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Um concurso literário Copyright © 2012 Biblioteca Municipal de Americana Projeto Editorial Magali Berggren Comelato Projeto Gráfico Paula Leite Ilustrações Paulo Roberto Masserani Assessoria Textual Leonardo Luciano Marcelo Beso Veronese Revisão Lara Milani CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C388 Cem palavras para deixar sem palavras [recurso eletrônico] / [Anderson Monteiro Geraldo ... et al. ; organização Leonardo Luciano]. - Americana, SP : Adonis, 2012. recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-7913-111-0 (recurso eletrônico) 1. Escritores brasileiros - Miscelânea. 2. Prosa brasileira. 3. Livros eletrônicos. I. Geraldo, Anderson Monteiro. II. Luciano, Leonardo 12-4586. CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-8 02.07.12 13.07.12 036959 Todos os direitos reservados à Gráfica e Editora Adonis. Rua do Acetato, 189 - Distrito Industrial Abdo Najar CEP: 13474-763 - Americana/SP - Tel: (19) 3471.5608 www.graficaadonis.com.br www.editoraadonis.com.br Americana-SP, 2012 Realização: Comissão de seleção Terezinha Valentina Pedroni Graduada em Letras e Literatura pela PUC Marcelo Beso Veronese Graduado em Letras e Mestre em Teoria Literária pela UNICAMP Secretaria de Cultura e Turismo Ursulina Bianco Antonio Bibliotecária Encarregada Leonardo Luciano Orientador Cultural Patrocínio Cultural www.editoraadonis.com.br Jeferson Bianco Toledo Graduado em Letras pela PUC Uma antologia de concurso literário é resultado de cooperação. Como obra, pode ser fruída pelo que é, mas a experiência enriquece se o leitor considerar essa premissa. Da ideia ao regulamento, da busca por recursos à divulgação, das inscrições à seleção, do projeto à curadoria, da editoração à publicação: contatos, trocas e relacionamentos. Pessoalmente, considero este trabalho altamente sinérgico e estendo minha profunda e sincera gratidão a todos e a cada um. Quero registrar também minha adquirida admiração pelos organizadores de concursos. É um caminho recheado de peripécias, de deixar sem palavras. E como chegamos rápido a 100 palavras, não? Leonardo Luciano Sumário 13… Apresentação 14… Vanitas 15… Sósia 16… Boesia 17… Quando se perde a cabeça 18… 144 caracteres para Lucas 19… A banda 20… Amigo virtual 21… Diário 22… garota de juízo, Uma 23… (Des)Acordo 24… 144 caracteres para Júlio 25… À queima-roupa 26… Ageu 27… Amanhã e ontem 28… Animal em trânsito 29… Aqui se fala, aqui se cala 30… assombração, A 31… Ato reflexo 32… Avidez 33… bilhete, O 34… Bondade 35… brilhante ideia do ecologista Júlio Pacheco, A 36… capitão, O 37… casamento, O 38… choro, O 39… chuva, A 40… Começou a chover 41… Deus te abençoe 42… Dia de vestibular 43… discurso, O 44… Disputa 45… Eficiência sem limites 46… Estudo natural 47… exemplo público, O 48… Família no mundo atual 49… Felicidade apocalíptica 50… Flores 51… gente sua, A 52… Guepardo 53… Hoje 54… homem que desconhecia o impossível, O 55… Hora do Brasil 56… ladrão, O 57… Liberdade 58… Louquinha 59… Madrugada 60… Mais vida 61… Mergulho suicida 62… método publicitário, O 63… Momento 64… Montmartre 65… mundo como ele sendo, O 66… Na palma da mão 67… Naquele jardim 68… Ninguém é inocente 69… No hospício 70… Ofélia 71… Ontem 72… Para sempre Leonora 73… Parábola 74… Pé de meia na janela 75… Perseguição! 76… peso das horas, O 77… Pingentes 78… poeta sem nome, O 79… Problemas na linha 80… Quadrilha 81… Rastros de Otelo 82… Retrato do artista quando jovem 83… Romance fantástico 84… Salva-vidas 85… Sedução 86… Ser.vil 87… Síndrome de Korsakoff 88… Sobre a eternidade 89… Sons 90… velho e a janela, O 91… Velhos amigos 92… viagem, A 93… vírgula da questão, A 94… Voltar à realidade 95… Zoon politikon (animal político) Apresentação No final de 2011, a Prefeitura de Americana promoveu o concurso literário “100 palavras para deixar sem palavras”, aberto a todo o estado de São Paulo, com o objetivo de estimular a criação literária. A Secretaria de Cultura e Turismo, por meio da Biblioteca de Americana, desenvolveu o projeto e assumiu sua execução, posteriormente agregando o apoio da Editora Adonis, constante parceira em iniciativas culturais. A divulgação, através do site da Biblioteca e de blogs especializados, resultou em mais de 100 trabalhos inscritos, provenientes de 38 municípios. Em abril de 2012, a comissão de seleção definiu os quatro premiados e declarou mais quatro menções honrosas. Esta antologia, resultado da criatividade dos escritores participantes, da curadoria conjunta do júri e da equipe organizadora, bem como do esmerado trabalho editorial da Adonis, documenta esses esforços em sua forma mais satisfatória: um livro. Vanitas 14 1o Sósia 2o Cecília Hécata Heine Despertei com um dos braços esticado, sentindo a pele fria de Liliya, encolhida no chão, perto de mim, repleta de escoriações. Desviei o olhar ao reparar em suas roupas rasgadas, deixando à mostra seus seios modestos. Meu casaco fora abandonado sobre seu corpo magro e aparentemente frágil. Suficiente para protegê-la das gélidas correntes de ar que mergulhavam no recinto penumbroso. Alguns passos até a janela. Pensei em carregá-la para fora daquele ambiente pouco antes de ser surpreendido pela sua mão agarrando firmemente o meu pescoço, forçando minhas costas contra a parede. Caminhando, José sente segurarem seu braço. — Danilo! Uma garota com expressão roedora. — Desculpe, está enganada. — Que é isso, Danilo! Sou eu, Débora, da choperia. — Não a conheço. — Que desfeita é essa, Danilo? — Meu nome é José, desculpe, tenho pressa. Volta a caminhar, ainda escuta a garota: — Poxa, é a cara do Danilo! Noite seguinte, é apresentado a Isadora: — Isadora, José, José, Isadora. Trocam beijo, a moça o observa, desconfiada: — Disse que chama José... teria um irmão chamado Danilo? Em casa mira o espelho vazio. Seu reflexo só volta pela manhã, descabelado, cheio de desculpas. Anderson Monteiro Geraldo Santo Amaro (Distrito / SP) Jorge Lander Kenworthy Holambra-SP 15 Boesia 16 3o Quando se perde a cabeça K. Strange Claire Bernoulli — Insônia? — Você também? — Não. Busco inspiração. As estrelas tocam-me a alma. — Inspiração? Para quê? — Sou uma vaca poetisa. — Seu mugido é rimado? — Não. Minha poesia é marginal, estilo livre. — Por que escolheu isso? — Nasci assim. Diferente. — Você acha que escolhi ser de curral e com três filhotes? — Se não lhe agradasse a procriação, não a faria. É a lei do existencialismo. — O dono me obriga a reproduzir. Ele não conhece essa lei. — A mim ele também obriga, mas não obedeço; poetizo. — Não sei como contrariá-lo. — Busque inspiração. Agora, preciso escrever. — As estrelas tocaram-lhe a alma? — Não. É insônia mesmo. A arma fez um clique. A cabeça da mulher meneou tal qual o gatilho. Ele teve uma visão da explosão de carne, em breve inanimada, pintando de vermelho as paredes amarelas. Será que a mescla delas resultaria na cor laranja, como aprendeu na escola? Julgou o pensamento incoerente, mas controlar a verborragia do cérebro