Após a Tempestade - Editora Novo Conceito

Transcrição

Após a Tempestade - Editora Novo Conceito
Karen White
Após a
Tempestade
Ela teve sua vida transfor mada por uma tragédia.
Mas a vida oferecerá um novo começo.
Tradução
Frank de Oliveira
Helena Mar ia Nascimento
Copyright © Harley House Books, LLC, 2011
Conversation Guide copyright © Penguin Group (USA), Inc., 2011
Copyright © 2013 Editora Novo Conceito
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução de toda ou parte em qualquer
forma. Esta edição foi publicada sob acordo com NAL Signet, membro de
Penguin Group (USA) Inc.
Esta é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos
reais é mera coincidência.
1ª Impressão — 2013
Edição: Edgar Costa Silva
Produção Editorial: Alline Salles, Lívia Fernandes, Tamires Cianci
Preparação de Texto: Solange Monaco
Revisão de Texto: Camila Fernandes
Diagramação: Vanúcia Santos
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
White, Karen
Após a tempestade / Karen White; tradução Frank de Oliveira,
Helena Maria Nascimento. -- Ribeirão Preto, SP : Novo Conceito
Editora, 2013.
Título original: The beach trees.
ISBN 978-85-8163-223-0
1. Ficção norte-americana I. Título.
12-14195
CDD-813
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura norte-americana 813
Rua Dr. Hugo Fortes, 1.885 — Parque Industrial Lagoinha
14095-260 — Ribeirão Preto — SP
www.editoranovoconceito.com.br
Este livro é dedicado aos moradores da Costa do Golfo e
de Nova Orleans, que sabem melhor do que ninguém o porquê
de reconstruirmos.
Um imenso obrigado à minha universidade, Tulane
University, e aos queridos amigos nascidos em Nova Orleans,
Nancy Mayer Mencke e Lynda Ryan Casanova, por me
mostrarem a Crescent City, toda a sua beleza e alguns de
seus segredos. Obrigada também a meu pai, William Lloyd
Sconiers, da turma de 1950 da Biloxi High School, por muitas
coisas, mas especialmente pelas histórias de quando cresceu
em Biloxi, no Mississippi, e por me ensinar a pronúncia correta
de “Tchoutacabouffa”.
À amiga e construtora Julie Kenney, da Kenney-Moise,
Inc., por tirar fotografias do golfo no inverno e descrever as
respectivas fauna e flora a longa distância — sem mencionar
os detalhes específicos da construção de uma casa na praia —,
minha eterna gratidão.
E, com certeza, obrigada a Wendy Wax e Susan Crandall,
por todas as ideias e críticas maravilhosas e por lerem este livro
quase no mesmo ritmo em que o escrevi!
Ao divisar a mão cruel do tempo que apaga
A soberba dos ricos graças à decadência da idade;
Quando, por vezes, torres imensas são destruídas,
E do metal o escravo eterno à ira mortal jogado;
Ao ver o mar faminto ganhar
Vantagem sobre os domínios das encostas;
E a terra firme forçar o braço de água,
Equilibrando-se entre ganhos e perdas;
Ao ver essa mudança de situação,
Ou a própria condição confundida, a decair
Assim a ruína me ensinou a pensar:
Que há de vir o tempo e levar meu amor.
Pensamento mortal, sem opção outra
Senão lamentar possuir o que se receia perder.
William Shakespeare, Soneto 64
O pequeno junco, curvado pela força do vento, reergueu-se
logo depois que a tormenta passou.
— Esopo
Julie
Setembro de 2010
M
orte e perda nos devastam. Assim como as lembranças. À semelhança
da batida incessante do rio Mississippi de encontro aos diques, elas
escalam com uma doçura enganosa antes de tomarem conta de nosso
coração e de puxá-lo para baixo. Ao menos, foi o que Mônica me contou. Mônica fora a guardiã das lembranças do grande rio lamacento que
banhava a Crescent City, da água espumante do golfo e da casa branca
luminosa situada à frente dele.
