estado/economia/páginas 28/09/14

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estado/economia/páginas 28/09/14
B8 Economia
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O ESTADO DE S. PAULO
DOMINGO, 28 DE SETEMBRO DE 2014
Um olhar sobre
a gestão pública
Entrevista ✽
Bernard Appy
✽ Economista pela Universidade de
São Paulo. Ajudou a fundar E3, que
deu origem a LCA Consultores. De
2003 a 2009, foi secretário Executivo
e de Política Econômica do Ministério
da Fazenda e presidiu o Conselho
administração do Banco do Brasil.
TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO-9/10/2012
‘TEMO QUE
A CARGA
TRIBUTÁRIA
AUMENTE’
Novas despesas e ajuste nas contas
públicas podem exigir mais impostos
Alexa Salomão
Ricardo Grinbaum
Quando Luiz Inácio Lula da Silva
ganhou as eleições, em 2002, o economista Bernard Appy foi para o
governo com uma missão que o
tempo mostrou ser espinhosa: fazer a reforma tributária. Implantou várias medidas que arejaram a
cobrança de impostos, mas saiu
em 2009 sem mudar as grandes distorções tributárias do País.
Appy agora prepara-se para iniciar uma nova fase. Está deixando
LCA Consultores, empresa que ajudou a criar e que tem como sócio
Luciano Coutinho, o presidente do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES).
“Vou prestar consultoria em gestão pública, mas não vou para o governo e estou pensando se abro
uma empresa”, diz. Ele ainda se
preocupa em mudar a estrutura tributária e fiscal do País. Deu contribuições aos candidatos à Presidência. “Nosso padrão de política fiscal é uma armadilha de baixo crescimento”, acrescenta.
A seguir, os principais trechos da
entrevista que concedeu ao Estado.
● Quais seriam as reformas que o próximo governo deveria adotar como
prioritárias?
Pela minha formação, certamente a reforma tributária e, dentro
dela, acho que o ICMS (Imposto
sobre Mercadorias e Serviços) é
um tema importante, que também envolve a guerra fiscal. Outra questão é que Estados ainda
tributam investimento. Mas não
tenho propostas, tenho princípios. Temos que harmonizar a tributação. Pessoalmente, acho que
tem que desonerar o trabalho formal em grandes empresas – ter
mais empresas grandes com empregados formais é bom para o
País crescer; reformar o PIS/Cofins (contribuições com fins sociais); repensar a tributação de
micro e pequena empresas. Tem
uma agenda razoável. Não vai ser
possível fazer num só governo,
mas o objetivo é tornar o País
mais eficiente.
● Entra governo e sai governo, todos
dizem que a reforma tributária é necessária, mas não acontece.
Acho que a gente está amadurecendo. A chance de ser feita é bem
maior agora. No caso do ICMS, no
que se refere à guerra fiscal, há um
maior grau de maturação na discussão que pode legalizar a concessão
de benefícios fiscais.
Sul, por sua vez, dá incentivo para
atrair a montadora GM, que deveria
estar em São Paulo. Qual o efeito final? Eu tenho trigo bruto saindo do
Sul e indo para São Paulo, quando
deveria estar saindo macarrão. E tenho autopeças saindo de São Paulo
para o Sul, e automóvel pronto voltando para São Paulo. Uma parte
enorme dos incentivos acaba virando custo de logística, o Estado não
explora as suas vocações e ainda induz a criação de uma estrutura produtiva ineficiente no País. Outra
questão: todo mundo pergunta porque que o Brasil é caro. Aí está uma
razão. Não estou dizendo que não tenha de ter política de desenvolvimento regional. Pelo contrário. Toda a discussão da reforma tributária
passa por isso. Se olhar a literatura
internacional, vai ver que a melhor
política de desenvolvimento regional é dar infraestrutura para o Estado. Se reduzisse o custo de logística
teria um impacto automático. As empresas iriam para os Estados com
mão de obra mais barata.
● O sr. já mencionou que muita coisa
passa pelo Congresso e causa um dano
que a maioria nem sabe. O sr. teria algum exemplo?
Um exemplo recente foi a mudança
na Lei do Simples. Para alguns segmentos ficaram definidos benefícios maiores. Um advogado que se
constituir como uma empresa do
Simples e tiver uma receita de até
R$ 180 mil por ano, R$ 15 mil por
mês, vai pagar 4,5% de imposto sobre a receita dele. Parece bom, mas
o que isso tem de errado? Ele vai pagar muito menos imposto que um
advogado com a mesma renda empregado em um escritório de advocacia grande. Pela tabela, a alíquota
dele é de 27,5%. O custo desse empregado formal passa de 40% no total. Estão induzindo duas coisas
com essa mudança no Simples. Levam empregados a se constituírem
artificialmente como empresa, o
que se chama de ‘pejotização’. É
muito ruim. Daqui a pouco vai ter alguém da Receita questionando.
Também induz que o advogado saia
da empresa e monte um escritoriozinho, minúsculo, onde ele trabalhe
sozinho, muitas vezes de forma menos eficiente. O que acontece? Criamos um fosso entre o microempresário e o empregado formal de uma
grande empresa. E esse fosso impede que as pequenas cresçam. A brincadeira de que se a Microsoft tivesse começado no Brasil ainda estaria
num fundo de garagem é verdade.
Nosso sistema tributário induz que
quem comece no fundo de garagem
permaneça lá para sempre.
● Por causa do imposto?
● Os defensores da guerra fiscal di-
zem que ela melhora a distribuição
das empresas pelo Brasil. Isso não
dificultaria essa distribuição?
