uma reflexão sobre os critérios e motivações envolvidos na
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uma reflexão sobre os critérios e motivações envolvidos na
UMA REFLEXÃO SOBRE OS CRITÉRIOS E MOTIVAÇÕES ENVOLVIDOS NA SELEÇÃO ARTIFICIAL DE CÃES Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós Graduação em Ciências Veterinárias, Curitiba, Paraná, Brasil. [email protected] Karynn Vieira Capilé; (Marta Luciane Fischer, Pontifícia Universidade Católica - Paraná) Resumo: Atualmente existem cerca de 400 raças diferentes de cães com diversas características morfológicas e comportamentais diferentes, mostrando o quantitativo de variabilidade genética que se pode gerar por meio de seleção artificial. No passado os cruzamentos visavam cães com características úteis para o trabalho e atualmente há maior apreciação dos animais para companhia. O objetivo deste trabalho foi analizar os critérios e motivações da seleção artificial em cães e os impactos da mesma para o bem-estar animal. As consequências negativas da seleção artificial em cães decorrem principalmente da motivação envolvida no momento da escolha das características do animal e não da técnica usada e o problema concernente ao bem-estar animal decorre do fato de as características selecionadas não visarem melhorias e nem considerarem interesses, necessidades e limites dos animais, mas sim atenderem a uma demanda ligada ao consumo e aos interesses mercadológicos. É possível que a seleção artificial venha resultar em melhorarias na qualidade de vida dos animais, porém, isto depende das pesquisas genéticas adicionais e de mudanças nos critérios envolvidos na seleção artificial. Palavras chave: cruzamento, bem-estar animal, antropocentrismo, coisificação. INTRODUÇÃO Atualmente existem cerca de 400 raças de cães com diversas características morfológicas e comportamentais diferentes, mostrando o quantitativo de variabilidade genética que pode-se gerar por meio de seleção artificial. Os primeiros cruzamentos realizados pelo homem visavam cães com características úteis para o trabalho. Atualmente há maior apreciação de características estéticas e de animais para companhia (ARENDONK, 2005, p.3). De uma forma geral, a relação homem-animal na civilização ocidental industrializada se constitui sob valores antropocêntricos (FELIPE, 2006, p.111), inclusive no caso dos animais de companhia, que, embora ocupem posição privilegiada de estima em nossa sociedade devido à proximidade afetiva com os seres humanos, passam por um tipo de seleção artificial que busca atingir padrões estéticos e comportamentais considerados ideais apesar dos possíveis efeitos negativos em sua qualidade de vida. Estes padrões que provavelmente jamais teriam evoluído naturalmente agradam as pessoas, mas muitos deles prejudicam os animais. Cães com coluna alongada como Dachshund e Basset Hound sofrem por problemas frequentes na coluna vertebral. Raças gigantes são propensas a desenvolver torção gástrica e displasia coxofemural Raças miniatura podem apresentar colapso de traqueia em decorrência da formação incompleta dos anéis cartilaginosos, bem como desajustes na coluna vertebral devido ao tamanho pequeno dos membros (JOHNSON, 2000, p.1260). Nos cães braquicefálicos, como Boxer, Lhasa Apso, Shihtzu e Pequinês, a mudança do formato do crânio prejudica a passagem do ar pelo nariz provocando, dentre outras complicações, dificuldade respiratória. Ocorrem também anomalias como a Displasia do Occipital que afeta as raças miniatura como Grifon de Bruxelas, Cavalier King Charles spaniel, King Charles spaniel, Pinscher e Chihuahua, devido ao fato de o crânio ser muito pequeno para o tamanho do cérebro (ROONEY; SARGAN, 2009, p.18-35) DISCUSSÃO Embora a seleção artificial possa trazer consequências negativas para o bem-estar dos cães, ela não é intrinsecamente negativa. Há cerca de quinze mil anos, com o surgimento da agricultura, o homem deixou de ser nômade e então apareceram os primeiros vilarejos dos quais os lobos selvagens se aproximavam em busca de alimento. Os lobos mais dóceis se arriscavam mais e obtinham mais êxito, consequentemente, gerando mais descendentes do que os menos dóceis. Após sucessivos cruzamentos de animais dóceis entre si, o lobo selvagem (Canis lupus lupus) deu origem ao cão (Canis lupus familiaris) que, desde então, esteve presente na história evolutiva da humanidade (BRASILICA; SILVA, 2012, p.180). A habilidade para pastoreio de alguns cães se destacou na atividade pecuária, os cães mais eficientes passaram a ser selecionados e assim se iniciou a manipulação das primeiras raças (KING; MARSTON; BENETT, 2012, p.8). Neste momento os critérios de seleção já visavam o benefício humano, mas estavam relacionados a características funcionais do cão e, aparentemente, não comprometiam