Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos

Transcrição

Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos
Ministério da Justiça
Secretaria de Assuntos Legislativos
MECANISMOS JURÍDICOS PARA A MODERNIZAÇÃO E
TRANSPARÊNCIA
DA GESTÃO PÚBLICA
Volume I
Série Pensando o Direito, nº 49
Brasília
2013
Volume 49 I.indd 1
13/11/2013 17:01:25
PENSANDO O DIREITO, n° 49
© 2013 Ministério da Justiça
Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja
para venda ou qualquer fim comercial.
As informações expressas nesta publicação são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião
do Ministério da Justiça.
PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Dilma Vana Rousseff
MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA
José Eduardo Cardozo
SECRETARIA DE ASSUNTOS LEGISLATIVOS
SECRETÁRIO DE ASSUNTOS LEGISLATIVOS E DIRETOR NACIONAL DE PROJETO
Marivaldo de Castro Pereira
CHEFE DE GABINETE E GERENTE DE PROJETO
Priscila Spécie (2011-2012)
Ricardo de Lins e Horta (2013)
COORDENAÇÃO DA SECRETARIA:
Gabriel de Carvalho Sampaio
Anna Cláudia Pardini Vazzoler
Guilherme Alberto Almeida de Almeida
Luiz Antônio Silva Bressane
Márcio Lopes de Freitas Filho
Patrick Mariano Gomes
Ricardo Lobo da Luz
Sabrina Durigon Marques
EQUIPE ADMINISTRATIVA:
Ewandjoecy Francisco de Araújo
Maria Cristina Leite
NORMALIZAÇÃO E REVISÃO:
Hamilton Cezario Gomes
Marina Alvarenga do Rêgo Barros
DIAGRAMAÇÃO:
Cledson Alexandre de Oliveira
Geovani Taveira Lopes
ELABORAÇÃO, DISTRIBUIÇÃO E INFORMAÇÕES:
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Secretaria de Assuntos Legislativos
Esplanada dos Ministérios, Ed. Sede, bl. T, 4º andar, sala 434
Fone: 55 61 3429.3376/3114
Correio eletrônico: [email protected]
Internet: www.pensandoodireito.mj.gov.br
Facebook: www.facebook.com/projetopd
Twitter: @projetopd
Distribuição gratuita
Impresso no Brasil / Tiragem: 1ª Edição - 1200 exemplares
Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos
Mecanismos jurídicos para a modernização e transparência da gestão
pública. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. -- v. 1.
Brasília: Ministério da Justiça, 2013.
392 p. : il. – (Série Pensando o Direito, 49)
ISSN 2175-57060
1. Direito. 2. Gestão Pública 3. Concursos Públicos 4. Força de Trabalho 5.
Contratos Administrativos. I. Título II. Série
CDU 35.08
CDD 351.81
Catalogação na Fonte – Secretaria de Assuntos Legislativos
Volume 49 I.indd 2
13/11/2013 17:01:26
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Instituições Pesquisadoras:
Volume 49 I.indd 3
13/11/2013 17:01:29
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Volume 49 I.indd 4
13/11/2013 17:01:29
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
CARTA DE APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL
No marco dos seis anos do Projeto Pensando o Direito, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério
da Justiça (SAL/MJ) traz a público novas pesquisas, com um enfoque empírico e interdisciplinar, sobre temas
de grande impacto público e social, contribuindo para a ampliação e o aperfeiçoamento da participação no
debate sobre políticas públicas.
O objetivo central das pesquisas do Projeto é produzir conteúdos que possam ser aproveitados no processo
de tomada de decisão da Administração Pública na construção de políticas públicas. Com isso, busca-se
estimular a aproximação entre governo e academia, viabilizar a produção de pesquisas de caráter empírico
e aplicado, incentivar a participação e trazer à tona os grandes temas que preocupam a sociedade.
A cada lançamento de novas pesquisas, a SAL renova sua aposta no sucesso do Projeto, lançado em 2007
com o objetivo de inovar e qualificar o debate, ao estimular a academia a produzir e conhecer mais sobre
temas de interesse da Administração Pública e da sociedade e abrir espaço para que a sociedade participe
do processo de discussão e aprimoramento das políticas públicas. Essa forma de conduzir o debate sobre
as leis, instituições e políticas públicas contribui para seu fortalecimento e democratização, permitindo a
produção plural e qualificada de argumentos utilizados nos espaços públicos de discussão e decisão, como
o Congresso Nacional, o governo e a própria opinião pública.
O Projeto Pensando o Direito consolidou, desse modo, um novo modelo de participação social para a
Administração Pública. Por essa razão, em abril de 2011, o projeto foi premiado pela 15ª edição do Concurso
de Inovação na Gestão Pública Federal da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP).
Para ampliar a participação na construção de políticas públicas, os resultados das pesquisas promovidas
pelo Projeto são incorporados sempre que possível na forma de novos projetos de lei, de sugestões para
o aperfeiçoamento de propostas em tramitação, de orientação para o posicionamento da SAL/MJ e dos
diversos órgãos da Administração Pública em discussões sobre alterações da legislação ou da gestão para o
aprimoramento das instituições do Estado. Ademais, a divulgação das pesquisas por meio da Série Pensando
o Direito permite a promoção de debates com o campo acadêmico e com a sociedade em geral, demonstrando
compromisso com a transparência e a disseminação das informações produzidas.
Esta publicação consolida os resultados das pesquisas realizadas pelas instituições selecionadas nas
duas chamadas públicas de 2012. O presente volume está disponível no sítio eletrônico da SAL/MJ (http://
www.pensandoodireito.mj.gov.br), somando-se assim mais de 50 publicações que contribuem para um
conhecimento mais profundo sobre assuntos de grande relevância para a sociedade brasileira e para a
Administração Pública.
Brasília, outubro de 2013.
Marivaldo de Castro Pereira
Volume 49 I.indd 5
13/11/2013 17:01:29
O PAPEL DA PESQUISA NA POLÍTICA LEGISLATIVA
AGRADECIMENTOS
O Projeto Pensando o Direito não seria possível sem o inestimável empenho dos
parceiros da Secretaria de Assuntos Legislativos na execução do projeto. Agradecemos
primeiramente ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), nas
pessoas de Maristela Marques Baioni, Erica Massimo Machado e Lilia Maria Chuff Souto.
Estendemos também nossa gratidão ao trabalho de Alessandra Ambrosio, da Agência
Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores (ABC/MRE).
O volume que o leitor tem em mãos resulta do árduo trabalho não só das equipes de
pesquisa, mas de diversos outros profissionais envolvidos no processo de concepção e
elaboração das chamadas públicas, de composição de bancas de seleção de propostas
e de avaliação e monitoramento no curso das pesquisas. Para reforçar a interface entre
governo e academia, e possibilitar maior troca de conhecimentos, o Projeto inovou ao
envolver parceiros de governo em todas as fases de acompanhamento das pesquisas.
Agradecemos, assim, aos servidores Antônio Nóbrega, Roberto Vieira Medeiros e
Waldir João Ferreira da Silva Junior (Controladoria-Geral da União), Caio Fabiano, José
Cristiano Cruz e Celso Santos Carvalho (Ministério das Cidades), Celina Pereira, Juliano
Pimentel Duarte, Mariana Barbosa Cirne e Paula Albuquerque Mello Leal (Casa Civil
da Presidência da República), Joaquim José Soares Neto (Universidade de Brasília),
Juliana Fernandes Chacpe, Junior Divino Fideles e Sérgio Britto Filho (Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária - INCRA), Maria da Penha Barbosa da Cruz, Marianne
Nassuno, Valeria Porto e Yana Faria (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão) e
Maria da Piedade de Andrade Couto (Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça), por
terem dedicado preciosas horas de trabalho ao aperfeiçoamento das pesquisas do Projeto
Pensando o Direito.
Da equipe da Secretaria de Assuntos Legislativos, participaram os servidores Cristiana
de Oliveira Soares, Guilherme Augusto Moraes-Rego, Júnia Marília Pimenta Lages, Marcos
Alves de Souza, Natália Albuquerque Dino de Castro e Costa, Pedro Magalhãs Batista,
Raquel Rodrigues Amorim, Renata Cristina de Nascimento Antão e Sabrina Durigon
Marques, bem como o consultor Diego Augusto Diehl (PNUD).
Por fim, os trabalhos que resultaram nesta publicação não teriam sido possíveis sem
o comprometimento dos consultores Nayara Teixeira Guimarães e Fernando Nogueira
Martins Júnior (PNUD).
Volume 49 I.indd 6
13/11/2013 17:01:29
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
SUMÁRIO
Apresentação ......................................................................................11
PARTE I - Gestão da força de trabalho entre os Entes Federativos da
Administração Pública
Sobre a pesquisa .................................................................................15
1. Introdução .......................................................................................17
2. Desenvolvimento .............................................................................21
2.1 Resultados ..................................................................................................................21
2.2 Análise Comparativa dos Estatutos ............................................................................26
2.3 Dados Comparativos em Gráficos e tabelas dos formulários recebidos .........................43
2.4 Percepção dos Servidores no Formulário Digital .......................................................59
2.5 Pesquisa Jurisprudencial ...........................................................................................61
3. Discussão Crítica e Complexidades na Gestão de Pessoal ................64
3.1 Modernização e profissionalismo na Administração Pública: da incompletude da
última Reforma Administrativa ........................................................................................64
3.2 Direito Administrativo e complexidades da gestão pública de pessoal .....................67
3.3 Reflexões sobre Direito e Gestão: seminário Gestão Pública dos Entes federativos.....70
4. Proposta da Criação do Plano de Gestão da Força de Trabalho ......79
5. Conclusão ...............................................................................................................81
Referências bibliográficas ..................................................................84
Anexo I - Proposta de Emenda Constitucional
Anexo II - Projeto de Lei Complementar
PARTE II - O Processo Administrativo Disciplinar em uma análise
institucional: RFB, INSS e UFRJ
Sobre a pesquisa .................................................................................97
Volume 49 I.indd 7
13/11/2013 17:01:29
PENSANDO O DIREITO, n° 49
I - Projeto de pesquisa
1. Apresentação da Estrutura do Relatório Final ................................98
2. Objeto ..............................................................................................99
3. Especificação .................................................................................100
4. Problematização e casos ...............................................................101
5. Objetivos ........................................................................................102
5.1 Objetivo geral ............................................................................................................102
5.2 Objetivos específicos .................................................................................................102
6. Metodologia ...................................................................................103
6.1 Perfil Metodológico ...................................................................................................103
6.2 Limitação Espacial ....................................................................................................103
6.3 Critérios Metodológicos Básicos ..............................................................................103
7. Plano de trabalho ..........................................................................105
8. Equipe de execução .......................................................................106
8.1 Atribuições de Execução ...........................................................................................106
II - Da Pesquisa Empírica
1. Quanto aos trabalhos realizados - Questões gerais .....................107
1.1 Núcleo UFRJ .............................................................................................................108
1.2 Núcleo da RFB – Superintendência Regional da 7ª Região Fiscal .........................115
1.3 Núcleo INSS ..............................................................................................................116
2. Manutenção dos critérios metodológicos da pesquisa ................117
2.1. Quanto aos critérios de seleção por amostragem ...................................................117
2.2. Quanto às dificuldades de aplicação do Formulário On-line ..................................119
3. Dos resultados obtidos ..................................................................119
III - Conclusões e Propostas Finais
1. Conclusões Gerais e Específicas da Pesquisa ...............................131
2. Os Estágios de Aperfeiçoamento Institucional: a proposta de um
modelo ...............................................................................................136
3. Propostas de Aperfeiçoamento Institucional ................................140
3.1. Propostas em Organização Interna ........................................................................142
3.2. Propostas em Políticas de Gestão ...........................................................................144
3.3. Propostas em Alteração Legislativa .......................................................................145
3.4. Proposição de Novos Institutos ...............................................................................150
Volume 49 I.indd 8
13/11/2013 17:01:30
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Referências Bibliográficas ................................................................151
PARTE III - Critérios para indenização em processos de desapropriação
de imóveis rurais
Siglas e Abreviações ..........................................................................157
Introdução .........................................................................................161
Materiais e métodos: aspectos epistemológicos, teóricos e técnicomorfológicos .....................................................................................165
Resultados e discussão
1. Desapropriação por declaração de utilidade pública ...................172
1.1. Desapropriação por DUP – infraestrutura – ferrovia Transnordestina ..................171
1.2. Desapropriação por DUP – Estados Ceará e Pernambuco .....................................199
1.3. Desapropriação por DUP para fins ambientais .......................................................201
1.4. Desapropriação por utilidade pública – infraestrutura – barragens ......................217
1.5. O deslocamento forçado e as questões de gênero geração e raça/etnia ...............223
2. Desapropriação-sanção ................................................................227
3. As desapropriações e dinâmicas jurisdicionais e legislativas ......255
3.1. A desapropriação: das normas às práticas jurisdicionais ......................................256
3.2. A desapropriação e as dinâmicas legislativas: os casos do passivo ambiental e a
reforma agrária e os juros compensatórios na precificação dos imóveis e dos juros
compensatórios ..............................................................................................................276
Conclusão ..........................................................................................282
Referências Bibliográficas ................................................................288
PARTE IV - Processos seletivos para a contratação de servidores
públicos: Brasil, o país dos concursos?
1. Introdução: o Concurso e suas Ideologias .....................................293
1.1 Ideologia ....................................................................................................................293
1.2 As ideologias republicana, burocrática e meritocrática ...........................................293
Volume 49 I.indd 9
13/11/2013 17:01:30
PENSANDO O DIREITO, n° 49
1.3 As ideologias acadêmica e profissional, e suas críticas ...........................................294
1.4 A ideologia concurseira, uma hipótese para o Brasil ..............................................297
1.5 Plano do trabalho .....................................................................................................298
2. Os concursos no Brasil: revisão de literatura e metodologia ..........299
2.1 O que sabemos sobre concursos públicos no Brasil? .............................................299
2.2 Como aprenderemos sobre os concursos públicos? ................................................304
3. Os dados em 698 processos seletivos (2001 a 2010) ............................306
3.1 Base de Dados ..........................................................................................................306
3.2 Componentes dos Editais ........................................................................................ 307
3.3 Quem organiza o recrutamento? ..............................................................................309
3.4 Quem é Recrutado e como são remunerados? ........................................................312
3.5 Como são recrutados? ............................................................................................. 314
4. Estudos de caso de dois concursos: INSS e MS ............................320
4.1 Como foi feita a coleta .............................................................................................. 321
4.2 Narrativas sobre os concursos ................................................................................323
4.3 O estudo de casos propriamente dito ......................................................................326
4.4 O caso do Ministério da Saúde .................................................................................334
4.5 O caso do INSS .........................................................................................................338
4.6 Análise de algumas provas de concursos realizados pelos dois órgãos ................341
4.7 Algumas questões para pensar as metodologias de avaliação ...............................356
4.8 Concurso público: seleção autocentrada ou etapa inicial da vida funcional? .........358
5. A École Nationale d’Administration como expressão do modelo
Francês: uma comparação necessária .............................................361
5.1 Comparar, mas como? ............................................................................................. 361
5.2 A “grande escola da República” e seu concurso .....................................................362
5.3 Alguns números sobre os três concursos ............................................................... 368
6. Conclusão ..................................................................................... 371
Referências Bibliográficas ................................................................374
Apêndice - Uma proposta de marco legislativo para o Brasil
Volume 49 I.indd 10
13/11/2013 17:01:30
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
APRESENTAÇÃO
O presente volume I do número 49 da Série Pensando o Direito traz em conjunto os
principais resultados de quatro pesquisas das duas chamadas realizadas em 2012, que
tiveram como tema comum “Mecanismos jurídicos para a modernização e transparência
da gestão pública”.
A concepção dos editais propostos em 2012 consolidou uma série de discussões
mobilizadas ao longo de 2011, com momentos especialmente marcantes de avanços na
pauta de inovação e transparência da gestão pública para o Projeto Pensando o Direito
e para a Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL/MJ). No início de 2011, o Projeto foi
premiado durante o 15º Concurso Inovação na Gestão Pública Federal da Escola Nacional
de Administração Pública (ENAP), pela eficácia e eficiência no uso dos recursos para a
qualificação, mas principalmente pelo aspecto de democratização da política legislativa.
No final do ano, dia 18 de novembro de 2011, a Presidenta da República sancionou a Lei
de Acesso à Informação (Lei nº 12.527), que contou com a participação ativa da SAL/MJ
durante todo o período de elaboração do anteprojeto de lei, de política legislativa para as
tramitações no Congresso Nacional e de regulamentação pelo Poder Executivo. Nesse
contexto, muito restava (e ainda resta) a ser feito para o aperfeiçoamento da gestão pública,
também como fator de suma relevância para a consolidação do Estado Democrático de
Direito.
Para fortalecer o embasamento à tomada de decisão em políticas públicas voltadas
para a melhoria da gestão, a SAL/MJ, em parceria com o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, com o apoio da Secretaria de Gestão Pública (SEGEP) do Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), e em articulação com outros órgãos da
administração pública federal, definiu temas específicos da pauta da gestão pública para
a elaboração das chamadas de pesquisa de 2012 pelo Pensando o Direito: superação de
desafios no recrutamento e gestão de servidores públicos, na celebração e execução de
contratos, nas compras governamentais sustentáveis, na gestão eficiente de bens públicos,
entre outros. Em seguida, foram selecionadas propostas de pesquisa com enfoque empírico
e interdisciplinar, as quais foram objeto de intenso debate entre representantes de órgãos
públicos e as equipes selecionadas.
A primeira pesquisa constante deste volume chama-se “Gestão da força de trabalho
entre os entes federativos da Administração Pública”, realizada pela Universidade Nove
de Julho – UNINOVE sob a coordenação da Profª. Drª. Irene Patrícia Nohara. A equipe de
pesquisa investigou a questão do dimensionamento dos servidores públicos nas diversas
esferas de governo, comparou o regime jurídico dos estatutos dos servidores públicos de
54 entes federativos e mapeou o quantitativo da força de trabalho em função dos vínculos
estatutário, celetista e temporário. Foi discutida a complexidade na gestão de pessoal da
área pública e enfatizada a necessidade do estímulo à liderança e ao comprometimento
da força de trabalho, tendo sido propostas inovações oriundas de um Plano de Gestão
11
Volume 49 I.indd 11
13/11/2013 17:01:30
PENSANDO O DIREITO, n° 49
da Força de Trabalho capaz de articular, na Administração Pública, recursos humanos,
políticas públicas e orçamento.
Já a segunda pesquisa vai fundo em um dos aspectos relativos aos servidores públicos:
a questão disciplinar ou correicional. O trabalho da Faculdade Nacional de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – FND/UFRJ, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos
Alberto Pereira Bolonha das Neves e nomeado “O processo administrativo disciplinar
em uma análise institucional: RFB, INSS e UFRJ” trata da utilização desse instrumento
processual em três instituições, quais sejam, a Receita Federal Brasileira, o Instituto
Nacional de Seguridade Social e a Universidade Federal do Rio de Janeiro. O foco da
análise também se voltou para a construção de propostas que otimizem o procedimento
administrativo-disciplinar, com vias a resguardar os direitos do servidor processado
enquanto se buscar tornar mais eficiente a gestão de pessoas na Administração Pública.
A terceira pesquisa do volume foi empreendida sob coordenação da Profa. Dra. Maria
Sueli Rodrigues de Sousa, com sua equipe da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Piauí (UFPI), e tem como título os “Critérios para indenização no processo de
desapropriação de imóveis rurais nos estados do Piauí, Ceará e Pernambuco – os casos de
desapropriação-sanção, declaração de utilidade pública e para fins ambientais”. A pesquisa
traz uma análise das profundas diferenças nos procedimentos de fixação indenizatória
em situações de desapropriação feitos pelo INCRA, pelo DNIT/SETRANS e pelo ICMBio/
IBAMA, comparando, jurídica, administrativa e sociologicamente, como os direitos de
cidadãs (ãos) envolvidas (os) nos processos são garantidos – ou violados.
Por fim, a quarta pesquisa, desenvolvida pela Escola de Direito da Fundação Getúlio
Vargas do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), é
denominada “Processo seletivo para a contratação de servidores públicos: Brasil, o país
dos concursos?”. Coordenada pelo Prof. Dr. Fernando de Castro Fontainha, a investigação
recai sobre a forma de recrutamento de funcionários públicos de carreira, as ideologias
que perpassam esse processo, o que pensam os gestores públicos que lidam com o
tema, e como o modelo brasileiro de seleção dessa natureza se assemelha e pode ser
contrastado com o modelo francês.
Os trabalhos aqui reunidos são exemplos de como a metodologia científica levada à
sério, com autonomia, em investigações de caráter empírico e aplicado em matéria não
estritamente jurídica, podem contribuir para renovar a reflexão sobre a gestão pública
brasileira. Esperamos que o presente volume seja de grande valia à Administração
Pública, aos seus gestores, à política legislativa, aos estudiosos e a todos interessados
no assunto. Boa leitura!
Priscila Spécie
Gerente do Projeto (2011-2012)
Nayara Teixeira Magalhães
Consultora do PNUD
Ricardo de Lins e Horta
Gerente do Projeto (2013)
Fernando Nogueira Martins Júnior
Consultor do PNUD
12
Volume 49 I.indd 12
13/11/2013 17:01:30
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
PARTE IV
Processos seletivos
para a contratação de
servidores públicos:
Brasil, o país dos
concursos?
291
Volume 49 I.indd 291
13/11/2013 17:02:44
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Instituições Pesquisadoras:
Fundação Getúlio Vargas
Universidade Federal Fluminense
Coordenação:
Fernando de Castro Fontainha
Equipe de pesquisa:
Pedro Heitor Barros Geraldo
Alexandre Veronese
Camila Souza Alves
Beatriz Helena Figueiredo
Joana Waldburger
292
Volume 49 I.indd 292
13/11/2013 17:02:44
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
1. Introdução: o concurso e suas ideologias
Esta pesquisa é a resposta construída em parceria pela FGV Direito Rio e a UFF à
chamada formulada pela Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL/MJ) e pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolviento (PNUD) em torno do seguinte tema: “processos
de seleção para a contratação de funcionários públicos”, ou seja, concursos! Já não era
sem tempo a inclusão desta problemática na agenda das pesquisas institucionais na área
de Direito, uma das mais afetadas pela reflexividade do recrutamento por concurso nas
suas próprias fileiras profissionais. No Brasil, vemos a grande mídia anunciar, uníssona,
2013 como “o ano dos concursos”. Porém, não é de hoje que eles lotam salas de aula,
bancas de jornais, livrarias. O mercado da preparação e da organização de concursos é
um dos mais promissores e crescentes no Brasil, e um dos menos regulados. Esperamos,
com esta pesquisa, diminuir o gap entre o impacto deste fenômeno na nossa realidade e
o discurso científico produzido sobre ele.
1.1 Ideologia
O primeiro passo que daremos em direção a esta problemática é o da mobilização
de um conceito capaz de unificar estratégias individuais, crenças coletivas e projetos
institucionais: ideologia. Por ideologia, designamos um conjunto de atributos que se podem
ver majoritariamente presentes na forma como os diferentes atores envolvidos vivem o
processo de seleção por concurso. No capítulo 2 infra, voltaremos e trataremos mais
detidamente deste conceito. As expectativas, as obrigações, os discursos de legitimação e
a realização estratégica serão aqui representados por meio de uma ideologia de concurso.
Com inspiração weberiana, trataremos das diferentes ideologias identificáveis sobre o
tema como tipos ideais (WEBER, 1991), ou seja: fundaremos nossa análise em algumas
maneiras diferentes – porém, não interexclusivas – de se viver, pensar, falar sobre e
planejar institucionalmente os certames.
1.2 As ideologias republicana, burocrática e meritocrática
A primeira ideologia em questão é a ideologia republicana, sobre a qual se
debruçaram todas as iniciativas de diminuir o poder de nomeação das monarquias. É
pela ideologia republicana que a nomeação de funcionários diretamente pelo poder eleito,
ainda nos dias de hoje, será vista como resquício aristocrático. A força desta ideologia
é a legitimação do discurso do caráter antidemocrático das nomeações, superando até
mesmo o fato de, por vezes, este poder ser constituído democraticamente. No entanto,
os concursos públicos são apenas um efeito colateral de uma marcha pela superação da
aristocracia pela República: a marcha pela igualdade.
293
Volume 49 I.indd 293
13/11/2013 17:02:45
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Os certames são parte integrante de uma das mais significativas inovações gerenciais
trazidas pela modernidade ocidental: a direção burocrática racional-legal. Assim, o que
chamaremos ideologia burocrática será a tônica de uma nova racionalidade gerencial da
Âdministração Pública, a da gestão do Estado por um corpo de funcionários selecionados
por concurso público (WEBER, 1966). Portanto, o primado da técnica sobre a política
ocorreu nas democracias modernas sobretudo por meio da racionalização dos processos
de seleção de elites estatais, o que progressivamente – e não por acaso – se deu pela
glorificação da forma escolar como principal método de verificação de adequação entre
o postulante e o saber neutro e necessário para o exercício de determinada função.
Restava, ainda, o problema da necessária aproximação desta forma de seleção
de elites com outro valor de incontestável importância e que jamais poderia se chocar
frontalmente com a república: a democracia. Uma palavra recentemente criada veio a
representar o enlace entre estes dois titãs do ocidente moderno: a meritocracia. Pela
primeira vez escrita e publicada em 1956 no célebre The rise of the meritocracy1, ela
apareceu como característica de um novo modelo de seleção de elites que superava a
aristocracia do sangue e a plutocracia do dinheiro, instituindo uma verdadeira meritocracia
do talento. Evidentemente, se trata de uma ficção política escrita por um professor da
London School of Economics nos anos 50, que contava a história política da Inglaterra
do final do século XIX até o início do XXI. O argumento central de Young consiste na
impossibilidade de instauração de um governo “do povo”, mas na possibilidade de luta
pela maneira mais justa de se selecionar as elites.
Também destaca o autor que houve forças históricas que impulsionaram os
Estados Modernos em direção aos processos racionais de seleção devido ao receio de
desperdiçar talento, mercadoria primordial num contexto de luta entre potências que
vai dos conflitos imperiais franco-britânicos até as duas grandes Guerras Mundiais da
primeira metade do século XX. Até 1956, o trabalho de Young é um ensaio de história
política. A partir desta data, uma ficção política. Na ficção de Young, a Escola se torna a
instituição fundamental da República, e é ela que, por meio de um coeficiente atribuído,
determinará a posição social de cada um. A realidade foi outra, mas, por ora, ficamos com
a ideologia meritocrática como sendo aquela que vê, no resultado dos processos objetivos
de medição de performance, a expressão do mérito, definido por Young como “esforço +
talento”.
1.3 As ideologias acadêmica e profissional, e suas críticas
O concurso não é protagonista, mas coadjuvante, da igualdade republicana, como
já dito. A tentativa de universalização do saber e do savoir-faire necessário para a plena
integração do indivíduo no mundo público se deu escolar e profissionalmente. A escola
e o trabalho, representando as duas etapas fundamentais de socialização fora do seio
1 YOUNG, 1994.
294
Volume 49 I.indd 294
13/11/2013 17:02:45
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
familiar – a força sanguínea da aristocracia –, seriam as maneiras pelas quais as velhas
elites seriam varridas da história. Isto se deu ao longo de muitas décadas, e por meio de
práticas, crenças, discursos e projetos institucionais. Estava em questão a construção
social do Estado moderno.
Como corda estendida entre o mundo escolar e o profissional, os concursos
chegam à contemporaneidade com duas ideologias tributárias da sua história: a ideologia
acadêmica e a ideologia profissional. A ideologia acadêmica recruta os melhores egressos
do sistema de ensino. Ela primará por formas de avaliação similares às da escola ou
da Universidade, por ter docentes destas instituições nas bancas e por uma formação
profissional posterior ao certame. Este é o primado da meritocracia escolar. A ideologia
profissional vai recrutar os jovens profissionais mais competentes, que já apresentam as
habilidades necessárias ao exercício do futuro cargo. Ela primará por formas de avaliação
similares às rotinas de trabalho da futura atividade (provas práticas), por profissionais ou
mesmo membros já recrutados da carreira na banca e por um aprimoramento continuado
posterior ao certame. É o primado da excelência profissional. É fora do certame que ambas
as ideologias encontrarão sua potência: ou na trajetória confirmada no passado ou no
potencial demonstrado para o futuro. O presente nada mais é que uma etapa formal de
certificação. O funcionário público jamais tomará posse do seu cargo por ter “passado”
pelo/no concurso, pois este não fez mais que afirmar (ou confirmar) formalmente seu
mérito, externo ao certame.
Entretanto, foi justamente nos países que empreenderam com profundo afinco
estas duas ideologias que duras críticas apareceram, todas advindas em meados dos
anos 60 do século passado e da interseção entre a Sociologia e a Pedagogia.
Na França, muito embora a escola tenha tido estatuto de relevância desde a fundação
da sociologia (DURKHEIM, 1938, 1973), foi apenas em 1964 e 1970, respectivamente, que
Bourdieu e Passeron publicaram Les Héritiers e La Reproduction, firmando o paradigma
na sociopedagogia francesa sobre o tema. Numa sociologia de raiz determinista, os autores
identificaram na escola o novo monopólio da violência simbólica legítima, mantendo as
estruturas de poder da sociedade, objetivando e, ao mesmo tempo, ocultando a progressiva
desvalorização da cultura popular em prol do arbitrário cultural dominante. A força da
escola estaria, ainda, na capacidade de reprodução deste arbitrário cultural mesmo após
a cessação da ação pedagógica. Nem mesmo o contraponto interacionista de Boudon
(1979) foi capaz de conter o paradigma da reprodução no tocante à igualdade de chances
no sistema escolar francês.
Ao longo dos anos, chegou-se mesmo a radicalizar este paradigma em alusão à
“escola capitalista na França” (BAUDELOT; ESTABLET, 1971). Dentre os pesquisadores
dedicados ao tema na França, a insuficiência da meritocracia escolar na superação
da determinação aristocrática nunca saiu de pauta. Demonstrou-se a força da origem
familiar na determinação da futura posição social (THELOT, 1982), a primazia masculina
sobre as mulheres nas fileiras de ensino correspondentes às profissões mais valorizadas
295
Volume 49 I.indd 295
13/11/2013 17:02:45
PENSANDO O DIREITO, n° 49
(BAUDELOT; ESTABLET, 1990), a influência familiar nas competências adquiridas no
ensino preparatório (MINGAT, 1991), o caráter arbitrário das provas orais (BERRIER,
1991) e as desilusões dos métodos de avaliação em uma escola que chega aos nossos
dias inflacionada, superlotada e incapaz de gerir a democratização de competências e
habilidades (DURU-BELLAT, 2004, 2006).
No mundo anglo-americano, é também nos anos 60 que a meritocracia escolar
entra na pauta de pesquisas da mesmíssima fronteira disciplinar e com críticas muito
similares. No entanto, não é na sociologia determinista americana que ela aparecerá,
mas nas abordagens interpretativas e cognitivas de Aaron Cicourel e Hugh Mehan. A
publicação de The educational decision-makers2 marcou o início do questionamento
sobre a legitimidade da administração escolar sobre as trajetórias individuais dos alunos.
Anos mais tarde, Cicourel reuniu vários trabalhos na coletânea Language use and school
performance3 que, pela primeira vez, afirma a primazia da forma – no caso, linguística –
sobre o conteúdo das disciplinas na avaliação escolar. Ele mesmo lança, em introdução, as
bases teóricas da abordagem sobre os testes de performance escolar. É nesta coletânea
que Mehan publicará seu primeiro de muitos estudos de caráter etnográfico, demonstrando
a primazia do contexto interacional da sala de aula – e não do conteúdo aprendido – como
estruturante das relações pedagógicas (MEHAN, 1974).
Quatro anos mais tarde, em Structuring School Structure4 , ele empreende crítica ao
paradigma da reprodução de Bourdieu e Passeron, negando a existência de uma estrutura
na escola, e afirmando as atividades estruturantes. Seguiram-se, nesta abordagem,
estudos demonstrando, por meio de descrições densas de interações em sala de aula, a
construção da competência estudantil pela mimetização das atividades recompensadas
pelo professor (MEHAN, 1979), a autonomia da aula e da lição em relação ao mundo secular
(MEHAN, 1979a), a resposta desigual à desigualdade percebida na escola (MEHAN, 1992)
e, finalmente, a perversa construção do sucesso escolar a partir do estudo do tratamento
dado aos alunos de aproveitamento “insuficiente” (MEHAN; VILLANUEVA; HUBBARD;
LINTZ, 1996).
Uma série de relevantes estudos se seguiram, como os questionamentos de John
Goldthorpe sobre a crise da meritocracia em virtude da incapacidade de equalização social
na escola (GOLDTHORPE, 1996) e a denúncia da educação baseada na meritocracia como
um mito (GOLDTHORPE, 2003). Meritocracy and economic inequality, uma outra coletânea
de impacto, lançou uma série de reflexões sobre o papel potencializador – e não mitigador
– da meritocracia em relação às desigualdades econômicas (ARROW; BOWLES; DURLAUF,
2000). Finalmente, Anna Zimdars dedicou vários trabalhos ao tema, demonstrando as
vicissitudes da admissão de estudantes na Universidade de Oxford (ZIMDARS, 2007), na
Faculdade de Direito da mesma Universidade (2010) e nos exames de ingresso nas ordens
2 CICOUREL; KITSUSE, 1963.
3 CICOUREL, 1974.
4 MEHAN, 1978.
296
Volume 49 I.indd 296
13/11/2013 17:02:45
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
dos advogados da Inglaterra e do País de Gales (2011).
Mesmo com todas estas críticas, os concursos públicos nestes países não chegam
à sombra do impacto que possuem no Brasil. Será algo que aprendemos a fazer melhor?
Será que nossa superação republicana, ainda que apenas na atuação de um coadjuvante
seu, superou os grandes paradigmas ocidentais? Nossa resposta é não.
