de instituições como o Banco Mundial ao
internacional é cada vez mais marcada por impacmesmo tempo em que resistem em diminuir seu
tos geopolíticos, derivados do fato de que no próprio
controle. A China, por exemplo, possui menos voâmbito do G-20 se cristalizam cada vez mais niti-
54
Brasil
damente dois blocos de força: de um lado, o G-7 – uma coalizão de países do
velho status quo liberal, sobretudo com o
recente expurgo da Rússia – e, de outro,
o BRICS e seus aliados. Jim O’Neill, em
artigo de balanço da 6ª Cúpula no The Telegraph, chega a falar em “duas facções”
em disputa no G-20 (12). Do desfecho
desta luta, em boa medida resultará a
arquitetura financeira internacional do
século XXI.
Medidas promissoras no sentido de
impactar sobre a hegemonia do dólar
são a crescente utilização de moedas
nacionais nas relações entre os países,
traves de acordos de trocas de moedas
(swaps) e outros mecanismos.
O NDB, ademais do grande potencial
financeiro, poderá jogar papel relevante
Líderes do BRICS solidificam a aliança por uma nova ordem mundial
na atualização da teoria do desenvolvimento diante dos desafios deste século XXI. Afinal, os países BRICS, para além de suas
à mesa”, cujo acesso lhes era vedado; em seguida,
diferenças, apontam para uma proposta de desenbuscaram “mudar o cardápio”. Diante da impossivolvimento “não-neoliberal”, baseado em investibilidade, passam a “estabelecer sua própria mesa”
mentos produtivos e em infraestrutura. Rejeitam a
(15). Esse é o significado do surgimento dos promis“perspectiva neo-rentista e de reforma econômica
sores Banco e Fundo do BRICS.
clássica” (13).
Vale lembrar que o Banco surge apoiado no
Repercussões para o entorno
know-how e na expertise de robustos bancos nacioestratégico brasileiro
nais de desenvolvimento de seus integrantes. É o
caso do Brasil, com o BNDES, banco que tem dimenDiante da premência do tema do desenvolvimensões superiores ao próprio Banco Mundial.
to no mundo, o surgimento das novas instituições
Sendo o surgimento do NDB e do CRA movimento
do BRICS, sobretudo do Banco, gera ampla expecde profundos impactos geopolíticos e geoeconômico,
tativa entre os países em desenvolvimento, especialcabe destacar a demonstração de visão estratégica do
mente por seu potencial de avançar no financiamenBrasil na manobra que permitiu seu anúncio em Forto da infraestrutura de integração na América Latina
taleza. Em relação ao Banco, é amplamente conhecie Caribe – sobretudo na América do Sul – e na África.
do o fato de que o Brasil foi o único dos cinco países
Essa percepção se expressou fortemente no “sea não pleitear a sede da instituição, exatamente para
gundo ato” das reuniões do BRICS: a reunião com os
melhor se posicionar para outro pleito: o de indicar o
presidentes sul-americanos em Brasília, que repetiu
primeiro presidente da nova instituição. Consta, no
a experiência da Cúpula de Durban, quando se reuentanto, que às vésperas da reunião dos líderes em
niram os cinco chefes de Estado e líderes africanos.
Fortaleza, um impasse permanecia entre Nova Déli e
A presidente chilena, Michele Bachelet, fez
Pequim pela sede do Banco; foi quando a presidenta
menção direta à possibilidade de financiamento,
Dilma orientou que o Brasil cedesse a primeira presipelo NDB, da carteira de projetos de infraestrutura
dência à Índia, possibilitando o desfecho que estabedo Conselho de Planejamento e Infraestrutura da
leceu sua sede em Xangai e, assim, o exitoso resultaUnasul (Cosiplan), cuja lista de prioridades abarca
do da reunião de Fortaleza (14). Ao fazê-lo, o Brasil
financiamento na casa de US$ 17,3 bilhões. Aqui,
também amarrou o compromisso do novo governo inaliás, cabe referência à incapacidade do Brasil de
diano com os países BRICS. Mas, fundamentalmente,
financiar essa carteira de projetos, causa básica
permitiu uma cartada decisiva no tabuleiro de xadrez
dos impasses atuais para se avançar no projeto de
geopolítico global.
integração sul-americana e decorrência de incomComo disse um analista, numa interessante anapreensões estratégicas de expressivos setores de
logia, os países BRICS começam querendo “sentar-se
suas elites (16).
55
132/2014
O boliviano Evo Morales comentou que o NDB,
cujo capital é três vezes o PIB da Bolívia, é oportunidade para acabar com “submetimento e condicionamento” que as instituições tradicionais impõem aos
países latino-americanos.
O presidente Rafael Correa saudou especialmente a criação do CRA; vale lembrar a defesa frequente,
pelo equatoriano, de um fundo de reservas do Sul. Argumenta Correa que, com sua constituição, ao invés
de os países em desenvolvimento enviarem dólares
para o primeiro mundo utilizariam suas reservas para financiar seu próprio desenvolvimento.
O presidente Nicolas Maduro, por sua vez, argumentou que as decisões de Fortaleza “mudarão o
curso na história do século 21”. O venezuelano fez
elogios à “liderança virtuosa” do Brasil na América
Latina e propôs uma aliança entre o NDB e o Banco
do Sul. Dias depois, a Cúpula do Mercosul, reunida
em Caracas, reafirmou a necessidade de entrada em
operação do Banco do Sul.
Do ponto de vista geopolítico, para o Brasil, a
possibilidade de financiamento dos projetos de integração em seu entorno geográfico pelo NDB introduz
fatores importantes. Ao mesmo tempo em que poderá ajudar a equacionar o grave problema do financiamento do projeto de integração – fator de paralisia e
esgotamento – manterá a tendência, que já vem de
alguns anos, de adensamento da presença das novas
potências em nosso entorno, juntando-se a presença das antigas potências tradicionais, especialmente
dos Estados Unidos.
Dado que atualmente há sério problema de coesão interna em torno dos termos da ascensão internacional do Brasil – com o Estado possuindo visão
estratégica consideravelmente superior à de suas
elites, sobretudo aquelas mais vinculadas a interesses mercantis no estrangeiro –, transitoriamente, até
que se estabeleça maior unidade, resultará inevitável
maior presença de potências extrarregionais – velhas
e novas – em nosso entorno geográfico.
As duas potências membros do Conselho de Segurança da ONU tratam de fazê-lo quer por mecanismos bilaterais, quer multilaterais. No primeiro caso,
toma-se nota da tournée dos presidentes Putin e Xi
por ocasião da vinda a Fortaleza e Brasília. O russo
também visitou Cuba, Nicarágua e Argentina, antes
de chegar a Fortaleza. Já o chinês saiu de Brasília para Buenos Aires, visitando depois Venezuela e Cuba.
Em Brasília, ambos tiveram extensa agenda de reuniões bilaterais com mandatários sul-americanos.
A China reuniu-se com a troika da Comunidade
dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac)
e realizou, com o apoio do Brasil, uma Cúpula China, Países da América Latina e Caribe. O grande país
56
oriental anunciou um ambicioso plano denominado
“1+3+6”, a ser lançado no Foro Ministerial China/
Celac, a ser realizado em Pequim no próximo ano
(17). Em Brasília, anunciou também linhas de crédito com desembolso chinês de US$ 5 bilhões para
um Fundo de Cooperação. Por fim, os chineses acertaram com o Brasil e o Peru a criação de um grupo
de trabalho tripartite para financiar a Ferrovia transcontinental – velha ambição geopolítica brasileira,
desde Mário Travassos –, que ligará o Atlântico ao
Pacífico, ainda que provavelmente com trilhos e locomotivas made in China.
Chamam a atenção os elevados financiamentos
chineses à Venezuela: nosso vizinho, desde que começou a funcionar o fundo chino em 2001, recebeu
cerca de US$ 50 bilhões, dos quais 95% já foram quitados. Como disse o chanceler Elias Jaua, a equação
é “energia para a China, financiamento para o desenvolvimento da Venezuela” (Correo del Orinoco, 2307-2014). Atualmente, a Venezuela envia cerca de
600 mil barris de petróleo/dia para a China, propondo aumentar estes envios “em médio prazo” para 1
milhão de barris/dia (CO, 20-07-2014). Na visita, Xi
anunciou novo crédito de US$ 4 bilhões à Venezuela.
O BRICS vai, assim, dialogando com o entorno geográfico de cada um de seus integrantes. Após a criação,
em Durban (2013), do BRICS/África Council, estabelece-se em Brasília o mecanismo BRICS/Unasul. Mais
amplamente, surgem os Foro China/Celac e, propõe
Putin, um Foro Celac/União Euro-asiática.
As novas alianças são importantes para a América
Latina no sentido de diversificar relações. Potencialmente, afetam a própria presença tradicional dos Estados Unidos em seu primeiro perímetro geopolítico
primário.
Conclusões
De fato, após a 6ª Cúpula os países BRICS dão
um salto de qualidade e, mais amplamente, a própria luta por quais serão o desfecho e o desenlace da
atual transição na “ordem” internacional entrará em
novos capítulos.
Contramovimentos recrudescerão; não sendo
uma transição que ocorre manu militari, ao contrário
– que acontece com a preservação da posição estratégica da grande superpotência do planeta –, é de
se esperar a intensificação de manobras diretas ou
indiretas voltadas a fomentar contradições entre os
países BRICS. Persistirá e se intensificará a “geopolítica da contenção”, que nestas páginas abordamos
em dois recentes artigos (18) – especialmente aquelas voltadas contra a coesão nacional e territorial de
cada um dos BRICS.
Brasil
A presidência pro tempore brasileira do BRICS vai
até a 7ª Cúpula, que ocorrerá dias 09 e 10 de julho de
2015 na cidade de Ufa, na Rússia – simbolicamente localizada geograficamente na fronteira terrestre
russa entre a Europa e a Ásia, marcando ponto de
contato entre Ocidente e Oriente.
Será o período de implementação do chamado
Plano de Ação de Fortaleza – que prevê amplo leque
de iniciativas, e sobretudo por avançar no desafio de
dar operacionalidade aos acordos de Fortaleza, em
especial no funcionamento do Banco do BRICS, previsto para até 2016.
Não terá passado despercebida a proposta verbalizada pelo presidente russo Vladimir Putin em
Fortaleza, propondo um novo e ousado desafio
geopolítico: o da conformação de uma associação
energética entre os países BRICS (“BRICS Energy Association”). A ideia inclui a formação de um
banco de reserva de combustíveis (“Fuel Reserve Bank”)
e de um instituto de política energética (“BRICS Energy
Politic Institute”) (19). A aliança reuniria dois dos
maiores produtores de petróleo – a Rússia e (potencialmente, pelo pré-sal) o Brasil – e os dois maiores
consumidores, a China e a Índia. Ao Brasil, um dos
maiores produtores de petróleo em médio prazo, resulta interessante entrar no grande jogo da geopolítica
de energia por esta via.
Enormes potencialidades poderá ter no futuro
próximo a aliança dos países BRICS. Quanto ao presente, não por acaso vale observar o que disse um veterano observador do cenário internacional e protagonista dele há mais de cinquenta anos, o presidente
cubano Raúl Castro – que se deslocou a Brasília na
condição de país membro da troika da Celac. Para
Raúl, as reuniões de julho foram “um fato histórico
que não tem comparação” (Granma, 19-07-2014).
* Ronaldo Carmona é pesquisador de Teoria
Geopolítica na Universidade de São Paulo (USP).
Membro do Comitê Central do PCdoB
Notas
(1) Outra ação geopolítica destacada do Brasil foi em 2009, quando da articulação diplomática entre Brasil, Turquia e Irã que
resultou na assinatura da Declaração de Teerã sobre o dossiê
nuclear iraniano, que provocou, naquele momento, a entrada
destes novos atores no cenário geoestratégico global, gerando contundente reação do status quo.
(2) Em março, na votação da ONU de hipócrita resolução patrocinada pelos países da Otan, pela “integridade territorial da
Ucrânia” (sic), num gesto político de grande relevância, os
quatro BRICS se abstiveram conjuntamente. A Declaração
de Fortaleza apresenta a primeira opinião comum dos países
BRICS quanto à crise na Ucrânia. No ponto 44, lê-se que “Expressamos nossa profunda preocupação com a situação na
Ucrânia. Clamamos por um diálogo abrangente, pelo declínio
das tensões no conflito e pela moderação de todos os atores
envolvidos, com vistas a encontrar solução política pacífica,
em plena conformidade com a Carta das Nações Unidas e
com direitos humanos e liberdades fundamentais universalmente reconhecidos”.
(3) False flag em inglês. São operações militares ou de inteligência que aparentam ser realizadas pelo inimigo de modo a tirar
partido das consequências resultantes. Que interesse teriam
os rebeldes ucranianos em atacar um avião civil de passageiros? Ao governo direitista de Kiev, ao contrário, surgiu uma
oportunidade para liquidar com força militar extrema o movimento separatista.
(4) Entrevista a quatro meios de imprensa da América Latina, em
14 de julho de 2014.
(5) Ainda que, vale dizer, a primarização nesta relação é objeto
de crescente preocupação, por exemplo, dos países latino-americanos. É o caso do Brasil que, em 2013, teve nas
commodities 87% de suas vendas à China enquanto que, de
suas importações deste país, 60% foram de produtos industrializados (Carta Capital, 23-07-2014).
(6) “Um momento histórico e seminal, que viu pela primeira vez
desde as instituições de Bretton Woods, a criação de uma
nova e única iniciativa de financiamento” (tradução livre). Ver
http://www.thepresidency.gov.za/pebble.asp?relid=17711
(7) Ao contrário das instituições de Bretton Woods, o NDB surge
com uma governança rigorosamente equivalente em termos
de distribuição de poder entre seus cinco sócios fundadores.
É altamente questionável, portanto, a interpretação de certos
analistas ocidentais de que o Banco seria um “instrumento da
expansão chinesa”.
(8) Michael Wong, professor da City University de Hong Kong, em
entrevista à BBC Brasil, 15-07-2014.
(9) “Em um mundo de inevitáveis colisões”. Carta Capital, 23-0714.
(10) “Os BRICS no FMI e no G-20”, dezembro de 2012.
(11) Ver artigo, que teve ampla repercussão à época, de Zhu
Xiao-chuan, presidente do BC (Banco Popular da China).
(12) Ver http://www.telegraph.co.uk/finance/globalbusiness/10991616/
The-Brics-have-a-100bn-bank.-Can-the-West-start-takingthem-seriously-now.html
(13) Como disse Michael Hudson, em Carta Capital, 23-07-2014.
(14) O Brasil presidirá o Conselho de Administração do NDB e
terá a próxima presidência após a gestão indiana; a Rússia
presidirá o Conselho de Governadores (ministros).
(15) Anthony W. Pereira, do King’s College de Londres (The BRICS Post, 15-07-2014).
(16) O Brasil tem sido o principal contribuinte (70%) dos recursos
do Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM) do Mercosul,
voltado para financiar projetos de desenvolvimento no bloco
regional, entretanto, com valores modestos. Em sete anos,
o FOCEM financiou 45 projetos no valor de US$ 1,4 bilhão.
(17) Sendo que o “1” se refere a um “programa a elaborar” (Programa de Cooperação China-América Latina e Caribe 20152019), o “3”, três “grandes motores” (comércio, investimentos
e cooperação financeira) e “6”, as seis áreas prioritárias de
cooperação (energia e recursos naturais, construção de infraestruturas, agricultura, manufatura, inovação científica e
tecnológica e tecnologia da informação).
(18) Ver “Geopolítica do BRICS” (Princípios nº 131) e “A ascensão
brasileira em xeque” (Princípios nº 129).
(19) Ver http://eng.kremlin.ru/transcripts/22677
57
132/2014
Entrevista com Manoel Rangel
Uma política de Estado para o
cinema e o audiovisual
Fábio Palácio*
Cineasta Manoel Rangel,
diretor-presidente da Agência
Nacional do Cinema (Ancine)
O Estado brasileiro tinha uma atuação
meramente de estímulo à produção de
filmes baseada em recursos de incentivo
fiscal. Essa atuação tornou-se mais
complexa. Converteu-se pouco a pouco
numa política de desenvolvimento
econômico e cultural
58
A
Brasil
tual diretor-presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o cineasta Manoel Rangel vem jogando papel destacado
na construção de uma política de Estado
para o setor de cinema e audiovisual em
nosso país. Com trajetória oriunda dos
movimentos sociais, Rangel presidiu
entidades como a União Brasileira dos
Estudantes Secundaristas (1989-1990), a União da
Juventude Socialista (1991-1992) e o Centro de Memória da Juventude (1994-1996).
Entre 1999 e 2001, esteve à frente da seção paulista da Associação Brasileira de Documentaristas.
Presidiu, ainda, a Comissão Estadual de Cinema da
Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (20012002). Foi assessor especial do ministro da Cultura
Gilberto Gil (2004-2005) e secretário substituto do
Audiovisual no mesmo período. Coordenou, então,
o grupo de trabalho sobre regulação e reorganização
institucional da atividade cinematográfica e audiovisual no Brasil.
Em 2005 foi nomeado membro da diretoria colegiada da Ancine. No ano seguinte, após a aprovação
e constituição do Fundo Setorial do Audiovisual, assumiu a Presidência da autarquia, cargo ao qual foi
reconduzido em 2009 e, novamente, em 2013, quando a presidenta Dilma Rousseff o confirmou à frente
da agência até maio de 2017. Rangel exerce desde
2011, concomitantemente, a Secretaria Executiva da
Conferência de Autoridades Audiovisuais e Cinematográficas Ibero-Americanas.
Nesta entrevista, realizada no último dia 5 de
agosto na Cinemateca de São Paulo, o presidente da
Ancine aborda a situação atual e os grandes desafios
nacionais no segmento cinematográfico e audiovisual. De suas respostas, sempre ocupadas em apontar
avanços e dilemas, emerge rico panorama das políticas elaboradas e implementadas nos últimos anos.
Princípios – Qual o diagnóstico do setor de cinema
e audiovisual em nosso país?
Manoel Rangel – O setor avançou muito ao longo dos
últimos doze anos, desde a criação da Agência Nacional do Cinema em fins de 2001. Construímos, nesse
período, uma política pública de cinema e audiovisual
que antes não existia. O Estado brasileiro tinha uma
atuação meramente de estímulo à produção de filmes
baseada em recursos de incentivo fiscal. Essa atuação
tornou-se mais complexa. Passamos a ter uma atuação
reguladora e a fiscalizar o mercado. Passamos a contar
com fundos públicos para investir no desenvolvimento
do setor, para além do incentivo fiscal.
Ao construir essa política pública, com esses instrumentos, nós abrimos o foco. O que antes era apenas
apoio à produção de longas-metragens, num viés quase assistencialista, converteu-se pouco a pouco numa
política de desenvolvimento econômico e cultural. Passamos a mirar também a televisão, aberta e paga, além
de outros espaços de veiculação. Abarcamos o campo
público de televisão e estimulamos a parceria entre as
televisões privadas e a produção independente. Colocamos em cena a expansão do parque exibidor, das
salas de cinema, e o fortalecimento das distribuidoras
brasileiras independentes. Construímos um novo marco regulatório para a televisão por assinatura, porque
entendíamos que este era o nó do processo da conver-
gência digital. Um nó que, uma vez desatado, permitiria liberar novas energias no crescimento desse importante serviço, que por sua natureza encontra-se entre o
universo das telecomunicações e o universo da comunicação social, já que as operadoras de TV por assinatura congregam tanto serviços de banda larga quanto de
entrega de conteúdo por meio de seus canais.
Construímos então, ao longo destes últimos doze
anos, uma política nacional de cinema e audiovisual
com essa complexidade. No âmbito dessa construção
formulamos um plano para o setor. Desde 2012 temos
um plano de diretrizes e metas para os próximos dez
anos. Nunca houve, no segmento brasileiro do audiovisual, planejamento sequer de curto prazo, quanto mais
de médio, longo prazo. E o mais importante: o plano foi
pactuado entre todo o setor do audiovisual e o governo.
Reunimos dezoito representantes do setor – televisão
aberta, televisão paga, telefonia, produtores, distribuidores, exibidores, gente também de fora do eixo RioSão Paulo – em debate com nove representantes de ministérios. Ao final aprovamos por consenso esse plano,
depois de muito debate e diversos ajustes.
O plano de diretrizes e metas orienta a ação do
poder público na construção do setor, na resposta aos
diversos gargalos do desenvolvimento econômico. O
que nos norteia? Fazer do Brasil um dos cinco maiores mercados de cinema e audiovisual do mundo. Ao
59
132/2014
lado disso, intentamos favorecer uma forte produção
de conteúdos brasileiros e a mais ampla incorporação
da sociedade no acesso aos serviços audiovisuais. Julgamos ser isso vital para desenvolvimento da nossa
indústria, mas também para o desenvolvimento da
economia brasileira e para a inserção do Brasil no
mundo. Este é, portanto, o ponto em que nos encontramos hoje.
As políticas têm surtido efeito. Para que façamos
ideia, o mercado de TV por assinatura cresceu em
2011 e 2012 à taxa de 25 a 27%. Cresceu em 2013
à taxa de 12% e vai crescer no decorrer deste ano à
taxa de 11%. Claro, há um pequeno decréscimo na
taxa de crescimento, mas isso é natural à medida
que vamos atingindo patamares mais elevados de
desenvolvimento do setor.
A mesma coisa acontece no mercado de salas de
cinema: o crescimento tem sido da ordem de 8 a 9%
ao ano. Temos hoje uma participação de mercado de
18,6% do filme nacional. Fechamos 2013 com o lançamento de 129 filmes. A título de comparação, em 2002
eram apenas trinta as obras lançadas; a participação
de mercado do filme brasileiro era da ordem de 8,7%.
E pior: essa participação estava sob a responsabilidade das chamadas majors, as mesmas que controlam a
distribuição de filmes estrangeiros. Desde 2010 essa
situação mudou, com a maior parte da bilheteria de
filmes nacionais nas mãos de distribuidoras brasileiras
independentes.
Princípios – Como se posiciona o Brasil no contexto
internacional?
Manoel Rangel – O Brasil é hoje o décimo mercado em
termos de ingresso e de faturamento do mercado de
salas de cinema. O peso da economia do audiovisual
na economia brasileira é equivalente ao peso do setor
na economia francesa. Essa comparação reveste-se de
importância porque a França é, depois dos Estados
Unidos, o principal polo de produção de conteúdos, de
desenvolvimento de uma indústria nacional de conteúdos audiovisuais, excetuando-se o mundo asiático,
que é um mundo à parte. Índia, Coreia, Japão e China
têm peculiaridades no seu desenvolvimento econômico e na sua tradição cultural que implicam uma experiência, no setor do audiovisual, muito particular e não
reproduzível. No mundo ocidental, contudo, a França
pode ser tomada como parâmetro para nós.
O peso da economia do audiovisual na economia
brasileira é superior ao peso do setor na economia de
países como o México. Isso significa que temos uma
posição de força. Porém, como costumamos afirmar, se
por um lado isso é relevante, por outro é ainda insuficiente para o alcance de nossos objetivos estratégicos.
Por quê? Porque quando observamos essa proporção,
60
esse peso da economia do audiovisual na economia como um todo, não visualizamos com clareza o peso das
empresas brasileiras e da produção brasileira. Nosso
desafio não é apenas fazer crescer o mercado interno. É
também fazer crescer a participação da produção brasileira, das empresas brasileiras no mercado interno,
inclusive porque julgamos que esta é uma importante
alavanca para a inserção internacional.
Princípios – O Brasil vivenciou nos últimos anos um
robusto processo de desconcentração de renda e
inclusão social, cuja face mais visível encontra-se
na ascensão da chamada “classe C”. Quais os impactos desse processo no setor do audiovisual?
Manoel Rangel – Os impactos são profundos. O crescimento do mercado de televisão por assinatura decorre
de alguns fatores, sendo o principal deles as transformações na socioeconomia brasileira, a incorporação
da chamada “classe C” – que compreende mais de 40
milhões de brasileiros – ao mercado de consumo. Um
segundo fator importante para a expansão do mercado
de TV por assinatura é o novo marco regulatório, materializado na lei 12.485, também denominada Lei da TV
Paga. Um terceiro fator pode ser localizado nos estímulos garantidos pela política governamental, no sentido
de construir um arranjo capaz de favorecer a produção
de conteúdo brasileiro. Essa produção é importante por
causa do grau de identidade que a população brasileira
tem com a produção local...
Princípios – ...E, se a população adquire maior poder aquisitivo e não se aumenta o volume da produção local, essa maior capacidade de consumo
tende a ser escoada para a produção estrangeira...
Manoel Rangel – ...Tende a escoar para a produção estrangeira. E, visto de outra maneira, porque no caso
da TV paga essa relação é um pouco diferente, se não
há conteúdo brasileiro ali, tende a haver menos relação
afetiva do brasileiro com aquele serviço, e ele, portanto,
pode não aderir àquele serviço. É aqui, portanto, que
está a dosagem. É um equilíbrio delicado que existe
nessa equação.
Princípios – A ascensão social da chamada “classe
C” também foi determinante para a expansão do
mercado de salas de cinema?
Manoel Rangel – É a “classe C” que tem dado base ao
ritmo de expansão das salas de cinema. Esse mercado
cresce a uma taxa de 8% ao ano. O dado é bastante
relevante, porque na Europa e na América do Norte cai
o número de salas de cinema. É verdade que no Brasil
há uma defasagem muito grande, mas somos um país
cujo parque exibidor tem crescido consistentemente.