sua saúde e bem-estar. A partir daí os critérios para a seleção de cães foram se modificando ao longo da história da humanidade, sendo influenciados pelo desenvolvimento industrial, surgimento das cidades, crescimento populacional e mudanças no estilo de vida. Atualmente, estes critérios são nitidamente estabelecidos pelos valores da sociedade ocidental contemporânea caracterizada pela cultura do consumo, do fetiche, da ditadura da beleza e da transformação do outro em mercadoria. A relação com o outro se constrói a partir de uma lógica que mantém a mercadoria como centro das práticas cotidianas e na qual há uma constante orientação para que o modelo de conduta seja sempre articulado através do ato de consumir (BAUMAN, 2008, p132). Trata-se do que alguns autores chamam de coisificação do outro, seja um animal ou uma pessoa. Desta forma, vivemos hoje em um contexto no qual a relação homem-animal é influenciada por fatores econômicos, políticos e culturais (DOMINICK, 1995, p.16) que subsidiam a ideia de que os animais são meios para a satisfação de interesses humanos e não fins em si mesmos (REGAN, 2001, p.78). A adaptação dos seres ao seu meio é contínua e vai se reorganizando de acordo com os desafios ambientais que aparecem. Quando a seleção natural não ocorre, pode-se tentar aumentar a capacidade de adaptação do animal por meio de seleção artificial. Este ponto é polêmico porque a seleção artificial pode acabar resultando em uma aparente e forçada adaptação do animal a uma rotina estressante e um ambiente completamente inadequado para ele (ROONEY; SARGAN, 2009, p.11-17). Parece que é justamente isto o que vêm acontecendo, pois as pessoas vivem em espaços restritos, não têm tempo nem para cuidar de si mesmas, preocupam-se demasiadamente com aparência e querem animais de companhia que se adaptem à restrição de espaço, que possam ser carregados de um lado para o outro e que se pareçam com objetos ornamentais. A seleção artificial interfere em características físicas como tamanho e aparência podendo gerar nas pessoas uma interpretação distorcida a respeito das necessidades fisiológicas e comportamentais dos animais. O fato de um cão ser chamado de miniatura não significa, por exemplo, que ele pode viver bem em espaços minúsculos. Um estudo publicado na revista plos one em 2013, intitulado “Fashion vs Function in cultural evoluction” avaliou a relação entre as características das raças de cães e sua popularidade entre os anos de 1926 e 2005. Os resultados mostraram que as raças mais populares apresentam mais distúrbios hereditários do que as menos populares, sugerindo que a saúde tem menor relevância na escolha da raça do animal de estimação e na prática de seleção artificial. Estes dados confirmaram a hipótese de que a popularidade das raças é primariamente determinada pela moda e não pela funcionalidade de suas características (GHIRLANDA et al, 2013, p.5). É comum que as pessoas escolham raças de cães com caracteristicas que atendam aos padrões de beleza da moda e não com características que sejam funcionais para o cão. Outra questão que se coloca sobre este assunto é que comprar animais de companhia dá a eles um caráter de coisa, de produto, de bem material, contribuindo para que se perpetue a coisificação dos mesmos. Em teoria não compramos pessoas para serem nossas amigas, cuidarmos delas ou para conviverem conosco. Além disso, desde crianças aprendemos que não devemos discrimar as pessoas por sua raça, tamanho, cor ou aparência física, então por que com os cães fazemos isso? O bem-estar de um animal é avaliado de acordo com as condições que este indivíduo tem de se adaptar ao seu meio (BROOM; FRASER, 2007, p.210). Quando um animal possui características que não adaptativas, como as fossas nasais de um Lhasa Apso, Boxer, Pequenês ou de outras raças braquicefálicas ou a coluna vertebral de um Dachshund ou Basset Hound, provavelmente seu bem-estar estará prejudicado, a menos que alguma medida seja tomada para que ocorra boa adaptação, o que dificilmente acontece quando se trata de características hereditárias que tendem a gerar problemas crônicos. Estudos sugerem que a prevalência de doenças genéticas poderia ser reduzida mediante à adoção de um tipo de seleção artificial mais cuidadosa e um melhor planejamento dos cruzamentos raciais e da endogamia (GREGOIRE; ROIGNON, 2012, p.345). O conhecimento sobre características genéticas envolvidas no comportamento de cães é ainda limitado, no entanto, alguns estudos tentam desvendar a base genética de traços comportamentais como temperamento. Estas características são de difícil mapeamento genético porque são multifatoriais e sofrem influência do meio ambiente. As características comportamentais de várias raças de cães de caça têm sido estudadas usando modelos animais