A Aula inaugural de Santo Tomás como baccalaureus biblicus

Transcrição

A Aula inaugural de Santo Tomás como baccalaureus biblicus
A Aula inaugural de Santo Tomás
como baccalaureus biblicus
Resumo
Em consideração à “Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini” desejamos oferecer em língua portuguesa o texto
da aula com que Santo Tomás iniciou o seu magistério exegético
e provou possuir um vasto e profundo conhecimento da Sagrada
Escritura, na idade de apenas 27 anos. Para estimular uma maior
atenção ao trabalho exegético desse “Maior teólogo da Igreja”
(Youcat) antepomos três considerações: uma breve apresentação
biográfica do contacto de Santo Tomás com a Sagrada Escritura:
uns testemunhos de sua estima altíssima da palavra de Deus e,
principalmente, a apresentação dos extensos comentários sobre
livros do Antigo e Novo Testamento, que são a quarta parte de
toda a sua produção literária, dos motivos dessa dedicação séria
e profunda e dos métodos e critérios aplicados por ele, dando
início a uma sincera e científica teologia bíblica.
Summary
In view of the post-synodal Apostolic Exhortation Verbum
Domini, On the Word of God in the Life and Mission of the
Church, by Pope Benedict XVI, September 30, 2010, we want to
offer in Portuguese translation the text of the lecture with which
St. Thomas Aquinas initiated his exegetical teachings. In this
work, with only 27 years of age, St. Thomas manifested his great
and profound knowledge on this subject. To stimulate more attention to the exegetical work of this “greatest theologian of the
Church” (Youcat) the text begins with three considerations: a brief
biographical note on St. Thomas` contact with Sacred Scripture,
followed by some testimonies about his high esteem for the Word
of God and then finally a presentation of his large commentaries on books of the Old and New Testament which comprises a
fourth of all his literary production. In this presentation we treat
the motives of his sincere and profound dedication as well as the
methods and criteria which he applied, giving origin to a sincere
and scientific Biblical Theology.
5
Divisão do artigo
A. Testemunhas e estudos sobre os comentários bíblicos de Santo
Tomás
B. “De commendatione et partitione Sacrae Scripturae – Sobre a
Recomendação e Divisão da Sagrada Escritura”
I. Santo Tomas e a Sagrada Escritura
1. Os três caminhos de Santo Tomás à Sagrada Escritura
a) A lectio divina e contemplação no Mosteiro beneditino
b) O combate bíblico pela Ordem dos Dominicanos
c) A missão do professor universitário
2. O amigo da palavra de Deus
a) “A palavra de Deus é útil”
b) Uma obrigação de amor
c) Aproximou-se com oração e sacrifício
3. Santo Tomás como exegeta
a) Os comentários bíblicos de Santo Tomás
b) Os motivos e objetivos dos seus comentários
1) A procura da verdade na revelação
2) A ignorância do homem
3) O fundamento de toda a nossa sabedoria
4) Base comum com os de fora da Igreja
5) Fundamento e substância da Teologia
c) Os métodos sérios de interpretação
1) A procura do sentido histórico-literal
2) Algumas observações técnicas
3) Critérios da interpretação formal
4) Exegese e teologia bíblica
II. “De commendatione et partitione Sacrae Scripturae – Sobre
a Recomendação e Divisão da Sagrada Escritura”
1. Observações introdutórias
2. O texto em latim e português
C. Estudos sobre os comentários bíblicos de Santo Tomás
6
A Aula inaugural de Santo Tomás
como baccalaureus biblicus
Nesse artigo gostaríamos oferecer ao público acadêmico e, quem sabe
até aos Catequistas e às escolas bíblicas, na tradução portuguesa a aula
inaugural de Santo Tomás como bacharel da Sagrada Escritura, “De commendatione et partitione Sacrae Scripturae – Sobre a Recomendação e
Divisão da Sagrada Escritura”.1 Aproveitamos a oportunidade de introduzir esse texto com algumas observações sobre Santo Tomás como “o
maior Teólogo da Igreja”2 e comentarista da Sagrada Escritura.3
A. Testemunhas e estudos sobre os comentários bíblicos
de Santo Tomás
É raríssimo que se encontre nos estudos hodiernos sobre a Sagrada
Escritura uma referência aos Comentários bíblicos de Santo Tomás.4 Suas
1
“Quando incepit parisius ut baccalarius biblicus – quando começou em Paris
como bacharel bíblico”, se lê como subtítulo na edição de Marietti (S. Thomae Aquinatis,
Opuscula Theologica, vol. I: De re dogmática et morali, ed. Marietti, Taurini – Romae,
2ªed. 1975, 435-439, 435; as citações, tiradas das edições de Marietti, são indicadas com
o inicial “Ma”, seguido pelo numero dessas edições).
2
“Der groesste” no original: Youcat. Jugendkatechismus der Katholischen Kirche,
Pattloch, Muenchen 2010, 14.
3
Também nos estimulou para essa contribuição a última Assembléia Geral Ordinária
do Sínodo dos Bispos no Vaticano, no ano 2008, que teve como tema A Palavra de Deus
na vida e na missão da Igreja. No dia 30 de setembro de 2010, Bento XVI comunicou
o resultado na Exortação apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini – Sobre a Palavra de
Deus na vida e na missão da Igreja. Junto com os dois volumes sobre Jesus de Nazaré
e a demasiado negligenciada Vida de Cristo do beato João Paulo II, apresentada em 84
Catequeses entre 7 de janeiro de 1987 e 14 de abril de 1989, se abre uma estrada na mata
de teorias e obras exegéticas do século passado. Nesse momento nos parece muito oportuno
lembrar as obras exegéticas de Santo Tomás, “Doctor Ecclesiae”, “Doctor communis et
universalis” (Pio V).
4
Carmelo Pandolfi escreve: “Da un attento esame di tutta la ‘Rassegna di letteratura tomista’ abbiamo rilevato una quasi totale assenza di studi filosofici riguardanti i
commenti scritturistici dell’Aquinate. In particolare, esaminando tutto il vasto repertorio
bibliografico menzionato, abbiamo individuato tre soli saggi sul super Psalmos, e uno
di questi è un limitato studio intorno a un animale mitico e simbolico citato nei Salmi”
(Carmelo Pandolfi, San Tommaso Filosofo nel Commento ai Salmi. Interpretazione
7
contribuições aos estudos da Palavra de Deus são quase que totalmente
ignoradas. Elders disse: “No seu artico ‘San Tommaso’ para a Enciclopedia Cattolica Italiana, C. Fabro nem mesmo os [comentários bíblicos]
menciona. M. Arias Reyero, que dedicou sua tese doutoral à análise dos
trabalhos exegéticos de Tomás, considera esses comentários a parte menos
original de sua obra”5.
Batista Mondin já escreve diferente no seu Dizionario enciclopedico
del Pensiero di San Tommaso d’Aquino: “S. Tomás é sumo teólogo e
sumo exegeta, por isso o seu relacionamento com a Bíblia é frequente,
constante e profundo. A Sagrada Página é o centro dos seus pensamentos
e afetos. Dela ele tira seu alimento espiritual e intelectual.”6
Parece que aqueles que estudam essas obras, testemunham o seu valor.7
Pio XII se referiu aos comentários bíblicos quando, em 1958, falou aos
alunos do Angelicum, hoje a Universidade Pontificia de Santo Tomás
em Roma:
Segundo a opinião de homens com o juízo mais sensato, os comentários que Santo Tomás escreveu sobre os livros do Antigo e do
Novo Testamento, e especialmente sobre as Cartas de São Paulo
Apóstolo refletem tal autoridade, tal intuição fina e tal diligência
que eles podem ser contados entre as maiores obras teológicas e são
consideradas guardadas na mais alta estima, como um complemento
bíblico a estes livros.8
dell’essere nel modo ‘esistenziale’ dell’invocazione, Ed. Studio Domenicano, Bologna
1993, 28); os outros dois estudos por ele mencionados ocupam apenas 10 e 30 páginas,
respectivamente (cf. ibid., Bibliografia, 359).
Leo J. Elders, „Santo Tomás de Aquino e a Sagrada Escritura“, em AQUINATE,
nº 13 (2010), 16-35, 16.
5
Mondin, Batista, Dizionario enciclopedico del Pensiero di San Tommaso d’Aquino,
Edizioni Studio Domenicano, Bolgna, seconda ed. riveduta e corretta edição, 2000, voz
“Bibbia”, 105-106.
6
Leo J. Elders, atualmente um dos melhores conhecedores de Santo Tomás, escreveu um artigo sobre “Santo Tomás de Aquino e a Sagrada Escritura” com o desejo que
“nossas reflexões sejam de algum [sic!] ajuda para ir além da exegese histórico-crítica,
descobrindo as riquezas da Palavra de Deus” (Elders, Santo Tomás de Aquino, 35).
7
8
Conferência no 14 de janeiro de 1958, no Angelicum; em Christopher Rengers,
The 33 doctors of the Church, TAN Books and Publishers, Rockford, Ill., 2000, “Saint
Thomas Aquinas. The Angelic Doctor. The Common Doctor”, 364-387, 383-384.
8
O Papa Bento XVI também disse no Ano Paulino (2009): “São Tomás
de Aquino deixou-nos um bonito comentário às ‘cartas paulinas’, que
representa o fruto mais maduro da exegese medieval”9; essa não é uma
avaliação de piedade, mas de ciência, que se vê também nesta observação:
“Os seus comentários sobre o Evangelho segundo João e sobre as Cartas
de Paulo foram chamados ‘o fruto mais amadurecido e o mais perfeito
exemplo da exegese escolástica medieval’10.”11. E o exegeta Marie-Joseph
Lagrange (+ 1938) escreve no seu livro sobre o Comentário de Santo
Tomás às cartas paulinas:
É supérfluo louvar a profundidade intelectual e a acuidade teológica
deste comentário. Ninguém viu melhor a conexão entre os vários
temas e os seus agrupamentos do que Tomás. Mas nem sempre
se atentou para a impressionante amplitude de visão que deixa os
exegetas muito livres. Tomás frequentemente menciona visões sem
se pronunciar12.
Então, vale lembrar com Bento XVI a pergunta do Venerável
Papa Paulo VI que, num discurso pronunciado em Fossanova no dia 14
Setembro de 1974, … se interrogava: “Mestre Tomás, que lição nos pode
dar?”. E respondia com estas palavras: “A confiança na verdade do pensamento religioso católico, como foi por ele defendido, exposto e aberto
à capacidade cognoscitiva da mente humana” (Insegnamenti di Paolo VI,
XII [1974], págs. 833-834). E, nesse mesmo dia, em Aquino, referindo-se
ainda a São Tomás, ele afirmava: “Todos nós que somos filhos da Igreja
podemos e devemos, pelo menos em certa medida, ser seus discípulos!”
(Ibid., pág. 836).”
Bento XVI conclui: “Por conseguinte, coloquemo-nos também nós
na escola de São Tomás”13.
9
Bento XVI, Audiência geral: “O martírio e a herança de São Paulo”, 4 de fevereiro
de 2009.
10
Spicq, Ceslaus, “Saint Thomas exegete”, em Dictionaire de théologie catholique
vol. 15-A, 694-738, 695.
Eldres, 32s.
11
M.-J. Lagrange, Saint Paul, Epître aux Romains, Paris 1916, XI, citado por Elders,
„Santo Tomás de Aquino“, 34.
12
Bento XVI, Audiência geral: “Santo Tomás de Aquino” (3.), 23 de junho de
2010.
13
9
B. “De commendatione et partitione Sacrae Scripturae –
Sobre a Recomendação e Divisão da Sagrada Escritura”
Antes de irmos ao texto dessa aula inaugural, olhemos brevemente
para Santo Tomás como exegeta e seu trabalho bíblico.
I. Santo Tomás e a Sagrada Escritura
1. Os três caminhos de Santo Tomás à Sagrada Escritura
Três momentos contribuíram para que, bem cedo, Santo Tomás se
familiarizasse com a Sagrada Escritura.
a) A lectio divina e contemplação no Mosteiro beneditino
Aos cinco anos de idade, sua educação foi confiada aos Monges de
São Bento no Monte Cassino. A regra de São Bento determina que a
terça parte do dia seja dedicada a lectio divina. Esta consiste na leitura
da Sagrada Escritura mesma ou de um dos seus comentários patrísticos.14
Santo Tomás viveu nesse ambiente até a idade de catorze anos.
b) O combate bíblico pela Ordem dos Dominicanos
Tomás recebeu um segundo impulso quando ocorreu sua mudança para
Nápoles. Devido à situação política bem crítica, o Abade do Monte Cassino aconselhou o jovem Tomás a deixar o mosteiro e estudar em Nápoli.
Lá encontrou não apenas uma profunda introdução às obras de Aristóteles,
mas também a recém fundada Ordem religiosa dos Dominicanos. Josef
Pieper lembra o confronto de São Domingos e seu Bispo com os hereges
albigenses. Ele conta que numa das disputas entre os dois grupos fixaram,
entre outras, a seguinte regra: “Será considerado vencido aquele que não
puder provar sua tese com a Bíblia”15. Por isso pode-se dizer: Segundo a
Ordem dos Pregadores, a reforma da Igreja nesse tempo deveria partir da
procura da verdade, e, antes de tudo, da verdade revelada na Bíblia.
Depois que Santo Tomás tornou-se membro dessa ordem religiosa, a
divina providência ofereceu a ele um bom tempo de clausura na prisão da
14
Cf. a Regra de São Bento, cap. 9 e 48.
Josef Pieper, Thomas von Aquin – Leben und Werk, em Werke, vol. II, Meiner
Verlag, Hamburg 2001, 153-298, 177.
15
10
família. É claro que lá o jovem dominicano “leu a Sagrada Escritura e o
livro das Sentenças de Lombardo…”16. Vendo a frequência com que cita a
Sagrada Escritura posteriormente em todas as suas obras, provavelmente
memorizou-a na íntegra durante esse período, graças à sua capacidade e
facilidade intelectual.17
c) A missão do professor universitário
Como terceiro caminho deve ser mencionada sua carreira acadêmica.
Sob o cuidado de Santo Alberto Magno, Santo Tomás começou, no fim
de 1245 ou início de 1246, seus estudos teológicos em Paris. Em 1248,
Alberto levou-o consigo a Köln. Lá pode descobrir ainda mais o extraordinário dom de Tomás, de modo que, depois de sua ordenação sacerdotal,
que provavelmente ocorreu em 1251, enviou-o em 1252 de novo a Paris,
com o pedido para as autoridades fazê-lo baccalaureus biblicus18, apesar
de sua pouca idade.
Parece, então, ser a ocasião do início do seu ensino em Paris. Com
27 anos, ele apresenta sua aula inaugural, que queremos oferecer em
tradução.