1.4 A ideologia concurseira, uma hipótese para o Brasil
No Brasil, o caminho para a república e para a democracia foi mais tortuoso do
que o idealmente supratraçado. Fenômenos como o clientelismo e o patrimonialismo,
consagrados em nossa historiografia por autores como Sérgio Buarque de Holanda (2005),
Raymundo Faoro (1977) e Victor Nunes Leal (1976), tornam quase todas as análises
científicas acerca da Administração Pública brasileira diretamente vinculadas a um
diagnóstico de desfuncionalidade ou crise. Este trabalho não ignora esta literatura,
tampouco está imune a esta influência. Nos cabe, entretanto, o esforço metodológico
de criar um tipo ideal capaz de focar nosso conteúdo analítico nos certames visando a
seleção da força de trabalho do Estado, e não na Administração como um todo. Cremos
ser necessário investigar quais as particularidades dos processos desta natureza, sem a
necessidade de vinculá-las aos produtos de determinada tradição histórica.
Assim, nos dias de hoje, maior parte das normas existentes sobre certames versa, em
verdade, acerca de temas generalizados, como o amplo acesso aos cargos por meio de tais
certames, ou, ainda, as provisões gerais sobre validade dos mesmos. Vários dispositivos
constitucionais são derivações específicas do art. 37, inciso II, pois preveem a necessidade
de certame para atuação na Magistratura, no Ministério Público, na Defensoria Pública
da União, Advocacia Pública Federal e Estadual, atividade notarial, além da docência. Há,
ainda, dispositivos que versam sobre a estabilidade dos servidores, consignando que a
mesma depende da aprovação no estágio probatório e o ingresso na carreira por meio
de provas.
A carta constitucional não oferece muitos detalhes sobre uma política de seleção de
pessoal à Administração Pública. Todavia, tal situação é bastante normal, já que o seu
texto precisa ser abrangente o bastante para regular amplas áreas e um grau majorado
de detalhe não auxiliaria a efetivação da prática dos certames no âmbito da Administração
Pública, em especial dos Estados e dos Municípios. A questão central é que a legislação
infraconstitucional também não é pródiga na oferta de disposições referentes aos certames.
Na prática, a normalização do tema adveio da regulamentação administrativa. Contudo,
uma ausência se faz notar: a falta de previsão acerca de critérios para composição de
bancas, bem como para regulação da relação entre o Estado e a entidade organizadora do
certame. Não há qualquer menção nas normas Federais sobre o papel a ser desempenhado
pelas entidades promotoras dos certames.
297
Volume 49 I.indd 297
13/11/2013 17:02:45
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Mais tarde, demonstraremos o estado da produção científica sobre nosso objeto de
estudo. Não há dados suficientes para que nossa intuição acerca do caráter autorreferencial
dos certames no Brasil possa ser assumida como um pressuposto de pesquisa. Ainda
assim, nos parece plausível partir da hipótese segundo a qual vigora, no País, uma
ideologia concurseira, baseada na tautologia segundo a qual os certames recrutam os
mais habilidosos, competentes e aptos a realizá-los.
Uma vez que todos os membros desta equipe de pesquisa foram ou são graduandos
em faculdades de Direito, nos é comum o neologismo aqui empregado, mas ele merece
explicação. Uma recente pesquisa realizada junto aos alunos (não juízes, mas alunos
que se preparam para concursos) da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro – EMERJ
(FONTAINHA, 2011) identificou uma disputa semântica: qual o estatuto profissional deles,
que há anos não fazem outra coisa senão se preparar full time para concursos públicos?
Todos se dizem “concursandos”, jovens juristas em busca do ingresso em uma carreira
“dos sonhos” – não necessariamente a da magistratura – a fim de realizar sua “vocação”.
Em oposição às boas práticas pré-profissionais, identificam os “concurseiros”: aqueles
que só se interessam por decorar “a letra da lei”, ter por jurisprudência dominante a do
Tribunal que está recrutando, concordar com a corrente doutrinária a que pertencem os
membros da banca e seguir a carreira cujo certame conseguir passar primeiro, como
evidenciam alguns estudos que repertoriamos no capítulo 2 infra.
Valemo-nos desse neologismo, bastante comum neste universo particular, para
investigar a hipótese segundo a qual, no Brasil de hoje, a tônica fundamental das seleções de
funcionários públicos é absolutamente autorreferenciada, nas estratégias dos candidatos,
no discurso de legitimação, na forma de organização e no projeto institucional, o que
acarreta enorme prejuízo de recursos financeiros e humanos para a Administração Pública.
Com foco nas seleções ocorridas entre 2001 e 2010 em boa parte do Serviço Público
Federal brasileiro, o desafio é propor, para o Ministério da Justiça e demais instituições
republicanas, um novo marco normativo.
1.5 Plano do trabalho
Para alcançar o proposto, iniciaremos pela revisão na literatura científica acerca
do tema. O trabalho prossegue com a análise quantitativa dos editais de abertura de
certames para seleção de funcionários publicados entre 2001 e 2010, e que recrutaram
41214 servidores em 698 processos seletivos para os seguintes órgãos: ABIN, AGU,
ANCINE, ANVISA, BACEN, CAPES, CGU, CNPq, CVM, DNIT, DPU, FIOCRUZ, INMETRO,
INPI, INSS, MP, MRE, Ministério da Saúde, DPF e SRF. Outros dados serão analisados
de forma exploratória: três entrevistas realizadas com gestores de gestão de pessoas
do Ministério da Saúde, do INSS e do MP, em um capítulo onde realizaremos estudos de
casos. Ainda, faremos uma análise comparativa com alguns dados acerca do certame da
298
Volume 49 I.indd 298
13/11/2013 17:02:45
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Escola Nacional da Administração francesa. Esperamos, com este esforço de pesquisa
e análise, conseguir, ao final, propor um novo marco normativo para o recrutamento no
serviço público brasileiro.
2. Os concursos no Brasil: revisão de
literatura e metodologia
2.1 O que sabemos sobre concursos públicos no Brasil?
O objetivo desta revisão de literatura acerca dos concursos públicos é o de situar o
nosso objeto de pesquisa e de nos posicionarmos em relação às diferentes pesquisas e
abordagens que despertam paulatinamente o interesse dos cientistas sociais.
Do nosso ponto de vista, não podemos compreender todos os fenômenos sociais.
Podemos, contudo, montar um mosaico que nos permite melhor compreender tais
fenômenos. Com este intuito, realizamos uma revisão da literatura a respeito de seleção
de funcionários públicos Federais. Esperava-se encontrar poucas pesquisas versando
sobre este tema.
No entanto, tendo em mente que o objeto poderia ser investigado por diferentes áreas
do conhecimento, optou-se por não se restringir aos estudos jurídicos. Assim, foram
agregadas à busca, principalmente, as seguintes disciplinas: Sociologia, Antropologia,
Psicologia e Administração. Nessa esteira, na tentativa de mobilizar nomenclaturas
diversas e afeitas aos campos listados anteriormente, utilizaram-se as palavras-chave
“concurso”, “seleção” e “recrutamento”. Por fim, atentando para os limites da investigação
proposta, fez-se o recorte “Brasil” e “setor público” e a exclusão das discussões que
tratassem sobre “escola”, “universidade” e/ou “vestibular”.
Atualmente, alguns aspectos do recrutamento dos funcionários públicos Federais no
Brasil mereceram a atenção dos pesquisadores. Existe uma bibliografia extensa sobre o
perfil dos funcionários públicos Federais produzida pelo Ipea. No entanto, há uma escassez
flagrante no tocante aos certames Federais.
O momento chave entre o término da formação escolar (entenda-se faculdade ou outro
curso formativo) e a posse no cargo público ainda é uma incógnita para a pesquisa. Assim,
vamos privilegiar nesta revisão bibliográfica as formas de preparação dos certames pelas
instituições do Estado. A hipótese que conduz esta revisão assume que há uma reflexividade
entre os cursos preparatórios e as instituições que organizam o certame. Portanto, como
esta é uma pesquisa incipiente neste campo, vamos privilegiar a organização do certame,
buscando entender os aspectos legais e sociais envolvidos na constituição dos editais
299
Volume 49 I.indd 299
13/11/2013 17:02:45
PENSANDO O DIREITO, n° 49
dos certames.
A bibliografia produzida a respeito de certames da Administração Pública revelam
de que maneira este tema vem sendo tratado pelos pesquisadores e, ao mesmo tempo,
os objetos de interesse. Para facilitar a sistematização destes trabalhos, faremos uma
separação entre os objetos de pesquisas e as metodologias adotadas pelas pesquisas
encontradas em diferentes campos disciplinares.
Esta revisão está organizada sob dois critérios. O primeiro, quanto ao objeto de estudo.
Esperávamos encontrar poucas referências acerca dos certames e, principalmente, dos
editais. No entanto, já existem algumas pesquisas que se debruçaram sobre este tema, mas
que constroem diferentemente seu objeto de análise. O segundo critério é a perspectiva
metodológica adotada pelas pesquisas. Neste quesito, surpreendeu-nos a multiplicidade
de abordagens dos objetos de pesquisa relacionados aos certames.
Em relação aos objetos, podemos traçar uma linha cronológica dos diferentes momentos
dos certames segundo a intervenção dos diferentes atores sociais: a) do ponto de vista da
Administração Pública, na qual observamos uma preparação para o certame, que pode,
eventualmente, contar com a contratação de uma entidade organizadora dos certames,
a produção do edital, a realização do certame e, por fim, as etapas de contratação, ou
nomeação e posse dos candidatos; e b) do ponto de vista dos candidatos – esta relação
começa antes, com a preparação para os certames, momento que articula o mercado
de “cursinhos” preparatórios, as entidades organizadores e as instituições públicas. O
candidato se prepara e aguarda os editais para enfim prestar o certame e, eventualmente,
ser admitido pela instituição. Isto quer dizer que existem os candidatos reprovados,
aprovados e os aprovados que foram nomeados e tomaram posse. Esta diferença é o que
nutre esse florescente e lucrativo mercado.
Nestes percursos, as pesquisas procuraram compreender diferentes aspectos. Já
existe um número importante de teses, dissertações e artigos sobre certames dentre as
seguintes áreas: Administração, Saúde, Políticas Públicas, Sociologia, Letras, Educação,
Direito, Psicologia, Contabilidade e Finanças.
Assim, os objetos se constroem em torno deste cenário. O que se destaca, no entanto,
são os estudos sobre os candidatos. Algumas pesquisas se focalizam no estudo do perfil
dos candidatos e dos “concurseiros”. A dissertação de Carro (2007) se debruça sobre
o perfil dos candidatos ao concurso de residência médica no SUS. A autora o compara
com outros certames para o mesmo cargo. Ela investigou as propriedades sociais dos
candidatos como sexo, idade, escolha da especialidade, local de graduação, natureza
jurídica da faculdade de graduação, bem como seu desempenho no Exame Nacional de
Cursos (ENC – Provão), presença e situação de habilitação no certame.
Outra pesquisa (ALBRECHT; KRAWULSKY, 2011) se foca no que os autores chamam
de “concurseiros”, retomando uma expressão utilizada por sites orientados para pessoas
300
Volume 49 I.indd 300
13/11/2013 17:02:46
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
que fazem concursos (DOUGLAS, 2013). Os autores analisam, além das propriedades
sociais dos candidatos, as motivações dos estudantes de cursinhos e os tipos de certames
que eles realizam. Eles buscam ainda compreender o investimento pessoal e econômico
envolvido nas escolhas dos “concurseiros”.
Neste mesmo sentido é a pesquisa realizada por Amancio (2009), que investiga as
propriedades sociais dos candidatos aprovados. Ela teve por objetivo estudar as relações
entre o certame, o processo de profissionalização e o perfil sócio-cultural dos aprovados,
no Município de São Paulo, para os cargos de professor adjunto (2004) e professor titular
(2007), a organização da rede e da carreira docente deste Município e o perfil sócio-cultural
dos professores de História aprovados nos dois certames. A autora da dissertação conclui
que o certame está no cerne do processo de profissionalização dos professores, sendo
um importante instrumento da burocracia moderna para a seleção. Ela acrescenta uma
reflexão interessante sobre o edital que descreve o profissional esperado pelo Estado.
O artigo de Puppo Luz e Silva (2008) pesquisa o papel desempenhado pelos cursinhos
preparatórios para concurso na formação de concepções sobre o mundo do trabalho.
As autoras demonstram que “o fatigamento dos sujeitos provocado por essa lógica está
promovendo um repensar da vida e suas conexões com o trabalho, bem como os modos
de ser do trabalhador, fazendo com que algumas certezas estejam sendo repensadas e
recolocadas.” (2008, p. 287).
Uma das consequências apontadas pelas autoras está no sentido do “fracasso escolar”
para os alunos dos cursinhos. Elas explicam que
A própria ideia de “fracasso escolar” está sendo reconfigurada e
expandida para um alto grau de individualização e culpabilização. As
formas de exercício deste poder-saber em andamento nestes “ambientes
educacionais” estão atingindo patamares de insuportabilidade para um
provável e possível aparecimento de linhas de fuga.
Ainda em relação aos “concurseiros”, algumas pesquisas na área de Letras investigaram
as competências linguísticas dos professores e dos alunos na realização das provas de
concursos, ressaltando as formas de se interpretar os textos (MARTINO, 2008). Outra
pesquisa similar é o artigo sobre as competências cognitivas para a realização de certames
na área de Ciências Contábeis (JUNIOR et al., 2008). O artigo conclui que “a seleção
dos novos contadores na Administração Pública Federal não atende a esse papel mais
abrangente requerido pelos desafios impostos pelo cenário econômico e tecnológico
globalizado.” (JUNIOR et al., 2008, 118).
Em uma outra gama de pesquisas, temos estudos sobre o perfil dos funcionários
públicos. A pesquisa de Castelar et al. (2010) investiga os fatores de sucesso nos certames
por meio das pessoas aprovadas e que tomaram posse, ou seja, os funcionários públicos.
Os pesquisadores afirmam, no artigo de economia aplicada, que:
301
Volume 49 I.indd 301
13/11/2013 17:02:46
PENSANDO O DIREITO, n° 49
(...) a probabilidade de sucesso no concurso foi definida como função de um
vetor de atributos sócio-econômicos, constatou-se que alta renda familiar,
escolaridade acima do ensino médio, ser oriundo de região metropolitana,
ter cursado o ensino médio em escola privada e ser jovem, são fatores que
contribuem para aumentar a chance de passar no concurso. Por outro
lado, ter renda pessoal abaixo de dois salários mínimos e ser detentor
apenas de escolaridade de ensino médio contribui negativamente para
aprovação no concurso. Constatou-se ainda que a variável ensino médio
apresenta o maior efeito marginal em termos absolutos, o que dramatiza
a situação dos candidatos de baixa escolaridade. 5
A pesquisa de Flauzino e Borges-Andrade (2008) investigou questões relacionadas às
formas de solidariedade e da organização do trabalho nos setores de saúde, educação e
segurança. O objetivo dos autores foi o de descrever o comprometimento organizacional
afetivo do servidor público brasileiro. O estudo de Rutkowsk (1998) também discute
aspectos relacionados aos problemas da gestão de funcionários públicos. Outro artigo se
debruça sobre as transformações nas formas de gestão do funcionalismo público e seus
reflexos nos funcionários públicos (NUNES, 2010; PAULA, 2005; SPILKI; TITTONI, 2005).
Outros trabalhos se concentram sobre as instituições envolvidas no certame e as
formas de acesso. A dissertação de Costa (2010) revisitou editais para analisar a política de
recrutamento e o modelo de concurso para professores do ensino fundamental do Município
de São Paulo entre 1983 e 1996. O trabalho conclui que existe ineficiência na política
de recrutamento, uma vez que os certames são realizados quase que exclusivamente
com provas de questões de resposta objetiva. Ademais, aponta que falta transparência e
neutralidade nos certames, em razão das diferenças e semelhanças entre os certames
realizados nos Governos Municipais entre 1983 e 1996.
A dissertação de Meirelles (2002) se debruça sobre os cursinhos preparatórios,
indicando, em seu ponto de vista, uma “deformação” do ensino do Direito, na medida em
que eles constituiriam espaços de disseminação de práticas profissionais corporativas;
assim como a dissertação de Vasconcelos (2006), que procura demonstrar as modificações
do modelo burocrático brasileiro por meio das normas jurídicas.
Outras pesquisas analisam as questões jurídicas dos certames e os aspectos legais
envolvidos em suas diferentes etapas que culminam nas formas de controle judicial
(CUNHA, 1999; MACHADO, 2006; SCHIRMER, 2001; SOUSA, 2011). Estas pesquisas buscam
compreender a organização jurídica do certame.
Alguns estudos entendem o concurso enquanto uma política pública de seleção. A
pesquisa de Carneiro (2011) procura compreender a experiência da reestruturação das
5 Castelar et al.: 2010, 92.
302
Volume 49 I.indd 302
13/11/2013 17:02:46
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
carreiras exclusivas de Estado no Fisco da Bahia por meio do concurso público para esta
carreira. Nesta mesma abordagem do certame, temos a pesquisa de Costa (2010) sobre
o recrutamento de professores do ensino fundamental no Município de São Paulo, já
mencionada; assim como a pesquisa de Gomes (1998), sobre as políticas de seleção de
professores nos certames para professor da rede Estadual paulista.
Ainda relacionada à ideia de política pública de seleção de funcionários públicos,
selecionamos a pesquisa de Oliveira (2006) sobre o ingresso de pessoas portadoras de
deficiência. O estudo aponta que, desde 1989, a instituição da reserva de vagas ampliou
o acesso das pessoas com deficiências nos certames em cargos e funções compatíveis
com suas patologias. Para a pesquisadora, isto evidencia uma contradição com o discurso
oficial em vigor, que, ao mesmo tempo em que estabelece a igualdade a todos, cria
políticas públicas alternativas, para legitimar a desigualdade. A pesquisa conclui que as
pessoas com deficiência percebem a escola como uma promessa de inclusão no mercado
de trabalho. Ela revela indícios de exclusão pelo sistema escolar e que as pessoas com
deficiência não conseguem boas colocações para ingresso imediato no serviço público.
Quando se trata de refletir sobre o evento do certame, ainda encontramos pesquisas
sobre as provas e a realização de questões (DESCARDECI, 1992) e sobre a seleção de
professores durante o Império por um ponto de vista histórico (MANCINI, 1999). Por fim,
há uma pesquisa de Batista (2011) sobre as imagens do professor de língua portuguesa
nos certames da grande São Paulo.
Desse modo, percebemos que as abordagens buscam focalizar momentos específicos da
organização social dos certames. É interessante, por outro lado, identificar as abordagens
das diferentes pesquisas.
Notamos que há grande interesse em refletir sobre os editais em termos jurídicos;
tomá-los como um instrumento jurídico de organização das etapas do certame permite
– do ponto de vista dos juristas – refletir sobre as formas de controle judicial do certame
(CARNEIRO, 2011; CUNHA, 1999; JUNIOR, 2006; MEIRELLES, 2002; OLIVEIRA, 2006;
SCHIRMER, 2001; SOUSA, 2011; VASCONCELOS, 2006). Ligado a isto, há uma análise das
formas de seleção (por certame ou contratação) que demonstra a falta de explicitação de
alguns elementos, por exemplo: itens e pontuações dos títulos; critério para classificação
nas provas; ênfase ou predominância de determinados autores, assuntos ou concepções;
preponderância de determinados periódicos, livros ou legislações; vínculo da bibliografia
solicitada com os cursinhos preparatórios (COSTA, 2010). Apesar disto, esta abordagem
reduz o edital à expressão de regras de organização sem imaginar o que elas representam
em termos de construção social das expectativas dos diferentes atores sociais envolvidos
no certame.
Outra abordagem sobre os certames são as análises das propriedades sociais dos
“concurseiros” e dos funcionários públicos, de Amancio (2009) e Carro (2007). Estas
perspectivas utilizam-se também de entrevistas e questionários para apreender a realidade
303
Volume 49 I.indd 303
13/11/2013 17:02:46
PENSANDO O DIREITO, n° 49
social e o perfil dos candidatos dos certames (DESCARDECI, 1992).
Existem algumas pesquisas nas Letras que se utilizam da análise de discurso sobre
os editais (BATISTA, 2011) e a análise e coerência do discurso na perspectiva da linguística
(DESCARDECI, 1992; MARTINO, 2008). Estas abordagens consideram que o edital é uma
forma de comunicação entre a Administração Pública e os candidatos. Portanto, o edital
é capaz de expressar ideais e representações sobre a organização do certame.
Em sua pesquisa, Mancini (1999) traz uma abordagem histórica sobre os documentos
que permitem reconstruir o certame para professores no Império. Há, ainda, o estudo de
Santana Junior et al. (2008) sobre a tendência das habilidades requeridas nas provas por
meio de estatísticas e da Taxonomia de Bloom.
Por fim, outro campo que se interessa no certame é a Psicologia. Algumas pesquisas
realizaram uma clínica para atendimento de alunos de um cursinho preparatório; outra
realizou entrevistas e aplicou questionários a respeito da opção sobre o serviço público;
e, enfim, as relações do trabalho entre servidores da Justiça Federal com a finalidade
de compreender a implantação do sistema de qualidade total por meio de entrevistas.
As abordagens pretendem compreender como se operam as formas de controle e os
efeitos sociais da organização do certame sobre as pessoas envolvidas neste processo.
2.2 Como aprenderemos sobre os concursos públicos?
O foco desta pesquisa são os editais. Nosso objetivo é tomá-los como projetos das
instituições.
Do ponto de vista jurídico, eles são instrumentos de organização das etapas e das
relações entre os diferentes atores. O controle judicial recai muitas vezes sobre os editais,
e, assim, funda os direitos e as expectativas sobre eles. As pesquisas realizadas sobre
este objeto demonstram sua importância e utilidade.
Outra forma de se pesquisar sobre editais é tratá-los como fontes de discursos
institucionais. As pesquisas fundadas na linguística procuram compreender as diferentes
formas de construir um discurso que estabeleça uma comunicação com os candidatos e
demais instituições acerca das intencionalidades. Entretanto, esta forma de comunicação
entre estes atores não nos permite compreender o que eles fazem com estes discursos,
nem o que eles criam com base neles. Nossa abordagem não é nenhuma destas.
Nosso propósito é o de estudar editais enquanto projetos para a organização dos
certames. O que pretendemos é recolocá-los em uma abordagem política, ou seja,
compreender as finalidades explicitadas por eles, que apresentam as políticas de
recrutamento e seleção. Por isto, estes editais expressam uma ideologia.
304
Volume 49 I.indd 304
13/11/2013 17:02:46
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Para nossas finalidades, consideramos ideologia como uma interseção entre a estrutura
e a consciência. Assim, como afirmam Patricia Ewick e Susan Silbey (1998, p. 225-226):
ideology refers to the processes that produces a specific pattern in
social structure. An ideology, as structure, always embodies a particular
arrangement of power and affects life chances in a manner different from
that of some other ideology or arrangement of power. This means that
ideology is not to be equated with culture or structure in general, or with
social construction simply as as interactive process.
Tomar os editais como instrumentos jurídicos, simplesmente, eclipsa o ponto central
de sua utilidade e finalidade. Por esta razão, vamos considerá-los em termos políticos
para entender o que foi socialmente construído para selecionar os funcionários das
instituições do Estado.
Ao contrário do que se pode supor, os editais não expressam uma vontade, mas uma
ideologia que legitima os funcionários públicos e orienta os “concurseiros”. Entendê-los
em termos políticos permite compreender a complexa ligação entre as instituições e as
entidades organizadoras, assim como os candidatos e o mercado de cursinhos.
Esses diferentes atores adquirem identidades públicas em função da organização do
certame. Apesar disto, a discussão deste projeto ainda é pouco transparente e enviesada
pelo tratamento jurídico que reifica ainda mais a ideologia concurseira.
Para compreender melhor nossa proposta metodológica, tomamos como exemplo
o que Scheingold (2004) descreve como o “mito dos direitos” nos Estados Unidos. Ele
afirma que a crença que o Judiciário e o Direito podem produzir mudança social é, na
realidade, uma ideologia. Ao fazê-lo, ele chama a atenção para o fato de que “the myth of
rights as an ideology is not to downgrade its importance to American politics nor to deny
the political significance of rights.” (2004, p. 83). Pelo contrário, ele pretende explicitar
tal ideologia para compreender o funcionamento das instituições e a maneira como as
pessoas se orientam.
Tomar os editais como expressão de uma ideologia não diminui sua importância.
Ao revés, alça a reflexão sobre eles como uma parte integrante dos múltiplos projetos
institucionais, ou seja, como desejamos construir e orientar as instituições do Estado.
Explicitar esta ideologia por meio dos editais nos permite conhecer os fundamentos
deste projeto institucional de formar os quadros do Estado. Refletir sobre isso abre
possibilidades de se pensar alternativas para orientar pragmaticamente as funções deste
Estado.
Deste modo, decidimos analisar os elementos dos editais de forma a compreendê-los
305
Volume 49 I.indd 305
13/11/2013 17:02:46
PENSANDO O DIREITO, n° 49
globalmente. Nosso objetivo é entender o que estes diferentes projetos institucionais podem
nos desvelar sobre a organização do certame. Por este motivo, os gráficos apresentados
neste estudo expressam sempre os elementos constantes dos editais. As mudanças
durante o período selecionado (2000 a 2010) refletem um padrão, isto é, uma ideologia
que produz esta organização dos certames. Assim, procuraremos demonstrar, por meio
dos diferentes gráficos, o quanto esta ideologia está presente na forma de constituição
destes projetos institucionais.
3. Os dados em 698 processos seletivos
(2001 a 2010)
3.1 Base de Dados
Nesta seção, apresentaremos os dados colhidos a partir de editais de abertura de
certame em nível Federal.
Nosso primeiro passo foi fazer um recorte temporal; escolhemos os certames
realizados na última década (intervalo entre os anos 2001 e 2010). Além disso, excluímos
de nosso universo de análise os certames locais, como os das IFES, limitando-nos aos
certames nacionais. Em seguida, buscamos pelo registro das seleções realizadas neste
intervalo de tempo. Recebemos, então, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
(MP), tabela que compila todas as portarias referentes aos certames por ele autorizados.
Encontramos 550 portarias que contemplavam seleções de 104 órgãos. Embora tratasse
de órgãos Federais, o documento não fazia distinção entre certames nacionais e certames
regionais. Após eliminarmos todos os certames regionais, chegamos a um universo de
73 órgãos recrutadores.
Há de se ressaltar, primeiramente, que nosso intento era abarcar os 73 órgãos
mencionados. No entanto, face à quantidade de certames e informações extraídas
de cada edital aliada às limitações de tempo e orçamento, selecionamos 20 órgãos.
Essas instituições foram escolhidas levando-se em conta dois critérios. Primeiramente,
pensamos em órgãos que são grandes recrutadores, isto é, cujos certames destinam-se ao
preenchimento de grande número de vagas e que, portanto, mais atraem interessados na
carreira pública. É o caso, por exemplo, do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que
organizou seleção para um milhão de candidatos a Analista em 2012. Além desse critério,
elegemos carreiras jurídicas, pela proximidade que temos com tal área de conhecimento;
é, inclusive, essa relação bastante próxima que nos permite vislumbrar que talvez estas
306
Volume 49 I.indd 306
13/11/2013 17:02:47
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
fossem as carreiras que alcançassem os mais altos salários.
A partir dessa categorização, chegamos aos seguintes órgãos: Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN); Advocacia Geral da União (AGU); Agência Nacional de Cinema (ANCINE);
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); Banco Central (BACEN); Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Controladoria Geral da União
(CGU); Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Comissão de
Valores Mobiliários (CVM); Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT);
Defensoria Pública da União (DPU); Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ); Instituto Nacional
de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO); Instituto Nacional de Propriedade
Industrial (INPI); Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão (MP); Ministério das Relações Exteriores (MRE); Ministério da Saúde
(MS); Polícia Federal (PF); e Secretaria da Receita Federal (SRF). Esses órgãos realizaram,
juntos, 698 processos de seleção durante os anos de 2001 e 2010, o que representa o
preenchimento de 41.241 vagas para servidores públicos.
Para analisar os certames deles, elaboramos uma ficha onde os elementos dos
editais pudessem ser categorizados. Separamos seus dispositivos de acordo com sua
generalidade ou especificidade o grau de generalidade quanto às vagas; isto é, vimos que
há elementos que tratam do certame como um todo e outros que trazem dados específicos
sobre cargos e carreiras. O preenchimento das fichas nos possibilitou chegar aos dados
que apresentamos a seguir.
3.2 Componentes dos Editais
Nosso primeiro gráfico (Gráfico 1) traz diversos componentes que encontramos
nos editais de abertura de certame. Nossa atenção voltou-se para eles porque estavam
presentes em alguns editais e não em outros. Temos, assim, diferentes formas de inscrição
no certame: possibilidade e impossibilidade de isenção de taxas. Critérios de desempate
e recursos, por outro lado, são mais comumente previstos. Pode-se afirmar que o gráfico
é ilustrativo da assistematicidade – de um modo generalizado – dos editais. Inferimos que
a ausência de normas sobre a elaboração de editais seja um dos fatores que influencie
na formatação desse instrumento, pois há poucos consensos sobre o que deve constar
no texto e o que é dispensável em edital de abertura de certame.
Tomemos o caso das formas de inscrição. Vemos muitas possibilidades de um candidato
inscrever-se em um certame: por meio da Caixa Econômica Federal ou de outros bancos,
pelos Correios, presencialmente ou por procuração e pela internet. É interessante notar
que quase todos os editais prevêem a possibilidade de inscrição por meio dessa última
ferramenta: dos 698 processos seletivos analisados, apenas 54 não possibilitavam esta
forma de inscrição. Alertamos para o fato de o Gráfico 1 abarcar certames que se realizaram
durante toda a década passada, sem se preocupar em situar cada um deles nos anos
307
Volume 49 I.indd 307
13/11/2013 17:02:47
PENSANDO O DIREITO, n° 49
exatos. Dessa maneira, é possível que a pequena quantidade de editais que não previa
inscrição por essa ferramenta tenha sido publicada no início dos anos 2000, quando o
acesso à internet era significativamente menor que nos anos atuais. É provável que, a
partir de determinado momento, todos os certames previssem inscrição pela internet,
o que nos leva a inferir que o dissenso passou a ser em relação às outras formas, vistas
como subsidiárias. A presença de tais modos subsidiários de inscrição aponta para o fato
de que os órgãos recrutadores ou as entidades organizadoras entendam que nem todos
os candidatos têm acesso à internet ou que alguns têm acesso limitado. Provavelmente,
em se tratando de certames nacionais, os órgãos consideram as diferenças sociais entre
as distintas regiões brasileiras.
Outro componente que esteve presente na maioria dos editais consiste na previsão
de assistência necessária para candidatos com necessidades especiais. Essa postura dos
órgãos e das entidades organizadoras alinha-se a uma tendência recente de ampliação
dos direitos e garantias para as pessoas com necessidades especiais. Frise-se que não se
trata de reserva de vagas – questão bem mais polêmica – e sim de promoção de igualdade
de condições para esse público. Abaixo, podemos ver o Gráfico 1 com todos os dados:
A isenção das taxas também foi tema bastante controvertido até o ano de 2008, quando
entrou em vigor o Decreto nº 6.593/08, que garante a isenção da taxa de inscrição para os
casos em que o candidato que tem renda familiar mensal inferior a três salários mínimos.
Tendo em vista, então, que até o ano de 2008, estava a critério do órgão recrutador conceder
ou não a isenção das taxas de inscrição, decidimos observar em quais casos eram mais
ou menos comuns a sua previsão.
Conferindo o Gráfico 1.a infra, vemos não somente que os casos mais frequentes
de negativas de isenção encontram-se nas faixas salariais mais baixas como percebemos
308
Volume 49 I.indd 308
13/11/2013 17:02:47
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
também que os que têm os menores salários oferecidos são aqueles que arcam,
proporcionalmente, com as maiores taxas de inscrição.
Gráfico 1.a: Salário / Taxa / Isenção
R$14K – R$15K (n=4)
0,97%
R$13K – R$14K (n=10)
0,91%
R$11K – R$13K (n=8)
0,91%
R$10K – R$11K (n=32)
1,00%
R$9K – R$10K (n=12)
1,13%
0,00%
1,18%
R$8K – R$9K (n=13)
R$7K – R$8K (n=53)
R$6K – R$7K (n=12)
1,36%
0,00%
1,71%
R$5K – R$6K (n=128)
2,08%
R$4K – R$5K (n=24)
1,84%
R$3K – R$4K (n=169)
2,42%
R$2K – R$3K (n=105)
2,30%
R$1K – R$2K (n=104)
2,89%
75,00%
100,00%
100,00%
93,75%
50,00%
11,32%
96,09%
45,83%
23,67%
42,86%
18,27%
R$0 – R$1K (n=13) 0,00%
3,24%
Média taxa/salário
Isenção de taxa
Para concluirmos essa subseção, não poderíamos deixar de mencionar uma importante
ausência. Não observamos, em nenhum dos editais que analisamos, que habilidades ou
aptidões o candidato deveria ter para exercer as funções do cargo para o qual concorre.
Ou seja, a Administração não apresenta para o candidato as habilidades ou aptidões que
ele precisa ter ou precisaria desenvolver para seu trabalho e tampouco considera tais
características como partes integrantes do processo seletivo. Estamos dizendo que os
futuros servidores desconhecem o que de fato o cargo requer e não têm seus conhecimentos
testados. A presença das atribuições do cargo nos editais, como se demonstrará adiante,
não ameniza o efeito de autonomia inferido aqui. Mais adiante, veremos que essa lacuna
se alinha com uma forma de seleção própria dos concursos públicos brasileiros.
3.3 Quem organiza o recrutamento?
Partimos, neste ponto, para uma análise sobre o funcionamento da organização
dos certames presentes no nosso recorte e quem são seus principais organizadores, a
partir dos gráficos abaixo.