O benefício fiscal começou a ser
dado nos anos 80 pelos Estados
mais pobres, mas se generalizou.
Qual o problema? Exemplo: São
Paulo dá benefício para empresas
de moagem de trigo, mas quem
produz trigo é o Rio Grande do
Sul. A indústria de moagem não
deveria estar em São Paulo. Deveria estar no Sul. O Rio Grande do
Sim. Por causa da diferença tributária. Não estou dizendo que o pequeno não tem que ser menos tributado. Óbvio que tem. Mas precisamos
de um sistema harmônico. Você não
pode adotar faturamento como padrão. Vou dar um exemplo. Um restaurante está na primeira faixa do
Simples, de R$ 180 mil por ano. O
dono deve ter uma renda de cerca
de 10% disso, R$ 1,5 mil por mês, no
máximo R$ 3 mil. Agora, trato o dono do restaurante igual ao advogado
que tem a mesma renda. Mas o advo-
Reforma espinhosa. Há mais de uma década, Appy propõe mudanças na cobrança de impostos do País
gado não tem que comprar alimentos, pagar empregados como um dono de restaurante. Eu preciso de um
sistema que faça a diferença em função da renda e estimule as empresas
a crescer. A carga tributária vai aumentar com o crescimento da empresa, mas não dando saltos.
● Reduzir carga tributária saiu do radar?
Reduzir carga não é uma questão da
estrutura tributária. É uma questão
da política fiscal (política que define
como o governo arrecada e como
gasta). No curto prazo, não vejo como fazer. Ao contrário: meu temor é
que no curto prazo a gente tenha aumento de carga tributária para fechar as contas. No longo prazo, pode ser que volte a ter espaço. Se vocês quiserem, tenho outro tema.
● Qual?
Outra questão que preocupa muito
no Brasil – muito mesmo – é o desenho de política fiscal. A gente tem
uma estrutura com enorme rigidez
nos gastos. Funcionário público
não pode ser demitido, um sem número de fundos são vinculados para
financiar isso ou aquilo. Qual o problema? Quando você tem períodos
de crescimento, a receita cresce acima do PIB (Produto Interno Bruto), o Estado cria novas despesas rígidas e ainda cumpre a meta de superávit primário. Quando vem o período de desaceleração, a receita
cai. Como ajusta? Pode ajustar durante um tempo reduzindo o superávit primário, como está sendo feito
agora, mas tem um limite. Como você desmonta despesas rígidas que
criou? Você não desmonta. E como
resolve? Cortando investimento e
elevando carga tributária. Esse ciclo
se repete, no Brasil desde a Constituição de 1988. Agora decidiram
que 75% da receita do pré-sal vai para a educação e 25% para a saúde.
Quando o preço do petróleo estiver
bem, vou arrecadar mais e gastar
mais. Mas aí cai o preço do petróleo, a receita cai, mas tenho um gasto fixo. Como faz? Agora decidiu-se
alocar 10% do PIB para a educação
no Plano Nacional de Educação.
Não tem de onde tirar esse recurso.
Não tem. Está implícito na meta
que vai ter aumento de carga tributária – mas ninguém discutiu isso
no Brasil.
● O sr. desmontaria essas obrigações?
Idealmente, sim, mas lógico que não
pode de uma só vez. Você pode mudar a fórmula. Em vez de dizer X%
da minha receita vai para educação,
posso dizer que vou gastar o mesmo
valor do ano passado, corrigido pela
inflação, e depois discuto o que vou
aumentar na margem.
● Os sr. falou com algum candidato sobre isso?
Sobre isso não.
● Falou sobre outras coisas?
Passei para os candidatos algumas
sugestões de mudança de política tributária. Embora que seja muito difícil discutir isso tecnicamente durante a campanha. É um tema árido.
Mas no começo do ano que vem a
chance de se definir algo nessa área
é grande.
● O sr. também tratou essa proposta
fiscal com os candidatos?
Não. Não tem a menor chance em
tempo de eleição. É o contrário. O
pessoal está prometendo mais: A Ma-
rina (Silva) disse que vai dar 10%
da receita bruta para saúde. O Aécio (Neves), que vai manter a política de reajuste do salário mínimo.
Nesta época só se faz bondade.
● Do jeito que está, o governo vai ter
de aumentar a carga tributária ou vai
dar para manter?
Todo mundo sabe que vai ter de
ser feito um ajuste fiscal no começo do próximo governo. Está dado. Pessoalmente, eu não consigo
ver como fazer um ajuste de curto
prazo sem aumento de carga tributária. A outra opção, que considero a melhor: sinalizar de forma crível que você vai ter uma política
de contenção de despesas ao longo de todo o mandato, de forma
que ao final você vai estar numa situação fiscal mais equilibrada.
● Nesse caso, não precisaria elevar a
carga?
Parte do processo de ajuste inclui
elevar preços represados – principalmente energia elétrica e combustíveis. Na hora que você fizer,
tem um efeito semelhante a aumento de carga tributária. E tem
uma terceira opção que é mexer
em questões que têm impacto estrutural no fiscal: previdência social. Tem mudança que dá para fazer e tem impacto de longo prazo,
sinaliza uma sustentabilidade que
dá espaço para gerir a política fiscal no curto prazo. Mas, se o governo quiser continuar gastando
muito, usar 10% da receita para a
saúde, 10% do PIB para a educação, aí vai ter de aumentar carga
tributária. Toda bondade tem preço. Vai ser difícil para o ministro
da Fazenda no próximo governo.

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