perante a adrenalina era impossível. Suas ordens eram cumpridas à risca pelo colega dela. Sem mortes, portanto, só joias e dinheiro. Ela captou o devaneio e se moveu bruscamente. Os tiros o trouxeram de volta ao quarto. Fora do pesadelo recorrente, dentro de seu último disparo. João Paulo Lopes de Meira Hergesel Alumínio-SP Nivia Cristina Fernandes Santos Americana-SP Menção Honrosa 17 144 caracteres para Lucas Euclides Tomoda 18 A banda Menção Honrosa Pancrácio Menção Honrosa Certo dia Deus resolveu abrir uma conta no Twitter, mas certamente se arrependeu. @Lucas: Senhor, por que os dez mandamentos são escritos em frases tão curtas? @Deus: Não é óbvio? Pra não exceder 144 caracteres, tolinho. @Lucas Senhor, tenho sofrido bullying. O que faço? @Deus: Você deve amar seu inimigo. @Lucas: Mas é por isso mesmo que me agridem. Eu estou apaixonado por um deles. @Lucas: Senhor, tenho déficit de atenção por ser da geração multitarefa. E agora? @Deus: Toma para ti o caminho da atenção nas coisas divinas. @Lucas: Jogando PS3... Um bando de amadores. Pouco profissionalismo, muito coração. Poucos instrumentos, muitas vozes. Cantavam alto, com alegria, pacificamente. A música não me agradava, tampouco me incomodava. Segurando minha mão, mamãe admirava-os, paralisada: “Que bonito, que bonito!”. Iam passando. Sua voz, amável e ansiosa, adicionou à canção derradeiro arranjo: “Fala para eles voltarem, filho”. Uma comoção egoísta impediu-me. Mamãe consolava-me, paralisada. Incutindo-lhe a última gota de um prazer singular, a banda partiu. Saíram cantando, pela frente. Mamãe saiu dias depois, em silêncio, pela porta dos fundos. Eu continuo naquele hospital, querendo agradecer a alguém, esperando a dor passar, remoendo restos de amor. Wander Luiz de Oliveira Santa Bárbara D’Oeste-SP Marcelo de Oliveira Vieitez Americana-SP 19 Diário Amigo virtual Inéd Avigdor Menção Honrosa Ligou, conectou, acessou. Na sala de bate-papo descobriu-se só. Esperou, esperou… Ninguém. Observou que dos amigos só lhe restaram os virtuais, que seu mundo transformara-se num imenso internato chamado internet, que o brilho do seu sol vinha do monitor que o monitorava dia e noite, que sua atividade física mais intensa era tec-tec-teclar. Tossiu apenas para ouvir o eco e ter certeza de que ainda vivia. Olhou espantado à sua volta. Sentiu um peso enorme sobre seu ego, enxergou, enfim, a silenciosa solidão. Engoliu a raiva do computador, sentiu saudade das pessoas, tomou uma atitude: desconectou-se. Da vida. Ninguém notou. 26/12/2009gqwfyysqwqdncm,zmu...w Menção Honrosa zzxwe............. 17/8/2008 Gostariade voltare aoop queera antiz 12/4/2008 Não seimais porquant tempo continure fazeno isss 25/12/2007 Natal em família. Todos muito gentis. Gentis demais. 27/9/2007 Aniversário. 56 anos. Sempre fui muito precoce. Sempre achei que era algo bom... 5/5/2007 Conheci um rapaz muito bonito que estava com meus dois filhos. Rodrigo. Olhava-me de um jeito estranho. Não entendi. 3/2/2007 Não faço mais relatos como costumava... Tudo muda quando menos esperamos. 25/12/2006Nunca passamos um Natal tão quieto. Ninguém sabia como agir. 26/9/2006 Meus filhos Carina, Jonas e Rodrigo arrasados. Minha esposa chorando. É mesmo Alzheimer. Deus me ajude! Denivaldo Píàia Campinas-SP 20 Weber Sauerbronn São Bernardo do Campo-SP 21 22 Uma garota de juízo (Des)Acordo 2012 Verissima No começo do namoro ela dizia que não podia por ser menor de idade. Além disso, devia obedecer aos pais. A religião não permitia, pois, antes de casar, era “pecado”. Ele esperava. Depois dos dezoito ela mudou o discurso: não tinha independência financeira. Ele, apaixonado, esperava. Ela divagava: não era a hora certa... Há que se ter controle sobre as emoções, explicava ela. Um dia, surgiu o Outro: mundano, boa prosa, irresistível sorriso sedutor. Ela sentiu desejo e correu alucinada para atirarse, em frenesi, nos braços dEle, que, sem entender nada, ficou, no entanto, imensamente feliz. Não gosto da ideia de ideia. Quem teve a ideia de roubar-lhe o acento? Também achava mais joia jóia, assim, com o agudinho no o. Feiura parece que ficou mais feio. Por que não convocaram uma assembleia? Sou a favor da assembléia. É preciso esforço para não perder o autocontrole, já que o auto-controle nunca tivemos. Exagero? Talvez tudo isso não passe mesmo de paranóia. Mas, de paranoia, não! Também não me venha pedir para fazer uma autoanálise. A única coisa que aceito é uma auto-análise. Essa eu agüento. E não se atreva a mexer no meu trema. Sonia Regina Rocha Rodrigues Santos-SP Gisele Maria Franchi Campinas-SP 23 24 144 caracteres para Júlio À queima-roupa Euclides Tomoda Roland Barthes Então Deus viu que o Twitter era bom e tratou de criar a sua conta. @Júlio: Senhor, eu sou ateu. O que faço para ter fé? @Deus: Quer que eu ligue a webcam pra você acreditar que eu existo? @Júlio: Sim, por favor. Deus então liga sua webcam. @Júlio: Mas, senhor, tudo o que vejo é a imagem da minha própria webcam. @Deus: Tolo... Eu o fiz à minha imagem e semelhança. Esse sou eu. @Júlio: Obrigado, senhor, agora acredito. Eram nove horas, estava eu recostada em um banco da velha pracinha quando deparei com aquele sujeito miúdo. A princípio pensei tratar-se de algum morador do bairro. Mas não. Após duas ou três palavras, soube que era zelador do prédio na rua detrás. À queima-roupa, perguntei: “Algum apartamento vazio?”. “Não”, respondeu. “Só o velho casarão.” Mais uma meia dúzia de palavras e convenci o sujeito. Ao entrar senti o cheiro forte de sangue. Eu não sairia mais desse casarão até que pudesse desvendar esse mistério, e para isso foi preciso não diria convencer o sujeito, mas simplesmente abrir a carteira. Wander Luiz de Oliveira Santa Bárbara D’Oeste-SP Sueli Pereira Aduan Sorocaba-SP 25 26 Ageu Amanhã e ontem Alas W. Yatsek Ouvi de noite alguém chamando Ageu, expiei, era só breu, lua nova, longe da aurora seu apogeu. Peguei minha lanterna, não era moderna, funcionava, queria lumiar, pilhas novas, não ia apagar. Fiz sinal da cruz, a gente nunca sabe, pode ser alma penada buscando luz, vagando na escuridão, clamando redenção. No corredor, o aparador e a Bíblia de Nosso Senhor, presente de minha mãe; abri e li um salmo de Davi. Meu pai de luto, disse filho astuto, corajoso valente, sua mãe voltou buscar a gente. Abri a porta depressa, engano, gritei, Ageu nunca fui eu, me chamo Abreu. Observo novamente pelo olho mágico: poucos minutos atrás, uma moça estava postada à porta com um menino; agora, uma senhora. Os rostos me parecem familiares. Afasto-me da porta. Abro um frasco de sonífero. O celular toca. Quê?... Me espanto ao ver que o número corresponde ao da casa onde morei quando criança. Clarissa! – Do quarto, a voz de meu pai... Ele já faleceu. Corro até lá, incrédula, e acendo a luz. Ninguém. Na porta da sala, a maçaneta gira em falso. O celular não para de tocar. Acordo assustada, suando. O frasco de sonífero ao meu lado, ainda lacrado. Andre Luiz Aparecido dos Santos Jaú-SP Rodrigo Zafra Toffolo Santos-SP 27 28 Animal em trânsito Aqui se fala, aqui se cala Thaís Belik Vilu Nguri Ele estava em um mato sem cachorro. Ela não sabia se casava ou comprava uma bicicleta. Ele era um gato. Ela era um avião. Logo ele quis que se tornassem pombinhos. Ela pensou: “Eita, trem bão!”