309
Volume 49 I.indd 309
13/11/2013 17:02:54
PENSANDO O DIREITO, n° 49
O Gráfico 2 expressa, em porcentagem, o número de seleções realizadas por entidade
organizadora, demonstrando hegemonia do CESPE, uma vez que 73% dos processos
seletivos realizados neste período foram elaborados por esta entidade. Além disso, tal
gráfico coloca em destaque certa restrição no mercado da organização dos certames,
tendo em vista seus poucos players concorrentes. Cabe ressaltar, neste sentido, que o
IRB não é órgão que disputa neste mercado, já que ele organiza suas próprias seleções
310
Volume 49 I.indd 310
13/11/2013 17:02:55
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
e mais nenhuma outra e, portanto, não entra na restrita lista de competidores. Ademais,
a FUNRIO, que apresenta baixíssimos números percentuais, não demonstra grande
relevância para a disputa, o que gera a impressão de que ela é muito recente no mercado
ou de que trata-se de órgão local, que organiza poucos certames nacionais. Sendo assim,
segundo o gráfico, as principais entidades desde cenário são CESPE e ESAF, que possuem
as maiores fatias do mercado.
O Gráfico 3 evidencia, também em porcentagem, a quantidade de vagas preenchidas
por organizadores de certames e, novamente, o CESPE aparece com o maior número
percentual, 52%. Entretanto, cabe ressaltar que os números percentuais dos dois gráficos,
quando contrapostos, nos mostram um relevante dado, o de que o CESPE organiza
certames com menor número de vagas que a ESAF, dada a proporção da fatia do Gráfico
2 em detrimento da do Gráfico 3.
Ainda nessa seara, observando-se a série histórica apresentada pelo Gráfico 4 abaixo,
podemos perceber o movimento que as entidades organizadoras de certame fazem
enquanto agentes de mercado. Existe uma dinâmica hegemônica de picos e baixas desses
organismos por anos de seleções. Fica muito claro que o CESPE dita como essa dinâmica
funciona, pois, quando realiza uma maior quantidade de processos seletivos, ou seja, nos
seus anos de pico, ocorre uma redução drástica na participação das demais entidades
e vice-versa. Para exemplificar essa situação, tomemos os anos de 2003, 2004 e 2005.
Com o pico da atuação do CESPE em 2004, a única entidade que elevou ligeiramente
seu vértice foi a CESGRANRIO. As demais reduziram a zero ou quase zero o número de
realizações de certames. Em situação contrária, no ano de 2008, com a queda do CESPE,
houve uma elevação de todas as outras entidades, principalmente da FUJB. O gráfico
abaixo demonstra claramente, portanto, uma tendência de mercado.
Por ora, evidencia-se que há uma dinâmica mercadológica que governa a organização
311
Volume 49 I.indd 311
13/11/2013 17:02:56
PENSANDO O DIREITO, n° 49
dos concursos objetos deste estudo. O que se pode questionar inicialmente é: esta dinâmica
é saudável para o modelo de recrutamento? Ou ainda: o Estado deve terceirizar esta
atividade, uma vez que recrutar seus quadros é, sem dúvida, um dos seus fins?
3.4 Quem é Recrutado e como são remunerados?
O Gráfico 5 abaixo elenca os diplomas de nível superior mais frequentemente
exigidos, acompanhados do salário médio que lhes é atribuído.
Vemos, então, que o diploma mais recrutado é o de Engenharia, sendo seguido,
de longe, pelo de Direito. Interessante destacar que, se levarmos em consideração a
remuneração, o Direito passa a preponderar, sendo seguido pela Administração e, depois,
pela Engenharia. Na ponta inversa, isto é, do lado dos que são menos remunerados, estão
os arquivologistas e os biblioteconomistas. Eles são seguidos de outras duas importantes
áreas do conhecimento para os serviços públicos: a Economia e a Estatística.
Algumas inferências podem ser feitas a partir desses dados. Observamos, primeiramente,
que a preponderância de vagas para a Engenharia talvez tenha relação com as políticas
públicas de aceleração do crescimento do País. Esse viés de desenvolvimento, todavia,
não abre espaço para profissionais que lidam com questões mais próximas a outras
problemáticas sociais, como as da deara dos egressos dos cursos de Serviço Social.
Nossa atenção não podia deixar de se voltar, contudo, para as carreiras jurídicas, cuja
remuneração média se distancia da carreira imediatamente inferior, Administração, em
23,02%; e, em relação à carreira menos bem remunerada, apresenta variação de 173,27%.
312
Volume 49 I.indd 312
13/11/2013 17:02:56
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Esses dados nos apontam para o prestígio que as carreiras jurídicas continuam a ter no
Estado. Veremos, adiante, que essa posição de prevalência se liga hoje a uma ideologia
que o concurso público veicula. Antes disso, vejamos quão nítido o prestígio do Direito no
Estado é, por meio do Gráfico 6, a seguir:
Nesse gráfico, observamos a variação salarial de carreiras jurídicas e não jurídicas,
estando presentes, em contraste, as cinco carreiras com maior e menor remuneração na
nossa amostra. Se tomarmos o exemplo do cargo de Procurador Federal, veremos que seu
salário aumentou em 250% ao longo de dez anos. Esse patamar não é acompanhado por
nenhuma outra carreira. Nas carreiras com menor remuneração, o aumento chegou, no
caso do Técnico do INSS, a 216,25%. O técnico do CNPq teve seu salário inicial aumentado
em 150%. Trata-se de porcentagens relevantes, mas que reforçam o abismo que há entre
os salários das profissões jurídicas e os demais. Se, em 2002, a diferença entre os salários
entre o Procurador Federal e o Técnico do INSS era de 535,72%, em 2010 essa distância
chegou a 603,56%.
Poder-se-ia afirmar que a diferença se deve à titulação do Procurador Federal.
Ele teria dedicado boa parte de sua vida aos estudos, tendo alcançado, no mínimo, o título
de bacharel para ocupar aquela posição. Nossos dados, todavia, apontam que a titulação
não é critério para estabelecimento de salário, conforme o Gráfico 7 abaixo:
313
Volume 49 I.indd 313
13/11/2013 17:02:57
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Como pode ser visto, os profissionais mais bem remunerados são aqueles que
concluíram a graduação. Mestres estão bem mais próximos do salário de pessoas que
concluíram o ensino médio e doutores recebem cerca de 20% menos que os bacharéis.
Esta colossal distorção é a demonstração clara que a meritocracia escolar não é uma
referência minimamente valorizada quando do recrutamento por certame. Frisamos que
o gráfico foi baseado na média aritmética dos salários iniciais oferecidos e nos quatro
grupos de concursos estabelecidos segundo a titulação mínima exigida para a posse no
cargo, dentro da nossa amostra.
3.5 Como são recrutados?
Se não se trata, portanto, de uma seleção que privilegia aqueles que têm títulos
mais relevantes, o que impulsiona essas diferenças salariais? Em um primeiro momento,
poderíamos pensar que a Administração Pública busca selecionar os melhores profissionais,
ou seja, aqueles que têm mais experiência em sua área de conhecimento ou melhor
desempenho no sistema de ensino. Para verificar se essa hipótese se confirma, deveríamos
analisar a forma como é feito o recrutamento ou, em outras palavras, que habilidades
são testadas no certame.
A próxima série de gráficos nos mostra que o certame, da forma como é organizado,
314
Volume 49 I.indd 314
13/11/2013 17:02:57
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
seleciona pessoas que não são nem os melhores profissionais experimentados, nem os
melhores egressos do sistema de ensino. São recrutados aqueles que têm mais sucesso
na realização de provas de certames. Vejamos os Gráficos 8, 9 e 10:
Gráfico 9 – provas vs. profissionalização
315
Volume 49 I.indd 315
13/11/2013 17:02:58
PENSANDO O DIREITO, n° 49
O Gráfico 8 nos mostra que a forma, por excelência, de se recrutar é por meio da
aplicação de provas de múltipla escolha, seguindo-se a aplicação de provas discursivas
e a aferição de títulos. De todos os certames que se utilizam da resposta objetiva como
etapa de avaliação, em 96,7% deles ela é eliminatória e classificatória, e ainda, em 22,21%
deles ela é a única etapa de seleção. É importante observar que não são realizadas provas
práticas. Repita-se: em nenhum dos certames objeto da nossa pesquisa foi encontrada
a existência de provas práticas nos editais. Avalia-se, assim, apenas a capacidade do
candidato de encarar formas avaliativas exclusivas dos certames, que sequer emulam
ou simulam contextos análogos aos que ele enfrentará na carreira.
Se levarmos em consideração o fato de que, a cada seleção, o candidato é avaliado
de múltiplas formas, começamos a ver o perfil do profissional que a Administração
Pública traz para seus quadros. É o que nos mostra o Gráfico 9. Por ele, percebemos que
quase a totalidade dos que devem comprovar a inscrição no conselho de classe devem
realizar provas de múltipla escolha. Em número menor, devem ainda passar por prova
discursiva e comprovação de títulos. Deixam, em sua maioria, de passar por exames
físicos, psicológicos, tampouco têm sua vida pregressa examinada. A linha daqueles que
devem comprovar a experiência é bastante similar a que acabamos de descrever.
As diferenças mais acentuadas dizem respeito à investigação de vida pregressa e à
submissão a provas orais. Em ambos os casos, todavia, embora possamos supor que
a Administração, ao requerer a inscrição no Conselho de Classe ou experiência, tenha
em vista recrutar profissionais mais preparados, ela escolhe fazê-lo por meio de provas
escritas, deixando de proceder a avaliações práticas. A absoluta falta de coerência no trato
316
Volume 49 I.indd 316
13/11/2013 17:02:58
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
e na combinação de categorias fundamentais como i) curso de formação; ii) experiência
prévia; iii) titulação; e iv) inscrição no conselho de classe permite inferir que não há projeto
institucional orientado para fora do certame na Administração Pública brasileira.
No tocante à sindicância de vida pregressa, que se aplica em aproximadamente 16%
dos certames do nosso recorte, tal ato atinge apenas os seguintes órgãos: ABIN, AGU,
BACEN, CGU, DPF, e RFB. À exceção da AGU, todos os demais também comportam o curso
de formação como etapa se seleção. Assim, esta etapa visa estabelecer um controle que
não diz respeito apenas aos profissionais ligados à segurança pública, mas também aos
ligados às finanças públicas. Se cruzarmos a presença da sindicância de vida pregressa
com a avaliação psicológica, teremos a AGU igualmente como a única exceção em que
esta segunda etapa não está presente. Se considerarmos todos os órgãos que se utilizam
do exame psicológico, além dos já citados, aparecem a CVM e o MRE.
Com relação ao curso de formação, nos cumprem algumas extrações particulares da
nossa base. Aplicado em aproximadamente um quarto dos certames que analisamos, ele
está presente apenas nos seguintes órgãos: ABIN, BACEN, CGU, DPF, MP, MRE e RFB.
Uma hipótese que levantamos é a de que haveria uma correspondência direta com a faixa
salarial, uma vez que se tratam de carreiras estratégicas para o Estado, necessitando
de uma formação onde se articulasse um saber particular no seio da Administração. De
uma forma geral, o salário médio oferecido às carreiras onde se exige curso de formação
é maior que aquele oferecido às carreiras que não são recrutadas por este método: R$
6.860,88 e R$ 4.045,00, respectivamente. No entanto, se considerarmos, em cada um
dos dois grupos, apenas aquelas com remuneração acima de dez mil reais, teremos
um resultado inverso: R$ 11.270,27 e 12.050,74, respectivamente. Considerando que no
segundo recorte o segundo grupo é composto apenas pelos órgãos AGU, CVM e DPU,
devemos relativizar a ideia segundo a qual a presença de curso de formação no certame
é indicativo forte de um projeto institucional de uma carreira estratégica, ou de elite, o que
se comprovaria pela correspondência salarial. Estas inter-relações, a partir dos nossos
dados, são ao menos mitigadas.
Ainda que consideremos que, embora não haja prova prática, a qualidade do profissional
seja atestada pela experiência e o registro em órgão de classe, requeridos como parte da
seleção, isso não significa dizer que a experiência ou a competência para o exercício das
atividades que o candidato, uma vez servidor público, deverá ter sejam aferidas. Nossa
seleção concentra-se em um exame mais afeito à Academia, mas dela se distancia, como
veremos a seguir, por diversos motivos. Vemos, nesse gráfico, que se os órgãos não
selecionam pessoas com base na titulação acadêmica, igualmente deixam de recrutar os
melhores profissionais por não incorporarem meios de avaliação de suas competências
estritamente profissionais e práticas. Devemos lembrar que as habilidades e aptidões do
candidato para o posterior exercício das funções de seu cargo sequer fazem parte do edital.
O Gráfico 10 nos permite analisar a lógica de avaliação de profissionais de diferentes
níveis e algumas curiosidades surgem. Tomemos o exemplo do doutor: ele é avaliado,
317
Volume 49 I.indd 317
13/11/2013 17:02:59
PENSANDO O DIREITO, n° 49
inicialmente, por meio de provas de múltipla escolha e discursivas. Seus títulos são
submetidos a processo de pontuação, raras vezes passa por exames médicos e psicológicos
e, em 63,16% das seleções, deve produzir um memorial. Mais interessante é notar que as
linhas para bacharéis, mestres e doutores pouco divergem entre si, excetuando-se o fato de
os doutores terem de redigir memoriais e de terem, mais frequentemente, de comprovar
experiência. Ainda, elas pouco se diferenciam daquela do egresso do ensino médio. Do
exposto, podemos entender que o modelo adotado é quase o mesmo, independentemente
da titulação e, considerando que as atribuições de cargos de bacharéis, mestres e doutores
são diferentes entre si e distintos das do candidato de ensino médio e da atividade que
este deverá desempenhar.
Questionamos, anteriormente, o que impulsiona diferenças salariais. Seria a seleção
de melhores acadêmicos? Seria o recrutamento dos melhores profissionais? Seria o nível
de complexidade das atribuições? Vimos, até este ponto, que os certames não baseiam a
remuneração dos cargos em títulos, tampouco se valem de instrumentos avaliativos que
sejam capazes de trazer para o serviço público os acadêmicos mais competentes. Por outro
lado, vimos que a prática profissional não é avaliada e que os candidatos selecionados
raras vezes passam por uma formação promovida pela Administração. Até aqui, portanto,
não temos a resposta para esse questionamento, mas chegamos à importante conclusão
de que o certame recruta pessoas que sabem melhor fazer suas provas.
O Gráfico 11 nos mostra que a remuneração média acompanha a complexidade do
certame, aqui expresso pelo número de fases:
Esse gráfico ilustra, com nitidez, a ideologia dos certames por nós chamada concurseira.
Aqueles que recebem os maiores salários são os que ultrapassaram seis fases de provas.
O que permite que o candidato alcance essa remuneração não é, como demonstramos
318
Volume 49 I.indd 318
13/11/2013 17:02:59
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
anteriormente, sua formação ou sua experiência; seu salário é proporcional à complexidade
do certame que prestou. Vemos, assim, uma hermeticidade ou autorreferencialidade
desse processo seletivo: ele afere apenas o que ele próprio constrói como legítimo e
relevante, excluindo de seu universo avaliativo critérios importantes para o desenvolvimento
das atividades exteriores a ele. Nos parece que uma das ferramentas corporativas de
valorização simbólica e remuneratória de uma carreira é o grau de complexidade do
certame, o que aponta para uma força ainda maior que a expressa neste trabalho.
Um brevíssimo levantamento comparativo realizado entre os cargos de Médico do
Ministério da Saúde e Advogado da União reafirma a inferência realizada a partir do Gráfico
11 supra, onde se demonstra que a remuneração inicial proposta está mais condicionada
pelo número de fases do certame que pelas atribuições do cargo expressas no edital:
Atribuições do cargo de Médico (Cardiologia),
Atribuições do cargo de
do Ministério da Saúde.
Advogado da União.
Realizar
consultas
e
atendimentos
médicos; Representação judicial e extrajudicial da União, e o
implementar ações para promoção da saúde; assessoramento jurídico dos órgãos da Administração
efetuar perícias, auditorias e sindicâncias médicas; Federal Direta do Poder Executivo.
coordenar programas e serviços de saúde; difundir
conhecimentos médicos; aliar a atuação clínica/
especializada à prática da saúde coletiva; elaborar
documentos médicos; fomentar a criação de grupos de
patologias específicas; planejar, organizar, coordenar,
supervisionar e assessorar estudos e pesquisas;
executar tarefas e procedimentos que envolvam
assistência médica geral e as relacionadas à sua área
de especialização; e executar e registrar seus atos,
conforme preconizado pelo exercício profissional
Concurso com uma fase, com prova de múltipla Concurso com cinco fases, incluindo prova de resposta
escolha, apenas
objetiva, provas discursivas, avaliação de títulos,
prova oral e sindicância de vida pregressa.
Remuneração
inicial
(2009)
de
R$
2222,72; Remuneração inicial (2012) de R$ 14970,60.
atualmente (2013), de R$ 4146,22, após MP
568/2012.
Fonte: Edital n. 50/2009, do Ministério da Saúde, de Fonte: Edital n. 09/2012, da Advocacia-Geral da
22 de outubro de 2009.
União, de 26 de abril de 2012
Estamos, aqui, delineando um tipo. No próximo capítulo, trataremos de dados de
outra natureza sobre o recrutamento no INSS e no MS, para, em seguida, traçarmos um
319
Volume 49 I.indd 319
13/11/2013 17:02:59
PENSANDO O DIREITO, n° 49
comparativo com o tipo francês, aprofundando o que sabemos sobre o modelo brasileiro.
4. Estudos de caso de dois concursos: INSS e
MS
Por que “estudos de caso”? A importância deste capítulo no conjunto deste trabalho
é a de melhor ilustrar qualitativamente nossos argumentos de pesquisa extraídos de um
recorte bem maior. Não se trata de generalizar todo o recorte prévio a partir do estudo
mais minucioso dos dois órgãos assinalados, mas de, por meio de dois casos, verificar se,
de forma mais refinada e específica, nossas inferências estatísticas e hipóteses analíticas
possuem algum respaldo.
Um brevíssimo exemplo ilustra o potencial de um estudo de caso no que toca ao nosso
argumento segundo o qual os certames são autocentrados. Vejamos, abaixo, a questão
número 145 do certame para Advogado Geral da União realizada no ano de 2012, elaborada
pelo CESPE, na rubrica “Direito Internacional”:
145. É expressamente proibida pela CF a extradição ou entrega de brasileiro nato a
autoridades estrangeiras.
Era necessário responder apenas “falso” ou “verdadeiro”. Uma vez que a Constituição
proíbe expressamente a extradição no caso mencionado, mas nada fala sobre a entrega,
uma grande parte dos candidatos marcou a questão como falsa, o que ensejou muitos
recursos contra o gabarito, que dava a questão como verdadeira. A resposta do CESPE foi:
uma vez que a questão fala que se trata de extradição ou entrega, basta que um dos dois
institutos – alternativamente – seja expressamente proibido pela Constituição para que a
mesma seja verdadeira. Assim, o gatilho cognitivo para determinar o erro ou o acerto não
é extraído de um conhecimento sobre o conteúdo da Constituição Federal em matéria de
Direito Internacional, mas da lógica linguística de formulação da questão, representada
pela presença do vocábulo “ou”.
As linhas que se seguem, baseadas em grande medida em entrevistas realizadas
com gestores públicos, pretendem desenvolver estudos de casos que irão tornar mais
descritíveis os fenômenos apontados até o momento.
Se extrairmos da já mencionada base de dados apenas os certames do INSS e do
MS, chegaremos ao seguinte: os órgãos recrutaram 12610 servidores entre 2001 e 2010,
sendo o INSS responsável por 10956 deles e o MS por 1654. O salário inicial médio destes
recrutados é de R$ 2193,48, sendo a média do INSS R$ 2175,73 e a do MS R$ 2211,22.
Com raríssimas exceções, todos estes profissionais foram selecionados mediante uma
320
Volume 49 I.indd 320
13/11/2013 17:03:00
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
única prova de múltipla escolha. De aproximadamente um terço deles, se exigiu inscrição
em órgão de classe, de nenhum se exigiu experiência, a nenhum se ofereceu curso de
formação. Este capítulo não visa uma análise extensiva dos aspectos quantitativos do
recrutamento nestes órgãos, mas, à guisa de introdução, reproduzimos a tabela abaixo:
Órgão Ano Entidade org.
MS
I NSS
Cargo
Analista Previdenciário
CESPE
2002
Técnico Previdenciário
Analista Previdenciário
2004 CESGRANRIO Médico Perito da Previdência Social
Técnico Previdenciário
Perito Médico
FCC
2006
Analista do Seguro Social
2007
CESPE
Técnico do Seguro Social
2008
FUNRIO
Analista do Seguro Social
2010
CESPE
Perito Médico Previdenciário
Agente Administrativo
CESPE
2008
Analista Técnico-Administrativo (PGPE 1)
Profissional de nível superior (não médico)
Fonoaudiólogo
Médico (Cardiologia)
2009
CESPE
Médico (Clínica Médica)
Médico (Medicina do Trabalho/Ocupacional)
Médico (Psiquiatria)
Técnico em Contabilidade
Vagas Remuneração
1525
R$ 1.011,07
2275
R$ 629,20
R$ 1.433,04
299
1407
R$ 2.164,32
567
R$ 853,70
1500
R$ 3.418,21
616
R$ 2.243,78
1400
R$ 1.989,87
R$ 3.586,26
900
R$ 4.149,89
467
900
R$ 1.814,95
128
R$ 2.643,28
467
R$ 2.222,72
19
R$ 2.222,72
R$ 2.222,72
11
33
R$ 2.222,72
22
R$ 2.222,72
R$ 2.222,72
2
72
R$ 1.910,95
4.1 Como foi feita a coleta
Ao lado da revisão bibliográfica e da base de dados, realizamos entrevistas com
gestores de Recursos Humanos de órgãos da Administração Pública. Nosso intento era
ouvir aqueles que tinham a necessidade de contratação de servidores públicos e que, por
isso, lidavam com a organização do processo seletivo desde uma fase anterior ao certame,
isto é, o planejamento das atividades dos órgãos e sua necessidade operacional, até a
alocação do então servidor em um posto de trabalho.
Buscávamos entender como o entrevistado compreendia o processo de recrutamento
de que dispõe a Administração Pública; se ele via coerência entre o processo seletivo e as
competências que o candidato deveria ter para o exercício das funções que desempenharia,
caso fosse selecionado. Para chegarmos até a compreensão do ponto de vista do
entrevistado, estruturamos nossa entrevista, dividindo-a em quatro momentos:
1) perguntas pessoais: nesse momento, perguntávamos sobre a trajetória profissional
do entrevistado; o caminho que traçou até a chegada ao setor de Recursos Humanos do
órgão a que se achava vinculado. Também buscávamos entender seu cotidiano de trabalho
e os principais problemas e dificuldades enfrentados;
321
Volume 49 I.indd 321
13/11/2013 17:03:00
PENSANDO O DIREITO, n° 49
2) apreciação das instituições e dos processos: nesse ponto, ouvíamos sobre o
recrutamento da instituição da qual fazia parte o entrevistado, a relação entre o processo
seletivo e as habilidades e competências necessárias para o desempenho das atribuições do
cargo, a forma de alocar pessoas em seus postos de trabalho e as dificuldades decorrentes
e também sobre as questões jurídicas que envolvem o processo de recrutamento do servidor
público e, finalmente, sobre o papel que o entrevistado desenvolvia nesse processo;
3) apreciação do entorno: aqui, buscávamos entender como o entrevistado via o
recrutamento dos outros órgãos da Administração; se havia, entre o seu órgão e os
demais, o compartilhamento das dificuldades e obstáculos ou se aquilo a que se referiu
em momento anterior seria uma peculiaridade de seu próprio órgão. Além disso, nesse
momento, também perguntávamos sobre o apoio que receberia ou não de outros órgãos,
especialmente, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Ainda, perguntávamos
sua opinião sobre os modos de preparação dos candidatos;
4) prospecção sobre o problema: finalmente, ouvíamos o que pensava quanto a
possíveis mudanças no processo de seleção de funcionários públicos e quais alterações
precisariam ser feitas para potencializar seu trabalho de gestor de pessoas.
É importante ressaltar que elaboramos um roteiro de entrevista e não um questionário.
Isso significa dizer que não fizemos perguntas fechadas e que, portanto, nossas entrevistas
seguiam um fluxo próprio e tinham um caráter mais exploratório que de levantamento de
dados. Essa característica liga-se, principalmente, às limitações de tempo e de orçamento a
que estávamos adstritos – nossos esforços voltaram-se para a construção da base de dados
mencionada neste relatório. Entretanto, podemos seguramente afirmar a importância do
que colhemos das entrevistas para uma compreensão mais abrangente de nosso problema,
haja vista a inserção das informações obtidas em momentos de análise dos dados e de
propositura de um novo marco legislativo. É importante dizer que o caráter exploratório
de que falamos se fará sentir, também, na nossa análise.
Aliada às restrições de tempo e de orçamento, enfrentamos a dificuldade de colaboração
com a pesquisa. Pretendíamos entrevistar os gestores dos seguintes órgãos: Ministério
da Educação, Ministério da Justiça, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão,
Ministério da Saúde e o Instituto Nacional do Seguro Social. Desses, nos foi possível
apenas entrevistar os três últimos.
Dessa maneira, foram entrevistados servidores que ocupam os cargos a seguir:
322
Volume 49 I.indd 322
13/11/2013 17:03:00
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Cargo
Órgão Datas
Chefe/ Gestor
Instituto Nacional do
27 de setembro de 2012
Seguro Social (INSS)
Gestor
Ministério da Saúde (MS)
01 de novembro de 2012
Chefe/ Gestor
Ministério do
01 de novembro de 2012
Planejamento,
Orçamento e Gestão
(MP)
4.2 Narrativas sobre os concursos
Passemos, então, ao conteúdo das entrevistas. Primeiramente, quanto à trajetória de
nossos entrevistados, percebe-se que, à exceção do Gestor do MP (servidor público há
dois anos), todos os demais entrevistados já atuam no serviço público há, pelo menos,
duas décadas. Vivenciaram, assim, um longo período em que não havia contratação de
servidores públicos por meio de certames; em seu lugar, a Administração contratava
empresas que lhe forneciam trabalhadores; falamos da terceirização do trabalho antes
desenvolvido por servidores. É importante ressaltarmos essa vivência porque ela implica
em duas consequências: primeiramente, em uma inexperiência de se fazer/organizar
certames; e, em segundo lugar, de uma relação próxima a outro tipo de contratação, a
de trabalhadores temporários.
Como consequência da primeira vivência, os entrevistados falam das dificuldades
de se fazer certames de abrangência nacional sem qualquer experiência pretérita. Eles
lidaram com uma legislação antiga e que não atende suas necessidades atuais, além de
enfrentarem situações não previstas, como a dificuldade de alocação de servidores recémconcursados em postos de trabalhos distantes das capitais. A menção desses dois grandes
obstáculos diz respeito à inexperiência em observar a legislação e o edital de abertura
de certames como instrumentos vinculatórios de sua atuação enquanto Administração
Pública. Diversas questões judiciais sucederam a essas experiências e serviram como
guias para os certames posteriores.
Além disso, quanto à relação que estabeleceram com trabalhadores advindos da
prestação de serviços por empresas terceirizadas, dois pontos interessantes surgem.
Primeiramente, pode-se dizer que, antes da retomada dos certames, os entrevistados
contratavam de acordo com as necessidades que encontravam e de forma mais livre, isto
é, não precisavam recorrer a uma legislação que os confinasse a um modelo de cargo,
requisitos e atribuições. Por outro lado, não tinham de se preocupar em atender às
vontades ou situações pessoais de cada trabalhador. Caso não se adaptassem ao trabalho
ou tivessem questões comportamentais, bastaria uma demissão simples e a realocação
de outro trabalhador. Ressalte-se que essa relação com trabalhadores terceirizados durou
323
Volume 49 I.indd 323
13/11/2013 17:03:00
PENSANDO O DIREITO, n° 49
cerca de uma década. Dessa maneira, o encontro com a realidade de contratação de servidor
público foi bastante complicado, uma vez que passaram a gerir um cotidiano de trabalho
repleto de pessoas que só podem ser demitidas nos casos expressos em lei6, dentro dos
quais não se incluem questões comportamentais ou mesmo a produtividade/desempenho.
Os servidores recém-empossados não podem ser dispensados por questões posteriores
à sua posse que, mesmo estritamente afeitas ao seu desempenho e atuação no ambiente
de trabalho, não estejam expressas em lei, e, quando esse funcionário exonera-se, impõe
ao órgão público a difícil tarefa de realizar outro certame para o preenchimento da vaga.
Assim, as dificuldades que os entrevistados enfrentam quanto ao processo de
recrutamento poderiam ser listadas como a seguir: (i) a construção de um perfil adequado
ao trabalho versus a defasagem da lei quanto aos cargos e suas atribuições e habilidades;
(ii) a ausência de mecanismos que permitam eliminar do quadro aqueles que, uma
vez empossados, não produzem ou têm questões comportamentais que influenciam
negativamente no cotidiano de trabalho; (iii) a realidade salarial como geradora da alta
rotatividade, a conhecida “escadinha”; e (iv) a negociação da autorização para realização
de certames com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Quanto ao último tópico, tendo a década de 1990 tornado a contratação temporária
a regra do funcionalismo público, no primeiro decênio de 2000, o Ministério Público do
Trabalho resolveu intervir e provocou a celebração de diversos Termos de Ajustamento de
Conduta (os chamados TACs), pelos quais os órgãos da Administração Pública deveriam
dispensar de seus quadros os trabalhadores temporários e proceder à realização
de certames. Colocava-se o esvaziamento de pessoal no verso. No reverso, estava a
necessidade de se angariar autorizações do MP para a realização dos certames. É neste
ponto que as entrevistas do MS e do INSS aproximam-se ainda mais e se distanciam
bastante da entrevista com o MP.
Foi enfatizado por todos a necessidade de cuidado com a gestão de pessoas. Foram
muitos anos sem a possibilidade de contratação de servidores públicos; alguns servidores
que ingressaram antes da década de 1980 já faleceram, uns tantos já se aposentaram e,
atualmente, um grande contingente pode requerer sua aposentadoria a qualquer tempo.
A necessidade de certames é evidente, mas há uma restrição orçamentária: não se pode
conceder vagas para todos os órgãos. Com base em que critérios o MP autoriza alguns
órgãos e não outros?
Ouvimos dos órgãos que necessitam das vagas que algumas estratégias devem ser
traçadas, dentre as quais a demonstração da necessidade em cada posto de trabalho em
perspectiva, ou seja, a demonstração de como ficará o quadro nos próximos anos. Essa parte
não é a mais difícil. Uma vez demonstrada, segue-se a alegação de falta de orçamento. É
feita, então, uma espécie de acordo, pelo qual o MP concede autorização para parte das
vagas em determinado ano e se compromete a conceder novas autorizações nos próximos
6 Cf. art. 139 da Lei nº 8.112/90.
324
Volume 49 I.indd 324
13/11/2013 17:03:00
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
anos. Do que depende o sucesso ou insucesso da negociação desses compromissos, no
entanto, não nos foi explicado.
Ouvimos do MP que a demonstração da necessidade segue um caminho que, à primeira
impressão, pode parecer justo, mas que não é adequado do ponto de vista da gestão de
pessoas. Isso porque há muitos cargos defasados: nas décadas de 1970 e 1980, os órgãos
públicos admitiam pessoas para as áreas-fim, mas também para as áreas-meio. Assim,
havia datilógrafos, gráficos, copeiros, por exemplo. Dito de outra maneira, há diversos
cargos que ou não são mais necessários na atualidade ou passou-se a admitir empresas
que prestam esses serviços. Nesse sentido, a demonstração do número de vagas ociosas
por falecimentos e aposentadorias não é apta a retratar a verdadeira necessidade. É
preciso demonstrá-la por outros meios que não os apenas quantitativos. Foi ainda falado
que há certa tradição de se pedir vagas acima da real necessidade para que, em caso de
negativa do MP, alcance-se o número de vagas desejado.
Vemos, então, que há uma disputa quanto à autorização para realização de certame
em que prevalece, à primeira vista, os critérios de necessidade que são estabelecidos
pelo MP. Parte da equipe técnica dos órgãos faz um grande esforço de demonstração de
sua realidade e das necessidades com que convivem, mas há também, inegavelmente,
uma equipe política dos órgãos que também atua.
O percurso que fizemos até aqui conseguiu abranger a trajetória das vidas profissionais
dos entrevistados e as consequências para a contratação por certame e a própria dificuldade
de obter sua autorização. Passemos, então, ao que falam sobre os certames em si.
Perguntados sobre as provas, os entrevistados falaram de uma dificuldade de selecionar
o candidato que querem. Uma de nossas perguntas versava sobre a possibilidade de as
provas, tais como são, serem capazes de aferir habilidades para o desenvolvimento das
atividades que exercerão os candidatos selecionados. Interessante notar que as respostas
foram no sentido de que, embora tentem fazer isso, tal aferição não é possível porque é
bastante provável que as provas sejam questionadas quanto à sua objetividade. De qualquer
maneira, os órgãos tentam produzir provas de múltipla escolha e dissertativas que venham
a selecionar o perfil que buscam. Assim, tentam incluir um conteúdo programático mais
ou menos focado em legislação, mais ou menos voltado para estudos de casos, conforme
o perfil que desejam selecionar.
No entanto, nossos entrevistados estão em órgãos que não realizam as provas per se.
Contratam empresas que se responsabilizam pela elaboração do edital, contratação de
bancas, criação e correção das provas. Narraram, então, como é o relacionamento entre
a entidade organizadora e o órgão. O último é quem dá o tom do certame, ou seja, é quem
fala dos perfis que deseja selecionar, que matérias e qual ênfase deseja conferir em cada
um dos pontos do conteúdo programático das provas. A entidade organizadora avalia a
viabilidade do projeto de seleção do órgão. Uma vez alcançado um consenso sobre o que o
órgão quer e o que se pode fazer, todo o certame passa a ser gerido pela entidade. O órgão
325
Volume 49 I.indd 325
13/11/2013 17:03:01
PENSANDO O DIREITO, n° 49
não tem qualquer relação com o candidato até o momento em que esse é selecionado.
Vê-se a grande responsabilidade cedida às entidades organizadoras.