Minha família se estabeleceu em Massachusetts cerca de cem anos
depois dos Peregrinos1, e a criação rígida que tive na Nova Inglaterra deixou-me despreparada e um tanto pasma em relação a Mônica, com seu
sotaque estranho, que enrolava algumas palavras e pronunciava outras mal,
que não era nem sulista nem do Norte, porém uma estranha combinação dos dois. As histórias que contava sobre sua infância eram temperadas
com os altos e baixos do sotaque, quase me fazendo esquecer que ela tinha
Primeiros colonos ingleses que foram para a região da Nova Inglaterra em 1650
(N. E.).
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virado as costas abruptamente para aqueles lugares que existiam de forma
tão vívida em suas lembranças e jamais voltara. Assim como eu, Mônica era
órfã por opção, morando e trabalhando na cidade de Nova York, as duas
tentando empenhadamente fingir que pertencíamos àquele lugar.
Recostei-me no assento do motorista da minivan e, pelo retrovisor,
olhei para Beau, o garotinho órfão de mãe de Mônica; o medo e a ansiedade que vinham me seguindo tomaram conta de novo. Durante os dois
últimos meses, eu passara de uma workaholic — que trabalhava em uma
conceituada casa de leilões, sem nenhuma outra responsabilidade a não ser
o aluguel mensal e as contas do dia a dia — à guardiã de um menino de 5
anos, desempregada e falida, dona de uma minivan caindo aos pedaços e,
aparentemente, proprietária de uma casa de praia em Biloxi, no Mississippi,
com o nome duvidoso de River Song2. Apesar de ter passado quase a vida
inteira colecionando coisas, me sentia confusa para explicar minhas aquisições recentes.
Beau se remexeu e eu me vi torcendo para que ele continuasse dormindo
por pelo menos mais uma hora. Embora tivéssemos parado para pernoitar em Montgomery, no Alabama, ficar escutando horas intermináveis de
música da Disney era demais para meus nervos já em frangalhos. Por quase
20 horas, vínhamos rodando para o sul em uma van fabricada durante o
governo Reagan, passando por cidades e por um cenário que me faziam
pensar se eu não tinha tomado uma direção errada, indo parar em um país
estrangeiro. Depois de recordar algumas das histórias que Mônica me contara sobre ter crescido no Sul, me dei conta de que eu provavelmente tinha.
— Mamãe?
Olhei pelo retrovisor e diretamente para os olhos azuis esverdeados, tão
parecidos com os da mãe, compensados por cílios longos e escuros. Mônica
havia dito que os cílios eram resultado do molho de Tabasco que as mães na
Luisiana colocavam na mamadeira dos bebês para acostumá-los à comida
apimentada. A lembrança me fez sorrir até que Beau olhou de novo para
mim, os olhos repetindo a pergunta.
— Não, queridinho. Sua mamãe não está aqui. Lembra-se do que já
conversamos? Ela está no céu, protegendo você como um anjo, e quer que
eu tome conta de você agora.
2
Em inglês, “Canção do Rio” (N. T.).
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O rosto dele estampava aceitação e eu desviei a vista antes que ele
pudesse ver a fraude que eu realmente era. Eu sabia menos sobre o céu e
os anjos católicos de Mônica do que sobre a criação de crianças pequenas.
Havia algo no conjunto dessa experiência que parecia um treinamento funcional para uma carreira que eu jamais escolhera.
Beau colocou o polegar esquerdo na boca, hábito novo que adquirira logo
depois da morte da mãe. Na mão direita, ele segurava o chapéu vermelho de
tricô de Mônica, que encostava no rosto, e começou a fazer um buraco na
malha. Era seu companheiro constante, junto com as dezenas de carrinhos
Matchbox e os LEGOs que ele cuidava de esconder nos bolsos, na mochila
e na fronha do travesseiro. Embora tivesse apenas cerca de 5 anos, o comportamento dele aparentava ter regredido para quase 3 anos desde a morte
da mãe, e eu não sabia o que fazer primeiro para consertar aquilo. Deixá-lo
ficar com o chapéu da mãe me parecia simplesmente uma necessidade.