Brasil
O México tem um mercado robusto, forte, já próximo da saturação, e por isso
cresce menos. Mas, entre
os outros países, o Brasil é o
que mais cresce. Os efeitos
desse processo são muito
fortes. O que hoje está em
questão é como isso passa
a refletir-se no tipo de produção de conteúdo que é
feito, na qualidade dessa
produção, e como a produção brasileira pode dialogar
mais fortemente com essa
parcela de brasileiros que
adquire direitos de cidadania e adentra o mercado de
consumo.
so. Está lá no nosso diagnóstico que a expansão da
infraestrutura de banda
larga é indispensável a essa nova qualidade dos serviços. Está lá a expansão
da TV por assinatura como
questão crucial. A sociedade brasileira, e essa “classe
C” que se incorporou, vê o
acesso a esses serviços como a confirmação de que
ela mudou de patamar.
Há, portanto, a questão do
ganho simbólico: além de
ter emprego, além de ter
renda, além das melhorias
O plano de
de vida na forma do acesso
a bens, esse brasileiro que
diretrizes e metas
ascende socialmente almeja também
para o audiovisual
Princípios – As manifestações de
os símbolos dessa mudança de patajunho de 2013 colocaram em
mar. E o acesso aos serviços culturais
desenhava, já em
pauta a demanda por serviços
é determinante nesse processo.
2012, um cenário
urbanos de qualidade. Isso inMesmo antes do plano de direclui, naturalmente, cinema, TV
trizes
e metas, algumas medidas impara os serviços do
por assinatura e internet banda
portantes vinham sendo adotadas.
setor, dialogando
larga. De que forma a Ancine
Lançamos em 2010, ainda com o
trabalha para atender a esses
presidente Lula, o programa Cinema
intensamente com
anseios? Quais as principais dePerto de Você, voltado à expansão do
os anseios que
finições do plano de diretrizes e
parque exibidor. As medidas incluem
metas?
desoneração fiscal da ordem de 25%;
seriam expressos
Manoel Rangel – Toda aquela movilinha de crédito subsidiado com vernas manifestações
mentação de junho fez explodir algo
bas do próprio setor – sem drenar,
que os formuladores de política púportanto, recursos do tesouro; made junho
blica nas diversas áreas já vinham
peamento dos municípios carentes
apontando: a dificuldade significatide salas de cinema, e provocação aos
va de levar serviço público com certo
empreendedores privados, para que
padrão de qualidade à imensa maioria dos brasileiros.
se propusessem esse desafio. Porque no Brasil tem uma
As manifestações de junho deram um caráter agudo
coisa curiosa. O Estado, além de tudo, tem que cumprir
àquilo que já era crônico. Havia respostas sendo consa função de chegar no empresário e dizer: Acorda! Tem
truídas e aplicadas. O Minha Casa, Minha Vida é uma
aqui uma oportunidade e você deve se lançar!
resposta objetiva ao problema da carência de habitação. O Mais Médicos é uma resposta objetiva à carência
Princípios – Uma característica que, aliás, diferende infraestrutura no atendimento à saúde. Esse procia bastante nossa classe empresarial daquela de
grama foi lançado em setembro, mas vinha sendo gespaíses como os Estados Unidos, cujo empresariatado havia mais de um ano e meio.
do é mais ativo, mais prospectivo...
No terreno do cinema e do audiovisual, o plano de
Manoel Rangel – ...E muitas vezes lidera o processo de
diretrizes e metas desenhava, já em 2012, um cenário
expansão econômica e de modernização do país. No
para os serviços do setor, dialogando intensamente com
Brasil é paradoxal, mas cabe ao Estado uma parcela
os anseios que seriam expressos nas manifestações de
relevante da responsabilidade sobre a modernização.
junho. Em que sentido? Está lá no nosso diagnóstico
Foi assim na década de 1930, com Getúlio Vargas. Foi
que o processo de transformação social exige uma quaassim durante o regime militar, nos governos Médici
lificação da vida nas cidades, com melhores serviços
e Geisel, e é assim no ciclo inaugurado com o governo
prestados, e que o cinema é parte indispensável disLula. É um paradoxo, porque seria de se esperar uma
61
132/2014
relação mais equilibrada, no sentido de também haver
liderança por parte da sociedade civil na modernização
do país. Mas no Brasil a marca é a do Estado modernizador. Claro que o Estado, ao atuar, expressa forças sociais, empresariais e populares, sentimentos difusos na
sociedade. Mas seu foco deveria ser regular e estimular
investimentos, e não planejar e impor a expansão econômica. É um paradoxo. É diferente dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Alemanha. É mais próximo da
realidade asiática, na qual o Estado também tem papel
determinante na direção do processo modernizador.
Característica que, aliás, independe do regime econômico, valendo para países tão distintos quanto Coreia
do Sul, Japão, China, Índia e Vietnã.
pação do mercado de cinema e de televisão. No Brasil,
já atingimos uma capacidade de planejamento, pelos
distribuidores privados, de três, quatro anos. Acreditamos que isso pode intensificar-se e que podemos alcançar um horizonte de planejamento de seis, sete anos.
Em nosso país, o planejamento de longo prazo é uma
grande deficiência em todas as áreas da vida nacional,
sejam elas públicas ou privadas.
O Brasil de Todas as Telas é um investimento de
um bilhão e duzentos milhões de reais, a ser feito ao
longo de 2014 e no início de 2015. Estamos investindo
setecentos milhões em produção de filmes e séries de
TV, noventa milhões em desenvolvimento de roteiros
e formatos e mais trezentos e dez milhões na expansão do parque exibidor. Há ainda os investimentos
Princípios – Quais os objetivos do recém-lançado
do terceiro eixo do programa, oriundos do Programa
programa Brasil de Todas as Telas?
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
Manoel Rangel – O Brasil de Todas as
(Pronatec), que incluem cinco mil
Telas é nossa ferramenta para execubolsas de formação em doze capitais
A sociedade
tar muitas das diretrizes e perseguir
de todas as regiões do Brasil. Essas
muitas das metas do plano para o
cidades oferecerão cursos de formabrasileira,
audiovisual. Ele tem quatro eixos. O
ção de mão de obra para a indústria
particularmente a
primeiro relaciona-se ao desenvoldo audiovisual. Com o programa nós
vimento de roteiros e formatos de
temos o objetivo de produzir cerca
chamada “classe
obras audiovisuais. Propomos um
de 450 roteiros e formatos. PretenC”, vê o acesso aos
forte investimento de base no modemos também produzir cerca de
mento imediatamente anterior ao
duas mil horas de conteúdo, entre
serviços culturais
da produção de uma obra, quando
filmes e séries de televisão. Tudo isso
como a confirmação
é necessário ter um bom roteiro, ter
é indispensável ao cumprimento da
um bom formato desenvolvido. O seLei da TV Paga – que fixou obrigade que ela mudou
gundo eixo é o da produção de filmes
ções de carregamento de conteúdo
de patamar. Há,
e séries de televisão, em larga escala,
brasileiro –, à ocupação do mercado
no país inteiro. O terceiro volta-se à
de salas de cinema e ao escoamento
portanto, a questão
capacitação de mão de obra técnica,
dessa produção, que precisa chegar à
do ganho simbólico
para fornecer insumos ao desenvolsociedade brasileira.
vimento da indústria do audiovisual,
Eu destacaria dois aspectos que
gerando empregos de alta renda e de
são muito relevantes no desenho do
alto valor agregado. Por fim, o quarto eixo do programa
programa. Primeiro: vamos produzir conteúdo nas 27
é a expansão do parque exibidor.
unidades da Federação. Mais que isso, ativamos o pacEm torno de cada um desses eixos, de cada uma
to federativo para a política de cinema e audiovisual:
das ações executadas dentro desses eixos, a gente diadezoito governos de estado e dezenove prefeituras de
loga com uma série de objetivos que estão fixados no
capitais já lançaram ou estão lançando nestes meses
plano de diretrizes e metas. Por exemplo: o objetivo
editais com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual,
de fortalecer as produtoras brasileiras independentes.
dos estados e das prefeituras de capitais. O esforço
No eixo de produção de filmes e séries há uma linha
abrange 23 unidades da Federação – só quatro delas
de investimento que coloca recursos à disposição das
ficaram de fora até o momento. Nunca houve nada
distribuidoras brasileiras, para que elas planejem a
similar, ainda que alguns desses governos locais já tiocupação do mercado. Temos o objetivo de aumentar
vessem investimento em produção de conteúdo audioa participação de mercado do filme brasileiro. Então,
visual. Nós aumentamos o investimento daqueles que
ao impulsionar a distribuidora brasileira, nós estamos
tinham e trouxemos muitos outros para construírem
estimulando que ela tenha capacidade de planejar a
ações junto ao setor. Investimos noventa milhões de
ocupação do mercado nos anos vindouros, de maneira
reais do Fundo Setorial do Audiovisual e alavancamos
similar àquilo que fazem os grandes estúdios, as maoutros noventa e oito milhões em investimentos dos
jors. Elas têm planejado sete, dez, quinze anos de ocuestados e das capitais.
62
Brasil
Princípios – Qual a importância, para o audiovisual, da recente aprovação do Sistema Nacional
de Cultura?
Manoel Rangel – O Sistema Nacional de Cultura é muito relevante. Em primeiro lugar, ele representa um
esforço de coordenação das políticas públicas de
cultura no país inteiro. Além disso, ele estimula a
construção de secretarias de cultura e de conselhos
de cultura, e impulsiona a destinação de recursos específicos para a área nos estados e municípios. Ele
constrói, portanto, um pacto federativo que favorece
o desenvolvimento de todas as políticas de cultura. De
certo modo o momento que estamos vivendo ainda é
de início da implantação do Sistema. A ação que colocamos em marcha este ano, à qual me referi anteriormente, envolvendo estados e prefeituras de capitais, é
a maior ação já realizada dentro do Sistema Nacional
de Cultura, em termos de investimento casado e de
articulação do pacto federativo na produção de conteúdos culturais. Mas acho que o Sistema Nacional de
Cultura está destinado, guardadas as devidas proporções, a ter a importância que o SUS teve para a saúde
e que a ambição de um sistema nacional tem para a
educação.
Princípios – O Brasil vive um momento de crescente prestígio e afirmação internacional. Qual
a importância do setor do audiovisual para a
ampliação daquilo que muitos denominam soft
power?
Manoel Rangel – É crucial. Quando pensamos a política
de cinema e audiovisual, trabalhamos muito fortemente com o desenvolvimento do mercado interno, porque
entendemos que esta é nossa alavanca para a projeção
e a inserção internacional. Entendemos que a indústria do audiovisual é determinante para a economia
brasileira, mas também para a inserção do Brasil na
economia internacional. É determinante, ainda, para a
circulação, na cena internacional, da nossa cultura, de
um modo de vida dos brasileiros. É determinante para
que os outros povos possam conhecer melhor o que é o
Brasil, o que é o povo brasileiro e quais são os dilemas
da sociedade brasileira.
Em outras palavras, nossa visão combina um elemento de ordem econômica com outro de ordem cultural. Na primeira chave, partimos da percepção de que
vivenciamos um momento de desenvolvimento. Esse
momento dá-se em um contexto mundial marcado pelo crescimento da importância do setor de serviços, no
qual se inclui o território do entretenimento. A indústria do audiovisual é parte determinante do setor de
entretenimento e, portanto, o desenvolvimento dessa
indústria no Brasil é decisivo para que possamos trazer
para nós – pela mão de empresas brasileiras – um naco
importante da circulação de ativos nessa área. Esse é o
aspecto econômico da questão.
Mas há também o outro lado da história, que é o da
afirmação cultural. Todo o mundo conhece bem a experiência norte-americana. Filmes e séries de televisão
dos Estados Unidos são veículos do modo de ser dos
estadunidenses, de sua cultura. São veículos de seus
produtos, de sua economia e de sua força. Acreditamos
que, sem alimentar as mesmas ambições hegemônicas
dos Estados Unidos – as quais incluem um componente militarista –, a produção audiovisual brasileira, de
filmes, novelas e séries de televisão, será sempre muito importante para que se conheça o que é o aporte
da cultura brasileira, para que se projete a imagem do
país lá fora, para que nossa imagem seja gerada por
nós mesmos, numa troca rica com outras culturas, com
outros povos. No entanto, creio que, para além de uma
questão nacional, para além de uma questão importante para o desenvolvimento do Brasil e nossa afirmação,
esta é uma questão crucial para a humanidade. Vejo
a produção audiovisual, e a produção cultural de um
modo geral, como a preservação e a renovação de um
conjunto de valores, hábitos, experiências que se condensam num modo de pensar, de encarar a vida. Tudo
isso pode ser e será determinante em algum momento
da trajetória humana sobre a terra, para que a gente
seja capaz de encontrar saídas diante das múltiplas crises que a humanidade vive e viverá. A existência de
distintas experiências será sempre determinante nessa
busca de saídas. Por isso a indústria do audiovisual é
importante não apenas sob a ótica nacional, mas também sob a ótica da própria espécie humana.
* Fábio Palácio é jornalista, doutor em Ciências da
Comunicação (ECA-USP)
63
132/2014
Califado: reino de terror que
serve ao imperialismo
Lejeune Mirhan*
Um olhar à geopolítica das lutas sectárias no Oriente
Médio revela que têm pouco de religiosas e muita
coincidência com os objetivos imperialistas de potências
ocidentais. A relação formadora da CIA e “rebeldes”
lembra o financiamento à Al Qaeda, em seu início,
expondo a hipocrisia da “guerra ao terror”
64
N
Internacional
os meses de junho e julho a grande imprensa publicou muitas matérias sobre
o “Califado”. Eles se apresentam como
ISIS/ISIL e vêm cometendo as maiores
barbaridades no mundo. Nesta mesma
revista já havia aparecido o tema do
“Califado” há cerca de um ano atrás. Agora, em função do que eles chamam da “proclamação” do novo
Califado e da auto-investidura de um novo “Califa”,
precisamos entender melhor o que vem ocorrendo
no mundo árabe e islâmico.
O fundador dessa grande religião monoteísta
foi Mohammad, ou Maomé, nascido no ano 570 da
nossa era, na cidade de Meca, e morto em 632 na
cidade de Medina, ambas hoje situadas na Arábia
Saudita. Essas são as duas principais cidades consideradas sagradas para o Islã. A terceira viria a ser
Jerusalém, a primeira direção da oração dos muçulmanos, que foi conquistada quatro anos depois da
morte do profeta.
Maomé foi o que se pode dizer de um gênio. Na
política, na administração do Estado, nas questões
de organização de um povo. E, principalmente, na
criação de uma grande religião para o seu povo áraIntrodução
be. Assim como o cristianismo não rompeu a velha
aliança do judaísmo, mas estabeleceu uma nova,
Pretendemos ajudar os leitores a se esclarecerem
com novos valores e com um novo
sobre os fenômenos do Islã político,
líder – Jesus –, o Islã também não
o significado de “Califado”, as raírompe nem com o judaísmo, nem
Assim como o
zes históricas do Islamismo no sécom o cristianismo.
culo VII na Península Arábica com
cristianismo não
Maomé faz uma mescla de
Mohammed (Maomé), seus postuideias e teorias de cada uma desrompe a aliança
lados, bem como mencionar os prisas religiões, e mesmo dando novas
meiros Califas.
do judaísmo, mas
versões de episódios e fatos históriPretendemos comentar sobre a
cos anteriormente contados de ouestabelece novos
primeira partilha feita do mundo
tras formas. Maomé não tem papel
árabe entre as potências vencedovalores e o novo
divino como Jesus. O Alcorão – liras da Primeira Guerra Mundial,
líder – Jesus –, o Islã vro considerado sagrado para toque ficou conhecida como Acordos
dos os muçulmanos – menciona 25
de Sykes-Picot.
também não rompe
profetas, sendo Adão e Noé os priÉ nosso objetivo comentar someiros, passando por Jesus e o prócom o judaísmo e o
bre as várias correntes existentes
prio líder da nova Igreja, Maomé,
no Islã moderno e atual, seus princristianismo
como sendo seu último profeta.
cípios, objetivos, postulados e sua
Com a idade de apenas 25 anos
força.
casa-se com uma viúva chamada Khadija, que era
Falaremos sobre o que vimos chamando de “Intambém comerciante. A partir desse momento,
ternacional do Terror”, entrelaçando com as lutas
conta a história, Maomé afastava-se de sua tribo
antiimperialistas da atualidade.
– Meca – e adquire o hábito de passar as noites
em cavernas próximas, meditando. Eis que, conAo final, apresentamos algumas
ta a história, ele teria recebido as mensagens diconclusões
retamente de Deus, através do anjo Gabriel (aliás,
o mesmo que aparece nas religiões mosaicas tanPara preparar o presente trabalho, lemos em torto para Abrahão, quando este estava sendo testano de 40 artigos de 15 autores, em 11 páginas na Indo por Deus para sacrificar seu filho, quanto para
ternet, em sua maioria dedicadas ao Oriente Médio,
Maria quando anuncia para ela que terá um filho
e referenciadas na bibliografia final.
ainda que fosse virgem).
Daí em diante, praticamente tudo foi registrado
Os primórdios do Islã e os primeiros
pela história documental (diferente do judaísmo e
Califas
cristianismo, em que poucas coisas e fatos são documentados). Diz-se que, durante 23 anos, Maomé
Os árabes da Península Arábica não cultuavam
recebeu os versículos do Alcorão (chamados de Sunenhuma religião monoteísta. Ao contrário, eram
ratas) e os repetia aos seus seguidores que imediatapoliteístas. Conviviam com uma pequena comunimente anotavam. Posteriormente à sua morte, todas
dade de judeus, como em todo o mundo árabe – e o
essas Suratas foram organizadas e transformaram-se
faziam em paz –, e o cristianismo praticamente não
no livro chamado Al-Corão sagrado.
havia chegado àquela parte do mundo.
65
132/2014
Os quatro primeiro Califas
Este último era primo do profeta e seu genro, depois,
casou-se com a sua filha Fátima.
Desde que Maomé morreu em 632, uma parte
Após a morte de Maomé, em 8 de junho de 632,
significativa da comunidade islâmica já achava que
abre-se uma grande disputa na comunidade islâmiAli deveria ser o sucessor do profeta. Isso inicia uma
ca para saber quem seria seu sucessor. Muito paredisputa e uma divisão na comunidade que são sencido com a religião cristã nesse sentido quando esta
tidas até hoje, entre os sunitas e os
elege um novo papa, o processo su“xiitas”, que significa “partidários
cessório é quase dinástico e ficava
de Ali”.
nas mãos de poucos.
O Califado
O filho primogênito de Ali,
Existiram apenas quatro CaliHassan,
não quis assumir o cofas, chamados “bem-orientados”.
governa sob a
mando do Califado. A indicação
São eles: O primeiro foi Abu Bakr,
religião islâmica,
deveria cair sobre seu irmão Hustio do profeta, que governou pousein que, no entanto, é sacrificado
co tempo, de 632 até 634. Esse foi
com o Corão
barbaramente, tendo virado o seo único dos quatro que morreu de
servindo de
nhor dos mártires do Islã e adoramorte natural. Todos os outros três
do pelos xiitas até os dias atuais.
seriam assassinados.
Constituição,
No dia de sua morte os xiitas, que
O segundo Califa foi Omar
a Sunna com
devem representar apenas 20%
Ibn Al Khattab, que governou dez
dos cerca de 1,6 milhões de muanos, de 634 até 644. Foi o período
as tradições e
çulmanos existentes em todo o
de grande expansão do Islã como
os costumes de
mundo, realizam as maiores mareligião, e sob o seu Califado Jerunifestações do mundo, chamado
salém foi conquistada. O terceiro
Maomé e a sharia,
de “dia do martírio”. Só no sanCalifa foi Othman Ibn Affan, que
como se fosse o
tuário em sua homenagem, no
governou de 644 até 656. Por fim, o
Irã, 20 milhões de pessoas partiquarto e último Califa, Ali Ibn Abi
Direito islâmico
cipam todos os anos.
Thalib, governou entre 656 e 661.
Xiitas na celebração
do martírio do imã
Houssein no Barein
66
Wikicommons
Internacional
O significado de Califado
Aqui devemos registrar, de forma resumida, a
principal diferença, em termos de doutrina, entre
sunitas e xiitas. Tanto sunitas como xiitas entendem
Podemos dizer que Califado é uma espécie de forde forma clara – e nisso são praticamente unânimes
ma de governar os humanos sob a religião islâmica. O
– que as revelações divinas encerram-se com a morte
objetivo do Islã – governar a comunidade muçulmana
do profeta Maomé. Mas, para os xiitas, eles levam
com base em regras do Alcorão sagrado – dever-se-ia
em conta a existência dos chamados imãs, homens
imediatamente estabelecer um Essábios descendentes do profeta
tado islâmico, governado exclusiva(usam turbante sempre preto). Os
mente por um Califa ao qual todos
O acordo Sykesxiitas não consideram os Califas
deveriam ser fiéis. O Corão seria
como os sunitas.
uma espécie de Constituição.
Picot (1916) dividiu
Aqui é importante também
Os muçulmanos seguem mais
regiões árabes
mencionarmos o conceito de jihad.
um livro. Chama-se Sunna, ou seja,
Quase sempre traduzido por “gueras tradições e os costumes do proentre potências
ra santa”, o conceito nada tem a
feta Maomé, que foram sistematiocidentais.
ver com guerra. Ele guarda uma rezados na forma de livro e deveriam
lação direta com “empenho” e “esser seguidos por todos. Por fim, a
Inglaterra,
forço” individual e interior de cada
sharia, que é o conjunto de leis e reFrança e Rússia
muçulmano na busca de uma fé
gras que devem ser observadas por
perfeita. Maomé mesmo menciona
todos os muçulmanos. É como se
abocanhariam
na sunna duas jihads. A primeira, à
fosse o Direito islâmico.
partes importantes,
qual chamou de “Maior”, é mais
Assim, o Califado, nesse conteximportante, já definida acima. A
to inicial da implantação da religião
mas Lênin
segunda, à qual chamou de “Meislâmica na Península Arábica, podenunciou o
nor”, seria a expansão e difusão do
de ser definido, de forma resumiIslã entre outros povos.
da, como a única forma de governo
segredo
aprovada pela teologia islâmica.
Acordos de
Sykes-Picot
Aqui damos um
salto gigantesco na
história, pois não é
objeto deste trabalho
contar a história do
Islã. O que temos de
fato é que o islamismo virará um grande
império, governado
sempre por Califas.
Expande-se imensamente por três continentes e provavelmente deve ter sido
o maior que a humanidade conheceu em
termos de área geográfica dominada.
Chegamos ao início do século XX. Particularmente a partir
da Primeira Guerra
Mundial,
eclodida
em 1914, que opunha
67
132/2014
os aliados França, Inglaterra e Rússia (chamado de
Tríplice Entente) contra a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano (turcos). Aos que
gostam de história e de cinema, recomendo o filme
Lawrence da Arábia, baseado na vida do escritor T. E.
Lawrence, inglês (1888-1935), autor do livro famoso
Os sete pilares da sabedoria. O filme foi agraciado com
sete prêmios Oscar e tornou-se um clássico.
Lawrence era um oficial inglês baseado no Cairo e
solicita deslocar-se para a Península Arábica para ser
um elemento de ligação com líderes árabes tribais
para enfrentar o Império Otomano. Thomas Edward
Lawrence vai se arabizando a cada dia. Mantém-se
ao lado dos árabes, faz-lhes promessas em nome da
Inglaterra – as quais nunca iria cumprir. Sente-se
traído e afasta-se da vida pública.
Nesse contexto, um acordo iria mudar completamente a história da região para sempre. François
Georges Picot, representando a França e, do outro lado, representada por Mark Sykes, a Inglaterra, com
o apoio da Rússia, celebram o chamado Acordo de
Sykes-Picot no dia 16 de maio de 1916, antes mesmo do término da Primeira Guerra. Os bolcheviques,
quando tomam o poder na Rússia em outubro de
1917, denunciam esse acordo e trazem seus termos a
público, pois era secreto.
Trata-se da completa divisão de todo o Oriente
Médio entre as potências vitoriosas da época. Uma
nova era colonial se abriria naquele momento. Os
principais termos desse acordo foram referendados
no Tratado de San Remo, de 26 de abril de 1920, e pela
então Sociedade das Nações em 24 de junho de 1922.
Grosso modo, a Inglaterra abocanha a Jordânia,
Iraque e a Palestina, enquanto a França ficaria com
a Síria, Líbano e Sudoeste da Turquia. Finalmente, a
Rússia fica com a Armênia e o Curdistão. Até a Itália
posteriormente seria agraciada com ilhas do mar Egeu.
A região mencionada, para os árabes chamava-se
Al Sham (O Levante). Era uma vasta região que compreendia os seguintes países da atualidade: Síria,
Líbano, Jordânia, Iraque, Palestina, Chipre, Sul da
Turquia. Toda essa região falava o árabe e tinha uma
cultura comum fazia séculos. A partir dos acordos de
1916, e mais precisamente de 1920 quando assina-se
o tratado de final da Primeira Guerra, as potências
imperialistas começam a desenhar linhas imaginárias de fronteiras, criando países que nunca existiram de fato, mas eram apenas nomes de regiões.
O surgimento do fundamentalismo
islâmico
Há duas grandes correntes fundamentalistas do
Islã na atualidade. A primeira chama-se wahabista.
68
Esta foi fundada no século XVIII por Mohammad
bin Abi Al Wahhab, de onde deriva a corrente, com
a ajuda e o incentivo dos ingleses. Este dizia pregar
a pureza do Islã, os seus fundamentos e princípios.