Perguntamos sobre como se dá o processo de escolha dessa entidade. Ouvimos que,
na ausência de qualquer normatividade sobre o tema7, os órgãos desenvolveram meios
próprios de proceder à seleção. Assim, fazem chamadas públicas e desenvolvem uma
licitação. Colhem as propostas de preços, mas, dados os conflitos em que podem se
envolver caso haja entraves nos certames, avaliam uma série de quesitos como segurança,
capacidade de contratação de pessoal para aplicação das provas, acesso às bancas, dentre
outros, para selecionarem a instituição promotora do certame.
Essas instituições lhes entregam, ao final, os candidatos aprovados. A partir desse
ponto, saem de cena e a relação entre o candidato e o órgão público se consolida. Os
problemas e soluções que seguem fogem ao escopo de nossa pesquisa.
Percebemos a contribuição que as entrevistas nos dão em razão da qualidade das
informações que obtivemos. Foi-nos possível compartilhar a visão dos administradores
públicos que pensam o certame e o tornam viável. A partir deles, pudemos levantar
o procedimento que antecede o certame e também onde estão alguns dos problemas
que precisam ser superados. Finalizamos com a listagem das mudanças que nossos
entrevistados consideram necessárias para que o processo de recrutamento de funcionários
públicos seja mais eficaz:
(i) Atualização das leis que estabelecem os cargos e suas atribuições;
(ii) Estabelecimento de meios que permitam a avaliação psicológica mais rigorosa;
(iii)Instituição de mecanismos que permitam a dispensa por questões relativas à
produtividade, dentre eles, o empoderamento do estágio probatório; e
(iv) Ajustamento dos salários entre as carreiras para que haja menos rotatividade.
4.3 O estudo de casos propriamente dito:
Esta seção visa organizar os dados coletados para descrever dois sistemas de seleção
que foram mapeados ao longo da pesquisa. Estes estudos de caso estão fortemente
relacionados com duas entrevistas realizadas e com os dados coletados na base de dados
que é o ponto angular do projeto de pesquisa. Uma ressalva deve ser feita no sentido de que
a ideia inicial do projeto, tal como aprovado pela SAL/MJ e demais parceiros, era realizar
um estudo sobre as seleções da carreira dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão
7 Nosso entrevistado se refere a inexistência de dispositivos legais específicos que regulem a atividade de organização de certames. É evidente
que a relação entre o órgão que recruta e a entidade organizadora é regida por normas constitucionais, pela Lei nº 8.666/93 e por meio de
contrato. Porém, estas são as normas gerais que tratam de quaisquer tomadas de produto ou serviço privado pelo Estado.
326
Volume 49 I.indd 326
13/11/2013 17:03:01
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
e da Advocacia-Geral da União. Havia uma intuição de que estas carreiras estariam mais
estruturadas e seria possível extrair boas práticas para que fossem replicadas aos demais
setores da Administração Pública. Todavia, a consultoria do Ministério da Justiça e os
gestores do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão demandaram que fossem
estudados casos relacionados às carreiras “problemáticas”, notadamente identificadas
como aquelas que possuíam uma remuneração menor. Foi relatado que o problema do
Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE), bem como da carreira da Previdência,
Saúde e Trabalho (PST), seria a baixa retenção de servidores, que tendiam a se exonerar
e realizar outros certames. Um exemplo pode ser visto nesta entrevista com servidores
do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão:
Há a rotatividade que é o assunto que é hoje mais falado. (...) É a rotatividade.
Elas entram hoje, mas já estão fazendo outro concurso. Não ficam seis
meses. Vão embora. Aí você tem outra dificuldade de repor. Isso não só
no nível médio, mas também nestas outras carreiras, como o PGPE e
PST. (...) Tem muitas distorções nas remunerações das próprias carreiras.
Então, isso também contribui para este processo.
O mesmo tom foi adotado por servidores no Ministério da Saúde:
Aqui, em Brasília, o agente administrativo que entra ganhando cerca de
R$ 2.900,00, eu acho. Aqui em Brasília, de três anos para cá, quantos
concursos a gente teve? Teve um concurso para 600 vagas. Todo mundo
que foi chamado, acabou indo embora. Não tem nenhum. Eu fiz um
banco de 2.400 candidatos. Foram chamados os 2.400 e eu não preenchi
nem 500 vagas. E, assim, eles entram e saem. Passou num concurso
melhor. Um agente administrativo do TCU ganha R$ 6.000 ou R$ 7.000 e
faz a mesma coisa que se faz aqui. Então, eles vão passando em outros
concursos e não ficam. A rotatividade desse concurso de nível médio é
altíssima. A gente não consegue preencher todas as vagas. Não conseguiu
fixar as pessoas. (...) No nível superior tem rotatividade também. Mas não
como a que existe no nível médio. A rotatividade do nível médio assustou
porque a gente não imaginava. (...) Foi muito difícil porque a gente fez este
concurso para cumprir um termo de conciliação com o Ministério Público
do Trabalho. A gente tinha terceirizado o nível médio por conta daquela
história de ficar 25 anos sem concurso público. As pessoas vão embora,
se aposentam e tal e você não tinha como repor. Veio a terceirização; o
Ministério Público, trabalhando, mandou tirar. Fizemos um termo de
conciliação e fizemos um concurso para substituir os terceirizados. À
época, o Ministério do Planejamento não permitiu a substituição de um
por um. Então, foi feito o concurso público com 600 vagas para tirar 900
terceirizados. Os terceirizados foram embora e eu não preenchi as 600
327
Volume 49 I.indd 327
13/11/2013 17:03:01
PENSANDO O DIREITO, n° 49
vagas. Está uma situação terrível aqui no Ministério da Saúde, faltando
gente em várias áreas.
No caso do INSS, a rotatividade foi menos relacionada com questões de remuneração
e mais relacionada com a dificuldade de fixar pessoas em locais remotos. Uma similaridade
é o caso de médicos, que possuem outras opções de remuneração e preferem ficar em
cidades maiores:
De não fixação do servidor no órgão? Nós temos uma média de 20%
ainda de saída. Se você pega uma projeção de quando nós começamos
os concursos públicos, isto é, de 2003 para cá – ou melhor, de quando
recomeçamos o concurso, de quando retomamos os concursos – nós
temos uma perda, uma evasão, na faixa de 20 a 23%, dependendo da
categoria. Você não fixa os servidores. São vários fatores. Uma parte deles,
principalmente na carreira do perito médico, é a impossibilidade de se
atender o pleito de remoção (mudança de local de trabalho) de imediato.
(...) A gente precisa dele lá e por isso que foi aberta a vaga naquele local.
As entrevistas foram realizadas com servidores do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, do Ministério da Saúde e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
A vantagem de realizar as entrevistas exploratórias com pessoal qualificado destes três
locais foi identificar dois focos de percepções que estão estruturalmente relacionados em
um sistema de cooperação, dependência e tensão. Os órgãos setoriais precisam sempre
lidar com o MP, na condição de gestor central do sistema de pessoal civil, ao passo em
que este precisa acompanhar as experiências das áreas específicas para poder derivar
regras gerais.
Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão
Definição de regras e
procedimentos gerais, bem como
de acompanhamento.
Espaço de colaboração e tensão
entre prescrições gerais e
demandas específicas.
MS
INSS
Necessidades e demandas
específicas, bem como postulação
de autonomia.
Por mais que tenham havido poucas entrevistas, em razão da quantidade de dados
que deveria ser coletada e analisada com atenção ao tempo para a pesquisa de campo,
combinada com a tabulação das informações dos editais, a apreciação delas demonstra
grande riqueza para a pesquisa. A escolha dos dois órgãos setoriais foi acertada, já que
alguns problemas se repetem nos outros ministérios e entidades Federais. Exemplificando:
os relatos dos servidores do INSS apontavam para uma lacuna de 18 anos na realização de
328
Volume 49 I.indd 328
13/11/2013 17:03:01
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
certames para a entidade e as informações mencionadas pelos servidores do Ministério
da Saúde eram de uma ausência de certames por 25 anos. Assim, pode-se visualizar
que o problema do Ministério da Saúde é compartilhado por diversos outros Ministérios
e entidades vinculadas cujos servidores estão alocados no denominado “carreirão”:
Eu não vejo muita diferença entre os problemas do Ministério da Saúde
e os experimentados por outros, não. Eu acho que a gente compartilha
esses problemas. A estrutura das carreiras é a mesma. A maior parte dos
órgãos está no “carreirão”, ou seja, PST ou PGPE. Eles têm os mesmos
problemas que a gente: a questão de não conseguir fixar por conta de
salário e de ter um concurso que não atende ao perfil desejado. O salário
é o mesmo em todos eles. Nossos problemas são comuns8.
De um modo geral, a ideia estava baseada em dois focos: uma maneira manter
o servidor nestas carreiras; e como dispensar os servidores que não mostrassem
desempenho adequado.
Por outro lado, há uma percepção generalizada de que as pessoas que
estão entrando não têm o perfil adequado. É até um pouco contraditório,
mas ninguém para e analisa, também. (...) Os órgãos mencionam que há
o problema: “eu tenho aqui várias pessoas, mas eu não posso me livrar
delas; não posso contar com elas”. Isto esbarra na questão do estágio
probatório e a dificuldade de se avaliar e realmente utilizar o estágio
para a finalidade que ele tem: adequar a força de trabalho e tudo o mais.
Mas existe essa percepção que “as pessoas que estão entrando elas não
estão me atendendo e por isso eu quero mais”9.
Outro problema evidenciado era que os demais órgãos da Administração Pública
Federal não tendiam a realizar uma avaliação efetiva das suas necessidades, em termos
de pessoal. Esta ausência de planejamento prévio, pelo relato dos gestores do MP, geraria
uma demanda contínua de pessoal, sem uma aferição detalhada da organização do trabalho
cotidiano:
A gente queria que se levantasse de modo geral, em todos os órgãos, a
necessidade dos concursos surgirem dessa percepção que sempre está
faltando gente. Às vezes, são os processos que estão desorganizados:
gente em excesso em uma área e faltando na outra. A principal demanda
decorre de cargos vagos: “eu tinha mil no ano passado e este só tenho
oitocentos; eu preciso de gente”. Então, muitas vezes a gente percebe
isso, eles [os demais órgãos da Administração Pública] apresentam
uma proposta de concurso que cobrem os cargos vagos que eles têm.
8 Ministério da Saúde.
9 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
329
Volume 49 I.indd 329
13/11/2013 17:03:01
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Claro que algumas carreiras mais estruturadas têm áreas que estão
trabalhando permanentemente com estas questões e têm trabalhos
mais avançados, que usam parâmetros mais adequados para levantar
as suas necessidades. Mas, de modo geral, a nossa percepção é que o
maior parâmetro é para prover “cargo vago”.
É interessante notar que a percepção do órgão central é diferente da visão dos
órgãos setoriais, que reivindicam mais autonomia e flexibilidade para a realização de
certames periódicos para reposição de pessoal:
Essa política de que os órgãos não têm autonomia para fazer concurso
é muito ingrata. A lógica que o Ministério do Planejamento usa para
autorizar não [sic] é uma política de pessoal. Ele não tem uma política
de “vamos fazer concurso de dois em dois anos para repor quem se
aposenta”. Não! A lógica dele é: “quanto dinheiro tem este ano? Tem 10
milhões? Então é concurso para 10 milhões; ou para cinco, seis milhões
de reais”. É o gasto com pessoal. Então é muito difícil. Imagina, a gente
ficou 25 anos sem concursos públicos. Qual é a idade do nosso pessoal?
Eu sou a novinha daqui. Dos 80 mil ativos, 20 mil podem se aposentar no
minuto em que quiserem. Os demais estão com previsão de aposentadoria
para daqui a dois ou três anos. E eu não tenho uma política para repor.
As pessoas simplesmente vão embora. E damos graças a Deus a hora
no momento [sic] em que se consegue autorização para um concurso.
Mas, quando eu consigo um concurso, os aprovados não ficam. Eles
vão embora, pois o cargo paga pouco. A gente tem discutido muito. Se
o Planejamento autorizasse que o órgão tivesse um quadro de lotação
ideal e, dentro desse quadro, se pudesse ir repondo as vacâncias, isto já
seria um ganho enorme.10
Este problema se espraiaria, também, para a ausência de avaliação das funções
necessárias para o funcionamento do órgão.
Não há uma análise se aquele cargo é ainda necessário para o
funcionamento de determinada área de um Ministério, por exemplo.
Esse tipo de análise é uma percepção, também, não tem dados. Mas essa
percepção é que a análise prévia do perfil não é feita. Ou ela é feita de
forma muito precária. Esse é um motivo, inclusive, que tem nos levados
a pensar nesse novo projeto de longo prazo. O dimensionamento que
10 Ministério da Saúde.
330
Volume 49 I.indd 330
13/11/2013 17:03:02
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
seria uma etapa do planejamento da força de trabalho.11
Novamente, a réplica dos gestores setoriais demonstra que seria imperativo
desenhar e avaliar detidamente as funções nos diversos locais de trabalho de forma
transversal e cooperativa. Se, por um lado, o MP traça diretrizes gerais, por outro, as
especificidades estão nos órgãos setoriais. É interessante notar o espaço para estudos e
políticas de mapeamento que precisam ser empreendidos:
Temos muitos problemas, muitos. Eu acho que um dos maiores é porque
o Ministério do Planejamento não conhece os demais órgãos. Ele tende
a ter regras gerais, comuns para todo mundo. Assim, não atende as
especificidades dos órgãos. Eles têm que conhecer melhor os órgãos
para poder fazer uma política melhor. Acho que eles estão tentando fazer
isso nesta gestão agora. Eu espero que dê certo.12
Além disto, a falta de preparação prévia ao certame seria visualizada como central:
Se a gente fosse começar do início do processo do concurso, seria a
necessidade de planejamento. A ideia seria qualificar o órgão para que ele
pudesse demandar adequadamente. Pois, se ele tiver um planejamento
adequado, terá condições de fazer uma execução mais adequada para
conseguir realmente com que o concurso seja mais efetivo. (...) A proposta
é que os órgãos criem comissões internas com o envolvimento da alta
direção para discutir questões estratégicas, relacionadas às necessidades
de pessoal, para que isso não fique restrito somente às unidades de
recursos humanos. A gente sabe que elas acabam ficando totalmente
presas no dia a dia do operacional e têm pouco envolvimento nas questões
mais estratégicas. Apesar de um discurso de uma gestão estratégica
de pessoas, na prática, a Administração Pública ainda está muito longe
disto. (...) Então, procurar exigir, criar uma comissão que discuta, que
defina estrategicamente a necessidade da organização: com relação à
questão das competências, do perfil mais adequado, das modalidades
de avaliação que podem ser usadas. O que a gente tem hoje?13
Outro tema relacionado com este seria a necessidade de aumentar a atuação da
11 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
12 Ministério da Saúde.
13 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
331
Volume 49 I.indd 331
13/11/2013 17:03:02
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Administração Público no tocante ao funcionamento do processo de formatação do certame
como um todo, desde o seu início. Como indicado na entrevista:
A formação da comissão de concurso entra também nesta intermediação
com a empresa que é contratada para fazer o concurso porque, a partir
do momento que se tem um grupo de pessoas que conhece bem as
necessidades, há condições de exigir mais qualidade do serviço que está
sendo prestado. Você tem condições de demandar melhor. Porque, do
contrário, o órgão larga na mão da empresa que vai realizar o concurso.
Isto permite a apreciação do processo como um todo. Para, depois, pegar
um relatório com os problemas que os candidatos tiveram e, enfim,
analisar. Olhar e dizer que algo não está de acordo com o contratado.
Verificar se o serviço foi prestado.14
Um debate importante sobre isonomia está relacionado ao fato de que ela é
percebida socialmente no Brasil como algo que deve ser pensado por uma “média”
abstrata. Assim, o certame mais “isonômico” seria aquele que permitisse a mais ampla
concorrência e não a igualdade entre os diferentes. Um bom exemplo foi diálogo relacionado
ao fato de pessoas com nível superior concorrerem sistematicamente para cargos de nível
médio e retirarem vagas de pessoas menos qualificadas. A pergunta do entrevistador foi
a seguinte:
Na verdade, assim, eu queria saber qual a percepção de vocês em relação
a uma coisa que eu vejo muito, que é fato de pessoas que têm nível
superior por um bom tempo prestarem sistematicamente concursos
em funções de segundo grau e ficarem pressionando dentro do órgão, a
que pudessem desempenhar outras atribuições que não aquelas para
as quais fizeram concurso. Ou seja, postular um degrau acima. (...) É o
seguinte: você é doutor? Tudo bem. Vai ser discriminado em prol daquele
outro que, na verdade, não teve condições de acesso ao ensino superior.
Ou seja, foi perguntado como seria possível equilibrar uma discriminação positiva
que viesse a garantir a manutenção de servidores com nível médio em funções de nível
médio. Isto porque, ao longo do diálogo, surgiu uma pergunta-chave: “Como você vai
selecionar uma pessoa mais qualificada para fazer um trabalho tão operacional?”. A
gestora respondeu:
Eu acho que é uma discussão muito difícil porque ela tem dois lados,
também, não é? O nível da educação, a qualidade da educação no Brasil
ainda é muito baixa. Então, a pessoa batalha, se esforça para fazer um
curso superior para galgar outros patamares sociais, econômicos da
vida, não consegue passar num concurso de nível superior e ela está
14 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
332
Volume 49 I.indd 332
13/11/2013 17:03:02
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
impedida de prestar um concurso de nível mais baixo?15
Um dado relevante sobre a ideologia concurseira é o fato de que os certames
Federais têm sido marcados pela prática de ampliação das vagas ofertadas. Assim, foi
descrito que é usual ofertar um número inicial de vagas, devidamente autorizadas pelo
MP e, depois, com base na prerrogativa excepcional de acréscimo das vagas em até 50%
(cinquenta por cento), ser iniciada uma luta política e jurídica em prol da nomeação de
excedentes em relação às vagas previstas. O problema foi assim descrito:
Hoje, o nosso normativo (Decreto n. 6944/2009) prevê a possibilidade da
Ministra autorizar um acréscimo de vagas em até 50% do número inicial.
Também há uma previsão de que é homologado apenas um determinado
quantitativo dos candidatos que são aprovados no concurso. A nossa
proposta é acabar com esses mecanismos. O concurso foi feito para 100
vagas? Então, só seriam autorizadas mais vagas numa excepcionalidade
levada ao Presidente da República. A ideia é não trabalhar com adicionais
como rotina. Assim, seriam homólogos todos que passaram no concurso;
e, enquanto essas vagas não forem preenchidas, haverá candidatos
aprovados para preencher as vagas que foram efetivamente postas em
concorrência. (...) Então, o candidato acabou de passar e desistiu? Eu
posso chamar o próximo.16
Isto é visto como um elemento negativo por dois motivos. O primeiro é intrínseco à
Administração Pública. A possibilidade de expansão das autorizações de nomeações em até
50% dos cargos colocados em disputa é vista como um fator prejudicial ao planejamento:
A gente quer realmente incentivar os órgãos a fazerem um planejamento
de fato do que eles precisam. Então, se há um mecanismo que permita
nomear mais 50% depois, isto tem repercussões muito ruins. (...) Na
nossa análise, acaba se levando em consideração que vão ser nomeados
mais cinquenta por cento. O órgão, quando está correndo o concurso, já
está levando isso em consideração também e aí ninguém planeja nada
de jeito nenhum.17
A segunda é o risco de pressões na Administração Pública em prol da nomeação de
excedentes.
Os grupos de excedentes... Hoje, se organizam estes grupos de excedentes
em concursos públicos para pressionar para “entrar”. Eu acho que há,
sim, uma pressão no Ministério do Planejamento, pois todo mundo sabe
15 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
16 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
17 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
333
Volume 49 I.indd 333
13/11/2013 17:03:02
PENSANDO O DIREITO, n° 49
que este é o órgão que vai autorizar tanto as vagas originárias quanto a
nomeação dos 50% de excedentes. Assim, em última instância, a pressão
é aqui. (...) Os próprios candidatos se organizam para pressionar porque
o órgão está “precisando de pessoal” e, assim, “teria que autorizar mais
50%” de cargos. Ora, mas foi feito um planejamento para dizer isto? Não!
Eles entram no Ministério Público Federal, por exemplo. E os procuradores
chamam para negociar. (...) Então, o grupo de excedentes procura o
Ministério Público, que convoca o Ministério do Planejamento para uma
audiência, de modo a discutir o assunto. Afinal, os candidatos estão
pressionando para serem nomeados. Os candidatos dizem que o órgão
precisa de pessoas e que eles estão aprovados no concurso. (...) Também
há e-mail com pedido de informação para saber se vai ser autorizada a
nomeação de mais 50%. Eu recebo e-mail! (...). Então eu recebo muito
e-mail de candidato dizendo que tem necessidade.18
Da análise da perspectiva geral, dada pelo MP, é bastante interessante passar à
visualização do problema pela ótica dos órgãos setoriais. Esta passagem demonstra como
os problemas gerais possuem uma contrapartida específica e localizada.
4.4 O caso do Ministério da Saúde
Depois de muitos anos sem poder realizar certames, o Ministério da Saúde
acomodou sua gestão de pessoal em duas soluções. A primeira era a terceirização
generalizada, atualmente visualizada como um problema pelo Ministério Público do
Trabalho. A segunda era a contratação de pessoal temporário, por meio de seleções
públicas simplificadas. Cabe ressaltar que a área de saúde possui uma intricada e complexa
gama de atividades que se imbricam e, muitas vezes, demandam pessoal temporário. Basta
pensar em projetos de pesquisa e na vigilância sanitária. Ou, ainda, no caso de controles
de epidemias. Há atividades que, por sua própria natureza, na área de saúde, demandam
pessoal temporário. Como lidar com as necessidades intrínsecas de flexibilidade em meio a
um sistema de seleção e recrutamento que possui rigidez? A primeira e maior reclamação
– que é generalizada – é catalisada ao redor do órgão que funciona como coordenador,
que é o MP. Ele acaba sendo o estuário de todas as dificuldades envolvidas nos diversos
setores da Administração Pública Federal, em razão do seu papel de coordenador das
políticas públicas de gestão de pessoal: “Os órgãos não tem governabilidade para fazer
concurso. Não tem autonomia. A gente depende do Ministério do Planejamento para tudo.
Ele tem que autorizar. Ele tem que dizer se pode ou não pode.”19
A rigidez não envolve somente a questão dos servidores temporários e do pessoal
terceirizado. Ela envolve também a estrutura legal das carreiras, em especial pela ausência
18 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
19 Ministério da Saúde.
334
Volume 49 I.indd 334
13/11/2013 17:03:02
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
de flexibilidade na definição de perfis de cargos, subdivididos em dois temas: a formação
exigida e o rol fixo de atribuições do cargo (função). É didático visualizar o descompasso
da formação exigida para o cargo, em carreiras que estão muito defasadas temporalmente
e, assim, possuem uma extremada rigidez:
O caso do sanitarista, por exemplo. Quando o Ministério teve autorização
para fazer concurso aos cargos de sanitarista, foi se fui buscar na lei para
pôr as informações no edital. Temos que colocar no edital exatamente o
que está na lei. Foi quando eu descobri que esse cargo tem um requisito
de ingresso que é um curso de formação de 360 horas. É praticamente
uma especialização. A gente descobriu a origem disto na história. Na
época, não existia um curso reconhecido de sanitarista. Então, a pessoa
ingressava na formação da área da saúde. Enfim, enfermeiro que fosse.
Quando ele ingressava, obrigatoriamente, tinha que ter um curso de 360
horas para efetivamente virar um sanitarista. Por isso que isso era um
requisito na época. Atualmente, existe curso de graduação em Saúde
Coletiva, ou seja, de sanitarista. Hoje, eu poderia pedir isto no edital:
graduação. Então, eu não precisaria pedir mais o requisito dos anos 70
e fazer um curso de 360 horas. Não valia a relação custo-benefício (...).
Então a gente não fez o concurso de sanitarista. Esse é um exemplo.
Houve outro de técnico, em que o requisito da época não condiz com o
que é hoje. Então, houve que se mudar o edital; sofri ação civil. Houve
ação judicial por conta do que estava no edital e do que estava na lei. Só
que, hoje, o que está na lei de 1970 não condiz com a realidade em termos
de formação. As pessoas entraram na justiça e ganharam. Então, essa
questão do requisito do cargo é problemática. Então essa é uma questão
que dificulta esse recrutamento que é o perfil dos cargos: quando eu
não tenho o perfil dos cargos adequados. O engenheiro, por exemplo,
atualmente tem dezenas de ramificações e especialidades. O Ministério
sofre ação judicial porque o meu cargo de engenheiro – de outra época –
era um cargo geral para tudo. Você na lei e o engenheiro fazia mecânica,
elétrica, tudo o que você puder imaginar. A engenharia específica que
a gente precisa dentro dos hospitais não existia em 1970: a Engenharia
Hospitalar. Então, o Ministério precisa de engenheiro hospitalar e eu não
posso fazer a prova porque, quando eu leio o requisito legal do cargo, é
da década de 1970. Se fizer o concurso públicos pedindo a formação de
engenheiro hospitalar como requisito, haverá ação judicial pelo edital
divergir da lei.20
O mesmo problema pode ser visto através do prisma das atribuições dos cargos,
ou seja, as funções definidas na lei e que seriam inerentes ao trabalho cotidiano a ser
desempenhado pelo servidor.
20 Ministério da Saúde.
335
Volume 49 I.indd 335
13/11/2013 17:03:02
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Ele não é ele não traz [sic] o perfil que a gente precisa. Para começo de
conversa, eu não consigo recrutar as pessoas que eu preciso no quadro.
Um dos problemas é por conta de cargos com atribuições que foram
desenhadas em 1970. (...) Todo cargo de serviço público tem uma lei que
diz assim: o analista de planejamento e orçamento tem as seguintes
atribuições dele; deve fazer isto e isto. Quando fazemos o edital, temos
que pôr o que tá na lei. (...) Não se pode inventar. Então, quando se põe
o que está na lei – que é de 1970 – isto não funciona hoje. Então eu sofro
alguns problemas que me impedem de recrutar determinados perfis.
Volto ao exemplo da Engenharia Hospitalar. Como disse, não conseguimos
fazer o concurso para engenheiro hospitalar porque há tal requisito para
o cargo, nem atribuições específicas. Eu não posso inventar. De pronto,
eu precisei terceirizar este serviço. Quando o problema foi para a AGU,
os advogados disseram que não era possível terceirizar porque disseram
que o Ministério tem o cargo de engenheiro no quadro. De fato, existe o
cargo de engenheiro no quadro; mas ele não prevê engenharia hospitalar
e, por isto, eu não posso fazer concurso para esta especialidade, que é
tão necessária. Por um lado, não posso fazer o concurso. Por outro, não
posso terceirizar porque a AGU não deixa. Acaba que ficamos sem este
serviço nos hospitais. (...) As atribuições dos cargos estão muito defasadas.
O agente administrativo, que é um cargo nível médio, é um exemplo
clássico: se você entra na lei... O servidor tinha que fazer tanta coisa!
Deve ter umas dez páginas de atribuições. Uma coisa absurda. Ninguém
faz aquilo hoje. Eu tenho datilógrafo. Eu vou contratar datilógrafo? Eu
tenho digitador na carreira. Em torno de 70% dos cargos que eu tenho
na carreira não servem para fazer concurso. Há guarda de endemias,
vaqueiro, piloto de lancha. Tudo o que você imaginar. Afinal, em 70 tudo
isto era serviço público. (...) Então, eu tenho, assim, 30.000 cargos vagos;
desses 30.000, em torno de 20.000 são cargos que eu não posso usar.
Mas eles estão lá, na nossa carreira.21
A rigidez se espraia para o risco na montagem de certames com perfis genéricos,
que poderiam ser encontrados em quaisquer ministérios ou órgãos públicos. Estes
certames, atratores de candidatos “concurseiros”, entendidos como aqueles que buscam
qualquer cargo público como uma etapa de um percurso profissional, não servem para
atrair os quadros qualificados para a atuação em políticas públicas setoriais, como indicado
na entrevista, por dois motivos. O primeiro seria a baixa remuneração:
A nossa carreira não tem desenvolvimento. É sempre naquele cargo.
Você morre naquele cargo. O que eles chamam de desenvolvimento, que
é a promoção, é uma progressão automática. Ela não está vinculada a
21 Ministério da Saúde.
336
Volume 49 I.indd 336
13/11/2013 17:03:03
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
nenhuma avaliação ou a alguma análise de produção. Não está vinculada
a nada. Automaticamente, trabalhando bem ou mal, o servidor vai subir
um nível. Esse nível é só uma melhora financeira. Não está atrelado
a nada, em termos de desenvolvimento. Capacitou? Não capacitou?
Melhorou? Produziu mais? Cresceu? Não tem nada disto atrelado. É
automático! O servidor ganha 5% em cima do vencimento básico; é uma
merreca. E o grande problema da nossa carreira é salário. Nossa carreira
é reconhecidamente a pior da Esplanada dos Ministérios. Um médico hoje
entra no Ministério da Saúde ganhando cerca de R$ 3.400,00 brutos. (MS)
O segundo motivo é que o “carreirão” trata de cargos nos quais não há flexibilidade para
desenhar perfis de vagas, com a exigência de conteúdos programáticos e de habilidades
a serem aferidas:
Quando eu tenho cargos deste carreirão antigo – que [sic] você tinha
um cargo para cada coisinha que era feita: um para vigilante, um para
digitador, um para copeira, um para agente administrativo, um para
técnico de contabilidade, um para isso, um para aquilo – fica amarrado.
Não se consegue desenhar um perfil adequado. Então, eu recebo um
perfil de aprovado que não é bem o que preciso. O próprio concurso
público é muito amarrado. Ele não me deixa abrir esses perfis. A lógica
de concurso público hoje não permite que eu faça escolhas. Eu não
quero concurseiro aqui. Os concursos que a gente fez, a gente conseguiu
negociar com a banca que a gente queria questões situacionais. A gente
não queria aquelas questões estritamente teóricas, de decoreba e tal.
(...) Então, não é como o Ministério do Planejamento um dia pensou: “eu
vou colocar no Ministério da Saúde um médico e um enfermeiro”. Não
é! Para a área finalística, eu preciso de um médico com determinada
formação. De preferência, com algum título que remeta o perfil dele para
aquela determinada política pública. E eu não consigo fazer isso com
concurseiro. Os concurseiros vêm somente com teoria. Eu não posso,
de repente, entregar uma política pública na mão de um menino que
acabou de se formar e que não tem experiência nenhuma. Então, para a
minha área finalística, eu não posso usar o meu carreirão. Eu teria que
desenhar um perfil.22
Certamente, este problema não aparece quando se focaliza nos cargos vinculados às
atividades-meio. Elas podem atrair concurseiros e isto nem é visualizado como problema:
Quando eu estou fazendo um concurso públicos destes para agente
administrativo, para contador ou para economista, não vai se [sic] ter
problema. Mas quando é um concurso público para a área finalística – que
22 Ministério da Saúde.
337
Volume 49 I.indd 337
13/11/2013 17:03:03
PENSANDO O DIREITO, n° 49
é área que eu tenho que ter especialistas em vigilância epidemiológica,
em assistência farmacêutica, saúde do homem, saúde da mulher, saúde
do adolescente, ou seja, todos os programas finalísticos do Ministério – é
necessário pessoal que tenha experiência. Afinal, é gente que vem aqui
para ajudar a formular política pública, entendeu?23
Após localizar as percepções dos servidores do Ministério da Saúde, cabe analisar
o tema pela ótica dos servidores do Instituto Nacional do Seguro Social.
4.5 O caso do INSS
A entrevista com os gestores do INSS teve muitos pontos convergentes com a
realizada no Ministério da Saúde. O dado mais relevante está nos grandes contingentes de
pessoal. Há muitos servidores em ambos os órgãos, bem como grande dispersão. No caso
da saúde, por motivo de demandas de atendimento espalhadas pelo território nacional,
como as atividades de saúde indígena. No caso do INSS, pela multiplicidade de agências
por mais de mil Municípios, que induz uma grande capilaridade às atividades da entidade.
Da mesma forma que o Ministério da Saúde, a área de seguro social e previdência passou
por um grande movimento de terceirização na década de 90:
Houve uma terceirização, na década de 90, e não recrutamento de
servidores públicos. Por causa da especificidade das nossas ações, que
são únicas, houve várias recomendações do próprio Tribunal de Contas,
do Ministério Público, de um modo geral, para corrigir a distorção que
havia: você tinha a especificidade de ação de Estado terceirizada.24
É interessante notar que a reclamação acerca dos problemas relacionados à
remuneração e à estrutura das carreiras não foi muito presente na entrevista com o INSS.
A autarquia tem três cargos no seu quadro funcional: técnico previdenciário, analista
previdenciário e perito médico. Os de técnico e de analista seguem nova lógica de cargos
que não possuem um rol muito fixo de atribuições ou funções e, no caso dos analistas,
podem englobar pessoas com formações diversificadas.
Como o INSS possui um quadro bem claro de locais de trabalho e de pessoal, com
certa clareza em relação às funções de atendimento nas agências – nas quais não há
muita diversidade de funções, tão somente rotinas homólogas e comparáveis com outros
locais de trabalho – foi possível estabelecer parâmetros. Assim, pode-se perceber que
houve atuação para atender a demanda geral de planejamento, referida à identificação
da lotação ideal para cada local de trabalho:
23 Ministério da Saúde.
24 INSS.
338
Volume 49 I.indd 338
13/11/2013 17:03:03
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Retomando ao concurso público e voltando mais especificamente para a
pergunta, isso faz com que a gente tenha essa ansiedade de repor. Nós
fazemos uma negociação periódica com o Ministério do Planejamento. Não
diria nem periódica; mas constante. Uma conversa, para a gente poder
ter essa recomposição no quadro. Temos tido êxito. Tanto é que tivemos
vários concursos nesse tempo. A partir de 2010, mais diretamente na área
que é vinculada a essa negociação, a gente tem procurado municiar as
nossas discussões com o Planejamento com informações cada vez mais
aprofundadas. Já temos um trabalho de lotação ideal de cada agência,
publicado em resolução, em função da demanda operacional. Então, hoje
nós temos uma resolução que nos norteia na lotação mínima desejada
em cada local. Nós temos a identificação por unidade dos servidores
que estão em abono de permanência do serviço, porque é esse o grande
risco. Nós procuramos, no último concurso, principalmente, fazer com
que as distribuição das vagas sejam em função da lotação esperada, ou
melhor, da lotação mínima esperada, que ainda está aquém da maioria
das unidades. Mas é essa a projeção que a gente enfrenta como desafio
para suprir essa necessidade mínima de lotação e é ela que norteia a
vinculação das vagas no concurso público. (...) No último concurso de
técnicos que fizemos, atendemos perto de 800 agências. A lotação foi
específica por agência e a distribuição das vagas que foram autorizadas
pelo Planejamento foi para quase 800 agências.25
Um fato a ser ressaltado foi notar que o INSS precisa – assim como o Ministério
da Saúde – lidar com provas que atraem uma multiplicidade muito grande candidatos. Se
os servidores da saúde acreditam que podem modular perfis de uma forma diferenciada
com exigências de formação, o INSS não se deparou com este problema, tendo em vista
que as suas carreiras possuem uma estrutura contemporânea, dividida em técnicos (nível
médio) e analistas (nível superior). Uma questão relevante no roteiro de entrevista dizia
respeito ao meio de seleção. Como selecionar competências para lidar com o atendimento
ao público?
