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Um concurso literário
Copyright © 2012
Biblioteca Municipal de Americana
Projeto Editorial
Magali Berggren Comelato
Projeto Gráfico
Paula Leite
Ilustrações
Paulo Roberto Masserani
Assessoria Textual
Leonardo Luciano
Marcelo Beso Veronese
Revisão
Lara Milani
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C388
Cem palavras para deixar sem palavras [recurso eletrônico] / [Anderson Monteiro
Geraldo ... et al. ; organização Leonardo Luciano]. - Americana, SP : Adonis, 2012.
recurso digital
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-7913-111-0
(recurso eletrônico)
1. Escritores brasileiros - Miscelânea. 2. Prosa brasileira. 3. Livros eletrônicos. I. Geraldo, Anderson
Monteiro. II. Luciano, Leonardo
12-4586.
CDD: 869.98
CDU: 821.134.3(81)-8
02.07.12 13.07.12
036959
Todos os direitos reservados à Gráfica e Editora Adonis.
Rua do Acetato, 189 - Distrito Industrial Abdo Najar
CEP: 13474-763 - Americana/SP - Tel: (19) 3471.5608
www.graficaadonis.com.br
www.editoraadonis.com.br
Americana-SP, 2012
Realização:
Comissão de seleção
Terezinha Valentina Pedroni
Graduada em Letras e Literatura pela PUC
Marcelo Beso Veronese
Graduado em Letras e Mestre em
Teoria Literária pela UNICAMP
Secretaria de
Cultura e Turismo
Ursulina Bianco Antonio
Bibliotecária Encarregada
Leonardo Luciano
Orientador Cultural
Patrocínio Cultural
www.editoraadonis.com.br
Jeferson Bianco Toledo
Graduado em Letras pela PUC
Uma antologia de concurso literário é resultado
de cooperação. Como obra, pode ser fruída pelo que
é, mas a experiência enriquece se o leitor considerar
essa premissa.
Da ideia ao regulamento, da busca por recursos
à divulgação, das inscrições à seleção, do projeto
à curadoria, da editoração à publicação: contatos,
trocas e relacionamentos.
Pessoalmente, considero este trabalho altamente
sinérgico e estendo minha profunda e sincera gratidão
a todos e a cada um.
Quero registrar também minha adquirida
admiração pelos organizadores de concursos. É um
caminho recheado de peripécias, de deixar sem
palavras.
E como chegamos rápido a 100 palavras, não?
Leonardo Luciano
Sumário
13… Apresentação
14… Vanitas
15… Sósia
16… Boesia
17… Quando se perde a cabeça
18… 144 caracteres para Lucas
19… A banda
20… Amigo virtual
21… Diário
22… garota de juízo, Uma
23… (Des)Acordo
24… 144 caracteres para Júlio
25… À queima-roupa
26… Ageu
27… Amanhã e ontem
28… Animal em trânsito
29… Aqui se fala, aqui se cala
30… assombração, A
31… Ato reflexo
32… Avidez
33… bilhete, O
34… Bondade
35… brilhante ideia do ecologista Júlio Pacheco, A
36… capitão, O
37… casamento, O
38… choro, O
39… chuva, A
40… Começou a chover
41… Deus te abençoe
42… Dia de vestibular
43… discurso, O
44… Disputa
45… Eficiência sem limites
46… Estudo natural
47… exemplo público, O
48… Família no mundo atual
49… Felicidade apocalíptica
50… Flores
51… gente sua, A
52… Guepardo
53… Hoje
54… homem que desconhecia o impossível, O
55… Hora do Brasil
56… ladrão, O
57… Liberdade
58… Louquinha
59… Madrugada
60… Mais vida
61… Mergulho suicida
62… método publicitário, O
63… Momento
64… Montmartre
65… mundo como ele sendo, O
66… Na palma da mão
67… Naquele jardim
68… Ninguém é inocente
69… No hospício
70… Ofélia
71… Ontem
72… Para sempre Leonora
73… Parábola
74… Pé de meia na janela
75… Perseguição!
76… peso das horas, O
77… Pingentes
78… poeta sem nome, O
79… Problemas na linha
80… Quadrilha
81… Rastros de Otelo
82… Retrato do artista quando jovem
83… Romance fantástico
84… Salva-vidas
85… Sedução
86… Ser.vil
87… Síndrome de Korsakoff
88… Sobre a eternidade
89… Sons
90… velho e a janela, O
91… Velhos amigos
92… viagem, A
93… vírgula da questão, A
94… Voltar à realidade
95… Zoon politikon (animal político)
Apresentação
No final de 2011, a Prefeitura de Americana
promoveu o concurso literário “100 palavras para
deixar sem palavras”, aberto a todo o estado de São
Paulo, com o objetivo de estimular a criação literária.
A Secretaria de Cultura e Turismo, por meio da
Biblioteca de Americana, desenvolveu o projeto e
assumiu sua execução, posteriormente agregando
o apoio da Editora Adonis, constante parceira em
iniciativas culturais.
A divulgação, através do site da Biblioteca e de
blogs especializados, resultou em mais de 100 trabalhos inscritos, provenientes de 38 municípios.
Em abril de 2012, a comissão de seleção definiu
os quatro premiados e declarou mais quatro menções honrosas.
Esta antologia, resultado da criatividade dos
escritores participantes, da curadoria conjunta do
júri e da equipe organizadora, bem como do esmerado trabalho editorial da Adonis, documenta esses
esforços em sua forma mais satisfatória: um livro.
Vanitas
14
1o
Sósia
2o
Cecília Hécata
Heine
Despertei com um dos braços esticado, sentindo
a pele fria de Liliya, encolhida no chão, perto de
mim, repleta de escoriações. Desviei o olhar ao
reparar em suas roupas rasgadas, deixando à mostra
seus seios modestos. Meu casaco fora abandonado
sobre seu corpo magro e aparentemente frágil.
Suficiente para protegê-la das gélidas correntes de ar
que mergulhavam no recinto penumbroso. Alguns
passos até a janela. Pensei em carregá-la para fora
daquele ambiente pouco antes de ser surpreendido
pela sua mão agarrando firmemente o meu pescoço,
forçando minhas costas contra a parede.
Caminhando, José sente segurarem seu braço.
— Danilo!
Uma garota com expressão roedora.
— Desculpe, está enganada.
— Que é isso, Danilo! Sou eu, Débora, da
choperia.
— Não a conheço.
— Que desfeita é essa, Danilo?
— Meu nome é José, desculpe, tenho pressa.
Volta a caminhar, ainda escuta a garota:
— Poxa, é a cara do Danilo!
Noite seguinte, é apresentado a Isadora:
— Isadora, José, José, Isadora.
Trocam beijo, a moça o observa, desconfiada:
— Disse que chama José... teria um irmão
chamado Danilo?
Em casa mira o espelho vazio. Seu reflexo só
volta pela manhã, descabelado, cheio de desculpas.
Anderson Monteiro Geraldo
Santo Amaro (Distrito / SP)
Jorge Lander Kenworthy
Holambra-SP
15
Boesia
16
3o
Quando se perde a cabeça
K. Strange
Claire Bernoulli
— Insônia?
— Você também?
— Não. Busco inspiração. As estrelas tocam-me a alma.
— Inspiração? Para quê?
— Sou uma vaca poetisa.
— Seu mugido é rimado?
— Não. Minha poesia é marginal, estilo livre.
— Por que escolheu isso?
— Nasci assim. Diferente.
— Você acha que escolhi ser de curral e com três
filhotes?
— Se não lhe agradasse a procriação, não a faria.
É a lei do existencialismo.
— O dono me obriga a reproduzir. Ele não
conhece essa lei.
— A mim ele também obriga, mas não obedeço;
poetizo.
— Não sei como contrariá-lo.
— Busque inspiração. Agora, preciso escrever.
— As estrelas tocaram-lhe a alma?
— Não. É insônia mesmo.
A arma fez um clique. A cabeça da mulher
meneou tal qual o gatilho. Ele teve uma visão da
explosão de carne, em breve inanimada, pintando
de vermelho as paredes amarelas. Será que a mescla
delas resultaria na cor laranja, como aprendeu
na escola? Julgou o pensamento incoerente,
mas controlar a verborragia do cérebro perante
a adrenalina era impossível. Suas ordens eram
cumpridas à risca pelo colega dela. Sem mortes,
portanto, só joias e dinheiro. Ela captou o devaneio
e se moveu bruscamente. Os tiros o trouxeram
de volta ao quarto. Fora do pesadelo recorrente,
dentro de seu último disparo.