Procura resgatar os princípios básicos do monoteísmo islâmico baseados exclusivamente no testemunho da fé e na unicidade de Alá, o seu Deus.
Essa corrente é hegemônica na Arábia Saudita.
Esta, por sua vez, financia as derivações islâmicas
que se materializam em especial na Frente Al Nusra
na Síria e Frente Islâmica, que praticam as maiores
barbaridades contra aquele povo milenar.
Uma segunda corrente fundamentalista é a chamada Irmandade Muçulmana, que é forte no Egito,
onde surgiu em 1928, organizada pelos intelectuais
Hassan El Banna e Sayed Qutb. Ela possui ramificações em vários países árabes. O primeiro-ministro
turco, Recep Erdogan, pertence a essa corrente, bem
como o Hamas palestino.
Ela prega a volta do Califado islâmico. Seu grande lema pode ser assim resumido: “Deus é o único
objetivo. Maomé o único líder. O Corão é a única Lei.
A Jihad é o único caminho. Morrer pela Jihad de
Deus é a nossa única esperança”. Por essas orientações vemos o quanto são fundamentalistas. E usarão
todas as armas ao seu dispor, mesmo o terrorismo,
para alcançar seu objetivo.
O novo “Califado”
O mundo foi pego de surpresa com a proclamação de um novo Califado no final de junho. E seu
novo “califa” foi indicado como sendo Abu Bakr Al
Baghdadi, nome em homenagem ao primeiro Califa
bem orientado. Seu nome verdadeiro é Ibrahim Awwad Ibrahim Ali Al Badri Al Samarrai. Não se sabe
muito a seu respeito. Fala-se que seria doutor em
Ciência Política pela Universidade de Bagdá.
Desde 2003 quando os americanos ocuparam o
Iraque a partir de abril, Ibrahim passou à luta da
resistência. Fundou no Iraque uma “filial” do grupo terrorista Al Qaeda do então Osama Bin Laden.
O nome adotado foi Estado Islâmico do Iraque e do
Levante (cuja sigla em inglês correta é ISIS e não
ISIL).
Essa organização adota práticas terroristas. Sistematicamente divulgam vídeos na Internet que
mostram as barbaridades que seus militantes cometem, em nome de Alá. Aqui vale registrar que a
grande maioria dos sunitas e xiitas não concorda
com essas práticas, às quais considera avessas aos
preceitos do Islã.
De fato, a religião islâmica é extremamente tolerante, apesar da imagem criada pela imprensa-em-
Internacional
Sipa PressRex
O líder do Estado
Islâmico Abu Bakr
al-Baghdadi aparece
em uma mesquita
em Mosul, Iraque
em sua primeira
aparição pública
te obrigados a converterem-se ou
presa e mídia internacional. MosCriou-se imagem
morreriam. É a volta da barbárie.
tram muçulmanos como sendo
E tudo isso com apoio dos Estados
terroristas, seja em filmes, artigos,
distorcida dos
Unidos, como veremos.
romances. Criou-se assim uma
muçulmanos. O
imagem distorcida dos muçulmanos. A religião islâmica determina
A luta anti-imperialista
Islã determina a
que tanto judeus quanto cristãos
no mundo Árabe
proteção a judeus
devem ser protegidos sobre o império islâmico. Não se aceita violência
Com as revoltas árabes após
e cristãos sob o
que não seja para a autodefesa.
1920, cria-se no Oriente Médio
império islâmico.
Nas localidades que esse agruuma corrente nacionalista árabe
pamento terrorista controla, a
muito forte – que vai influenciar a
Não se aceita
sensação é de que se volta no
tomada de poder no Egito em 1952,
violência que não
tempo, ao século VII, da época de
sob liderança de Gamal Abdel NasMaomé. É imediatamente proibiser, do movimento dos jovens ofiseja autodefesa
do o consumo de cigarro e álcool e
ciais. Essa corrente também acaas mulheres devem passar a usar
baria por defender a laicidade do
imediatamente o véu que lhes coEstado, coisa muito rara na região.
bre todo o rosto. A legislação passa a ser a sharia e
A malfadada “primavera árabe” foi exemplo
proclama-se o Estado Islâmico. Sem Constituição e
dessa luta política. De um lado, forças conservadosem qualquer democracia participativa.
ras querendo manter tudo como estava e, de outro,
Esse agrupamento terrorista, que se articula
certas alianças informais de correntes progressistas,
com a Frente Al Nusra na Síria e com a Al Qaequerendo criar um novo mundo árabe, livre da doda no Afeganistão, entre outros grupos terroristas,
minação imperialista.
pretende ter a hegemonia política não só na região
Tenta-se há quase quatro anos derrubar o presichamada de El Sham (Levante), mas uma hegedente da Síria, Bashar Al Assad, que, com seu exérmonia mundial. Um governo islâmico planetário.
cito árabe, resiste e vem vencendo todas as batalhas.
Cristãos, seguidores de outras denominações ou
Bashar, como que para calar a boca do imperialismo,
mesmo pessoas sem religião, seriam imediatamenfoi reeleito em 3 de junho passado para um mandato
69
132/2014
de sete anos com 86% dos votos válidos dos sírios,
Forças Armadas iraquianas da época de Saddam, geem eleições livres e limpas atestadas por observadoneral Izaat Al Duri, sunita e ex-baatista, faz aliança
res internacionais.
com os sunitas e terroristas do ISIS para derrubar
É antiga a aliança dos EUA e a sua agência de
um governo eleito democraticamente de um primeiinteligência, a CIA, com grupos fundamentalistas
ro-ministro xiita.
árabes de orientação sunita. Em 1979 foi exataDessa forma, no bojo de uma grande luta polímente a CIA que montou e treinou os terroristas
tica, formam-se basicamente dois grandes campos:
da Al Qaeda, no Afeganistão. Isso porque a URSS
De um lado, os que defendem a soberania de seus
havia ocupado militarmente esse
países e possuem concepções anpaís. Na imprensa-empresa estati-imperialistas e, de outro, os que
No bojo da luta
dunidense esses terroristas eram
são aliados dos EUA, qual seja, tochamados de “guerreiros da liberdos os agrupamentos terroristas
política, há os
dade” (sic). O que resta dessa orem ação na região.
que defendem
ganização terrorista hoje pode-se
São objetivos da CIA no Oriente
dizer que é uma herança da guerMédio: 1. Afundar esse mundo em
a soberania de
ra fria que, em tese, terminou em
guerras sectárias; 2. desestabilizar
seus países com
1991.
governos com posições contra os
Neste momento no mundo
EUA; 3. redividir as fronteiras do
concepções antiárabe a única lógica por trás dos
mundo árabe, criando Miniestados
-imperialistas e
EUA, Arábia Saudita e Israel de
sectários, em uma nova espécie de
apoiarem esses agrupamentos terSykes-Picot (CHIN). Tais objetivos
há os aliados dos
roristas sunitas é exatamente para
coincidem com o do ISIS.
EUA, sendo todos
enfraquecer a Síria, o Iraque e o
Irã, além do Partido Hezbolláh, do
Conclusões iniciais
os agrupamentos
Líbano. É o que vem sendo chaterroristas em ação
mado de “arco da resistência” ao
Sabemos de muitos projetos
imperialismo. Os objetivos estrados EUA e seu braço de inteligêntégicos dos Estados Unidos coincia a CIA, para o mundo árabe. O
cidem claramente com os do ISIS e dos terroristas
mais forte hoje é tentar dividir a Síria em três reem geral (WHITNEY).
giões, da mesma forma que querem dividir o IraVemos hoje no Oriente Médio um profundo vaque. Este seria uma região sunita, outra xiita e o
zio político. Os Estados Unidos perderam as duas
Curdistão ao norte.
A extrema-direita estadunidense (Tea Party, reguerras em que se meteram na região. A do Iraque,
publicanos, neocons etc.) embarca nesses projetos e
de quem foram expulsos pelo atual primeiro-minisé apoiada, lamentavelmente, por parte de uma dita
tro Nuri El Maliki, que não aceitou a imposição de
esquerda, tanto no Brasil como no mundo. Temos
completa imunidade jurídica para os quase cem mil
dados concretos de que os terroristas do ISIS vêm
soldados que lá estavam. No caso do Afeganistão, as
sendo treinados pela CIA na cidade jordaniana de
tropas estadunidenses devem deixar o país no próxiSafawi desde 2012 para que possam combater os
mo ano, sem serem vitoriosas.
governos de Bashar e Maliki, apresentando-se como
Não podemos aceitar o que a imprensa-empre“rebeldes” (ESCOBAR).
sa insiste em dizer e confundir: o conflito regional
Hoje, instalar o tal “Califado Islâmico” visa claé exclusivamente religioso. Tenho dito, é verdade,
ramente a derrubar Maliki do Iraque. O posicionaque existem componentes religiosos, mas a luta é
mento de seu governo hoje não obedece a ordens de
essencialmente política. De um lado, contra a doWashington, é amigo do Irã, recusou a exigência dos
minação imperialista. De outro, lutar contra Israel,
sauditas de que seu governo teria que ter sunitas e, o
um enclave sionista e neocolonial no coração do
mais importante, venceu eleições democráticas. Ou
mundo árabe.
seja, vamos vendo que o discurso estadunidense de
Poderíamos dar aqui vários exemplos que com“levar democracia” é verdadeira falácia. Vamos venprovam isso. Em 2003, os xiitas do Iraque apoiaram
do ainda que seu discurso desde 2001 de “combater
a ocupação pelos EUA do país, para derrubar o goo terrorismo” é pura mentira, pois os EUA alimenverno de Saddam Hussein, um sunita. No Líbano,
tam, financiam, treinam terroristas o tempo todo.
ao contrário, os sunitas estão basicamente em uma
Pagarão um elevado preço por isso os EUA e seus
coligação política mais vinculada ao campo ocidenaliados europeus.
tal. Agora mesmo no Iraque, o ex-comandante das
70
Internacional
Nossas conclusões são claras: o ISIS terrorista
que a mídia carinhosamente chama de “rebeldes”
(sic) possui três grandes objetivos no mundo árabe: 1. Destruir a soberania dos Estados da Síria e
do Iraque; 2. enfraquecer todos que forem aliados
do Irã; e 3. dividir a Síria e o Iraque em três pequenos Estados sectários (MOON OF ALABAMA/
GREAVES).
Vimos recentemente as sanções que tanto os
EUA e a União Europeia impuseram à Rússia. Em
um momento que Israel perpetra os maiores massacres contra o povo palestino, que matou maior nú-
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20-06-2014. The Roving Eye. http://www.atimes.com/atimes/
Middle_East/MID-01-200614.html
LAMB, Franklin. “Will ISIS Create al-Sham Caliphate & Liberate Palestine?”. The People Voice, 21-06-2014. http://www.
mero de palestinos – quase dois mil – e mais de 300
crianças, ao invés de o mundo impor duras sanções e
punições contra Israel, a punida foi a Rússia.
Há algo de errado nesse mundo.
* Lejeune Mirhan é sociólogo e assessor político e sindical
do PCdoB. Presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado
de São Paulo (Brasil). Escritor, arabista e professor membro
da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa,
Membro da International Sociological
thepeoplesvoice.org/TPV3/Voices.php/2014/06/21/will-isiscreate-al-sham-caliphate-aampMADSEN, Wayne. “Missing Saddam”. Strategic Culture Foundation, 14-06-2014. http://www.strategic-culture.org/news/2014/06/14/missing-saddam.html
MAGNIER, Elijah J. “ISIS: ‘USA decision to hit us will have a positive outcome and will show a US/AI-Maliki aliance against
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wordpress.com/2014/06/22/isis-usa-decision-to-hit-us-will-have-a-positive-outcome-and-will-show-a-usal-maliki-alliance-against-the-sunni/
MEYSSAN, Thierry. “Washington relança seu projeto de partição do Iraque”. Oriente Mídia. http://www.orientemidia.org/
washington-relanc%cc%a7a-seu-projecto-de-partic%cc%a7a%cc%83o-do-iraque/
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Against It?”, 2906-2014. http://www.moonofalabama.
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MUHLBAUER, Peter. “Pourquoi I´ISIL ne s´appelle pas ISIS”. Tlaxcala, 19-06-2014. http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=12608
MUTTER, Paul. “Maliki´s most solemn hour”. The Arabist, 11-062014. http://arabist.net/blog/2014/6/11/malikis-most-solemn-hour
PRASHAD, Vijay. “ISIS Seeks Its Throne – Iraq´s Night is Long”.
Counterpunch,
17-06-2014.
http://www.counterpunch.
org/2014/06/17/iraqs-night-is-long/#.U6BjPZ14Jyw.facebook
2. Livros de apoio
ARMSTRONG, Karen. Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JALAL, Ayesha. Combatentes de Alá. São Paulo: Larousse, 2009.
LEWIS, David Levering. O Islã e a Formação da Europa. São Paulo: Amarilys, 2010.
SALINAS, Samuel Sérgio. Islã: esse desconhecido. São Paulo:
Anita Garibaldi, 2009.
Observação: a imensa maioria destes artigos citados foi traduzida pelo coletivo de tradutores denominado Vila Vudu, ao
qual agradeço. Os da página Oriente Mídia foram traduzidos
pela equipe do portal.
71
132/2014
Elementos de reflexão sobre a
conjuntura política colombiana: paz,
governo, sociedade e Constituinte
Pietro Alarcón*
Ato de posse de Juan Manuel Santos. O presidente colombiano venceu o segundo turno com o voto pela continuidade dos
diálogos de paz e a solução política do conflito social e armado.
Em curto prazo, para o novo governo da Colômbia, o objetivo
é a construção da Unidade, em torno de uma Frente Ampla
pela Paz e a partir do aprofundamento dos diálogos entre os
diversos setores do país comprometidos com o projeto de uma
paz duradoura e estável
A
s mudanças democráticas são usualmente
o resultado de uma confluência de fatores, que podem ser sintetizados na incapacidade de uma classe dominante e
autoritária de prosseguir no seu exercício hegemônico de poder, tanto político quanto
econômico, jurídico e ideológico, e concomitantemente no aumento considerável da consciência popular que se projeta numa elevação da capacidade
72
de resposta política, identificando objetivos táticos
e estratégicos, dentro de uma trajetória consistente
e persistente de ações, tanto no marco institucional
quanto no extrainstitucional.
Sob essa premissa as peculiaridades da situação
da Colômbia constituem um pano de fundo paradigmático. Destarte, o presente artigo é uma breve
reflexão sobre o momento político e jurídico do país,
que leva em conta algumas das variáveis que inci-
Internacional
dem numa possível mudança em favor da paz, do
direito à vida e do desenvolvimento de um governo
democrático e popular.
guerra, tocando o modelo econômico de acumulação
da riqueza social e reorientando o gasto público.
Tendo em vista a evolução do processo de paz e a
postura governamental do momento, as perspectivas
O processo de paz
de uma solução política ao conflito social e armado
dependemda conjugação de uma sorte de fatores que
Dentre outras linhas de exploração possíveis da
se entre-cruzam com vários inimigos e fragilidades.
realidade colombiana, o centro de gravidade político
Dentre os primeiros fatores, há que se ressaltar,
é constituído pelas conversações de paz em Havana e
por um lado, a oposição franca dos setores militaristas
o novo quatriênio de governo de Juan Manuel Sanno contexto das Forças Armadas. A visão de controtos. Neles se concentram debates
le territorial e incremento das ações
como o da natureza do poder atual
bélicas – que gera constante pressão
e daquele que se pretende instalar
sobre o governo para que, mesmo
​Uma mudança
na chamada etapa de pós-conflito.
dialogando, os combates continuem
da vida nacional
Logicamente que nessa trilha, por
– é reforçada pelo importante papel
derradeiro, se ausculta também
implica um conjunto que lhes é assignado no terreno geouma desejável nova relação entre os
político. Destaque-se, nesse sentido,
de transformações:
indivíduos, membros do povo, e o
a realização neste mês de agosto na
Estado, com fundamento na suprecidade de Cali do VI Foro de Inteliuma abertura de
macia do primeiro sobre o segundo,
gência e Segurança Hemisférica, pacanais de expressão
afastando a arbitrariedade e a viotrocinado pelas Forças colombianas
lência como forma de resolução de
em conjunto com o Comando Sul
do povo soberano,
conflitos e de ação político-estatal.
dos Estados Unidos (3).
a efetivação das
Vale lembrar que uma reflexão
Por outro lado, existem setores
sobre a situação do país implicivis
interessados na manutenção
liberdades públicas
ca reconhecer a existência de um
da guerra como grande negócio e
e dos direitos
conjunto de condições históricas
como tática de manutenção de pobastante peculiares, dentre elas: o
der, tanto nos âmbitos locais e resociais, o fim do
desenvolvimento de uma ação militar
gionais como no nacional.
paramilitarismo e
patrocinada ou permitida pelo Estado
Adicione-se a isso que as debiliatravés das suas forças armadas e da
dades
do processo se inscrevem na
da violência estatal
utilização de grupos à margem da legaprópria política de paz do governo
como forma de
lidade para minar as bases da organiatual. Trata-se de uma combinação
zação sindical, camponesa, estudantil,
de retórica midiática, com alardes
realizar a política
dentre outras, com fundamento no conde mudanças no plano internacioceito de inimigo interno (1); a forma de
nal reaproximando o país dos viziluta armada com expressão política que avançou de autonhos – mas que aplica nacionalmente o plano de ação
defesa camponesa a movimento insurgente (2); e, quanconjunto com os Estados Unidos (4) –, conversações
to ao contexto geopolítico, ingerência permanente dos
na mesa de diálogo, incentivo ao uso da força como
Estados Unidos como elemento de balanço e equilíbrio no
mecanismo de contenção da ação cidadã e incapacimeio das crises estruturais do sistema, suporte de apoio aos
dade política para plasmar um cessamento bilateral
governos diante dos avanços populares em várias etapas da
das ações armadas dos grupos em combate.
vida nacional e, finalmente, ponto de apoio territorial para
Analisemos esta visão, separadamente, no tópico
controle estratégico da América do Sul.
a seguir.
Daí que uma mudança da vida nacional impliO governo de Santos
que um conjunto de transformações, as mais determinantes, uma abertura de canais de expressão do
Tem-se observado que historicamente na Copovo soberano, a efetivação das liberdades públicas
lômbia vigora um regime político de democracia ule dos direitos sociais, e o fim do paramilitarismo e da
trarrestringida, que é caracterizado pela ausência de
violência estatal como forma de realizar a política. Os
mecanismos de participação política que permitam o
diálogos entre a insurgência e o Estado se inscrevem
controle popular da ação governamental; e também
nessa lógica, partindo da discussão de uma agenda
por um Estado, agressivo e violento, expressão de uma
e da elaboração de um plano de possíveis soluções
classe configurada, de um lado, pelos latifundiários e,
aos problemas diagnosticados como causadores da
73
132/2014
131/2014
de outro, por segmentos modernizadores da econoSantos venceu no segundo turno com o sufrágio
mia fortemente aliados a capitais transnacionais.
consciente de uma grande parcela da esquerda que
O regime político entra em crise pela incapacidanão teve dúvidas sobre o que representava o cande de dar respostas às exigências de uma sociedade
didato do ex-presidente Uribe, marcadamente de
que passou a se organizar lutando pela satisfação
franco retrocesso para a manutenção dos diálogos
das necessidades públicas, alcançando níveis ime aportou mais de 2 milhões de votos. Importante
portantes de consolidação, organicidade e presença
ressaltar que o voto não pode ser interpretado conacional e internacional, especialmente nas áreas
mo fator de respaldo ao modelo econômico e nem
política, sindical e comunitária. Particularmente na
sequer à política de paz de maneira integral. O voto
Colômbia, a luta social no campo derivou em formas
foi pela continuidade dos diálogos e sua ampliação
de resistência armada que originaàs demais guerrilhas, constituinram o atual movimento insurgente.
do-se num episódio que valoriza
Sem pretender esgotar o assunum passo tático e estratégico dado
O regime político
to, há décadas observa-se uma crino sentido de seguir com a espeentra em crise
se sistêmica governamental, que se
rança por uma paz com justiça soexpressa, por um lado, na ausência
cial, que pretende contribuir com
pela incapacidade
de programas concretos de governo
as mobilizações e a forte pressão
de dar respostas
dos partidos tradicionais que sejam
popular para que essa esperança se
capazes de acolher as expectativas
frutifique.
às exigências de
populares, refletindo-se numa altísA esquerda retrocedeu nas eleiuma sociedade
sima abstenção eleitoral e em reivinções parlamentárias, mas recudicações permanentes nos setores
perou muito terreno no segundo
que passou a se
de economia e serviços. Por outro
turno com a aliança entre a União
organizar lutando
lado, são notórias as dificuldades
Patriótica e o Polo Democrático e
para exercício da oposição política
nesse contexto votou pela solução
pela satisfação
em virtude das constantes ameaças
política e não militar ao conflito sodas necessidades
paramilitares e a ausência de garancial colombiano.
tias de segurança. Importante menNa simbiose entre retórica de
públicas, alcançando
cionar que há, ainda, um número
paz e programa de governo, Santos
níveis importantes
expressivo de legisladores que são
aposta num reformismo com pouréus de processos em andamento
cas pretensões transformadoras.
de consolidação,
a partir de investigações feitas pela
Habilidosamente, o Executivo tenorganicidade e
parapolítica – cumplicidade entre chefes
ta apresentar-se como alternativa
das bandas armadas paramilitares, o
programática confiável sob a visão
presença nacional
narcotráfico e os membros do Congresso e
de uma terceira viaà colombiana.
e internacional nas
do Executivo no governo de Uribe.
Na verdade, a chamada AgenNesse marco, as visões das elida
Interna
2019 outorga privilégios
áreas política, sindical
tes do país sobre a paz e os comproaos seguintes setores econômicos:
e comunitária
missos para uma reformulação do
“minerador-energético, biocombustíveis,
Estado evidenciaram-se na última
petroquímico, gestão ambiental, agrocampanha eleitoral. Um discurso
pesqueiro, agroindustrial e agropecuário,
de extrema agressividade é o signo de segmentos
turístico, de comunicações e software. Nesse conjunto joga um
comprometidos com a manutenção e incremento
papel central o minerador-energético, chamado a ser a chave
da guerra cuja raiz é o paramilitarismo arquitetado
do modelo de acumulação no imediato futuro. As condições
financeiramente há alguns anos com recursos oriunsão favoráveis, assim, a uma reprimarização da economia,
dos do narcotráfico. E um discurso neoliberalizante
com efeitos negativos pelo incremento do deslocamento da poque, sem renunciar ao enfoque militar, se camufla
pulação rural, a diminuição do emprego, a redução da oferta
numa retórica de impacto: defesa da produção nacional,
de alimentos, a exploração irracional dos recursos naturais e
ou seja, impossibilidade de discutir os acordos com
a afetação do ecossistema”(5).
os Estados Unidos no Tratado de Livre Comércio;
A oligopolização da questão minerador-energéequidade, luta contra a pobreza, modernização do Estado,
tica, flexibilizada durante o governo de Uribe, conreconciliação nacional, mas que mantêm o mesmo traseguiu que três empresas repartam a exploração do
tamento de favorecimento ao sistema financeiro e
setor: AngloGoldAshanti da África do Sul, Greystar
aos controladores da produção.
do Canadá e Muriel Mining dos Estados Unidos.
74
Internacional
Assim, Santos caminha entre as pressões populares, as negociações em Havana, as investidas do
militarismo e as exigências do setor que representa –
um segmento da oligarquia transnacionalizada
que se inclina por não abrir o Estado
a novos atores, senão preservá-lo
e colocá-lo à sua disposição para
a modernização do capitalismo na
atual fase da globalização neoliberal.
O movimento social e a luta
pelo direito à paz
A luta social vive um momento importante
em vários âmbitos, particularmente nas iniciativas dos camponeses, nas greves do setor judicial e
da saúde, nas lutas estudantis que se mantêm nos
grandes centros urbanos, nas expressões pela paz,
pela soberania alimentar, contra o desemprego e a
carestia. Nessas manifestações, se distingue a rejeição ao descumprimento dos acordos assinados pelo
governo em 2013 e,ao mesmo tempo, uma fórmula de pressão constante sobre o Executivo para que
avance na execução de políticas públicas objetivas.
Veja-se com calma: no ano passado houve, segundo um informe do CINEP intitulado Programa
por la Paz, um período de auge da luta social e da
mobilização popular (6). No total, foram registrados
1027 protestos que, segundo o Instituto, conformam
o maior leque de lutas sociais desde 1975. As causas
objetivas deste aumento considerável são essencialmente as seguintes: a) a resistência ao modelo econômico de abertura de importações de extrativismo
quem tem sua origem nos compromissos do Estado
nos marcos dos Tratados de Livre Comércio (TLC);
b) a rejeição à maneira como o Estado trata o conflito social, sobre a base da violência e da militarização
da vida nacional; c) a relevância das dimensões cultural e política na luta social (7).
Neste marco de ações do campo popular, deve-se
registrar a consolidação de processos de organização
como a Marcha Patriótica, o Congresso dos Povos, o
ressurgimento da União Patriótica e o início (em julho deste ano) da Frente Ampla pela Paz. Tratam-se
de estruturas orgânicas relevantes que corroboram
a diversidade e complexidade da luta pela unidade.
Abre-se caminho para uma ação coordenada nos vários âmbitos da ação popular, com fundamento na
construção de uma alternativa real de poder.
Entretanto, uma das fraquezas reconhecíveis do
processo de paz é que ainda os setores populares não
se articulam o suficiente para uma defesa organizada, de maneira a interferirem no conteúdo das negociações, isto é, como aponta Jairo Estrada, ainda
não se imprime aos diálogos uma condição de elemento
necessário para uma nova realidade.