2. O amigo da palavra de Deus
Santo Tomás não foi coagido por ninguém em seu caminho. Não foi
um “assalariado” (Jo 10,12), alguém a quem se deve mandar. Ele era
tão entusiasmado pela palavra de Deus que nunca a deixou; ele a pôs no
fundamento de sua vida e ensino.
a) “A palavra de Deus é útil”
Raramente Santo Tomás revela seu coração; sua humildade lhe proibiu
de falar de si mesmo. Mas, para a glória da Palavra de Deus e como ex Wilhelm von Tocco, Das Leben des heiligen Thomas von Aquino, Patmos-Verlag,
Düsseldorf 1965, cap. 9, pag. 88.
16
17
Cf. Otto H. Pesch, Thomas von Aquin. Grenze und Größe mittelalterlicher Theologie. Eine Einführung, übersetzt von W. P. Eckert, Matthias-Grünewald-Verlag, Mainz,
zweite durchgesehene und ergänzte Auflage, 1989, 67-73.
Parece que é mais e mais aceitado que Santo Tomás teria sido encarregado já em
Colônia da explicação da Sagrada Escritura. Isso mostraria ainda mais a capacidade
extraordinária desse jovem. Essa posição se encontra em Weisheipl e alguns seguidores;
cf. J.P. Torrel, Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua Pessoa e Obra, ed. Loyola, São
Paulo 1999, 34-35 e 393; Pesch, pág. 73s.
18
11
pressão de sua gratidão, encontra-se no comentário ao livro de Isaias um
trecho sobre a sua estima da Palavra de Deus. Ele comenta as palavras
“Eu te ensino coisas úteis” (Is 48,17):
A palavra de Deus é útil para
- iluminar a inteligência, Pr 6,23: “O ensinamento é uma luz”;
- agradar a sensibilidade, Sl 119,103: “Quão doce ao meu paladar tua
promessa [tuas palavras]”;
- inflamar o coração, Jr 20,9: “Dentro de mim, ardia um fogo devorador”;
Sl 105,19: “A palavra do Senhor o inflamou [justificou]”;
- retificar a obra, Sl 24,5: “Dirige-me na tua verdade, ensina-me”;
- obter a glória, Pr 3,21: “Guarda a ponderação e a prudência”;
- instruir os outros, 2Tm 3,16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e
útil para ensinar, refutar…”19
No comentário sobre esta última referência à segunda carta de São
Paulo a Timóteo, Santo Tomás mostra “que estes escritos sagrados são o
caminho para a salvação – quod sacrae litterae sunt via ad salutem” por
três razões: pela sua origem divina ou a inspiração; pelo duplo efeito,
ensinando a verdade e convencendo a praticar a justiça; e pelo último
fruto e efeito, conduzindo o homem a perfeição.20
b) Uma obrigação de amor
Pode-se perceber o amor de Santo Tomás pela Sagrada Escritura na
explicação do segundo artigo do Credo: da fé em Jesus Cristo, o Filho
unigênito do Pai. O Santo lembra que Jesus é o Verbo pelo qual tudo foi
feito. Na admiração desse mistério ele apresenta cinco atitudes diante das
palavras de Deus devido de sua semelhança com esse Verbo:
Se o Verbo de Deus é o Filho de Deus, então todas as palavras de Deus
possuem certa semelhança com este mesmo Verbo;
19
Em Torrel, 38; „Verba Dei utilia: ad intellectus illustrationem, prov. 6…; ad affectus
delectationem, ps…; ad amoris accensionem, ier. 20…; ad operis rectitudinem, ps…; ad
gloriae adeptionem, prov. 3…; ad aliorum instructionem, 2 tim. 3…” (“Expositio super
Isaiam ad litteram”, em Opera Omnia, vol. 5: Commentaria in Scripturas, FrommannHolzboog, Stuttgart-Bad Cannstatt 1980, 50-96, 86.3).
20
Super secundam Epistolam ad Timotheum Lectura, em Super Epistolas Sancti
Pauli Lectura, vol. II, ed. Marietti, Taurini-Romae 81953, 265-299; cap. III, lect. III; Ma
124-128.
12
(1) Primeiro, devemos ouvir as palavras de Deus de bom grado, pois isto
é sinal que amamos a Deus, quando escutamos suas palavras de bom grado.
(2) Depois, devemos crer na Palavra de Deus, pois é dessa maneira que a
Palavra de Deus habita em nós, que é Cristo, que é a Palavra de Deus…
(3) Em terceiro lugar convêm que meditemos continuamente a Palavra
de Deus que permanece em nós; pois, não convém que se creia apenas
na Palavra, mas que ela seja meditada; sem isso, não haverá fruto; e essa
meditação tem muito valor contra o pecado. “Conservo no coração tuas
promessas para não te ofender com o pecado” (Sl 118,11), e, de novo, do
homem justo se diz: “na lei do Senhor encontra sua alegria e nela medita
dia e noite” (Sl 1,2). Por isso se diz também de Virgem Santíssima, “que
guardava todas estas coisas no coração” (Lc 2,51).
(4) Num quarto momento convêm ao homem comunicar a palavra de Deus a
outros, exortando, pregando, e entusiasmando (commonendo, praedicando,
et inflamando)…; e
(5) Por último, em quinto lugar, a palavra de Deus deve levar-nos a praticála, como diz São Tiago: “sede praticantes da Palavra, e não meros ouvintes,
enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1,22).
Estas cinco atitudes, nessa ordem, a Beata Virgem Maria observou na
geração do Verbo de Deus em si. Pois, primeiro ouviu: “O Espírito Santo
descerá sobre ti” (Lc 1,35); em seguida, consentiu pela fé: “Eis aqui a
serva do Senhor!” (Lc 1,38); em um terceiro momento guardou-O e O
carregou em seu seio; em quarto lugar deu-O à luz, e por último, nutriu-O
e O alimentou. Por isso a Igreja canta: “O próprio Rei dos Anjos apenas a
Virgem O alimentava…”21
c) Aproximou-se com oração e sacrifício
O valor da Sagrada Escritura para Santo Tomás se mostra também no
seu empenho em entendê-la e, ao mesmo tempo, no receio de errar. Vale
a pena citar um exemplo que o biógrafo Tocco e outros testemunharam
no processo da sua canonização.
Durante a composição de seu comentário sobre Isaías, ele chegou a
uma passagem que não pode compreender. Depois de dias em jejum e
oração, alcançou a graça de lhe ser literalmente explicado aquilo que
havia pedido. Numa noite, que passou em vigília e oração, seu compa In symbolum Apostolorum expositio, em Opuscula Theologica, vol. II: De re spirituali, ed. Marietti, Turino - Romae, 21972, 193-217, 199-200; Ma 895-896.
21
13
nheiro ouviu-o falar, como parecia, com outras pessoas, porém, não podia
entender o conteúdo. Terminado esse colóquio, Tomás chamou-o: “Reginaldo, meu filho, levanta-te, faça luz e traz o caderno com o comentário
sobre Isaías, quero que escrevas para mim.” Depois que escreveu por
um bom tempo o que o mestre ditou com a facilidade como lesse num
livro, este lhe disse: “Volte dormir, ainda há tempo para descansar.” Mas
Reginaldo recusou-se a ir enquanto Tomás não lhe dissesse com quem
tinha conversado há pouco. Depois de muita insistência de Reginaldo e
constante recusa da parte de Tomás, o Santo cedeu com lágrimas, mas
antes obrigando-o de não contar a ninguém antes de sua morte; confessou
que Deus teve compaixão com ele e lhe mandou os santos Apóstolos
Pedro e Paulo, cuja intercessão havia pedido a Deus. “Eles me instruíram
perfeitamente sobre tudo.”22
Surge diante de tal exemplo a pergunta: Por que Santo Tomás se interessava tanto pela Sagrada Escritura? Por que se dedicou por horas e
dias a trechos pequenos? Por que se sacrificava com jejum e vigílias para
penetrar no significado verdadeiro de cada frase? Por que implorou na
oração ao céu, aos Santos apóstolos para receber uma iluminação?23 Quão
grande deve ter sido a sua fé, quão profunda a sua humildade diante da
Verdade Divina e quão a sério deve ter levado a sua vocação!
3. Santo Tomás como exegeta
Santo Tomás amava a Santíssima Virgem Maria desde criança.24 Como
ela, que nos quis transmitir, em seu Filho, o Verbo Divino, ele quis trans-
22
Cf. Tocco, cap. 30-31; cf. J. Weisheipl, Tomás de Aquino. Vida, obras y doctrina,
EUNSA, Navarra 1994, 151-152.
Santo Tomás sempre entendeu que “está na presença de Deus”. A atitude que
observamos aqui diante da palavra de Deus, ele estende a toda a sua vida e aconselha,
quem lhe pergunta, como um seu irmão religioso de nome João, de viver calado diante
da plenitude de Deus, ou seja na constante atitude de escuta faminta. Ele mostrou grande
surpresa quando alguns, principalmente religiosos, permitiam-se falar de outra coisa que
não de Deus e do que diz respeito à edificação das almas (cf. Tocco, cap. 48). A esse
Irmão religioso da sua Ordem deu dezesseis conselhos sobre a maneira de estudar, que
guiam nessa direção: “Isto é a minha admonição e tua instrução. Te digo: Seja lento no
falar e tardio em ir ao parlatório. Cuide de ter a pureza de consciência. Não cesses de
rezar…” (S. Thomae Aq., „Epistola exhortatoria de modo studendi ad fratrem Ioannem”,
em Opuscula Theologica, vol. I, Marietti, Taurini-Romae, 21975, 451).
23
Já como criancinha, Tomás tinha um pergaminho consigo no qual foi escrito Ave
Maria (cf. Tocco, cap. 3).
24
14
mitir aos outros a palavra.25 Mesmo que o currículo ordinário de um
professor do século treze previsse a dedicação sistemática à Sagrada
Escritura e, a seguir, a leitura das Sentenças de Pedro Lombardo ou a
de teologia sistemática, Santo Tomás nunca deixou a leitura dos livros
bíblicos e a tarefa de comentá-los.26 Mesmo interrompendo sua atividade
universitária em obediência à sua Ordem e ao próprio Papa, Santo Tomás
continuou sempre um contemplativo consciente da vocação de transmitir
aquilo que contemplava, conforme a vocação de sua ordem religiosa27 e
de sua pessoa. Segundo a tradição28. quando já estava no leito de morte,
ainda explicou um livro da Sagrada Escritura, o Cântico dos Cânticos,
que foram quase que suas últimas palavras.
a) Os comentários bíblicos de Santo Tomás
Dentre seus livros, encontram-se comentários sobre vários livros do
Antigo Testamento e sobre quase todo Novo Testamento. Vamos primeiro
analisar seus comentários.
Do Antigo Testamento temos os seguintes comentários, seja em forma
de lectura ou reportatio, com que se entendem as anotações dos alunos
durante as aulas, que no caso de Santo Tomás são as redações do seu
fiel companheiro e irmão religioso, Frei Reginaldo; seja em forma de
expositiones ou ordinationes que vem do mestre mesmo ou “leituras”
por ele corrigidas29:
25
Bento XVI lembrou de “uma oração, que tradicionalmente é atribuída a São Tomás
e que, de qualquer maneira, reflete os elementos da sua profunda devoção mariana… ‘Ó
bem-aventurada e doce Virgem Maria, Mãe de Deus... confio ao teu Coração misericordioso toda a minha vida... Obtém-me, ó minha doce Senhora, verdadeira caridade, com
a qual eu possa amar de todo o coração o teu santíssimo Filho e a Ti, depois dele, acima
de todas as coisas, e o próximo em Deus e por Deus’.” (Audiência geral: “Santo Tomás
de Aquino” (3.), 23 de junho de 2010).
“No tempo de Santo Tomás a principal tarefa de um mestre em teologia consistia
em diariamente lecionar aulas sobre a Escritura” (Elders, Santo Tomás de Aquino, 16).
26
Cf. S. Thomae Aquinatis, Summa Theologica (= Sth), Biblioteca de autores Cristianos, Matriti 31961, p. II-II, q. 188, a. 6.
27
Cf. Tocco, cap. 57; Torrell, porém, observa que no processo da Canonização nem
o abade de Fossanova nem os dois cistercienses ainda vivos disseram algo a respeito (cf.
Torrell, 342).
28
29
Cf. WEISHEIPL, Tomás de Aquino, 148-151 e Torrel, 393-397.
15
• Exposição sobre Isaías (1252/53)30: deste – e do comentário do livro
de Jeremias e das Lamentações – vale observar que são trabalhos do
“bacharel bíblico”. A sua tarefa era aguçar “seus instrumentos como
futuro mestre. Rápida por definição, ‘ela não entra nos pormenores das
diversas interpretações possíveis… O objetivo do (isto é, do docente)
é o de fazer compreender o texto em seu sentido literal’ (P. Glorieux,
L’inseignement, p. 119…)”31 Isso, Ir., é uma citação de um livro em
portugues, logo não podemos tocar; significa aquele que apresenta a
sagr. Escritura, ou seja o leitor ou – hoje: professor]
• Leitura sobre Jeremias (antes de 1252 ou 1267/68) e o livro das Lamentações: o comentário sobre Jeremias é incompleto, pois se refere
apenas até o capítulo 42.
• Exposição sobre o Livro de Jó (1265/66): Santo Tomás escreve no
prólogo: “Toda a intenção do livro é mostrar, por razões prováveis,
que as coisas humanas são regidas pela providência divina.”32 Santo
Tomás quis usar a oportunidade de lutar contra as doutrinas dos Averroistas, como a negação da providência divina, temática da Teodicéa33,
de provar a vida da alma individual depois da morte e de explicar a
justiça distributiva… Santo Tomás fez questão de procurar apenas o
sentido literal, sendo que São Gregório Magno o comentou no sentido
espiritual.
• Apostila sobre os Salmos (apenas sobre os Salmos 1 a 54; 1272/73): é
de especial interesse, pois “sua matéria é universal; enquanto cada um
dos outros livros canônicos possui sua matéria especial, esse recobre a
matéria de toda a teologia. Essa plenitude é a razão pela qual a Igreja
volta constantemente ao Livro dos Salmos, pois ele contém toda a
A respeito das datas vale ter presente o que Weisheipl diz: “Estos comentarios bíblicos son extremadamente difíciles de datar, en relación a la vida de Aquino” (Weisheipl,
Tomás de Aquino, 149).
30
31
Torrell, 34.
“… liber job, cuius tota intentio circa hoc versatur ut per probabiles rationes ostendatur res humanas divina providentia regi” (“Expositio super Job ad litteram”, em Opera
omnia, vol. 5, 1-50, 1).
32
33
16
Cf. Pesch, 86.
Escritura”34. Santo Tomás quer tratar os salmos sob quatro aspectos, a
matéria, o modo ou forma, o fim e o agente.35
• O ditado sobre o Cântico dos Cânticos (1273)36: aqui se destaca particularmente a interpretação tradicional com referência aos judeus e
cristãos, à Igreja e às almas.
Do Novo Testamento temos comentários sobre quase todos os livros.