João Paulo Lopes de Meira Hergesel
Alumínio-SP
Nivia Cristina Fernandes Santos
Americana-SP
Menção
Honrosa
17
144 caracteres para Lucas
Euclides Tomoda
18
A banda
Menção
Honrosa
Pancrácio
Menção
Honrosa
Certo dia Deus resolveu abrir uma conta no
Twitter, mas certamente se arrependeu.
@Lucas: Senhor, por que os dez mandamentos
são escritos em frases tão curtas?
@Deus: Não é óbvio? Pra não exceder 144
caracteres, tolinho.
@Lucas Senhor, tenho sofrido bullying. O que
faço?
@Deus: Você deve amar seu inimigo.
@Lucas: Mas é por isso mesmo que me agridem.
Eu estou apaixonado por um deles.
@Lucas: Senhor, tenho déficit de atenção por ser
da geração multitarefa. E agora?
@Deus: Toma para ti o caminho da atenção nas
coisas divinas.
@Lucas: Jogando PS3...
Um bando de amadores. Pouco profissionalismo,
muito coração. Poucos instrumentos, muitas vozes.
Cantavam alto, com alegria, pacificamente. A
música não me agradava, tampouco me incomodava.
Segurando minha mão, mamãe admirava-os,
paralisada: “Que bonito, que bonito!”.
Iam passando.
Sua voz, amável e ansiosa, adicionou à canção
derradeiro arranjo: “Fala para eles voltarem, filho”.
Uma comoção egoísta impediu-me. Mamãe
consolava-me, paralisada.
Incutindo-lhe a última gota de um prazer singular, a banda partiu.
Saíram cantando, pela frente. Mamãe saiu dias
depois, em silêncio, pela porta dos fundos.
Eu continuo naquele hospital, querendo agradecer a alguém, esperando a dor passar, remoendo
restos de amor.
Wander Luiz de Oliveira
Santa Bárbara D’Oeste-SP
Marcelo de Oliveira Vieitez
Americana-SP
19
Diário
Amigo virtual
Inéd
Avigdor
Menção
Honrosa
Ligou, conectou, acessou. Na sala de bate-papo
descobriu-se só. Esperou, esperou… Ninguém.
Observou que dos amigos só lhe restaram os
virtuais, que seu mundo transformara-se num
imenso internato chamado internet, que o brilho
do seu sol vinha do monitor que o monitorava dia
e noite, que sua atividade física mais intensa era
tec-tec-teclar. Tossiu apenas para ouvir o eco e
ter certeza de que ainda vivia. Olhou espantado à
sua volta. Sentiu um peso enorme sobre seu ego,
enxergou, enfim, a silenciosa solidão. Engoliu a
raiva do computador, sentiu saudade das pessoas,
tomou uma atitude: desconectou-se. Da vida.
Ninguém notou.
26/12/2009gqwfyysqwqdncm,zmu...w
Menção
Honrosa
zzxwe.............
17/8/2008
Gostariade voltare aoop queera antiz
12/4/2008
Não seimais porquant tempo continure fazeno isss
25/12/2007
Natal em família. Todos muito gentis.
Gentis demais.
27/9/2007
Aniversário. 56 anos. Sempre fui muito
precoce. Sempre achei que era algo bom...
5/5/2007
Conheci um rapaz muito bonito que estava com meus dois filhos. Rodrigo. Olhava-me de
um jeito estranho. Não entendi.
3/2/2007
Não faço mais relatos como costumava...
Tudo muda quando menos esperamos.
25/12/2006Nunca
passamos um Natal tão quieto.
Ninguém sabia como agir.
26/9/2006
Meus filhos Carina, Jonas e Rodrigo arrasados. Minha esposa chorando. É mesmo Alzheimer.
Deus me ajude!
Denivaldo Píàia
Campinas-SP
20
Weber Sauerbronn
São Bernardo do Campo-SP
21
22
Uma garota de juízo
(Des)Acordo
2012
Verissima
No começo do namoro ela dizia que não podia
por ser menor de idade.
Além disso, devia obedecer aos pais.
A religião não permitia, pois, antes de casar, era
“pecado”.
Ele esperava.
Depois dos dezoito ela mudou o discurso: não
tinha independência financeira.
Ele, apaixonado, esperava.
Ela divagava: não era a hora certa...
Há que se ter controle sobre as emoções,
explicava ela.
Um dia, surgiu o Outro: mundano, boa prosa,
irresistível sorriso sedutor.
Ela sentiu desejo e correu alucinada para atirarse, em frenesi, nos braços dEle, que, sem entender
nada, ficou, no entanto, imensamente feliz.
Não gosto da ideia de ideia. Quem teve a ideia
de roubar-lhe o acento? Também achava mais joia
jóia, assim, com o agudinho no o. Feiura parece
que ficou mais feio. Por que não convocaram uma
assembleia? Sou a favor da assembléia.
É preciso esforço para não perder o autocontrole,
já que o auto-controle nunca tivemos. Exagero?
Talvez tudo isso não passe mesmo de paranóia.
Mas, de paranoia, não! Também não me venha
pedir para fazer uma autoanálise. A única coisa
que aceito é uma auto-análise. Essa eu agüento. E
não se atreva a mexer no meu trema.
Sonia Regina Rocha Rodrigues
Santos-SP
Gisele Maria Franchi
Campinas-SP
23
24
144 caracteres para Júlio
À queima-roupa
Euclides Tomoda
Roland Barthes
Então Deus viu que o Twitter era bom e tratou
de criar a sua conta.
@Júlio: Senhor, eu sou ateu. O que faço para ter
fé?
@Deus: Quer que eu ligue a webcam pra você
acreditar que eu existo?
@Júlio: Sim, por favor.
Deus então liga sua webcam.
@Júlio: Mas, senhor, tudo o que vejo é a imagem
da minha própria webcam.
@Deus: Tolo... Eu o fiz à minha imagem e
semelhança. Esse sou eu.
@Júlio: Obrigado, senhor, agora acredito.
Eram nove horas, estava eu recostada em um
banco da velha pracinha quando deparei com
aquele sujeito miúdo. A princípio pensei tratar-se
de algum morador do bairro. Mas não. Após duas
ou três palavras, soube que era zelador do prédio
na rua detrás. À queima-roupa, perguntei: “Algum
apartamento vazio?”. “Não”, respondeu. “Só o
velho casarão.” Mais uma meia dúzia de palavras
e convenci o sujeito. Ao entrar senti o cheiro forte
de sangue. Eu não sairia mais desse casarão até
que pudesse desvendar esse mistério, e para isso
foi preciso não diria convencer o sujeito, mas
simplesmente abrir a carteira.
Wander Luiz de Oliveira
Santa Bárbara D’Oeste-SP
Sueli Pereira Aduan
Sorocaba-SP
25
26
Ageu
Amanhã e ontem
Alas
W. Yatsek
Ouvi de noite alguém chamando Ageu, expiei,
era só breu, lua nova, longe da aurora seu apogeu.
Peguei minha lanterna, não era moderna,
funcionava, queria lumiar, pilhas novas, não ia
apagar.
Fiz sinal da cruz, a gente nunca sabe, pode ser
alma penada buscando luz, vagando na escuridão,
clamando redenção.
No corredor, o aparador e a Bíblia de Nosso
Senhor, presente de minha mãe; abri e li um salmo
de Davi.
Meu pai de luto, disse filho astuto, corajoso
valente, sua mãe voltou buscar a gente.
Abri a porta depressa, engano, gritei, Ageu
nunca fui eu, me chamo Abreu.
Observo novamente pelo olho mágico: poucos
minutos atrás, uma moça estava postada à porta
com um menino; agora, uma senhora. Os rostos me
parecem familiares.
Afasto-me da porta.
Abro um frasco de sonífero.
O celular toca. Quê?... Me espanto ao ver que o
número corresponde ao da casa onde morei quando
criança.
Clarissa! – Do quarto, a voz de meu pai... Ele
já faleceu. Corro até lá, incrédula, e acendo a luz.
Ninguém. Na porta da sala, a maçaneta gira em
falso. O celular não para de tocar.