lineares com métodos de máxima verossimilhança (KARJALAINEN et al., 1996, p.532). Traços mais gerais de comportamento também têm sido estudados através de métodos do mesmo tipo (RUEFENACHT et al., 2002, p.114). Apesar de haver diversos motivos para se julgar a seleção artificial como uma prática que acarreta em impacto negativo para o bem-estar dos cães, existem possibilidades de usá-la para causar impacto positivo no bem-estar. Para tanto seria necessário selecionar características funcionais e adaptativas. Um dos possíveis benefícios da convivência com cães de raça é o fato de eles apresentarem muitos comportamentos e características previsíveis, o que permite que sejam escolhidos de forma mais adequada para viver em determinados ambientes permitinto que os tutores preparem-se antecipadamente para garantir boas condições de vida aos seus companheiros caninos. As consequências negativas da seleção artificial decorrem da motivação envolvida e não da técnica usada, ou seja, o problema concernente ao bem-estar animal não é a ação de selecionar determinadas características, mas quais características são selecionadas. Se o objetivo da seleção artificial fosse gerar melhorias considerando interesses, necessidades e limites dos animais, o impacto talvez fosse positivo. Um exemplo de seleção artificial como aliada do bem-estar animal é o trabalho do Grupo de Estudos e Pesquisa em Etologia e Ecologia Animal (ETCO), que vem estudando as implicações do melhoramento genético no bem-estar animal, frisando a importância de se estabelecer e respeitar limites biológicos e éticos na seleção artificial seja em animais de produção ou de companhia (SANT'ANNA et al, 2011, p.206) Há características comportamentais caninas que otimizam a interação entre um cão e seu tutor tornando a convivência entre ambos mais positiva (KING et al, 2012, p.6). Um cão obediente e dócil provavelmente tem mais oportunidade de passear, interagir com outros animais e participar de diferentes atividades do que um cão desobediente e agressivo. Assim, as características como obediência e docilidade são adaptativas para um animal que convive com seres humanos e causam impacto positivo em seu bem-estar. Além disso, problemas comportamentais como agressividade, ansiedade e desobediência são causas comuns de abandono de animais. (BEAVER, 2011, p.90) e cães abandonados ficam expostos a situações que podem prejudicar seu bem-estar Considerando os aspectos éticos relacionados à seleção artificial de cães, cabe o questionamento sobre a validade moral de se manter critérios de seleção que prejudicam os animais apenas pelo interesse em seguir as tendências da moda. Será que este interesse se justifica até mesmo quando se prejudica a qualidade de vida dos cães? Que tipo de limites têm sido considerados? Será que a valorização de determinadas características se perpetua devido ao desconhecimento a respeito do impato causado no bem-estar dos animais ou devido a subestimação da importâmcia desta questão? Como vivemos em uma sociedade na qual a obtenção de lucro tem grande relevância nos padrões de conduta, a prática de comercializar animais com características raciais potencialmente causadoras de sofrimento dificilmente vai parar de acontecer enquanto a demanda continuar existindo. Daí a necessidade de estratégias educativas de conscientização sobre o assunto. É importante que as pessoas conheçam os detalhes que estão por trás da seleção artificial em cães e que entendam as implicações éticas envolvidas no ato de comprar um animal de raça e, portanto perpetuar a valorização das características desta raça. CONCLUSÃO É possível que a seleção artificial passe de prejudicial à benéfica para o bem-estar dos cães. Para isso é necessário que haja uma reestruturação ética dos valores e motivações envolvidos nos critérios atuais de seleção, e que estes passem a objetivar, antes de mais nada, a melhoria da qualidade de vida dos cães, o que exige mais pesquisas e estudos na área e o estabelecimento de limites que protejam os animais de sofrimentos desnecessários causados pela futilidade humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDONK, J. A. M; LIINAMO, A-E. Animal breeding and genomics: Perspectives for dog breeding. The Veterinary Journal, v.170, p.3-5, 2005. BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformaçao das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 200p. BEAVER, B. V. Comportamento canino de origem sensorial e nervosa. In: Comportamento canino: um guia para veterinários. São Paulo: Roca, p. 87-111, 2001. BRASILICA, A. V; SILVA, A. R. Considerações sobre a importância do cão doméstico (canis lupus familiaris ) dentro da sociedade. Acta Veterinaria Brasilica, v.6, n.3, p.177185, 2012. 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