• Glosa continua sobre os Evangelhos – Catena áurea (1262-1264):
uma coleção de comentários dos Padres da Igreja, sendo 57 gregos e 22
latinos, sobre os quatro evangelhos,37 numa leitura contínua, versículo
por versículo. É considerada “uma mina para os exegetas, teólogos e
pregadores” (Spicq) que encontrou vasta divulgação, de modo que
hoje temos um grande número de manuscritos (73 de São Marcos; 89
de São Mateus, 82 de São Lucas e 88 de São João38). Santo Tomás
chegou a ser remunerado por esse trabalho, pois, segundo Torrell,
“a documentação patrística no domínio da cristologia sextuplicou na
passagem das Sentenças para a Suma”39, ou seja, depois desse trabalho
no início dos anos sessenta.
• Leitura sobre o Evangelho de São Mateus (1256-59 e 1269-72):
Santo Tomás tratou o evangelho de São Mateus como representante dos
“Hic líber generalem habet totius theologiae”, Prooemium in Psalmos, em Opera
Omnia, (ed. Busa), vol. 6, frommann-holzboog, Stuttgart-Bad Canstatt 1980, 48-130, 48;
port. em Torrell, 303.
34
“De omni opere dei tractat. Est autem quadruplex opus dei: scilicet creationis…
gubernationis…, reparationis…, glorificationis… et de his omnibus complete in hac
doctrina tractatur. Primo de opere creationis: psal. 8…; secundo gubernationis: quia
omnes historiae veteris testamenti tanguntur in hoc libro: psal. 77…; tertio reparationis,
quantum ad caput, scilicet christum et quantum ad omnes effectus gratiae: psal. 3… omnia
enim quae ad fidem incarnationis pertinent…; quarto est opus glorificationis: psal. 149:
exultabunt sancti in gloria etc.. Et haec est ratio, quare magis frequentatur psalterium in
ecclesia, quia continet totam scripturam. … matéria ergo universalis est, quia omne opus.
Et quia hoc ad christum spectat: coloss.1… . modus seu forma in sacra scriptura multiplex
invenitur. Narrativus…in historialibus libris invenitur. Admonitorius et exhortatorius et
praeceptivus… disputativus…, deprecativus e laudativus… hujus scripturae finis est
oratio… ut anima conjugatur deo. ” (Prooemium in Psalmos, 48).
35
36
Cf. Pesch, 85 e acima, nota 28.
Cf. Grabmann, Santo Tomás de Aquino, ed. Labor, Barcelona – Buenos Aires 1930,
esp. 42.
37
38
Torrell, 163.
39
Ibid.; cf. também pág. 231.
17
sinóticos, de modo que logo após essa leitura passou ao evangelho de
São João. Torrell diz: “O texto desse reportatio, tal como hoje é transmitido pelas edições impressas, não só está incompleto como também
errado… Os trabalhos da Comissão Leonina permitiram a descoberta
de um novo manuscrito contendo o texto completo do comentário de
Tomás…; apenas fragmentos foram editados”40.
• - Exposição sobre o Evangelho de São João (1270-1272): é considerado pelos que o conhecem o melhor comentário desse evangelho até
hoje!41 É, não apenas entre os comentários bíblicos de Santo Tomás,
como afirma M.-D. Philippe, mas em geral, “a obra teológica por excelência de Santo Tomás”42.
• Leitura sobre as Cartas de São Paulo uma primeira leitura entre 1265
e 1268 (ou já a partir de 1259), e a segunda leitura como exposição,
porém só a carta aos Romanos e a Primeira carta aos Coríntios até o
capítulo 11, entre 1271 e 1273.43 Já citamos no início desse trabalho
algumas avaliações desse “bonito comentário às ‘cartas paulinas’, que
representa o fruto mais maduro da exegese medieval” (Bento XVI).
Na década de 70, o Padre jesuíta Roberto Busa fez o enorme esforço de
tornar acessível em forma eletrônica as obras de Santo Tomás, e elaborou
o Index Thomisticus44. Como suplemento desse trabalho, os próprios
40
Ibid., 395; cf. 232.
Josef Pieper traduziu e publicou o comentário sobre o primeiro Capítulo ou o
“Prólogo” num livro separado. Sua primeira frase introdutória é essa: “Neste texto aqui
traduzido de Santo Tomás, o “prólogo” do quarto evangelho é interpretado numa maneira
tão profunda e abrangente que se pode dizer, isto seja a expressão mais magnífica da
doutrina do Logos, que se encontra em toda a Teologia ocidental” (Thomas von Aquin,
Das Wort, trad. por Josef Pieper, Kösel Verlag, München, 3ª edição totalmente revisada,
1955, 7).
41
42
No prefácio à edição francês dessa obra; cit. em Torrell, 233.
O biógrafo Tocco contou sobre um sonho de um irmão na hora da morte de Santo
Tomás. Segundo esse, São Paulo mesmo teria aparecido e chamado Santo Tomás a segui-lo
a “um lugar em que teria ainda entendimento melhor de tudo”; São Paulo disse isso porque
Santo Tomás lhe teria perguntado se suas explicações correspondessem a verdade. A isso,
São Paulo respondeu primeiro dizendo: “Elas são tão boas, como um homem pode ter
nesta vida, ainda vivendo no seu corpo” (Tocco, cap. 60; cf. Pesch, 85-88).
43
Roberto Busa, “Indicis Thomistici Supplementum”, em Index Thomisticus, Sanctae
Thomae Aquinatis Operum Omnium Índices et Concordantiae, vol. 1-7, frommannholzboog, Stuttgart-Bad Canstatt 1980; os comentários bíblicos se encontram no vol. 5
(Commentaria in Scripturas) e no vol. 6 (Reportationes).
44
18
textos das obras de Santo Tomás foram publicados em sete volumes. Isso
oferece uma idéia, material-exterior, dos trabalhos dedicados à Sagrada
Escritura: Das 3.970 páginas, cada uma com três colunas de letras (fonte
tamanho oito), os comentários sistemáticos dos livros bíblicos ocupam
1.019 páginas. Ou seja, significa a quarta parte de toda a produção literária
de Santo Tomás, sem considerar os opúsculos separados e as referências
extensas à Sagrada Escritura como próprios tratados bíblicos na Summa
Theologiae.
Além desses comentários de livros bíblicos, temos ainda longas explicações sobre trechos da Bíblia.
Na Summa Theologiae encontramos três tratados de teologia bíblica:
• Sobre a criação: p. I, qq. 65 - 74;
• Sobre os livros da antiga lei no Antigo Testamento: p. I-II, qq. 98 –
105;
• Sobre a vida de Jesus: p. III, qq. 27 – 5945.
É difícil determinar explicitamente os temas bíblicos, por serem muitos,
como, por exemplo, as bem-aventuranças, p. I-II, qq. 68-70 ou os dez
mandamentos, p. I-II, q. 100 e o mandamento principal, p. I-II, q. 62.
Os dez mandamentos e o mandamento principal merecem ser mencionados porque Santo Tomás dedicou a eles ainda uma exposição separada:
• “In duo praecepta caritatis et in decem legis praecepta expositio –
exposição dos dois mandamentos da caridade e dos dez mandamentos
da lei”46, e
• a exposição sobre o Pai nosso e a Ave Maria.47
Além dos comentários explícitos e sistemáticos, Santo Tomás cita quase
constantemente a Sagrada Escritura. Segundo Valkenberg, na Summa
Theologiae há mais de 25.000 citações da Bíblia48. Somente na breve aula
45
“… o tratado teológico sobre os mistérios da vida de Jesus, ao qual Tomás de
Aquino deu forma clássica na sua Suma Teológica (Summa theol. III [sic!], q. 27-59)”
(Joseph Ratzinger – Benedict XVI, Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a
ressurreição, Editora Planeta do Brasil, São Paulo 2011, 13).
46
Opuscula Theologica, vol. II, 245-271.
47
Ibid., 221-235 e 239-241.
48
Cf. Elders, Santo Tomás de Aquino, 31.
19
inaugural no ano de 1252 pode-se contar 33 citações do Antigo Testamento
e 22 do Novo Testamento.49
b) Os motivos e objetivos dos seus comentários
Este levantamento material da dedicação à Sagrada Escritura indica
o valor que Santo Tomás deu à Bíblia. Oferecemos cinco motivos que
explicam porque Santo Tomás se dedicou tão intensamente à Sagrada
Escritura; ele, que é muito mais conhecido como teólogo e, antes ainda,
como filósofo, que como exegeta.
1) A procura da verdade na revelação
Logo na abertura da Suma Teológica, no primeiro artigo, Santo Tomás
levantou a questão sobre a verdade: É necessária “outra doutrina, além
das disciplinas filosóficas”50, ou seja, além da razão humana? A “Sacra
doutrina” é necessária para isso? E ela, o que seria? Há coisas que ultrapassam a razão, responde Tomás; por isso é necessário que “lhe sejam
comunicadas por revelação divina”51. Otto Pesch observa que
Tomás iguala em terminologia três conceitos, e consequentemente
troca-os no seu uso: Sacra doctrina, revelatio e Sacra Scriptura,
“Sagrada Escritura”. A “sacra doutrina” vem pela “revelação”, e, de
novo, essa se encontra na Sagrada Escritura.52 Em outras palavras:
É quase uma falsidade traduzir aqui Sacra doctrina por ‘Teologia’.
Tomás chama, com perseverança, Theologia a doutrina filosófica de
Deus. Sacra doctrina é inicialmente o falar mesmo de Deus53.
É necessário ressaltar, como Pesch, que, aos olhos de Tomás, a Summa
Theologiae toda é “um falar de Deus, comunicado por homens e com a
Na aula inaugural como “Magister in Theologia”, em 1256 conta-se 42 citações
bíblicas (cf. Opuscula Theologica, vol. I: De Commendatione Sacrae Scripturae, 441-443;
cf. Paulo Faitanin, “A Dignidade de ensinar e aprender a Teologia segundo Tomás de
Aquino, a partir do texto Principium ‘Rigans Montes’”, em Aquinate, 5 (2007), 221-240,
231).
49
50
Sth p. I, q. 1, a. 1.
51
Ibid.
“Revelatio divina…, supra quam fundantur sacra Scriptura seu doctrina – a revelação divina, fundamento da própria Escritura ou da doctrina sagrada” (Sth, p. I, q. 1, a.
2 ad 2um).
52
53
20
Pesch, 160.
ajuda da razão, razão esta que Deus deu ao homem exatamente para este
fim, para que, através do seu serviço de serva, possa ser ouvido e compreendido precisamente a palavra de Deus”54. Assim se compreende que
os comentários bíblicos, como o do livro dos Salmos, foram estudados
até do ponto de vista filosófico: Teologia e Filosofia, tendo seu método
específico, formam uma unidade, da mesma forma que Deus é o único
autor da Revelação e Criação.55
2) A ignorância do homem
A segunda resposta dada por Santo Tomás ainda no primeiro artigo
da Suma é surpreendente: A ignorância do homem. “Sobre aquilo que a
razão humana pode pesquisar a respeito de Deus, seria necessário que o
homem fosse também instruído por revelação divina.” Pois, “a verdade
sobre Deus pesquisada pela razão humana chegaria [1.] apenas a um
pequeno número, [2.] depois de muito tempo e [3.] cheio de erros”56; por
isso é necessário que eles sejam “instruídos a respeito de Deus por meio
de uma revelação divina”57.
3) O fundamento de toda a nossa sabedoria
Chegamos, assim, a uma terceira resposta que é clara para Santo Tomás:
O fundamento de toda a nossa sabedoria deve ser a palavra de Deus, e
essa se encontra – para Santo Tomás não há dúvida nisso – na Sagrada
Página. Por isso “deve-se dizer que não se deve atribuir a Deus o que não se
encontra na Sagrada Escritura, nem por palavras, nem pelo sentido”58.
Sobre isso, Pio XI disse:
Tomás se esforçou por basear toda a sua doutrina na Sagrada Escritura. Na
convicção de que a Sagrada Escritura, como unidade e em cada uma das
suas partes, é realmente Palavra de Deus, ele exigiu para a sua interpretação a observação conscienciosa daquelas normas que foram recentemente
confirmadas pelos nossos predecessores: Leão XIII, na sua carta encíclica
Providentissimus Deus (1893) e Bento XV, na encíclica Spiritus Paraclitus
Ibid., 160; cf. por exemplo a lei natural como palavra de Deus segundo Santo Tomás
de Aquino (cf. Bento XVI, Verbum Domini, n. 9).
54
Cf. Carmelo Pandolfi, San Tommaso Filosofo nel Commento ai Salmi, cf. em cima
nota 4.
55
Sth p. I, q. 1, a. 1.
56
Ibid.
57
Sth p. I, q. 36, a. 2 ad 1um.
58
21
(1920). Tomás se orienta pelo princípio: ‘O primeiro e principal autor da
Sagrada Escritura é o Espírito Santo … o homem foi apenas o instrumento
na mão de Deus’ (Quodlibet 7, a. 14 ad 5um)59.
Hoje, essa referência a essa doutrina fundamental deve ser completada
pela Constituição dogmática Dei Verbum, do II Concílio no Vaticano:
Como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos se
deve ter como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo havemos
de crer que os Livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente
e sem erro a verdade relativa à nossa salvação, que Deus quis fosse
consignada nas Sagradas Letras.60 (DV 11).
Os Padres do Concílio apoiaram-se, entre outras fontes, em Santo Tomás. E até parece ser um comentário às suas obras o que eles disseram
no mesmo documento: “O estudo das Sagradas Páginas seja como que a
alma da Sagrada Teologia” (DV 24).
4) Base em comum com os de fora da Igreja
A breve história da Ordem, como já vimos no início, sugeriu um quarto
motivo. A Sagrada Escritura é ainda aceitada até pelos hereges, se tornando
assim uma base em comum para conversar com eles. Ela goza ainda, até
para muitos desse grupo, de um alto valor de autoridade, valor esse que
a razão por si mesma não possui. E para a conversa com aqueles que
não aceitam a sua autoridade, a Palavra de Deus oferece, pelo menos,
argumentos para refutar seus erros.61
5) Fundamento e substância da Teologia
Por fim, Santo Tomás discute e afirma na questão introdutória à sua
obra maior, a Suma Teológica, a possibilidade de raciocinar sobre o que
a Divina revelação diz, e, assim, fazer uma ciência, ou seja, teologia.62
Com base dessa premissa, Santo Tomás entende como tarefa da teologia
[1.] analisar o Texto Sagrado, [2.] ordenar os conteúdos e [3.] tirar con-
59
Pio XI, Studiorum Ducem, II, 5 (22).
Cf. Sto. Agostinho,…; Santo Tomás, De Ver., q. 12, a. 2 C; Conc. de Trento, Sess.
IV, De canonicis Scripturis: Denz. 783 (1501); Leão XIII, Enc. Providentissimus…; Pio
XII, Enc. Divino afflante Spiritu…
60
22
61
Cf. Sth p. I, q. 1, a. 8.