Acordo assustada, suando. O frasco de sonífero
ao meu lado, ainda lacrado.
Andre Luiz Aparecido dos Santos
Jaú-SP
Rodrigo Zafra Toffolo
Santos-SP
27
28
Animal em trânsito
Aqui se fala, aqui se cala
Thaís Belik
Vilu Nguri
Ele estava em um mato sem cachorro.
Ela não sabia se casava ou comprava uma
bicicleta.
Ele era um gato.
Ela era um avião.
Logo ele quis que se tornassem pombinhos.
Ela pensou: “Eita, trem bão!”.
Ele matava um leão por dia.
Ela passava por tudo como um trator.
Ele descobriu que seria pai coruja.
Ela inchou como um balão.
Após dez anos, ele conheceu um tigrão e soltou
a franga.
Ela ficou a ver navios e abandonou o barco.
O velho iconoclasta estava pasmo. Esse oficial
aposentado tinha orgulho em dizer que, graças
a ele, não havia ali boca de fumo, muito menos
“função de calçada”. Acompanhado de Canindê,
sua galinha, confabulava.
— Muito estranho. O viúvo do 103 só de shorts
colado, cercado de rapazinhos.
A galinha escutava. Então uma vendedora
trouxe produtos à esposa e só depois soube que ela
era seu afilhado, Eduardinho.
— Absurdo!
Mas quem cospe para cima... Canindê passou
a ficar mais robusta. Deu papo e a crista cresceu.
Ovos, zero. Quando o velho ouviu o cantar de galo,
o anátema virou canja.
Claudia Hemsi Leventhal
São Paulo-SP
Ana Claudia de Souza de Oliveira
São Paulo-SP
29
A assombração
Ato reflexo
Zé Balão
W. Yatsek
Exausto da viagem, deitei-me cedo, logo
despertado por um ruído estranho!
Acendi a luz e nada!
Dormi, e outra vez o ruído.
Diziam ser mal-assombrado aquele quarto da
velha estalagem.
Tarde já, um mais forte ainda, quando vi, com
escancarada nitidez, um dos pés da minha botina
se movendo aos trancos.
Levantei-me resoluto, mas ela ainda se
movimentou em direção à porta.
Suando qual um condenado, peguei a dita cuja.
Era um besouro daqueles com um chifre em
curva no meio da testa o autor da proeza. Foi aí que
não dormi mesmo, brincando com ele a noite toda.
Gabriel Araújo dos Santos
Campinas-SP
30
Parado na fila há quase uma hora, olhava para
os lados, impaciente.
De súbito, um brilho ofuscou seus olhos. Era o
coldre metálico de uma arma ainda não sacada.
Saiu da fila se esquivando, mas uma senhora
o indagava, aflita, chamando a atenção de todos.
Ignorou-a, mas o bandido o seguiu com os olhos,
interessado em sua maleta.
Percebeu a aproximação do sujeito, então correu.
Ouviu tiros.
Seguiu por várias ruas até achar que estava
seguro e parou, ofegante e cansado. Julgou-se
sortudo. Sob o sol, percebeu algo estranho: sua
sombra não refletia no chão.
Rodrigo Zafra Toffolo
Santos-SP
31
32
Avidez
O bilhete
Claire
Sissa Rasec
Tão vago perambulava pela noite Jorge e seu
gato, olhando de janela em janela, procurando
acesa uma luz ou um sinal de vida qualquer.
No quinto andar avista Clara, que reage com
encanto e espanto – quem é aquele homem com um
gato? Troca rápida de olhares, desejos à flor da pele.
— Por que você não desce cá e me dá um beijo?
— Jorge era assim mesmo, metido a viver.
E ela, tão clara quanto o nome, apenas lhe joga
um lenço amarelo, cuja cor lembra a gema, a gema
que vive com a clara. E do beijo, avidez...
Amor, ouvi quando você largou o telefone no
chão e saiu correndo. Sei que está vindo feito louca,
furando todos os semáforos.
Não estou triste... Por favor, entenda como me
sinto feliz pela decisão!
Epicuro filosofava: temer aos deuses ou à morte
é besteira; suportar a dor e ser feliz é possível... Mas
se nenhum deus me assusta e em mim não há temor
do futuro, por que eu não seria só feliz?
Porque Epicuro errou.
Eu me perdi sozinho, não se ofenda, nem seu
amor pode mais me dar prazer.
Não posso voltar atrás, tomei o veneno agora.
Adeus.
Taisa Maria Laviani da Silva
Americana-SP
Paulo Cesar de Assis
Americana-SP
33
Bondade
Leandro
A brilhante ideia do
ecologista Júlio Pacheco
Sissa Rasec
Felisberto estava preso. Nas filmagens nota-se
um engenhoso plano da dupla; ele fingiria ser uma
pessoa comum e caso acontecesse algo entraria em
ação... O carro na fuga não funcionou, Felisberto
então o empurrou e fugiram; metros depois o
deixou para fugir a pé e foi pego pela polícia.
Era um coitado, até convencer que ouviu tiros e
pensou estar acontecendo um assalto – mal sabia
que era a polícia chegando. Foi ajudar o homem
que tentava fugir daquele caos empurrando seu
carro. O ladrão lhe ofereceu uma carona e largou-o
numa rua dizendo apenas “obrigado” com largo
sorriso de gratidão.
Luiz Gustavo Brasileiro Peixoto de Moraes
Jacareí-SP
34
Júlio ajuntou computadores e ecologia. Cresceu
em ambiente verde, por isso (ou por ser pobre,
ninguém mais sabe) só andava de bicicleta e
desprezava a paixão dos brasileiros por automóveis.
Aos dezenove anos, veio a brilhante ideia: um
aplicativo capaz de conscientizar os usuários de
celular (talvez induzir) de que carro é uma praga
poluidora – a pessoa passava a odiar automóveis.
Nem tinha terminado quando recebeu das
montadoras (claro) oferta irrecusável pelos direitos
do programa.
E assim, quando Júlio recebeu um cheque bem
maior do que esperava, não vacilou: comprou no
mesmo dia um reluzente carrão zerinho, último
tipo!
Paulo Cesar de Assis
Americana-SP
35
36
O capitão
O casamento
Hunter
Autum
Durante anos em alto-mar, somente se
aproximava da terra pra descarregar – de longe – o
chumbo que estava na garganta de seus canhões.
Um dia tiraram-lhe o barco. Afinal, a certa
altura da guerra e da vida é o que fazem com
qualquer capitão.
Plaquinhas reluzentes de metal foram espetadas
em sua farda impecável, depois de longos e
enfadonhos rituais. Além da baixa, algum bom
dinheiro lhe foi confiado para demonstrar o apreço
pelos seus serviços.
“Compre uma ilha! Construa seu próprio país!”,
disseram.
Ignorou o conselho. Comprou um lago.
Morreu em paz, afogado em lembranças.
Flávia amava Carlos havia muitos anos. Eram
amigos. Mas ele era farrista, saía com várias garotas.
Era lindo, alto, cabelos longos e castanhos, olhos
verdes. Andava de moto custom. Flávia também
era linda.
Conheceram-se na primeira série. Nunca
Carlos flertara com ela. Dezesseis anos depois,
numa sorveteria, sacou um embrulho. Ao abrir,
Flávia ficou boquiaberta. Um anel. “Quer casar
comigo?”, perguntou Carlos. E marcaram a data
do casamento.
Ficou arranjado que a noiva chegaria no carro
do pai, mas a partida para a lua de mel seria na
moto. Logo na saída da rodovia um caminhão
chocou-se contra eles.
Enio Rodrigo Barbosa Silva
Americana-SP
Vivian Aurora de Moraes Bragagnolo
Araraquara-SP
37
38
O choro
A chuva
Dominique Real
Savage
Na sexta-feira à noite, um amigo me ligou:
— Jean, onde você está?
— Estou num choro, e você?
— Que coincidência, eu também estou chorando,
estou triste, larguei da namorada.
— Estou na porta do clube Bãozão, venha até
aqui.
— Estou indo – respondeu vindo ao meu
encontro.
Chegando lá observou que eu estava sorrindo ao
lado de amigos.
Ele estranha e pergunta:
— Você não estava num choro?
— E estou – respondi com alegria. — Sinta o
poder do “Brasileirinho”.
A música venceu, e pela primeira vez na vida vi
um choro fazer outro choro virar sorriso. Até hoje
ele me agradece.