. Ele matava um leão por dia. Ela passava por tudo como um trator. Ele descobriu que seria pai coruja. Ela inchou como um balão. Após dez anos, ele conheceu um tigrão e soltou a franga. Ela ficou a ver navios e abandonou o barco. O velho iconoclasta estava pasmo. Esse oficial aposentado tinha orgulho em dizer que, graças a ele, não havia ali boca de fumo, muito menos “função de calçada”. Acompanhado de Canindê, sua galinha, confabulava. — Muito estranho. O viúvo do 103 só de shorts colado, cercado de rapazinhos. A galinha escutava. Então uma vendedora trouxe produtos à esposa e só depois soube que ela era seu afilhado, Eduardinho. — Absurdo! Mas quem cospe para cima... Canindê passou a ficar mais robusta. Deu papo e a crista cresceu. Ovos, zero. Quando o velho ouviu o cantar de galo, o anátema virou canja. Claudia Hemsi Leventhal São Paulo-SP Ana Claudia de Souza de Oliveira São Paulo-SP 29 A assombração Ato reflexo Zé Balão W. Yatsek Exausto da viagem, deitei-me cedo, logo despertado por um ruído estranho! Acendi a luz e nada! Dormi, e outra vez o ruído. Diziam ser mal-assombrado aquele quarto da velha estalagem. Tarde já, um mais forte ainda, quando vi, com escancarada nitidez, um dos pés da minha botina se movendo aos trancos. Levantei-me resoluto, mas ela ainda se movimentou em direção à porta. Suando qual um condenado, peguei a dita cuja. Era um besouro daqueles com um chifre em curva no meio da testa o autor da proeza. Foi aí que não dormi mesmo, brincando com ele a noite toda. Gabriel Araújo dos Santos Campinas-SP 30 Parado na fila há quase uma hora, olhava para os lados, impaciente. De súbito, um brilho ofuscou seus olhos. Era o coldre metálico de uma arma ainda não sacada. Saiu da fila se esquivando, mas uma senhora o indagava, aflita, chamando a atenção de todos. Ignorou-a, mas o bandido o seguiu com os olhos, interessado em sua maleta. Percebeu a aproximação do sujeito, então correu. Ouviu tiros. Seguiu por várias ruas até achar que estava seguro e parou, ofegante e cansado. Julgou-se sortudo. Sob o sol, percebeu algo estranho: sua sombra não refletia no chão. Rodrigo Zafra Toffolo Santos-SP 31 32 Avidez O bilhete Claire Sissa Rasec Tão vago perambulava pela noite Jorge e seu gato, olhando de janela em janela, procurando acesa uma luz ou um sinal de vida qualquer. No quinto andar avista Clara, que reage com encanto e espanto – quem é aquele homem com um gato? Troca rápida de olhares, desejos à flor da pele. — Por que você não desce cá e me dá um beijo? — Jorge era assim mesmo, metido a viver. E ela, tão clara quanto o nome, apenas lhe joga um lenço amarelo, cuja cor lembra a gema, a gema que vive com a clara. E do beijo, avidez... Amor, ouvi quando você largou o telefone no chão e saiu correndo. Sei que está vindo feito louca, furando todos os semáforos. Não estou triste... Por favor, entenda como me sinto feliz pela decisão! Epicuro filosofava: temer aos deuses ou à morte é besteira; suportar a dor e ser feliz é possível... Mas se nenhum deus me assusta e em mim não há temor do futuro, por que eu não seria só feliz? Porque Epicuro errou. Eu me perdi sozinho, não se ofenda, nem seu amor pode mais me dar prazer. Não posso voltar atrás, tomei o veneno agora. Adeus. Taisa Maria Laviani da Silva Americana-SP Paulo Cesar de Assis Americana-SP 33 Bondade Leandro A brilhante ideia do ecologista Júlio Pacheco Sissa Rasec Felisberto estava preso. Nas filmagens nota-se um engenhoso plano da dupla; ele fingiria ser uma pessoa comum e caso acontecesse algo entraria em ação... O carro na fuga não funcionou, Felisberto então o empurrou e fugiram; metros depois o deixou para fugir a pé e foi pego pela polícia. Era um coitado, até convencer que ouviu tiros e pensou estar acontecendo um assalto – mal sabia que era a polícia chegando. Foi ajudar o homem que tentava fugir daquele caos empurrando seu carro. O ladrão lhe ofereceu uma carona e largou-o numa rua dizendo apenas “obrigado” com largo sorriso de gratidão. Luiz Gustavo Brasileiro Peixoto de Moraes Jacareí-SP 34 Júlio ajuntou computadores e ecologia. Cresceu em ambiente verde, por isso (ou por ser pobre, ninguém mais sabe) só andava de bicicleta e desprezava a paixão dos brasileiros por automóveis. Aos dezenove anos, veio a brilhante ideia: um aplicativo capaz de conscientizar os usuários de celular (talvez induzir) de que carro é uma praga poluidora – a pessoa passava a odiar automóveis. Nem tinha terminado quando recebeu das montadoras (claro) oferta irrecusável pelos direitos do programa. E assim, quando Júlio recebeu um cheque bem maior do que esperava, não vacilou: comprou no mesmo dia um reluzente carrão zerinho, último tipo! Paulo Cesar de Assis Americana-SP 35 36 O capitão O casamento Hunter Autum Durante anos em alto-mar, somente se aproximava da terra pra descarregar – de longe – o chumbo que estava na garganta de seus canhões. Um dia tiraram-lhe o barco. Afinal, a certa altura da guerra e da vida é o que fazem com qualquer capitão. Plaquinhas reluzentes de metal foram espetadas em sua farda impecável, depois de longos e enfadonhos rituais. Além da baixa, algum bom dinheiro lhe foi confiado para demonstrar o apreço pelos seus serviços. “Compre uma ilha! Construa seu próprio país!”, disseram. Ignorou o conselho. Comprou um lago. Morreu em paz, afogado em lembranças. Flávia amava Carlos havia muitos anos. Eram amigos. Mas ele era farrista, saía com várias garotas. Era lindo, alto, cabelos longos e castanhos, olhos verdes. Andava de moto custom. Flávia também era linda. Conheceram-se na primeira série. Nunca Carlos flertara com ela. Dezesseis anos depois, numa sorveteria, sacou um embrulho. Ao abrir, Flávia ficou boquiaberta. Um anel. “Quer casar comigo?”, perguntou Carlos. E marcaram a data do casamento. Ficou arranjado que a noiva chegaria no carro do pai, mas a partida para a lua de mel seria na moto. Logo na saída da rodovia um caminhão chocou-se contra eles. Enio Rodrigo Barbosa Silva Americana-SP Vivian Aurora de Moraes Bragagnolo Araraquara-SP 37 38 O choro A chuva Dominique Real Savage Na sexta-feira à noite, um amigo me ligou: — Jean, onde você está? — Estou num choro, e você? — Que coincidência, eu também estou chorando, estou triste, larguei da namorada. — Estou na porta do clube Bãozão, venha até aqui. — Estou indo – respondeu vindo ao meu encontro. Chegando lá observou que eu estava sorrindo ao lado de amigos. Ele estranha e pergunta: — Você não estava num choro? — E estou – respondi com alegria. — Sinta o poder do “Brasileirinho”. A música venceu, e pela primeira vez na vida vi um choro fazer outro choro virar sorriso. Até hoje ele me agradece. O céu escureceu tornando o dia negro como a noite. Tinha medo dos trovões e fui procurar o colo da minha