Expõe o professor colombiano que a única garantia para que os diálogos e negociações com a insurgência
cheguem a um feliz termo se encontra na apropriação social
do processo na forma do movimento com capacidade dissuasiva perante as tentativas e ameaças de ruptura e com
conteúdos que tenham como propósito transformações para
a democratização real em todos os campos da vida social,
mas que em apoios ou amplas alianças pragmáticas e transitórias baseadas no abstrato propósito da paz, as quais –
dada a correlação de forças existentes – podiam se converter
em fato recorrente. A difícil tarefa do campo popular consiste justamente em que ao tempo em que consiga isolar e
derrotar o militarismo e a ultradireita, construa seu próprio
projeto demarcado e claramente diferenciado do poder de
classe em posições de governo(8).
Em que pese esta constatação, a proposta de uma
Assembleia Constituinte que consolide os possíveis
acordos de justiça social para a paz democrática pode
dinamizar esse projeto. A seguir abordaremos brevemente o tema.
As possibilidades de uma Constituinte
A discussão que está em pauta é a de um processo constituinte com profunda responsabilidade
democrática, como formalização que converteria as
aspirações populares em marco teórico-prático, regulador da economia, da política e da juridicidade,
no meio das contradições de uma sociedade plural,
que isole os ferrenhos inimigos de qualquer mudança social.
Trata-se de ganhar uma Assembleia Nacional
Constituinte de arraigo popular, que outorgue um
suporte aos possíveis acordos de paz, orientando de
forma dirigente e programática a ação do Estado e
de um governo comprometido com as transformações para a justiça social.
75
132/2014
Seu resultado, a nova Constituição, teria legitique determine a consolidação de mecanismos que
midade para regular a concorrência de atores políconsolidem a soberania popular.
ticos, nos marcos da civilidade, da tolerância, com
Entretanto, como salientaZubiriaSamper, exisbase principiológica em valores e fins resultantes
tem objeções e críticas a esse processo no país, como
dos processos de diálogo e das discussões amplas e
resultado de uma análise da conjuntura colombiana,
democráticas sobre os temas nacionais, com um esnas hipóteses: a) a correlação de forças atual não favoretatuto para a oposição política, autênticas garantias
ce um processo pelo motivo de uma possível direitização do
para a ação participativa sem a ameaça paramilitar
país; b) é uma proposta irrealizável nas condições atuais;
de passado e do presente, estabelecendo uma estruou por razões de ordem conceitual: c) trata-se de um
tura político-administrativa para a concretização dos
“culto” ao “movimentismo”e à autogestão das massas;
direitos sociais e o reconhecimento das liberdades
d) culmina na legitimação do “constitucionalismo burpúblicas.
guês”(11).
Certamente, é possível constaA questão referente a se tratar
Certamente, é
tar que na América Latina as passade um culto ao movimentismo não
gens de um Estado de fato a outro
parece razoável. A luta social eleva
possível constatar
de democracia representativa de
a consciência de classe e aquilo que
que na América
corte liberal tiveram a insígnia de
se denomina movimento popular
um processo constituinte. É o caso
é a ação prática do povo transforLatina as passagens
do Brasil, por exemplo, em 1988.
mada em força social. Importam as
de um Estado
Logo, os processos de mudança imdimensões dessa força, e também o
postos pela Revolução Bolivariana
grau de consciência sobre os objetide fato a outro
na Venezuela, a Revolução Cidadã
vos de mudança da sociedade e do
de democracia
no Equador, bem como o governo
Estado (12).
popular da Bolívia também têm
Sob outro aspecto, o processo
representativa
sido emoldurados por processos
constituinte não legitima necesde corte liberal
constituintes caracterizados pela
sariamente certo constitucionalismo
promulgação de textos que estabeburguês. O constitucionalismo cotiveram a insígnia
lecem as bases de uma democracia
mo movimento político e jurídico
de um processo
participativa e alicerçadorade sigsugere o reconhecimento do poder
nificativas reorientações do gasto
popular para a criação de um esconstituinte. É o
público em favor da efetivação dos
tatuto fundamental que contenha
caso do Brasil, por
direitos sociais.
um elemento instrumental, a seNesses termos, a Constituição
paração de funções e um elemento
exemplo, em 1988
passa a ser o documento que estafinalístico, a efetivação dos direibelece as regras do jogo político, e
tos fundamentais (13). O procesos diversos atores concorrem para direcionar a socieso constituinte não pode ser um processo pautado
dade política em um ou outro sentido. O texto conspelas elites, tampouco deve ser tratado de uma retitui um ponto de chegada e de partida, uma prounião de intelectuais para a redação de um texto a
posta de soluções e coexistências possíveis, que nega
ser outorgado. Trata-se de um processo vivo e de
o imediato passado. Assume-se um compromisso
incalculável avanço para o aprendizado para o moconstitucional a partir de uma garantia de legitimivimento popular.
dade dos atores sociais, um modelo de vida para a
Resulta de um reducionismo fatal para as aspicomunidade política (9).
rações sociais eliminarem a possibilidade de novos
Nos países de governo popular, ao contrário da
patamares de democracia com base em que os suvisão clássica do poder constituinte, logo da promulportes jurídicos estariam contidos num documento
gação da Carta se fortalece um poder constituinte difuconstitucional que consolida a democracia burguesa.
so, que se subordina ao poder constituído em função
O importante é o processo de discussão dos direitos
de mandatos concretos, que vigia e controla a realidas pessoas, sua vocação para lutar por eles no pano
dade democrática da sociedade (10).
institucional e extrainstitucional e, logo, torná-los
Na Colômbia, a possibilidade de estabelecer um
evidentes.
governo democrático-popular poderia passar por
A questão de um possível rumo à direta sugere
um processo constituinte na diretriz de ser o suque a sociedade permaneça nas condições atuais.
porte jurídico da paz, com fundamento no respeito
Todavia, esse rumo seria tomado em caso de uma
à dignidade da pessoa humana e à justiça social e
Constituinte que viesse a manter tudo como está ou
76
Internacional
Arquivo Marcha Patriótica
“Paz com justiça social e Constituinte Nacional” são algumas
das reivindicações que o povo colombiano tem expressado
em suas manifestações – organizadas pela Marcha Patriótica
e outros movimentos. Plaza Bolívar em Bogotá/CO, 2013
a retrocedermos em matéria de direitos. Se for assim, a classe no poder não tem na Constituinte uma
necessidade política. Para que abrir uma discussão
sobre uma nova Constituição se basta uma reforma a
partir do Congresso para retroceder no que já existe?
Daí que falamos em ganhar popularmente uma
Constituinte. A riqueza está no processo de edificação
da sua normatividade, isolando os inimigos da mudança e tão logo promulgada utilizar seu texto como
um arsenal de direitos e plataforma de luta.
A Constituinte é uma proposta para mudar para
frente impondo um novo marco político, econômico
e jurídico, sua instalação e conformação implica um
predomínio da resistência à fascistização do país e
a derrota do projeto retórico que nada acrescenta a
uma nova realidade. Trata-se de trabalhar as bases
valorativas e finalísticas de uma nova ordem.
A Frente Ampla pela Paz
Embora, como temos afirmado, se advirta que na
Colômbia se avança na continuidade de um processo
iniciado há alguns anos e que teve no ano 2013 um
marco importante de referência, a possibilidade de
modificar a correlação de forças, implica-se avançar
num terreno de unidade política para a paz e a justiça social, isto é, uma nova qualidade da luta política
popular com participação de todos os setores e sobre a base de uma paz com compromissos e agenda
transformadora.
O afunilamento das contradições econômicas não
permiteno curto prazo, as colocações do tradicional
neodesenvolvimentismo ou de teses de terceira via
pretendida por Santos. Nesse sentido, as propostas
de atual governo podem cair no vazio, o que dilata-
ria as soluções do conflito social e armado. Estaríamos diante de uma reedição das propostas que não
modificam a essência do regime econômico. Mesmo
assim, o fracasso governamental não seria ainda suficiente para reformular o país e cimentar a paz.
Nesse sentido, uma força plural de expressão
política e destinada a retirar da institucionalidade e
do controle das linhas do poder econômico à classe
tradicionalmente hegemônica torna-se um caminho
necessário de se trilhar.
Por isso, no curto prazo o objetivo é a luta pela
unidade, ampla, flexível, e com base em acordos programáticos para a construção de uma Frente Ampla
pela Paz. Não se trata de uma aliança eleitoral para
2015, mas do resultado do aprofundamento dos diálogos entre os diversos setores do país comprometidos com o projeto de uma paz duradoura e estável
que, a partir da identificação dessa finalidade, concretize os meios políticos, as táticas e os mecanismos
de organização capazes de torná-la possível.
*Doutor Pietro Alarcón é professor da Faculdade de
Direito e Relações Internacionais da PUC/SP
Notas
(1) Tras los Pasos Perdidos de la Guerra sucia. Bruxelas: NCOS,
1995, p. 7 e seguintes.
(2) Martha Harnecker entrevista Gilberto Vieira. Combinação de
todas as formas de luta. Bogotá: Suramérica, p. 14-15.
(3) Consulte-se http://www.cgfm.mil.co/CGFMPortal/faces/index.
jsp?id=26097. Acesso em 18 de agosto de 2014.
(4) http://wsp.presidencia.gov.co/Especiales/2011/Paginas/TLC_
EEUU.aspx. Acesso em 15 de agosto de 2014.
(5) ANZOLA, Libardo Sarmiento.“Colombia: reprimarização econômica e violência. In: Le Monde Diplomatique. Edición colombiana, julhode 2010.
(6) Informe Especial CINEP/ Programa por la Paz. Luchas sociales en Colombia 2013. Disponível em http://cinep.org.co/
index.php?option=com_docmam&task=doc_download&gid=314&Itemid=117&lang=n
(7) Veja-se SAMPER, Sergio de Zubiria. “Dilemas Políticos del
Campo Popular”. In: Revista Izquierda, nº 47. Bogotá: Espacio Crítico, agosto de 2014, p. 7.
(8) “Revolución pasiva o inflexión política hacia la democratización real”. In: Revista Izquierda, nº 47. Bogotá: Espacio Crítico, agosto de 2014, p. 12.
(9) ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Trotta, p.
13-14.
(10) Negri, Toni.O Poder Constituinte. Rio de Janeiro: DP&A, p.
18 e seg.
(11) SAMPER, Sergio de Zubiria.“Dilemas políticos del campo
popular”. Revista Izquierda, nº 47. Bogotá: Espacio Crítico,
agosto de 2014, p. 9.
(12) CAICEDO, Jaime.Colombia en la hora latinoamericana. Bogotá: Izquierda Viva, p. 139.
(13) ALARCÓN, Pietro. Ciência Política, Estado e Direito Público.
São Paulo: Verbatim, p. 117 e seg.
77
132/2014
A guerra criminosa de Israel contra o
povo palestino
Socorro Gomes*
O império estadunidense e o sionista estão comprometidos com um
objetivo que colide frontalmente com os interesses da humanidade,
buscando eliminar qualquer resistência ao saque (principalmente de
petróleo e gás) e à dominação
E
nquanto a humanidade assiste estarrecida e indignada às explosões de casas,
hospitais, escolas, redes de abastecimento de água, e aos “eficientes” ataques
com os mais novos instrumentos da
morte, os drones, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, o chefe do maior e mais pérfido império
do mundo, foi a público expressar seu “firme apoio ao
exercício do direito de defesa de Israel, (...) apoio às
medidas militares de Israel para garantir que não haja
mais disparos contra seu território”. Obama reforça
seu apoio incondicional a Israel, dando seu eloquente
voto protetor no Conselho de Direitos Humanos das
Nações Unidas, em sessão que deliberou pela criação
de uma comissão de investigação das denúncias de
crimes de guerras cometidos por esse país. Dos 47
membros do Conselho, o único voto contrário à investigação foi exatamente o dos Estados Unidos.
O holocausto dos palestinos, executado pelo regime de Israel, a que a humanidade assiste horrorizada,
conta com o total apoio dos Estados Unidos. Recentemente, o presidente deste país endossou o envio de
78
Jovem socorre criança
palestina dentro de uma
escola da ONU em Gaza,
que foi bombardeada
por Israel, em 24 de
julho
mais US$ 225 milhões para o aperfeiçoamento do sistema antimísseis IronDome, a Cúpula de Ferro. A cifra
se somará aos US$ 3 bilhões anuais em ajuda militar
ao seu incondicional aliado. Assim, o presidente Obama tem deixado clara a sua criminosa cumplicidade
com a matança dos palestinos.
Somente nesta última operação, a “Margem Protetora”, de acordo com a Autoridade Nacional Palestina, o número de mortos já passa de dois mil, entre
os quais mais de 500 crianças, e cerca de 10.000 feridos. A absoluta maioria das vítimas fatais era civil,
em torno de 74%, afirma a ONU. Mais de 10 mil lares
palestinos foram bombardeados e quase 500 mil civis
foram forçados a deixar suas casas e áreas de residência. Centenas de escolas, hospitais e mesquitas foram
destruídas ou gravemente danificadas. Seis escolas da
ONU foram atacadas em bombardeios que causaram a
morte de mulheres e crianças assustadas, homens civis e funcionários das Nações Unidas. Mais de seis mil
palestinos buscavam refúgio em duas escolas diferentes bombardeadas, o que causou a morte de 16 pessoas
em uma, e 10 em outra. Os civis abrigavam-se fugindo
Internacional
tinos como os contidos no PlanDalet,
de atrocidades que podem ser consique detalhava a lista de vilas palestideradas crimes de guerra, ressaltou
nas a serem destruídas e os métodos
a comissária da ONU para direitos
a serem utilizados para a expulsão
humanos,NavyPilay, horas antes
dos palestinos que ali viviam (intido cessar-fogo do dia 5 de agosto.
midação, bombardeios, incêndios
Estes são dados que corroboram as
de casas, assassinatos). Como desdenúncias feitas contra o Estado de
creve Pappe: “(...) a política sionista
Israel pelas autoridades palestinas
se transformou em uma iniciativa
sobre o genocídio do seu povo.
para a completa limpeza étnica do
Não nos espantemos se o crimipaís, demorou seis meses para comnoso governo de Israel “transforO poder destruidor
pletar a missão”. Expulsaram cerca
mar” a infância palestina martirizada e assassinada em uma “‘grave
do sionismo vai além de 800.000 pessoas de suas terras,
limpando-as de sua presença e pasameaça à segurança de Israel, que
de sua gigantesca
sando a ocupá-las permanentemenprecisava ser eliminada.” Ou então
te, saltando para os 82% de terras
na afirmação de que eram “escuforça bélica. Sua
palestinas nas mãos dos sionistas,
dos”, portanto “os palestinos são os
capacidade de
atualmente.
responsáveis pelas mortes”. O poUm dos mitos principais era de
der destruidor do sionismo vai mais
construir mentiras,
que Israel era o “Davi lutando contra
além do que sua gigantesca força
contando com uma
Golias”, quando já naquele momenbélica. Sua ignominiosa capacidato o regime havia feito um acordo
de de construir mentiras, contanrede midiática
com o mais forte Exército árabe de
do com uma rede midiática de alto
de alto poder
então, o da Jordânia, para garantir
poder tecnológico e a cumplicidade
a expulsão e a ocupação das terras
das grandes potências – transfortecnológico e a
do povo palestino. Muito ao conmando as vítimas em culpadas pecumplicidade das
trário da propaganda de que os julas bombas lançadas por Israel em
deus estavam sofrendo uma ameaça
seu território, pela destruição de
grandes potências
iminente de extinção, as palavras
suas casas e pomares, pela diáspora
– transformando as
do maior representante do Estado
palestina, pelo assassinato de seus
filhos ainda crianças –, está entre os
vítimas em culpadas de Israel, David Ben Gurion, são
elucidativas dos objetivos reais dos
mais importantes instrumentos de
pelas bombas
sionistas: “Devemos usar do terror,
dominação, usados em abundânassassinatos, intimidações, corte de
cia, ontem por Hitler e hoje pelos
lançadas por Israel
todos os serviços sociais para expulimperialistas sionistas.
sar da Galileia os palestinos”, afirQuem não enxerga a campanha
mou o novo primeiro-ministro, em maio de 1948.
constante para esconder a origem semita dos palestiAções como o massacre de 254 pessoas, mulhenos com o cínico objetivo de acusá-los de serem anres e crianças em Deir Yasin foram relatadas por um
tissemitas? Pois se o mundo tiver conhecimento da
oficialda Cruz Vermelha, citado no livro de Antônio
origem semita de ambos– árabes palestinos e judeus–,
Basallote História da expansão sionista sobre a Palestina
cairá por terra a falsa e sórdida acusação de antisse(1948-2010): “Aqui a limpeza étnica havia sido realizamitas a todos os que condenam o sionismo e seu mais
da com metralhadoras, depois com granadas de mão,
de meio século de matanças contra o povo palestino.
terminando com facas.”
É através da propaganda suja e criminosa – por ser
Outro grande mito sobre o qual se fundou o mofalsa e servir à destruição de um povo e sua cultura
vimento migratório de judeus de todo o mundo em
– que os invasores se fazem de vítimas, e fazem das
direção à Palestina, cuja maior parte do território foi
vítimas agressores. O historiador e pesquisador judeu
transformada no Estado de Israel, foi o de que se traisraelense, Ilan Pappe, renomado estudioso da questava de um “uma terra sem povo para um povo sem
tão palestina-israelense, tem dedicado atenção espeterra”, de acordo com a estratégia sustentada de necial aos acontecimentos de 1948, elucidando fatos da
gar a existência do povo palestino.
maior importância para o entendimento do chamado
Além disso, a representação da “ameaça” repreconflito. Pappe tem denunciando os grandes mitos de
sentada pelos árabes e, em específico, pelos palesIsrael, as sórdidas mentiras destiladas desde quando
tinos, é auxiliada pela comunicação das potências
o nascente regime assassinava maciçamente os pales-
79
132/2014
imperialistas, como os jornais, rádios e cinemas instrumentalizados por Israel. É comum vermos “analistas” de grandes veículos de comunicação transmitirem venenoso discurso segundo o qual os palestinos
“não se importam” com suas crianças, não têm amor
à vida, entre outros mitos empenhados na sua desumanização. A comunicação a serviço da destruição
da imagem das vítimas dos sionistas é uma poderosa
arma para buscar suprimir qualquer possibilidade de
resistência deste povo martirizado, como demonstra o
último ataque à Faixa de Gaza: castigar, enfraquecer
e destruir a recém-nascida unidade entre as organizações políticas do povo palestino, principalmente Al-Fatah, à frente da Autoridade Nacional Palestina, e
a organização política do Movimento de Resistência
Islâmica (Hamas), esta sim, a real e imediata motivação da matança. O que a potência sionista quer é
um povo desnaturado, despojado de sua dignidade,
silenciado pelo medo, paralisado pelo terror que lhe
é imposto. Uma missão impossível. Como disse uma
companheira palestina, “nesta guerra genocida, os
palestinos perdem a vida e Israel perde a alma!”
Numa demonstração de ódio e preconceito contra o
povo palestino e de absoluto desprezo às até hoje inócuas resoluções, censuras, e condenações da ONU, o
Exército sionista promove uma caçada aos palestinos
que buscam inutilmente refúgio nos prédios da ONU.
Estas agressões que provocam um sentimento de
dor e profunda revolta nos povos do mundo inteirosão uma macabra repetição dos crimes de que foram
vítimas os judeus, os ciganos, os homossexuais, os socialistas e comunistas, sob o nazismo, com os mesmos
falsos pretextos: de que eram terroristas, que escondiam armas nos guetos, que eram um perigo para a
segurança do Estado alemão e do seu povo.
É um martírio semelhante, imposto há mais de
seis décadas pelo Estado de Israel ao povo palestino,
que vive hoje com o que restou do seu território, preso
no maior campo de concentração que jamais existiu,
cercado por um muro de mais de 700 quilômetros na
Cisjordânia e o bloqueio completo a Gaza, com militares armados de fuzis e metralhadoras noite e dia,
vigiando-os, dali só saindo se tiver um “passaporte”,
uma autorização do Exército invasor.
Mesmo esta nesga de terra que restou está ocupada pelo invasor, e o povo palestino proibido de circular em sua própria terra: as estradas, em sua grande maioria, tal qual na África do apartheid, só servem
para os israelenses. Como se não bastasse tanta humilhação, o Exército sionista espalhou os postos de
controle militar, com seus jovens e arrogantes soldados de armas em riste contra aqueles que são por eles
considerados menos que humanos, separados de seus
parentes por um gigantesco muro, assistindo quase
80
que impotentes (pois não se pode comparar os “foguetes caseiros” palestinos com os mísseis de altíssima tecnologia, com as bombas, com os tanques, a
artilharia pesada ou com os drones de Israel) à destruição de suas casas, ao incêndio de seus sítios, quando
não são simplesmente ocupados por colonos trazidos
de qualquer parte do mundo, que não por acaso fazem parte de um plano de ocupação meticulosamente
calculada do território do povo palestino. As tropas de
Israel destroem as redes de abastecimento de água e
as já precárias redes de esgoto, os hospitais e escolas, promovem práticas de limpeza do território, com
a imposição do terror, do medo da expulsão, ou da
matança sistemática.
O objetivo é cada vez mais cristalino: impedir a
criação do Estado palestino definido pela ONU ainda
em 1947. Para consumar este crime contra o direito
de existência plena do povo palestino, Israel construiu toda uma estratégia para impedir o avanço da
organização política, administrativa e diplomática das
representações palestinas, negando pela força bruta
das armas a criação do Estado da Palestina durante
mais de seis décadas. Eventos históricos recentes, de
grande significado para o avanço da luta do povo palestino por seu Estado – como o reconhecimento pela
ONU do estatuto de Estado observador (não-membro) e o acordo entre a Autoridade Palestina e o Hamas – foram dois momentos a partir dos quais Israel
intensificou seu virulento ataque ao povo palestino.
Nos dois casos, contando com o apoio do governo dos
Estados Unidos; no primeiro, em um acesso de “insatisfação” com a Unicef pela integração da Palestina em seu seio, o império estadunidense deixou de
contribuir financeiramente com o órgão, num calote
chantagista, em retaliação. No outro episódio, a construção da unidade entre palestinos, o governo de Israel chega ao paroxismo do ódio, motivo real que o
levou a promover a mais recente chacina em Gaza,
alegando exercer um tergiversado “direito à autodefesa” contra a resistência palestina no território sitiado há quase oito anos, tachada de “terrorista”. Aliás,
o termo parece ser herdado, na concepção do regime
israelense, por qualquer militante palestino, qualquer
membro da resistência, seus familiares, vizinhos ou
qualquer habitante de Gaza.