O céu escureceu tornando o dia negro como
a noite. Tinha medo dos trovões e fui procurar
o colo da minha mãe. Abraçado, perguntei-lhe
como se formava a chuva, ela respondeu: “Quando
o vento balança as árvores, seu ruído ecoa entre
as montanhas, gigantes adormecidos da mata
despertam, batendo seus machados nas pedras
dentro da terra, faz-se um enorme estrondo e o
chão se abre, saindo raios que atingem as nuvens,
fazendo a chuva cair”.
Sentia-me mais calmo ouvindo sua história,
mesmo sabendo que não podia ser verdade, afinal,
ninguém bateria nas pedras com um machado... Os
gigantes usavam martelos.
Leandro Raimundini
Batatais-SP
Gilson Mateus Damas
São Paulo-SP
39
40
Começou a chover
Deus te abençoe
Bibiana
Amaros
“Chuvaaa!” Na minha infância, chuva era
palavra mágica. Quanto mais intensa, melhor.
Maior a diversão. Banhos, guerras de barro ou
simplesmente ficar saltitando sobre poças como se
a gente estivesse em campo minado.
Dentro de casa, chá com pipoca e mais
brincadeiras: stop, forca, cartas, teatrinho com
roupas dos adultos... Falta de espaço? Só se fosse
entre os ponteiros do tempo! Nunca dava pra fazer
tudo...
Hoje, os tempos são outros. Fecha o céu, e logo
se ouvem as primeiras trovoadas: “Criançaaa!
Acabou a brincadeira, desligue já esse computador!
Começou a chover!”.
“Raios!... Culpa dos raios.”
Diante das palavras do padre, emudeceu.
Olhou para o rosto aflito do noivo.
Voltou o olhar para o padre e aquele sotaque
italiano a perturbou.
Com olhares súplices, todos aguardavam.
Desistira do compromisso? Não seria ele o
grande amor de sua vida?
Atonitamente recordou a carta dantes recebida:
“Anche se non sono stato presente in tutta la
sua vita veramente ti amo e che Dio vi benedica
mezzo di me. Seja o seu perdão de filha maior que
o arrependimento de seu pai!”.
A face novamente enrubescida, os olhos voltados
ao noivo, olhou o padre e proferiu firmemente:
— Sì!
Aparecida Gianello dos Santos
Martinópolis-SP
Ana Maria Rosatto Servelhere
Bragança Paulista-SP
41
42
Dia de vestibular
O discurso
Sula Keyes
Eduardo Canhas.
Dia de vestibular! O relógio não despertou.
Na rua, corro para alcançar o ônibus. Mais um
minuto e encontrarei os portões fechados.
Muitos minutos após o embarque, percebo que
tomei o ônibus errado.
Tudo bem, se correr chegarei a tempo.
Esbaforida, a dois passos do meu destino, paro
de repente na iminência de ser atropelada.
Um carro se aproxima a toda velocidade, a
mesma em que os portões são fechados.
“Não acredito que vou perder a prova para ser
atropelada!”
Ouço um barulho estridente e irritante: “Estou
viva ou morta?!”. Com certeza atrasada.
Abro os olhos, sobressaltada: o despertador
tocava...
Ele só tinha cem palavras para inocentar-se.
Era acusado de matar a frio duas meninas e de
roubar o maior banco da América Latina. Não
tinha formação profissional. Porém, sobre a vida e
assassinatos, vocês saberão no discurso do réu, por
suas próprias palavras.
Filho de uma mulher da vida, suou para
sobreviver. Mas olhe eu de novo me intrometendo
na história. Enfim: chegou ao banco do tribunal
usando poucas roupas (ele explicar-se-á) e começou
seu discurso de inocência para o júri (prestem
atenção em suas palavras!):
— Eu...
Sueli Santos de Oliveira
Americana-SP
Matheus Duarte Ribeiro e Silva
Jundiaí-SP
43
44
Disputa
Eficiência sem limites
Heine
Roclides Paes
Após seiscentas páginas, chega à última: em
branco. Vai à livraria.
— Este livro está com defeito.
Consultam outros exemplares, em todos falta o
final da história.
Liga para a editora. A explicação:
— Não tem última página.
— Como não?
— Não tem final. Por que achou que teria?
— Normalmente...
— Normalmente não é sempre. Adeus.
Aborrecido, pega uma caneta, resolve terminar
a história.
Batem à porta, é o escritor do livro.
— Não se atreva, a obra é minha.
— Mas o livro é meu.
Brigam. Depois, reconciliados, concordam que
os fins não justificam os meios.
Faltava retirar a caixa do porão do avião,
detestava isso. O animal se mexia e latia, sempre.
Desta vez, foi diferente. Nem um movimento, nada.
Chamada a gerente, houve a abertura da caixa e a
surpresa. Estava morto. “E agora, o que faremos?”
A gerente perguntou para a equipe. Após o debate,
a ideia. Achar um cachorro idêntico! Após algumas
horas, a tarefa foi realizada com sucesso e ocorreu
a entrega. Quando o passageiro viu o cachorro,
surpreso, exclamou: “Essa companhia aérea é boa
mesmo, o cachorro vai morto e chega vivo!”.
Jorge Lander Kenworthy
Holambra-SP
Carine Teixeira Eleutério
Guarulhos-SP
45
Estudo natural
Froide
Há homens que não gostam quando são
chamados de “cachorro”. Ele era diferente, ele
gostava. Dizia: ora, mas o que são as vontades para
um cachorro senão as vontades de seu dono?
Certa vez, puxou-me de canto, apreensivo, sério,
e segredou-me aos ouvidos: quando o chamarem de
cachorro, diga com orgulho que você é, sim, e que
serve a um só dono: o Amor!
É estranho, mas só então compreendi,
verdadeiramente, a importância de bons professores
em nossa vida.
Valmir Luis Saldanha da Silva
Araraquara-SP
46
O exemplo público
Samuka
Na escola, durante a Semana da Cidadania,
alguns guardas palestravam sobre multas, direitos
e deveres dos cidadãos para alunos do ensino
fundamental:
— Agora vocês sabem que jogar lixo em locais
públicos dá multa, OK, criançada?
Pedro, andando com sua mãe na praça, avista
um guarda no carrinho de sorvete. Ele pega o
picolé, sai chupando, senta no banco e joga no
arbusto a embalagem. Pedro fica indignado e vai
falar com ele:
— Você não falou que jogar lixo em via pública
dá multa? E agora, quem é que vai multar você?
Quem deveria ser o exemplo deixou a desejar!
Samuel Innocêncio da Silva
Americana-SP
47
48
Família no mundo atual
Felicidade apocalíptica
Malachias
Pancrácio
— Cara, minha mulher agora inventou uma
história de querer ter filho. Ela já tem 36 anos!
— A minha uma época também tava com
essas ideias, aí depois parou de falar. Você quer? –
perguntou o amigo.
— Sei lá! Nunca pensei nisso, mas é que agora
ela está enchendo o saco.
— Relaxa... Uma hora ela para de falar, a minha
foi assim também.
— E você queria?
— Pra mim tanto fez, tanto faz... Se rolar tudo
bem, se não rolar... compra um cachorro!
2012: seis bilhões morreram.
Os humanos restantes harmonizaram-se.
Trezentos anos se passaram.
O planeta recuperou o verde, a água limpa. Há
muito não se ouvia falar em fome, desemprego
ou tristeza. Não havia polícia, exércitos. Porém,
tecnologia transbordava. Só morriam centenários.
De repente, um criminoso. Inacreditável. Mata
pessoas. Desaparece. Após décadas planejando,
infiltra-se no governo. Furta arquivos secretos à
beira da extinção. Lê-os. Só mentiras. Passa longa
data estarrecido. Recompõe-se. Arquiteta novo
plano.
Finalmente é pego. Sentindo inigualável
felicidade, mata-se com um tiro. A polícia, que não
“existia”, desesperou-se. Ao alcance de todos, o
furto, de Homero a Drummond.
Barbara Estela Batista da Silva
São Bernardo do Campo-SP
Marcelo de Oliveira Vieitez
Americana-SP
49
50
Flores
A gente sua
Clarice Paes
Verissima
Encontraram-se. Ele era moreno, de cachinhos
– o que só fazia aumentar sua paixão. Ela usava
um vestido – não combinava com ela, mas estava
tão cheia de amores, que se deixou seduzir pela
estampa florida.