mãe. Abraçado, perguntei-lhe como se formava a chuva, ela respondeu: “Quando o vento balança as árvores, seu ruído ecoa entre as montanhas, gigantes adormecidos da mata despertam, batendo seus machados nas pedras dentro da terra, faz-se um enorme estrondo e o chão se abre, saindo raios que atingem as nuvens, fazendo a chuva cair”. Sentia-me mais calmo ouvindo sua história, mesmo sabendo que não podia ser verdade, afinal, ninguém bateria nas pedras com um machado... Os gigantes usavam martelos. Leandro Raimundini Batatais-SP Gilson Mateus Damas São Paulo-SP 39 40 Começou a chover Deus te abençoe Bibiana Amaros “Chuvaaa!” Na minha infância, chuva era palavra mágica. Quanto mais intensa, melhor. Maior a diversão. Banhos, guerras de barro ou simplesmente ficar saltitando sobre poças como se a gente estivesse em campo minado. Dentro de casa, chá com pipoca e mais brincadeiras: stop, forca, cartas, teatrinho com roupas dos adultos... Falta de espaço? Só se fosse entre os ponteiros do tempo! Nunca dava pra fazer tudo... Hoje, os tempos são outros. Fecha o céu, e logo se ouvem as primeiras trovoadas: “Criançaaa! Acabou a brincadeira, desligue já esse computador! Começou a chover!”. “Raios!... Culpa dos raios.” Diante das palavras do padre, emudeceu. Olhou para o rosto aflito do noivo. Voltou o olhar para o padre e aquele sotaque italiano a perturbou. Com olhares súplices, todos aguardavam. Desistira do compromisso? Não seria ele o grande amor de sua vida? Atonitamente recordou a carta dantes recebida: “Anche se non sono stato presente in tutta la sua vita veramente ti amo e che Dio vi benedica mezzo di me. Seja o seu perdão de filha maior que o arrependimento de seu pai!”. A face novamente enrubescida, os olhos voltados ao noivo, olhou o padre e proferiu firmemente: — Sì! Aparecida Gianello dos Santos Martinópolis-SP Ana Maria Rosatto Servelhere Bragança Paulista-SP 41 42 Dia de vestibular O discurso Sula Keyes Eduardo Canhas. Dia de vestibular! O relógio não despertou. Na rua, corro para alcançar o ônibus. Mais um minuto e encontrarei os portões fechados. Muitos minutos após o embarque, percebo que tomei o ônibus errado. Tudo bem, se correr chegarei a tempo. Esbaforida, a dois passos do meu destino, paro de repente na iminência de ser atropelada. Um carro se aproxima a toda velocidade, a mesma em que os portões são fechados. “Não acredito que vou perder a prova para ser atropelada!” Ouço um barulho estridente e irritante: “Estou viva ou morta?!”. Com certeza atrasada. Abro os olhos, sobressaltada: o despertador tocava... Ele só tinha cem palavras para inocentar-se. Era acusado de matar a frio duas meninas e de roubar o maior banco da América Latina. Não tinha formação profissional. Porém, sobre a vida e assassinatos, vocês saberão no discurso do réu, por suas próprias palavras. Filho de uma mulher da vida, suou para sobreviver. Mas olhe eu de novo me intrometendo na história. Enfim: chegou ao banco do tribunal usando poucas roupas (ele explicar-se-á) e começou seu discurso de inocência para o júri (prestem atenção em suas palavras!): — Eu... Sueli Santos de Oliveira Americana-SP Matheus Duarte Ribeiro e Silva Jundiaí-SP 43 44 Disputa Eficiência sem limites Heine Roclides Paes Após seiscentas páginas, chega à última: em branco. Vai à livraria. — Este livro está com defeito. Consultam outros exemplares, em todos falta o final da história. Liga para a editora. A explicação: — Não tem última página. — Como não? — Não tem final. Por que achou que teria? — Normalmente... — Normalmente não é sempre. Adeus. Aborrecido, pega uma caneta, resolve terminar a história. Batem à porta, é o escritor do livro. — Não se atreva, a obra é minha. — Mas o livro é meu. Brigam. Depois, reconciliados, concordam que os fins não justificam os meios. Faltava retirar a caixa do porão do avião, detestava isso. O animal se mexia e latia, sempre. Desta vez, foi diferente. Nem um movimento, nada. Chamada a gerente, houve a abertura da caixa e a surpresa. Estava morto. “E agora, o que faremos?” A gerente perguntou para a equipe. Após o debate, a ideia. Achar um cachorro idêntico! Após algumas horas, a tarefa foi realizada com sucesso e ocorreu a entrega. Quando o passageiro viu o cachorro, surpreso, exclamou: “Essa companhia aérea é boa mesmo, o cachorro vai morto e chega vivo!”. Jorge Lander Kenworthy Holambra-SP Carine Teixeira Eleutério Guarulhos-SP 45 Estudo natural Froide Há homens que não gostam quando são chamados de “cachorro”. Ele era diferente, ele gostava. Dizia: ora, mas o que são as vontades para um cachorro senão as vontades de seu dono? Certa vez, puxou-me de canto, apreensivo, sério, e segredou-me aos ouvidos: quando o chamarem de cachorro, diga com orgulho que você é, sim, e que serve a um só dono: o Amor! É estranho, mas só então compreendi, verdadeiramente, a importância de bons professores em nossa vida. Valmir Luis Saldanha da Silva Araraquara-SP 46 O exemplo público Samuka Na escola, durante a Semana da Cidadania, alguns guardas palestravam sobre multas, direitos e deveres dos cidadãos para alunos do ensino fundamental: — Agora vocês sabem que jogar lixo em locais públicos dá multa, OK, criançada? Pedro, andando com sua mãe na praça, avista um guarda no carrinho de sorvete. Ele pega o picolé, sai chupando, senta no banco e joga no arbusto a embalagem. Pedro fica indignado e vai falar com ele: — Você não falou que jogar lixo em via pública dá multa? E agora, quem é que vai multar você? Quem deveria ser o exemplo deixou a desejar! Samuel Innocêncio da Silva Americana-SP 47 48 Família no mundo atual Felicidade apocalíptica Malachias Pancrácio — Cara, minha mulher agora inventou uma história de querer ter filho. Ela já tem 36 anos! — A minha uma época também tava com essas ideias, aí depois parou de falar. Você quer? – perguntou o amigo. — Sei lá! Nunca pensei nisso, mas é que agora ela está enchendo o saco. — Relaxa... Uma hora ela para de falar, a minha foi assim também. — E você queria? — Pra mim tanto fez, tanto faz... Se rolar tudo bem, se não rolar... compra um cachorro! 