— Julie?
Meus olhos encontraram novamente os dele pelo retrovisor.
— Quero fazer xixi.
Dei uma olhada no GPS de segunda mão comprado no eBay. Estávamos
em um lugar chamado D’Iberville, no Mississippi, a apenas 30 minutos do
destino final. Eu podia desenhar mentalmente com grande precisão a casa
de praia que Mônica descrevera: a varanda larga, as cadeiras de balanço, as
colunas que sempre me haviam feito pensar em braços acolhedores. Pisei
mais fundo no acelerador.
— Você pode segurar só mais um pouquinho, Beau? Já estamos quase
chegando.
Franzindo as sobrancelhas, ele assentiu e começou a esfregar o chapéu
da mãe com vontade.
Concentrei-me novamente na estrada à minha frente e comecei a perceber as
placas que indicavam os cassinos de Biloxi: Beau Rivage, Isle of Capri, Treasure
Bay. Nenhuma das histórias de Mônica mencionara os cassinos, levando-me a
imaginar se fora por eles terem sido construídos depois que Mônica partira ou
porque eram tão estranhos à Costa do Golfo quanto seus nomes.
Peguei a saída para Biloxi, deixando a Interestadual 10 e entrando na
Interestadual 110, e o GPS mostrou a van em uma faixa estreita de estrada,
cercada de água pelos dois lados, ao cruzarmos a Back Bay de Biloxi na
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direção da península aninhada entre a baía e o Mississippi Sound. Eu
sentia calor apesar do ar condicionado, o coração batendo um pouco mais
acelerado quando, de repente, me ocorreu a enormidade daquilo que eu
estava fazendo. Penetrar no desconhecido com uma criança de 5 anos de
idade não mais parecia o refúgio que eu imaginara a princípio, quando me
sentara no escritório do advogado na avenida Lexington e ele me entregara
um molho de chaves de casa, além da identificação e do endereço de uma
mulher com o nome incomum de Ray Von Williams. Cerca de 320 quilômetros atrás, tudo tinha parecido tão mais promissor do que a desolação
da situação atual. Morte e perda nos devastam. Suspirei, finalmente começando a entender o que Mônica tinha querido dizer.
O sol de setembro saltava e dançava por sobre a água, enquanto a estrada
retumbava sob os pneus da minivan, o ritmo constante nada fazendo para
dissipar meu batimento cardíaco acelerado. A voz engraçada do GPS, que
Beau apelidara de Gertie, me orientou para pegar o Beach Boulevard, com
o Mississippi Sound correndo paralelo à estrada.
Edifícios e cassinos dominavam a paisagem ao leste. Dirigindo pela
esquerda, passei pelos hotéis e restaurantes com estacionamentos vazios,
devido, presumi, à época do ano. Uma larga faixa de areia unia o braço de
mar à minha esquerda à medida que eu continuava indo para o oeste, onde,
do lado direito da estrada terrenos vazios ocupados apenas por árvores mirradas e degraus que levavam a nada postavam-se ao lado de casas com teto
novo e cercas brilhantes, floridas. As cores chamativas pareciam afrontosas
em contraste com os quintais de grama raquítica e as janelas de compensado dos vizinhos. Um farol alto e branco repousava entre as duas pistas de
sentidos opostos da rodovia, ligeiramente inclinado para o interior.
Lembrei-me de uma foto de Mônica com o irmão e diversos primos
dispostos em pirâmide em frente à base. Uma foto que poderia pertencer
a qualquer álbum de família — qualquer família, menos a minha própria.
Nervosa, reparei na bandeira do GPS sinalizando que me aproximava
do destino à direita e meus pensamentos foram confirmados pela voz entusiasmada de Gertie. Acionando a seta, virei cegamente em uma entrada de
garagem e parei. Tínhamos chegado.