62
Cf. Ibid., a. 2 etc..
clusões. E essas conclusões devem servir para destruir os erros, instruir
sobre os costumes, e para contemplar a verdade.63
Assim, “Gilson pode escrever que a Teologia de Tomás é um comentário
da Bíblia e que ele não propõe conclusões sem justificá-las segundo a
Sagrada Escritura (cf. Gilson, É., Lês tribulations de Sophie, Paris 1967,
47). Na mesma linha, Padre Torrell cita as palavras de Tomás: ‘Quando
lidando com as realidades divinas o homem dificilmente deve se expressar de modo diferente do qual a Sagrada Escritura fala’ (Summa Contra
Gentiles, livro I, cap. 1). A Sagrada Escritura é muito mais do que uma
fonte de dados: é o fundamento e a substância da Teologia. Ela forneceu
ao Aquinate a divisão principal da sua Summa Theologiae…”64
c) Os métodos sérios de interpretação
Esse “humilde mestre religioso – ‘o mais sábio dos santos e o mais
santo dos sábios’, como dele se disse”65, olhou com seriedade para a
Sagrada Escritura, submeteu- se totalmente à autoridade do seu Divino
Autor, e quis extrair dela apenas o que é verdade. Seja pela verdade, seja
pela autoridade divina da Escritura, esse santo estudioso é obrigado a um
procedimento e à aplicação dos métodos mais sérios possíveis.
1) A procura do sentido histórico-literal
O método e o mérito mais conhecidos do exegeta Tomás é a procura
do texto autêntico e seu significado literal. Santo Tomás tratou os sentidos dos Sagrados Textos quatro vezes, desde o início, no prólogo do seu
Comentário às Sentenças de Lombardo, até a Suma teológica.66
63
“Ex istis autem principiis ad tria proceditur in sacra scriptura: scilicet ad destructionem errorum, …ad instructionem morum…; proceditur tertio ad contemplationem
veritatis” (In Quattuor Libros Sententiarum, (= Sent), em Opera Omnia, vol. 1, frommannholzboog, Stuttgart-Bad Canstatt 1980, I Sent, prol., q. I, a. 5; pág. 3.3).
64
Elders, Santo Tomás de Aquino, 19.
Odilão Moura, “Prefácio” em S. Tomás de Aquino, Exposição sobre o Credo, Ed.
Loyola, São Paulo 1981, 11-16, 11; segundo Manser a frase pronunciou pela primeira
vez o Cardeal Bessarion, assistente do Concílio de Florência (1439-1445): “Vir plane
peripateticus, non minus inter sanctos doctissimus, quam inter doctos sanctissimus”
(Gallus Manser, L’essenza do Tomismo, Madrid 1953, 91).
65
A primeira vez em Paris, 1254-56, partindo da finalidade da Escritura (cf. I Sent,
prol., q. I, a. 5; cf. em cima nota 62); depois nas Quaestiones quodlibetales, no 1256 ou
1266, parte de Cristo como centro da História, dividida em três partes (Quodlibet VII, q.
VI, aa. 1-3 [14-16], em Quaestiones quodlibetales, Ed. Marietti, Taurini-Romae 91956,
66
23
Não é a ocasião para analisar estas quatro explicações desse tema tão
importante e esclarecedor,67 importante até para todo o futuro da Igreja.
Porém, é necessário que se diga: Segundo Santo Tomás, Deus fala por
fatos, que são transmitidos às gerações vindouras pelas narrações escritas
ou pelos textos literários da Sagrada Escritura68; Ele também fala diretamente por palavras como fez com Moisés ou profetas; ou ainda na vida
e no ensino do Verbo Encarnado pelas duas maneiras juntas. No primeiro
caso, Santo Tomás fala do sentido histórico e literário; no segundo do
sentido literário. “Só a partir dele se pode argumentar”69. Mas, argumenta
Santo Tomás, “o autor da Escritura Sagrada é Deus,” e Ele tem mais intenções num só fato. Ele manifesta através da chuva ou por meio de uma
fruta saborosa seu cuidado, sua sabedoria, seu amor para com os homens,
etc. Assim, diz Santo Tomás, “não há inconveniente em dizer, segundo
Agostinho, que, de acordo com o sentido literal, mesmo num único texto
da Escritura encontram-se vários sentidos”70.
É o sentido espiritual ou místico, metafórico que nos revela essas
intenções de Deus.71 Neste nível se distingue três sentidos: o sentido
145-148), com o acento particular no simbolismo (figuras) e “significado” das palavras
(sentido literal) e de fatos (sentido histórico), no ano 1265 ou 68 e no ano 1269 ou 73, no
comentário a carta de São Paulo aos Gálatas, comentando a referência do Apóstolo a Agar
e Sara como imagens da Antiga e Nova Aliança (Super Epistolam ad Galatas Lectura, em
Super Epistolas Sancti Pauli Lectura, vol. I, ed. Marietti, Taurini-Romae 81953, 563-649,
cap. IV, lect. VII; Ma 253-254); por fim, na questão introdutória da Summa Theologiae
com o problema principal do conhecimento da verdade, pela percepção e reflexão, pela fé
e pela visão na glória, no ano 1266/7 (Sth p. I, q. 1, a. 10); se vê nestes pontos de partida
qual dimensão e importância essa pergunta tem para Santo Tomás.
67
“Muito se escreveu sobre os quatro sentidos da Escritura em geral, e em particular
sobre essa prioridade do sentido literal” (Torrell, 69).
68
“Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. E trarás gravadas
no teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás com insistência
a teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em casa ou andando a caminho,
quando te deitares ou te levantares. Tu as prenderás como sinal à tua mão e as colocarás
como faixa entre os olhos; tu as escreverás nas entradas da tua casa e nos portões da tua
cidade” (Dt 6,4-9).
69
Sth p. I, q. 1, a. 10 ad 1um.
70
Sth I, q. 1, a. 10; “quaedam res per figuram aliarum rerum exprimuntur” (Quodlibet
VII, 6 (15); cf. De Potentia em Quaestiones Disputatae, vol. II, ed. Marietti, TauriniRomae, 1-276, q. 4, a. 1).
”A primeira significação, segundo a qual as palavras designam certas coisas, corresponde ao primeiro sentido, que é o sentido histórico ou literal. A significação pela qual
71
24
alegórico de tipos ou figuras no AT que apontam ao NT ou a Cristo, o
sentido moral ou tropológico de histórias ou textos que indicam como
viver ou o que fazer na vida presente, e o sentido anagógico, quando
fatos ou textos indicam a eternidade.72 Todos os quatros sentidos levam
a plena compreensão da Palavra de Deus:
Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da
Escritura: o sentido literal e o sentido espiritual, sendo este último
subdividido em sentido alegórico, moral e anagógico. A concordância profunda entre os quatro sentidos garante toda a sua riqueza à
leitura viva da Escritura na Igreja.73
as coisas significadas pelas palavras designam ainda outras coisas é o chamado sentido
espiritual, que está fundado no sentido literal e o pressupõe.” (Sth p. I, q. 1, a. 10); cf.
Catecismo da Igreja Católica, (= CIC), 117; Bento XVI, Verbum Domini, n. 37.
72
“O sentido espiritual. Graças à unidade do projeto de Deus, não somente o texto
da Escritura, mas também as realidades e os acontecimentos de que ele fala, podem ser
sinais.
1. O sentido alegórico. Podemos adquirir uma compreensão mais profunda dos
acontecimentos reconhecendo a significação deles em Cristo; assim, a travessia do Mar
Vermelho é um sinal da vitória de Cristo, e também do Batismo (Cf. 1Cor 10,2.).
2. O sentido moral. Os acontecimentos relatados na Escritura devem conduzir-nos a
um justo agir. Eles foram escritos ‘para nossa instrução’ (1Cor 10,11).
3. O sentido anagógico. Podemos ver realidades e acontecimentos em sua significação
eterna, conduzindo-nos (em grego: ‘anagogé’; pronuncie ‘anagogué’) à nossa Pátria.
Assim, a Igreja na terra é sinal da Jerusalém celeste (Cf. Hb 3-4,11).” (CIC 117)
CIC 115. Podemos indicar uma outra razão mais profunda que fica implícita nessa
estrutura, mas também confirma a necessidade intrínseca dessa ordem. Afirma Beato
João Paulo II: “Toda e qualquer identidade cristã, encontra na Santíssima Trindade a sua
própria fonte.” (B. João Paulo II, Pastores dabo vobis, 12). Isso deve valer também para
os vários sentidos da Sagrada Escritura que formam, no fundo, uma ”identidade cristã”,
ou como ensina Santo Tomás: Omnis effectus aliqualiter repraesentat suam causam ... in
creaturis omnibus invenitur repraesentatio Trinitatis (Sth p. I, q. 45, a. 7). Então, numa
análise trinitária se apresenta a doutrina dos sentidos assim:
(1) A Deus-Pai é atribuído a criação, então os fatos e a história; a Ele pode-se atribuir
o sentido histórico; o Deus-Filho é a Palavra do Pai, por isso pode-se atribuir a ele o
sentido literal. E, como do Pai e do Filho procede o Espírito Santo que, da sua parte, não
é origem de outra Pessoa Divina, mas só dá testemunho do Pai e Filho, assim corresponde
a Ele o sentido espiritual que deve totalmente proceder do sentido histórico-literal e estar
“fundado no sentido literal e o pressupõe” (Sth p. I, q. 1, a. 10 c)
Assim, as procissões Trinitárias revelam a firmeza e até a necessidade desta ordem
entre os sentidos da palavra divina, com que Santo Tomás colocou um fundamento sólido
para toda a futura interpretação da Sagrada Escritura.
73
25
Assim, por exemplo, Santo Tomás escreve no seu comentário à Carta
aos Gálatas: “Et omnium horum patet exemplum…” e segue a explicação
da palavra “fiat lux” “ad sensum litteralem”, “ad sensum allegoricum”,
“ad sensum anagogicum” e “ad sensum morale”74.
2) Algumas observações técnicas
Podemos completar a pesquisa do sentido literal por Santo Tomás com
algumas observações menores:
Para encontrar o sentido literal da palavra de Deus, Santo Tomás tinha
como texto da Sagrada Escritura “a Bíblia Parisiense, uma ótima edição
da Vulgata, sob o cuidado da Universidade de Paris do início do século
XIII”75.
Porém, faltava-lhe o perfeito conhecimento das línguas originais. Estava ele consciente de possuir apenas textos traduzidos, que poderiam
não expressar autenticamente a intenção do autor. No prólogo do evangelho de São João, por ex., Santo Tomás indica o duplo significado de
“logos”: “Cum ergo logos significet in latino rationem et verbum, quare
translatores translaterunt verbum, et non rationem,… Ratio proprie no(a) O sentido espiritual deve resultar do sentido literal ou do sentido histórico e ”só a
partir dele (do sentido literal) se pode argumentar, e nunca dos sentidos alegóricos” (ibid.,
ad 1um). Santo Tomás sublinha essa doutrina quando disse: “Nada se perderá da Sagrada
Escritura, porque nada do que é necessário à fé está contido no sentido espiritual que a
Sagrada Escritura não o refira explicitamente em alguma parte, em sentido literal” (ibid.;
cf. De Potentia q. 4, a. 1).
(b) E vice versa pode-se dizer: Só no sentido espiritual encontraremos o significado
pleno daquilo que Deus revela-nos já com o sentido literal, porque é ”o Paráclito, o
Espírito Santo que o Pai enviará em Meu nome, [que] vos ensinará tudo e vos recordará
tudo o que Eu vos disse” (Jo 14,26).
(2) Pode-se provar essa necessidade também pelo negativo: Se Adão não precisa ser
considerado como figura histórica mas, sim, apenas como tipo ou prefiguração de Jesus
como ”novo Adão” segundo o sentido alegórico, pode-se concluir: Adão não precisa
ser uma pessoa histórica, basta que é uma figura clara em relação a Cristo, assim Cristo
não precisa ser histórico, mas só norma (sentido moral) clara; isso nos leva a filosofia
kantiana com o seu ”Imperativo categórico”, por não ter fundamento histórico, ou num
psicologismo puro, no qual o próprio Deus não precisa ser mais do que uma idéia, um
pensamento positivo, animador, onde não importa a existência real!
74
Super epistolam ad Galatas lectura, IV, 7; Ma 254.
“Quanto al testo usato da S. T., si tratta della Bibbia Parisiensis, un’ottima edizione
della Vulgata, curata dall’università di Parigi agli inizi del sec. XIII. Essa aveva l’ordine
dei libri sacri símile a quello delle moderne edizioni e la divisione in capitoli introdotta
da Stefano Langton nel 1214, come la nostra” (Mondin, 106).
75
26
minat conceptum mentis, … per verbum vero significatur respectus ad
exteriora…”76. Onde era necessário, o Santo procurava a ajuda de quem
conhecia a língua que precisava, especialmente de Guilherme de Moerbeke77 para traduções do grego.
Outro esforço típico para chegar ao sentido literal era a análise detalhada do texto, tomando com cuidado cada palavra ou considerando cada
palavra em particular. Isso “mostra um esforço intelectual dos teólogos,
sem perdão, para descobrir o sentido da palavra bíblica, que para eles
é literalmente palavra de Deus”78. Unido a isso, é necessário ter grande
atenção ao significado das palavras ou às suas definições, pois “singula
verba habent magnam significationem”79.
A atenção acurada a cada palavra levou a outra característica das obras
exegéticas de Santo Tomás: Ele é da convicção que cada livro nasceu de
uma intenção, ou filosoficamente falando, tinha e tem ainda uma causa
final, uma meta que busca ser alcançada. Essa meta, Santo Tomás a procurou e expressou como tema do livro. A sua aula inaugural como bacharel
bíblico, que apresentamos aqui, testemunha isso suficientemente.80
Tendo um tema, segue-se uma estrutura lógica do livro para alcançar
essa meta. Então, encontramos constantemente nos comentários de Santo
Tomás um esforço em mostrar a estrutura ou a lógica do pensamento do
Santo Autor. Por exemplo, o Comentário sobre a Carta aos Romanos
começa assim: “Haec epistola in duas partes dividitur scilicet: in salutationem et epistolarem tractatum, qui incipit ibi ‘Primum quidem, etc.’ Circa
primum tria facit. Primo describitur persona salutans; secundo personae
salutatae, ibi ‘Omnibus qui sunt Romae’; tertio salus optata, ibi ‘Gratia
vobis, etc.’ Circa primum duo facit …”81
76
Super Evangelium S. Ioannis lectura, ed. Marietti, Taurini-Romae 61972, cap. I,
lect. I; Ma 32.
77
Cf. Torrell, 203-207.
78
Pesch, 106s.
Super Evangelium S. Matthaei lectura, ed. Marietti, Taurini – Romae 51951, cap.
XIII, lect. II; Ma 1138.