Criando uma teia de mentiras e de mitos, como
recomenda a doutrina nazista de Joseph Goebbels,
o Estado terrorista de Israel tem buscado transformar um povo agredido, usurpado no sagrado direito a seu território, à sua nação plena e soberana, em
“terrorista”. Horror dos horrores: o Estado de Israel,
a quarta potência militar do planeta, com suas mais
de duzentas ogivas nucleares, bombas de fragmentação, drones, mísseis e tanques, enfim, com os mais
Internacional
modernos e eficazes instrumentos
pais. Restou-me um filho. Toda a mide destruição e morte – contando
nha família foi morta pelo Exército
ainda com o apoio incondicional
israelense”. Esta existência singela e
da maior potência bélica do planedensa de sofrimentos e resistência ao
ta, os Estados Unidos –, através de
invasor é a verdadeira ameaça, não
seu poder midiático e com a cumsó aos sionistas, mas aos seus manplicidade de seus próceres, inclutenedores e beneficiários, o imperiasive no Brasil, tem o poder de se
lismo estadunidense que, fazendo
passar por ameaçado em sua segutábua rasa da Carta das nações Unirança por um povo sem armas, sem
das, no direito de resistência do povo
Exército, sem recursos, vivendo em
ocupado contra o invasor, se bem que
O objetivo é cada
verdadeiros campos de concentraneste caso abissalmente assimétrico
vez mais cristalino:
ção, sem direito às mínimas condiem voz uníssona com os sionistas,
ções de vida digna, vítima de uma
vociferaque a paz depende dos paimpedir a criação
política genocida e que tem como
lestinos! Que os palestinos têm que
do Estado palestino
única arma, além de alguns estise desarmar,no mesmo momento em
lingues e foguetes artesanais, sua
que aumenta a ajuda financeira para
definido pela ONU
própria existência martirizada. Esaumentar o poder de ataque do exérainda em 1947. Para cito agressor! A humanidade não
ta sim, grandiosa, heroica, teimosa
em sua resistência, que só pelo fato
pode aceitar mais esta ignomínia!
isso Israel construiu
de perseverar em existir é um libeImpor como condição para a Paz, a
toda uma estratégia, aceitação por parte do povo palestino
lo acusatório, não só contra o Estado terrorista que lhe suprime os
da aberração de um não-Estado, decom a força bruta
meios de existência, que dia após
sarmado, cercado militarmente, (um
das armas, contra
dia impõe-lhes, do amanhecer ao
protetorado israelense) manietado e
anoitecer, o terror e a humilhação,
impotente, como condição à Paz.
o avanço da
as prisões e torturas de milhares de
O atual primeiro-ministro de Isorganização política, rael, Benjamin Netanyahu, tem afircrianças e adolescentes, devassando arrogantemente sua existência
mado reiteradamente o seu reconheadministrativa e
com postos de controle militar escimento ao apoio fiel e constante dos
diplomática das
parramados em todo o seu territóEstados Unidos ao seu governo e à
rio, do que sobrou de suas terras,
sua chamada “política de seguranrepresentações
avançando mais e mais na busca
ça”, outro mito construído para maspalestinas
de anexação, através da colonizacarar a ocupação expansiva da Palesção militar e prisões sistemáticas
tina e a opressão do povo que resiste
de crianças e jovens, buscando calnaquela terra, sobre o qual é imposto
cinar qualquer sonho de permanência deste povo em
um regime de segregação e violações sistemáticas dos
sua própria terra.
direitos mais básicos, garantidos por diversas convenPara os ocupantes, a simples existência do Estado
ções internacionais. Essa dissimulação cínica da seda Palestina é inaceitável e têm afirmado isto aos quagregação, da imposição de uma negação essencial da
tro cantos do mundo. A verdade é quea própria exiscondição de uma “ocupação”. Reconhecer esta situatência desse heroico povo evidencia uma acusação
ção imporia a Israel obrigações enquanto a “Potência
que se estende inevitavelmente para quem mantém,
Ocupante” que é – de acordo com a própria ONU –,
apoia e fortalece a política de limpeza étnica conduzicom base, principalmente, em inúmeros artigos da
da por Israel, os Estados Unidos.
quarta Convenção de Genebra, sobre a Proteção das
Depois de seis décadas de holocausto, só de estaPessoas Civis em Tempos de Guerra, de 1949.
rem vivos os palestinos gritam ao mundo: “Eu sou
Inúmeras resoluções emitidas todos os anos por
filho de Mustafá, morávamos, em 1948, ali naquela
cinco órgãos principais da ONU desde a década de
terra hoje ocupada por Israel, esta é a chave de nossa
1940 são deliberadamente violadas por Israel. Exemcasa, meu pai me entregou antes de morrer,” ou: “Vieplos são a 181, da Assembleia Geral, que estabelecia
mos para Gaza, e agora nossa casa foi bombardeada
um Plano de Partilha que já garantiapara a criaçãodo
por Israel. Não temos para onde ir. Não temos como
Estado de Israel 53%, ficando para o Estado da Pasair daqui. Não queremos sair daqui!” E, ainda, “Eu
lestina 47% com uma população duas vezes maior
acabo de perder meus filhos, minha mulher, meus
que a hebraica; a 194, de 1948, que pretendia finali-
81
132/2014
zar a guerra entre Israel e vizinhos árabes, estabelecia
uma Comissão de Conciliação e reconhecia o direito
das centenas de milhares de refugiados ao retorno
às suas casas e terras, ou à compensação pelo que foi
destruído, entre as mais de 400 vilas devastadas; e as
resoluções 237 e 242, de 1967, que exigiam a retirada
israelense dos territórios sobre os quais avançou na
ocupação durante a Guerra dos Seis Dias, em junho
daquele ano, e afirmavam o direito dos novos refugiados ao retorno. Estes são apenas alguns exemplos
flagrantes e específicos – que podem ser comprovados também no direito internacional geral – das graves violações israelenses que sustentam a ocupação
da Palestina, com a cumplicidade ativa dos Estados
Unidos que, enquanto membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas com poder de veto, barraram dezenas de resoluções que condenariam Israel.
A única força capaz de deter a máquina israelense
do apartheid é a resultante da indignação e revolta dos
povos, da consciência humanista dos que não se curvam ao império da força bruta e do terror. É a força da
resistência do povo palestino que, na sua dor infinita,
eleva acima dela sua dignidade, sua valentia e determinação de não se deixar subjugar. De fazer valer seu
direito sagrado à resistência e à luta em defesa de seu
território. De quem não acredita e não aceita a rendição diante do Exército invasor, que pretende impor,
como condição de cessar-fogo, que o povo palestino
se dobre desarmado e indefeso, submetido ao quarto exército mais armado da terra. Não, mil vezes têm
dito os palestinos. Não! Não pode a força bruta rasgar
tantas resoluções da ONU, que determina a retirada
de Israel das terras ocupadas e a devolução aos seus
donos, os palestinos. Não, mil vezes não! Israel não
pode passar por cima do direito internacional e promover a carnificina que tem promovido contra o povo palestino e sair impune! Não, mil vezes não! Israel
não pode continuar suprimindo o direito à vida de um
povo e continuar impune.
É preciso que as pessoas que acreditam e têm compromisso com a Paz e com uma ordem mundial sob o
primado da justiça, da igualdade e do respeito entre
povos e nações intensifiquem movimentos e pressões
no sentido de fazer valer as resoluções da ONU acerca do Estado do povo palestino e sobre as fronteiras
entre os dois Estados, assim como as denúncias de
crimes de guerra cometidos por Israel, sempre acobertados pelos Estados Unidos.
Não podemos aceitar o cínico argumento da quarta
potência militar do planeta de que a existência do Estado da Palestina ameace sua segurança, numa afronta à
nossa inteligência. O que querem os sionistas é um povo desarmado, indefeso e inexistente no cenário internacional, fácil presa de sua política de limpeza étnica!
82
A sustentação que lhes garante os EUA obedece à
lógica da sua própria busca de controle e hegemonia
na região, faz parte da estratégia de “reformatação
do Oriente Médio”, na qual o papel de Israel já de há
muito está definido como seu esbirro, e em troca da
proteção imperialista lhe fornece mão de obra para escabrosas operações na guerra suja contra governos e
países soberanos, a exemplo do Iraque, Líbia, Síria, os
dois primeiros transformados em um teatro de horrores a serem atacados, saqueados destruídos, e a Síria
que resiste valentemente, ameaçada pelas hordas criadas pelo império, de divisão do seu território. Os fortes
liames que ligam estas duas potências no ataque aos
palestinos têm deixado cada dia mais claro o quanto
é grande o patrocínio dos Estados Unidos às ações de
Israel contra os direitos e a vida do povo palestino.
A destruição e a morte, como na Síria, na Líbia, no
Iraque, servem à busca de concretizar sua política de
“implantação de um novo Oriente médio”. Ou seja,
para controlar países ricos em fontes energéticas, nomeadamente petróleo e gás, e dominar esta região de
ligação entre três continentes: África, Europa e Ásia.
Ao fim e ao cabo, o império estadunidense e o sionista
só poderiam ter esta relação simbiótica, ambos comprometidos com um objetivo que colide frontalmente
com os interesses da humanidade, buscando eliminar
qualquer resistência ao saque e à dominação.
A repetição do dantesco holocausto contra um povo que tem a mesma origem que a sua, a semita, mostra a confiança de Israel na cumplicidade das suas
potências aliadas, principalmente os Estados Unidos,
o principal beneficiário, financiador e protetor das políticas do regime israelense, que lhes tem garantido a
impunidade.”e a criação de seu Estado soberano, que
ocorrem nos mais diversos países, são uma demonstração inequívoca da condenação dos povos à política
de limpeza étnica de apartheid levada a cabo pelo Estado de Israel.
Neste sentido, cresce a convicção da imperante
necessidade de romper os acordos comerciais, e especialmente os acordos militares,com o Estado de Israel. Nações e povos compromissados com uma nova
ordem mundial sob o império do respeitoà soberania
e autodeterminação dos povos, devem cessar todo e
qualquer acordo que fortaleça de alguma forma Estados que têm como principal razão de ser a destruição
de um povo com fins de conquista.
A resolução do conflito Israel Palestino é uma
questão de toda a humanidade.
* Socorro Gomes é presidente do Centro Brasileiro de
Solidariedade e Luta pela Paz (Cebrapaz) e do Conselho
Mundial da Paz (CMP)
Brasil
83
132/2014
1914 – guerra e revolução
José Carlos Ruy*
Mesmo no mundo de hoje, cem anos
depois da Primeira Grande Guerra,
o imperialismo tenta, a um custo
bárbaro e brutal, submeter os povos
e conter sua luta pela superação e
ultrapassagem do sistema capitalista.
Neste sentido, guerra e revolução
são dimensões da luta de classes que
ficaram unidas desde 1914
84
O
História
grande conflito iniciado em 1914 siO primeiro parágrafo daquele documento, intinalizou duplamente o ponto final de
tulado A Guerra e a Socialdemocracia na Rússia, diz: “A
uma época histórica e o início de outra,
guerra europeia, que foi preparada no decorrer de demarcada pelo maior desafio enfrencênios pelos governos e pelos partidos burgueses de
tado pelo sistema capitalista. Assim,
todos os países, rebentou. O aumento dos armamen1914 pode ser
tos, a extrema agudização
considerado coda luta pelos mercados
mo o marco inicial do sécuna época do estágio atual,
lo XX e do prolongado conimperialista, do desenvolflito que opôs os esforços
vimento do capitalismo
conservadores pela manunos países avançados, e os
tenção e o fortalecimento
interesses dinásticos das
do sistema capitalista à
monarquias mais atrasaluta dos povos e dos tradas, as da Europa Oriental,
balhadores para alcançar o
deviam conduzir inevitaavanço civilizacional reprevelmente, e conduziram,
sentado pela superação do
a esta guerra. Conquistar
modo de produção capitaterras e subjugar nações
lista e o começo da transiestrangerias, arruinar a nação para o socialismo.
ção concorrente, saquear
Desde 1815, as
O historiador marxista
as suas riquezas, desviar a
Eric Hobsbawm definiu como limiatenção das massas trabalhadoras
contradições entre
tes para o “curto século XX” as datas
das crises políticas internas da Rúsa burguesia e o
de 1914 e 1991, que indicam o inísia, Alemanha, Inglaterra e de oucio da Primeira Grande Guerra e o
tros países, a desunião e o entonteproletariado, e
fim da União Soviética. Hobsbawm
cimento nacionalista dos operários
entre as nações
tem razão se prestarmos atenção aos
e o extermínio de sua vanguarda
tempos a que ele se refere. No século
com o objetivo de debilitar o moeuropeias, se
anterior, desde 1815, as contradições
vimento revolucionário do proletaacentuaram e
entre a burguesia e o proletariado, e
riado, é o único real conteúdo, sigentre as nações europeias, se acennificado e sentido da atual guerra”
levaram à Grande
tuaram e levaram à Grande Guerra
(LÊNIN, 1979, p. 559).
Guerra cujo início,
cujo início, em 1914, indicou a aberA análise de Lênin, com sua
tura de uma nova época que teve
costumeira precisão, une elemenem 1914, indicou
sua marca mais forte no esforço de
tos do passado que chegava ao fim,
a abertura de uma
construção do socialismo, terminado
com outros que apontavam para o
– pelo menos na Europa – em 1991
nova época que teve futuro. Ele alinha entre os motivos
(HOBSBAWM, 1995, p. 30).
da guerra a disputa interimperiasua marca mais
Aquele conflito colocou um fim
lista que opunha principalmente a
na época histórica marcada pela
Alemanha aos países europeus doforte no esforço
consolidação do capitalismo conminantes (a Inglaterra e a França),
de construção do
correncial e da hegemonia burgueos interesses dinásticos de monarsa. Época também da emergência
quias ultrapassadas, e o temor dos
socialismo
da revolução proletária, que já tinha
governos e das burguesias ante a
surgido com os grandes levantes
revolução proletária que se punha
populares e proletários da primavera
na ordem do dia.
dos povos europeia na metade do século XIX.
Os conflitos na Europa Central e nos Bálcãs deMenos de um mês após o início da guerra o diriram o pretexto para a guerra. Aquela região era margente bolchevique V. I. Lênin foi autor de um manicada pela confluência de interesses, crenças e modos
festo do Comitê Central do Partido Operário Socialde viver ligados às grandes monarquias atrasadas.
democrata da Rússia (publicado em 1º de setembro
Ali o império alemão (unificado sob Bismarck e a
de 1914), com o registro preciso das razões da guerra
hegemonia prussiana desde a época da Comuna de
e do desafio que estava colocado para os socialistas
Paris) se confrontava com interesses dos enfraqueci(LÊNIN, 1979).
dos impérios austro-húngaro, russo e otomano. Três
85
132/2014
daqueles impérios (austro-húngaro, russo e alemão)
era da guerra total”. E o conflito foi visto por muiformavam, desde o Congresso de Viena (1815), a
tos analistas contemporâneos como a falência da
Santa Aliança, que foi a fortaleza da reação contra a
civilização e mesmo da humanidade (HOBSBAWM,
revolução, o constitucionalismo e a democracia.
1995, p. 30). Não se compreende o século XX, diz
O pretexto para o início da guerra, em 1914, foi
ele, sem que se entenda aquela guerra e o período
a morte, por um nacionalista sérvio, do arquiduque
prolongado de confrontos armados que ela iniciou.
Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húnE que passaram a ter proporções gigantescas. No ségaro, ocorrida em 28 de junho de 1914, em Sarajevo,
culo XX, eles “iriam dar-se numa escala muito mais
na Bósnia. Foi o estopim daquele conflito longamenvasta do que qualquer coisa experimentada antes”;
te preparado. A grande potência imperialista era ena guerra de 1914, avalia, inaugurou “a era do massatão a Inglaterra, cujos tentáculos estavam em todo o
cre” (IDEM, IBIDEM, p. 32).
planeta (era o império, dizia-se, onde o Sol nunca se
Foi a primeira guerra na qual a tecnologia moderpunha), com seu poderio baseado na enorme força
na, industrial, foi usada extensamente. Foi o cenário
naval que permitia ações militares em todas as reinaugural dos horrores das armas químicas, e ambos
giões. Para opor-se a ela o kaiser Guilherme II (1888os lados usaram gases venenosos em larga escala, ma1918) iniciou, na década de 1890, uma política de
tando massivamente soldados e mesmo a população
armamento que dotou a Alemanha
civil. Submarinos também passade uma força naval capaz de rivaram a ser amplamente usados, seja
Aquela guerra
lizar com o poderio britânico. Seu
no combate direto a navios inimiobjetivo era alcançar, a favor da
gos, seja como arma para ameaçar
pode ser entendida
burguesia alemã, a redistribuição
navios mercantes e impor o blotambém como uma
imperialista dos domínios coloniais
queio a portos das nações inimigas,
e dos mercados no mundo. Este foi
causando vítimas entre a população
etapa, sangrenta,
o verdadeiro objetivo da guerra.
civil submetida à fome e a todo tipo
da revolução
Outra razão apontada por Lêde carências. Foi na Primeira Grannin era a necessidade dos governos
de Guerra que se usou, também pedemocráticoburgueses de se contraporem à luta
la primeira vez, os limitados aviões
-burguesa na
revolucionária dos trabalhadores,
de então, e os tanques de guerra.
cuja presença era cada vez maior
A mobilização para a guerra
Europa. Foi um
no cenário europeu. Este esforço
envolveu números estonteantes.
passo na derrota
de contenção conservadora se dava
No total, foram quase 70 milhões
em dois níveis – um era ideológico;
de combatentes. Do lado aliado
da aristocracia
o outro mais propriamente policial.
(tendo à frente Inglaterra, Franque, a rigor, só
No aspecto ideológico aqueles goça, Itália e Rússia), foram cerca de
vernos tudo fizeram para fortalecer
43 milhões de soldados, contra os
se consolidou na
o sentimento patriótico de seus tra25 milhões da Alemanha e as pogrande guerra
balhadores, colocando-os em opotências centrais. Quase 20 milhões
sição aos trabalhadores dos demais
foram mortos (10 milhões de civis
seguinte​
países. O sucesso desse esforço
e mais de nove milhões de militapode ser observado no fato de que
res – entre os aliados foram onze
os próprios partidos socialistas da II Internacional
milhões de mortos; entre alemães e seus aliados, o
apoiaram decididamente a política belicista de seus
morticínio passou de oito milhões). Foi o primeiro
governos, levando ao que Lênin chamou de “bancarconflito onde a capacidade de matar, ampliada pela
rota” daquele socialismo. Mas havia também o esaplicação da tecnologia, alcançou escala tão giganforço, que pode ser considerado policial, de liquidar
tesca.
a organização dos trabalhadores e separá-los de seus
Aquela guerra pode ser entendida também colíderes mais consequentes, com o uso inclusive do
mo uma etapa, sangrenta, da revolução democrátiassassinato puro e simples, como ocorreu no final da
co-burguesa na Europa. Foi um passo na derrota da
guerra com a perseguição aos comunistas alemães
aristocracia que, a rigor, só se consolidou na grande
e o assassinato dos dirigentes revolucionários Rosa
guerra seguinte, a de 1939-1945, quando Adolf HiLuxemburgo e Karl Liebknecht.
tler, para vingar-se dos oficiais prussianos que ouAquela guerra inaugurou a época de conflitos exsaram armar um atentado para matá-lo, em junho
tensos; aliás, o título do capítulo I do livro de Eric
de 1944, praticamente dizimou a classe latifundiária
Hobsbawm sobre o século XX é justamente este – “A
dos junkers (ver BARRACLOUGH, 1975).
86
História
O arranjo de classes formado na Europa com a Revolução Francesa do final do
século XVIII foi baseado em uma aliança
liderada pela burguesia e que envolvia a
plebe de trabalhadores urbanos e, principalmente, de camponeses. Aquele arranjo
foi radicalmente alterado na segunda metade do século XIX, com a emergência da
revolução proletária. As jornadas de 1848,
quando as massas das principais nações
europeias se levantaram, foram percebidas
como ameaçadoras pela burguesia. Não é
A Primeira Guerra mundial
por acaso que aquele foi o contexto no qual
foi o cenário inaugural
Karl Marx e Friedrich Engels redigiram o
dos horrores das armas
Manifesto do Partido Comunista, definindo o
químicas e do grande uso de
programa e os objetivos do proletariado.
tecnologia moderna
A aliança de classes que vinha desde a
Revolução Francesa foi rompida deste então e a burguesia, temerosa, juntou-se à
aristocracia em nome da defesa da ordem. E da protasma da revolução proletária, como Lênin apontou.
priedade! Marx registrou essa mudança em O Capital.
Este esforço foi em vão.
A “insurreição parisiense de junho e sua sangrenta
Na Europa, no outono de 1918, ao final da guerra,
repressão fez com que se unissem em bloco, tanto na
ocorreram movimentos revolucionários nos países do
Inglaterra como na Europa Continental, todas as fracentro e sudeste, como antes ocorrera na Rússia, em
ções das classes dominantes, latifundiários e capita1917. Houve tentativas revolucionárias em todos eles.
listas, especuladores da Bolsa, lojistas protecionistas
Foram antecedidos pela revolução na Rússia one livre-cambistas, governo e oposição, padres e livresde, em fevereiro de 1917, o czar foi deposto e tentou-pensadores, jovens prostitutas e velhas freiras, sob
-se implantar uma República parlamentar, à maneira
a bandeira comum da salvação da propriedade, da
ocidental. A crise política desembocou na vitória dos
religião, da sociedade! A classe trabalhadora foi por
revolucionários dirigidos por Lênin, em outubro (ou
toda parte proscrita, anatemizada, colocada sob a Loi
novembro, pelo calendário ocidental), que deu início à
des suspects, uma lei de exceção que permitia, na Franprimeira e mais durável tentativa de construção do soça do Segundo Império, a prisão e o banimento, sem
cialismo. Em A Guerra e a Socialdemocracia na Rússia, três
qualquer formalidade, dos que fossem considerados
anos antes, Lênin já havia delineado o caminho revoinimigos do governo” (MARX, 1978, cap. VIII).
lucionário que levou à vitória. Naquele documento há
Nesta nova aliança das classes proprietárias, as
uma veemente condenação da traição ao socialismo
monarquias europeias (principalmente aquelas que
pelos partidos da II Internacional, particularmente o
Lênin incluiu entre as mais atrasadas: a alemã, a auspartido alemão que, entre eles, era o maior, o mais imtro-húngara e a russa), e a velha e decadente aristoportante e o mais influente. Lênin os condenou por
cracia dos demais países, obtiveram uma sobrevida. A
não se oporem à “conduta criminosa dos governos”
aristocracia passou a governar ao lado da burguesia
e defenderem a fusão da política da classe operária
em arranjos antirrevolucionários e antidemocráticos
“com a posição dos governos imperialistas”. E apreque levaram até as primeiras décadas do século XX a
sentou aquela que, em sua opinião, era a única posição
práticas do velho absolutismo enraizado nos séculos
correta naquela conjuntura: transformar a guerra imanteriores à Revolução Francesa. Elas só foram derroperialista em guerra civil revolucionária. Os socialistas
tadas, e saíram de cena, ao final da guerra (MAYER,
deviam, escreveu, responder à guerra da burguesia e
1977 e 1987).
dos governos com a “redobrada propaganda da guerra
A guerra, iniciada como uma disputa interimpecivil e da revolução social”, e insistiu que aquela era “a
rialista para a redivisão do mundo entre os países
única palavra de ordem proletária justa”. Foi seguindo
dominantes, e para resolver disputas territoriais enesta orientação que o partido bolchevique chegou ao
tre as velhas e decadentes dinastias, terminou com
poder em 1917 e mudou o rumo da história.
uma ameaça maior para o domínio da burguesia.
Para Lênin e os bolcheviques, a Revolução Russa
As classes dominantes tinham também o objetivo
seria o prenúncio de outra, nos países industrializade derrotar a luta dos trabalhadores e afastar o fandos, principalmente na Alemanha. Esta esperança
87
132/2014
tinha algum fundamento. Em janeiro de 1918, diz
Hobsbawm, houve uma onda de greves políticas e
manifestações contra a guerra na Europa Central; elas
começaram “em Viena, espalhando-se via Budapeste
às regiões tchecas da Alemanha, culminando na revolta dos marinheiros austro-húngaros no Adriático”
(HOBSBAWM, 1995, p. 73).
Mas a esperança dos bolcheviques foi frustrada.
Na Alemanha, a derrocada do império e a assinatura
do armistício, em 11 de novembro de 1918, desencadearam um processo de luta de classes que poderia
levar a um desfecho revolucionário. Os conselhos de
operários e soldados (uma versão local dos sovietes)
proliferaram, principalmente nas grandes cidades, mas
enfrentaram a oposição dos
dirigentes do Partido Socialista da Alemanha (SPD,
Sozialistische Partei Deutschlands). Segundo o historiador Micos Hajek, na Alemanha os dirigentes do SPD,
em outubro de 1918, teriam
aceitado a instauração de
uma monarquia parlamentar com algum verniz social.
O Tratado de
Mas a derrota na guerra os
colocou,
já em 9 de novemVersalhes reuniu os
bro de 1918, à frente de uma
ingredientes que,
revolução que não queriam
nem apoiavam. Eles aposta14 anos depois,
vam numa democratização
levaram os nazistas
gradual da República junker-burguesa e, para manter a
ao poder e a outra
revolução nesse âmbito deguerra mundial,
mocrático-burguês, “contra
as tentativas revolucionárias
iniciada em 1939
do proletariado, aliaram-se
pela mesma
inclusive com os generais
prussianos” (HAJEK, 1985,
Alemanha que
171). Em 9 de novembro o
tentavam conter
príncipe von Baden, herdeiro do império alemão, transferiu o governo ao dirigente
do SPD, Friedrich Ebert. E há notícias de que Ebert
teria dito ao príncipe que odiava a revolução e tudo
faria para evitá-la.
A revolução alemã desembocou assim na República de Weimar e suas limitações e contradições. Em
dezembro de 1918, em Berlim, o 1º Congresso Nacional dos Conselhos de Operários e Soldados rejeitou
a transferência do poder aos conselhos (ao contrário do que ocorreu na Rússia em 1917, com a vitória da palavra de ordem “todo poder aos sovietes”).
88
Revelavam aqui sua essência contrarrevolucionária
ao defender que se deveria esperar pela Assembleia
Constituinte para institucionalizar o novo regime republicano (LOUREIRO, 2005, p. 70).
O governo do SPD apoiou-se nos mal-afamados
freikorps (“corpos livres”, também conhecidos entre os operários como “guardas brancos”) da direita
alemã, formados por ex-combatentes inconformados
com a derrota na guerra – oficiais, suboficiais, gente
proveniente das camadas médias monarquistas, ou
antigos operários que não queriam deixar o exército.
Estes verdadeiros esquadrões da morte formaram “o
principal apoio militar do governo socialdemocrata”,
sendo “os responsáveis pela derrota, em janeiro de
1919, dos operários revolucionários” (HAJEK, 1985,
175). Eram corpos paramilitares que tiveram forte
apoio do ministro da Defesa do governo socialdemocrata e membro do SPD, Gustav Noske, apelidado de
“carniceiro sanguinário”. Ele os usou para reprimir o
levante revolucionário de janeiro de 1919, e foi um
desses esquadrões da direita que assassinou os líderes
revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht,
em Berlim, em 15 de janeiro de 1919. Isto é, a revolução alemã, ocorrida no fim da guerra e que poderia
desembocar no socialismo, entrou no labirinto que levaria à sua derrota, depois de muita luta. Houve uma
breve República Soviética na Baviera. Outra tentativa,
também na Europa central, ocorreu na Hungria, onde
uma República Soviética conseguiu manter-se entre
março e julho de 1919. Ambas – na Baviera e na Hungria – foram eliminadas com ferocidade.
O Tratado de Versalhes, que marcou o fim da
guerra, teve o duplo objetivo de conter o ímpeto imperialista da Alemanha (e salvaguardar os interesses
da principal potência imperialista de então, a Inglaterra), e de isolar a Rússia soviética para impedir que
o exemplo revolucionário se espalhasse.
A Alemanha foi obrigada a reconhecer os prejuízos
que causara a outras nações, ficando obrigada ao pagamento de pesadas indenizações que inviabilizaram
sua estabilidade econômica e seu desenvolvimento.