Eis a questão! Este processo é um processo a ser vencido. É um processo
a ser enfrentado e vencido. A gente, em função dessa grandeza que é
no processo, a gente entende que até um curso de formação, ele seria
interessante, ele seria importante, classificatório, inclusive, mas nós
não temos nem a expertise nem essa possibilidade de desencadear
esse processo sem um planejamento mais aprofundado. Temos uma
situação característica, por exemplo, do grande volume de vagas serem
de técnico: o maior número é do técnico. O salário inicial é em torno de
4 mil reais bruto e com todas as gratificações. Não é o salário-base; é a
remuneração inicial de 4.200 reais. É a remuneração inicial com todas
as gratificações se ele ganhar 100% da gratificação, não é? Porque ela
25 INSS.
339
Volume 49 I.indd 339
13/11/2013 17:03:03
PENSANDO O DIREITO, n° 49
não é vinculada, mas é o teto máximo. Aí você faz um curso de formação
dentro do concurso e você vai pagar bolsa; a bolsa é 50%. Este curso
não existe. É uma coisa pensada justamente para trazer a competência
para dentro processo porque o concurso não traz. É só o conhecimento
objetivo para desempenhar sua função.26
Perguntados sobre os conteúdos conhecimentos objetivos necessários, os
entrevistados indicaram que eles seriam, basicamente, Legislação, Informática e Língua
Portuguesa: “Ele traz o conhecimento da legislação e conhecimentos gerais, de linguagem.
Alguma formação geral, bem como algum conhecimento de informática.”.
Assim, no diálogo, foi demonstrada uma insatisfação com o atual modelo de
certames exclusivamente focalizados em provas objetivas e que não conseguem aferir
determinadas competências e habilidades, entendidas como necessárias aos servidores
que lidam com o atendimento ao público:
A característica do nosso atendimento, da nossa prestação de serviço, é
a vinculação com o público. Não adianta você ter o conhecimento e não
conseguir atender uma pessoa. Então é uma habilidade, é uma atitude
que você tem que ter e isso você não consegue tirar de um candidato.
Você consegue tirar o conhecimento que ele tem, mas será que ele
tem habilidade para lidar com o público? É isso que a gente precisa na
agência. É isso que a gente não consegue tirar do candidato em uma
prova objetiva. Esta característica nossa, que é um órgão essencialmente
de atendimento, e a gente não consegue medir no candidato. O maior
problema é o que a gente identifica com maior repercussão negativa do
resultado do concurso [sic], porque o servidor sabe que vai trabalhar em
uma agência, a vaga dele é de uma agência, mas muitas vezes ele não
tem habilidade ou não tem a aptidão do atendimento, não é, “eu não me
sinto bem, eu não quero atender”.
Como resolver este problema? Afinal, lidar com atendimento ao público é crucial
em uma entidade que possui uma rede enorme de agências, como o INSS. Perguntados
como poderiam influir no certame, foi respondido:
Termos como influir, opinando em relação aos temas mais relevantes
que devem constar. Inclusive, essa questão de atendimento é uma das
questões que a gente já discutiu. A gente contrata empresa. A gente não
elabora as questões. A gente dá os temas, os conteúdos que a gente
precisa que tenha. A gente colocou como demanda, assim, “como seria
importante que tivesse”.27
26 INSS.
27 INSS.
340
Volume 49 I.indd 340
13/11/2013 17:03:03
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Foi perguntado como esta sugestão teria impacto em relação ao conteúdo pedido na
prova. A resposta foi que a própria empresa organizadora do certame não estava muito
satisfeita em criar tal conteúdo e, assim, houve pouca avaliação deste tema, considerado
de aferição tão relevante:
Foi mínima a repercussão, em termos de prova. Foi mais na assertiva
de relação interpessoais. Quer dizer, foi mais nessa coisa. Foi alegado,
inclusive, a subjetividade do tema, pela empresa organizadora, na
construção da prova. A gente até entende algumas argumentações da
empresa, em função de não se ter a clareza. Afinal, é uma prova de marcar
questões em quatro ou cinco alternativas. É uma prova objetiva. Difícil
você conseguir extrair isso, não é?28
Ao se perguntar porque não avaliar este tema por meio de uma prova discursiva,
foi replicado que seria inviável: “Pelo volume, não se cogita fazer prova discursiva. A opção
é lidar com o volume, porque é tudo eletrônico”. Bem visualizada a questão da múltipla
escolha como o meio de aferição privilegiado para recrutar servidores nos dois órgãos,
nos cabe visitar algumas destas provas para uma avaliação mais acurada do problema.
4.6 Análise de algumas provas de concursos realizados pelos dois
órgãos
Neste ponto, é necessária uma brevíssima consideração acerca de abordagens
multimétodo. Até então, neste estudo de casos, viemos trabalhando com dados colhidos
em entrevistas exploratórias. Sabemos que narrativas como as que colhemos dos nossos
colaboradores não são a expressão direta das suas experiências vividas, mas guardam
alguma relação com estas. Assim, de alguma forma, o que nos foi dito acerca das suas
experiências traz categorias e representações que vêm de uma fonte que nos interessa
particularmente: o universo cognitivo de um gestor público envolvido diretamente com o
recrutamento de pessoal no serviço público.
No entanto, é necessário sobrequalificar o abismo que nos resta entre o projeto
institucional que nos é caro neste estudo e o que nos foi dito nas entrevista. A maneira
que escolhemos para tratar disto é o cotejamento do conjunto cognitivo obtido nas
entrevistas com outros dados: questões de prova propriamente ditas. Nosso objetivo aqui
é o de aprofundar, nestes dois casos (MS e INSS), o que sabemos acerca destes projetos
institucionais, que se objetivam tanto nos editais, como nas provas em si e na fala dos
seus gestores.
28 INSS.
341
Volume 49 I.indd 341
13/11/2013 17:03:03
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Assim, uma menção comum nas entrevistas foi o fato de ambos os órgãos não terem
realizado certames por 18 e 25 anos. Logo, pode-se indicar que tais certames seriam muito
relevantes em termos de planejamento, reposição e expansão de atividades, considerando
que as funções das áreas previdenciária e de saúde somente aumentaram neste período.
Os dois quadros abaixo sistematizam os certames avaliados.
Certames do INSS
Ano
Vagas
Cargo
Remuneração
2002
2275
Técnico
R$ 629,20
2002
1525
Analista
R$ 1.011,07
2006
Perito Médico
R$ 3.418,21
2007
1400
1500
Técnico
R$ 1.989,87
2007
616
Analista
R$ 2.243,78
2008
900
Analista (Serviço
R$ 3.586,26
Social)
Certames do Ministério da Saúde
Ano
Vagas
2009
128
2009
24
Cargo
Remuneração
Analista Técnico-
R$ 2.643,28
Administrativo (PGPE 1)
Analista Técnico-
R$ 2.222,72
Administrativo (PGPE 2)
2009
190
Administrador
R$ 2.222,72
Arquiteto
R$ 2.222,72
2009
5
2009
50
Arquivista
R$ 2.222,72
2009
29
Assistente Social
R$ 2.222,72
2009
8
Bibliotecário
R$ 2.222,72
2009
41
Contador
R$ 2.222,72
2009
5
Economista
R$ 2.222,72
2009
9
Engenheiro Civil
R$ 2.222,72
2009
8
Engenheiro Eletricista
R$ 2.222,72
2009
9
Estatístico
R$ 2.222,72
2009
4
Farmacêutico
R$ 2.222,72
2009
5
Nutricionista
R$ 2.222,72
2009
30
Psicólogo
R$ 2.222,72
2009
4
Químico
R$ 2.222,72
2009
25
Técnico em Assuntos Educacionais
R$ 2.222,72
2009
17
Técnico em Comunicação
R$ 2.222,72
Social (Jornalismo)
342
Volume 49 I.indd 342
13/11/2013 17:03:04
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
2009
4
Técnico em Comunicação Social
R$ 2.222,72
(Publicidade e Propaganda)
2009
19
Fonoaudiólogo
R$ 2.222,72
2009
11
Médico (Cardiologia)
R$ 2.222,72
2009
33
Médico (Clínica Médica)
R$ 2.222,72
2009
22
Médico (Medicina do Trabalho/
R$ 2.222,72
Saúde Ocupacional)
2009
2
Médico (Psiquiatria)
R$ 2.222,72
2009
72
Técnico em Contabilidade
R$ 1.910,95
Para empreender a análise, foram apreciadas algumas das provas aplicadas. A primeira
informação relevante é que, excepcionado o cargo de perito médico, cujo certame foi
realizado em 2006, todos os demais somente tiveram uma etapa de prova, na forma de
resposta objetiva. Como visualizado na entrevista com servidores do INSS, há dúvidas se
não seria mais adequado realizar algumas aferições por outro modo, para poder avaliar
habilidades e competência entendidas como necessárias, especialmente o atendimento
ao público.
RESPOSTA OBJETIVA COMO ETAPA ÚNICA – CRÍTICA
De plano, cabe anotar que a justificativa econômica ou de escala para aplicação de resposta objetiva não
deveria se sobrepor à necessidade de avaliar a capacidade de expressão escrita. O primeiro motivo para
tanto é que a Administração Pública não está baseada primordialmente na oralidade. Ela está focalizada
em processos administrativos que requerem o meio escrito como essencial ao seu funcionamento. Mesmo
engenheiros em atividades muito específicas serão obrigados a se expressar em procedimentos, como
laudos, ofícios e memorandos. Ademais, há a efetiva possibilidade de que os servidores de nível superior
desempenhem atividades de direção e assessoramento que, ainda mais, exigirão expressão escrita de boa
qualidade. Em segundo lugar, a avaliação da escrita permite apreender a capacidade de organização de
ideias do candidato, que é uma habilidade relevante para qualquer função da Administração Pública. O ideal
é que as provas de resposta objetiva fossem utilizadas para compreensão e interpretação de textos, bem como
para avaliar conhecimentos necessários ao cargo. Nesta chave, ela serviria como uma fase de pré-seleção,
tendente somente a auxiliar na diminuição de grandes contingentes de candidatos para quantidade reduzidas
que poderiam ser avaliadas com mais precisão.
As provas de 2009 do Ministério da Saúde tiveram a seguinte estrutura: 50 questões
de conhecimentos gerais, aplicadas para todos os cargos de nível superior; e 70 questões
de conhecimentos específicos, que variavam para cada especialidade. Só é possível para
a equipe de pesquisa analisar as provas de dois cargos. Foram escolhidos os cargos de
médico (Medicina do Trabalho e Saúde Ocupacional) e de analista técnico-administrativo
(PGPE 2).
343
Volume 49 I.indd 343
13/11/2013 17:03:04
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Conj.
Questões (quant.)
Tema
Tipo
01
51 até 59 (9)
Legislação de saúde e segurança no trabalho
DL
02
60 até 63 (4)
Definições gerais da aplicação da
DT
estatística em medicina
03
04
64 até 68 (5)
69 até 71 (3)
Trabalho noturno: estudos de medicina e legislação
DT/DL
Definições gerais sobre padrões
DT
de ruído ocupacional
05
72 até 77 (6)
Legislação previdenciária brasileira
DL
06
78 até 86 (9)
Regulamentação do Min. do Trabalho e Emprego
DL
07
87 até 92 (6)
Definições gerais de medicina
DT
08
93 até 95 (3)
Definições gerais de doenças hematológicas
DT
09
96 até 100 (5)
Definições gerais sobre agrotóxicos
DT
10
101 até
Definições gerais sobre alcoolismo
DT
11
104 e 105 (2)
Conhecimentos gerais sobre doenças infecciosas
DT
12
106 até
Caso-problema: costureira e dor na mão
IC
Caso-problema: trabalhador
IC
103 (3)
109 (4)
13
110 até
14
113 e 114 (2)
112 (3)
agrícola e feridas nas mãos.
Definições gerais entre condução
DT
de veículos e doenças.
15
115 até
120 (6)
Caso-problema: trabalhador e
IC
ambiente de leitura e escrita.
Nota: DL – definições legais; DT – definições técnicas/médicas; IC – inferência causal.
Este tipo de prova é um exemplo muito rico de como há uma sobrevalorização da resposta
objetiva em prol da aferição de conhecimentos relacionados às práticas profissionais.
Um ponto positivo da prova analisada pode ser localizado nos conjuntos 12, 13 e 15. É
a exposição de casos para que haja o posicionamento do candidato, o que a literatura
denomina de “metodologia por situação-problema”. De fato, se o caso for descrito de
forma bastante clara e sem a possibilidade de grande ambiguidade, é possível utilizar a
resposta objetiva para aferir determinada capacidade cognitiva de avaliação abstrata de
situações, em termos de correlacionabildade de uma descrição de fatos hipotéticos com
um diagnóstico muito provável. No mais, o conteúdo requerido foi demandado na forma
de definições técnicas, legais ou regulamentares. Exemplos seguem abaixo:
344
Volume 49 I.indd 344
13/11/2013 17:03:05
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Questão
83 (errada)
Assertiva
É considerado atividade perigosa o transporte de líquidos inflamáveis com
volume de até 200 litros.
84 (errada)
O adicional de periculosidade representa 60% sobre a remuneração do
empregado.
103 (errada)
Existem vários tipos de tratamento para alcoolismo, sempre implicando algum
período de internação, mesmo que variável. Assim sendo, os trabalhadores
alcoolistas devem ser encaminhados para internamento em hospital
especializado.
113 (certa)
Existem indícios de que motoristas de caminhão apresentem risco aumentado
de desenvolvimento de câncer de bexiga.
114 (certa)
Há aumento da incidência de leucemia entre motoristas profissionais,
trabalhadores de manutenção de garagens de ônibus e trabalhadores de
transporte ferroviário.
Das 70 questões formuladas, somente 13 assertivas estavam baseadas na aferição por
meio de inferências causais. As demais verificavam o mero conhecimento de definições
técnicas, médicas ou legais. A presente avaliação é feita somente para demonstrar a
dificuldade de formulação das provas; o objetivo deste levantamento não é menosprezar
o conhecimento científico da banca, envolvida com a árida tarefa de avaliar candidatos por
meio de questões de múltipla escolha. O universo da Medicina do Trabalho é certamente
muito rico e não pode ser integralmente vertido para uma prova de múltipla escolha. Como
exemplo, vale indicar os objetivos e o conteúdo programático do curso de especialização
de Medicina do Trabalho, ofertado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (USP). Cabe indicar que este é um dos poucos cursos no Brasil com acreditação
da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT)29:
Objetivo: Formar especialistas médicos de alto nível em saúde ocupacional
para atuarem em saúde do trabalhador nos vários setores da economia
brasileira, preparando-os não só para os assuntos eminentemente
técnicos, mas, também, para outros temas que importem na solução dos
problemas de saúde em ambiente de trabalho, tais como Ciências Sociais,
Psicologia do Trabalho etc. Programa: 1. Administração e Planejamento.
2. Bioestatística. 3. Epidemiologia Ocupacional. 4. Ergonomia. 5. Ética
em Saúde e Trabalho. 6. Higiene do Trabalho. 7. Introdução à Saúde dos
Trabalhadores. 8. Legislação em Saúde do Trabalhador. 9. Metodologia
de Pesquisa. 10. Módulo: Atividades práticas no 1º ano do Curso. 11.
Organização de Serviços de Saúde do Trabalhador. 12. Organização do
29 Os dados foram retirados dos seguintes sítios eletrônicos: http://www.anamt.org.br; e http://www.fm.usp.br.
345
Volume 49 I.indd 345
13/11/2013 17:03:05
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Trabalho e Saúde. 13. Patologia do Trabalho: os agentes físicos no trabalho.
14. Patologia do Trabalho: os agentes químicos no trabalho. 15. Patologia
do Trabalho: outros agentes no trabalho. 16. Perícias em Saúde e Trabalho.
17. Práticas Supervisionadas em Medicina do Trabalho. 18. Promoção da
Saúde dos Trabalhadores. 19. Readaptação e Retorno ao Trabalho. 20.
Saúde Ambiental. 21. Saúde Mental e Trabalho. 22. Segurança do Trabalho.
23. Seminários em Medicina do Trabalho. 24. Sociologia do Trabalho. 25.
Toxicologia. 26. Vigilância em Saúde e Trabalho.
Este tipo de curso constava como requisito para investidura no cargo. Logo, uma das
preocupações da servidora estava coberta por este tema. Em princípio, qualquer médico
certificado por curso congênere seria habilitado ao desempenho das funções inerentes ao
cargo. Por fim, cabe anotar que as atribuições do cargo de médico (Medicina do Trabalho e
Saúde Ocupacional), previstas no edital do certame foram retiradas da definição existente
na Lei de regência da carreira da Previdência, Saúde e Trabalho (PST), como mencionado
pela servidora do Ministério da Saúde entrevistada. As atribuições são as seguintes:
Realizar consultas e atendimentos médicos; implementar ações para
promoção da saúde; efetuar perícias, auditorias e sindicâncias médicas;
coordenar programas e serviços de saúde; difundir; conhecimentos
médicos; aliar a atuação clínica/especializada à prática da saúde coletiva;
elaborar documentos médicos; fomentar a criação de grupos de patologias
específicas; planejar, organizar, coordenar, supervisionar e assessorar
estudos e pesquisas; executar tarefas e procedimentos que envolvam
assistência médica geral e as relacionadas à sua área de especialização;
e executar e registrar seus atos, conforme preconizado pelo exercício
profissional.30
Será continuada a análise com mais duas outras provas para dois outros cargos. A
próxima prova continua extraída do certame de 2009 do Ministério da Saúde. Cabe lembrar
que uma das grandes preocupações estava relacionada com cargos genéricos, sem perfil
definido, de acordo com os dados da entrevista. Isto porque não seria possível modular a
concorrência com requisitos de formação, como ocorreu no caso acima indicado, no qual
a especialização médica se traduz na certificação de habilidades e conhecimentos cuja
detenção pelos candidatos será provável. A próxima prova será a de Analista TécnicoAdministrativo, de nível superior, integrante da carreira do Plano Geral de Cargos do
Poder Executivo (PGPE), por força do art. 1º, § único, inciso II da Lei n. 11.357/2006). De
acordo com o edital, este cargo podia ser provido por qualquer candidato habilitado que
possuísse um curso de graduação em qualquer área. As atribuições do edital replicavam
aquelas existentes no dispositivo legal citado:
30 Lei 11.355, de 19 de outubro de 2006.
346
Volume 49 I.indd 346
13/11/2013 17:03:05
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Planejamento, supervisão, coordenação, controle, acompanhamento
e à execução de atividades de atendimento ao cidadão e de atividades
técnicas e especializadas, de nível superior, necessárias ao exercício das
competências constitucionais e legais a cargo dos órgãos e entidades da
administração pública Federal, bem como à implementação de políticas e
à realização de estudos e pesquisas na sua área de atuação, ressalvadas
as atividades privativas de carreiras específicas, fazendo uso de todos
os equipamentos e recursos disponíveis para a consecução dessas
atividades.31
A prova para o cargo de analista técnico-administrativo (PGPE 2) possuiu a mesma
estrutura das demais avaliações de nível superior: integralidade da aferição por meio de
questões de múltipla-escolha com 50 assertivas de conhecimentos gerais e 70 assertivas
de conhecimentos específicos. A prova de conhecimentos específicos teve uma estrutura
baseada tão somente na compreensão de textos e na avaliação gramatical. Logo, o seu
detalhamento é desnecessário. Foram colocados sete textos de origem jornalística ou
extraídos de textos técnicos e indicadas assertivas relacionadas aos mesmos. Além
disto, foram feitas quatro assertivas (trechos de hipotéticos textos administrativos)
que deveriam ser apreciadas em sua adesão aos princípios do Manual de Redação da
Presidência da República. De fato, os dois cargos de analistas técnico-administrativos
tinham como diferença crucial o fato de que o primeiro (PGPE 1) exigia como conhecimentos
específicos de direito público e o segundo, questões relacionadas à Língua. Assim, além
dos conhecimentos gerais, este cargo teve exigência no certame com algo próximo à
habilidade de um redator. Vale conferir os conteúdos requeridos:
1 Compreensão e interpretação de textos. 2 Tipologia textual. 3 Ortografia
oficial. 3.1 Redação e correspondência oficial. 4 Diagramação e padronização
editorial. 5 Textos em meio digital. 5.1 Utilização prática de recursos e
tecnologias na produção de textos. 6 Coesão textual na elaboração de
textos. 7 Elementos de análise do discurso. 7.1. Enunciação e discurso.
7.2 Formação discursiva. 7.3 Formação ideológica. 7.4 Heterogeneidade
discursiva. 7.5 Interdiscurso. 8 Análise do discurso: Leitura e/ou produção
textual discursiva.32
Cabe indicar que, por óbvio, temas como a “utilização prática de recursos e
tecnologias na produção de textos” foram reduzidas ao julgamento de assertivas sobre o
programa Microsoft Word 2007, que é exemplificada a seguir:
31 Edital do concurso público do Ministério sa Saúde de 2009.
32 Edital do concurso público do Ministério sa Saúde de 2009.
347
Volume 49 I.indd 347
13/11/2013 17:03:05
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Questão
116 (certa)
Assertiva
Entre as preocupações de quem irá utilizar recursos de tecnologia para produzir
e editorar textos, deve estar a de otimizar recursos gráficos para a veiculação
eficaz de informações.
117 (errada)
No Microsoft Word 2007, não é possível trabalhar características marcantes
do hipertexto, tais como o estabelecimento de links e a utilização de imagens
unidas a textos.
118 (certa)
É possível marcar as alterações, tais como inclusões, exclusões e alterações
de formatação, feitas durante a revisão de um texto no Microsoft Word 2007.
119 (errada)
O Microsoft Word 2007 não permite o trabalho com recursos gráficos importantes
no hipertexto, tais como o tamanho e o design da fonte, uma vez que seu principal
objetivo é criar textos para serem impressos.
120 (errada)
A diagramação e a padronização de textos em meio eletrônico, no caso de
sítios de órgãos oficiais, devem seguir os padrões estabelecidos pelo Manual
de Redação da Presidência da República.
Os conhecimentos sobre textos no meio digital foram aferidos pelo julgamento do
candidato em relação a um excerto sobre o hipertexto. Estes são bons exemplos de como
determinados conhecimentos específicos não conseguem ser aferidos prova aguma
que não esteja relacionada com uma avaliação prática. A datilografia, no passado, era
aferida por meio de provas práticas. Com a passagem ao sistema eletrônico de escrita, há
certames, como o acima indicado, que pretendem aferir a habilidade de lidar com textos
em HTML, XML e programas de processamento por meio de questões de “verdadeiro ou
falso” sobre tais temas.
Realizada a avaliação desta prova do Ministério da Saúde, é possível passar à última,
que é a prova de técnico do INSS, realizada em 2008. O certame para técnico (nível médio)
sempre atrai uma enorme quantidade de candidatos, dado que o requisito de investidura
(diploma do ensino médio; segundo grau) é generalizado na população. A função de técnico
do INSS foi descrita no edital de forma sucinta. Ela se constitui, basicamente, de três temas:
avaliar demandas previdenciárias; orientar ao público; e oferecer apoio administrativo.
Em síntese, trata-se de um cargo de assistente administrativo que tenha conhecimentos
jurídicos básicos e específicos da área de atuação do órgão (previdenciária), combinados
com capacidade de apoio administrativo e de realizar atendimento ao público:
Proceder ao reconhecimento inicial, manutenção, recurso e revisão de
direitos aos benefícios administrados pelo INSS; executar as atividades
de orientação e informação, de acordo com as diretrizes estabelecidas
nos atos específicos; suporte e apoio técnico especializado às atividades
de competência do INSS.33
33 Edital do concurso público do INSS de 2008.
348
Volume 49 I.indd 348
13/11/2013 17:03:06
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
A prova aplicada conteve 150 assertivas para avaliação como “certa ou errada”. Estas
assertivas derivaram de um programa que continha uma ampla gama de temas, como
pode ser visualizado no quadro abaixo:
CONHECIMENTOS BÁSICOS PARA O CARGO DE TÉCNICO DO INSS
LÍNGUA PORTUGUESA: 1 Compreensão e interpretação de textos. 2 Tipologia textual. 3 Ortografia
oficial. 4 Acentuação gráfica. 5 Emprego das classes de palavras. 6 Emprego do sinal indicativo de crase.
7 Sintaxe da oração e do período. 8 Pontuação. 9 Concordância nominal e verbal. 10 Regência nominal e
verbal. 11 Significação das palavras. 12 Redação de correspondências oficiais. RACIOCÍNIO LÓGICO:
1 Conceitos básicos de raciocínio lógico: proposições; valores lógicos das proposições; sentenças abertas;
número de linhas da tabela verdade; conectivos; proposições simples; proposições compostas. 2 Tautologia.
3 Operação com conjuntos. 4 Cálculos com porcentagens. NOÇÕES DE INFORMÁTICA: 1 Conceitos
de Internet e intranet. 2 Conceitos básicos e modos de utilização de tecnologias, ferramentas, aplicativos
e procedimentos associados à Internet e a intranet. 3 Conceitos e modos de utilização de ferramentas e
aplicativos de navegação, de correio eletrônico, de grupos de discussão, de busca e pesquisa. 4 Conceitos
básicos e modos de utilização de tecnologias, ferramentas, aplicativos e procedimentos de informática.
5 Conceitos e modos de utilização de aplicativos para edição de textos, planilhas e apresentações. 6
Conceitos e modos de utilização de sistemas operacionais Windows e Linux.
CONHECIMENTOS
DE MATEMÁTICA: 1 Números inteiros, racionais e reais. 2 Sistema legal de medidas. 3 Razões e
proporções. 4 Regras de três simples e composta. 5 Porcentagens. 6 Equações e inequações de 1º e
de 2º graus. 7 Funções e gráficos. 8 Seqüências numéricas. 9 Progressões aritméticas e geométricas.
10 Juros simples e compostos. ATUALIDADES: Domínio de tópicos atuais e relevantes de diversas
áreas, tais como política, economia, sociedade, educação, tecnologia, energia, relações internacionais,
desenvolvimento sustentável, segurança, artes e literatura, e suas vinculações históricas.
CONHECIMENTOS COMPLEMENTARES PARA O CARGO DE TÉCNICO DO INSS
ÉTICA NO SERVIÇO PÚBLICO: Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder
Executivo Federal: Decreto n. 1.171/94. NOÇÕES DE DIREITO CONSTITUCIONAL: 1 Direitos e
deveres fundamentais: direitos e deveres individuais e coletivos; direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade; direitos sociais; nacionalidade; cidadania e direitos políticos; partidos
políticos; garantias constitucionais individuais; garantias dos direitos coletivos, sociais e políticos.
2 Poder Legislativo: fundamento, atribuições e garantias de independência. 3 Processo legislativo:
fundamento e garantias de independência, conceito, objetos, atos e procedimentos. 4 Poder Executivo:
forma e sistema de governo; chefia de Estado e chefia de Governo; atribuições e responsabilidades do
Presidente da República. 5 Poder Judiciário: disposições gerais; Supremo Tribunal Federal; Superior
Tribunal de Justiça; Tribunais regionais Federais e juízes Federais; Tribunais e juízes dos estados. 6
Ordem social: base e objetivos da ordem social; seguridade social; educação, cultura e desporto; ciência
e tecnologia; comunicação social; meio ambiente; família, criança, adolescente e idoso. NOÇÕES DE
DIREITO ADMINISTRATIVO: 1 Estado, governo e administração pública: conceitos, elementos,
poderes e organização; natureza, fins e princípios. 2 Direito Administrativo: conceito, fontes e princípios.
349
Volume 49 I.indd 349
13/11/2013 17:03:06
PENSANDO O DIREITO, n° 49
3 Organização administrativa da União; administração direta e indireta. 4 Agentes públicos: espécies e
classificação; poderes, deveres e prerrogativas; cargo, emprego e função públicos; regime jurídico único:
provimento, vacância, remoção, redistribuição e substituição; direitos e vantagens; regime disciplinar;
responsabilidade civil, criminal e administrativa. 5 Poderes administrativos: poder hierárquico; poder
disciplinar; poder regulamentar; poder de polícia; uso e abuso do poder. 6 Ato administrativo: validade,
eficácia; atributos; extinção, desfazimento e sanatória; classificação, espécies e exteriorização; vinculação
e discricionariedade. 7 Serviços Públicos; conceito, classificação, regulamentação e controle; forma,
meios e requisitos; delegação: concessão, permissão, autorização. 8 Controle e responsabilização
da administração: controle administrativo; controle judicial; controle legislativo; responsabilidade
civil do Estado. Lei n. 8.429/92 (dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de
enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função da administração pública
direta, indireta ou fundacional e dá outras providências).
CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS PARA O CARGO DE TÉCNICO DO SEGURO SOCIAL
Seguridade Social. 1.1 Origem e evolução legislativa no Brasil. 1.2 Conceituação. 1.3 Organização e
princípios constitucionais. 2 Legislação Previdenciária. 2.1 Conteúdo, fontes, autonomia. 2.3 Aplicação
das normas previdenciárias. 2.3.1 Vigência, hierarquia, interpretação e integração. 2.4 Orientação dos
Tribunais Superiores. 3 Regime Geral de Previdência Social. 3.1 Segurados obrigatórios, 3.2 Filiação e
inscrição. 3.3 Conceito, características e abrangência: empregado, empregado doméstico, contribuinte
individual, trabalhador avulso e segurado especial. 3.4 Segurado facultativo: conceito, características,
filiação e inscrição. 3.5 Trabalhadores excluídos do Regime Geral. 4 Empresa e empregador doméstico:
conceito previdenciário. 5 Financiamento da Seguridade Social. 5.1 Receitas da União. 5.2 Receitas das
contribuições sociais: dos segurados, das empresas, do empregador doméstico, do produtor rural, do clube
de futebol profissional, sobre a receita de concursos de prognósticos, receitas de outras fontes. 5.3 Saláriode-contribuição. 5.3.1 Conceito. 5.3.2 Parcelas integrantes e parcelas não-integrantes. 5.3.3 Limites
mínimo e máximo. 5.3.4 Salário-base: enquadramento, fracionamento, progressão e regressão. 5.3.5
Proporcionalidade. 5.3.6 Reajustamento. 5.4 Arrecadação e recolhimento das contribuições destinadas
à seguridade social. 5.4.1 Competência do INSS e da Secretaria da Receita Federal. 5.4.2 Obrigações da
empresa e demais contribuintes. 5.4.3 Prazo de recolhimento. 5.4.4 Recolhimento fora do prazo: juros,
multa e atualização monetária. 5.4.5 Obrigações acessórias. 6 Exame da Contabilidade. 6.1 Prerrogativa do
INSS. 6.2 Inscrição de ofício. 6.3 Aferição indireta. 7 Responsabilidade solidária: conceito, natureza jurídica
e características. 7.1 Aplicação na construção civil, na cessão de mão-de-obra e em grupo econômico.
8 Notificação fiscal de lançamento de débito. 9 Parcelamento de contribuições e demais importâncias
devidas à seguridade social. 10 Decadência e prescrição. 11 Restituição e compensação de contribuições.
12 Isenção de contribuições: requisitos, manutenção e perda. 13 Matrícula da empresa. 14 Prova de
inexistência de débito. 15 Crimes contra a seguridade social. 16 Infrações à legislação previdenciária. 17
Recurso das decisões administrativas. 18 Dívida ativa: inscrição e execução judicial. 19 Lei Complementar
n. 123/2006 e suas alterações. 20 Plano de Benefícios da Previdência Social: beneficiários, espécies de
prestações, benefícios, disposições gerais e específicas, períodos de carência, salário-de-benefício, renda
mensal do benefício, reajustamento do valor dos benefícios. 21 Manutenção, perda e restabelecimento
da qualidade de segurado. 22 Lei n. 8.212, de 24/07/1991 e alterações posteriores. 23 Lei n. 8.213, de
24/07/1991 e alterações posteriores. 24 Decreto n. 3.048, de 06/05/1999 e alterações posteriores. 25
Instrução Normativa INSS/PRES n. 20, de 10/10/2007 e suas alterações.
350
Volume 49 I.indd 350
13/11/2013 17:03:06
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
A primeira comparação que pode ser feita em relação aos outros certames analisados
é que a prova para o cargo de nível médio do INSS exigiu 30 questões a mais do que aquela
aplicada para seleção de um cargo especializado de médico. Apesar de ambas as provas
terem sido produzidas pelo CESPE/UnB, é fácil visualizar que não existe uma padronização
em relação à quantidade de questões. Cada certame acaba por ter uma dinâmica própria,
de acordo com o órgão que oferta as vagas. Seria óbvio indicar algo que é corrente entre
os “concurseiros” e que pôde ser percebido nas entrevistas: os certames oferecidos por
cada entidade contratada são muito diversos e isto ocorre mesmo para cargos idênticos
(um assistente administrativo em dois ministérios diferentes). Tendo sido visualizada a
ampla gama de conhecimentos demandados, cabe desmembrar a prova ofertada.
Conj.
Questões
(quant.)