79
80
Cf. Elders, Santo Tomás de Aquino, 24.
Super Epistolam ad Romanos Lectura, em Super Epistolas Sancti Pauli Lectura,
vol. I, 5-230; cap. I, lect. I; Ma 15. Cf. Prólogo …. ; respeito do „Paulo de Tomás“, cf.
Pesch, 106-107; sobre o papel da Sagrada Escritura na Escolástica em geral, cf. M. Grabmann, Die Geschichte der Scholastischen Methode, Akademie-Verlag, Berlin 1957, vol.
1, 58-66 e 266-267; vol. 2, 476-501.
81
27
3) Critérios da interpretação formal
Santo Tomás se preocupa com a doutrina, e, para isso, busca uma exegese objetiva. Para alcançar essa meta, ele parte do sentido literal como
base e constantemente complementa com outros critérios.82
Um texto bíblico deve ser interpretado por meio de outro texto da Sagrada Escritura; o elogio do valor da Sagrada Escritura do comentário ao
livro de Isaías, citado anteriormente, pode servir como exemplo83. Outro
exemplo, a associação da palavra de Jesus “aos discípulos”: “disse aos
discípulos: ‘Sentai-vos, enquanto eu vou orar ali!’” (Mt 26,36) à palavra
de Abraão aos seus criados que acompanharam-no com seu filho Isaac:
“Disse então aos criados: ‘Esperai aqui com o jumento, enquanto eu e o
menino vamos até lá. Depois de adorarmos a Deus, voltaremos a vós”
(Gen 22,5), essa associação é um paralelismo literário que Tomás não
elabora (ao menos não na versão que chegou até nós hoje). Santo Tomás
também comparou os Sinóticos entre si para entender melhor os textos:
“quia Marcus VI,1 et Lucas c. IV, 16 non eodem ordine narrant, quia
istud narrant post missionem discipulorum, ut habetur Marci VI. Unde
incertum est qui servent ordinem historiae”84.
A maior base para esse critério é a unidade dos dois Testamentos, porque “quod occulte dictum est antiquis, expressum est modernis; unde ibi
figura, hic veritas”85, ou em outras palavras: “lex vetus est figura novae
legis. … nova lex est figura futurae gloriae”86.
O significado de um texto bíblico deve ser interpretado em harmonia com o testemunho e a fé da Tradição viva da Igreja. Para não errar
nisso, Santo Tomás se apóia quase sempre nos Padres da Igreja, como
já vimos. Santo Tomás cita-os tanto, que o Papa Leão XIII pode dizer:
Santo Tomás
Estes se encontram hoje dogmatizados, para assim dizer, quando o Vaticano II
ensina na Constituição dogmática Dei Verbum: “Ao investigarmos o sentido exato dos
textos sagrados, devemos atender com diligência não menor ao conteúdo e à unidade de
toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé.” (II
Vaticanum, Dei Verbum, 12.3; cf. CIC 312-314).
82
Cf. em cima, 2.a e b ou em baixo a “aula inaugural”; até o Catecismo faz neste
critério referência a “Sto. Tomás de Aquino, Expositio in Psalmos, 21,11”, cf. CIC 312.
83
28
84
In Matthei, cap. XIV, lect. 1; Ma 1216.
85
In Matthei V, 20; Ma 476.
86
Super epistolam ad Galatas lectura, cap. IV, lect. VII; Ma 254.
entre todos os doutores escolásticos, brilha, como astro fulgurante,
e como príncipe e mestre de todos, … Como observa o Cardeal
Caetano, “por ter venerado profundamente os santos doutores que
o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos”.87
Outro princípio, segundo o qual Santo Tomás se orienta na interpretação
da Sagrada Escritura é o deposito fidei ou a interpretação por “analogia
da fé”, ou seja, pela “coesão das verdades da fé entre si e no projeto total
da Revelação”88. Um texto bíblico não pode ser interpretado corretamente
se o sentido contradiz a doutrina da Igreja, pois “veritatem primam propositam nobis in Scripturis secundum doctrinam Ecclesiae intelligentis
sane”89.
4) Exegese e teologia bíblica
Uma quarta característica da exegese de Santo Tomás seria a “exposição teológica” dos textos sagrados. “Tomás está preocupado com os
conteúdos dogmáticos do texto. … Quando São Paulo está falando de
pecado, redenção ou lei…, o Aquinate explica esses termos sempre no
sentido formal, analisando o seu significado teológico; enquanto atualmente somos inclinados a ler uma passagem em seu contexto histórico.”90
Ele procura a verdade, procura encontrar o texto autêntico e raciocina
sobre ele, relacionando com referências a textos paralelos e com as interpretações dos antecessores. Na exatidão do intérprete e na amplitude
de sua mente, Santo Tomás analisa e organiza, exclui erros e conclui
87
Leão XIII, Aeterni Patris, (1878), 21.1.
CIC 314; cf. na “Aula inaugural”: Da Igreja recebemos os livros sagrados - “ex
ecclesiae receptione” (Ma 1204), ela determina quais livros são de inspiração autêntica
e quais são “apócrifos”. “…‘todas estas coisas que concernem à maneira de interpretar
a Escritura estão sujeitas, em última instância, ao juízo da Igreja, que exerce o divino
ministério e mandato do guardar e interpretar a Palavra de Deus’ (DV 12,3): Ego vero
Evangelio non crederem, nisi me catholicae Ecclesiae commoveret auctoritas. - Eu
não creria no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja católica” (Sto.
Agostinho, Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti, 5,6: PL 42,176).” (CIC
119).
88
STh p. II-II, q. 5, a. 3 ad 2um; a aplicação desse princípio se pode ver no fato que
na Summa Theologiae o Santo usou 57 vezes um texto da Liturgia como argumento da
autoridade. Se vê o seu cuidado diante da autoridade da Igreja particularmente na discussão sobre o mistério da Imaculada Conceição de Maria, onde recorre às celebrações
da Igreja como argumento (cf. Sth p. III, q. 27, a. 2 ad 3um); cf. Pandolfi, San Tommaso
Filosofo, 331-332.
89
90
Elders, Santo Tomás de Aquino, 18.
29
novas verdades. Assim, crescem os seus comentários e tornam-se obras
originais, ricas e profundas.
O Comentário sobre o Evangelho segundo São João
tem 373 citações de Agostinho, 217 de Crisóstomo e 95 de Origines91.
Tomás indica o sentido literal e espiritual de várias passagens e refuta
as visões heréticas de Apolinário, Ario, Pelágio, dos maniqueus, de
Nestório e outros. O comentário procura fazer seus leitores meditarem sobre a grandeza e o amor de Deus.92
Nos capítulos 38 e 39 [do livro de Jó] Deus intervém no debate
se dirigindo Ele mesmo a Jó no meio da tempestade. Esse texto
altamente poético cobre cerca de três páginas, mas o comentário
de Tomás é cerca de vinte vezes maior e é um notável resumo do
poder e da sabedoria de Deus como manifestados nas maravilhas
da criação. … O comentário sobre primeiro capítulo do Evangelho
segundo João é uma exposição de alta densidade dogmática, tal
como os comentários sobre as Cartas aos Romanos, aos Coríntios,
aos Gálatas etc.93
Sob este ponto de vista nos surpreende a constatação de Josef Pieper,
introduzindo o comentário de Santo Tomás ao prólogo do Evangelho de
São João: Ele observa que o Santo se aproxima do mistério com uma sóbria racionalidade, mas permite aplicar para quase cada frase da Escritura
várias interpretações que nem sempre são reconciliáveis. E isso, não para
promover um relativismo, mas por respeito diante da palavra da revelação
que não se restringe a ser compreendida apenas por uma determinada
explicação, pois é capaz de carregar muitos “sentidos”.94
Finalmente, deve-se ainda apontar aos excursos que encontramos tantas
vezes nos comentários bíblicos de Santo Tomás. Eles dão uma imensa
riqueza ao texto e a leitura. Em poucas palavras, o que é característico
J. Weisheipl, “The Joannine Commentary of Friar Thomas”, em Church History,
45 (1976) 185-195.
91
92
Elders, Santo Tomás de Aquino, 33.
93
Elders, Santo Tomás de Aquino, 19-20.
Cf. Pieper, Das Wort, 7-8; como exemplo pode-se olhar a discussão sobre a natureza
da “estrela de Belém” no comentário sobre o Evangelho de São Mateus (cf. In Matthei,
cap. II, lect. I; Ma 169-175; lect. III; Ma 191-195) ou a discussão sobre a “mulher” Maria que é mencionada várias vezes no evangelho (cf. In Matthei, cap. XXVI, lect. I; Ma
2129).
94
30
para o nosso Santo é o fato de ele abranger um tema e oferecer os pontos
essenciais, particularmente quando trata os assuntos segundo as causas.
Por exemplo, a partir da palavra: “vadam illuc, et orem” (Mt 26,36) Santo
Tomás faz um excurso sobre a oração e diz, “Dat ergo exemplum orandi,
et quomodo sit orandum…”95.
Um outro exemplo que mostra a perene atualidade destes comentários
seja tirado do comentário sobre o Evangelho de São João. Hoje, muitos
ficam inseguros sobre a existência ou não da alma depois da morte e antes
do julgamento final. Santo Tomás menciona tal tese sem necessidade e
como que de passagem: “Graecorum opinio est, quod sancti non vadunt
ad paradisum usque ad diem iudicii.” A essa posição ou crença responde
com muita simplicidade e se apóia na própria Sagrada Escritura; responde
como exegeta: “Si hoc esset, tunc Apostolus frustra haberet desiderium
esse cum Cristo, Phil. c. 1, 23.” O Santo Doutor se refere à exclamação
de São Paulo: “Estou num grande dilema: por um lado, desejo ardentemente partir para estar com Cristo – o que para mim é muito melhor; por
outro lado, parece mais necessário para o vosso bem que eu continue a
viver neste mundo.” Surge, então, a pergunta: Se não é possível ir logo
após a morte para o céu e continuar a viver na presença de Deus, por que
São Paulo pode escrever isso aos filipenses? Santo Tomás concluiu: “Et
ideo, dicendum, quod statim dissoluta huius habitationis domo, quantum
ad animam sumus cum Christo”96, imediatamente após essa morada ser
dissolvida, estaremos com Cristo segundo a alma.
II. “De commendatione et partitione Sacrae Scripturae – Sobre a Recomendação e Divisão da Sagrada Escritura”
O nosso principal objetivo é oferecer o texto da aula inaugural de Santo
Tomás de Aquino como bacharel bíblico, intitulada: De Commendatione
et Partitione Sacrae Scripturae – Sobre a recomendação e divisão da
Sagrada Escritura . Ele a apresentou quando começou a ler, comentar e
ensinar a Sagrada Escritura, incepit parisius ut Baccalarius bíblicus, em
Paris no ano 1252. Assim o lemos na edição de Marietti.97
95
In Matthei, cap. XXVI, lect. V; Ma 2218-2219.
96
Super Ioannem, XIV, l. 1; Ma 1861.
97
Cf. em cima nota 1.
31
1. Observações introdutórias
Este breve texto do bacharel bíblico apresenta Santo Tomás como
aquele exegeta que ficamos conhecendo acima.
O texto prova a grande estima pela Sagrada Escritura como Palavra de
Deus, que lhe levou a recomendá-la na primeira parte.
As três razões que apresenta, a saber, a autoridade (Ma 1200), a verdade
(Ma 1201) e utilidade (Ma 1202), mostram a visão muito ampla do Santo.
Ele não olha só em direção a Deus, que, por si só, já transmite a essa
palavra autoridade absoluta. Ele considera também o valor da mensagem
em si ou a sabedoria e sua imutabilidade!
Nessa ordem das três razões e nas justificações subordinadas se vê
o pensamento agudo e profundo de Tomás como sua lógica no desenvolvimento bem ordenado. Sua maneira sóbria e simples, sem palavras
desnecessárias, faz sua apresentação clara e compreensível.
Essa simplicidade formal é acompanhada pela material, por assim
dizer, quando se apóia constantemente nas autoridades em vez do próprio raciocínio. Contamos nesse texto brevíssimo, 33 citações do Antigo
Testamento com a frase introdutória e condutor do livro de Baruc (4,1),
22 citações do Novo Testamento, 3 citações dos Padres da Igreja, uma
de Santo Agostinho e duas de São Jerônimo, e ainda uma referência ao
escritor neo-platônico Plotino!
Já nessa parte, e mais ainda na segunda, Santo Tomás mostra a sua
capacidade de organizar e dividir a matéria, partindo do geral ao particular, da Sagrada Escritura como todo às duas partes, ao Antigo e Novo
Testamento, e daí adentrando em cada parte (Ma 1204), na divisão em
livros de leis (Ma 1205), de profetas (Ma 1206) e, apoiando-se em São
Jerônimo, de Hagiógrafos (Ma 1207), separando estes últimos dos livros
apócrifos segundo a decisão da Igreja, “ex Ecclesiae receptione” (Ma
1204). Ele também divide os livros do Novo Testamento em três grupos,
mas segundo outro critério: segundo a origem da graça, que veio por
Cristo (cf. Jo 1,16) e nos é narrado nos evangelhos, a seguir, segundo a
vida pela virtude da graça, que se observa nos Atos dos Apóstolos e em
suas cartas, e, por último, segundo o fruto e efeito da graça, que é o fim
da Igreja e está descrito no livro do Apocalipse (Ma 1208).
O que se destaca nessa divisão é um quadro teológico muito largo e um
senso pastoral muito próximo da vida e suas necessidades e dimensões
com uma profunda intuição para captar a intenção do autor humano e
divino em cada livro. Ele apresenta também aos cristãos de hoje, com
32
estas poucas linhas, uma verdadeira “Introdução à Sagrada Escritura”, que
certamente é um convite a ler os próprios comentários de Santo Tomás
de Aquino para entender a Palavra divina melhor e saber aplicá-la à vida
na caminhada à Santidade.
2. O texto em latim e português
De Commendatione et Partitione Sacrae Scripturae
Sobre a recomendação e
divisão da Sagrada Escritura
Hic est liber mandatorum Dei,
et lex quae est in aeternum:
omnes qui tenent eam pervenient ad vitam (Baruch, IV,I)1.
Este é o livro dos mandamentos de Deus e a Lei que dura
para sempre. Todos os que a
observam alcançarão a vida
(Bar 4,1).
I. COMMENDATIO SACRAE
SCRIPTURAE
I. A RECOMENDAÇÃO DA
SAGRADA ESCRITURA
1199. – Secundum Augustinum,
in IV De doctrina christiana [cap.
12, PL 34,101], eruditus eloquens
ita eloqui debet ut doceat, ut delectet, ut flectat: ut doceat igna­
ros; ut delectet tediosos; ut flectat
tardos.
Haec tria completissime Sacrae
Scri­pturae eloquium. – Docet enim
firmiter aeterna sua veritate, Psalm.