Isso a levou a uma profunda desagregação econômica
e social na década seguinte, ao desemprego e à miséria popular, e a uma inflação numa escala jamais
vista. Dessa maneira o Tratado de Versalhes reuniu os
ingredientes que, 14 anos depois, levaram os nazistas
ao poder e a outra guerra mundial, iniciada em 1939
pela mesma Alemanha que tentavam conter.
Os vitoriosos também procuraram “tornar o mundo seguro contra o bolchevismo”. Esta era a meta das
grandes potências; elas apoiaram a criação de novas
pequenas nações para formar um “cordão de isolamento” contra a URSS, cujo regime revolucionário
seria “um imã para forças revolucionárias de todas
História
as partes”. E, como analisou Hobsbawm, “os muitos pretendentes à sucessão, pelo menos na Europa,
eram vários movimentos nacionalistas que os vitoriosos tendiam a estimular, contanto que fossem antibolcheviques, como convinha”. Eles formariam “uma
espécie de cinturão de quarentena contra o vírus vermelho” (HOBSBAWM, 1995, p. 38, 39, 40 e 73).
O nazismo que sucedeu à República de Weimar
não foi apenas consequência das imposições feitas
pelos vencedores da guerra, mas também do esforço
de conter a Revolução Russa e derrotar a classe operária e o socialismo. Ele resultou também da pretensão dos dirigentes do SPD de parar a revolução na
Alemanha. Uma revolução é um processo histórico
e político objetivo cuja eclosão não depende da vontade de um grupo de dirigentes ou de um partido –
ela resulta do entrechoque das “camadas tectônicas”
que movem a sociedade, a luta das classes antagônicas, cuja solução pode levar ao avanço ou à paralisia
do processo histórico. Seu desencadear está ligado
assim a estas condições objetivas e também à existência de um partido e líderes capazes de cumprir
suas responsabilidades históricas.
Na Rússia, os bolcheviques, dirigidos por Lênin
e seus camaradas, deram uma resposta positiva a
este desafio, e tiveram êxito. Na Alemanha, a direção do SPD tentou parar a revolução, presa à crença
de que seria mais adequado e “democrático” deixar
a solução do confronto para a Assembleia Constituinte. E fracassou. A conclusão que se impõe é a
de que, da mesma forma como uma revolução não
é deflagrada pela mera vontade de um grupo de revolucionários, ela também não pode ser detida por
escolhas políticas feitas por aqueles que deveriam
estar à sua frente. Por isso, na Alemanha, o processo social da revolução continuou; e, com a derrota dos operários revolucionários, ele evoluiu para
a direita, e a saída lógica para as contradições que
o moviam foi a chegada ao poder, em 1933, da direita em sua pior e mais retrógrada e sanguinária
expressão, o nazismo.
Passados cem anos de seu início, os efeitos da
guerra de 1914 permanecem. Ela inaugurou a era
dos grandes conflitos imperialistas pela divisão das
zonas de influência no mundo, e foi também uma
etapa na luta pela transição ao socialismo. Estas etapas ainda não estão concluídas. As lutas e os massacres na Europa, na década de 1990, devem ser vistos
como consequências longínquas do acerto entre as
nações ao final da guerra. “Os conflitos nacionais,
que despedaçaram o continente na década de1990”,
escreveu Eric Hobsbawm, “são as galinhas velhas do
tratado de Versalhes, voltando mais uma vez para o
choco” (HOBSBAWM, 1995, p. 39).
Bolcheviques, dirigidos por Lênin, deram uma resposta positiva
aos desafios nazistas e as pretensão dos dirigentes do SPD
E há também a questão da revolução proletária que, disse Lênin, é característica de nossa época.
Aquela guerra trouxe para o primeiro plano a luta do
imperialismo contra a revolução socialista. Isso ajuda
a entender o mundo que se seguiu a ela. Onde houve
outro conflito gigantesco (a guerra de 1939 a 1945).
Seguido pela divisão do planeta em duas áreas antagônicas durante a chamada “guerra fria”, opondo as
nações capitalistas (o “Ocidente”, formado pelos EUA
e Europa Ocidental) ao bloco socialista liderado pela
URSS. E mesmo o mundo de hoje, no qual, cem anos
depois, o imperialismo tenta, a um custo bárbaro e
brutal, submeter os povos e conter sua luta pela superação e ultrapassagem do sistema capitalista. Neste
sentido, guerra e revolução são dimensões da luta de
classes que ficaram unidas desde 1914.
* José Carlos Ruy é jornalista
Referências
BARRACLOUGH, Geoffrey. “Adolf Hitler, ex-mito”. In
Cadernos de Opinião, n. 1, Rio de Janeiro, 1975.
HAJEK, Micos. “A discussão sobre a frente única e a
revolução abortada na Alemanha”. In: HOBSBAWM, E.,
1985.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos – O breve século XX
-1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
____________. História do Marxismo. Vol. VI. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985.
LÊNIN, V. I. “A Guerra e a Socialdemocracia na Rússia”. In:
LÊNIN, V. I. Obras Escolhidas, T. 1. São Paulo: Alfa-Ômega,
1979.
LOUREIRO, Isabel. A revolução alemã (1918-1923). São
Paulo, Editora UNESP, 2005.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. México DF, Fundo de Cultura
Económica, 1978 (Cap. VIII, Item 6).
MAYER, Arno. A força da tradição. São Paulo: Cia. das
Letras. 1987. Ver também MAYER, Arno. Dinâmica da
contrarrevolução na Europa, 1870-1956. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977
89
132/2014
Anos 1990: a dinâmica
macroeconômica a partir do Plano
Real e a nova (des)configuração
do mundo do trabalho
(1)
Tamara Naiz Silva*
N
o início da década de 1990, a economia
brasileira passava por uma fase de amplas e profundas mudanças, buscando
um processo de integração do país à
nova ordem mundial. Essas mudanças
estruturais repercutiram na organização produtiva e
financeira, no balanço de pagamentos e nas contas
públicas. Do ponto de vista das repercussões desse
processo sobre o mercado de trabalho, avaliamos
que elas foram negativas, pois aqui os problemas do
capitalismo contemporâneo, decorrentes do padrão
de acumulação global predominantemente financeiro, se sobrepuseram aos problemas históricos do
90
A crença de que o mercado
regularia a produtividade
do trabalho e da produção
industrial regeu a política de
abertura econômica avançada
por FHC. O resultado foi a
precarização do trabalho,
e desvio de uma economia
desenvolvimentista voltada para
a industrialização para uma
economia, finalmente, rentista
e financeira, como no “primeiro
mundo”
capitalismo brasileiro, tardio. Desse modo, a fase é
marcada pelo crescimento das taxas de desemprego
aberto e pela precarização geral do trabalho, termos
que acentuaram ainda mais a heterogeneidade do
mercado de trabalho brasileiro. Não é simples avaliar
(lideranças públicas e privadas), mas é perceptível o
fato de que, em face à mudança de tom observada
em nível mundial, nossas lideranças governamentais adotaram opções políticas (2) que favoreceram
fortemente a desestruturação do mercado de trabalho na década de 1990.
Historicamente, o mercado de trabalho brasileiro
é marcado pela heterogeneidade e pela precarização.
História
incentivos fiscais foi levado a cabo com o objetivo de
Mesmo o estabelecimento de uma economia indusreduzir o papel ativo da ação estatal nas atividades
trial complexa e integrada não foi capaz de superar
econômicas. Adicionalmente, muitos órgãos goveras desigualdades herdadas de décadas. Francisco
namentais foram fechados, e o quadro de funcionáOliveira, em seu livro Crítica à razão dualista, aponta
rios públicos foi enxugado, reduzindo sobremaneira
que isso se deve em parte à alta velocidade da urbao papel do Estado na geração de empregos.
nização que se processou no país, associada à maA partir da implantação do Plano Real, em 1994,
nutenção de uma estrutura fundiária concentrada.
foi alcançado um sucesso no combate à inflação crôNesse contexto, apesar do dinamismo do mercado
nica, que assolava a economia brasileira desde os
de trabalho urbano (em especial no período comanos 1980. Com o real, as bases da arquitetura ecopreendido entre 1950 e 1980), a rapidez do processo
nômica estavam montadas, e o combate à inflação,
de migração despejou nas cidades um contingente
objetivo primeiro da política econômica brasileira,
de população que não pôde ser totalmente absorvido
subordinando todas as demais políticas do Estado
no mercado de trabalho formal capitalista.
a esse propósito, combinava a utilização de uma
Ainda na década de 1990 assistiu-se a um moviâncora cambial sobrevalorizada com o processo de
mento de reforma que alterou radicalmente os rumos
abertura comercial, que oferecia meios para que o
econômico e social do país. Na perspectiva de ação
governo submetesse os produtores nacionais a uma
do governo e na orientação das políticas públicas,
forte pressão competitiva por parte dos produtores
este movimento foi apresentado como parte de um
estrangeiros que implicava o deseesforço de modernização da indúsquilíbrio do balanço de pagamentria e dos serviços nacionais e ainda
tos, que passou a depender da incomo uma tentativa de redefinição
Em que medida
tensificação dos fluxos de capitais
das bases de inserção da economia
as mudanças na
externos, que foram abundantes
brasileira no mundo. Para Marcelo
no início do processo de abertura
Proni e Winês Henrique, organizadécada de 1990
financeira do país.
dores do livro Trabalho, mercado e
foram parte de uma
A afluência dos capitais estransociedade, a proposta do governo fegeiros dependia das altas taxas de
deral nesta década, principalmente
real necessidade
juros, mas também da credibilidaapós o Plano Real, “baseava-se na
de adaptação
de dos mercados, da confiança nas
crença de que o capital estrangeiro
intenções do governo brasileiro de
se encarregaria de promover o deao cenário do
realizar os ajustes macroeconômicos
senvolvimento do país e seria suficapitalismo
e as reformas institucionais definiciente para desencadear uma onda
dos pelo Consenso de Washington,
modernizadora da sociedade brasiinternacional ou
garantindo um ambiente propício
leira” (2003, p.8).
resultaram das
à valorização da riqueza financeira.
Buscou-se nesse processo romPortanto, acompanhando a política
per de forma definitiva com o Estaescolhas das elites?
macroeconômica de estabilização, a
do Nacional Desenvolvimentista e
agenda de reformas estruturais com
introduziu-se um novo modelo de
vistas à desregulamentação da economia e à redução
desenvolvimento econômico que visou a integrar o
da atuação do Estado nas atividades econômicas foi
país à recente ordem das finanças desreguladas (3).
ampliada. Reforçaram-se os programas de privatizaA desregulamentação e a flexibilização constituíção do setor público, de ajuste fiscal, a lógica de forram as bases do novo modelo de desenvolvimento,
talecer a regulação privada das relações de trabalho
e passaram a ser identificadas como instrumentosem detrimento da regulação social, a flexibilização do
-chave para resolver os impasses supostamente comercado de trabalho e a focalização da política social.
locados pelo desenvolvimentismo. Foi assim que, a
Entendia-se que essas reformas eram indispensáveis
partir da década de 1990, o Brasil se inseriu na nova
ao pleno funcionamento do mercado e ao crescimenordem econômica mundial reproduzindo, em conto econômico, além de garantirem a “credibilidade”
dição subordinada, um programa de reformas pródo país frente ao sistema financeiro internacional.
mercado que vinha sendo implementado pelos paíPara o governo, as reações à política macroecoses de capitalismo avançado desde o final dos anos
nômica eram explicadas como o preço a se pagar
1970.
pela necessidade de ajustamento da economia no
Dando concretude ao projeto ainda no ano de
sentido da sua modernização. Um documento ofi1990, com Collor de Mello, um expressivo programa
cial do governo federal sobre a Nova política Industrial
de privatização de empresas estatais e de redução de
91
132/2014
comendações do Consenso de Washington, estava
(4) defende que essas mudanças estariam levando à
apoiada em basicamente quatro pressupostos: (i) a
modernização do Estado, em contraposição ao papel
estabilidade dos preços criaria condições para o cál“voluntarista”, outrora assumido.
culo econômico de longo prazo, estimulando o invesA Nova Política Industrial vigente no Brasil apretimento privado; (ii) a abertura comercial, associada
senta diretrizes distintas das que orientaram a
à valorização cambial, imporia disciplina competitiva
ação do governo federal durante as seis décadas de
aos produtores domésticos, forçando-os a realizarem
substituição de importações. A abertura e a estabiganhos de produtividade; (iii) as privatizações e o
lização econômica são elementos fundamentais das
investimento estrangeiro removeriam os gargalos de
transformações em curso, que envolvem uma ampla
oferta da indústria e de infraestrutura, reduzindo os
restruturação industrial. A ação do agente governacustos do país e melhorando a eficiência; e (iv) a libemental não traz a marca do “voralização cambial, associada à preluntarismo desenvolvimentista”,
visibilidade da taxa de câmbio real,
e orienta-se para estimular o setor
A
proposta
do
atrairia poupança externa, compleprivado a promover a restruturamentando o esforço de investimengoverno
federal
ção industrial, que já se traduz em
to doméstico e financiando o déficit
melhoria da produtividade e leva
“baseava-se
na
em conta corrente.
a economia brasileira a tornar-se
O modelo de desenvolvimento
crença
de
que
o
mais competitiva. (PRESIDÊNCIA
adotado
a partir dessa lógica, porDA REPÚBLICA, 1998, p. 2, grifos
capital
estrangeiro
tanto,
definiu
o mercado como o
no original).
motor
primordial
do processo, e
se
encarregaria
Essa polaridade entre o suposto
não
mais
o
Estado.
Supôs que o
“voluntarismo” de outrora e a nede
promover
o
acirramento
da
concorrência,
a
cessidade de se construir um Estado
partir
da
abertura
comercial,
indesenvolvimento
moderno foi defendida de tal modo
duziria a uma rápida transformaque Andrea Galvão afirma: “Fernando
país
e
seria
ção da estrutura produtiva, finando Henrique Cardoso elegeu a era
ciada pelo processo de abertura
suficiente
para
Vargas como alvo de seu governo”,
financeira, tudo em direção a uma
já que o presidente e seus ministros
desencadear
trajetória de desenvolvimento
promoveram uma árdua crítica, e
“sustentável”.
uma
onda
mesmo um ataque aos direitos traEssa estratégia exime o Estabalhistas historicamente conquistamodernizadora
do
de intervir e regular para apedos, procurando sempre a prevalênnas
“criar um ambiente favorável”
da
sociedade
cia do pactuado sobre a lei.
e
evidencia
a perspectiva política
No entanto, tal estratégia de
brasileira”
antipopular
desse projeto. Desse
desenvolvimento, associada às re-
92
História
modo, como pudemos perceber, essa estratégia de
desenvolvimento condicionada pelas expectativas do
mercado foi responsável por uma trajetória de baixo
crescimento econômico ao longo da década de 1990. A
implantação desse modelo refletiu a incapacidade de
articulação de um projeto de desenvolvimento de longo prazo. Nesse contexto, os agentes privados foram
estimulados a guiar suas decisões pelos princípios de
liquidez, centrando-se essencialmente no curto prazo.
Temos como resultado desse processo o agravamento
da desestruturação do mercado de trabalho brasileiro,
como veremos mais detalhadamente à frente.
A tabela abaixo mostra que, além do baixo crescimento anual da atividade econômica no período, há
uma intensificação do desemprego aberto, que passou de 5,44% no primeiro ano de governo de FHC para 8,35% em 1988, último ano do primeiro mandato.
Tabela 1 Taxa de desemprego e
variação do PIB real
(1990-1999)
Ano
Taxa de Desemprego
Variação do PIB
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
4,65
5,24
6,14
5,75
5,44
4,96
5,81
6,14
8,35
8,26
-4,35
1,03
-0,54
4,92
5,85
4,22
2,66
3,27
0,13
0,19
Fonte: IBGE/PME – Elaboração da autora
Enquanto o goverDesregulamentação
no buscou privilegiar
a atuação dos agentes
e flexibilização
privados, com suas deconstituíram
cisões de curto prazo,
a abertura comercial
as bases do
expôs o setor produtinovo modelo de
vo nacional, sobretudo a indústria, a uma
desenvolvimento,
concorrência
desidentificadas como
truidora, que levou à
desnacionalização ou
instrumentos-chave
a um fechamento de
para resolver
parte de seu aparelho.
Outra face da mesma
os supostos
moeda (ou a mesma
impasses do
face da mesma moeda) foi a enxurrada de
desenvolvimentismo
produtos importados,
que foi responsável
pela substituição de boa parte da produção nacional em vários setores (SOUZA, 2007). Considerando
ainda que na década de 1980 a estrutura produtiva
brasileira ficou praticamente estagnada, numa fase
em que surgiam diversos avanços tecnológicos e a
modernização das plantas produtivas pelo mundo,
os efeitos fragilizadores, e mesmo destruidores, da
nova política comercial sobre ela foram ainda mais
impactantes.
Essa nova realidade econômica impôs às empresas que se mantiveram instaladas no Brasil um
rearranjo, a partir de um forte processo de reestruturação produtiva. As empresas promoveram
significativos cortes de pessoal, se desverticaliza-
93
132/2014
ram (5), centraram o foco de suas atividades em
que grandes empresas ocupam na acumulação casegmentos de mercado nos quais possuíam maior
pitalista, já que essas pequenas e médias empresas
capacidade de competição, redefiniram produtos
voltadas para o ramo de serviços, além de se carace processos, adotaram técnicas de produção flexíterizarem pela baixa remuneração, como apontou
veis, poupadoras de mão de obra,
Dedecca, se inseriam numa posição
e pressionaram pela flexibilização
de subordinação ao grande capital,
das relações com seus trabalhadocontribuindo para baratear seus
A polaridade entre
res. Foi posto em prática, também,
custos com mão de obra e direitos
o “voluntarismo”
um acentuado processo de destrabalhistas.
centralização produtiva, transfeDesse modo, percebemos que o
de outrora e a
rindo-se as sedes das fábricas para
modelo econômico adotado, além
construção de um
locais com níveis pequenos de rede estabelecer uma forte mudanmuneração e organização da força
ça na orientação da forma de o
Estado moderno
de trabalho e elevados incentivos
Estado intervir na economia, profoi defendida
fiscais. Nesse contexto, essas novocou uma desestruturação do
vas ocupações, ainda que ligadas à
setor produtivo, favorecendo o
de tal modo que
atividade industrial, são cada vez
setor financeiro da economia em
FHC elegeu a
mais instáveis e precárias. Segundetrimento do setor produtivo, ao
do dados da Pesquisa Nacional por
mesmo tempo em que deslanchou
era Vargas como
Amostra de Domicílios (Pnad), o
um movimento de reestruturação
alvo, promovendo
grau de formalização da indústria
e concentração do capital produde transformação caiu de 72,5%,
tivo, com constante pressão para
ataques aos direitos
em 1989, para 62,9%, em 1999.
a redução dos custos do trabalho.
trabalhistas
Esse processo teve como conAssim, fica aparente que as iniciasequência o que foi chamado de
tivas pró-mercado e a abertura às
“especialização regressiva”, pois a
finanças globais tiveram um efeiestrutura produtiva brasileira procurou se concento negativo sob a perspectiva produtiva, já que os
trar prioritariamente em setores intensivos e em refluxos de capitais entrantes não foram capazes – e
cursos naturais e mão de obra, para os quais o país
não tinham mesmo a intenção – de financiar investeria, por “vocação”, melhor capacidade de concortimentos necessários para um projeto de desenvolrência – abdicando, para tanto, do investimento em
vimento mais efetivo.
setores industriais mais dinâmicos e assentados em
* Tamara Naiz Silva é mestre em História pela
um uso mais intenso de tecnologia e capital.
Universidade Federal de Goiás
Esses elementos juntos determinaram uma
marcada modificação na estrutura ocupacional, caracterizada pela crescente participação dos setores
terciários, e em pequenos e médios empreendimenNotas
tos (6).
Os mecenas desse tipo de desenvolvimento de(1) Este artigo faz parte dos estudos, análises e resultados obtidos
fendiam que o processo era positivo e expressava
na pesquisa da dissertação de mestrado Financeirização ecoa emergência de uma sociedade de “serviços monômica e mercado de trabalho no Brasil, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
dernos”, alicerçada numa forma de organização
de Goiás, sob orientação do professor Dr. David Maciel.
econômica menos concentrada e contribuiria para
(2) Refiro-me ao processo indiscriminado de abertura financeira,
a geração de emprego e renda. Todavia, a experiênà implementação do combate à inflação ancorado na moeda
cia brasileira nos anos 1990 mostra que a grande
sobrevalorizada e nas elevadas taxas de juros e à desnaciomaioria das ocupações foi formada por empreennalização de segmentos econômicos, inclusive por meio da
privatização de importantes empresas estatais, processos
dimentos pequenos e voltados para o consumo das
que levaram a um movimento de reestruturação produtiva.
famílias e indivíduos, tendo como marca dessas
(3) Essa integração foi estimulada pelo chamado Consenso de
ocupações o “baixo rendimento e a pouca qualifiWashington, orquestrado principalmente pelo Banco Mundial
cação, justificadas pela baixa produtividade obtida
e Fundo Monetário Internacional (FMI) no processo de renenesse tipo de atividade” (DEDECCA, 2005, apud
gociação das dívidas externas dos países subdesenvolvidos.
Diante do retorno da liquidez ao cenário financeiro internacioSOUZA, 2007, p. 52).
nal, os países em desenvolvimento construíram uma institucioAssim, se torna difícil a compreensão de que esse
nalidade que garantiu as condições de viabilidade do regime
movimento tenha de fato reduzido o espaço central
94
História
financeirizado, acreditando que qualquer obstáculo ao fluxo
de capitais seria contrário aos interesses nacionais de desenvolvimento e modernização.
(4) Segundo o documento Nova Política Industrial: Desenvolvimento e competitividade a nova política para a indústria desdobrava-se nas seguintes linhas mestras: 1) Promoção de
competitividade; 2) modernização empresarial e produtiva;
3) redução do “Custo Brasil”; 4) criação de ambiente institucional favorável a maior competitividade; e 5) estímulo à
educação e qualificação do trabalhador.
(5) A literatura sobre o tema apresenta que o movimento de
desverticalização das grandes empresas foi amplamente
marcado pela terceirização de diversas atividades e pela
recorrente utilização da subcontratação em substituição à
contratação direta da mão de obra. Dessa forma, as grandes empresas conseguiram flexibilizar o uso da força de
trabalho e aumentar a produtividade, transferindo custos e
responsabilidades trabalhistas para as subcontratadas (na
maioria das vezes, conta própria ou pequenos empregadores).
(6) A partir dos dados da PME/IBGE é possível perceber como
as modificações estruturais da economia brasileira impactaram na estrutura ocupacional das regiões metropolitanas no
período 1991-1998, e indicam que a participação dos ocupados na indústria de transformação caiu 3,81 pontos percentuais (passando de 18,67 em 1991 para 14,86 em 1998),
enquanto no setor de serviços ela se elevou 3,97 pontos entre o início e o término do período abordado (passando de
49,78 em 1991 para 53,75 em 1998).
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95
132/2014
A esquerda brasileira e o
marxismo contemporâneo
(1)
João Quartim de Moraes*
Wilson Dias/ABr
Marcha de Abertura dos Fóruns de Porto Alegre e Canoas
Após os anos infames da década de 1990, o
movimento de ideias marxistas reafirmou
sua presença no pensamento brasileiro,
notadamente junto à geração mais jovem
96
Teoria
O
Reconfiguração da esquerda
metido com a herança da grande Revolução de Outubro 1917, quem ampliou sua influência na esquerda
brasileira. Nos meios intelectuais e no movimento estudantil, a defecção dos que estavam ligados ao “Partidão” foi amplamente compensada pelos militantes
da nova geração, aos quais o marxismo proporcionou,
a despeito de sua limitada presença na política partidária, os instrumentos teóricos para compreender e
desmistificar, durante aqueles anos infames, a lógica
antropofágica do capital financeiro.
fato de que um movimento revolucionário tenha sido aniquilado não lhe tira a importância histórica nem muito
menos a grandeza moral. Na memória
coletiva da esquerda brasileira, a luta
armada de 1968-1975 se inscreve, em
que pesem seus erros e ilusões, como
uma corajosa rebelião contra um iníquo
e detestável regime de exceção. De
“Globalização” neoliberal
imediato, entretanto, o esmagae guerras coloniais
mento da luta guerrilheira e os duNos países mais
ríssimos golpes sofridos pelos coricos da Europa,
Os grandes retrocessos da hismunistas conduziram a um eclipse
tória
social da humanidade condas ideias marxistas e leninistas. A
os ideólogos do
temporânea estão estreitamente
fundação do Partido dos Trabalha“pensamento único”
articulados. Foi no Chile, sob a
dores (PT) em 1980, incorporando
bota de Pinochet, que os “Chicaforte componente operário mobiproclamavam que a
go-boys” aplicaram experimentallizado nas grandes greves nos suderrubada do muro
mente a política econômica que
búrbios industriais de São Paulo,
seria levada adiante na Inglaterra,
reconfigurou a esquerda brasileira,
de Berlim anunciava
a partir de 1979, pela ultrarreacioconduzindo a um declínio relativo
um mundo sem
nária Margaret Thatcher e logo em
da influência comunista. O próprio
seguida, pelo macarthista Ronald
marxismo, embora presente em
muros nem
Reagan, que chegou à presidênalgumas tendências do petismo,
fronteiras, em que os cia do Império estadunidense em
não chegou a pesar decisivamente
1980. O objetivo principal do comno pensamento ideologicamente
trustes guiar-se-iam
plexo de medidas impostas pelos
eclético do partido em seu todo,
apenas pela
dois parceiros no centro hegemôno qual preponderava a influência
nico do capitalismo internacional
da esquerda cristã. O Partido Colivre competição
era destruir o “WelfareState”, a fim
munista do Brasil (PCdoB), alvo
de reduzir os “custos sociais” da
principal do terrorismo de Estado
valorização do capital.
desde o início da Guerrilha do Araguaia, pesadaO recuo do movimento comunista europeu no
mente golpeado até os estertores da ditadura militar,
contexto da derrocada soviética de 1989-1991 farecompôs sua organização nos anos 1980, mas sua
cilitou novos ataques ao “WelfareState”. Nos países
influência sobre os intelectuais permaneceu limitamais ricos da Europa, os ideólogos do “pensamento
da, comparativamente à do PT.