2012: seis bilhões morreram. Os humanos restantes harmonizaram-se. Trezentos anos se passaram. O planeta recuperou o verde, a água limpa. Há muito não se ouvia falar em fome, desemprego ou tristeza. Não havia polícia, exércitos. Porém, tecnologia transbordava. Só morriam centenários. De repente, um criminoso. Inacreditável. Mata pessoas. Desaparece. Após décadas planejando, infiltra-se no governo. Furta arquivos secretos à beira da extinção. Lê-os. Só mentiras. Passa longa data estarrecido. Recompõe-se. Arquiteta novo plano. Finalmente é pego. Sentindo inigualável felicidade, mata-se com um tiro. A polícia, que não “existia”, desesperou-se. Ao alcance de todos, o furto, de Homero a Drummond. Barbara Estela Batista da Silva São Bernardo do Campo-SP Marcelo de Oliveira Vieitez Americana-SP 49 50 Flores A gente sua Clarice Paes Verissima Encontraram-se. Ele era moreno, de cachinhos – o que só fazia aumentar sua paixão. Ela usava um vestido – não combinava com ela, mas estava tão cheia de amores, que se deixou seduzir pela estampa florida. Tomaram sorvete – que é uma dessas coisas incríveis que fazem a Terra ir mais devagar. Ela de groselha, ele de menta, mal podiam esperar para misturar sabores tão diferentes. Riram, conversaram, amaram-se devagarinho, conhecendo quem realmente eram. No meio da tarde, o sol alto, ele viu uma florzinha nascendo no asfalto. Era branca. Arrancou e enrolou no dedo da menina. “Namora comigo?” — Com esse calor, como a gente soa! — Sua. — Minha o quê? — Como a gente sua. — Mas você nem soa! — Quem soa é sino. — Essa é boa! Desde quando os sinos transpiram? — Não estou falando de “suar”, “verter suor pelos poros”, mas de “soar”, “emitir som”, “blim-blém”. — Lá vem você! Eu falo como quero! Cada um na sua... Ou cada um na soa? — Melhor deixar pra lá... — Ah, isso quer dizer que você não sabe! — Não. Isso quer dizer que essa conversa não está soando bem... Luiza Paes de Souza Lima Piracicaba-SP Gisele Maria Franchi Campinas-SP 51 52 Guepardo Hoje Holden Caulfield Nibar Savana africana. Dia sem mãe. Hora de crescer, se alimentar. Diriam que as duas linhas pretas que descem dos olhos até a boca seriam lágrimas permanentes. Permanentes são as garras, nunca completamente retraídas. Avista uma presa. Corre – um flash amarelo salpicado de manchas pretas. A lebre já sabe. Esquivou-se. Contudo a cauda é boa; a coluna, elástica. Outro bote. Ainda não. Agora eu vou... Fui! Minha barriga já roncava. Eu vou dar conta. Serei real nestes campos, caçador dos antílopes todos. Sou pleno. Ronronar. Mais um leão que vem. Fujo. E ninguém me pega. Estaciono o carro. Chove lá fora. Óculos e guarda-chuva. Caminho em direção à porta. Me sento. Ele está lá. Hoje eu falo com ele! Mas quando ele se aproxima toda minha coragem vai embora como água ralo abaixo. — Café? — Sim. — Forte, sem açúcar, com adoçante e um leite pingado? — Você decora o pedido de todo mundo assim? — Pra falar a verdade, você é a primeira. Ele sai para atender outros clientes, mas noto um número de telefone no guardanapo embaixo da xícara. Eu rio comigo mesma, era exatamente isso que eu ia fazer quando ele me trouxesse a conta. Caio Henrique Solla Sorocaba-SP Janaina Santos Barroso São Bernardo do Campo-SP 53 O homem que desconhecia o impossível Hora do Brasil Arapa Eleonor Sigma Ele sabia de absolutamente tudo, tinha a solução para qualquer problema, contava sempre as melhores histórias. Ele era o homem que desconhecia o impossível. Mas com o passar dos anos a verdade absoluta se assumiu ilusão. E então eu soube que ele não sabia de tudo, as soluções dele não resolviam mais os meus problemas, as histórias dele me envergonhavam. Aquele para quem eu corria para me sentir protegido era agora quem eu evitava a todo custo. O homem que desconhecia o impossível não existia mais. Pai, por que você nunca tentou provar que eu estava errado em odiá-lo? Roberta Grassi Maciente Guarulhos-SP 54 Em uma audição no Teatro Amazonas a sinfônica executava O Guarani quando um gaviãoreal pousou sobre a tuba. Em seguida ouviu-se o pio de um mutum e em pouco tempo a plateia atônita dividia o espaço com milhares de aves. Nos corredores deitaram mansamente algumas onças hipnotizadas pela música... Um bicho-preguiça deitou no colo de uma senhora, que vestia um lindo casaco de pele, um jacaré cochilou sobre o palco, homens e bichos sem caçadas e medo... Após o último acorde os pássaros cantaram – os bichos rosnaram, depois voltaram à floresta. O público aplaudiu de pé. Sílvio Valentin Liorbano Osasco-SP 55 56 O ladrão Liberdade Tonico Vieira Janie Dum Um ladrão resolvera invadir uma festa à fantasia, vestido de ladrão: meia-calça na cabeça, revólver de brinquedo na cintura. Quando, em determinado momento da festa, decidiu anunciar o assalto, ninguém achou graça. Ele corria e corria. Olhou para trás. Já estava sem fôlego, mas não podia parar agora. Chegou a uma ponte. Era o fim da linha. Loucura, mas era a única solução. Ele subiu no parapeito, de pé sobre o mar, os braços bem abertos, saboreando o vento no rosto, a sensação de absoluta liberdade. Ouviu os gritos. “Não!”, eles diziam. Queriam pegá-lo, mas vivo. Olhou para baixo. Não queria morrer. Recuou um passo. Olhou para trás, viu o buraco infinito dos canos das pistolas e a luz cegante das viaturas. Então pulou, sem pensar. Livre para sempre. Henrique Emidio de Jesus São Paulo-SP Karen Vaz Siqueira Alvares Santos-SP 57 Louquinha Madrugada Clara dos Anjos Anna Rosália “Bé bé bé bé!” Repetia incessantemente a todos, com aquele olhar de quem vê cataclismos. Teria por nome Luzia, mas era conhecida como Louquinha. De Jué nunca se soube o nome certo; cresceu na casa vizinha à dela. Tornou-se professor. Mas não usava dizer isso: dizia que era caçador de utopias. Certa tarde deu com Louquinha. Quando ela abriu a boca, no lugar do bordão, disse: “Professor, quando a humanidade abandonar o pensamento cartesiano, falarei com eles em uma língua inteligível, como esta que dirijo agora ao senhor”. Nisso, aproximava-se um distinto cavalheiro: “Bé bé bé bé...”. MARCELO RICIOLI São Paulo-SP 58 Revirou-se nas cobertas, pensou ver formas se mexendo no escuro. Suas entranhas doíam de pavor. Cobrir a cabeça não adiantava muito, logo perdia o ar. Queria acender a luz, mas o interruptor estava longe, os monstros podiam alcançá-lo se saísse de sua zona quase segura. Permaneceu assim por horas, sobressaltando-se ao mínimo ruído. Geralmente era só um cachorro uivando ao longe, mas ele ficava em assustada expectativa por minutos sem fim. Seus olhinhos insones ardiam. Já não podendo aguentar, o pequeno bicho-papão encheu os pulmões e gritou: — Mãe, acho que tem um humano em cima da minha cama! Thamires Cristina Silva Lourenço Araçatuba-SP 59 Mais vida Mergulho suicida Eleonor Sigma Amélia Ben Uma curva e você perde o controle. Seu carro se transforma em uma máquina de destruição, as mesmas ferragens que o protegem ameaçam-no transformar em uma massa amorfa e sem vida. Enquanto você é atirado em todas as direções e o cinto de segurança o prende ao banco, tudo o que você considerava ordinário, comum e sem graça ganha um valor especial. Tudo o que você está prestes a perder é o que você mais quer de volta. Uma curva rápida demais, o mundo gira desgovernadamente ao seu redor e você tem um único e último pedido: mais vida. Roberta Grassi Maciente Guarulhos-SP 60 Ela andava na rua e chorava E sem saber me salvou Pois naquele exato momento Eu me afogava em lágrimas secas. Rosana Banharoli Santo André-SP 61 62 O método publicitário Momento Mosca Varejeira Lady Lilith — Aprendi uma mágica – ele disse. Ela não se moveu. — Hilariante. Continuou assistindo à televisão. — Um mágico profissional me ensinou. Enfim desviou os olhos. — Como é? — Preciso de água gelada e guardanapos. — Só isso? — Só isso. Ela foi até a cozinha e trouxe tudo numa bandeja. — Calor horroroso! – ele exclamou, secando o rosto com os guardanapos. Bebeu a água, devolveu o copo, tornou a ajeitarse no