Tema
Tipo
01
1 até 4 (4)
Gramática
--
02
5 até 10 (6)
Raciocínio lógico
--
03
11 até 13 (3)
Princípios da seguridade social
DL/DT
04
14 até 17 (4)
Atualidade sobre a seguridade social
DL/DT
05
18 até 22 (5)
Matemática: leitura de gráficos
--
06
23 até 26 (4)
Compreensão de texto
--
07
27 até 29 (3)
Raciocínio lógico aplicado à ética
IC
08
30 até 33 (4)
Caso-problema sobre ética
IC
09
34 (1)
Definição de documento-administrativo
DT
10
35 e 36 (2)
Informática: funções do Word 2003
DT
11
37 (1)
Raciocínio lógico: interpretação
de imagem
IC
12
38 até 42 (5)
Casos-problemas sobre a Lei n. 8.112/90
IC
13
43 e 44 (2)
Informática: funções de e-mail
DT
14
45 até 47 (3)
História e estrutura do INSS
DT
15
48 e 49 (2)
Matemática e raciocínio lógico: funções
--
16
50 (1)
Informática: função do Excel 2003
DT
17
51 até 55 (5)
Definições sobre atendimento ao público
DT
18
56 até 58 (3)
Ética empresarial
DT
351
Volume 49 I.indd 351
13/11/2013 17:03:07
PENSANDO O DIREITO, n° 49
19
59 (1)
Caso de processo administrativo
IC
20
60 até 62 (3)
Definições sobre processo administrativo
DT/DL
21
63 até 66 (4)
Definições sobre atendimento ao público
DT
22
67 até 70 (4)
Definições sobre reforma do Estado
DT
23
71 e 72 (2)
Definições sobre comunicação
institucional
DT
24
73, 75 e 76 (3)
Casos sobre responsabilidade
corporativa e ambiental
IC
25
74 (1)
Definição sobre responsabilidade
socioambiental
DT
26
77 e 78 (2)
Casos sobre direitos dos usuários
e dos consumidores
IC
27
79 e 80 (2)
Casos sobre doenças no
ambiente de trabalho
IC
28
81 até 90 (10)
Casos hipotéticos sobre
segurados do INSS
IC
29
91 e 92 (2)
Princípios constitucionais da previdência
DL
30
93 até 150 (57)
Casos hipotéticos sobre
benefícios do INSS
IC
34
Uma simples leitura das provas já demonstra que a avaliação aplicada para o cargo
de técnico do INSS foi mais exaustiva dos que as provas analisadas e aplicadas para os
cargos do Ministério da Saúde. Um ponto interessante da prova de técnico foi a tentativa de
trabalhar mais com casos do que com definições técnicas e legais. O modelo de questão
baseado em casos pode ser visualizado nos exemplos abaixo:
Questão
38
Assertiva
Mara, jornalista, dirigiu-se a determinada repartição pública e solicitou, com o objetivo
de preparar matéria para o jornal do bairro onde trabalha, informações sobre uma
lista de itens, que incluía dados sobre o efetivo policial e nomes de policiais da área de
inteligência que trabalham sem uniforme no bairro em questão. O servidor atendeu-a
rápida e polidamente, mas negou-se a fornecer-lhe informações sobre os referidos
itens, pois tratava-se de dados sigilosos. Nessa situação, a atitude do servidor está
correta, pois é seu dever atender com presteza ao público em geral, prestando as
informações requeridas, ressalvadas aquelas protegidas por sigilo.
34 DL – definições legais; DT – definições técnicas/médicas; IC – inferência causal.
352
Volume 49 I.indd 352
13/11/2013 17:03:07
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
59
Suponha-se que Francisca, servidora do INSS, ao atender um segurado e receber dele
um requerimento de benefícios, tenha constatado que ele não havia incluído um item
a que tinha direito. Suponha-se, ainda, que ela tenha decidido não lhe dizer nada a
esse respeito. Nessa situação, a atitude de Francisca não pode ser reprovada, pois o
servidor do INSS pode omitir de segurado a existência de direito a verba de benefício
que não tenha sido explicitamente requerida.
77
Considere a seguinte situação hipotética. João, por ter constatado erros em sua ficha
hospitalar, dirigiu-se ao setor de registros do hospital e solicitou ao atendente que
lhe mostrasse a ficha. Inicialmente, o atendente dificultou-lhe o acesso aos dados e,
somente depois de muita insistência, João conseguiu convencê-lo da necessidade de
alterar alguns dados no referido documento. Entretanto, passada uma semana, João
constatou que as alterações solicitadas não haviam sido efetuadas. Nessa situação,
do ponto de vista do Código de Defesa do Consumidor, João nada poderá fazer, pois o
código é omisso com relação a esse tipo de problema.
94
Célia, professora de uma universidade, eventualmente, presta serviços de consultoria
na área de educação. Por isso, Célia é segurada empregada pela atividade de docência
e contribuinte individual quando presta consultoria. Nessa situação, Célia tem uma
filiação para cada atividade.
Como mencionado pelos servidores na entrevista, houve a tentativa de avaliar a
habilidade de atendimento ao público por meio da prova de múltipla escolha. Esta tarefa
parece realmente muito difícil de ser atingida por este tipo de prova. Abaixo, são trazidas
as questões referentes ao tema:
Texto base
A qualidade do serviço de atendimento ao público, no contexto da realidade brasileira, tanto no
âmbito estatal quanto no da iniciativa privada, apresenta-se como um desafio institucional que
parece exigir transformações urgentes. Essa necessidade tem múltiplas facetas e a visibilidade
de uma delas se expressa nas queixas frequentes de usuários-consumidores. Basta visitar os
espaços dedicados aos leitores dos jornais para encontrar uma fonte empírica abundante de
reclamações concernentes aos serviços de atendimento em instituições públicas e privadas.
[Mário César Ferreira. Serviço de atendimento ao público: o que é? Como analisá-lo? Esboço
de uma abordagem teórico-metodológica em ergonomia. Internet: <www.unb.br> (com
adaptações)]. Tendo o texto acima como referência inicial, julgue os itens a seguir.
Questão
51
Assertiva
Uma empresa que, no intuito de melhorar a qualidade do serviço de atendimento ao
público, encaminhe os clientes a setores específicos, em função do tipo de produto/
serviço que buscam, utiliza uma abordagem de departamentalização funcional.
353
Volume 49 I.indd 353
13/11/2013 17:03:07
PENSANDO O DIREITO, n° 49
52
Um procedimento que pode permitir a identificação de fatores críticos de sucesso
para o atendimento ao público com qualidade é descobrir o que distingue uma
organização bem-sucedida, no atendimento ao público, de uma mal-sucedida, nesse
aspecto, e analisar as diferenças entre elas.
53
O trabalho desenvolvido pelo funcionário na situação de atendimento pode ser
considerado atividade de mediação entre as finalidades da instituição e os objetivos
do usuário.
54
O bom estado de saúde, a competência profissional e o perfil adequado do atendente
tornam o serviço de atendimento mais eficiente e, desse modo, contribuem para
aumentar a satisfação dos usuários dos produtos ou serviços da instituição.
55
Uma ação que pode ser efetiva no fomento ao melhor atendimento do usuárioconsumidor é a descentralização da autoridade, visto que esta passa a ficar mais
dispersa na base da organização, o que possibilita maior agilidade no processo
decisório.
Há que se reconhecer a coragem da empreitada, em especial porque o programa do
certame não abrangia o tema de forma direta, como pode ser percebido em consulta à
tabela anteriormente exposta. Aliás, diversos outros temas não estavam listados e foram
demandados na prova, como “ética empresarial”, “responsabilidade socioambiental” e
“comunicação institucional”. Muitos outros temas listados, como “Tribunais e organização
judiciária”, não foram demandados. A conclusão neste quesito é que houve certa dissociação
entre o programa e a prova aplicada. Confira-se o outro conjunto de assertivas acerca do
tópico “atendimento ao público”:
Texto base
Quem, nos dias de hoje, não teve de enfrentar uma fila no banco, em um supermercado,
em uma repartição pública? Quantas vezes não “roeu as unhas” na expectativa de que a fila
andasse rápido, pois outro compromisso urgente estava a sua espera? E quantos, ao chegar
o momento tão esperado do atendimento, depararam-se com a informação do funcionário: “O
senhor entrou na fila errada...”? Mas, se tais situações são fonte de irritação e de problemas
para o usuário, a cada dia mais exigente, elas o são também para os sujeitos encarregados do
atendimento ao público. Idem. Ibidem (com adaptações). Tendo o texto acima como referência
inicial, julgue os itens subsequentes.
Questão
63
Assertiva
Em virtude da variabilidade de opções, é necessário que o servidor que atende ao
público seja preponderantemente um executor de rotinas, o que envolve identificar
situações e seguir instruções.
64
A atividade de atendimento implica um conjunto de ações rotineiras, que incluem
solicitação, identificação, cotejamento, pesquisa, registro, emissão, orientação e
arquivamento de informações.
354
Volume 49 I.indd 354
13/11/2013 17:03:07
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
65
O atendimento ao público pode ser visto como uma atividade rotineira complexa de
tratamento de informações, marcada por procedimentos administrativos habituais,
que podem, em muitas situações, ser estruturados em raciocínio do tipo Se... (tal
situação ou evento se apresenta), então... (executa-se tal procedimento).
66
No atendimento ao público, o tratamento de informações é embasado
predominantemente no diagnóstico das exigências da situação, com base em critérios
prescritos pela instituição, que orientam a tomada de decisões.
Visualizadas estas questões, pode-se notar que o mesmo problema diagnosticado
acerca dos conhecimentos de informática se replicou na prova do INSS. A intuição sobre
este problema reside na dificuldade de avaliar a proficiência em operar um programa
de computador por meio de uma questão de resposta objetiva. As perguntas acabam
replicando definições técnicas ou curiosidades sobre os programa de computador. Logo,
parece complicado afirmar que tais perguntas sirvam para confirmar se o candidato
possui – ou não – a habilidade de operar um processador de texto, um banco de dados
ou, ainda, serviços de e-mail. Afinal, a operação destes programas requer capacidades
eminentemente práticas. Seria a mesma dificuldade hipotética de avaliar a habilidade em
datilografia ou a competência para direção defensiva por meio de questões de resposta
objetiva. Parece não ser a melhor opção.
Questão
35
Assertiva
No Word 2003, ao se clicar o menu Editar, é exibida uma lista de comandos, entre os
quais se inclui o comando Dicionário de Sinônimos, que possui funcionalidades que
permitem ao usuário procurar por palavras sinônimas a uma palavra selecionada.
O uso desse comando contribui, em muitos casos, para a melhoria da qualidade
de um texto editado.
36
Diversos programas de computador disponibilizam o menu denominado Ajuda,
por meio do qual um usuário pode ter acesso a recursos que lhe permitem obter
esclarecimentos sobre comandos e funcionalidades dos programas. Atualmente,
há programas em que é necessário que o computador esteja conectado à Internet
para que funcionalidades do menu Ajuda possam ser usadas de forma efetiva.
43
É comum, mediante o uso de programas de computador que utilizam o Windows
XP como sistema operacional, o recebimento de mensagens de texto por meio de
correio eletrônico. Entretanto, é possível a realização dessa mesma tarefa por meio
de programas de computador adequados que utilizam o sistema operacional Linux.
44
Para se enviar uma mensagem confidencial de correio eletrônico, cujo conteúdo
não deva ser decifrado caso essa mensagem seja interceptada antes de chegar ao
destinatário, é suficiente que o computador a partir do qual a mensagem seja enviada
tenha, instalados, um programa antivírus e um firewall e que esse computador não
esteja conectado a uma intranet.
355
Volume 49 I.indd 355
13/11/2013 17:03:08
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Texto base
Considere-se que, em uma planilha do Excel 2003 na qual todas as células estejam formatadas
como números, a célula B2 contenha o saldo de uma conta de poupança em determinado mês
do ano. Considere-se, também, que, sobre esse saldo incidam juros compostos de 2% ao mês,
e que o titular não realize, nessa conta, operações de depósito ou retirada. Nessa situação,
julgue o item seguinte.
50
O valor do saldo da referida conta de poupança, após duas incidências sucessivas
de juros sobre o saldo mostrado na célula B2, pode ser calculado e apresentado
na célula B4 por meio da seguinte seqüência de ações: clicar a célula B4; digitar =
B2*1,02^2 e, em seguida, teclar [enter].
Mantém-se uma característica geral e reprovável, como mencionado. Há uma evidente
sobrevalorização das provas de múltipla escolha para avaliação dos candidatos. Ainda,
mostra-se pouco razoável que não haja uma prova de redação em toda e qualquer
seleção para cargos efetivos na Administração Pública, tendo em vista que os processos
administrativos não são baseados na oralidade. Como consideração final desta seção da
pesquisa, será realizada uma síntese apreciativa dos casos analisados acima.
4.7 Algumas questões para pensar as metodologias de avaliação
As entrevistas trouxeram duas questões de muito relevo que devem ser indicadas.
A primeira é que existem dilemas relacionados às carreiras que têm impacto imediato
nas políticas de pessoal e, por conseguinte, nos certames. A alta rotatividade também
está relacionada a questões remuneratórias e de progressão na carreira. A experiência
francesa da seleção interna35 demonstra a necessidade de possibilitar certa mobilidade
ao servidor como um modo de estímulo ao seu crescimento, paralelo à sua qualificação.
A defasagem das definições legais sobre as carreiras também pesam negativamente na
realização dos certames, já que engessam os perfis para as vagas que são ofertadas:
Primeira coisa, aqui, seria que eu tivesse uma carreira adequada. Eu
não tenho, eu tenho que lidar com essa carreira. Mas que, mesmo
nessa carreira, a gente tivesse uma atualização nela. Isso ia me ajudar
a construir um perfil melhor em concurso.36
O segundo grande tema, derivado dos estudos de caso, está adstrito às metodologias
de avaliação aplicadas aos certames. Este tema também se imbrica com a difícil relação
entre as entidades contratadas para gerir o certame (logística, confecção das provas,
35 Que nada tem a ver com o nosso recente “concurso interno”, como se verá no capítulo seguinte.
36 INSS.
356
Volume 49 I.indd 356
13/11/2013 17:03:08
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
entre outros) e as necessidades dos órgãos. Como indicado no início do estudo de caso,
há uma evidente tensão estrutural tripartite entre os órgãos Federais, as entidades
organizadoras e o MP. Há certo consenso em que as provas deveriam melhorar em termos
de sua substância e mesmo de forma. Todavia, a questão central é quem deve ser o ator
preponderante a tal alteração. Os órgãos – na visão retirada das entrevistas – consideram
que o Ministério do Planejamento deveria ser o indutor de tal solução:
E eu acho que a gente tinha que ter um... Eu acho que não é nem um
problema nosso... O ideal é que não se tenha essas provas tão... Essas
provas de concurso público, da forma que são, favorecem quem estuda
e não a quem tem alguma prática. O ideal é você receber gente que tem
um mínimo de prática de trabalho. Eu não sei de que forma o Ministério
do Planejamento poderia atuar para ajudar os órgãos a construir um tipo
de prova que favoreça quem tem mais experiência, e não só quem tem a
teoria. Realmente, eu não sei como seria. Mas isso ajudaria.37
Já os servidores do MP consideram que este problema de substância está
diretamente ligado à falta de demanda qualificada dos órgãos em prol dos seus perfis de
vagas:
Eu acho que o problema é que essas empresas trabalham com grande
volume de prestação de serviços. Então, elas têm seu modus operandi. Se
a Administração não solicitar nada, eles vão dar o pacote deles. Isto existe
em qualquer lugar. Eles também estão fazendo trabalho profissionalizado
dentro do que for mais fácil para fazerem bem feito; mas dentro do que
já tem pronto. Então, eu acho que a questão é o nível de exigência do
próprio órgão. Ele tem que saber demandar e saber cobrar. Eu acho que,
no final das contas, a decisão de quais os tipos de provas que vão ser
utilizadas, – por exemplo, se vai ser prova objetiva, se nos títulos eu vou
avaliar mais experiência ou mais formação acadêmica –, esta decisão é do
órgão. A empresa simplesmente está cumprindo um contrato. A empresa
elabora, mas quem decide qual vai ser a prova é o órgão. Por exemplo,
eu quero um concurso para tal cargo. Eu digo que quero uma prova de
economia, de políticas públicas, etc. Eu quero que você foque mais nisto
ou naquilo. Eu quero esse conteúdo programático. Dentro do nível de
avaliação também. Ele pode demandar questões práticas conceituais
e não questões teóricas acadêmicas. Mas, se o órgão não demandar, o
contratado faz do seu jeito.38
Esta alternativa gera um problema. Por certo, nem todos os órgãos estão capacitados
para cobrar das empresas, em termos de substância. Existe baixo controle em termos
37 Ministério da Saúde.
38 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
357
Volume 49 I.indd 357
13/11/2013 17:03:08
PENSANDO O DIREITO, n° 49
deste tema. Como visualizado nas provas acima, o certame do INSS buscou a aferição – por
meio de questões de múltipla escolha – de habilidades ao atendimento ao público. Esta
tentativa demonstrou três problemas. O primeiro foi que as questões acabam sendo uma
mistura de aferição de definições técnicas com bom senso. O segundo – e mais grave – é
que o tema não constava no programa do certame, ou seja, tal metodologia dificulta a
preparação dos candidatos para a potencial aferição. O terceiro é intrínseco – e também
perceptível nas provas de informática – à metodologia: como avaliar “fazeres” por meio
de perguntas de múltipla escolha? Se as questões de resposta objetiva não devem ser
descartadas como metodologia, por um lado, há que se reconhecer que elas têm sido
utilizadas de forma excessiva com a pretensão de avaliar competências que não são
perceptíveis por tal metodologia. Todavia, esse debate é difícil na atual prática enraizada
do certame. A entrevista com servidores do MP demonstra a esperança de que provas de
múltipla escolha – mais simples e baratas do ponto de vista logístico – sirvam em bom
nível para aferir habilidades:
A gente acredita que habilidade não se mede simplesmente e somente
com prova prática. Há como você direcionar, pelo menos, minimamente na
prova. (...) Mais questões voltadas para a prática. Perguntas que tivessem
mais a ver com a prática. Inclusive, na prova discursiva: estudo de caso.
Foi mais neste sentido, fomos guiando. Mas, no caso, foi o CESPE da UnB
que conduziu para que ficasse no modelo que atendesse melhor. A gente
olha o programa e corta coisas. Enfim, é uma discussão e um trabalho
árduo. Ele exige tempo e é por isto que há a proposta da criação de uma
comissão. Isto exige tempo.39
Como é um problema de complexa solução, bem se nota que a tensão estrutural se
faz presente. Pelo discurso acima, a solução metodológica para avaliação as habilidades
práticas por meio de múltipla escolha virá – no entender dos servidores – das empresas
organizadoras de certames. Ao que parece, o tema está encapsulado em uma redoma
dogmática de difícil ruptura. Não há solução jurídica (norma regulamentar, fiscalização
contratual, entre outros) para o problema, infelizmente. O tema somente poderá ser
deslindado por meio de mais pesquisas sobre sistemas avaliativos.
4.8 Concurso público: seleção autocentrada ou etapa inicial da vida
funcional?
Depois de analisar os casos do Ministério da Saúde e do INSS, tem-se que as
provas – como não poderia deixar de ser – possuem limitações avaliativas. Isto é bastante
evidente no caso das provas de resposta objetiva. Porém, é razoável supor que toda
39 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
358
Volume 49 I.indd 358
13/11/2013 17:03:08
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
avaliação possui limites. Partindo deste pressuposto, o problema se agrava, já que é
possível visualizar – do ponto de vista jurídico e gerencial – o certame como uma etapa
isolada da vida funcional do servidor. Como um modelo, é possível dividir a vida ativa do
servidor público em quatro momentos: a preparação para o certame, o concurso, o estágio
probatório e a requalificação:
Curso de formação
Preparação
ao concurso
público
Concurso
Público
Estágio
probatório
Ingresso
Vida funcional e contínua
requalificação
Confirmação
É interessante notar que a relação entre estes quatro momentos da vida funcional
dos servidores é pouco – ou nada – tratada pela literatura técnica. De forma intuitiva, as
pessoas com experiência na Administração Pública relatam que existe alguma relação
entre formação no ingresso e o certame. Esta necessidade de adaptação ao serviço
público pode ocorrer por meio de um curso como parte do certame; ou como um curso
de adaptação e palestras. Mas não existem um modelo definido de qual seria a melhor
opção, como infere-se da entrevista realizada com servidores do MP:
É sempre questionado por que fazer curso de formação enquanto segunda
etapa de concurso. Há um problema de objetivos: se é uma proposta
educacional de qualificar a pessoa para o trabalho, como é que isso
se coaduna com a proposta de seleção? Afinal, se não é uma parte da
seleção, não deveria ser dado durante o concurso; deveria ser feito após
o ingresso.40
Pode-se visualizar com clareza que existem dois modelos: curso como parte
(etapa) do certame; ou, curso como adaptação, em termos de formação:
Além de ser uma tradição de determinadas carreiras, um curso de
formação é uma segunda etapa em concursos para preparar servidores
para atividades que não correspondem a uma atividade profissional
em sentido estrito. Se você seleciona um médico, é pressuposto que
ele já conheça as técnicas que vão ser aplicadas na medicina. A única
diferença seriam as normas internas do hospital no qual ele vai trabalhar.
Agora, se você contrata um gestor ou um advogado para trabalhar na
40 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
359
Volume 49 I.indd 359
13/11/2013 17:03:08
PENSANDO O DIREITO, n° 49
administração pública, há outro contexto do que efetivamente ele vai
fazer; não tem uma formação profissional que o prepare diretamente
para essa atuação. Então, por isso que o sentido do curso de formação
previamente ao ingresso. (...) Hoje, os cursos de formação estão previstos
nas legislações específicas das carreiras, que definem o ingresso por meio
de um concurso com duas etapas. A segunda é o curso de formação (...).
No momento, a gente não está prevendo mexer em lei para tratar dessa
questão. Uma das propostas do GT de que se desenvolva [sic] um estudo
futuro, porque tem que ser feita uma discussão junto aos órgãos que
hoje têm esses cursos de formação para a sua adequação. A proposta
também não é acabar com o curso de formação, mas instituí-lo após o
ingresso, se você entende que ele é necessário. (...). Hoje, talvez, eu diria,
assim, que fosse mais fácil fazer enquanto eles são candidatos do que
depois deles serem servidores.41
Como pode ser visto na figura inicial, o curso de formação está situado em um
espaço ambíguo, que varia de carreira para carreira. Em algumas, ele pode ser um
conjunto de palestras para boas vindas, sem avaliação. Em outras, pode ser parte do
certame e finda seus efeitos com o término do processo de recrutamento. A entrevista
com servidores do MP demonstra que há – dentro dos debates correntes – uma grande
preocupação com o estágio probatório:
Os próprios consultores da área de setoriais trouxeram essas sugestões de
que o estágio probatório deveria ser tratado como prévio à efetivação. Que
esta efetivação só deveria ocorrer depois, já que ele seria uma oportunidade
de você verificar se a pessoa tem as competências necessárias. Assim,
se ela não viesse a se adequar, deveria ser retirada do quadro. É um
problema. Há problemas no estágio probatório. Primeiro, a legislação é
muito arcaica e insuficiente. Depois é a questão de gestão. Eu acho que
outra proposta de trabalho futuro é alinhar melhor a questão do estágio
probatório enquanto um período anterior à efetivação. Afinal, quem
já ingressou não tem mais preocupação; está garantido por 30 anos.
Agora, se você tivesse um concurso com uma primeira etapa normal,
um ingresso, uma formação e você tivesse num estágio probatório bem
peneirado e que pudesse, realmente, ao longo desse período, verificar as
pessoas que não têm as competências necessárias para serem efetivadas
no cargo e você tivesse como substituir essas pessoas, isso atenderia
bem.42
De fato, são necessários mais pesquisas para avaliar como está sendo processado
– do ponto de vista gerencial – o estágio na Administração Pública. A falta de informação
41 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
42 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
360
Volume 49 I.indd 360
13/11/2013 17:03:08
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
sobre o tema é grande e, conforme mencionado, este é pouco estudado em cotejo com
o tema dos concursos públicos. Ao que se apresenta, seria relevante existir algum meio
de continuidade de avaliação entre as provas dos certames e o início da vida funcional
do servidor. Do ponto de vista de política de pessoal, seria interessante pensar em
estruturas de carreira submetidas a avaliação contínua, certamente, como se infere da
entrevista havida com servidores do Ministério da Saúde. Contudo, como esta pesquisa
focalizou apenas os concursos de ingresso, cabe anotar que a realização de cursos com
provas e atividades de supervisão, para todas as carreiras, mesmo aquelas que possuem
curso de formação como parte do certame, seria um elemento relevante para auxiliar as
metodologias avaliativas, que – como pressuposto central – sempre possuem limitações.
5. A École Nationale d’Administration
como expressão do modelo Francês: uma
comparação necessária
5.1 Comparar, mas como?
O método comparativo é de uso corrente em diversas áreas do conhecimento e
experimenta uma enorme gama de variações e nuances. Na área do Direito, onde ganhará
o nome de “comparatismo” ou “Direito Comparado”, está profundamente ligado à ideia
de modelo. Mais que a tentativa de compreender objetos análogos por meio da abstração
ou tipificação das suas características mais marcantes, o conceito de modelo carrega um
importante componente normativo que ressignificará o termo em questão, lhe emprestando
um sentido exemplar, pautado na necessidade instrumental – e, portanto, eventual – de
importação de algum instituto jurídico estrangeiro (por vezes, chamado pelos juristas de
“alienígena”). Esta não será nossa abordagem, pois não pretendemos tentar extrapolar
uma crítica ao sentido institucional atribuído à seleção de funcionários públicos no Brasil
a uma pretensa necessidade de fazer como o fazem os Franceses.
Nossa abordagem será mais próxima àquela das Ciências Sociais, para a qual o método
consiste na sistematização do enfoque em termos de categorias por meio da explicitação
dos parâmetros da comparação, como resumiu Cécile Vigour43. A autora também expõe
que, diferentemente da analogia ou da homologia, a comparação em Ciências Sociais é
um processo, pelo qual não há “comparação impossível”, uma vez que é o trabalho do
43 VIGOUR, 2005, p.7.
361
Volume 49 I.indd 361
13/11/2013 17:03:09
PENSANDO O DIREITO, n° 49
pesquisador que permitirá a construção de paralelos, conexões e confrontações entre os
objetos44. Desta forma, tentaremos comparar os desenhos institucionais da seleção de
funcionários públicos no Brasil e na França, tendo por parâmetros básicos: (1) a homologia
de obrigações e expectativas em torno das habilidades e competências esperadas deles
nos dois países; e (2) o fato de se tratar de processos seletivos particularizados pelo
monopólio do Estado sobre a vida profissional dos seus “objetos”.
Além disto, ressaltamos que nossa abordagem pretende, ainda, se aproximar da
noção antropológica de comparação. Conhecida como Antropologia Estrutural, houve uma
tradição etnológica preocupada em descrever os atributos universais do espírito humano
por meio da comparação por semelhança, como expresso no trabalho de Claude LéviStrauss (1962), no qual ele tenta chegar ao “pensamento selvagem”: o estado subjetivo
de todo homem antes de ser “cultivado” ou “domesticado”, e não ao “pensamento dos
selvagens”. Por outro lado, a Antropologia Social se valerá da comparação por contraste,
onde se busca no estudo do outro um incremento no conhecimento de si. Esta postura
de pesquisa cumpre um fundamental papel de desnaturalização da cultura ocidental –
tirando-lhe a sua pretensa universalidade – por meio da etnografia de outras formas de
constituição do saber e de práticas sociais, mostrando como são nativas as categorias
encontradas nos mais diversos contextos.
Acrescente-se que a comparação antropológica permite mais particularmente
que o conhecimento acerca do outro provoque o estranhamento de si, por meio da
desnaturalização do nosso saber e das nossas práticas. No que toca particularmente à
Antropologia do Direito, Roberto Kant de Lima (2008, p. 5) afirma que, na comparação,
costuma-se ocultar sistematicamente a sociedade do observador, absorvendo como
elemento valorativo-negativo toda reação ao não encontrar o “mesmo”. Assim, para além
de não ter interesse na importação do “modelo” francês, pretendemos pôr em questão
a seleção de funcionários públicos no Brasil simplesmente pela descrição do sentido
institucional que os franceses dão aos elementos e às etapas deste processo por lá.
5.2 A “grande escola da República” e seu concurso
A França é um país que conta com 10% da sua população composta por funcionários
públicos. Em relação à população economicamente ativa, este percentual se eleva a vinte
25%. Trata-se de um país onde o serviço público é forte estruturador do funcionamento
da sociedade e tema levado bastante a sério desde o século XIX, tendo sido um dos temas
mais discutidos pelos parlamentares na virada para o século XX; ainda, de um país onde
a noção de “funcionalismo público” é perene nas pautas políticas e de mídia (ROUBAIN,
2010). Na França, o funcionário público e o agente político se distinguem sobretudo pelo
seu meio de seleção: se os últimos são recrutados por sufrágio universal, os primeiros
são recrutados por concurso público. Corolário da ideologia da meritocracia escolar, a
44 Idem, p.8.
362
Volume 49 I.indd 362
13/11/2013 17:03:09
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
realização de provas e exames é extremamente presente na vida de todo francês, e não
apenas daqueles que desejam se tornar funcionários públicos. No entanto, o progressivo
avanço do recrutamento por concurso sobre as nomeações reais ou presidenciais
marcou profundamente a consolidação da república de lá, e hoje é um forte paradigma
da administração pública (SADRAN, 1977).
O primeiro ponto a ser levantado aqui é o de que o ingresso em qualquer órgão da
Administração Pública francesa se dá mediante processos seletivos diferentes, mas que
guardam algumas características comuns, o que garante o institucionalismo e a unicidade
do recrutamento como um todo45. Basicamente, todo certame não precede a carreira, mas
uma escola de formação profissional, bem como possui ao menos três portas: (1) uma
voltada para recém-egressos dos sistemas de ensino (chamada “concurso externo”); (2)
uma voltada para a mobilidade no seio do serviço público (chamada “concurso interno”); e
(3) uma voltada para profissionais do mercado. Os magistrados46 são recrutados e formados
desta maneira, assim como os policiais47, os fiscais de renda48, os administradores locais49
e os administradores centrais. Estes últimos, por serem formados na École Nationale
d’Adminsitration, conhecida pela sigla ENA, são chamados de “énarques”50.
Fundada em 1945, a ENA é uma das “Grandes Écoles de la République”, ao lado de
outras instituições que, no imaginário francês, concentram a excelência, o prestígio, ou,
ainda, a “nobreza do Estado” (BOURDIEU, 1989). Encarregada da formação dos quadros
superiores da administração pública francesa, a ENA é tida como uma espécie de fábrica
de elites, tendo formado três Presidentes da República, sete Primeiros-Ministros e vários
Ministros e parlamentares. Fato é que a ENA não realiza seu trabalho sem forte crítica
do meio acadêmico ou jornalístico, assim como conta com a ajuda de uma prestigiosa
instituição de ensino: o Institut d’Études Politiques de Paris, também conhecido como
“SciencesPo-Paris” (VINCENT, 1987). Assim, juntas, uma escola profissional e uma
instituição de ensino superior operam uma sinergia que tem, na preparação para o certame
de ingresso, na carreira seu amálgama fundamental. Esta preparação é um dos carroschefe do ensino do SciencesPo-Paris que, no geral, é voltado para a formação de elites no
setor privado ou mesmo em outras carreiras públicas, como a magistratura, claro que não
sem arrancar duras críticas de professores das Faculdades de Direito (ANTONMATTEI;
MAISTRE DU CHARBON, 2009).
Antes de prosseguir na análise do recrutamento na ENA propriamente dito, cabe
mencionar dois pontos que diferenciam profundamente os certames na França e no Brasil:
45 Billand, ao tratar do recrutamento dos administradores locais na França, relaciona o pouco tempo que possui este concurso com seu
baixo institucionalismo. (2010).
46 Sobre a École Nationale de la Magistrature, ver Fontainha: 2011
47 Sobre a École Nationale de Police ver Moreau de Bellaing: 2006.
48 Sobre o Ministère de l’Economie, l’Industrie et l’Emploi, ver Miel: 2008.
49 Sobre a função pública local francesa, ver Billand 2008.
50 Sobre o recrutamento e a formação na ENA ver Eymeri 2001.
363
Volume 49 I.indd 363
13/11/2013 17:03:09
PENSANDO O DIREITO, n° 49
1) Preparação: na França, o essencial da preparação para concursos é feito nas
instituições de ensino médio ou superior, na sua maioria, públicas. No Brasil, o essencial da
preparação é feito em instituições privadas, especializadas nesta atividade, que competem
em um mercado absolutamente desregulado;
2) Organização: na França, a organização do essencial dos certames é de
responsabilidade da escola profissional para a qual o processo está selecionando. No
Brasil, a organização do certame é subcontratada à uma instituição altamente especializada
na atividade de organizar certames.
Um conjunto de leis e decretos dispõe sobre a configuração geral do certame da ENA.
Uma vez a cada ano, por meio de uma portaria ministerial, o Poder Executivo disciplina
como se dará cada recrutamento para o ingresso na ENA. Esta portaria trata apenas da
fixação do calendário, da nomeação do Presidente e dos membros da banca, do número
de vagas, e de demais assuntos relativos a particularidades de cada certame. Antes de
avançar para alguns pormenores deste certame, cabe salientar que, assim como a maioria
das “portas de entrada” do serviço público francês, esta seleção é marcada profundamente
pela ideologia acadêmica, sendo a meritocracia escolar o fundamento mais marcante
dos certames na França. Três são suas grandes marcas: (1) a presença expressiva de
professores nas bancas; (2) um maior interesse institucional pelo recrutamento de jovens
recém-egressos do sistema de ensino; e (3) os métodos de avaliação, que quase sempre
consistem em uma primeira fase de exames escritos, seguida de exames orais. É evidente
que nossa abordagem tipológica não exclui, entretanto, que outras ideologias se façam
presentes de forma menos marcante, como se verá.