[CXVIII, 89-90]: In aeternum,
Domine, permanet verbum tuum
(2).– Delectat suaviter sua utilitate, Psalm. [CXVIII, 103]: Quam
1199. – Segundo Agostinho no
quarto livro de De doctrina cristiana
(Cap. 12, PL 34,101), o erudito «ao falar deve falar de tal forma que ensine,
alegre e converta»; que ensine os ignorantes, alegre os tediosos e converta os
preguiçosos.
Estas três exigências cumprem
completamente a palavra da Sagrada
Escritura. – Ela ensina com firmeza
a sua verdade eterna: «a tua palavra,
Senhor, permanece para sempre» (Sal
118,89-90). – Ela alegra suavemente
por sua utilidade: «Como são doces as
Pro titulo in codice habetur: Sermo
secundus fratris Thomae.
1
Trad. nova: … est verbum tuum.
2
33
dulcia faucibus meis (3) eloquia
tua! – Flectit efficaciter sua auctoritate, Ier. XXIII [29]: Nunquid
non verba mea sunt quasi [ignis,
dicit Do­minus?].
Et ideo Sacra Scriptura in verbo
pro­posito commendatur a tribus:
– Primo ab auctoritate qua flectit,
cum dicit: Hic est liber mandatorum Dei. – Secundo, ab aeterna
veritate qua instruit, cum dicit: Et
lex quae est in aeternum. – Tertio,
ab utilitate qua allicit, cum dicit:
Omnes qui tenent eam [pervenient
ad vitam].
1200. – Auctoritas autem huius
Scripturae ex tribus ostenditur efficax. Primo ex origine; quia Deus
origo eius est. Unde dicit: Mandatorum Dei – Baruch III [37]:
Hic adinvenit omnem viam [disciplinae]; – Hebr. II [3]: Quae cum
initium acce[pisset enarrari per
Dominum, ab eis qui audierunt, in
nos confirmata est]. Cui quidem
auctori infallibiliter credendum
est; – tum propter naturae suae
conditionem, quia veritas est, Ioan.
XIV [4]: Ego sum via, veritas et
vita; – tum propter scientiae plenitudinem, Rom. XI [33]: O altitudo
divitiarum sa­pientiae et scientiae
Dei; – tum propter verborum virtutem, Hebr. IV [12]: Vivus est sermo
Dei [et eficax, et penetrabilior
omni gladio ancipiti].
Trad. nova: … palato meo.
3
34
tuas palavras para a minha boca» (Sal
118,103). – Ela converte eficazmente
por sua autoridade: «As minhas palavras não são, porventura, como fogo?,
diz o Senhor» (Jer 23,29).
Portanto, a Sagrada Escritura é recomendada na sua palavra proposta por
três razões: – primeiro por sua autoridade, pela qual ela converte, quando
diz: «Este é o livro dos mandamentos de
Deus»; – segundo pela verdade eterna,
por meio da qual ela ensina, quando diz:
«é a lei que dura para sempre»; – terceiro pela utilidade, quando atrai: Todos
os que a observam alcançarão a vida.
1200. – A autoridade desta Escritura se mostra eficaz por três motivos:
Em primeiro lugar pela origem, porque
Deus é a origem dela. Por isso se diz:
«das Leis de Deus». – «Ele achou todo
o caminho da disciplina» (Bar 3,37). –
«O que primeiro foi anuncia-do pelo
Senhor, isto foi confirmado em nós por
aqueles que o ouviram» (Hebr 2,3). A
este autor certamente se deve crer infalivelmente. – Depois, por causa da
condição da sua natureza, porque ela é a
verdade: «Eu sou o caminho, a verdade
e a vida» (Jo 14,4). – Depois, por causa
da plenitude da ciência: «Ó grandeza
das riquezas da sabedoria e ciência de
Deus» (Rom 11,33). – Enfim, por causa
da força das palavras: «A palavra de
Deus é viva e eficaz, mais penetrante
que toda espada de dois gumes» (Hebr
4,12).
Secundo, ostenditur efficax ex
necessitate quam scilicet imponit,
Marc. ult. [16]: Qui autem non crediderit condemnabitur, etc. Unde
per modum praecepti veritas Sacrae
Scripturae proponitur; unde dicit:
Manda­torum Dei. Quae quidem
mandata intel­lectum – per fidem
dirigunt, Ioan. XIV [1]: Creditis
in Deum [et in me credite]; – per
dilectionem affectum informant,
Ioan. XV [12]: Hoc est praeceptum meum [ut dili­gatis invicem,
sicut dilexi vos]; – quod ad actum
et executionem inducunt: [Luc.
X,28]: Hoc fac, et vives.
Tertio, ostenditur efficax ex dictorum uniformitate, quia omnes
qui sacram do­ctrinam tradiderunt,
idem docuerunt, I Cor. XV [2]: Sive
autem (4) ego, sive illi [sic praedicamus, et sic credidistis]. Et hoc
ne­cesse est quia omnes habuerunt
– unum magistrum, Matth. XXIII
[8]: Unus est ma­gister vester, etc.;
– unum habuerunt spiritum, II Cor.
XII [18]: Nonne eodem spiritu
ambulavimus? – unum insuper af­
fectum, Act. IV [32]: Multitudinis
credentium una erat anima et cor
unum in Deo (5). Et ideo in signum
uniformitatis doctrina di­citur singulariter: Hic est liber.
1201. – Veritas Scripturae
huius do­ctrinae est immutabilis
Em segundo lugar ela se mostra
eficaz pela necessidade que ela impõe:
«quem não acreditar, será condenado
etc.» (Mc 16,16). Por isso, a verdade
da Sagrada Escritura se propõe à maneira de preceito; por isso ela diz: «Dos
mandamentos de Deus». Estes mandamentos dirigem certamente o intelecto – pela fé: «Acreditais em Deus,
acreditai também em mim» (Jo 14,1).
– Eles formam o afeto pelo amor: «Este
é o meu mandamento, que vos ameis
uns aos outros como eu vos amei» (Jo
15,12). – Isto porque leva para a ação
e execução: «Faze isto e viverás» (Lc
10,28).
Em terceiro lugar se mostra eficaz
pela uniformidade das palavras, porque todos que transmitiram a Sagrada
Doutrina, ensinaram a mesma coisa:
«Tanto eu como eles, assim é que pregamos; e assim é que vós acreditastes»
(1 Cor 15,2). Isto é necessário porque
todos tiveram – um único mestre: «Um
só é o vosso mestre etc.» (Mt 23,8),
tiveram – um único espírito: «Não andamos segundo o mesmo espírito?» (2
Cor 12,18), e sobretudo tiveram – um
único amor: «A multidão dos fiéis tinha um só coração e uma só alma em
Deus» (At 4,32). Por isso, como sinal
de uniformidade da doutrina se diz em
singular: «este é o livro».
1201. – A verdade da Escritura desta
doutrina é imutável e eterna. Daí segue:
Vulg.: habet enim.
4
Vulg.: Multitudinis autem credentium erat cor unum et anima una.
5
35
et aeterna. Unde sequitur: Et lex
quae est in aeternum. – Luc. XXI
[33]: Caelum et terra transibunt;
verba autem mea non transíbunt.
Permanet autem in aeternum haec
lex propter tria: – Primo, propter
legislatoris potestatem, Isa. XIV
[27]: Deus (6) exercituum decrevit,
[et quis poterit infirmare?]. – Secundo, propter eius immutabilitatem, Malach. III [6]: Ego Deus
et non mutor. Num. XXIII [19]:
Non est Dominus (7) quasi homo
[ut mentiatur; nec ut filius hominis ut mu­tetur]. – Tertio, propter.
legis veritatem, Psal. [CXVIII,
86]: Omnia mandata tua ve­ritas
(8). Prov. XII [19]: Labium veritatis [firmum erit in perpetuum].
III Esdr. IV [38]: Veritas manet et
invalescit in aeter­num.
1202. – Utilitas autem huius
Scri­pturae est maxima, Isai. XLVIII [17]: Ego Dominus Deus tuus
docens te utilia. Unde sequitur:
Omnes qui tenent eam pervenient
ad vitam; quae quidem triplex est.
– Prima est vita gratiae, ad quam
Sacra Scriptura disponit, Ioan. VI
[64]: Verba quae ego locutus sum
vobis, spiritus et vita sunt. Per
hanc enim vitam spiritus Deo vivit, Gal. II [20]: Vivo autem, iam
non ego: Vivit vero in me Christus.
Vulg.: Dominus enim.
6
Vulg.: Deus …
7
Trad. nova: Omnia mandata tua sunt
fidelia.
8
36
«E é a lei que dura para sempre». – «O
Céu e a Terra passarão, mas as minhas
palavras não passarão» (Lc 21,33). Esta
lei permanece para sempre por três motivos: – Primeiro, por causa do poder
do legislador: «O Deus dos exércitos
decidiu, e quem poderia tirar-lhe o poder?» (Is 14,27). – Segundo, por causa
da sua imutabilidade: «Eu sou Deus, e
não mudo» (Mal 3,6). «O Senhor não
é como o homem para que minta; nem
como o filho do homem para que se
mude» (Num 23,19). – Terceiro por
causa da verdade da Lei: «Todas as tuas
ordens são verdade» (Sl 119,86). «O
lábio de (= que fala a) verdade estará
firme para sempre» (Prov 12,19). «A
verdade permanece e se consolida para
sempre» (3 Esdr 4,38).
1202. – A utilidade desta Escritura
é máxima: «Eu, o Senhor teu Deus, te
ensino coisas úteis» (Is 48,17). Daí segue: «Todos que a possuem chegarão à
vida»; esta vida é triple: – Primeiro: é
a vida da graça, para a qual a Sagrada
Escritura dispõe: «As palavras que eu
vos disse são espírito e vida» (Jo 6,64).
Por esta vida, pois, o espírito vive para
Deus: «Já não sou eu que vivo, é Cristo
que vive em mim» (Gal 2,20). – Se-
– Secunda est vita iustitiae in operibus consistens, ad quam Sacra
Scriptura dirigit, Psal. [CXVIII,
93]: In aeternum non obliviscar
iusti­ficationes tuas; quia in eis
vivificasti me (9).– Tertia est vita
gloriae, quam Sacra Scriptura promittit et ad eam perducit, Ioan. VI
[69]: Domine, ad quem ibimus?
Verba vitae aeterna habes. Eodem,
XX [31]: Haec autem scripta sunt
ut credatis; et ut credentes vitam
habeatis in nomine ipsius (10).
gundo, é a vida da justiça que consiste
nas obras para as quais a Sagrada Escritura dirige: «Nunca esquecerei a tua
justiça; porque nela me deste a vida»
(Sl 119,93). – Terceiro, é a vida da glória que a Sagrada Escritura promete e
para a qual ela conduz: «Senhor, para
quem iremos? Tu tens palavras da vida
eterna» (Jo 6,69). «Estas coisas foram
escritas para que creiais, e que acreditando tenhais a vida no seu nome»
(Jo 20,31).
II. PARTITIO SACRAE
SCRIPTURAE
II. A DIVISÃO DA SAGRADA
ESCRITURA
1203. – Ad hanc autem vitam
Sacra Scriptura perducit dupliciter: scilicet, prae­c ipiendo et
adiuvando. – Praecipiendo per
mandata quae proponit, quod pertinet ad Vetus Testamentum, Eccli.
XXIV [33]: Legem mandavit nobis
(11) Moyses. – Adiuvando autem
per donum gratiae quod legislator
largitur, quod pertinet ad Novum
Testa­mentum. Ioan. I [I7]: Lex per
Moysen data est, gratia et veritas
per Iesum Christum facta est.
Unde tota Sacra Scriptura in
duas partes principaliter dividitur,
scilicet, in Vetus et Novum Tes-
1203. – Para esta vida a Sagrada
Escritura conduz por dois modos:
mandando e ajudando. – Mandando
pelos mandamentos que propõe, o que
pertence ao Antigo Testamento: «A Lei
Moisés nos ordenou» (Eclo 24,33). –
Ajudando, porém, pelo dom da graça
que o legislador concede, o que faz
parte do Novo Testamento: «A Lei foi
dada por Moisés, a graça e a verdade
vieram por Jesus Cristo» (Jo 1,17).
Portanto, a Sagrada Escritura inteira
se divide principalmente em duas partes, no Antigo e no Novo Testamento;
9
Trad. nova: In aeternum non obliviscar praecepta tua, quia ipsis dedisti mihi
vitam.
10
Vulg.: ... in nomine eius.
Vulg.: non habet nobis.
11
37
tamentum ;
quae duo tanguntur
Matth. XIII [52]: Omnis scriba
doctus in regno caelorum similis
est ei (12) qui profert de thesauro
suo nova et vetera. Et Cant. VII
[13]: Omnia poma, nova [et vetera, dilecte mi, servavi tibi].
1204. – Vetus autem Testamentum dividitur secundum doctrinam
mandatorum. Est enim duplex
mandatum, scilicet coa­ctorium et
monitorium. Coactorium est mandatum regis qui potest transgressores punire, Prov. XX [2]: Sicut
rugitus leonis, [ita et terror regis].
Sed monitorium est prae-ceptum
patris qui habet erudire, Eccli.
VII [25]: Filii tibi sunt? erudi
illos. Praeceptum autem regis est
duplex, scilicet unum, quo legem
statuit; aliud quod ad observantiam
statutae legis inducit, quod consuevit per suos praecones et nuntios
promulgare. Et sic distinguuntur
tria praecepta, scilicet regis, praeconis et patris. Et secundum haec
iria Vetus Testamentum dividitur
in tres partes, secundum Hieronymum in Prologo libri Regum [PL
28,598-600].
Prima pars continetur in lege,
quae est quasi praeceptum ab ipso
rege propositum, Isai. XXXIII
Vulg.: similis est homini patrifamilias qui profert etc.
12
38
ambos se tocam: «Todo escriba, instruído no reino dos céus, é semelhante
àquele que tira do seu tesouro coisas novas e antigas» (Mt 13,52). E: «Todos os
frutos, novos e velhos, conservei para
ti, ó meu amado» (Cant 7,13).
1204. – O Antigo Testamento se
divide segundo a doutrina dos mandamentos. Existe, pois, um mandamento
duplo, um que constrange e outro que
admoesta. O mandamento que constrange é o mandamento do rei, que
pode punir os transgressores: «Como
o rugido do leão, assim é o terror do rei»
(Prov 20,2). Mas o mandamento que
admoesta é o preceito do pai que educa:
«Tens filhos? Educa-os!» (Eclo 7,25). O
preceito do rei é duplo; um, com o qual
ele deve constituir a lei; o outro, que
leva para a obediência à lei constituída
e o que ele costumava promulgar por
meio dos seus arautos e mensageiros.
Deste modo distinguem-se três preceitos, os do rei, do arauto e do pai. E
segundo estes três o Antigo Testamento
é dividido em três partes, segundo Jerônimo no prólogo ao livro dos Reis (PL
28,598-600).