Tomaram sorvete – que é uma dessas coisas
incríveis que fazem a Terra ir mais devagar. Ela
de groselha, ele de menta, mal podiam esperar
para misturar sabores tão diferentes. Riram,
conversaram, amaram-se devagarinho, conhecendo
quem realmente eram.
No meio da tarde, o sol alto, ele viu uma florzinha
nascendo no asfalto. Era branca. Arrancou e
enrolou no dedo da menina.
“Namora comigo?”
— Com esse calor, como a gente soa!
— Sua.
— Minha o quê?
— Como a gente sua.
— Mas você nem soa!
— Quem soa é sino.
— Essa é boa! Desde quando os sinos transpiram?
— Não estou falando de “suar”, “verter
suor pelos poros”, mas de “soar”, “emitir som”,
“blim-blém”.
— Lá vem você! Eu falo como quero! Cada um
na sua... Ou cada um na soa?
— Melhor deixar pra lá...
— Ah, isso quer dizer que você não sabe!
— Não. Isso quer dizer que essa conversa não
está soando bem...
Luiza Paes de Souza Lima
Piracicaba-SP
Gisele Maria Franchi
Campinas-SP
51
52
Guepardo
Hoje
Holden Caulfield
Nibar
Savana africana. Dia sem mãe. Hora de crescer,
se alimentar. Diriam que as duas linhas pretas
que descem dos olhos até a boca seriam lágrimas
permanentes. Permanentes são as garras, nunca
completamente retraídas. Avista uma presa. Corre
– um flash amarelo salpicado de manchas pretas. A
lebre já sabe. Esquivou-se. Contudo a cauda é boa;
a coluna, elástica. Outro bote. Ainda não.
Agora eu vou... Fui! Minha barriga já roncava.
Eu vou dar conta. Serei real nestes campos, caçador
dos antílopes todos. Sou pleno. Ronronar. Mais um
leão que vem. Fujo. E ninguém me pega.
Estaciono o carro.
Chove lá fora.
Óculos e guarda-chuva.
Caminho em direção à porta.
Me sento.
Ele está lá.
Hoje eu falo com ele!
Mas quando ele se aproxima toda minha
coragem vai embora como água ralo abaixo.
— Café?
— Sim.
— Forte, sem açúcar, com adoçante e um leite
pingado?
— Você decora o pedido de todo mundo assim?
— Pra falar a verdade, você é a primeira.
Ele sai para atender outros clientes, mas noto
um número de telefone no guardanapo embaixo da
xícara.
Eu rio comigo mesma, era exatamente isso que
eu ia fazer quando ele me trouxesse a conta.
Caio Henrique Solla
Sorocaba-SP
Janaina Santos Barroso
São Bernardo do Campo-SP
53
O homem que
desconhecia o impossível
Hora do Brasil
Arapa
Eleonor Sigma
Ele sabia de absolutamente tudo, tinha a
solução para qualquer problema, contava sempre
as melhores histórias. Ele era o homem que
desconhecia o impossível.
Mas com o passar dos anos a verdade absoluta
se assumiu ilusão. E então eu soube que ele não
sabia de tudo, as soluções dele não resolviam
mais os meus problemas, as histórias dele me
envergonhavam. Aquele para quem eu corria para
me sentir protegido era agora quem eu evitava a
todo custo. O homem que desconhecia o impossível
não existia mais.
Pai, por que você nunca tentou provar que eu
estava errado em odiá-lo?
Roberta Grassi Maciente
Guarulhos-SP
54
Em uma audição no Teatro Amazonas a
sinfônica executava O Guarani quando um gaviãoreal pousou sobre a tuba.
Em seguida ouviu-se o pio de um mutum e em
pouco tempo a plateia atônita dividia o espaço
com milhares de aves. Nos corredores deitaram
mansamente algumas onças hipnotizadas pela
música...
Um bicho-preguiça deitou no colo de uma
senhora, que vestia um lindo casaco de pele, um
jacaré cochilou sobre o palco, homens e bichos sem
caçadas e medo...
Após o último acorde os pássaros cantaram – os
bichos rosnaram, depois voltaram à floresta.
O público aplaudiu de pé.
Sílvio Valentin Liorbano
Osasco-SP
55
56
O ladrão
Liberdade
Tonico Vieira
Janie Dum
Um ladrão resolvera invadir uma festa à fantasia,
vestido de ladrão: meia-calça na cabeça, revólver
de brinquedo na cintura. Quando, em determinado
momento da festa, decidiu anunciar o assalto,
ninguém achou graça.
Ele corria e corria. Olhou para trás. Já estava
sem fôlego, mas não podia parar agora. Chegou a
uma ponte. Era o fim da linha. Loucura, mas era a
única solução. Ele subiu no parapeito, de pé sobre o
mar, os braços bem abertos, saboreando o vento no
rosto, a sensação de absoluta liberdade. Ouviu os
gritos. “Não!”, eles diziam. Queriam pegá-lo, mas
vivo. Olhou para baixo. Não queria morrer. Recuou
um passo. Olhou para trás, viu o buraco infinito
dos canos das pistolas e a luz cegante das viaturas.
Então pulou, sem pensar. Livre para sempre.
Henrique Emidio de Jesus
São Paulo-SP
Karen Vaz Siqueira Alvares
Santos-SP
57
Louquinha
Madrugada
Clara dos Anjos
Anna Rosália
“Bé bé bé bé!” Repetia incessantemente a todos,
com aquele olhar de quem vê cataclismos. Teria por
nome Luzia, mas era conhecida como Louquinha.
De Jué nunca se soube o nome certo; cresceu na
casa vizinha à dela. Tornou-se professor. Mas não
usava dizer isso: dizia que era caçador de utopias.
Certa tarde deu com Louquinha. Quando ela
abriu a boca, no lugar do bordão, disse: “Professor,
quando a humanidade abandonar o pensamento
cartesiano, falarei com eles em uma língua
inteligível, como esta que dirijo agora ao senhor”.
Nisso, aproximava-se um distinto cavalheiro: “Bé
bé bé bé...”.
MARCELO RICIOLI
São Paulo-SP
58
Revirou-se nas cobertas, pensou ver formas
se mexendo no escuro. Suas entranhas doíam de
pavor. Cobrir a cabeça não adiantava muito, logo
perdia o ar. Queria acender a luz, mas o interruptor
estava longe, os monstros podiam alcançá-lo se
saísse de sua zona quase segura. Permaneceu assim
por horas, sobressaltando-se ao mínimo ruído.
Geralmente era só um cachorro uivando ao longe,
mas ele ficava em assustada expectativa por minutos
sem fim.
Seus olhinhos insones ardiam. Já não podendo
aguentar, o pequeno bicho-papão encheu os
pulmões e gritou:
— Mãe, acho que tem um humano em cima da
minha cama!
Thamires Cristina Silva Lourenço
Araçatuba-SP
59
Mais vida
Mergulho suicida
Eleonor Sigma
Amélia Ben
Uma curva e você perde o controle. Seu carro
se transforma em uma máquina de destruição, as
mesmas ferragens que o protegem ameaçam-no
transformar em uma massa amorfa e sem vida.
Enquanto você é atirado em todas as direções e
o cinto de segurança o prende ao banco, tudo o que
você considerava ordinário, comum e sem graça
ganha um valor especial. Tudo o que você está
prestes a perder é o que você mais quer de volta.
Uma curva rápida demais, o mundo gira
desgovernadamente ao seu redor e você tem um
único e último pedido: mais vida.
Roberta Grassi Maciente
Guarulhos-SP
60
Ela andava na rua e chorava
E sem saber me salvou
Pois naquele exato momento
Eu me afogava em lágrimas secas.
Rosana Banharoli
Santo André-SP
61
62
O método publicitário
Momento
Mosca Varejeira
Lady Lilith
— Aprendi uma mágica – ele disse.
Ela não se moveu.
— Hilariante.
Continuou assistindo à televisão.
— Um mágico profissional me ensinou.
Enfim desviou os olhos.
— Como é?
— Preciso de água gelada e guardanapos.
— Só isso?
— Só isso.
Ela foi até a cozinha e trouxe tudo numa bandeja.
— Calor horroroso! – ele exclamou, secando o
rosto com os guardanapos.
Bebeu a água, devolveu o copo, tornou a ajeitarse no sofá.