No tocante às bancas examinadoras, elas são compostas por um triplo corpo: três
professores universitários, dois administradores (internos da carreira) e três profissionais.
Não necessariamente obedecendo a uma proporção exata, tradicionalmente, busca-se
chegar muito perto de um equilíbrio quantitativo entre os três. Em relação aos certames
no Brasil, chama a atenção a ausência de profissionais especializados em recrutamento
na banca, bem como o fato de que os paesanos, internos da carreira, aqueles que estão
recrutando seus futuros colegas, são minoria. Com relação aos professores universitários,
cabe mencionar que as universidades e liceus reputados na França, em sua imensa
maioria, são públicos, e que os cargos públicos são todos de dedicação exclusiva. Também
contrasta com o Brasil o fato de que jamais um professor acumularia o cargo público de
administrador. Geralmente, estes professores estão ligados aos Institutos de Estudos
Políticos ou aos departamentos de Ciência Política das Faculdades de Letras ou de
Direito. No entanto, nada impede – e não é rara – a presença de juristas, sociólogos ou
historiadores na banca. Os administradores comumente são escolhidos dentre os mais
experientes e, dentre eles, normalmente o mais antigo na carreira será o Presidente
da banca examinadora. Dentre os profissionais, que se designam por esta palavra dado
o fato de atuarem no setor privado, geralmente são chamados jornalistas, contadores,
administradores, articulistas, consultores ou psicólogos. Dada a forma acadêmica da
364
Volume 49 I.indd 364
13/11/2013 17:03:10
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
seleção, pode-se imaginar a primazia professoral na interação cotidiana necessária à
correção das provas e produção das notas, vista a familiaridade com o trabalho de avaliação
acadêmica de performance. No certame da magistratura francesa, esta primazia já foi
demonstrada (FONTAINHA, 2009).
Um outro aspecto interessante da seleção é que, na verdade, não se trata de um
certame, mas de três. Bastante comum no recrutamento das carreiras de nível superior
na França, a presença objetiva de três ideologias de recrutamento em um só processo de
seleção é também uma marca da ENA. Trata-se de três processos de seleção distintos, mas
com o mesmo calendário e com a mesma banca. Todos os anos, a portaria de abertura do
certame estipula quantas vagas haverá para cada um deles e os inscritos apenas podem
concorrer em um. Como expressão mais pura da ideologia acadêmica, temos o concurso
externo, voltado para jovens recém diplomados no sistema de ensino. Expressando a
ideologia burocrática, temos o concurso interno, voltado para funcionários públicos com
tempo de exercício em outras carreiras de nível superior. Por fim, expressando a ideologia
profissional, temos o terceiro concurso, voltado para profissionais com experiência no
mercado, na política ou no terceiro setor.
Esta arquitetura de recrutamento é fruto de uma progressiva disputa pela oxigenação
dos grandes corpos profissionais do Estado Francês. A possibilidade de um recrutamento
plural no Brasil é bastante remota, porém, como já vimos, o provimento em cargos públicos
por ascensão era previsto no inciso III da Lei nº 8.112/90. Contudo, o Supremo Tribunal
Federal considerou tal possibilidade de ingresso no serviço público como inconstitucional.
No mesmo sentido, considerou outras modalidades de movimentação – entre cargos – como
inconstitucionais. O ponto central é que o STF consignou que não são possíveis algumas
movimentações entre cargos efetivos, pelo princípio da necessidade de concurso público
(art. 37, II, da Constituição Federal). Deste modo, definiu que a passagem de um cargo
efetivo para outro somente pode ocorrer dentro da própria carreira na forma, por exemplo,
de promoção. O precedente foi a ADIN 231/DF, julgada em 1992, e foi reiterado várias
vezes. O art. 18 da Lei nº 9.527/97, derivado da conversão da Medida Provisória nº 1.59514/97, revogou expressamente estes dispositivos. Desta forma, seria muito difícil propor
um novo marco legislativo para o Brasil no qual houvesse, por exemplo, a possibilidade
de um Procurador Federal com cinco anos de experiência concorrer ao Itamaraty, ou de
um consultor de finanças com dez anos de experiência concorrer ao MP. Ambos teriam
que parar suas atividades e dedicar um bom tempo à preparação nos cursinhos. Este é
apenas mais um aspecto da comparação com a França que faz ressaltar que a expressão
brasileira da ideologia concurseira produz externações extremamente prejudiciais à
Administração Pública, tanto em termos de recursos financeiros quanto humanos.
Retomando a análise do certame da ENA, cumpre agora avançar para a forma como
cada uma destas ideologias se objetiva na seleção: os dossiês de candidatura. Muitas
são as marcas pelas quais um membro de banca pode melhor conhecer um candidato
por meio dos documentos que este anexa ao seu dossiê, sobretudo nas provas orais. A
365
Volume 49 I.indd 365
13/11/2013 17:03:10
PENSANDO O DIREITO, n° 49
marca mais tradicionalmente reconhecida como legitimadora de candidaturas-modelo é
o diploma escolar ou universitário. Já se afirmou que a estabilidade do modelo francês de
seleção de elites vem justamente da “tirania do diploma inicial” (BAUER; BERTIN-MUROT,
1995), assim como já se demonstrou o peso fundamental deste documento na seleção da
magistratura francesa (FONTAINHA, 2010). No certame da ENA não é diferente, com a
ressalva que, no concurso interno, os membros da banca contam também com processo
funcional do candidato, e, no terceiro concurso, com seu portfólio.
No tocante às provas em si, os certames da ENA apresentam alguns nuances entre
as diferentes modalidades que merecem algum detalhe. Para tanto, os compilamos na
tabela abaixo51:
CONCURSO EXTERNO
CONCURSO
INTERNO
TERCEIRO CONCURSO
Requisitos para Diploma atestando, ao menos, Comprovação de, ao Comprovação de, ao menos,
a
inscrição três anos de formação menos, quatro anos oito anos de exercício efetivo
(primeira fase)
universitária
de exercício efetivo no de atividades profissionais,
Serviço Público
3
eletivas ou associativas
p r o v a s Composições de Direito Pareceres redigidos Pareceres redigidos a partir
e s c r i t a s Público, Economia e Cultura a partir de Dossiês de Dossiês de Direito Público,
(primeira fase)
Geral
de Direito Público, Economia, e Questões Sociais
Economia, e Questões ou Europeias
Sociais ou Europeias
Uma redação Parecer redigido a partir de Redação em Cultura Redação em Cultura Geral
(primeira fase)
um dossiê de Questões Sociais Geral baseada em um baseada em um dossiê
ou Europeias
dossiê
Prova adicional Redação adicional entre Prova de memorial Prova
(primeira fase)
25 matérias à escolha do de
candidato
valorização
de
memorial
de
da valorização da experiência
experiência profissional profissional de Sociologia das
de
Administração Organizações, Administração
D e s c e n t r a l i z a d a , de Empresas, Gestão Pública
das
Coletividades ou Relações Sociais
Te r r i to r i a i s ,
dos
Estabelecimentos
Públicos ou do Sistema
Educativo
51 Informações extraídas da publicação intitulada “Devenir Haut Fonctionnaire”, editada pela própria ENA.
366
Volume 49 I.indd 366
13/11/2013 17:03:10
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Provas
orais Finanças Públicas, Relações Finanças
(segunda fase)
Públicas, Relações
Internacionais,
Internacionais, Questões R e l a ç õ e s Questões Sociais ou Europeias,
Sociais ou Europeias, Língua I n t e r n a c i o n a i s , Língua Estrangeira e Cultura
Estrangeira e Cultura Geral Questões Sociais ou Geral
(personalidade e motivação)
Europeias,
(personalidade
e
Língua motivação)
Estrangeira e Cultura
Geral (personalidade e
motivação)
Exame
físico Obrigatório
Obrigatório
Facultativo
(segunda fase)
De uma forma geral, a primeira observação que se pode fazer é a total inexistência de
provas de múltipla escolha. Em segundo lugar, nota-se a multidisciplinaridade, somada
ao fato de haver opções entre as disciplinas, o que opera a institucionalização da relação
entre as estratégias e as competências dos candidatos: seu interesse e sua margem de
manobra para fabricar competências de véspera é drasticamente reduzido. O exame
físico, que opera verdadeiro dogma nos certames franceses, possui um peso reduzido e
não é obrigatório no terceiro concurso. Por fim, chama a atenção igualmente a presença
da prova oral de língua estrangeira, o que força a multidisciplinaridade na banca e na
preparação, uma vez que é possível vislumbrar um mercado de ensino instrumental de
línguas, mas não de “idiomas para concursos”.
Cumpre esclarecer o papel de uma disciplina presente nas provas escritas e orais, a
Cultura Geral. Sem programa – e, por isso, de impensável aplicabilidade no Brasil – esta
disciplina não tem o papel apenas de testar o conhecimento do candidato sobre atualidades,
entretenimento ou história. Tanto na etapa escrita quanto na oral, o que está em jogo é
a capacidade de adaptação da opinião ao modo de pensar e ao método de escrever e se
expressar esperado pela instituição (BERRIER, 1991). Na etapa oral, as provas de Cultura
Geral são chamadas de provas de “personalidade e motivação”. A ideologia concurseira,
presa a falsas objetividades, não deixaria de lançar seu repúdio a este tipo de exame,
por sua pretensa subjetividade. Entretanto, já foi demonstrado, por meio do estudo dos
relatórios de banca de três diferentes concursos – Administração, Magistratura e Estado
Maior das Forças Armadas –, que, se existe um sentido institucional nas seleções das
elites burocráticas na França, ele vem das provas de Cultura Geral (OGER, 2002).
A arquitetura dos concursos é pensada levando em conta essa importância e isto se
reflete no peso maior dado às provas de Cultura Geral, particularmente à oral. Quanto
mais prestigioso o concurso, mais temida sua última prova, conhecida como “Grande
Oral”; a única realizada num grande auditório, lotado de futuros candidatos. Ainda assim,
o que impressiona é a centralidade no método de exposição dos argumentos, que opera
como o foco da avaliação e, portanto, da preparação (JACQUEMELLE, 2005).
Algo não muito diferente ocorre nas provas escritas, o que as diferencia bastante das
famosas “provas abertas” do Brasil. Assim como nas provas orais, inclusive as de Cultura
367
Volume 49 I.indd 367
13/11/2013 17:03:10
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Geral, o candidato é confrontado com um dossiê (uma lista de documentos oficiais), um
texto (uma matéria de jornal, por exemplo) ou um tema (uma frase curta), ou seja, ele
sempre reage. O foco da preparação e da correção não é, entretanto, o estudo da disciplina
em questão, ela é assumida como uma aquisição prévia. O foco é o método. Desta forma,
a preparação é realizada de forma não muito diferente em seleções variadas, como a da
administração central ou local, da magistratura ou da polícia (GUÉDON; LABORDE, 2002).
Cabe salientar que, apesar da primazia acadêmica no concurso, as diferentes formas de
prova escrita remetem também a outras ideologias, como a burocrática ou a profissional.
O que queremos dizer aqui é que o aspecto concurseiro é relativamente ausente nesta
seleção, uma vez que as provas ou são muito similares com as avaliações do sistema de
ensino ou com aspectos do trabalho cotidiano da futura carreira. Podemos observar que,
além das tradicionais redações ou composições, que em nada se parecem com respostas
discursivas curtas às variadas questões, temos a redação de pareceres, notas de síntese
e memoriais de valorização da trajetória profissional.
5.3 Alguns números sobre os três concursos
Finalmente, cabe trazer alguns dados sobre o estado recente do recrutamento na
ENA. O projeto institucional deste certame, apesar de plural, faz sua primazia acadêmica
também ser sentida na quantidade de vagas abertas a cada uma das “portas”.
O projeto da escola é agregar, em maioria, jovens egressos da universidade, com
grande abertura também à mobilidade no seio do serviço público, mas sendo minoritário
o recrutamento de profissionais do mercado. Um modelo aparentemente rígido, mas, se
comparado ao brasileiro, ainda assim se torna o corolário da flexibilidade no recrutamento
de servidores públicos. Observemos abaixo o resultado consolidado destes dez anos de
certames na ENA, que confirma o que acabamos de afirmar:
368
Volume 49 I.indd 368
13/11/2013 17:03:10
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Outro ponto interessante – e que não é característico apenas ao certame da ENA
– é como os franceses objetivam a noção de “vocação” ou “aptidão” ao ingresso em
determinada carreira: cada candidato tem direito a apenas três tentativas. Após três
reprovações, o projeto institucional republicano francês considera que aquele candidato
não é aproveitável para a carreira, e fecha definitivamente o acesso. Algo difícil de se
vislumbrar no Brasil, onde, além de pouco relevantes para a seleção e para as habilidades
e atribuições, o certame é pensado em termos de direitos dos candidatos, e não em
interesses e necessidades da Administração Pública. Os efeitos deste projeto institucional
são impressionantes e têm por principal reflexo o absenteísmo dos candidatos, que
podem se inscrever quantas vezes quiserem no certame, pois é necessário comparecer
a uma das provas para o cômputo de uma das três chances. O gráfico abaixo deixa claro o
impacto de mais de 30% de disparidade entre candidatos inscritos e presentes em todas
as modalidades, entre 2010 e 2012:
O potencial organizador e racionalizador de tal projeto institucional é enorme. De início,
inviabiliza-se a prática, comum no Brasil, de prestar o certame como uma espécie de
teste, o que poderíamos chamar – jocosamente – de abuso de direito de inscrição. Para os
franceses, ressalvadas as proporções populacionais, é incompreensível um certame com
um milhão de candidatos, como foi o caso do concurso para Analista do INSS de 2012. Esta
medida opera uma pré-seleção qualitativa em enorme benefício para a administração,
que fica livre de investir enormes recursos dedicados a candidatos que sequer se julgam
preparados, e ainda correr o risco da eventualidade de um destes vir a ser aprovado. Esta
medida de fato divide a responsabilidade entre o candidato e a administração. A diferença
fundamental que se põe aqui é a contrapartida da assunção desta responsabilidade
exclusivamente pelo Estado no Brasil: a taxa de inscrição. Ela inexistente na França, por
razões ligadas à equidade e à democracia, no Brasil já pudemos demonstrar seu papel
de anteparo social, além da especulação que se pode fazer em torno da sua finalidade
de geradora de receita.
369
Volume 49 I.indd 369
13/11/2013 17:03:10
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Uma hipótese a ser formulada sobre este ponto é a de que a ideologia concurseira
serve para fins de mercado. Um enorme contingente de candidatos alimenta não apenas
as entidades organizadoras, mas, sobretudo, os cursinhos que, por vezes, são organizados
no seio mesmo de instituições públicas que, nesta frente de atuação, concorrem livremente
neste mercado desregulado. Por fim, cabe demonstrar o impacto desta medida na
concorrência. Outro dogma da ideologia concurseira é o de que é a relação candidato/
vaga que produz o mérito, sem a conta qualitativa do enorme contingente de candidatos
participando da seleção fora de quaisquer condições de competição. No certame ENA, a
queda de concorrência quantitativa é drástica quando comparamos a razão entre o número
de empossados e o número de inscritos (concorrência simples), e a razão entre o número
de empossados e o número de presentes (concorrência qualificada):
Por lá, a lógica se inverte: menos quantidade é mais qualidade.
Assim, procuramos desenvolver, neste tópico, uma série de considerações sobre o
certame da ENA que nos fazem refletir sobre o mundo dos concursos por aqui. De uma forma
geral, ficou demonstrado como acontece um certame que prima pela ideologia acadêmica,
mas, desde o seu projeto institucional, é aberto à pluralidade burocrática, profissional e até
mesmo concurseira. Tratar as “ideologias do concurso” como tipos ideais nos leva a querer
observar qual a dinâmica dominante de uma cultura de seleção. Certamente aspectos
profissionais, burocráticos e acadêmicos estão presentes nos concursos brasileiros. No
entanto, nosso modelo é de primazia radicalmente concurseira. Nosso argumento é o
de que esta primazia ocorre em prejuízo profundo para a Administração Pública, tanto
de recursos financeiros quanto humanos, motivo pelo qual cremos ser necessária uma
reformulação do projeto institucional do recrutamento dos quadros no serviço público,
que passaremos a expor a seguir.
370
Volume 49 I.indd 370
13/11/2013 17:03:11
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
6. Conclusão
Em guisa de conclusão, pudemos demonstrar como os concursos brasileiros são
organizados a partir de uma ideologia concurseira. Pudemos levantar alguns pontos
importantes a respeito desta temática no Brasil.
A revisão da literatura aponta que existe uma bibliografia extensa sobre o perfil dos
funcionários públicos Federais produzida pelo Ipea. No entanto, há uma escassez flagrante
no tocante aos concursos públicos Federais. Em relação aos objetos das pesquisas,
constatamos que as mesmas se debruçam sobre a preparação para o concurso, a produção
do edital, a realização do certame e, por fim, as etapas de contratação, ou nomeação e
posse dos candidatos.
As pesquisas procuram compreender diferentes aspectos. Já existe um número
importante de teses, dissertações e artigos sobre concursos públicos dentre as seguintes
disciplinas: Administração, Saúde, Políticas Públicas, Sociologia, Letras, Educação, Direito,
Psicologia, Contabilidade e Finanças.
Deste modo, percebemos que as abordagens buscam focalizar momentos específicos
da organização social dos concursos públicos. Há um ponto específico que interessa
particularmente na nossa abordagem, que é a reflexão sobre os editais. As pesquisas
atuais os analisam em termos jurídicos ao tomá-los como um instrumento normativo de
organização das etapas do concurso, permitindo — do ponto de vista dos juristas — refletir
sobre as formas de controle judicial do certame. No entanto, esta abordagem reduz o
edital à expressão de regras de organização, sem vislumbrar o que elas representam em
termos de construção social das expectativas dos diferentes atores sociais envolvidos no
concurso.
Assim, a análise dos elementos dos editais foi realizada para compreendê-los
globalmente. Nosso objetivo foi entender o que estes diferentes projetos institucionais
podem nos ensinar sobre a organização do concurso. Por este motivo, os gráficos expressam
sempre os elementos constantes dos editais. As mudanças durante o período selecionado
(2001 a 2010) refletem um padrão, isto é, uma ideologia que produz esta organização dos
concursos. Assim, procuramos demonstrar, por meio dos diferentes gráficos, o quanto
esta ideologia está presente na forma de constituir tais projetos.
O modelo legislativo é baseado em um tipo ideal que – a partir do nossa comparação
– esgotou a sua capacidade de produzir o fim ao qual se destina: selecionar os candidatos
mais aptos ao desempenho de determinadas funções públicas. Em síntese, o problema
da seleção e do recrutamento de servidores não será resolvido pelo melhor detalhamento
normativo do que seja uma prova de múltipla escolha. Serão novas práticas de concurso,
compatíveis com o marco jurídico, que poderão alterar a situação.
371
Volume 49 I.indd 371
13/11/2013 17:03:11
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Os dados quantitativos demonstram em que medida a ideologia concurseira explica a
organização social dos concursos, que se orienta para si, e não para o projeto institucional.
Isto é perceptível diante da concentração de concursos em torno de algumas entidades,
bem como na própria organização dos elementos do certame, que não são padronizados
em todos os concursos. Mas que obedecem a uma lógica de organização. Além disto,
as diferentes fases dos concursos e as relações com as remunerações oferecidas pelos
editais fazem deles uma finalidade em si e não um meio para a seleção dos candidatos.
Somado a isto, há uma disputa bastante real quanto à autorização para realização de
concurso público em que prevalecem, à primeira vista, os critérios de necessidade que
são estabelecidos pelo MP. Parte da equipe técnica dos órgãos faz um grande esforço de
demonstração de sua realidade e das necessidades com que convivem, mas há também,
inegavelmente, uma equipe política dos órgãos que também atua.
As entrevistas nos permitiram compreender a visão dos gestores públicos que pensam
e tornam o concurso público viável. A partir delas, pudemos levantar o procedimento
que antecede o certame e também onde estão alguns dos problemas que precisam ser
superados, por meio de um estudo de caso.
A perspectiva comparada nos permitiu ressaltar os contrastes entre os modelos
brasileiro e francês, contrariamente aos estudos jurídicos que comparam pela semelhança.
Esta metodologia permitiu demonstrar o quanto as ideologias do concurso são diferentes
e, por este motivo, as seleções brasileiras têm uma orientação própria, que denominamos
de ideologia concurseira. Ao tratar as “ideologias do concurso” como tipos ideais, pudemos
observar as dinâmicas dominantes de uma cultura de seleção. Certamente aspectos
profissionais, burocráticos e acadêmicos estão presentes nos concursos brasileiros, assim
como aspectos concurseiros estão presentes nos concursos na França. No entanto, nosso
modelo é de primazia radicalmente concurseira.
O tema dos certames é muito relevante para ter sido um objeto de pesquisa tão pouco
apreciado, seja no campo dos estudos jurídicos estritos, seja pela Sociologia do Direito.
Visualizamos algumas linhas de pesquisa futuras que podem – e, em nossa opinião,
devem – ser derivadas deste diagnóstico. A primeira diz respeito à avaliação dos conteúdos
programáticos demandados. Trata-se de um claro exercício de apreciação qualitativa.
A maneira mais simples é contar a ocorrência de temas, fixados em um léxico. A partir
da quantidade de repetições, seria possível ter uma ideia dos assuntos demandados em
quais certames e da sua pertinência para os cargos. É sempre relevante a ressalva de
que a pesquisa diagnosticou a inexistência de aferições referenciadas diretamente às
habilidades. Se o núcleo duro da avaliação na ideologia concurseira é a quantidade de
conhecimentos, torna-se relevante uma apreciação fina sobre eles.
O segundo tema para pesquisa futura diz respeito à interação entre o Poder Judiciário,
as entidades organizadoras e, principalmente, as bancas. A jurisprudência dominante
372
Volume 49 I.indd 372
13/11/2013 17:03:11
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
destaca a impossibilidade de que as bancas sejam substituídas por magistrados e alterem
a interpretação dos resultados e, consequentemente, as correções. Todavia, há exceções
jurisprudenciais para o caso de haver idiossincrasias. Seria interessante um levantamento
nacional nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, além do STF e do STJ,
para identificar e descrever em fichas-padrão os casos de interveniência. O ideal seria
verificar o total e o percentual de casos de restrição à intervenção em cotejo aos casos
de abstenção interventiva. Depois, o estudo deveria evoluir para a apreciação qualitativa
de cada caso, com uma descrição das provas e dos certames.
Outro estudo importante deveria versar sobre as entidades organizadoras de certames.
O nosso foco foi dirigido às entidades líderes deste mercado, já que levantou dados
sobre certames de larga escala e difusão nacional. Todavia, existem entidades que
realizam certames menores, como diversas fundações de Universidades públicas e
mesmo empresas de menor porte. Quais são? O que pensam os seus gestores sobre os
certames? Há uma lacuna na literatura sobre o tema.
Por fim, o último tema de relevo diz respeito ao elemento oculto da presente pesquisa: os
concurseiros em seu “habitat natural” de reprodução ideológica. Os cursinhos preparatórios
estão a merecer um mapeamento extensivo e estudos qualitativos. Não é possível precisar
quantos cursinhos existem. Não há controle, não há conhecimento. Estas entidades
funcionam na margem do sistema de Educação formal, apesar de muitas postularem
credenciamento no Ministério da Educação para ofertar uma diplomação concurseira
na forma de certificados de especialista. Assim, é oferecido ao concurseiro um produto
“dois em um”: o curso e um diploma para ganhar alguns pontos na aferição de títulos e
na contagem de tempo de experiência profissional. A realização de estudos qualitativos e
quantitativos futuros será importante para apreciar a hipótese de uma ideologia concurseira
e o seu funcionamento.
Finalizamos esperando não ter relativizado o imenso avanço que significou para o
País a racionalização da contratação de funcionários públicos por meio de concursos. No
entanto, cremos ter também evidenciado a crise de um modelo, o que pede superação.
Da crise, não do modelo.
373
Volume 49 I.indd 373
13/11/2013 17:03:11
PENSANDO O DIREITO, n° 49
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, Pedro Vieira. A nova lei da AGU: república e democracia. Valor Econômico,
São Paulo, p. A12, 7 jan. 2013.
ALBRECHT, P. A. T.; KRAWULSKI, E. Concurseiros e a busca por um emprego estável:
reflexões sobre os motivos de ingresso no serviço público. Cadernos de Psicologia Social
do Trabalho, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 211–226, 1 dez. 2011.
AMANCIO, L. F. dos S. O concurso público no processo de profissionalização docente:
análise dos concursos realizados pela Prefeitura do Município de São Paulo (2004 e 2007)
e perfil dos professores de história aprovados. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 2009.
ANTONMATTEI, Paul-Henry; MAISTRE DU CHAMBON, Patrick. Formation des avocats, la
colère des juristes. Le Monde, Paris, p. 20, 23 maio 2007.
ARROW, Kenneth; BOWLES, Samuel; DURLAUF, Steven (dir.). Meritocracy and economic
inequality. Princeton: Princeton University Press, 2000.
AUTIN, Jean-Louis; RIBOT, Catherine. Droit dministratif général, Paris: Lexis-Nexis/
Litec, 2004.
BATISTA, A. S. Imagens do professor de língua portuguesa em concursos públicos da
Grande São Paulo. São Paulo: USP, 2011.
BAUDELOT, Christian; ESTABLET, Roger. L’école capitaliste en France. Paris: Maspero,
1971.
_____. Les filles et les garçons dans la compétition scolaire. Paris: Données Sociales, 1990.
BAUER, Michel; BERTIN-MOUROT, Bénédicte. La tyrannie du diplôme initial et la circulation
des élites: la stabilité du modèle français. In: SULEIMAN, Ezra; MENDRAS, Henry (dir.).
Le recrutement des élites en Europe. Paris: La Découverte, 1995.
BERRIER, Astrid. Évaluer à l’oral: quelles questions? The French Educational Review, v.
64, n. 3, 1991.
BILLAND, Émilie. Les ambiguïtés de la sélection par concours dans la fonction publique
territoriale: une institutionnalisation inachevée. Revue Sociologie du Travail, Paris, v.
52, n. 2, 2010.
374
Volume 49 I.indd 374
13/11/2013 17:03:11
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
_____. Concours territoriaux et institutionnalisation de l’emploi public local: années
1970 - années 2000. 2008. 781 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - École des Hautes Études
en Sciences Sociales, Paris, 2008.
BOUDON, Raymond. L’inégalité des chances: La mobilité sociale dans les sociétés
industrielles. Paris: Armand Colin, 1979.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Les héritiers. Paris: Minuit, 1964.
_____. La reproduction. Paris: Minuit, 1970.
BOURDIEU, Pierre. La noblesse d’état: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Minuit,
1989.
CARNEIRO, M. A. da S. Concurso público enquanto instrumento de exercício da cidadania:
análise-crítica da experiência da reestruturação das carreiras exclusivas de Estado no
Fisco da Bahia. Salvador: Universidade Católica de Salvador, 2011.
CARRO, R. A. L. Caracterização do perfil dos candidatos ao Concurso de Residência
Médica do Sistema Único de Saúde, no período de 1999 a 2004. São Paulo: USP, 2007.
CASTELAR, I.; FERREIRA, R. T.; SOARES, I.; VELOSO, A. W. A. Uma análise dos determinantes
de desempenho em concurso público. Economia Aplicada, Ribeirão Preto, v. 14, n.1, p.
81–98, 2010.
CICOUREL, Aaron V; KITSUSE, John. The educational decision-makers. Indianapolis:
Bobbs-Merrill, 1963.
CICOUREL, Aaron V. Some basic theoretical issues in the child’s performance in testing
and classroom settings. In: _____. Language use and school performance. New York:
Academic Press, 1974.
COSTA, J. C. da. Dos concursos públicos e da política de recrutamento de professores
do ensino fundamental I, no município de São Paulo. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica, 2010.
CUNHA, E. M. Concurso Público: visão jurisprudencial. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica, 1999.
DESCARDECI, M. A. A. de S. O Concurso Público: um evento de letramento em exame.
Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1992.
DOUGLAS, W. Palavra para os concurseiros amadores. 5 jan 2013.
375
Volume 49 I.indd 375
13/11/2013 17:03:11
PENSANDO O DIREITO, n° 49
DURU-BELLAT, Anne. L’inflation scolaire. Les désillusions de la méritocratie. Paris: La
République des Idées\Seuil, 2006.
_____. Le mérite contre la justice. Paris: Presses de Sciences Po, 2009.
DURKHEIM, Émile. L’Éducation Morale. Paris: Félix Alcan, 1938.
_____. Educação e Sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
ÉCOLE NATIONALE D’ADMINISTRATION. Rapport Annuel. Strasbourg: École Nationale
d’Administration, 2011.
_____. Devenir Haut Fonctionnaire. Strasbourg: [s.n.], 2013.
EWICK, P.; SILBEY, S. S. The common place of law: stories from everyday life. Chicago:
University of Chicago Press, 1998.
EYMERI, Jean-Michel. La fabrique des énarques. Paris: Economica, 2001.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2 v.
Porto Alegre: Globo, 1977.
FLAUZINO, D. P.; BORGES-ANDRADE, J. E. Comprometimento de servidores públicos e
alcance de missões organizacionais. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro,
v. 42, n. 2, p. 253–273, abr 2008.
FONTAINHA, Fernando de Castro. Les (en)jeux du concours: une analyse interactionniste
du recrutement à l’École nationale de la magistrature. Sarrebruck: Éditions Universitaires
Européennes, 2011.
_____. O perfil do aluno da EMERJ: Um estudo sobre ‘concursandos’. Revista da EMERJ,
Rio de Janeiro, v. 14, p. 7-31, 2011a.
_____. The French judicial public competitive examination, the candidates and their
files: construction and self-construction in non-face-to-face interaction. New Cultural
Frontiers, v. 1, n. 1, 2010.
_____. Work division, domination, and solidarity in French law field: scholars, judges,
and the National Judicial School’s public contest oral exam. In: SERAFIMOVA, Maria;
HUNT, Stephen; MARINOV, Mario (dir). Sociology and Law: the 150th anniversary of Emile
Durkheim. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2009.
GOLDTHORPE, John. The Myth of Education-Based Meritocracy. New Economy, v. 4, n.
376
Volume 49 I.indd 376
13/11/2013 17:03:12
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
10, 2003.
_____. Problems of Meritocracy. In: ERIKSON, Robert; JONSSON, Jan. Can education be
equalized?. Boulder: Westview Press, 1996.
GOMES, L. R. Políticas de Seleção de Professores: Estudo Sobre os Concursos Públicos
para Movimentos de Cargo de Professor I da Rede Estadual Paulista na Década. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica, 1998.
GUÉDON, Jean-François; LABORDE, Françoise. Dissertation et commentaires de textes:
22 corrigés d’épreuves officielles, tous examens et concours, universités, grandes écoles,
concours administratifs A et B, tous les grands sujets ENA, ENM, IRA, Police Nationale.
Paris: Éditions d’Organisation, 2002.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
JACQEMELLE, Guy. Le Grand Oral de l’ENA. Paris: Les Éditions de Mécène, 2005.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o sistema representativo
no Brasil São Paulo: Alfa Ômega, 1976.
LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
LIMA, Roberto Kant de. Por uma Antropologia do Direito, no Brasil. In: _____. Ensaios de
Antropologia e de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
MACHADO JÚNIOR, A. Controle Jurisdicional nos Concursos Públicos. Fortaleza:
Universidade Federal do Ceará, 2006.
MANCINI, A. P. G. Concursos Públicos para Admissão de Professores no Município da
Corte: 1876-1886. Campo Grande: Universidade Federal de Mato Grosso Do Sul, 1999.
MARTINO, A. S. de. Coerência e coesão na interpretação de textos em provas de concursos
públicos. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2008.
MEHAN, Hugh; VILLANUEVA, Irene; HUBBARD, Lea; LINTZ, Angela. Constructing
school success: the consequences of untracking low-achievement students. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996.
MEHAN, Hugh. Accomplishing classroom lessons. In: CICOUREL, Aaron et al. Language
use and school performance. New York: Academic Press, 1974.
377
Volume 49 I.indd 377
13/11/2013 17:03:12
PENSANDO O DIREITO, n° 49
_____. Structuring School Structure. Harvard Educational Review. v. 48, n. 1, 1978.
_____. The competent student. Austin: Southwest Educational Development Laboratory,
1979.( Sociolinguistic working paper, 61)
_____. Learning lessons: the social organization of classroom instruction. Cambridge:
Harvard University Press, 1979a.
_____. Understanding inequality in schools: the contribution of interpretive studies.
Sociology of Education, New York, v. 65, n. 1, 1992.
MEIRELLES, D. R. S. Cursos Jurídicos Preparatórios: Espaço de formação profissional,
reflexo de deformação do ensino ou reprodução de ideais corporativos? Niterói: Universidade
Federal Fluminense, 2002.
MIEL, Morgane. Bercy: la cité des femmes. Paris: Madame Figaro, 2008.
MINGAT, Alain. Expliquer la variété des acquisitions au cours préparatoire : les rôles de
l’enfant, la famille et l’école. Revue Française de Pédagogie, Lyon, v. 1, n. 95, 1991.
MOREAU DE BELLAING, Cédric. La police dans l’Etat de droit : les dispositifs de formation
initiale et de contrôle interne de la police nationale dans la France contemporaine. 667 f.,
2006. Tese ( Doutorado em Ciência Política) - Institut d’Études Politiques de Paris, 2006.
NUNES, P. Conflitos de interesse: reflexões ao regime do pós-emprego público. Economia
Global e Gestão, v. 15, n. 2, p. 137–157, set 2010.
OLIVEIRA, A. C. O ingresso das pessoas com deficiência no serviço público: alcances e
limites do processo educativo. Campo Grande: Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, 2006.
OGER, Claire. Candidats-modèles, cultures et méthodes: l’épreuve de culture générale
dans trois concours de sélection des élites de la fonction publique (École de Guerre \
Cours Supérieur d’État-Major, École Nationale d’Administration, École Nationale de la
Magistrature). Analyse de discours des rapports de jurys. Tese: Linguística: Universidade
de Paris XII, 2002.