A primeira parte é contida na lei que
é proposta quase como preceito pelo
[22]: Dominus rex noster, Dominus
legifer noster (13).
Secunda continetur in Prophetis, qui fuerunt quasi nuntii et praecones Dei ex persona Dei populo
loquentes et ad ob­servantiam legis
inducentes, Aggaei I [13]: Dixit
Aggaeus (14), de nuntiis Domini.
próprio rei: «O Senhor é nosso rei, o
Senhor é nosso legislador» (Is 33,22).
Tertia continetur in agiographis,
qui Spi­ritu Sancto inspirati locuti
sunt non tamen ex parte Domini,
sed quasi ex se ipsis. Unde agiographi dicuntur quasi sacri scri­
ptores, vel quasi sacra scribentes, ab agios quod est sacrum et
graphia quod est scriptura: et sic
praecepta quae in eis conti­nentur
sunt quasi paterna. Ut patet Prov.
VI [20]: Fili mi, custodi (15) praecepta patris tui, etc.
A terceira parte é contida nos hagiógrafos, que falaram inspirados pelo
Espírito Santo, não, porém, falando da
parte do Senhor, mas quase de si mesmos. Por isso, os hagiógrafos são chamados escritores santos ou escritores
de coisas santas, de agios, o que significa santo, e graphia, o que significa
escritura. Assim, os preceitos que são
contidos neles são como preceitos paternais. Isto fica evidente de Prov 6,20:
«Meu filho, observa os preceitos do teu
pai», etc.
Ponit tamen Hieronymus [op.
cit., PL 28,601ss.] quartum librorum ordinem, scilicet, apocryphos:
et dicuntur apocryphi ab apo,
quod est valde et cryphon, quod
est obscu­rum, quia de eorum sententiis vel auctoribus dubitatur.
Ecclesia vero catholica quosdam
libros recepit in numero Sanctarum Scriptu­rarum, de quorum
sententiis non dubitatur, sed de
auctoribus. Non quod nesciatur qui
Jerônimo (op. cit., PL 28,601ss) conhece porém um quarto grupo de livros,
os apócrifos: são chamados apócrifos
de apo, o que significa muito e cryphon,
que significa escuro, porque existem dúvidas acerca do conteúdo e dos autores
deles. A Igreja católica, pelo contrário,
recebeu alguns daqueles livros no catálogo das Sagradas Escrituras, de cujo
conteúdo não existem dúvidas, mas
sim dos autores. Não que não se saiba
quem eram os autores daqueles livros,
A segunda parte é contida nos profetas que eram quase mensageiros e arautos de Deus e falaram ao povo na pessoa
de Deus e o levavam à obediência da
lei: «Disse Ageu, um dos mensageiros
do Senhor» (Ag 1,13).
13
Vulg.: Dominus legifer noster, Dominus rex noster.
14
Vulg.: addit nuntius Domini.
15
Vulg.: Conserva, fili mi, etc.
39
fuerint illorum librorum auctores,
sed quia homines illi non fuerunt
notae auctoritatis. Unde ex auctoritate auctorum robur non habent,
sed magis ex Ecclesiae receptione.
Quia tamen idem modus loquendi
in eis et in agiographis observatur,
ideo simul cum eis computentur
ad praesens.
1205. – Prima autem pars, quae
Legem continet, in duas partes dividitur; secundum quod duplex est
lex, scilicet, publica et privata.
Privata lex est quae uni personae vel familiae imponitur observanda. Et talis lex in Genesi continetur, ut patet de primo praecepto
homini dato, Gen. II [17: De ligno
scientiae boni et mali ne comedas]; et Noe, Gen. IX [4: Carnem
cum sanguine non comedetis]; et
Abrahae: Gen. XVII [9: Custodies
pactum meum et semen tuum post
te in generationibus suis].
Lex autem publica est quae
populo tra­ditur. Lex enim divina
populo Iudaeorum tradita est per
mediatorem, quia non erat idoneus
populus ut immediate a Deo su­
sciperet, Deut. V [5], unde: Ego
sequester fui et medius inter vos
et Dominum (16). Gal. III [19]: Lex
ordinata est [per an­gelos in manu
mediatoris]. Et ideo in le­gislatione
duplex gradus attenditur. – Unus
16
Vulg.: Ego sequester et medius
fui inter Dominum et vos.
40
mas porque eles não eram homens de
reconhecida autoridade. Por isso, eles
não têm a sua força pela autoridade dos
autores, mas antes pela recepção pela
Igreja. Porque neles se pode observar
a mesma maneira de falar como nos
hagiógrafos, por isso eles são considerados junto com eles até ao momento
presente.
1205. – A primeira parte, que contém a Lei, se divide em duas partes,
porque a Lei é dupla: a Lei pública e
privada.
Privada é a lei que é imposta a uma
pessoa ou família a ser observada. Tal
lei encontramos no livro do Gênesis,
como fica evidente acerca do primeiro
preceito dado ao homem: «Da árvore
do conhecimento do bem e do mal não
comas» (Gen 2,17). E a Noé: «Carne
com sangue não comereis» (Gen 9,4).
E a Abraão: «Guarda a minha aliança,
tu e a tua descendência depois de ti nas
suas gerações» (Gen 17,9).
Pública é a Lei que é dada ao povo.
A Lei divina foi dada ao povo dos judeus por um mediador, porque o povo
não era capaz recebe-la diretamente de
Deus: «Eu fui o vosso mediador e estava entre o Senhor e vós» (Dt 5,5). «A
Lei foi ordenada pelos Anjos na mão
de um mediador» (Gal 3,19). Portanto,
na legislação percebemos dois passos.
– Um, pelo qual a Lei vem do Senhor
quo lex a Domino ad mediatorem
pervenit, et hoc pertinet ad tres libros, scilicet: Exodum, Leviticum,
Numeros. Unde fre­quenter in illis
libris legitur: locutus est Deus ad
Moysen. – Secundus gradus est
quo lex per mediatorem populo
exponitur; et hoc pertinet ad Deuteronomium, ut patet ex hoc quod
in eius principio dicitur: Locutus
est Moyses, etc.
Tres autem libri praedicti distinguuntur secundum tria in quibus
oportebat po­pulum ordinari: primo
in praeceptis quantum ad iudicii
aequitatem, et hoc fit in Exodo;
secundo in sacramentis quantum
ad cultus exhibitionem, et hoc fit in
Le­vitico; tertio in officiis, quantum
ad rei publicae administrationem,
et hoc fit in libro Numerorum.
1206. – Secunda autem pars,
quae est Prophetarum, dividitur
in duas partes, se­cundum quod
nuntius duo debet facere. Debet
enim exponere regis beneficium ut
inclinentur homines ad obediendum; – et debet proponere legis
edictum.
Triplex autem beneficium divinum pro­phetae populo exposuerunt
– primo hae­reditatis consecutionem, et hoc in Iosue, de quo Eccli.
XLVI [1]: Fortis in bello Iosue (17);
– secundo hostium destructionem,
et hoc in libro Iudicum, de quorum
17
para um mediador, e isto se realiza em
três livros: no livro do Êxodo, Levítico
e Números. Por isso, nestes livros se lê
muitas vezes: «Deus falou a Moisés». –
O segundo passo é que a Lei é explicada
ao povo por meio do mediador, e isto
se realiza no Deuteronômio. Isto fica
evidente pelo fato que no começo dele
se diz: «E Moisés falou», etc.
Os três livros mencionados se diferenciam segundo três modos, segundo
os quais se devia mandar o povo: primeiro, nos preceitos quanto à justiça do
julgamento, e isto é o tema no Êxodo;
segundo, nos sacramentos quanto à realização do culto, e isto é o tema no
Levítico; terceiro, nos ofícios quanto à
administração do estado, e isto é o tema
no livro dos Números.
1206. – A segunda parte, a dos proé dividida em duas partes, de
acordo com os dois deveres do mensageiro. Ele deve, pois, expor o benefício
do rei a fim de que as pessoas sejam
dispostas para obedecer – e ele deve
expor as palavras da Lei.
fetas,
Triple é o benefício divino que os
profetas expuseram ao povo: – primeiro
a aquisição da herança, o que se conta
no livro de Josué, como nos transmite
Eclo 46,1: «Forte na guerra era Josué».
– Segundo, a destruição dos inimigos,
o que se conta no livro dos Juízes, de
Vulg.: Iesus Nave.
41
destructione in Psalmo [LXXXII,
10]: Fiat illis sicut Madian et Sisarae (18); - tertio populi exaltationem; quae quidem est duplex,
scilicet: privata unius personae, et
de hoc in Ruth; et publica quae est
totius populi, usque ad regiam dignitatem, et de hoc in libro Regum:
quod beneficium Deus improperat
eis Ezech. XVI [13]: Decora facta
es [vehementer]. Hi enim libri,
secundum Hieronymum in ordine
prophetarum po­nuntur.
In aliis autem libris qui communiter Prophetarum dicuntur, prophetae posuerunt divina edicta ad
legis observationem. Et hoc dicitur, – primo in communi; et hoc in
prophetis maioribus qui ad totum
po­pulum mittebantur et ad totius
legis ob­servantiam inducebant; –
secundo in par­ticulari; et hoc in
prophetis minoribus, quorum diversi, propter diversa ad spe­ciales
gentes mittebantur, sicut Osee ad
decem tribus; Ioel [ad senes Israel?]; Ionas ad Ninivitas; et sic
de aliis.
Prophetae autem maiores dividuntur se­cundum ea quibus ad observantiam legis prophetae populum induxerunt: scilicet blandiendo
per promissiones beneficiorum;
– terrendo per comminationem
Trad. Nova : Fac illis sicut Madian,
sicut Sisarae.
18
42
cuja destruição se fala no Salmo 82,10:
«Aconteça com eles como a Madian e
Sísara». – Terceiro, a exaltação do povo,
que é dupla, a saber: privada, quando
se refere a uma pessoa, como no livro
de Ruth; e pública, quando se refere ao
povo inteiro, até a dignidade real, como
no livro dos Reis. Este benefício Deus
lhes concede conforme Ez 16,13: «Tu
foste muito adornada». Estes livros,
pois, segundo Jerônimo, são colocados
na categoria dos profetas.
Nos outros livros, porém, que em
geral são chamados livros dos profetas, os profetas expuseram os decretos
divinos para a observância da lei. Isto
é dito, – em primeiro lugar, de forma
geral, o que se conta nos livros dos profetas maiores que foram enviados ao
povo inteiro e conduziram para a observância da lei inteira. – Em segundo
lugar, isto é dito de forma particular,
o que se conta nos livros dos profetas
menores, dos quais os diversos livros
foram enviados a povos particulares por
causa de assuntos diversos, como Oseías escreve para as dez tribos, Joel (aos
anciãos de Israel?), Jonas aos ninivitas;
e assim também os outros.
Os profetas maiores se dividem
segundo aquilo pelo qual os profetas
levaram o povo para a observância da
Lei: seja atraindo através de promessas
de benefícios, – seja assustando através da ameaça de castigos, – ou ainda
paenarum; – arguendo per vituperationes peccatorum. Quamvis
haec tria in singulis prophetarum
inveniantur, tamen Isaias principaliter blan­ditur; de quo dicitur
Eccli. XLVIII [27]: Consolatus est
lugentes [in Sion]; Ieremias vero
comminatur, unde dicebat: De industria dissolvit manus [virorum
bellantium] Ier. XXXVIII [4]; sed
Ezechiel arguit et vi­tuperat, Ezech.
XVI [3]: Pater tuus amor­rhaeus
[et mater tua cethaea].
Potest tamen aliter distingui,
ut dicatur quod Isaias praenunciat
principaliter In­carnationis mysterium, unde tempore ad­ventus
in Ecclesia legitur; Ieremias vero
mysterium Passionis, unde legitur tempore Passionis; Ezechiel
mysterium Resurre­ctionis, unde
in resurrectione ossium et templi
reparatione librum suum finit; Daniel autem secundum quod inter
prophetas computatur ex hoc quod
spiritu prophetico praedixit futura,
quamvis non ex persona Domini
populo loqueretur, prosequitur
de divinitate Christi, ut quatuor
prophetae quatuor evangelistis
respondeant, vel etiam de advocatione ad iudicium.
1207. – Tertia autem pars, quae
con­t inet A giographos et A po cryphos libros, in duo distinguitur, secundum duo quibus patres
instruunt filios ad virtutem, scilicet verbo et facto; quia exempla
in moralibus non minus valent
discutindo através da repreensão dos
pecados. Ainda que estes três modos se
encontrem nesses profetas, todavia Isaías principalmente atrai; dele diz Eclo
48,27: «Ele consolou os que estavam
de luto em Sião». Jeremias, porém,
ameaça, por isso disse: «Ele relaxou as
mãos dos guerreiros» (Jer 38,4). Ezequiel, ao invés, discute e repreende: «O
teu pai era amorreu e a tua mãe hitita»
(Ez 16,3).
Também se pode distinguir de uma
outra forma. Diz-se que Isaías anuncia
principalmente o mistério da Encarnação, por isso se lê na Igreja no tempo
do advento; Jeremias, porém, anuncia
o mistério da Paixão, por isso se lê no
tempo da Paixão; Ezequiel anuncia o
mistério da Ressurreição, porque o seu
livro termina com a ressurreição dos
ossos e a reparação do templo; Daniel,
porém, é considerado como profeta porque com espírito profético anunciou as
coisas futuras; embora não falasse na
pessoa do Senhor ao povo, ele trata
da divindade de Cristo – deste modo
os quatro profetas correspondem aos
quatro evangelistas – ou também ao
chamado para o julgamento.
1207. – A terceira parte, que contém
os livros hagiógrafos e apócrifos, é dividida em duas partes, segundo os dois
modos como os pais educam os filhos
para a virtude, ou seja, pela palavra
e pelo exemplo; porque nas coisas de
moral os exemplos não valem menos
43
quam verba. Quaedam autem instruunt facto tantum; – quaedam
verbo tantum; – quaedam verbo
et facto.
Facto autem dupliciter. – Uno
modo instruendo de futuro ad cautelam; et hoc est in Iosue, quem
Hieronymus inter agiographos
ponit. Quamvis enim pro­pheta ex
dono prophetiae esset, non tamen
ex officio; quia non fuit a Domino
missus ad prophetandum populo.
Unde quod Sap. VIII [8] dicitur,
de eo intelligi potest: Signa et
monstra scit [antequam fiant]. –
Alio modo narrando ad exemplum
virtutis praeterita. Virtutes autem
principales sunt quattuor, scilicet:
iustitia, qua est bonum commune,
cuius exemplum ponitur in Paralipomenis, in quo totius populi status describitur qui per iustitiam gubernatur. Secunda est temperantia,
cuius exemplum ponitur in Iudith;
unde Hieronymus [Praef. in lib.