Pisquei, olhando através do para-brisa, para compreender o que estava
vendo; tentando entender se as tábuas lisas das molduras eram novas em
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folha ou esquadrias ocas de uma casa que antes ocupava o lugar, as colunas
da varanda como braços acolhedores.
Sem olhar para baixo, procurei na carteira pelo pedaço de papel em que
tinha escrito o endereço da casa, para me certificar de que havia digitado
corretamente no GPS: Beach Boulevard, 1.100.
Na tentativa de acalmar meu pânico, me virei, encarando Beau com um
sorriso forçado:
— Preciso verificar uma coisa. Você pode tomar conta da van para mim
por um minuto?
Ele hesitou por um segundo antes de concordar e, tirando o polegar da
boca, disse:
— Ainda quero fazer xixi.
Dei uma batidinha no joelho dele por sobre a calça jeans.
— Eu sei. Vou rapidinho, tá?
Deixando a van ligada, desci sobre o passeio de conchas quebradas e bati
a porta atrás de mim com força demais. Senti então o cheiro da água: salgada e algo mais, que eu não conseguia identificar. Algo que me fez lembrar
meu próprio desespero.
Dei um sorriso encorajador para Beau e fui até o ponto de encontro entre
a calçada e a estrada, procurando por uma caixa de correio, um número pintado — qualquer coisa que me dissesse que ali não era onde eu devia estar.
Não que esse mesmo pensamento não tivesse me ocorrido por inúmeras
vezes desde que subira na van em Nova York no dia anterior.
Havia um terreno vazio ao lado, com pequenos degraus de cimento
levando a nada, a não ser o vazio, e uma placa de “Vende-se” pendurada no
quintal estéril e arenoso. No lado oposto a ele, situavam-se uma modesta
cabana de madeira amarela com grama nova e uma calçada varrida há
pouco. Mais importante ainda, tinha uma caixa de correio no final da rua.
Andando rápido, fui até a beira da estrada, espichando a vista até conseguir
enxergar o número da casa: 1.105.
Com a mão servindo de proteção para os olhos, contei os terrenos para
me certificar de que realmente tinha encontrado o número 1.100. Dei uma
olhada na outra rua, perpendicular ao Beach Boulevard, percebi placas de
“Vende-se” em retângulos vazios de terra aninhados ao lado de casas de
meados do século 20 com árvores esquálidas e varandas novas. Um terreno
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vazio próximo à esquina tinha tijolos empilhados despontando do solo arenoso como lápides de túmulos, formando sombras na paisagem.
Ao olhar para trás, para a rua onde tinha deixado a van, localizei o velho
carvalho, a antiga árvore das histórias e das pinturas de Mônica. Antes,
houvera ali um balanço feito de pneu, pendurado em um galho grosso com
ramos folhosos garantindo sombra nas tardes quentes do Mississippi. Ele
ainda estava de pé, mas os galhos se mostravam tosquiados e atrofiados, as
poucas folhas fazendo a árvore parecer a cabeça calva de um homem vaidoso demais para raspar o cabelo todo.
Voltei trôpega para o carro, a enormidade de minha situação colidindo
com o pesar contido e os anos gastos na busca de tudo o que eu havia perdido. Aquilo me cegou, eu mal podia enxergar a maçaneta da porta e tateei
por três vezes antes de, finalmente, conseguir abrir a porta e me jogar no
assento do motorista. Agarrei a direção, estranhamente aliviada por achar
algo sólido nas mãos, imaginando — e esperando — que eu pudesse desmaiar e despertar em algum outro lugar menos ali.
— Julie? — a vozinha veio lá do banco de trás. — Não preciso mais
fazer xixi.
Foi então que senti o cheiro, o fedor ácido da urina, encharcando o
pequeno espaço dentro da van. Fiquei ali sentada, em silêncio pelo choque,
por um longo momento, e aí, comecei a rir, por ser a única coisa que pude
pensar em fazer.
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