— E a mágica? – ela perguntou.
— Acabei de fazer.
— Como assim?
— Eu estava com sede, mas não queria parar de
ver o filme.
A hora de dormir seria a mais difícil… pois
ainda se encontrava trêmula, com as mãos suadas
e um rubor no rosto; ao deitar-se ao lado dele,
podia ouvir os sons de seu coração que batia
descompassado, sentia vontade de gritar, fugir,
mas tinha de continuar ali, mesmo percebendo que
as paredes de seu castelo agora desmoronavam,
mesmo tendo percebido que seu príncipe voltara a
ser um sapo e que ela, outrora princesa, tornara-se
agora a gata borralheira; a rosa agora despetalada
transformara-se em um ramo seco; restava a ela
esperar a chuva cair e lavar sua alma…
Gilberto Garcia da Silva
Praia Grande-SP
Francine de Oliveira Palma
Sorocaba-SP
63
64
Montmartre
O mundo, como ele sendo
John B.
Pessalis
O artista pinta um quadro. O céu azul, os
contornos do Sacré Coeur, sublimes. Ele pinta os
estudantes sentados nas escadarias que se elevam
até a basílica. Um poodle passeia em seu quadro. Há
pássaros e flores. Ele pinta os turistas, as madames
e os homens de terno. Fielmente, cada detalhe é
imortalizado em cores. O artista se esforça ao
máximo para atingir a perfeição.
O quadro fica pronto.
Um mendigo, que estava sentado todo o tempo
nas escadarias, levanta-se curioso, para ver o olhar
do pintor.
Descobre, no canto em que estava sentado, um
cinzento vazio.
Nasci Anarina L9000, mundana, anônima de
mim. Interiorana deste Estado. Habitante literária
da ausência livreira. Impessoal. Aniquilada por
gigabytes de causas-motivos. Partidária de cem
partidos. RAMs de memórias.
Dia noticiado, seguidor, veio-me Élim:
— Vives rumando a esmo... Norteia comigo
tua brisa. Dividimos Pará, sua condição, eu.
Transcendemos Amazônia — Nova Era! Índios
são outros. Semeamos liras fluorescentes no Acre.
Coca-Cola tem acidulante. Dá tempo de votar.
Ver transbordar o leste não navegado. Vendemos
água nos links são-franciscanos, curtimos a vida
na entrega rápida!
Sem tempo e espaço, respaldei. Dezenove passos
até o destino. On-line neste sonho. Cutucando a
realidade.
André Telucazu Kondo
Caraguatatuba-SP
Gabriela Moreno
Americana-SP
65
66
Na palma da mão
Naquele jardim
Hunter
Norma Sculptor
As mãos sujas de fuligem revelaram um destino
deinescapável. As linhas estavam lá, em baixorelevo, mais claras que o restante das palmas.
Inconformado, não hesitou. Enfiou forte o
canivete que trazia sempre na cinta, para cortar
fumo, tentando assim reescrever o seu destino.
Analfabeto também na quiromancia, teve a vida
encurtada por uma doença do coração. Deixou
mulher e dois filhos sem grandes sonhos, que nunca
ligaram para crendices.
— Não piso naquela casa. Sabem quantos corpos
encontraram enterrados no jardim? – perguntava
Fábio. — Meia dúzia! – ele mesmo respondia e
continuava. — Não piso lá, por dinheiro nenhum.
Claro que o discurso mudou quando Fábio se
pegou enterrado em dívidas. Em desespero, só
conseguiu ter uma ideia: entrar na casa e chantagear
a viúva do assassino.
Dona Rosália era uma velhinha frágil, muito
religiosa. Ouviu Fábio enlamear a memória do
falecido com falsas acusações.
— Assassino, sim. Pedófilo, nunca! – gemeu a
viúva, passando mal. — Preciso dos meus remédios.
Dona Rosália pegou a pistola na gaveta.
— Quer conhecer o jardim, Sr. Fábio?
Enio Rodrigo Barbosa Silva
Americana-SP
Carla Ceres Oliveira Capeleti
Piracicaba-SP
67
68
Ninguém é inocente
No hospício
Chantecler
Zé Balão
O homem assombrado segura o outro que
acabou de ser baleado.
Ajoelhado, ele examina o corpo inerte, passando
a mão sobre o ferimento recém-adquirido.
Ao molhar as mãos com o sangue ainda quente
do infeliz, olha o semblante do morto e fecha seus
olhos estatelados.
Volta o rosto para trás e encara o atirador
dizendo:
— Ele era inocente!
O autor dos disparos, segurando a arma com
confiança, responde lenta e seguramente:
— Ninguém é inocente!
Achava-me a sós na sala de espera, e sem mais
nem menos surge aquela figura alta, magra e
encurvada!
Saí correndo, ele atrás, com uma faca enorme!
Quando vi, era o final de um imenso corredor!
Encostei-me na parede e com as mãos nos olhos
fiquei aguardando pelo pior, quando senti uma de
suas mãos tocar-me o ombro...
Com o riso descontrolado naquela boca
escancarada e babenta, o desatinado falou: “Agora
é a sua vez, corra atrás de mim!”.
Luís Antônio de Filippi Chaim
Espírito Santo do Pinhal-SP
Gabriel Araújo dos Santos
Campinas-SP
69
70
Ofélia
Ontem
Holden Caulfield
Nibar
— Venha, Ofélia.
— Quem é você?
— Meu nome é qualquer nome. Por favor,
adentre o meu mistério. Não importa o que tenha
lhe acontecido, vai passar. Comigo.
Caminhou mais para perto dela.
— Sim, Ofélia. Precisa do meu abraço. Por mais
que eu seja uma estranha, devo salvá-la. Sua vida é
importante. Venha fluir.
— Está frio.
— Esqueça. O meu corpo é quente. Veja, está
me alcançando. Mais um pouco...
— Você é tão bonita.
— Vê? Pareço com você, meu amor.
— Meu amor...
Amaram-se profundamente. Ofélia é mais uma
gota no mar.
Ela sempre vem na mesma hora.
Fica me olhando sem olhar, mas não sabe que eu
sou louco por ela desde a escola.
Sempre estaciona seu carro colocando os óculos.
Sempre me pede café sem açúcar, com adoçante
e leite pingado.
Sempre a recebo sorrindo, mas é puro nervosismo.
Hoje eu falo com ela.
Mas quando me aproximo, eu hesito.
E se ela só estiver me confundindo com alguém?
Sempre faz sol quando ela vem.
Se amanhã chover, eu juro que deixo meu
telefone embaixo de seu café.
Ela é tão linda.
— O de sempre?
— Sim, por favor.
Caio Henrique Solla
Sorocaba-SP
Janaina Santos Barroso
São Bernardo do Campo-SP
71
72
Para sempre Leonora
Parábola
Alberto
Clara dos Anjos
Vinho ensanguentado derramado. Leonora,
Humberto, casados. Paulo, um representante
comercial. Todos sentados à mesa. Na morte, o
amante. Envenenamento? Humberto em caixão
de compensado lacrado. Rosto retalhado. Esposa,
num velar encenado. Vulto. Um homem vestido
com sobretudo escuro aproxima-se da viúva,
concedendo condolências, perguntando: “Como
estou, Leonora?”. No desmaiar repentino, ela
abandona o local em desatino para junto do homem
destino. “Quem é você?”, pergunta Leonora.
Humberto, com face de Paulo, um sorriso sinistro
nos lábios, responde: “Leonora, sou seu amor
eterno, Humberto”. Encerra-se na piscadela do
obscuro beijo, no tilintar da nova taça.
Naquele lugar, cada palavra custava dinheiro.
Assim, quem era pobre não podia dizer muita
coisa. Mas, como não dizia nada, fazia muita cara
feia. E pobre de cara feia assusta o rico. Então, os
ricos confabularam e decidiram criar uma palavra
para dar de graça ao povo. E deram: UTOPIA, para
quem quisesse.
O povo, que era pensativo, descobriu com isso
que podia inventar palavras. E assim passaram
muito tempo, em surdina, fabricando uma palavra
nova, artesanal, feita por todos. Um dia, disseramna, juntos, no meio da praça: REVOLUÇÃO.
E aquele lugar nunca mais foi o mesmo.
Danilo Souza Pelloso
Lucélia-SP
Marcelo Ricioli
São Paulo-SP
73
74
Pé de meia na janela
Perseguição!