sofá. — E a mágica? – ela perguntou. — Acabei de fazer. — Como assim? — Eu estava com sede, mas não queria parar de ver o filme. A hora de dormir seria a mais difícil… pois ainda se encontrava trêmula, com as mãos suadas e um rubor no rosto; ao deitar-se ao lado dele, podia ouvir os sons de seu coração que batia descompassado, sentia vontade de gritar, fugir, mas tinha de continuar ali, mesmo percebendo que as paredes de seu castelo agora desmoronavam, mesmo tendo percebido que seu príncipe voltara a ser um sapo e que ela, outrora princesa, tornara-se agora a gata borralheira; a rosa agora despetalada transformara-se em um ramo seco; restava a ela esperar a chuva cair e lavar sua alma… Gilberto Garcia da Silva Praia Grande-SP Francine de Oliveira Palma Sorocaba-SP 63 64 Montmartre O mundo, como ele sendo John B. Pessalis O artista pinta um quadro. O céu azul, os contornos do Sacré Coeur, sublimes. Ele pinta os estudantes sentados nas escadarias que se elevam até a basílica. Um poodle passeia em seu quadro. Há pássaros e flores. Ele pinta os turistas, as madames e os homens de terno. Fielmente, cada detalhe é imortalizado em cores. O artista se esforça ao máximo para atingir a perfeição. O quadro fica pronto. Um mendigo, que estava sentado todo o tempo nas escadarias, levanta-se curioso, para ver o olhar do pintor. Descobre, no canto em que estava sentado, um cinzento vazio. Nasci Anarina L9000, mundana, anônima de mim. Interiorana deste Estado. Habitante literária da ausência livreira. Impessoal. Aniquilada por gigabytes de causas-motivos. Partidária de cem partidos. RAMs de memórias. Dia noticiado, seguidor, veio-me Élim: — Vives rumando a esmo... Norteia comigo tua brisa. Dividimos Pará, sua condição, eu. Transcendemos Amazônia — Nova Era! Índios são outros. Semeamos liras fluorescentes no Acre. Coca-Cola tem acidulante. Dá tempo de votar. Ver transbordar o leste não navegado. Vendemos água nos links são-franciscanos, curtimos a vida na entrega rápida! Sem tempo e espaço, respaldei. Dezenove passos até o destino. On-line neste sonho. Cutucando a realidade. André Telucazu Kondo Caraguatatuba-SP Gabriela Moreno Americana-SP 65 66 Na palma da mão Naquele jardim Hunter Norma Sculptor As mãos sujas de fuligem revelaram um destino deinescapável. As linhas estavam lá, em baixorelevo, mais claras que o restante das palmas. Inconformado, não hesitou. Enfiou forte o canivete que trazia sempre na cinta, para cortar fumo, tentando assim reescrever o seu destino. Analfabeto também na quiromancia, teve a vida encurtada por uma doença do coração. Deixou mulher e dois filhos sem grandes sonhos, que nunca ligaram para crendices. — Não piso naquela casa. Sabem quantos corpos encontraram enterrados no jardim? – perguntava Fábio. — Meia dúzia! – ele mesmo respondia e continuava. — Não piso lá, por dinheiro nenhum. Claro que o discurso mudou quando Fábio se pegou enterrado em dívidas. Em desespero, só conseguiu ter uma ideia: entrar na casa e chantagear a viúva do assassino. Dona Rosália era uma velhinha frágil, muito religiosa. Ouviu Fábio enlamear a memória do falecido com falsas acusações. — Assassino, sim. Pedófilo, nunca! – gemeu a viúva, passando mal. — Preciso dos meus remédios. Dona Rosália pegou a pistola na gaveta. — Quer conhecer o jardim, Sr. Fábio? Enio Rodrigo Barbosa Silva Americana-SP Carla Ceres Oliveira Capeleti Piracicaba-SP 67 68 Ninguém é inocente No hospício Chantecler Zé Balão O homem assombrado segura o outro que acabou de ser baleado. Ajoelhado, ele examina o corpo inerte, passando a mão sobre o ferimento recém-adquirido. Ao molhar as mãos com o sangue ainda quente do infeliz, olha o semblante do morto e fecha seus olhos estatelados. Volta o rosto para trás e encara o atirador dizendo: — Ele era inocente! O autor dos disparos, segurando a arma com confiança, responde lenta e seguramente: — Ninguém é inocente! Achava-me a sós na sala de espera, e sem mais nem menos surge aquela figura alta, magra e encurvada! Saí correndo, ele atrás, com uma faca enorme! Quando vi, era o final de um imenso corredor! Encostei-me na parede e com as mãos nos olhos fiquei aguardando pelo pior, quando senti uma de suas mãos tocar-me o ombro... Com o riso descontrolado naquela boca escancarada e babenta, o desatinado falou: “Agora é a sua vez, corra atrás de mim!”. Luís Antônio de Filippi Chaim Espírito Santo do Pinhal-SP Gabriel Araújo dos Santos Campinas-SP 69 70 Ofélia Ontem Holden Caulfield Nibar — Venha, Ofélia. — Quem é você? — Meu nome é qualquer nome. Por favor, adentre o meu mistério. Não importa o que tenha lhe acontecido, vai passar. Comigo. Caminhou mais para perto dela. — Sim, Ofélia. Precisa do meu abraço. Por mais que eu seja uma estranha, devo salvá-la. Sua vida é importante. Venha fluir. — Está frio. — Esqueça. O meu corpo é quente. Veja, está me alcançando. Mais um pouco... — Você é tão bonita. — Vê? Pareço com você, meu amor. — Meu amor... Amaram-se profundamente. Ofélia é mais uma gota no mar. Ela sempre vem na mesma hora. Fica me olhando sem olhar, mas não sabe que eu sou louco por ela desde a escola. Sempre estaciona seu carro colocando os óculos. Sempre me pede café sem açúcar, com adoçante e leite pingado. Sempre a recebo sorrindo, mas é puro nervosismo. Hoje eu falo com ela. Mas quando me aproximo, eu hesito. E se ela só estiver me confundindo com alguém? Sempre faz sol quando ela vem. Se amanhã chover, eu juro que deixo meu telefone embaixo de seu café. Ela é tão linda. — O de sempre? — Sim, por favor. Caio Henrique Solla Sorocaba-SP Janaina Santos Barroso São Bernardo do Campo-SP 71 72 Para sempre Leonora Parábola Alberto Clara dos Anjos Vinho ensanguentado derramado. Leonora, Humberto, casados. Paulo, um representante comercial. Todos sentados à mesa. Na morte, o amante. Envenenamento? Humberto em caixão de compensado lacrado. Rosto retalhado. Esposa, num velar encenado. Vulto. Um homem vestido com sobretudo escuro aproxima-se da viúva, concedendo condolências, perguntando: “Como estou, Leonora?”