PAULA, A. P. P. de. Administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão
social. Revista de Administração de Empresas, v. 45, n. 1, p. 36–49, mar 2005.
PEREIRA Júnior, Jossé Torres. Art. 37, incisos e parágrafos. In: BONAVIDES, Paulo (org.);
MIRANDA, Jorge (org.); MOURA AGRA, Walber (org.). Comentários à Constituição Federal
de 1988. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2009, p. 738.
378
Volume 49 I.indd 378
13/11/2013 17:03:12
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
PUPPO LUZ, L. DEL; SILVA, C. M. O exercício de estudar nos cursinhos destinados aos
concursos públicos. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 20, n. 1, p. 285–304, 2008.
ROUBAIN, Luc. Le nombre des fonctionnaires : le débat autour du fonctionnalisme, 1877
– 1914. Revue Française d’Administration Publique, Paris, n. 135, v. 1, 2010.
RUTKOWSK, J. Qualidade no serviço público - um estudo de caso. Gestão & Produção,
São Paulo, v. 5, n. 3, p. 284–297, 1998.
SADRAN, Pierre. Recrutement et sélection par concours dans l’administration française.
Revue Française d’Administration Publique, Paris, v. 1, n. 1, 1977.
SANTANA JUNIOR, J. J. B. de; PEREIRA, D. M. V. G.; LOPES, J. E. DE G. Análise das
habilidades cognitivas requeridas dos candidatos ao cargo de contador na Administração
Pública Federal, utilizando-se indicadores fundamentados na visão da Taxonomia de
Bloom. Revista Contabilidade & Finanças, São Paulo, v. 19, n. 46, p. 108–121, abr. 2008.
SCHEINGOLD, S. A. The Politics of Rights: Lawyers, Public Policy, and Political Change.
Michigan: University of Michigan Press, 2004.
SCHIRMER, M. S. D. A. Da Investidura de Servidores Públicos. Curitiba: Universidade
Federal do Paraná, 2001.
SOUSA, A. R. de. O Processo Administrativo do Concurso Público. Uberlândia: Universidade
Federal de Uberlândia, 2011.
SPILKI, A.; TITTONI, J. O modo-indivíduo no serviço público: descartando ou descartável.
Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 17, n. 3, p. 67–73, dez 2005.
THELOT, Claude. Tel Père, Tel Fils ? Position Sociale Et Origine Familiale. Paris: Dunod,
1982.
VIGOUR, Cécile. La comparaison dans les sciences sociales. Paris: la Découverte, 2005.
VINCENT, Gérard. Sciences Po. Histoire d’une réussite. Paris: Olivier Orban, 1987.
WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo ideal.
In: CAMPOS, Edmundo (org.). Sociologia da Burocracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
_____. Sobre a teoria das Ciências Sociais. São Paulo: Moraes, 1991.
YOUNG, Michael. The rise of the meritocracy. London: Transaction Publishers, 1994.
379
Volume 49 I.indd 379
13/11/2013 17:03:12
PENSANDO O DIREITO, n° 49
VASCONCELOS, T. da S. O acesso aos cargos, empregos e funções públicas e os princípios
constitucionais na gestão pública brasileira. Ijuí: Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul, 2006.
ZIMDARS, Anna. Challenges to Meritocracy?: A study of the social mechanisms in student
selection and attainment at the University of Oxford. Tese (Doutorado em Sociologia) University Oxford, 2007.
_____. Fairness and undergraduate admission: a qualitative exploration of admissions
choices at the University of Oxford. Oxford Review of Education. v. 38, n. 3, 2010.
_____. The Competition for Pupillages at the Bar of England and Wales: 2000-2004,
Journal of Law and Society, v. 28, n. 4, 2011.
380
Volume 49 I.indd 380
13/11/2013 17:03:12
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
Apêndice - Uma proposta de marco legislativo
para o Brasil
Segundo o Ministério do Planejamento foram contratados 151,2 mil
servidores públicos por concurso durante o governo Lula contra 51,6 mil
no governo FHC. A despesa média por servidor teve um crescimento real
de 70% no período. Polícia Federal, Receita Federal, gestores públicos,
diplomatas e várias outras carreiras foram reestruturadas e revalorizadas.
É claro que isto não significa que o Estado não deva ser composto,
sobretudo, por servidores concursados. Ou que o Estado não deva possuir
uma estrutura bem remunerada e bem qualificada de servidores. A
questão é que falta um debate sério sobre o papel desses servidores. Ou da
relação desses servidores com a democracia. Os servidores concursados
(...) devem estar cientes que têm que ter uma profunda lealdade tanto
com a república quanto com a democracia.52
A tarefa da qual a equipe se incumbiu foi a de produzir uma pesquisa acerca dos
certames no Brasil a partir dos editais. Isto significa que as propostas a seguir não são um
resultado lógico ou evidente da pesquisa, elas partem do nosso ponto de vista da realidade
que acabamos de descrever. Esta observação tem uma consequência importante, pois
as propostas contêm intencionalidades que só existem enquanto discurso e não estão
presentes na realidade empírica descrita.
Nosso compromisso profissional enquanto pesquisadores é com a comunidade
de pesquisadores e com aquilo que anunciamos enquanto pesquisadores. Por isto,
acreditamos que este apêndice não é um desdobramento lógico, ou uma consequência
da pesquisa, mas nosso ponto de vista a respeito das políticas que devem organizar os
certames em nosso País.
Isto significa que nós não acreditamos que nosso ponto de vista seja mais informado
ou privilegiado para a consecução destas eventuais políticas. Nós acreditamos que as
políticas de Estado são orientadas por posições expressadas por representantes das
pessoas que os elegeram. Não fomos submetidos a nenhum tipo de escrutínio popular.
Assim, não nos vemos autorizados a falar por ninguém, a não ser por nós mesmos.
Em uma democracia, as posições políticas são frutos de discussões públicas a respeito
dos problemas públicos. Nossa intervenção não se pretende “melhor” do que as posições
políticas existentes em função do lugar de onde as elaboramos, ou seja, a Academia.
Nossa autoridade acadêmica repousa unicamente sobre a produção da pesquisa e de
suas conclusões e, de modo algum, sobre estas propostas. Acreditamos ser esta, que é
52 ABRAMOVAY, 2013, p. 12.
381
Volume 49 I.indd 381
13/11/2013 17:03:12
PENSANDO O DIREITO, n° 49
equivalente a qualquer outra que vise a orientar políticas públicas, mais uma contribuição
para o debate público, uma vez que parte de nossas crenças a respeito do que é e deve
ser a sociedade e o Estado.
Nestetocante,énecessáriomencionarocaráterinovadoreprofundamenteprogressista
do Projeto Pensando o Direito, uma parceria SAL/MJ e PNUD, que, para esta temática, contou
com o apoio, colaboração e profundo interesse do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão. Financiar equipes de instituições de ensino e pesquisa, por meio de chamada pública e
ampla, para a elaboração de pesquisas de cunho empírico e aplicado é contribuir para a profissionalização da área de Direito no Brasil.
No âmbito apresentado, um dos desafios que a chamada nos apresentou foi o de
elaborar proposta de um novo marco normativo. Retomando o debate de alguns parágrafos
acima, nos fizemos o seguinte questionamento: como fazer isto no quadro de uma pesquisa?
Como fazer de forma a não tornar nosso trabalho uma consultoria institucional? Decidimos,
assim, por meio de um conjunto de propostas que seguirão abaixo, expor nosso leitor ao
choque que acomete todo o etnólogo que compara “seu” universo com um “outro”, tentando
descrevê-los, desnaturalizando cada um dos dois por meio dos contrastes encontrados.
Assim, é expondo as evidentes divergências entre a realidade brasileira e a francesa –
nitidamente de tradição publicista, na qual prima o interesse geral sobre o particular
– que decidimos estruturar um conjunto de proposições que reverteria drasticamente o
que chamamos aqui de efeitos da ideologia concurseira.
Tal abordagem já passou por um importante “teste de impacto”. Uma primeira versão
deste trabalho foi apresentada publicamente no dia 22 de fevereiro de 2013 na Fundação
Getulio Vargas de Brasília. Na intenção de divulgar o evento, enviamos um resumido
release de imprensa para o periódico Correio Braziliense, de grande circulação local. A
matéria que divulgava nosso evento desencadeou uma série de pedidos de informações
e entrevistas. No mês que se seguiu, nossa pesquisa foi notícia nos seguintes veículos
de imprensa: Jornal O Globo (nota na coluna de Ancelmo Góis), Revista ISTOÉ, Portal G1,
Jornal O Estado de São Paulo (matéria e editorial), Jornal Extra, Jornal O Dia, Rádio CBN,
TV Rede Brasil, Jornal Folha Dirigida (matéria e dois editoriais), Jornal Correio Braziliense
(duas matérias e um editorial), Portal Conjur (três colunas), entre outros.
Este primeiro “teste de impacto” não evidencia apenas o interesse da imprensa
pelo debate sobre a temática. Em uma série de fóruns virtuais onde ela é debatida por
candidatos a concursos públicos53, percebemos uma fortíssima resistência por parte da
imensa maioria dos que se manifestaram.
Sejam nos veículos tradicionais de mídia, sejam nos fóruns virtuais, uma percepção
se destacou: o foco nas nossas propostas. Se elas servirem para chamar atenção para a
53 Endereços eletrônicos como “sosconcurseiro.com”, “tempodeconcursos.com.br”, “papodeconcurseiro.com.br”, “questoesdeconcursos.
com”, “forumconcurseiros.com.br” e “blogdosconcursos.com.br”, entre outros.
382
Volume 49 I.indd 382
13/11/2013 17:03:12
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
importância de se colocar em pauta esta temática, e mais: se ainda conseguirem provocar
um choque reflexivo – cuja reação primeira é invariavelmente a rejeição – nos leitores, já
cremos ter se cumprido um importantíssimo papel. Se, além disso, elas puderem também
servir de subsídio para quaisquer agentes políticos brasileiros num eventual intuito de
transformar democraticamente a nossa realidade, tanto melhor!
Uma última advertência: as propostas que se seguem devem ser lidas em bloco, pois
as diferentes mudanças são constitutivas de nosso ponto de vista. Além disto, cada uma
delas dá sentido à outra, de maneira que sua defesa só pode ser compreendida se for
demonstrada em conjunto, e não separadamente.
Uma necessária mudança de cultura jurídica em relação aos
concursos
Apesar de existir um debate legislativo e judicial acerca dos concursos públicos,
pode-se identificar que a maior necessidade de alteração está dirigida às práticas e não
às leis vigentes. O modelo que vem sendo majoritariamente praticado é baseado em um
tipo ideal que – a partir do nosso diagnóstico comparado – esgotou a sua capacidade de
produzir o fim ao qual se destina: selecionar os candidatos mais aptos ao desempenho
de determinadas funções públicas. Em síntese, o problema da seleção e do recrutamento
de servidores não será resolvido pelo melhor detalhamento normativo do que seja uma
prova de múltipla escolha. Serão novas práticas de certame, compatíveis com o marco
jurídico, que poderão alterar a situação.
Feitas estas considerações iniciais, cabe dividir as recomendações normativas em
três campos. O primeiro campo está relacionado ao aperfeiçoamento imediato do Decreto
nº 6.944/2009, com recomendações simples e de fácil efetivação. O segundo campo
está relacionado ao estudo da relação jurídica entre o candidato e o certame. É evidente
que tal relação outorga direitos, que são gerais, aos candidatos, como a observância da
isonomia. Porém, a história judicial recente demonstra que estes últimos vêm sendo
aquinhoados com direitos em relação ao objeto do certame (provimento em vagas), bem
como no tocante aos procedimentos dos certames (objetividade na avaliações e direito aos
recursos). Por fim, no terceiro campo, será indicada a necessidade de se firmar modelos
gerais de certames.
Resta claro que os dois projetos de lei avaliados trazem esta consideração ao debate.
Todavia, eles incorrem no tipo de insuficiência presente no Decreto nº 6.944/2009. O
certame é sempre pensado como um agregado de provas. Ele raramente é apreciado
no escopo que está sendo traçado neste projeto de pesquisa: um meio completo para
seleção de pessoal.
383
Volume 49 I.indd 383
13/11/2013 17:03:13
PENSANDO O DIREITO, n° 49
O ponto mais complexo em relação ao que foi exposto neste diagnóstico jurídico diz
respeito aos direitos dos candidatos. É evidente que a Administração Pública não foi
fundada com base na tradição da garantia de direitos. O professor Jean-Louis Autin, da
Universidade de Montpellier I, sempre mencionava que o termo “administrado” é muito
elucidativo do papel que a tradição administrativa atribui ao cidadão: a forma passiva de
um verbo, ou seja, como algo sem direitos com o qual a Administração Pública lida. O
cidadão é a razão para a funcionalidade da administração; mas não há a consolidação de
que tal função exija a garantia de direitos. Vejamos:
O serviço público revela a dimensão social e coletiva da ação administrativa.
O indivíduo não aparece diretamente, senão como beneficiário final
das prestações fornecidas. Contudo, seu posicionamento no sistema
administrativo não foi claramente definido. A determinação de seu lugar
é eminentemente problemática. Um retorno às fontes impõe constatar,
com a Declaração de 1789, que a pessoa humana se apresenta na dupla
figura do homem nas suas relações privadas e do cidadão na esfera
pública. Ou, se a cidadania é apreciada no prisma de dois elementos – a
filiação ao grupo e a participação na definição da ordem jurídica – ela
se exprime plenamente em meio a comunidade política. O homem não
transparece como cidadão no universo administrativo mesmo que a
participação seja aceita. (...) O cidadão é uma ordem familiar no universo
político, porém ausente na ordem administrativa. Outras figuras são
utilizadas para qualificar a situação jurídica da pessoa na sua relação com
a Administração que não estavam no horizonte da Declaração de 1789;
elas excluem a expressão da cidadania – no duplo sentido da filiação e da
participação previamente mencionadas –, mais elas podem ser colocadas
como condições fundamentais do direito administrativo. Enquanto a figura
do administrado inerente à função pública for antitética à figura do cidadão,
a imagem do usuário de serviço público nos remeterá a uma imagem
deformada da cidadania. (...) Confrontada tal situação, o administrado se
encontra desamparado em face da Administração; porém, ele poderá agir
judicialmente se a ação pública desconsidera os seus interesses legítimos
ou ignora seus direitos fundamentais. O administrado se metamorfoseia
em jurisdicionado, contudo com poucas chances de sucesso, pois em
decorrência da era de ouro do poder público, no século XIX, as garantias
jurisdicionais contra Estado pouco se desenvolveram. 54
Com a Constituição Federal de 1988 e os seus intérpretes, tal cenário vem sendo
alterado. A jurisprudência nos concursos públicos é elucidativa neste sentido. O candidato
vem sendo percebido como um cidadão portador de direitos em face da Administração
Pública e das entidades organizadores de certames. Parece razoável que este rol de direitos
seja regrado e definido, não somente para universalizar direitos que já são observados no
54 AUTIN; RIBOT, 2004, p. 237-238.
384
Volume 49 I.indd 384
13/11/2013 17:03:13
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
âmbito da União e nas práticas administrativas, bem como para divulgá-los e transformálos em práticas correntes nos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Desta forma, consideramos necessário incluir alguns direitos subjetivos dos candidatos,
listados no relatório, – em especial, aqueles já consolidados nas súmulas do Supremo
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça –, tal como a garantia contra preterição,
em futuro Projeto de Lei.
Acreditamos ser muito relevante explicitar os direitos dos candidatos aprovados à
nomeação, além de frisar como se procederá a aplicação de algum dos critérios de exceção
previstos no Recurso Extraordinário 598.099/MS, caso haja necessidade do emprego
deles. As hipóteses excepcionais precisam estar indicadas, como o atingir dos limites da
Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2002). Ainda, é de bom tom
firmar algumas disposições acerca de como são os variados tipos de provas, em termos
próximos aos fixados no PLS nº 525/2003.
Além de tais temas, consideramos imperioso repensar gerencialmente o modelo
geral dos concursos públicos no Brasil contemporâneo. Para tanto, consideramos que
é relevante entender os vários tipos de provas como móbiles que devem ser manejados
com finalidades específicas. Identificamos que existem dois tipos ideais de concursos
públicos, que denominamos de modalidade acadêmica e de modalidade profissional, em
desenvolvimento no mundo. Eles servem para selecionar ou recrutar pessoal com objetivos
diversos. Assim, acreditamos que o modelo brasileiro se tornou muito autorreferenciado
e autônomo. Desta forma, o certame transformou-se em uma finalidade em si mesma,
tendo perdido a característica central de meio para alcançar um fim: a seleção da pessoa
mais adequada à função. A última parte deste estudo, que é a conclusão principal da
pesquisa e o argumento prospectivo central, será dedicada a este tema.
Das mudanças gerenciais: um recrutamento plural
Após o desenvolvimento previamente realizado aqui, cumpre uma melhor
sistematização dos tipos de ideologia aos quais que fazemos referência, pois eles serão
de fundamental importância para a proposta que se seguirá. A tabela abaixo cumpre esta
função:
IDEOLOGIA
ACADÊMICA
Perfil
d o Recém egressos do sistema Profissionais
“ c a n d i d a t o de
modelo”
IDEOLOGIA
PROFISSIONAL
ensino
universitário)
(escolar
IDEOLOGIA
CONCURSEIRA
com Egressos do sistema de
ou experiência em sua ensino e/ou de outra carreira,
área, pública ou privada com tempo de dedicação à
preparação para concursos
385
Volume 49 I.indd 385
13/11/2013 17:03:13
PENSANDO O DIREITO, n° 49
H a b i l i d a d e s Realização de provas e exames Realização de provas Realização
testadas
de
testes
no similares aos do sistema de e exames similares ao desvinculados do sistema
processo
ensino
exercício da atividade de ensino ou do cotidiano da
profissional
futura carreira
B a n c a Composta majoritariamente C o m p o s t a Composta majoritariamente
examinadora
por professores universitários majoritariamente por por
e/ou escolares
profissionais
com
membros da carreira experiência em seleção por
e/ou
profissionais concurso
experientes na área de
atuação
Tipos de prova
Provas escritas discursivas, P rova s
p rá t i ca s , Podendo muito variar, mas
orais, de línguas (estrangeira mesclando a simulação entre
e materna) e dissertação
modalidades
não
da atividade profissional encontradas fora das seleções
e as necessidades do por concurso
cargo
Requisitos
Idade máxima, diplomação Idade mínima, elevado Combina os requisitos das
mínima e curso de formação
tempo de experiência duas anteriores, tendendo
profissional,
quiçá a simplesmente reduzir o
inscrição no órgão de universo de inscritos no
classe
Faixa salarial
processo seletivo
Varia de acordo com a faixa de Varia de acordo com Varia de acordo com a posição
titulação acadêmica exigida na as
seleção
atribuições
e simbólica que cada carreira
re s p o n s a b i l i d a d e s consegue ocupar no sistema
exigidas na seleção
Papel do Estado Selecionar os potencialmente Absorver
melhores,
garantindo
para
de profissões públicas
a Fiscalizar a boa aplicação
a A d m i n i s t r a ç ã o dos princípios de Direito no
formação tendo em vista Pública aqueles que já certame, tratar a questão das
as atribuições do cargo em possuem as habilidades habilidades ou atribuições
questão
necessárias
a o como questão de “gestão de
exercício do cargo em pessoas”
questão
Legitimidade
O mérito é fruto de uma O mérito é fruto de uma O mérito é fruto da aprovação e
trajetória acadêmica e/ou trajetória profissional da colocação no certame
escolar de excelência
de sucesso e realização
Desta forma, o primeiro conjunto de reformas no atual marco legislativo diz respeito à
reorganização do sistema de ingresso no serviço público como um todo. Transformações
institucionais devem dar a um novo sistema de recrutamento a flexibilidade necessária
para que o mesmo se liberte do engessamento da ideologia concurseira e, quem sabe,
possa se reorientar ao encontro de outras ideologias mais adaptadas à realização dos
interesses da Administração.
Essa pluralidade deve se materializar na possibilidade de a Administração Pública
realizar, seleção por seleção, um recrutamento dividido por perfis de candidatos diferentes,
386
Volume 49 I.indd 386
13/11/2013 17:03:14
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
tendo em vista as necessidades do contexto. Cremos que um novo marco normativo deve
estabelecer três possibilidades de recrutamento por fileiras: o recrutamento acadêmico,
o interno e o profissional. Salienta-se que o mesmo certame possuiria até três fileiras, e,
a cada uma delas, haveria um número de vagas fixo. Além disso, os candidatos inscritos
para cada uma concorreriam apenas entre si. Vamos à nossa proposta:
FILEIRA 1 – Recrutamento acadêmico
Seria a expressão da vontade da administração de buscar jovens egressos no sistema
de ensino que aprenderiam e desenvolveriam das bases as competências necessárias para
o exercício da função. As condições de participação seriam focadas no diploma e demais
títulos acadêmicos, as provas emulariam o ambiente escolar/universitário e a formação
inicial seria obrigatória.
FILEIRA 2 – Recrutamento burocrático
Seria a expressão da vontade da administração de buscar profissionais já inseridos
na Administração Pública, desejosos de melhor focarem suas habilidades no exercício
de outra função. As condições de participação seriam concentradas no tempo de serviço
público efetivo (recomendamos não menos que cinco anos) e as provas emulariam o
ambiente profissional da Administração Pública.
FILEIRA 3 – Recrutamento profissional
Seria a expressão da vontade da administração de buscar profissionais do mercado
para oxigenar e refrear o potencial autorreferencial do serviço público. As condições
de participação seriam focadas no tempo de experiência no mercado (recomendamos
não menos que dez anos) e as provas emulariam o ambiente profissional externo à
Administração Pública.
Além da pluralidade e do potencial de oxigenação dos grandes corpos de Estado,
esta abertura em relação ao dogma do certame concurseiro seria de fundamental
importância para a instauração de uma nova cultura institucional para além da reprodução
dos funcionários, no próprio seio do Serviço Público.
Antes de avançarmos em direção a planos mais concretos, deve ser mencionado
que a plena efetivação de nossa proposta também passa pela questão da remuneração
dos servidores. É imperiosa uma equalização salarial que obedeça a critérios objetivos,
desvinculados da “complexidade” do certame ou “relação candidato/vaga”. Nossa sugestão
é a de que se tome por critério a titulação mínima exigida para o exercício, bem como – à
exceção das atividades profissionais exclusivas de determinado profissional autorizado –
seja vedada a especificação da área de diplomação para participar do certame. O impacto
negativo dos certames concurseiros na organização do mundo sócio-profissional brasileiro
não pode ser revertido se a pluralidade não começar pelas bases do recrutamento.
387
Volume 49 I.indd 387
13/11/2013 17:03:14
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Das mudanças propostas ao marco vigente
As diretrizes apresentadas pelo PLS nº 74/2010 são um bom indicativo que, contudo,
merece ser aperfeiçoado. Elencaremos abaixo, ponto a ponto, mudanças que consideramos
de impacto profundo no sistema de recrutamento:
TAXA DE INSCRIÇÃO:
É relevante fixar critérios para taxas de inscrição que não permitam a distorção indicada
na análise feita, ou seja, que concursos públicos para cargos com menor remuneração
prevista custem mais caro, percentualmente, do que outros. Mais, é necessário que um
processo claro de concessão de isenção de taxa seja estabelecido como padrão, ainda
que o ideal seja pensar um marco regulatório que extinguisse definitivamente a taxa de
inscrição, como ocorre na França.
FORMA DE INSCRIÇÃO:
É imperativo um marco normativo que estipule a inscrição via internet como a forma
por excelência de inscrição em concursos públicos. Por razões evidentes, recomendamos
que seja facultada ao candidato a possibilidade de efetivação da sua inscrição em uma
das agências dos Correios em formulário padronizado. Nossos dados já apontam para
esta tendência.
CONDIÇÕES DE INSCRIÇÃO:
Julgamos imprescindível um marco normativo que vete expressamente a participação
no certame dos candidatos que não apresentarem as condições exigidas no edital no
momento da inscrição. Igualmente, propomos um marco normativo que vete expressamente
que o mesmo candidato se apresente para o mesmo certame mais que três vezes.
Ambas as medidas visariam um incremento qualitativo na população de candidatos,
concomitante a uma crucial diminuição quantitativa. A reconhecida prática do “concurso
por experiência”, extremamente custosa para a Administração Pública, tende a diminuir
drasticamente com ambas as medidas. Não ignoramos que as duas medidas propostas
estão frontalmente contrárias aos entendimentos jurisprudenciais firmes e consolidados
nos Tribunais superiores. No caso da primeira, há a Súmula nº 266/STJ: “O diploma ou
habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse, e não na inscrição
para o concurso público”. Quanto à segunda, a interpretação acerca do “amplo acesso
aos cargos, empregos e funções públicas”, previsto no art. 37, I, da Constituição Federal,
se transformou no “amplo acesso aos concursos públicos”. Todavia, estes dois casos
se afiguram como excelentes exemplos de como a ideologia concurseira tem dominado
os processos de recrutamento também na jurisprudência pátria. A reflexão que esta
medida induz é a seguinte: não seria mais racional que o paradigma de candidatura
fosse a expectativa de sucesso, baseado numa autoavaliação do candidato em termos de
388
Volume 49 I.indd 388
13/11/2013 17:03:14
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
chances de coroamento?
HABILIDADES E COMPETÊNCIAS:
Para além das atribuições, toda carreira do serviço público deve elaborar, em sucinta
ementa, o rol de habilidades, aptidões e competências (e não conhecimentos ou atribuições)
necessárias ao seu pleno exercício. Estas habilidades devem, por força do marco normativo
(1) ser parte integrante do edital de abertura de todos os certames, sob pena de nulidade
dos mesmos; e (2) ser a referência objetiva para a elaboração e correção das provas do
certame. É fundamental inserir nos certames lógicas de seleção que emulem o ambiente
escolar/universitário e também os ambientes profissionais, públicos e privados. Isto não
pode ser efetivado sem que o dogma concurseiro do domínio de um conteúdo programático
seja superado objetivamente pela noção de habilidades e competências. Evidentemente,
isto implicará na reformulação dos tradicionais instrumentos de avaliação.
PROVAS DE MÚLTIPLA ESCOLHA:
Cremos imprescindível que o novo marco normativo proíba expressamente o uso de
provas de resposta objetiva como instrumento de medição de performance no recrutamento
de funcionários públicos. Exames desta natureza possuem o condão de facilitar a correção
e gerir os colossais contingentes de candidatos. Por outro lado, eles representam um
elemento que contribui muito para alimentar a ideologia concurseira: as habilidades
necessárias para realizá-las em nada se assemelham às práticas de avaliação escolares/
universitárias, e muito menos com práticas profissionais inerentes ao cargo em disputa.
Ou seja, o esforço de preparação, de organização e de realização prática de competências
em torno das provas de resposta objetiva é integralmente inútil e inutilizável fora do
contexto do certame. Admitimos a hipótese da manutenção desta forma de avaliação, pelas
evidentes vantagens de gestão de contingentes de candidatos, na forma de um teste de
pré-seleção, muito diferentemente do que se pratica atualmente, pois este teste deveria
ser: (1) apenas eliminatório; e (2) anterior ao certame em si, jamais sua etapa única.
PROVAS DISCURSIVAS:
É necessário um marco regulatório que determine a elaboração de provas discursivas
em relativa emulação com as competências e habilidades esperadas do profissional que
se quer recrutar. Mais próximas da forma acadêmica de avaliação de performance, todas
devem compreender uma reação do candidato a um problema fictício, mas apresentado na
forma de emulação da concretude, e não de sua hipótese. Por exemplo: uma prova escrita
de Direito Constitucional da AGU, ao invés das tradicionais questões curtas de solução de
problemas hipotéticos, deveria consistir na leitura prévia de documentos contextualizando
um problema, seguida da redação de um parecer ou de uma petição.
389
Volume 49 I.indd 389
13/11/2013 17:03:15
PENSANDO O DIREITO, n° 49
PROVAS PRÁTICAS:
Inexistentes hoje – ou não detectadas na nossa coleta – elas devem, ao lado das provas
discursivas, estar necessariamente presentes em todos os recrutamentos de funcionários
públicos. Por provas práticas entendemos a emulação direta de uma competência ou
habilidade necessária ao exercício do cargo. Por exemplo: em uma prova para Técnico
do INSS, seriam passados aos candidatos os dados de um segurado ficcional e lhes seria
pedido para enquadrar sua situação junto ao órgão, seus direitos de seguridade, entre
outros. Cremos que tal medida aproximaria as práticas de preparação para certames das
necessidades profissionais da Administração Pública.
BANCAS EXAMINADORAS:
Os responsáveis pela reprodução de lógicas acadêmicas, burocráticas e profissionais
no trabalho de elaboração e correção das provas são os membros da banca examinadora.
O que os legitima para a tarefa é a pluralidade profissional – acadêmica e burocrática
– e a experiência. Nesse sentido, propomos que o novo marco normativo determine
expressamente que 50% dos membros de tidas as bancas examinadoras sejam professores
e/ou pesquisadores EXTERNOS à carreira e em regime de dedicação exclusiva a atividades
de ensino e/ou pesquisa, e que os outros 50% dos membros da banca sejam servidores
INTERNOS e experimentados na carreira. Recomendamos, igualmente, que (1) todos
os membros da banca tenham ao menos dez anos de efetivo exercício profissional (na
carreira em questão ou no ensino/pesquisa); que (2), após uma participação em banca,
lhe seja imposta uma quarentena de ao menos 12 meses e que (3) os professores sejam
preferencialmente recrutados no setor público, vinculando seus deveres funcionais de zelo
às regras e princípios do certame. Recomendamos, ainda, que seja elevada à condição de
infração administrativa estar envolvido, concomitantemente, em bancas examinadoras
e preparação de candidatos para certames. Este conjunto de medidas visa garantir (1)
a pluralidade ideológica e corporativa; (2) o encontro de duas expertises – acadêmica e
burocrática – no tocante às práticas de avaliação; e (3) que não se reproduza a figura do
avaliador profissional. Ser membro de banca é extensão de uma competência externa ao
concurso, e não um fim em si mesmo.
FORMAÇÃO PROFISSIONAL INICIAL:
Uma das medidas mais efetivas para transformar o Serviço Público brasileiro é a
simbiose entre o Estágio Probatório e a Formação Inicial. Com isto, queremos que o
Estágio Probatório se torne efetivamente um estágio, e se torne efetivamente probatório.
Recomendamos, assim, que todo órgão da Administração Pública crie uma escola
profissional focada na formação inicial, que é ministrada como última fase do certame,
mas que ao mesmo tempo, uma vez confirmada a adequação entre as competências do
candidato e as necessidades da administração, o efetive em definitivo no serviço público.
Recomendamos, ainda, que nos 36 meses de formação, 12 sejam dedicados ao aprendizado
por meio de aulas com futuros colegas mais experientes, e os outros 24 sejam uma etapa
390
Volume 49 I.indd 390
13/11/2013 17:03:15
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
na qual o candidato já exercerá as atividades do cargo, porém sob a supervisão e tutoria
de um futuro colega mais experiente. Consideramos, certamente, a possibilidade de uma
grande escola de Estado formar profissionais de diversos órgãos ou Ministérios. O cerne
de nossa proposta é esta adaptação da vida funcional, somada à obrigatoriedade de uma
formação em uma instituição no seio do Estado. Esta proposta é baseada no potencial
incremento qualitativo que o serviço público poderia ganhar unificando seleção, formação
inicial e estágio probatório, o que conferiria mais densidade para a carreira.
ORGANIZAÇÃO DOS CONCURSOS:
Por derradeiro, recomendamos que o novo marco normativo determine a criação
de uma Empresa Pública cuja atividade fim seja exclusivamente a de gerir a logística
dos processos de seleção por concurso no serviço público Federal e confira a ela o
monopólio sobre esta atividade no País. Recomendamos, igualmente, uma separação
radical entre gestão logística e elaboração/correção das provas dos certames. Assim, deve
ser vedado que quadros desta empresa atuem como membros de bancas examinadoras
(vide proposta relativa à formação de bancas supra). Esta proposta visa mitigar os efeitos
mercadológicos encontrados hoje na oferta de serviços desta natureza. É evidente que o
importante é manter esta atividade no seio do Estado, assumindo um papel mais proativo
no processo de formulação e definição das provas, por se tratar fundamentalmente de
perfil do futuro servidor. Atividades meio, como aplicação e gestão logística, poderiam ser
terceirizadas. Neste sentido, cada órgão poderia organizar sua seleção, como alguns já
o fazem. Igualmente, outras formas institucionais podem ser pensadas em substituição
a sugerida Empresa Pública.
Empresa de
Concursos
Públicos
Logística
Seleção ou
concurso público
Aferição do
conhecimento
acadêmico
Aferição do
conhecimento
profissional
Universidades e
Centros de
Excelência
Escolas
Específicas de
Serviço Público
391
Volume 49 I.indd 391
13/11/2013 17:03:15
PENSANDO O DIREITO, n° 49
Este conjunto de mudanças inter-relacionadas não visa superar alguns problemas
pontuais que são percebidos nos processos de seleção dos funcionários públicos. Ele
almeja frear radicalmente a ideologia concurseira pela fragmentação de grandes pontos
de apoio institucional que permitem sua reprodução maciça no nosso quadro atual. Isto
se faz por meio da inserção de outras ideologias – no caso a acadêmica, a burocrática
e a profissional –, as quais consideramos mais adaptadas à finalidade de recrutar para
a Administração Pública quadros mais capazes de exercer a função pública com mais
qualidade. Não queremos, assim, aperfeiçoar nosso sistema de recrutamento; queremos
outro. Um que articule preparação, realização prática, avaliação, organização e formação
em torno de um processo que não seja mais completamente desvinculado da noção de
carreira. Sem dúvida, o concurso público é um grande avanço gerencial, republicano e
democrático; um avanço que veio para ficar, embora careça de uma radical reformulação.
392
Volume 49 I.indd 392
13/11/2013 17:03:15
MODERNIZAÇÃO E TRANSPARÊNCIA DA GESTÃO PÚBLICA, V. 1
393
Volume 49 I.indd 393
13/11/2013 17:03:15

Documentos relacionados