Areg
Abidê
Não tinha chaminé ou árvore decorada com
motivos natalinos. Não tinha presente. Nem futuro.
Apenas ali pendurada na janela – surrada, lasseada,
abandonada, solitária, vazia – a meia de seda da sua
querida avó que, inocentemente transformada em
capuz, foi o seu primeiro passo para a delinquência
e a marginalidade. Noite infeliz!
O gato fugia desvairado, pois o cachorro o
perseguia ferozmente. Apesar da extrema agilidade,
o gato não se livrava do perseguidor.
Saltando latas e poças, atravessando ruas e
cercas, o drama se desenrolava célere. Seu final se
delineava dantesco!
Daí, uma luz! A salvação? O GATO SUBIU NUM
TELHADO! Que alívio!
MAS O CACHORRO SUBIU ATRÁS
VELOZMENTE!
O gato, incrédulo e em pânico, saltava de telha
em telha com o cachorro sempre na sua cola! Nada
parecia capaz de detê-lo!
O gato, então, desceu rapidinho!
E o cachorro... descobriu que tinha acrofobia.
Tá lá até hoje!...
Geraldo Trombin
Americana-SP
Fabiano Amaral De Barros
Jaguariúna-SP
75
76
O peso das horas
Pingentes
Maum
Chantecler
Ela tem 26 anos. Sempre acorda com a mente
leve como céu infinito, sem nunca saber o que
sonhou. Toda manhã: ele vem, sedento, e senta ao
lado dela, ri com ela. Ela abre as pernas e se dá:
risonha, cotidiana, clara, amada.
Mas, ao almoço, ela soturna. E, às tardes,
some. Num fim de tarde, desconexa, nojenta, séria,
avisou-o: às (todas as) noites, não te amo.
Todos os dias, a cada hora (cada gesto, riso,
bater-de-pálpebras) voltam as lembranças de tudo
que ela é. Às noites, todas, ele foge dela. Pois, em
todos os pores do sol, ela envelhece.
Os pingentes do lustre de cristal foram
despencando um a um.
Aqueles que caíram e não quebraram foram
guardados em uma gaveta qualquer.
Os anos e os pingentes ficaram esquecidos.
O lustre foi retirado, trocado por uma luminária
fria e sem brilho.
Num dia desses, revirando o passado, encontrou
pingentes guardados.
A luz refletida no cristal trabalhado trouxe-lhe
lembranças caras.
As festas dadas sob o olhar atento do lustre,
jantares enriquecidos com a presença de familiares
já desencarnados, beijos doces e enamorados, uma
vitrola tocando valsas, brincadeiras, danças e vida.
Como podem apenas alguns pingentes trazer
tantas saudades?
Fernanda Cristina de Paula
Jaguariúna-SP
Luís Antônio de Filippi Chaim
Espírito Santo do Pinhal-SP
77
78
O poeta sem nome
Problemas na linha
Arynna Serteck
Tonico Vieira
Ela estava atordoada. Olhara ao redor, não
reconhecera nada. Num instante sua mente clareou.
Não sabia ao certo se era devaneio ou realidade
ofuscante aos olhos. Eram muros da Universidade
do Porto, envolviam-na quase como um abraço. Um
breve suspiro. Já não podia mais conter-se. Quando
ouviu sussurros.
— Mundo: fragmentos oníricos já diziam
líricos. — Era o poeta sem nome, homem de grande
mistério.
Entreolharam-se. Enamoraram-se. Beijaram-se.
Ele desapareceu em brisa. Procurou-o sem sucesso.
Refletiu sobre o dito do poeta. Caminhou pelos
imensos corredores. Imaginou-se menina correndo.
Rodopiou. Entre livros se escondeu. Partiu. Mas
com o mundo refeito em sonho.
Fora mancada, sabia. Estava desesperado.
Conhecia o gênio: baiana, mulata, “vai me matar”.
Assim mesmo procurou o cartão telefônico no
bolso e parou no primeiro orelhão. Eram 2h35
da madrugada, era tarde. Tremia enquanto a
campainha do telefone tocava – estava gelado.
— Alô? – era ela.
— Alô, Mara? – era ele.
Mas não sabia ao certo o que dizer, se havia o
quê.
— É que... que... – quando nervoso, gaguejava.
Ela ficando cada vez mais impaciente.
— É que... que...
A relação estava por um fio, quando o telefone
ficou mudo.
Ana Carolina de Souza Alencar
São Paulo-SP
Henrique Emidio de Jesus
São Paulo-SP
79
80
Quadrilha
Rastros de Otelo
Leandro
Pepe Vitorino
Dessa vez havia se ferido, o fim do relacionamento
de anos pegara Adamastor de surpresa, não
entendia o porquê do fim. Roberta, amiga de sua
ex-namorada, quando soube do ocorrido, entrou
em contato com Adamastor para saber se passava
bem. O rapaz lembrou-se da ex-namorada e julgou
não haver melhor forma de vingança do que beijar
a melhor amiga dela; marcaram um encontro.
Roberta era bela, fez de tudo para consolar o
rapaz, que nem se lembrava mais da ex-namorada.
Ele tomou coragem e beijou Roberta, que soltou
um berro:
— Que é isso, “rapá”? Eu tô pegando sua ex!
O homem caiu extenuado sobre a terra lavada
pelo temporal. Sustinha mal o coração no peito,
batendo ligeiro, alarmado pela desconfiança.
Apertou os olhos e suspendeu a respiração
quando uma violenta dor veio lhe perfurar as
entranhas. O suor lhe descia pelas têmporas.
Passado o momento, arregalou o olhar inumano
para além e além dentro da mata. O céu tornou-se
ainda mais imenso.
Resvalou pelo chão úmido. À beira da estrada,
descobriu a linguazinha afoita, sondando as
oscilações da atmosfera.
A camponesa assomou na curva trazendo o cesto
das frutas. Ele colocou-se em posição de ataque,
enrodilhado todo, mal respirando.
Luiz Gustavo Brasileiro Peixoto de Moraes
Jacareí-SP
Edivânia Tavares da Silva
São Bernardo do Campo-SP
81
Retrato do artista
quando jovem
Romance fantástico
K. Strange
Froide
Quando minha mãe me pegou mentindo pela
primeira vez, fez um escarcéu danado. Quase
arrancou minhas orelhas enquanto, em vão, eu
argumentava: “Mas se todos fazem...”.
Logo, percebendo que eu tinha vocação para
político, comprou um livrinho e me deu.
Diferentemente do que ela queria, o livro não
me salvou de mentir. Entretanto, me ensinou a
fantasiar cada mentira, floreá-la e colocá-la no
lugar certo, como um vaso que você veste de verde
para vê-lo transformar-se em folhagem.
Valmir Luis Saldanha da Silva
Araraquara-SP
82
O fogo do cachimbo encontrou as chamas
do pescoço, e as duas criaturas se apaixonaram
fantasticamente. Saci e Mula protagonizaram o
romance mais sem pé nem cabeça já (in)existente.
João Paulo Lopes de Meira Hergesel
Alumínio-SP
83
84
Salva-vidas
Sedução
John B.
Lady Lilith
O moleque era terrível. Chutava a canela dos
funcionários, fazia xixi na piscina, ofendia todo
mundo.
O salva-vidas, cansado de tanta malcriação,
perdeu a paciência. Pelo cangote, atirou o menino
na água, com roupa e tudo.
— Vou chamar o meu pai. Você está ferrado,
idiota!
Não foi preciso chamar. O pai, furioso, já estava
na beira da piscina. Homem rico, influente... “Estou
morto”, o salva-vidas pensou.
— Obrigado – o pai lhe agradeceu, botando o
filho de castigo.
— Dissemos que ele saltou na piscina e você o
salvou...
O salva-vidas, sorrindo, disse:
— Você me salvou!
Durante uma briga entre os deuses pelo amor de
Afrodite, apesar de seu desprezo por todos, e antes
que Zeus decidisse casá-la com Hefesto, Afrodite,
cansada dessa vida de ser apenas uma mulher
sedutora, resolve mudar.
Corta os cabelos, veste-se como uma mortal,
suja-se de lama e esconde-se em uma caverna
banhada pelo oceano. Queria ser uma criatura
repugnante aos olhos dos homens e dos deuses.