. No desmaiar repentino, ela abandona o local em desatino para junto do homem destino. “Quem é você?”, pergunta Leonora. Humberto, com face de Paulo, um sorriso sinistro nos lábios, responde: “Leonora, sou seu amor eterno, Humberto”. Encerra-se na piscadela do obscuro beijo, no tilintar da nova taça. Naquele lugar, cada palavra custava dinheiro. Assim, quem era pobre não podia dizer muita coisa. Mas, como não dizia nada, fazia muita cara feia. E pobre de cara feia assusta o rico. Então, os ricos confabularam e decidiram criar uma palavra para dar de graça ao povo. E deram: UTOPIA, para quem quisesse. O povo, que era pensativo, descobriu com isso que podia inventar palavras. E assim passaram muito tempo, em surdina, fabricando uma palavra nova, artesanal, feita por todos. Um dia, disseramna, juntos, no meio da praça: REVOLUÇÃO. E aquele lugar nunca mais foi o mesmo. Danilo Souza Pelloso Lucélia-SP Marcelo Ricioli São Paulo-SP 73 74 Pé de meia na janela Perseguição! Areg Abidê Não tinha chaminé ou árvore decorada com motivos natalinos. Não tinha presente. Nem futuro. Apenas ali pendurada na janela – surrada, lasseada, abandonada, solitária, vazia – a meia de seda da sua querida avó que, inocentemente transformada em capuz, foi o seu primeiro passo para a delinquência e a marginalidade. Noite infeliz! O gato fugia desvairado, pois o cachorro o perseguia ferozmente. Apesar da extrema agilidade, o gato não se livrava do perseguidor. Saltando latas e poças, atravessando ruas e cercas, o drama se desenrolava célere. Seu final se delineava dantesco! Daí, uma luz! A salvação? O GATO SUBIU NUM TELHADO! Que alívio! MAS O CACHORRO SUBIU ATRÁS VELOZMENTE! O gato, incrédulo e em pânico, saltava de telha em telha com o cachorro sempre na sua cola! Nada parecia capaz de detê-lo! O gato, então, desceu rapidinho! E o cachorro... descobriu que tinha acrofobia. Tá lá até hoje!... Geraldo Trombin Americana-SP Fabiano Amaral De Barros Jaguariúna-SP 75 76 O peso das horas Pingentes Maum Chantecler Ela tem 26 anos. Sempre acorda com a mente leve como céu infinito, sem nunca saber o que sonhou. Toda manhã: ele vem, sedento, e senta ao lado dela, ri com ela. Ela abre as pernas e se dá: risonha, cotidiana, clara, amada. Mas, ao almoço, ela soturna. E, às tardes, some. Num fim de tarde, desconexa, nojenta, séria, avisou-o: às (todas as) noites, não te amo. Todos os dias, a cada hora (cada gesto, riso, bater-de-pálpebras) voltam as lembranças de tudo que ela é. Às noites, todas, ele foge dela. Pois, em todos os pores do sol, ela envelhece. Os pingentes do lustre de cristal foram despencando um a um. Aqueles que caíram e não quebraram foram guardados em uma gaveta qualquer. Os anos e os pingentes ficaram esquecidos. O lustre foi retirado, trocado por uma luminária fria e sem brilho. Num dia desses, revirando o passado, encontrou pingentes guardados. A luz refletida no cristal trabalhado trouxe-lhe lembranças caras. As festas dadas sob o olhar atento do lustre, jantares enriquecidos com a presença de familiares já desencarnados, beijos doces e enamorados, uma vitrola tocando valsas, brincadeiras, danças e vida. Como podem apenas alguns pingentes trazer tantas saudades? Fernanda Cristina de Paula Jaguariúna-SP Luís Antônio de Filippi Chaim Espírito Santo do Pinhal-SP 77 78 O poeta sem nome Problemas na linha Arynna Serteck Tonico Vieira Ela estava atordoada. Olhara ao redor, não reconhecera nada. Num instante sua mente clareou. Não sabia ao certo se era devaneio ou realidade ofuscante aos olhos. Eram muros da Universidade do Porto, envolviam-na quase como um abraço. Um breve suspiro. Já não podia mais conter-se. Quando ouviu sussurros. — Mundo: fragmentos oníricos já diziam líricos. — Era o poeta sem nome, homem de grande mistério. Entreolharam-se. Enamoraram-se. Beijaram-se. Ele desapareceu em brisa. Procurou-o sem sucesso. Refletiu sobre o dito do poeta. Caminhou pelos imensos corredores. Imaginou-se menina correndo. Rodopiou. Entre livros se escondeu. Partiu. Mas com o mundo refeito em sonho. Fora mancada, sabia. Estava desesperado. Conhecia o gênio: baiana, mulata, “vai me matar”. Assim mesmo procurou o cartão telefônico no bolso e parou no primeiro orelhão. Eram 2h35 da madrugada, era tarde. Tremia enquanto a campainha do telefone tocava – estava gelado. — Alô? – era ela. — Alô, Mara? – era ele. Mas não sabia ao certo o que dizer, se havia o quê. — É que... que... – quando nervoso, gaguejava. Ela ficando cada vez mais impaciente. — É que... que... A relação estava por um fio, quando o telefone ficou mudo. Ana Carolina de Souza Alencar São Paulo-SP Henrique Emidio de Jesus São Paulo-SP 79 80 Quadrilha Rastros de Otelo Leandro Pepe Vitorino Dessa vez havia se ferido, o fim do relacionamento de anos pegara Adamastor de surpresa, não entendia o porquê do fim. Roberta, amiga de sua ex-namorada, quando soube do ocorrido, entrou em contato com Adamastor para saber se passava bem. O rapaz lembrou-se da ex-namorada e julgou não haver melhor forma de vingança do que beijar a melhor amiga dela; marcaram um encontro. Roberta era bela, fez de tudo para consolar o rapaz, que nem se lembrava mais da ex-namorada. Ele tomou coragem e beijou Roberta, que soltou um berro: — Que é isso, “rapá”? Eu tô pegando sua ex! O homem caiu extenuado sobre a terra lavada pelo temporal. Sustinha mal o coração no peito, batendo ligeiro, alarmado pela desconfiança. Apertou os olhos e suspendeu a respiração quando uma violenta dor veio lhe perfurar as entranhas. O suor lhe descia pelas têmporas. Passado o momento, arregalou o olhar inumano para além e além dentro da mata. O céu tornou-se ainda mais imenso. Resvalou pelo chão úmido. À beira da estrada, descobriu a linguazinha afoita, sondando as oscilações da atmosfera. A camponesa assomou na curva trazendo o cesto das frutas. Ele colocou-se em posição de ataque, enrodilhado todo, mal respirando. Luiz Gustavo Brasileiro Peixoto de Moraes Jacareí-SP Edivânia Tavares da Silva São Bernardo do Campo-SP 81 Retrato do artista quando jovem Romance fantástico K. Strange Froide Quando minha mãe me pegou mentindo pela primeira vez, fez um escarcéu danado. Quase arrancou minhas orelhas enquanto, em vão, eu argumentava: “Mas se todos fazem...”. Logo, percebendo que eu tinha vocação para político, comprou um livrinho e me deu. Diferentemente do que ela queria, o livro não me salvou de mentir. Entretanto, me ensinou a fantasiar cada mentira, floreá-la e colocá-la no lugar certo, como um vaso que você veste de verde para vê-lo transformar-se em folhagem. Valmir Luis Saldanha da Silva Araraquara-SP 82 O fogo do cachimbo encontrou as chamas do pescoço, e as duas criaturas se apaixonaram fantasticamente. Saci e Mula protagonizaram o romance mais sem pé nem cabeça já (in)existente. João Paulo Lopes de Meira Hergesel Alumínio-SP 83 84 Salva-vidas Sedução John B. Lady Lilith O moleque era terrível. Chutava a canela dos funcionários, fazia xixi na piscina, ofendia todo mundo. O salva-vidas, cansado de tanta malcriação, perdeu a paciência. Pelo cangote, atirou o menino na água, com roupa e tudo. — Vou chamar o meu pai. Você está ferrado, idiota! Não foi preciso chamar. O pai, furioso, já estava na beira da piscina. Homem rico, influente... “Estou morto”, o salva-vidas pensou. — Obrigado – o pai lhe agradeceu, botando o filho de castigo. — Dissemos que ele saltou na piscina e você o salvou... O salva-vidas, sorrindo, disse: — Você me salvou! Durante uma briga entre os deuses pelo amor de Afrodite, apesar de seu desprezo por todos, e antes que Zeus decidisse casá-la com Hefesto, Afrodite, cansada dessa vida de ser apenas uma mulher sedutora, resolve mudar. Corta os cabelos, veste-se como uma mortal, suja-se de lama e esconde-se em uma caverna banhada pelo oceano. Queria ser uma criatura repugnante aos olhos dos homens e dos deuses. Mas eis que Poseidon, sem a reconhecer, começa a olhá-la e admirá-la, diariamente, e pouco a pouco se apaixona por aquela criatura. De nada adiantara sua fuga, seu disfarce. Afrodite