Iudith, PL 29,41]: Ac­cipite Iudith
viduam castitatis exemplum. Iudith XV [2]: Fecisti viriliter (19) eo
quod castitatem amaveris. Tertia
est fortitudo, cui duo competunt,
scilicet, aggredi; et quantum ad
hoc ponitur exemplum in libro
Machabaeorum; et sustinere et
quan­tum ad hoc ponitur exemplum
in Thobia, Thob. II [12]: Hanc
autem tentationem [ideo permisit
Vulg.: addit et confortatum est cor
tuum.
19
44
que as palavras. Alguns ensinam somente pelo exemplo, outros somente
pela palavra, outros pela palavra e pelo
exemplo.
Pelo exemplo ensinam em dois modos: – num modo, instruindo sobre o
futuro para a precaução; isto encontramos em Josué, a quem Jerônimo coloca
entre os hagiógrafos. Embora ele seja
profeta pelo dom da profecia, porém
não o é pelo oficio, porque ele não foi
enviado pelo Senhor para profetizar
para o povo. Por isso, o que o livro da
Sabedoria (8,8) diz, se pode aplicar a
ele: «Ele conhece sinais e portentos
antes que eles aconteçam». – No outro
modo, narrando o passa-do como exemplo de virtude. As virtudes principais
são quatro: a justiça, que se refere ao
bem comum e cujo exemplo encontramos nos livros das Crônicas, nos quais
se descreve o estado do povo inteiro,
que é governado pela justiça. A segunda
virtude é a temperança, cujo exemplo
encontramos no livro de Judite, como
explica Jerônimo (Praef. In lib. Iudith,
PL 29,41): Aceitai a viúva Judite como
exemplo de castidade. «Agiste corajosamente porque amaste a castidade» (Jdt
15,2). A terceira virtude é a fortaleza,
à qual pertencem dois aspectos: Atacar:
disto temos um exemplo no livro dos
Macabeus; e suportar: disto temos um
exemplo em Tobias: «Deus permitiu,
que esta provação viesse sobre ele, para
que ele dê à sua descendência um exem-
Dominus evenire illi, ut posteris
daretur exemplum patientiae eius].
Quarta est prudentia, cuius est obviare insidiis; et quantum ad hoc
ponitur exemplum eius in Esdra. In
illo enim libro ostenditur quomodo
Esdras et Neemias et alii principes prudenter caverunt insidias
inimicorum volentium impedire
aedificationem templi et civitatis.
Est etiam prudentiae sagaciter repellere violentias; et quantum ad
hoc datur eius exemplum in libro
Hester: ubi ostenditur quomodo
Mardocheus et Hester Aman potentissimi fraudes eliserunt.
Libri autem agiographi et apocryphi, qui tantum instruunt verbo,
distinguuntur secundum quod verbum dupliciter ad in­structionem
operatur: – uno modo petendo
sapientiae donum, Sap. VII [7]:
Optavi et datus est mihi sensus
(20), invocavi et venit in me spiritus sapientiae. Et ad instructionem
operatur Psalterium, per modum
orationis Deo loquens. – Secundo
modo sapientiam docendo, et hoc
dupliciter, secundum duplex opus
sapientis; quorum unum est men­
tientem manifestare posse: et quantum ad hoc est liber Iob, qui per
modum dispu­tationis errores elidit,
Iob XIII [3-4]: Dispu­tare cum Deo
cupio [prius vos ostendens fabricatores mendacii et cultores perversorum dogmatum]. Aliud opus eius
20
plo de paciência» (Tob 11,12). A quarta
virtude é a prudência, da qual é próprio
enfrentar as ciladas; disto encontramos
um exemplo em Esdras. Naquele livro,
pois, se mostra como Esdras e Neemias
e os outros príncipes se protegeram com
prudência contra as ciladas dos inimigos
que queriam impedir a construção do
templo e da cidade. É também próprio
à prudência, repelir com sagacidade as
violências, e disso se dá um exemplo no
livro de Ester, onde é mostrado como
Mardoqueu e Ester aniquilaram as tramas do poderosíssimo Aman.
Os livros hagiógrafos e apócrifos,
que somente instruem pela palavra, são
divididos segundo seu duplo aspecto, da
mesma forma como a palavra contribui
para a instrução: – um modo, pedindo o
dom da sabedoria: «Pedi e me foi dado
inteligência, invoquei e veio para mim o
espírito da sabedoria» (Sab 7,7). O Saltério contribui para a instrução, porque
fala a Deus em forma de oração. – O
segundo modo é ensinando a sabedoria,
de novo em duas maneiras, segundo a
dupla obra do sábio: uma é poder manifestar aquele que mente, como no
livro de Jó, que refuta os erros pela
disputa: «Quero disputar com Deus,
mostrando que vós sois fabricadores
de mentira e cultivadores de dogmas
perversos» (Jó 13,3-4). A outra obra é
não mentir com respeito às coisas que
se sabe; desta forma somos instruídos
Vulg.: addit et.
45
46
est non men­tiri de quibus novit; et
sic dupliciter in­struimur: quia vel
commendatur nobis sa­pientia, et
hoc in libro Sapientiae; vel sapientiae praecepta proponuntur, et hoc
in tribus libris Salomonis: qui quidem distinguuntur secundum tres
gradus vir­tutum quos Plotinus [Ennead. I, 1.II, cap. 2-7] distinguit;
quia praecepta sapien­tiae non nisi
de actibus virtutem esse de­bent. In
primo gradu, secundum eum, sunt
virtutes politicae, quibus homo
moderate re­bus mundi utitur et inter homines conver­satur; et secundum hoc est liber Prover­biorum. In
secundo gradu sunt virtutes purgatoriae; quibus homo se a rebus
mundi exuit per contemptum; et
secundum hoc est Ecclesiastes qui
ad contemptum mundi ordinatur,
ut patet per Hieronymum in Prologo [Praef., PL 23,1061]. In tertio
gradu sunt virtutes purgati animi,
qui­bus homo, saeculi curis penitus
calcatis, in sola sapientiae contemplatione delectatur; et quantum ad
hoc sunt Cantica. In quarto autem
gradu sunt virtutes exemplares in
Deo existentes, de quibus praecepta sapientiae non dantur, sed
magis derivantur ab eis.
num modo duplo: porque ou a sabedoria
nos é recomendada, como no livro da
Sabedoria, ou os preceitos da sabedoria
são propostos, como nos três livros de
Salomão: estes por sua vez são distintos
segundo os três graus de virtudes que
Plotinus distingue (Ennead. I,1.II, cap
2-7); porque os preceitos da sabedoria
devem referir-se somente a atos de virtude. No primeiro grau, segundo ele,
encontramos as virtudes políticas, pelas
quais a pessoa usa as coisas do mundo
com moderação e vive no meio dos homens; isto trata o livro dos Provérbios.
No segundo grau encontramos as virtudes purificadoras, pelas quais a pessoa
se despoja das coisas do mundo pelo
desprezo; isto encontramos no livro do
Eclesiastes que se dirige para o desprezo
do mundo, como explica Jerônimo no
prólogo (Praef., PL 23,1061). No terceiro grau encontramos as virtudes da
alma purificada, pelas quais a pessoa se
compraz somente na contemplação da
sabedoria, depois de ter calcado completamente com os pés as preocupações
do mundo; isto encontramos no livro
do Cântico dos Cânticos. Num quarto
grau encontramos as virtudes exemplares que existem em Deus, sobre as quais
não se dão preceitos de sabedoria, mas
das quais antes se derivam os preceitos
da sabedoria.
Verbo autem simul et facto instruit Ecclesiasticus. Unde praecepta sapientiae qui proposuit, in
laude patrum librum suum terminavit, ut patet a XLIV capitulo et
deinceps.
Pela palavra e pelo exemplo ao
mesmo tempo, instrui o Eclesiástico.
Por isso, ele propôs os preceitos da
sabedoria e terminou seu livro com o
louvor dos patriarcas, como se pode ver
a partir do capítulo 44ss.
1208. – Novum autem Testaquod ad vitam aeternam
ordinat, non solum per praecepta,
sed per gratiae dona, dividitur in
tres partes. – In prima agitur de
gratiae origine: et hoc in Evangeliis: – In secunda de gratiae virtute:
et hoc in Epistolis Pauli; unde in
principio a virtute Evangelii incipit
dicens: Virtus Dei est in salutem
omni credenti. Rom. I [16]. – In
tertia agitur de virtutis praedictae
exe­cutione: et hoc in reliquis libris
Novi Testamenti.
Origo autem gratiae Christus
est, Ioan. I [16-17]: De plenitudine
eius omnes acce­pimus, gratiam pro
gratia (21), [quia Lex per Moysen
data est, gratia et veritas per Iesum Christum facta est]. In Christo
autem est considerare duplicem
naturam, scilicet: – divinam: et de
hoc est principaliter Evangelium
Ioannis, unde incipit: In principio erat Verbum [et Verbum eras
apud Deum, et Deus erat Verbum];
– et humanam: et de hac principaliter tractant alii Evangelistae,
qui distinguuntur secundum tres
dignitates, quae Christo homini
competunt. De ipso enim quantum
ad dignitatem regiam determinat
Matthaeus; unde in prin­cipio sui
evangelii eum secundum carnem
a regibus descendisse ostendit et
a Magis regibus adoratum. Sed
mentum,
1208. – O Novo Testamento, porém,
que orienta para a vida eterna, se divide
em três partes, não somente pelos preceitos, mas pelos dons da graça. – Na
primeira parte trata da origem da graça;
isto se dá nos evangelhos. – Na segunda
parte trata da força da graça; isto se dá
nas cartas de São Paulo; por isso, ele
começa no início a partir da força do
evangelho: «A força de Deus é para a
salvação de todo fiel» (Rom 1,16). – A
terceira parte trata da execução da virtude predita, isto é, nos restantes livros
do Novo Testamento.
A origem da graça é Cristo: «Da
sua plenitude todos nós recebemos,
graça por graça, porque a Lei foi dada
por Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo» (Jo 1,16-17).
Em Cristo devemos considerar uma
natureza dupla: – a divina: dela trata
principal-mente o evangelho de João,
que começa: «no início era o Verbo e o
Verbo era junto de Deus e Deus era o
Verbo» – e a humana: dela tratam principalmente os outros evangelistas, que
se distinguem conforme três dignidades, que se encontram em Cristo como
homem. Da dignidade real de Cristo
trata Mateus, por isso ele o mostra no
início do seu evangelho na sua descendência dos reis segundo a carne e
adorado pelos reis magos. Da dignidade
Vulg.: De plenitudine eius nos omnes accepimus et gratiam pro gratia etc.
21
47
48
quantum ad di­gnitatem propheticam determinat de eo Marcus;
unde a praedicatione eius evan­
gelium incipit. Quantum vero ad
sacerdo­talem dignitatem determinat de eo Lucas; unde a Templo
incipit et a sacerdotio, et in Templo finit evangelium, et frequenter
circa Templum versatur, ut dicit
quaedam Glossa Luc. II [46] super
illud: Invenerunt eum (22) in templo
[sedentem in medio doctorum].
Vel aliter, ut dicatur quod
Matthaeus determinat de Christo
principaliter quantum ad mysterium Incarnationis; et ideo in figura hominis describitur; – Lucas
quan­tum ad mysterium Passionis;
et ideo descri­bitur in figura bovis,
quod est animal immolatitium; –
Marcos vero quantum ad victoriam
Resurrectionis; et ideo descri­bitur
in figura leonis; – Iohannes vero,
qui ad alta divinitatis eius volat,
per aquilam designatur.
[Secunda pars, scilicet, Virtus
gratiae, de qua agitur in EPISTOLIS Pauli, deest in codice, saltem
in texto vulgato] (23).
profética de Cristo trata Marcos, por
isso ele começa o seu evangelho com
a pregação. Da dignidade sacerdotal de
Cristo trata Lucas, por isso ele começa
com o templo e com o sacerdócio, termina o seu evangelho no templo e se
refere frequentemente ao templo, como
diz uma glosa sobre Lc 2,46 a respeito
disso: «Encontraram-no no templo, sentado no meio dos doutores».
Executio autem virtutis gratiae
ostenditur in progressu Ecclesiae,
in quo est tria considerare. – Primo
Ecclesiae initium; et de hoc agitur
in Actibus Apostolorum; unde dicit
Hieronymus: [Praef. in Pentat., PL
A execução da força da graça, porém, se mostra no progresso da Igreja,
na qual se deve considerar três aspectos:
– primeiro, o início da Igreja, do qual
tratam os Atos dos Apóstolos, como
diz Jerônimo: «Os Atos dos Apóstolos
22
Vulg.: habet illum.
23
Adnotatio editoris.
Outra divisão dos evangelhos seria:
Mateus trata de Cristo principalmente
em relação ao mistério da encarnação,
por isso ele é assinalado na figura do
homem; Lucas em relação ao mistério
da Paixão, por isso ele é assinalado na
figura do touro, que é o animal dos sacrifícios; Marcos, porém, em relação à
vitória da Ressurreição, por isso ele é
mostrado na figura de leão; João, porém, que voa às alturas da divindade
dele, é mostrado pela águia.
[A segunda parte, sobre a força da
graça, de que tratam as epístolas de S.
Paulo, falta no códice, pelo menos no
texto publicado (nota do editor).]
28, 177]: Actus Apostolorum nu­dam
videntur sonare historiam et nascentis
Ecclesiae infantiam texere. – Secundo
Ec­clesiae profectum; et ad hunc ordinatur instructio apostolica in Epistolis
canonicis. – Tertio Ecclesiae terminum; in quo totius Sacrae Scripturae
continentiam Apo­calypsis concludit,
quousque Sponsa in thalamum Iesu
Christi ad vitam gloriosam participandam; ad quam nos perducat ipse
Iesus Christus, benedictus in saecula
saecu­lorum. Amen.
parecem mostrar uma história pura e
tecer a infância da Igreja nascente»1.
– Segundo, o progresso da Igreja; para
isto se orienta a instrução apostólica nas
epístolas canônicas. – Terceiro, o fim da
Igreja, com o qual termina o Apocalipse
o conteúdo da Sagrada Escritura inteira,
até lá onde a esposa entra no tálamo
de Jesus Cristo para participar na vida
gloriosa; para esta vida o próprio Jesus
Cristo nos conduz, que é bendito pelos
séculos dos séculos. Amém.
Praef. in Pentat., PL 28,177.
1
C. Estudos sobre os comentários bíblicos de Santo
Tomás
Achamos oportuno de deixar seguir a breve lista dos estudos sobre os
comentários bíblicos do Santo Doutor da Igreja.
Para traduções das Obras bíblicas de Santo Tomás em vernáculo cf.
Torrel, 393-397; além dessas indicações encontramos ainda:
Catena Áurea. Exposicion de los cuatro Evangelios, Cursos de Cultura Católica,
Buenos Aires 1946-1948.
The Literal Exposition on Job. A Scriptural Commentary Concerning Providence, The American Academy of Religion, Scholar Press Atlanta,
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53

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