Mas eis que Poseidon, sem a reconhecer, começa
a olhá-la e admirá-la, diariamente, e pouco a pouco
se apaixona por aquela criatura.
De nada adiantara sua fuga, seu disfarce.
Afrodite continuava irresistivelmente sedutora.
André Telucazu Kondo
Caraguatatuba-SP
Francine de Oliveira Palma
Sorocaba-SP
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Ser.vil
Síndrome de Korsakoff
Areg
Gregor Samsa
Era letrado, escritor; jornalista; diretor executivo, editor, roteirista; produtor; locutor; bacharel;
ativista cultural; pesquisador; professor; consultor;
empreendedor; investidor; enólogo; cinéfilo; músico; curador; fotógrafo; atleta; apreciador de boa
comida e bebida; colecionador de carrinhos Hot
Wheels, latinhas de cerveja, bolachas de chope,
cartões-postais, relógios, gravatas, óculos de sol,
selos, LPs, CDs e souvenirs. Era também bonito,
esguio, charmoso, elegante, sedutor, paquerador,
praticante de artes marciais, artes cênicas, artes visuais, artes plásticas, artes culinárias. Nossa! Era
tudo de bom! Só esqueceu o mais importante: ser
humano!
Tudo estava perfeito! Nosso time campeão do
torneio universitário e a comemoração marcada.
Mas tudo mudou quando vim parar nesta sala.
A porta se abriu delicadamente, um homem
de paletó impecável entrou em passos ritmados...
Só então eu fui lembrar... Lamentei... Não havia
mais como voltar atrás... Ele olhou friamente na
minha direção... Atormentava-me o modo como
suas mãos estavam posicionadas nos bolsos de sua
calça... Abaixei a cabeça... Senti uma gota de suor
escorrer pela testa quando o ouvi falar de modo
propositadamente calmo:
— Sr. Daniel, a classe aguarda por seu seminário
sobre a síndrome de Korsakoff.
geraldo trombin
Americana-SP
Victor Hugo Fischer Ribeiro da Silva
Ribeirão Preto-SP
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Sobre a eternidade
Sons
Claire Bernoulli
Janie Dum
Contava histórias de vida, sonhos e lendas
para os filhos. Os anos mantiveram o encanto dos
personagens e seus apuros, amores e conquistas.
Os netos agradeciam por isso, ávidos por mais
um pedacinho daquele mundo invisível cada vez
que a ouviam. Um dia, a sequência emocionante
de uma trama se perdeu como fio solto em um
tear, e os pequenos não entenderam a razão. Os
médicos garantiram, na semana seguinte, que a
memória se esvairia aos poucos. Logo, transmutouse em palavras. Os enredos bordados em caligrafia
cuidadosa nos cadernos à tinta a deixariam por
inteiro com os netos para sempre.
Velocidade. Esse era seu sobrenome. Gostava do
motor roncando, do vento uivando, das imagens
passando velozes pelo canto dos olhos. 100, 120,
150 por hora. Adrenalina. Aquele era seu esporte.
O único som de que não gostava era o da freada.
Aquele assovio agourento. Uma batida. Um corpo
voando, caindo de borco no asfalto em um ângulo
estranho. O silêncio. Sangue. Estava paralisado.
O corpo ou ele? Não poderia saber. Estava quase
saindo do carro quando ouviu outro som: sirenes.
Altas, insistentes, atrás dele? Não havia tempo.
Arrancou, o carro assoviou. Fugiu. Mas não de sua
consciência.
Nivia Cristina Fernandes Santos
Americana-SP
Karen Vaz Siqueira Alvares
Santos-SP
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O velho e a janela
Velhos amigos
Kit Karson
Mosca Varejeira
Ali fica ele. O velho e a janela da cortina amarela.
Observando o comportamento do mundo vil
que ele jamais viu.
Através da cortina amarela, estuda. Analisa.
Enxergando o que ninguém vê. O oculto.
Como o justo virando corrupto.
A igreja com o dinheiro no púlpito.
O respeito menor que a ambição.
A letra musical desrespeitando a canção.
Da janela ele apenas fala o que vê.
Sem medo. Sem arrependimento.
Interpretando o momento. Sem constrangimento.
Como se seus olhos fossem a janela.
A cortina, sua ideologia. Meio amarela.
Suja. De tantas visões. De tanta janela.
Chegaram a uma encruzilhada.
Ela disse para ir em frente e ele perdeu a
paciência:
— É cientista?!! Tem GPS no cérebro??!!!
Girou o volante para a direita. Ela cruzou os
braços e amarrou a cara.
Os postes acabaram, as casas desapareceram,
surgiram crateras.
Ele engoliu o palavrão que proclamaria a
derrota. Endireitou a escoliose para virar o carro.
Antes que conseguisse, três vultos desenharam-se
contra os faróis. Aproximaram-se, acariciando as
armas.
Ele olhou para o lado. Junto com o medo, ela
irradiava satisfação. Não perdeu um segundo.
Desligou o motor e abriu a porta, sorrindo:
— Demorei muito, pessoal?
Bruno Martins Abrão
Americana-SP
Gilberto Garcia da Silva
Praia Grande-SP
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A viagem
A vírgula da questão
Guinevere
Bibiana
Assustei-me ao ser arrebatado por súbita
agitação – ora tão bem seguro, ora solto e levado.
Arrastado e devastado. Vejo-me em tons de bronze
e sou revestido de extrema fragilidade. Corto por
entre árvores com rapidez, sortudo por não haver
colisão. Logo sinto falta de casa e me arrependo
por não ter me empenhado mais em ser forte. O
vento se acalma e começo a descer. Espero que a
queda não resuma minha existência ainda mais.
Aconchego-me aos outros corpos castanhos e juntos
somos uma nova família: a de folhas de outono à
espera de crianças para separarem-nos novamente.
Melhor começar pondo os pingos nos “is”.
Contudo, que ninguém mexa nos meus entre
parênteses; reino secreto onde posso ser eu: soldado
e tenente, rainha e súdita, quebra-regras dos
próprios mandos.
Dúvida. Cruel dúvida detendo-me à frente do
espelho: “Que vestir?”, eis a vírgula da questão.
Chega! Decido. Cuspo-te afinal. Acompanhame se quiseres, sua espertinha! Mas não podes,
jamais, ganhar de mim. Não sei calar-te, mas sei
vingar-me. Eis que me valho da decisão. Bendita
decisão a quem estás sujeita.
Sim, senhora. Sai da frente! Pois não é à toa que
visto saias!...
... E ponto final.
Olivia Pironato Furlan
Americana-SP
Aparecida Gianello dos Santos
Martinópolis-SP
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Voltar à realidade
Raulzito Júnior
Zoon politikon
(animal político)
Cíceron Bellizárius
Depois de um dia turbulento, nada como uma
cama macia, a cabeça no travesseiro, relaxar. Vagar
pelo infinito, deixar os pensamentos aflorarem,
esperar calmamente o sono chegar.
Rajadas de tiros, corpos caindo, ao seu lado o
amigo de tantas batalhas. Correr para dentro da
floresta, perseguida por cães raivosos. O coração
bate acelerado, sem medo, somente uma louca
vontade de fugir e amanhã cobrar desses insanos o
sangue derramado de seu “irmão”.
De repente um clarão invade seus olhos, um
alguém vem em sua direção, um enorme sorriso
estampado no rosto, se aproxima...
— Bom dia, senhora presidenta.
Edenilson Conterato
Americana-SP
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Aprendi nos antigos seriados policiais da TV:
ninguém é obrigado a falar senão em juízo. Mas
por falta de juízo, escrúpulo ou vergonha, e também
movido por um tolo lapso de vaidade, ascendi ao
parlatório.
“Não tenho palavras…”, comecei dizendo. E
mentia. Haja vista que, além da habilidade de falar
inverdades, tinha o dom da oratória.
Se apenas me ativesse à máxima que afirma que
quem cala consente, não teria sequer aberto a boca.
E me salvaria o não dizer. Mantendo-a fechada,
também evitaria as incômodas e abundantes moscas
não menos oportunistas que eu.
“Parla!”, esbofeteei-me o verniz da face.
Francisco Pascoal Pinto
São Paulo-SP
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Este livro virtual foi feito no inverno de 2012 pela Gráfica e Editora Adonis.
Agradecemos ao empenho de todos os envolvidos para a publicação desta obra.

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