continuava irresistivelmente sedutora. André Telucazu Kondo Caraguatatuba-SP Francine de Oliveira Palma Sorocaba-SP 85 86 Ser.vil Síndrome de Korsakoff Areg Gregor Samsa Era letrado, escritor; jornalista; diretor executivo, editor, roteirista; produtor; locutor; bacharel; ativista cultural; pesquisador; professor; consultor; empreendedor; investidor; enólogo; cinéfilo; músico; curador; fotógrafo; atleta; apreciador de boa comida e bebida; colecionador de carrinhos Hot Wheels, latinhas de cerveja, bolachas de chope, cartões-postais, relógios, gravatas, óculos de sol, selos, LPs, CDs e souvenirs. Era também bonito, esguio, charmoso, elegante, sedutor, paquerador, praticante de artes marciais, artes cênicas, artes visuais, artes plásticas, artes culinárias. Nossa! Era tudo de bom! Só esqueceu o mais importante: ser humano! Tudo estava perfeito! Nosso time campeão do torneio universitário e a comemoração marcada. Mas tudo mudou quando vim parar nesta sala. A porta se abriu delicadamente, um homem de paletó impecável entrou em passos ritmados... Só então eu fui lembrar... Lamentei... Não havia mais como voltar atrás... Ele olhou friamente na minha direção... Atormentava-me o modo como suas mãos estavam posicionadas nos bolsos de sua calça... Abaixei a cabeça... Senti uma gota de suor escorrer pela testa quando o ouvi falar de modo propositadamente calmo: — Sr. Daniel, a classe aguarda por seu seminário sobre a síndrome de Korsakoff. geraldo trombin Americana-SP Victor Hugo Fischer Ribeiro da Silva Ribeirão Preto-SP 87 88 Sobre a eternidade Sons Claire Bernoulli Janie Dum Contava histórias de vida, sonhos e lendas para os filhos. Os anos mantiveram o encanto dos personagens e seus apuros, amores e conquistas. Os netos agradeciam por isso, ávidos por mais um pedacinho daquele mundo invisível cada vez que a ouviam. Um dia, a sequência emocionante de uma trama se perdeu como fio solto em um tear, e os pequenos não entenderam a razão. Os médicos garantiram, na semana seguinte, que a memória se esvairia aos poucos. Logo, transmutouse em palavras. Os enredos bordados em caligrafia cuidadosa nos cadernos à tinta a deixariam por inteiro com os netos para sempre. Velocidade. Esse era seu sobrenome. Gostava do motor roncando, do vento uivando, das imagens passando velozes pelo canto dos olhos. 100, 120, 150 por hora. Adrenalina. Aquele era seu esporte. O único som de que não gostava era o da freada. Aquele assovio agourento. Uma batida. Um corpo voando, caindo de borco no asfalto em um ângulo estranho. O silêncio. Sangue. Estava paralisado. O corpo ou ele? Não poderia saber. Estava quase saindo do carro quando ouviu outro som: sirenes. Altas, insistentes, atrás dele? Não havia tempo. Arrancou, o carro assoviou. Fugiu. Mas não de sua consciência. Nivia Cristina Fernandes Santos Americana-SP Karen Vaz Siqueira Alvares Santos-SP 89 90 O velho e a janela Velhos amigos Kit Karson Mosca Varejeira Ali fica ele. O velho e a janela da cortina amarela. Observando o comportamento do mundo vil que ele jamais viu. Através da cortina amarela, estuda. Analisa. Enxergando o que ninguém vê. O oculto. Como o justo virando corrupto. A igreja com o dinheiro no púlpito. O respeito menor que a ambição. A letra musical desrespeitando a canção. Da janela ele apenas fala o que vê. Sem medo. Sem arrependimento. Interpretando o momento. Sem constrangimento. Como se seus olhos fossem a janela. A cortina, sua ideologia. Meio amarela. Suja. De tantas visões. De tanta janela. Chegaram a uma encruzilhada. Ela disse para ir em frente e ele perdeu a paciência: — É cientista?!! Tem GPS no cérebro??!!! Girou o volante para a direita. Ela cruzou os braços e amarrou a cara. Os postes acabaram, as casas desapareceram, surgiram crateras. Ele engoliu o palavrão que proclamaria a derrota. Endireitou a escoliose para virar o carro. Antes que conseguisse, três vultos desenharam-se contra os faróis. Aproximaram-se, acariciando as armas. Ele olhou para o lado. Junto com o medo, ela irradiava satisfação. Não perdeu um segundo. Desligou o motor e abriu a porta, sorrindo: — Demorei muito, pessoal? Bruno Martins Abrão Americana-SP Gilberto Garcia da Silva Praia Grande-SP 91 92 A viagem A vírgula da questão Guinevere Bibiana Assustei-me ao ser arrebatado por súbita agitação – ora tão bem seguro, ora solto e levado. Arrastado e devastado. Vejo-me em tons de bronze e sou revestido de extrema fragilidade. Corto por entre árvores com rapidez, sortudo por não haver colisão. Logo sinto falta de casa e me arrependo por não ter me empenhado mais em ser forte. O vento se acalma e começo a descer. Espero que a queda não resuma minha existência ainda mais. Aconchego-me aos outros corpos castanhos e juntos somos uma nova família: a de folhas de outono à espera de crianças para separarem-nos novamente. Melhor começar pondo os pingos nos “is”. Contudo, que ninguém mexa nos meus entre parênteses; reino secreto onde posso ser eu: soldado e tenente, rainha e súdita, quebra-regras dos próprios mandos. Dúvida. Cruel dúvida detendo-me à frente do espelho: “Que vestir?”, eis a vírgula da questão. Chega! Decido. Cuspo-te afinal. Acompanhame se quiseres, sua espertinha! Mas não podes, jamais, ganhar de mim. Não sei calar-te, mas sei vingar-me. Eis que me valho da decisão. Bendita decisão a quem estás sujeita. Sim, senhora. Sai da frente! Pois não é à toa que visto saias!... ... E ponto final. Olivia Pironato Furlan Americana-SP Aparecida Gianello dos Santos Martinópolis-SP 93 Voltar à realidade Raulzito Júnior Zoon politikon (animal político) Cíceron Bellizárius Depois de um dia turbulento, nada como uma cama macia, a cabeça no travesseiro, relaxar. Vagar pelo infinito, deixar os pensamentos aflorarem, esperar calmamente o sono chegar. Rajadas de tiros, corpos caindo, ao seu lado o amigo de tantas batalhas. Correr para dentro da floresta, perseguida por cães raivosos. O coração bate acelerado, sem medo, somente uma louca vontade de fugir e amanhã cobrar desses insanos o sangue derramado de seu “irmão”. De repente um clarão invade seus olhos, um alguém vem em sua direção, um enorme sorriso estampado no rosto, se aproxima... — Bom dia, senhora presidenta. Edenilson Conterato Americana-SP 94 Aprendi nos antigos seriados policiais da TV: ninguém é obrigado a falar senão em juízo. Mas por falta de juízo, escrúpulo ou vergonha, e também movido por um tolo lapso de vaidade, ascendi ao parlatório. “Não tenho palavras…”, comecei dizendo. E mentia. Haja vista que, além da habilidade de falar inverdades, tinha o dom da oratória. Se apenas me ativesse à máxima que afirma que quem cala consente, não teria sequer aberto a boca. E me salvaria o não dizer. Mantendo-a fechada, também evitaria as incômodas e abundantes moscas não menos oportunistas que eu. “Parla!”, esbofeteei-me o verniz da face. Francisco Pascoal Pinto São Paulo-SP 95 Este livro virtual foi feito no inverno de 2012 pela Gráfica e Editora Adonis. Agradecemos ao empenho de todos os envolvidos para a publicação desta obra.