único” proclamavam que a derrubada do muro de
No final daquela década, a crise letal do bloco soBerlim anunciava um mundo sem muros nem froncialista do Leste Europeu propagou perplexidade e
teiras, em que os trustes, cartéis e outros “conglomedesânimo no movimento comunista, em particular
rados multinacionais”, desvinculados de qualquer
junto às correntes identificadas ao eurocomunismo e
base nacional, guiar-se-iam apenas pela livre compeao “valor universal da democracia”. Não foi difícil à
tição. A esse conto de fadas, que prosperou mesmo
propaganda liberal difundir a ideia de que a derrocaem certos ambientes de esquerda contaminados por
da da URSS decorrera do “fracasso” da economia cendoutrinas social-liberais, foi dado o nome de globalitralmente planificada e, por conseguinte, comprovazação. Os marxistas desmistificaram-na, mostrando
ria também o do marxismo, do comunismo e da ideia
que ao influxo da “desregulamentação” do mercamesma de socialismo. O Partido Comunista Brasileiro
do de capitais, massas crescentes de investimentos
(PCB), dito “Partidão”, já há alguns anos em franca
especulativos sugaram parcelas cada vez maiores da
deliquescência, juntou-se às longas colunas de demassa da mais-valia internacional. A riqueza social,
sertores ansiosos por ser acolhidos pelos inimigos da
e sobretudo a miséria da grande maioria da humanivéspera. O PCdoB resistiu ao incessante fogo de bardade, ficou mais subordinada do que nunca às maniragem dos meios de comunicação a soldo dos donos
pulações dos vampiros das bolsas de valores.
do capital, mas foi o PT, ideologicamente descompro-
97
132/2014
A frenética ofensiva do capital financeiro provoChina. Na lista das agressões militares neocoloniais
cou o desemprego crônico de dezenas de milhões de
incluem-se também a Somália, o Sudão, o Haiti, o
trabalhadores, prioritariamente dos mais fracos e vulMali, o Tchad. Sem esquecer o apoio irrestrito e os
neráveis (turcos na Alemanha, norte-africanos e nearmamentos letais que o governo dos Estados Unigros na França etc.). A mão de obra estrangeira foi
dos proporciona aos “serial killers” que governam o
empurrada para fora, como laranja já espremida. Essa
Estado facho-sionista e promovem o lento, gradual e
é a causa da proliferação tentacular do racismo, da xeimplacável extermínio do povo palestino, encurralanofobia e do neofascismo em toda a Europa ocidental,
do no gueto de Gaza e no muro da Cisjordânia.
que contaminou aqueles setores do sindicalismo que,
A imensa regressão social provocada pelo neolipara defender o emprego, trocaram a luta de classes
beralismo suscitou na Europa e nos Estados Unido
pela caça ao imigrante. O muro do México (muito
mobilizações de protesto contra os banqueiros em
maior e mais mortífero do que o de
particular e o capitalismo em geral.
Berlim) é apenas o exemplo mais
Três delas tiveram forte impacto:
sórdido das novas barreiras policiais
a de 1999, contra a Organização
Os movimentos
que foram sendo erguidas, à mediMundial do Comércio em Seattle;
da que o “enxugamento” neoliberal
a de 2000 em Praga contra a reu“antiglobalização”
reduzia drasticamente a oferta de
nião do FMI em 2000; e a de 2001
opuseram um
empregos, mesmo os mais penosos
em Gênova contra a reunião do G8.
e insalubres.
Elas foram todas atacadas com fúcorajoso “não”
O desmantelamento da URSS
ria por forças policiais pesadamenà comemoração
rompeu o equilíbrio estratégico que
te armadas; em Gênova, eufóricos
ela vinha mantendo com o cartel
com a volta do milionário corrupto
indecente dos
imperialista agrupado na Otan sob
Berlusconi e seus sócios neofascisfinancistas
comando dos EUA. “Esquecida”
tas ao governo da Itália, os “carabida função “defensiva” em nome
nieri” e outros agentes da máquina
neoliberais. Mas
da qual tinha sido criada no início
repressiva mataram um manifespermaneceram no
da guerra fria, a Otan lançou uma
tante e feriram seiscentos (2).
série de expedições coloniais visanEsses movimentos “antigloestágio da revolta
do a recuperar algumas das posibalização” opuseram um corajoso
espontânea
ções perdidas para as revoluções
“não” à comemoração indecente
de libertação nacional vitoriosas na
dos financistas neoliberais. Mas
Ásia e na África a partir de 1949,
permaneceram no estágio da requando triunfou a grande revolução nacional-popuvolta espontânea. A influência que eles receberam
lar chinesa, dirigida pelo Partido Comunista.
da crítica marxista ao capitalismo não venceu a reAntes mesmo de que assentasse a poeira do muro
jeição que manifestavam pela teoria leninista do
de Berlim, os mercenários do Pentágono invadiram
partido revolucionário. Preferiram a doutrina da
o Panamá para prender o presidente Noriega (que
obsolescência da “forma partido”, nova versão do
conhecia a fundo as torpezas da CIA, com a qual haculto à espontaneidade, que corresponde ao caráter
via antes colaborado) e quebrar a espinha dorsal do
espasmódico do combate que travaram. Em 2011,
Exército panamenho, ainda impregnado do espírito
quatro anos depois do desencadeamento da crise
patriótico que lhe legara o coronel Torrijos. Foi só um
internacional do capital financeiro, o movimento
começo: o cartel da Otan invadiu o Iraque em 1991
“Occupy Wall Street” agitou a cidadela do dólar, sem
e ajudou a direita croata, ao longo dos anos 1990, a
afetar seriamente, porém, os pregões da bolsa. É
destruir a Iugoslávia. Em 2001, tomando por pretexque por trás de Wall Street está o Pentágono, bem
to o até hoje não bem esclarecido atentado dito das
mais difícil de ocupar.
“Torres Gêmeas”, que criou o clima de histeria propíA iniciativa “antiglobalização” de maior alcancio ao lançamento da Cruzada antiterrorista comance, da qual a esquerda brasileira participou decisidada pelo psicopata George W. Bush, os “aliados”
vamente, foi a organização do Fórum Social Mun(=Pentágono e satélites) despejaram um dilúvio de
dial, com o objetivo de reunir, sob o lema “um outro
fogo e explosivos no Afeganistão e outro no Iraque
mundo é possível”, “entidades e movimentos da
em 2003; em 2011 bombardearam a Líbia para apoiar
sociedade civil de todos os países do mundo”, reos terroristas a soldo dos sheiks do petróleo; quisepresentando as diversas correntes de opinião que
ram fazer o mesmo na Síria em 2012, mas recuaram
se opõem ao neoliberalismo. Os partidos, “enquanto
diante da firme oposição da Rússia, secundada pela
tais”, não foram convidados. As três primeiras reu-
98
Teoria
Anti-imperialismo e socialismo
Combinando forte planejamento estatal e estímulo aos
investimentos capitalistas, a China se tornou uma grande
potência econômica, emparelhando com os Estados Unidos
niões do Fórum ocorreram em Porto Alegre (2001,
2002 e 2003). Combinando atividades culturais,
políticas e artísticas, elas foram todas bem sucedidas, com presença crescente de militantes, notadamente de jovens. A de 2003 juntou mais de cem
mil participantes, vindos de 125 países. Elas prosseguiram nos anos seguintes, na Índia em 2004,
novamente em Porto Alegre em 2005, depois em
vários países da África, Ásia e América Latina, Brasil incluído. Algumas, ditas “policêntricas”, foram
desdobradas em eventos simultâneos em vários
pontos do mundo.
O largo e duradouro êxito dos fóruns
sociais deve-se em boa medida ao caráter
amplamente aglutinador de sua plataforma política e ao forte apelo mobilizador de
suas festas cívicas, abertas às mais diversas
manifestações da cultura popular de todos
os países. Essas características, entretanto,
explicam tanto o grande sucesso quanto
os limites do movimento. Este contribuiu
para formar a consciência anticapitalista
e internacionalista de uma nova geração
de militantes. A crítica ao neoliberalismo
é indispensável para se compreender a
lógica que permite a uma minoria de milionários vampirizar o trabalho e a riqueza
social. Mas para que um outro mundo seja
possível é preciso desmantelar a formidável máquina de dominação e exploração
que oprime a humanidade. Tarefa imensa,
para a qual não há receita pronta, mas que
não pode prescindir da crítica marxista ao
capital nem da teoria leninista da organização revolucionária.
A relação internacional de forças ainda é fortemente marcada pelas consequências do desastre soviético. Mas a situação dos anos 1990 foi alterada.
Embora continue acumulando tétricas montanhas
de cadáveres, com o concurso do facho-sionismo,
a Otan não é mais “dona do mundo”, como diziam
os sabujos do plantel midiático. Combinando forte
planejamento estatal e estímulo aos investimentos
capitalistas, a China se tornou uma grande potência
econômica, emparelhando com os Estados Unidos
num extraordinariamente curto prazo. Na Rússia,
Putin reconstituiu o Estado, prostituído pelo ladrão
Yeltsin, reaproximou-se da China e levou adiante
uma política anti-hegemônica, tirando seu país da
miserável situação em que o deixara o ébrio comandante da contrarrevolução de 1991.
Na América Latina, a eleição de Chávez à presidência da Venezuela em 1998 rompeu o muro neoliberal e
o isolamento de Cuba. Daí em diante, as vitórias eleitorais de Lula no Brasil em 2002; de Kirchner na Argentina em 2003; de Tabaré Vazquez no Uruguai em
2004; de Evo Morales na Bolívia em 2005; de Rafael
Correa no Equador; e de Daniel Ortega na Nicarágua
em 2006levaram à formação de governos de centro-esquerda ou esquerda, alguns com participação dos
comunistas. Eles promoveram, com maior ou menor
consequência, a redistribuição de renda, a melhoria
dos serviços públicos, uma política externa voltada
99
132/2014
As tendências
marxistas
minoritárias do
PT, bem como o
PCdoB, procuram
impulsionar um
programa socialista,
que pressupõe o
aprofundamento
da democracia, o
desenvolvimento
das forças
produtivas e o êxito
da luta
anti-imperialista
para a integração econômica regional e para a solidariedade contra
a hegemonia estadunidense e um
esforço – com resultados desiguais
e, no conjunto, insuficientes – para
impulsionar um desenvolvimento
econômico autocentrado e equilibrado. As referências teóricas e doutrinárias de vários partidos e movimentos que participaram destes avanços sociais e políticos combinam
ideias inspiradas do marxismo e da teoria leninista do
imperialismo com tradições revolucionárias regionais
(bolivarismo, indigenismo, sandinismo etc.).
No Brasil, doze anos de governo de centro-esquerda, com Lula e depois Dilma na presidência, puseram
marxistas e comunistas diante de uma situação política inédita desde o governo João Goulart. Para triunfar em 2002, e em seguida para governar, Lula teve de
fazer sérias concessões aos círculos dirigentes da burguesia. Elas não o impediram, porém, de levar adiante
programas sociais que arrancaram da miséria dezenas
de milhões de brasileiros e de pôr fim ao alinhamento
perante o bloco imperialista comandado pelos EUA. As
tendências marxistas minoritárias do PT, bem como o
PCdoB – integrantes do bloco de sustentação das duas
sucessivas presidências, cuja amplitude abriga interesses heteróclitos e muitas vezes conflitantes –, procuram
impulsionar um programa socialista, que pressupõe o
aprofundamento da democracia, o desenvolvimento
das forças produtivas e o êxito da luta anti-imperialista
pela soberania nacional no âmbito da integração econômica latino-americana.
Após os anos infames da década de 1990, o movimento de ideias marxistas reafirmou sua presença
no pensamento brasileiro, notadamente junto à geração mais jovem. Entretanto, parte dos intelectuais
marxistas e alguns agrupamentos comunistas perma-
100
necem hostis, em nome da pureza
doutrinária, a qualquer participação
na frente governamental. Reduziram com isso sua propaganda à
reiteração dos grandes princípios e
à denúncia das misérias do capitalismo. Na falta de uma tática concreta, a capacidade que têm esses
agrupamentos de influir no curso
dos acontecimentos é muito limitada. O avanço do estudo e da difusão
do marxismo é uma condição indispensável para a transformação socialista da sociedade brasileira, mas
só a luta política de massas abrirá
caminho para viabilizá-la.
João Quartim de Moraes – Filósofo
e Cientista político, professor
universitário, membro do Conselho
Editorial da Revista Crítica
Marxista e integrante do Cermarx
(Centro de Estudos Marxistas –
Unicamp)
Notas
(1) O presente artigo reelabora inteiramente tópicos de um estudo mais amplo, “Il marxismo in Brasile”, elaborado para
Karl Marx 2013, coletânea editada por Roberto Fineschi com
o objetivo de oferecer uma visão panorâmica da produção
teórica marxista em escala internacional durante a primeira
década deste século. A coletânea foi publicada em italiano
como número especial da revista teórica Il Ponte, LXIX (5- 6),
maio-junho 2013.
(2) Sempre indulgente com os crimes fascistas, o aparelho judiciário italiano inocentou a maioria dos 44 acusados pelas
brutalidades de Gênova; apenas sete foram condenados em
2013. A AmnestyInternational considerou a ação da polícia
neofascista de Berlusconi e seus sócios neofascistas “o mais
grave atentado contra os direitos democráticos num país ocidental desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A intenção
da frase é boa, mas qualquer que seja a extensão que se
confira ao termo “país ocidental”, ela certamente inclui Espanha e Portugal, que permaneceram sob poder fascista
até meados dos anos 1970. Quem sabe a grave omissão se
deva ao hábito mental dos humanistas liberais de identificar
“ocidental” a “democrático”. Omissão ainda mais reveladora
dos preconceitos “ocidentais” da AmnestyInternational é a
do massacre de outubro 1961 em Paris. Durante a guerra de
libertação nacional da Argélia, Maurice Papon, ex-colaborador dos ocupantes nazistas e chefe de polícia da região parisiense, decretou toque de recolher para os argelinos, que já
vinham sendo sistematicamente molestados pelos policiais.
No dia 17 de outubro, mobilizados para dissolver uma vasta
manifestação de protesto em Paris, os argelinos foram literalmente massacrados pelas tropas de Papon. No dia seguinte,
centenas de cadáveres boiavam no Sena.
Teoria
Sociedade dos Amigos de Lênin
Lançada em 6 de junho de 2014, a Sociedade dos Amigos de Lênin
(SAL) se propõe a estimular o estudo, a pesquisa e a divulgação do
pensamento de Vladimir Ilitch Ulianov, o Lênin, em especial nos campos
da economia política, da filosofia, da cultura, do Estado, da ciência
política, da experiência de transição à construção do socialismo e seus
desenvolvimentos na contemporaneidade. Realizada no auditório da sede
nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), em São Paulo, a
solenidade reuniu acadêmicos, estudantes e militantes progressistas. Na
ocasião, foram apresentados e debatidos o Manifesto de constituição
e a coordenação da nova entidade. Sérgio Barroso, diretor de
Estudos e Pesquisas da Fundação Maurício Grabois
(diretoria à qual a SAL é vinculada), comenta, nesta
entrevista, a ideia e os propósitos da Sociedade
Manifesto da Sociedade dos Amigos
de Lênin (SAL)
E
ste manifesto argumenta acerca da necessidade de criação de uma Sociedade
dos Amigos de Lênin, no Brasil. Baseando-se em debates da Fundação Maurício
Grabois, a ideia inspira-se na famosa
sugestão de Lênin preconizando a formação de um “Clube de amigos de Hegel”. Essencialmente, nossa proposta
pretende retomar as contribuições do grande teórico
e político russo, em dimensões prospectivas e contemporâneas.
1. A inteligência revolucionária da
nossa época
Em janeiro deste ano completaram-se 90 anos
da morte de Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido
101
132/2014
por Lênin. Diferentemente de anos passados, desta
vez registraram-se iniciativas celebrando o legado
desse gigante da luta revolucionária pelo socialismo.
Entretanto, mesmo em crise sistêmica da sociedade burguesa, persiste uma visão negativa do legado
teórico e político de Lênin e das épicas jornadas de
Outubro 1917, das quais foi o grande inspirador e
dirigente.
Sua firme oposição aos principais líderes da socialdemocracia europeia, que haviam capitulado perante
a deflagração, em agosto de 1914, da Grande Guerra
Mundial entre as potências imperialistas, tornou-o a
maior referência, entre os marxistas revolucionários,
no combate pela renovação e revigoramento do marxismo e pela construção de uma estratégia revolucionária adequada aos novos tempos caracterizados pela
transformação imperialista do capitalismo. Assumiram a fundo, no combate pelo socialismo, a defesa
da paz entre os povos, da independência nacional,
contra a guerra e o colonialismo.
Quando a Revolução soviética triunfou, a maior
parte da humanidade ainda vivia sob o domínio de
potências coloniais, notadamente da Inglaterra, a
França, a Alemanha e o Japão e Holanda etc. Foi ao
influxo das ideais de Lênin que os marxistas passaram a defender o direito das nações à autodeterminação e conclamaram a luta os povos dos países
dependentes e coloniais contra a opressão nacional.
Lênin era um radical inimigo do dogmatismo e
das ideias estereotipadas no interior do marxismo:
“A história em geral e a das revoluções em particular
é sempre mais rica de conteúdo, mais variada de formas e de aspectos, mais viva e mais ‘astuta’, do que
imaginam os melhores partidos, as vanguardas mais
conscientes das classes mais avançadas”. Absorvendo ideias pioneiras de Engels, ele travou intenso
combate à petrificação doutrinária da teoria marxista, que devia ser um “guia para ação”. Para ele, Marx
e Engels apenas haviam colocado as pedras iniciais
da construção naquele poderoso sistema teórico, cabendo às sucessivas gerações dar prosseguimento à
grandiosa obra. Se o marxismo não conseguisse dar
conta dos novos fenômenos que surgiam no movimento histórico, poderia degradar-se e transformar-se num dogma incapaz de intervir no curso dos
acontecimentos.
Lênin sugeriu ainda que as revoluções tenderiam
a eclodir nos elos mais fracos da cadeia imperialista,
não necessariamente onde o capitalismo fosse mais
avançado. Constatou que a lei do desenvolvimento
desigual criava possibilidades de rupturas revolucionárias, sustentando firmemente que o início da construção do socialismo poderia ocorrer num único país
ou num pequeno número de países localizados na
102
periferia do sistema. Isso foi plenamente comprovado por revoluções ocorridas no século XX.
2. A força atual da teoria leninista
Quase um século depois de sua publicação, O
imperialismo, etapa superior do capitalismo continua
sendo um instrumento teórico indispensável à compreensão da lógica concreta do capital. Segundo Lênin, o capitalismo central, mais avançado, se reproduz em permanente tensão entre a “decomposição”
e o “desenvolvimento”. “O imperialismo é a época
do capital financeiro e dos monopólios, que trazem
consigo, em toda a parte, a tendência para a dominação, e não para a liberdade. A reação em toda a
linha, seja qual for o regime político. (...) Intensificase também, particularmente, a opressão nacional e a
tendência para as anexações, isto é, para a violação
da independência nacional”. A dialética materialista
de Marx aponta os limites objetivos do modo capitalista de produção e suas rupturas recorrentes, mas
abstém-se de especular sobre seu colapso final.
A lei do desenvolvimento desigual do capitalismo – para Lênin uma lei absoluta – é fundamental
para entender as determinações que impulsionam a
dinâmica do sistema atual de relações internacionais
capitalistas.
A crise sistêmica do capitalismo que estamos
presenciando inscreve-se num ciclo de agudas crises provocadas pelo predomínio do capital financeiro
da época do imperialismo, que amplia o desenvolvimento desigual entre os países centrais e periféricos
e estimula os conflitos e as guerras neocoloniais. Lênin elaborou um novo aporte teórico ao entronizar a
questão nacional na revolução. Assim como a ideia
de formação social a partir da própria experiência
nacional mesclada por atraso secular e impulso industrializante.
A elaboração por Lênin de uma teoria da transição ao socialismo na Rússia Soviética, baseada
na análise no capitalismo de Estado e que naquele
período se expressa na construção da Nova Política
Econômica (NEP), tem uma dramática atualidade.
Para ele, a construção do socialismo em países periféricos deveria ser longa e conhecer várias etapas.
Num primeiro momento, combinariam elementos
socialistas e capitalistas; planejamento e mercado.
Outra importante ideia-força deixada por Lênin é que não existem modelos únicos de revolução
ou de transição. Cada povo, a partir de suas condições históricas e consciência social, deverá construir
os seus próprios caminhos. Nesse sentido, os partidos comunistas autenticamente revolucionários só
poderiam consolidar sua influência junto ao inaba-
Teoria
lável trabalho de massas; intervindo nos acontecimentos políticos e não fugindo deles.
Questão universal e perene da luta de classes no
capitalismo, o esquerdismo professava – e professa –
rejeição a quaisquer compromissos com outras camadas sociais ou forças políticas não comunistas. Lênin,
pelo contrário, advogava a necessidade de se estabelecer acordos e compromissos na luta política. A história do bolchevismo, antes e depois da Revolução de
Outubro – dissertou ele em 1920 – realizou--se cheia
de casos de manobras, de acordos e compromissos
com outros partidos, inclusive burgueses. Mas, sublinhava: “há compromissos e compromissos”. Atuar
e aprender no movimento com as massas, alterar
quando necessário as posições táticas; não temer “ficarmos sós” dadas as circunstâncias.
3. A fecundidade da
construção de Lênin nas adversidades
hodiernas
Do legado teórico marxista em Lênin sublinhamos principalmente: a) a lei do desenvolvimento desigual do capitalismo, compreendendo assimetrias
e disputas entre o núcleo dos países no estágio do
imperialismo, e destes com os países periféricos; b) a
análise da degeneração multiforme do capitalismo
central, até as guerras; c) a elaboração sobre a evolução do declínio civilizatório deste capitalismo, às
revoluções proletárias da nossa época; d) uma nova
teoria da transição ao socialismo; e) a sistematização
da teoria de conhecimento e a atualização da con-
cepção de materialismo; f)os inusitados aportes culturais captados no nascedouro da nova sociedade,
novos desafios da educação a partir de fundamentos
epistemológicos profundamente transformadores.
De outra parte, sabemos que Lênin passou a ser
“sacrificado”, muitas vezes em nome de um Marx
“metodológico” ou quase inofensivo. Coincidentemente à derrota da experiência da construção socialista, configurada numa bipolaridade sistêmica
mundial. Da omissão aos ataques a Lênin, setores da
intelectualidade buscam eliminar o ineditismo histórico da Revolução de Outubro de 1917.
Em fidelidade à nossa história, elencamos entre
as razões fundantes em nos dispormos a construir
uma Sociedade dos Amigos de Lênin recordando
igualmente o forte impacto obtido pelas ideias dele
entre pensadores e revolucionários no Brasil. O que
conclama reforçar em nossos dias a difusão de seu
pensamento, de sua obra, de suas realizações políticas. Ademais do perscrutar os caminhos da ideiaforça da transição socialista no Brasil.
Coordenação Nacional: Lígia
Maria Osório, Marly Vianna, Zoia
Prestes, Rita Coitinho, João Quartim
de Moraes, Augusto Buonicore,
Walter Sorrentino, Fabio Palacio, e
A.Sérgio Barroso (coordenador).
Nasce a Sociedade dos
Amigos de Lênin (SAL)
Aloísio Sérgio Barroso (foto ao lado), diretor
de Estudos e Pesquisas da Fundação Maurício
Grabois, comenta a ideia da Sociedade e os
passos que levaram à sua constituição
Portal Grabois – Como surgiu a ideia de fundar a
Sociedade dos Amigos de Lênin?
Aloísio Sérgio Barroso: A ideia tem mais ou menos um
ano. Surgiu nos debates da Fundação Maurício Grabois e em cursos da Escola Nacional do PCdoB sobre o
capitalismo imperialista da nossa época, tendo por base a definição de Lênin no livro O Imperialismo, fase superior do capitalismo, o que ele já então assinalara como
103
132/2014
a predominância do capital financeiro; assim
como o imperialismo como reação em toda
linha e promotor da tendência à guerra. Tanto a predominância se acirrou muito, como,
mesmo depois de duas guerras mundiais, se
expandiram as tentativas de recolonização.
Especialmente a invasão do Afeganistão em
2001 pelos Estados Unidos, a ocupação do
Iraque em 2003, bem como essas últimas
tentativas de guerra pelo imperialismo, em
particular o americano, mostrando mais do
que nunca a sua faceta agressiva, belicista.
Por outro lado, existe a crise atual do capitalismo,
que tem o componente da finança como fundamento
decisivo, que começou em 2007. Foi a partir dessas
discussões que apareceu a ideia da necessidade de
criar a Sociedade dos Amigos de Lênin. Concretamente, um programa de estudos e atualização abrange a economia política e o imperialismo, a filosofia
— o desenvolvimento do materialismo dialético, para
o qual o próprio Lênin deu uma grande contribuição
na sua época —, a parte de ciência política e Estado,
o debate sobre categorias da transição ao socialismo
na experiência de construção do socialismo, o capitalismo de Estado por um determinado período etc.
Ou seja: os elementos que compuseram a época de
Lênin, o desenvolvimento dessa teoria, formariam,
digamos assim, um ponto de partida para pesquisas
em torno da atualidade e permanência desses temas.
Como a Sociedade dos Amigos de Lênin funciona, concretamente?
A obra de Lênin, sua teoria e o olhar sobre o desenvolvimento dela, temos consciência disso, são muito
vastos. Temos muita consciência disso. As traduções
das obras completas de Lênin, em várias línguas,
passam de 50 volumes. Por exemplo: a tradução da
editora espanhola Akal, muito renomada, tem 57
volumes. Muito preciosa e detalhada. Estou comentando isso para dizer que muita coisa da obra de Lênin não se conhece ou pouco se tem conhecimento.
Muitos aspectos do seu pensamento são pouco
conhecidos, notadamente pelas novas gerações de
lutadores sociais. Somente pesquisadores honestos,
intelectuais vinculados ao movimento comunista, tiveram a oportunidade de se debruçar sobre ela com
muito detalhe e por um longo período. Por exemplo:
o professor Moniz bandeira, pesquisador e historiador brasileiro de primeira linha, seguramente é dos
pioneiros a difundir a biografia de Lênin no Brasil.
Ele diz, logo na abertura do seu livro Lênin. Vida e
obra (Paz e Terra, 1978): “[Lênin] Escreveu, em trinta anos, cerca de dez milhões de palavras, cada uma
intimamente vinculada ao processo da maior revo-
104
lução social da história.” Também Florestan Fernandes introduziu uma coletânea de artigos de Lênin
(1979). Os comunistas João Amazonas e Maurício
Grabois de lhe renderam homenagem, em A atualidade do pensamento de Lênin (1971).
Já o filósofo francês Lucien Sève, que deve ter próximo de 90 anos, um grande estudioso de Lênin, disse
que passou 50 anos da vida estudando sua obra. Em
outro ângulo, pouco se conhece um artigo de Lênin,
publicado no jornal Pravda em 1921, denominado
“Para o 4º aniversário da Revolução de Outubro”, em
que ele fala do imperialismo após a publicação do seu
clássico sobre o tema. Lênin diz no artigo da inevitabilidade de o imperialismo provocar guerras.
Ele escreveu isso em 1921, logo após a Primeira
Guerra Mundial, e mais à frente, em 1939, iniciava-se
a Segunda Guerra Mundial. Lênin estava convicto do
aguçamento das contradições interimperialistas, de
que elas prosseguiriam. É um texto pouquíssimo conhecido, debatido sobre esse ângulo, esse aspecto. Por
isso, a SAL terá como objetivo também a divulgação
de aspectos do pensamento de Lênin, de textos da sua
obra, no sentido de difundir o pensamento dele.
Há um ponto inicial para tratar de temas tão
vastos?
O nosso objetivo é claramente modesto, porém luminoso. Porque não se trata apenas de homenagear o nome desse grande pensador revolucionário e primeiro
estadista do socialismo do planeta. Trata-se, essa é uma
preocupação nossa, de constituirmos um núcleo de
pesquisas e, a partir disso, promover de debates, conferências, elaborações de textos, novas contribuições em
torno da obra do Lênin, nacionais e internacionais.
E fundamentalmente fazer reflexões sobre a incidência em aspectos contemporâneos dessa teoria.
Por exemplo: o problema da dominação imperialista
na América Latina hoje, vis à vis a nova experiência
de construção de governos progressistas. Sabemos,
a exemplo, que a tentativa de desestabilização da
Venezuela é um traço muito marcante na história
recente do continente latino-americano. E essa desestabilização, via golpe de Estado, tem um endereço
certo: o imperialismo norte-americano. Esses proQual o alcance pretendido para a Sociedade
blemas estratégicos, particularmente no nosso condos Amigos de Lênin?
tinente, tem muita relevância para
Estamos pensando como as peso direcionamento e consciência das
soas poderão se associar, se vinculutas de hoje.
lar, quais serão os mecanismos de
Todas as pessoas
algum compromisso dos interessaque têm interesse
A Fundação Maurício Grabois
dos. Vamos ter muita flexibilidade
promoveu recentemente uma
em relação a isso. Todas as pessoas
em conhecer,
atividade com esse conteúdo,
que têm interesse em conhecer, elaelaborar ou
não foi?
borar ou difundir questões acerca
Exatamente. Consideramos um
da obra de Lênin certamente vão
difundir questões
marco a vinda aqui no Brasil do
procurar a Sociedade, vão procurar
acerca da obra de
professor português José Barata
se inteirar sobre como podem conMoura, um filósofo e grande martribuir etc. Não precisa, evidenteLênin certamente
xista contemporâneo, a convite da
mente, ser especialista na obra de
vão procurar a
Fundação Maurício Grabois, em
Lênin. Basta ter interesse em co2010. Ele esteve conosco e fez uma
nhecê-la e difundi-la.
Sociedade, vão
exposição sobre Lênin e a filosofia,
Queria agregar que entre os teprocurar se inteirar
seus ensinamentos para hoje. Isso
mas propostos teremos também a
resultou em um livro, editado pecultura. Lênin foi um grande insobre como podem
la Editora Avante, em 2010 (Sobre
teressado, um grande estudioso
contribuir
Lenine e a filosofia. A reivindicação de
dos problemas da cultura da nova
uma ontologia materialista com projecsociedade. Existem entre nós comto), muito valioso porque analisa as
panheiros que estão pesquisando,
contribuições de Lênin sobre a filosofia, indicando os
debatendo isso. É um tema também disperso nas
desdobramentos na luta de ideias do nosso tempo,
obras de Lênin. Sabe-se pouco que esse tema
reflexões, enfim um balanço sobre o desenvolvimenteve um grande apelo para Lênin. A nova
to do seu pensamento filosófico.
cultura socialista, a cultura soviética,
Isso foi mais um componente que nos ajudou a
as suas bases, desenvolvimento etc.
refletir sobre a necessidade de que a Fundação Maurício Grabois disponha desse novo instrumental, elaMatéria originalmente
publicada no Portal
borando iniciativas sobre o pensamento de Lênin.
Grabois (www.grabois.
Queremos intensificar a reflexão, a contribuição no
org.br) em 06 de
sentido de procurar identificar as principais questões
junho de 2014
correspondentes ao desenvolvimento do pensamento marxista a partir de uma visão leninista contemporânea, com o objetivo de apontar as linhas das
posições revolucionárias transformadoras no século
XXI; que elas sejam avivadas, sejam colocadas em
discussão, noticiadas, difundidas para reflexão e atividade político-ideológica.
Quais serão os próximos passos da Sociedade
dos Amigos de Lênin?
Vamos divulgar o Manifesto tratando dos objetivos e
do esboço programático, e organizar as atividades da
Coordenação. É uma nova área da Fundação, de pesquisa, reflexão em torno das contribuições sobre o
desenvolvimento do pensamento de Lênin. Não tem
orientação pré-fixada, nada disso. Será um espaço fundamentalmente de reflexão e de pesquisa sobre a obra
do Lênin. Além da coordenação e do Manifesto, vamos
ter um espaço de divulgação no Portal Grabois. A ideia
é criar uma página específica para a Sociedade.
105
132/2014
A morte do touro Mão de Pau: o
encantamento de Ariano Suassuna
Joan Edesson de Oliveira*
E
Ariano buscava o Brasil real, diferente do Brasil
oficial. Ele perseguia “a pedra angular para a
futura edificação de nossa Pátria como Nação”
m um artigo publicado em 04 de julho de 2000, na Folha de S. Paulo, Ariano Suassuna faz uma referência ao
Cego Oliveira, músico e poeta popular do sertão cearense. Já bem velho,
em depoimento prestado ao cineasta Rosemberg Cariry, o cego declarou que “uma vez, na
hora de acabar o toque, cantei uma despedida
tão bonita que uma mulher disse: ‘Faz pena um
homem desse ter que morrer um dia!’”. Ariano,
em referência a isso, escreveu: “De minha parte, não sei tocar rabeca, não mereço comentário
tão belo e comovente...”.
Começo, então, pela morte, por vários motivos: porque o mestre Ariano encantou-se recentemente; porque a morte foi tão recorrente
na sua vida; porque o tema da morte foi sempre
presente na sua obra.
Acho que Ariano nasceu de fato aos três
anos de idade. Embora oficialmente nascido
em 16 de junho de 1927, penso que foi em 9 de
outubro de 1930, quando assassinaram seu pai
João Suassuna, ex-governador da Paraíba, que
Ariano acordou para a vida. A partir daí, essa
marca vida/morte se fez presente muito fortemente, no homem e na obra.
“Aqui morava um rei quando eu
menino
Vestia ouro e castanho no gibão, Pedra da sorte sobre meu destino, Pulsava junto ao meu, seu coração.
(...)
Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.
(...)”
106
106
A morte de João Suassuna se grudou nas retinas do menino, os olhos esbugalhados e apavorados do novilho novo, na ferra, o branco do olho
engolindo o mundo. Na anca direita, naquele distante outubro, o ferro da morte, sua proprietária;
na anca esquerda, a marca da freguesia, o sertão.
Ariano foi ferrado ali, bezerro ainda, o ferro em
brasa lhe marcou e ele carregou essas duas marcas com orgulho por todo o sempre.
A marca da freguesia foi, contudo, mais forte
que a marca de propriedade. Pertencia à morte, é
verdade, ela era a matriarca num mundo patriarcal, senhora de homens e bois e bichos vários; mas
vivia no sertão, sua freguesia, que cantou enquanto pode, nas suas quase nove décadas de vida.
Ariano foi cantor e arauto de um sertão medieval, mestiço, de uma mestiçagem violenta, forjada
no extermínio dos índios para ocupar os seus territórios com as fazendas de criar; uma mestiçagem
nascida do tronco e do chicote para que os negros
compreendessem que tinham dono, senhores de
vida e morte; uma mestiçagem que ocorreu sempre sob o domínio do branco, olho azulado, com
fumos de nobreza no sobrenome e nos baús
de couro abarrotados de ouro e prata.
Mas Ariano, ele próprio, era desses brancos, não era mestiço. Jamais quis sê-lo. Sabia o seu
lugar no mundo, pertencia à classe dos que
mandavam.
107
132/2014
Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de
Letras, uma das peças fundamentais para que o compreendamos melhor, afirma que,
Egresso do patriarcado rural
derrotado pela burguesia urbana
de 1889, 1930 e 1964, ingressei
no patriciado das cidades como o
escritor e professor que sempre fui.
Continuo, portanto, a integrar uma
daquelas classes poderosas (...). Sei,
perfeitamente, que não é o fato de
me vestir de certa maneira, e não
de outra, que vai fazer de mim um
camponês pobre.
Contudo, Ariano fez uma opção, a de se colocar
na defesa do povo brasileiro e da sua cultura. Mais
especificamente, em defesa do sertão e da sua cultura
popular. No mesmo discurso, afirma que, como “escritor pertencente a um país pobre e a uma sociedade
injusta”, está a serviço, convocado.
Pode até ser que o País objete que
não me convocou. Não importa:
a roupa e as alpercatas que uso
em meu dia a dia são apenas
uma indicação do meu desejo de
identificar meu trabalho de escritor
com aquilo que Machado de Assis
chamava o Brasil real e que, para
mim, é aquele que habita as favelas
urbanas e os arraiais do campo.
Para mim, essa fala sintetiza a vida e a obra de
Ariano Suassuna. Ele foi exatamente isso, um intelectual a serviço, um intelectual “convocado”. Muitos
poderão até torcer o nariz pelo uso do termo, mas ele
foi um intelectual engajado, em defesa do Brasil, do
sertão e da cultura popular.
Neste sentido, Ariano foi sempre radical e intransigente. De uma intransigência tal que o levou, várias
vezes, a ser incompreendido e atacado por alguns.
Agora mesmo, por ocasião da sua morte, alguns voltaram à carga: “Ariano não compreendia a diversidade
do Brasil; Ariano exagerava na sua defesa da cultura
popular; Ariano não conseguia enxergar além dos estreitos limites do termo ‘popular’”. Enganam-se todos, a meu ver. Ariano tinha a mais absoluta clareza
e o mais absoluto conhecimento sobre a diversidade
da nossa cultura e, se há algo de que não se pode acu-
108
sá-lo, é de reducionismo do termo “popular”. Nele, o
popular e o erudito se fundiram perfeitamente.
Ariano só pode ser compreendido dentro de sua
obra. A obra, por sua vez, só pode ser bem compreendida conhecendo a vida do seu autor. Quaderna, personagem central do Romance d’A pedra do reino, seria o
próprio Ariano? Quaderna parece, a mim, uma mistura de Quixote com Sancho Pança. Nele convivem um
mundo ideal e um mundo real, a fantasia quixotesca
com a realidade nua e crua de Sancho. E Ariano não
era exatamente assim? Não habitavam, nele, essas
duas metades? O que ele era, senão um sonhador com
o mais absoluto senso de realidade?
O Auto da compadecida pode ser situado no mesmo
campo. Ali, o sertão é retratado em toda a sua crueza,
um “sertão poento”, como ele gostava de dizer, duro, cru, propriedade da morte. Ao mesmo tempo, um
sertão de festa. O Auto é outra mistura de fantasia e
realidade, de uma realidade que beira a fantasia, de
uma fantasia que poderia perfeitamente ser real. Como isso é possível? Não sei. Como Chicó, “só sei que
foi assim”.
Assim também o erudito e o popular em Ariano.
Onde começa um e termina o outro, quem se arriscaria a dizer? No Movimento Armorial, rica e bela contribuição cultural, essa fusão se fez quase à perfeição.
Os ferros de marcar gado no sertão fazem parte do
armorial, bem como os reis das cavalhadas, os personagens dos reisados, as cortes presentes em tantos
dos folguedos populares do sertão. Talvez por isso, em
algum momento, tenham dito que Ariano se aproximava dos monarquistas. Ariano enxergava aquele
sertão medieval, e o medievo era espaço de reis e rainhas. Por isso, no sertão, ainda hoje, tantos signos e
símbolos remetam a isso. Ariano compreendeu, para
além do entendimento comum, o que estes signos e
símbolos representavam.
Há incompreensão também na afirmação de que
ele “exagerava” em defesa da cultura popular e no
ataque sistemático que fazia à chamada “cultura de
massas”; na defesa intransigente do que era “brasileiro” e no ataque aos estrangeirismos de qualquer
espécie.
Nunca consegui enxergar nisso qualquer “exagero”. Talvez, Ariano agisse no sentido da “curvatura da
vara” de Lênin. A cultura do povo, tão massacrada,
escondida, ridicularizada, precisava vir para o centro
do palco. Para isso, era necessário o “exagero” da sua
defesa, era necessário curvar a vara até o outro extremo, para que se encontrasse um ponto de equilíbrio.
O exagero, noutro sentido, integrava a obra de
Ariano. O exagero “rabelaisiano”, no dizer de Mikhail
Bakhtin. Os personagens mais importantes de Ariano
são rabelaisianos, não tenho dúvidas. Suas obras mais
Cultura
importantes remetem à ópera bufa, ridicularizando os poderosos. O riso, em Ariano, era
arma dos oprimidos, era o tapa na cara que os
opressores recebiam, por vezes, sem sabê-lo.
Obra complexa, múltipla,
recheada de símbolos, a de
Ariano.
O que eram as onças, tão presentes em
seus poemas? Morte, mulher, coragem, lealdade. Significavam cada uma dessas coisas
em cada tempo, às vezes mais de uma a uma
só vez. Em O mundo do sertão, o poeta canta:
Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e
destemida.
As onças de Ariano são douradas, amarelas, pardas, castanhas. Mas são sempre fêmeas, sejam a morte ou a mulher, a coragem ou a lealdade.
Ariano buscava o Brasil real, diferente do Brasil
oficial. Seguindo os passos de Machado de Assis, como afirmava, queria o Brasil real. Naquele discurso
de 1990, quando ainda tateávamos em busca de um
rumo, recém-saídos da noite da ditadura, Ariano perseguia
A pedra angular para a futura
edificação de nossa Pátria como
Nação. Uma nação na qual a
cisão atual seja substituída pela
indispensável identificação e
onde, pela primeira vez em nossa
atormentada História, o Brasil oficial
se torne expressão do Brasil real.
Agora, Ariano se foi. No último 23 de julho ele
foi, enfim, completar a trindade que se bateu para
compreender e defender a cultura popular e o sertão.
Juntou-se a Leonardo Mota e Câmara Cascudo que,
antes dele, palmilharam terrenos muito próximos, e
bateram-se dura e valentemente em batalhas muito
parecidas. Formam, agora, uma trindade popular sertaneja.
Sua morte deve ser motivo de tristeza, mas eu
prefiro celebrá-la, mais uma vez, na forma rabelaisiana de Bakhtin. As sentinelas feitas no sertão não são
momentos apenas de tristeza. Ali, ao redor do morto,
enquanto se o pranteia, também se contam as suas
histórias singulares, descambando quase sempre para
a pilhéria e o riso. O riso vence a morte, e a morte
nada mais é do que a promessa de um renascimento.
Ali, amigos, conhecidos, ou apenas o passante solidário, aguentam a noite inteira, movida a café, cigarro e
uma caninha, que ninguém é de ferro em vigília tão
longa. Quase sempre, no meio da sala da casa pobre,
o morto, arrumado em sua melhor roupa, espera o dia
seguinte, pois agora terá todo o tempo para esperar. Lá
fora, no riso e na pilhéria, sua obra parece continuar.
Creio que o sertão, desde 23 de julho, faz sentinela para Ariano. Para o romancista, para o teatrólogo, para
o poeta tão alto que passou quase despercebido. Sua
obra continua. Os versos que escreveu para o pai, inspirados na obra do poeta Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha, o Fabião das Queimadas, analfabeto e
alforriado com o dinheiro que ganhou como cantador,
bem servem agora para o próprio Ariano.
Silêncio. A serra calou-se
No poente ensanguentado.
Calou-se a voz dos aboios,
Cessou o troar dos cascos.
E agora, só, no silêncio
Deste sertão assombrado,
O touro sem sua vida,
Os homens em seus cavalos.
Mestre Ariano se enganou uma vez, quando afirmou, falando sobre o Cego Oliveira, que não merecia tão belo e comovente comentário. Enganou-se o
mestre. Faz muita pena um homem como ele ter que
morrer um dia.
* Joan Edesson de Oliveira é mestre em Educação
Brasileira, sertanejo e leitor do mestre Ariano
Suassuna
109
132/2014
Rui Facó, o marxismo
com a cara do Brasil
José Carlos Ruy
C
Rui Facó – O homem e sua
missão
Autor: Luís-Sérgio Santos
Ano: 2013
Págs: 275
Editora: Omni
Preço: R$ 30,00
Disponível em http://www.ruifaco.
com.br/artigoBiografiaRuiFaco.html
110
om o lançamento de Rui Facó (uma biografia) o homem e sua missão,
de Luís-Sérgio Santos, pode-se conhecer um pouco mais sobre
seu autor, Rui Facó.
Nascido em 4 de outubro de 1913, em Beberibe (CE), Facó foi um notável jornalista comunista cuja vida foi colhida, ainda jovem e no auge de sua
produção teórica e intelectual, quando o avião em que viajava de Santiago
do Chile à Bolívia caiu nos Andes peruanos, próximo ao vulcão Tacora, em
15 de março de 1963. Ele tinha apenas 49 anos de idade e viajava como
repórter do jornal comunista Novos Rumos e para representar o Partido num
congresso dos comunistas chilenos. Ele chegou nem mesmo a participar do
lançamento de Cangaceiros e Fanáticos, que ocorreu logo depois de sua morte,
em 26 de abril de 1963.
Rui Facó era filho de uma família de pequenos fazendeiros, militares
e intelectuais. Teve tios com importantes cargos na Segurança Pública no
Ceará e na Bahia. Outro tio, Américo Facó, foi um poeta respeitado e amigo
de Carlos Drummond de Andrade, que dedicou a ele o livro Claro Enigma
(1951).
Ele mudou-se para Salvador (BA) em 1936, para terminar o curso de
Direito. E, na capital baiana, encontrou o Partido Comunista do Brasil. “Em
1935, a faculdade tinha uns quarenta jovens comunistas, militantes que se
reuniam diariamente”, diz Luís-Sérgio Santos. Esse número diminuiu bastante depois do levante da Aliança Nacional Libertadora, em novembro de
1935. Mas Rui Facó, que se manteve filiado ao partido, teve forte atuação na
imprensa baiana, trabalhando nos Diários Associados e no jornal A Tarde. Nos
anos 1930, participou de Seiva, a revista dos comunistas; depois esteve em
publicações partidárias como Continental (anos 1940), Estudos Sociais (anos
1950 e 1960), A Classe Operária, Novos Rumos (desde a fundação, em fevereiro
de 1959, até sua morte, em 1963) etc.
Toda essa atividade jornalística despertou o historiador (afinal, são atividades muito parecidas, uma voltada sobretudo ao relato do presente, e
a outra à compreensão do passado) e o teórico marxista. Caráter teórico,
aliás, fortalecido nos cursos em que participou principalmente na União
Soviética, onde também exerceu funções profissionais na rádio Moscou, em
programas dirigidos ao Brasil.
O foco profissional de Rui Facó foi múltiplo, unificado pelos interesses
e pela política do Partido. Ele foi, por exemplo, um dos roteiristas (com
Jorge Amado e Astrojildo Pereira) do filme Vinte e Quatro anos de luta (1946),
dirigido pelo cineasta comunista Ruy Santos. Foi também tradutor de livros
marxistas, entre eles (com Josué de Almeida e Almir Matos) da História
do Partido Comunista da União Soviética, lançado em português pela Editora
Vitória em 1962.
As referências sobre a vida de Rui Facó são escassas, e o livro de Luís-Sérgio Santos preenche esta lacuna. Com a morte de Rui Facó, naquele
acidente aéreo em 1963, o marxismo perdeu uma de suas promessas mais
veementes de desenvolvimento a partir do exame da realidade brasileira
e suas contradições. O conhecimento de sua vida, suas lutas, seu espírito
aberto e brincalhão, solidário e conceitualmente rigoroso pode ser fonte de
inspiração para a continuidade e o aprofundamento da luta teórica que enriqueça o marxismo com feições brasileiras.
LIVROS
Blogueiros, uni-vos
(mas nem tanto...)
Felipe Bianchi e Altamiro Borges
C
Blogueir@s, uni-vos (mas
nem tanto...)
Autor: Felipe Bianchi e
Altamiro Borges
Ano: 2014
Págs: 176
Editora: Anita Garibaldi
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om o advento da internet, está em curso uma “revolução”
nos meios de comunicação. As tiragens dos jornais e revistas despencam no mundo inteiro e vários veículos impressos já faliram ou migraram para a mídia digital. Os efeitos deste
tsunami também se fazem sentir nas emissoras de rádio e televisão, com a queda de audiência e a migração – principalmente
dos jovens – para as telinhas dos computadores, tablets e celulares. O bilionário mercado publicitário, que garante os altos lucros
da mídia monopolizada, sente o impacto nas placas tectônicas.
Diante deste cenário, os barões deste setor se utilizam de todos os
expedientes para salvar o seu modelo de negócios e para manter
os seus impérios midiáticos.
Eles se sentem incomodados com o florescimento da blogosfera e das redes sociais. É certo que a internet não supera o poder
dos monopólios da mídia. Tanto que vários países discutem novas
leis para regular este setor estratégico, que hoje coloca em perigo a
própria democracia. Até a “chavista” Rainha Elizabeth II acaba de
aprovar normas rigorosas para a mídia impressa no Reino Unido.
Na América Latina, vários governos progressistas sentiram a força
desestabilizadora e golpista da velha imprensa e também adotaram legislações para coibir a ditadura midiática. O Brasil, infelizmente, está na “vanguarda do atraso” no que se refere à adoção
de uma lei para a democratização dos meios de comunicação.
Enquanto as mudanças legais não vingam, os ativistas digitais
vão desempenhando o papel de uma guerrilha, fazendo o contraponto ao exército regular dos impérios midiáticos e reforçando
a luta pela democratização da comunicação no país. Na eleição
presidencial de 2010, por exemplo, eles ajudaram a desmascarar
várias farsas montadas pela mídia tradicional, como no famoso
episódio da “bolinha de papel” que atingiu a careca do candidato
preferido da velha imprensa. Neste esforço, a blogosfera brasileira
inclusive percorre um caminho inédito no mundo, tentando dar
maior organicidade à sua atuação. Respeitando as divergências,
ela procura construir a unidade na diversidade para aumentar sua
força!
O livro Blogueir@s, uni-vos (mas nem tanto...) é um esforço para
entender esta realidade dinâmica, contraditória e apaixonante.
Ele serve de roteiro para o debate e como um passo inicial e parcial
no estudo das mudanças em curso. Além de analisar os impactos
da internet no mundo e no Brasil, ele relata a experiência da blogosfera brasileira. Os depoimentos de vários ativistas digitais, que
atuam com coragem e combatividade na luta de ideias, mostram
que a riqueza deste movimento sui generis está exatamente na
sua diversidade. As resoluções dos quatros encontros da chamada
blogosfera progressista, ou simplesmente “blogprog”, ajudam a
fixar a memória deste movimento ousado e unitário.
* Apresentação do livro “Blogueir@s, uni-vos (mas nem tanto...)”, publicado
pelo Centro de Estudos Barão de Itararé. Adquira o seu exemplar:contato@
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