Parábola bom samaritano

Transcrição

Parábola bom samaritano
PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO
Desafios bíblicos à prática da vida humana e cristã
Uma leitura de Lc 10,25-37
António Couto, Bispo de Lamego
I. A história paradigmática
do bom samaritano: texto e contexto
Um legista queria saber o que fazer para receber a vida eterna; sendo levado a ler que era
amando a Deus e ao próximo no cumpri-mento dos mandamentos, quis depois saber quem era o
seu próximo. Jesus disse-lhe esta história paradigmática, em Lucas 10,30-35:
«30…UM HOMEM descia de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos ASSALTANTES que, depois de o
roubarem e espancarem, se foram embora deixando-o meio morto. 31Por coincidência, descia por aquela estrada UM SACERDOTE que, ao vê-lo, passou pelo outro lado. 32Do mesmo modo, também
33Mas
UM LEVITA, chegando ao lugar, e vendo, passou pelo outro lado.
UM SAMARITANO, que ia de
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viagem, veio junto dele, e vendo, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, cuidou das suas
feridas derramando óleo e vinho, colocou-o na sua montada, levou-o para a hospedaria e cuidou
dele. 35No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao HOSPEDEIRO e disse: “Cuida dele, e o que
gastares a mais, repor-to-ei quando voltar”»
Todos conhecemos a sequência da história e a forma como, pedagogicamente conduzido por Jesus,
o legista tirou correta-mente a moral da história, ficando a saber talvez mais do que queria fazer,
e talvez menos do que queria saber. Ficou a saber o que fazer para ser o próximo de alguém; não
sa-bemos, porém, se terá ficado a saber quem e-ra o seu verdadeiro próximo, o único que nos pode
fazer próximos.
Bem sabemos que as perguntas do legista não são perguntas inocentes, dado que a primeira é para
experimentar Jesus (Lc 10, 25), e a segunda é para se justificar a si mesmo (Lc 10,29). As
duas perguntas mostram um legista centrado em si mesmo, auto-suficiente, arrogante, calculista e
executi-vo, que quer fazer antes de receber, e que vê os outros em círculos traçados à sua volta,
nomeadamente Jesus, a quem sorrateiramente arma um laço.
II. Paradigma de identidade ou paradigma de alteridade.
Viver a partir de mim ou a partir do outro
Os ladrões viram «um homem» que descia de Jerusalém para Jericó. Mas, mais do que um homem,
viram um objeto de que se podiam apoderar e usufruir, aumentando assim o seu mundo e o seu
domínio.
Roubado e meio morto, este «um homem» da parábola não tem agora nenhum dinheiro nem poder
nenhum. Os homens do poder bem o veem, e por isso o evitam, passando cautelosamente pelo
outro lado da estrada. Eles bem sabem que aquele desvalido em nada pode aumentar o poder e a
impor-tância deles, nem satisfazer nenhum desejo deles. Só lhes traria complicações. Iriam perder
tempo, beliscar seu o prestígio, manchar as mãos. E afinal, aquele «um homem» desvalido já não
era sequer um objeto apetecível, mas apenas um «dejeto» da sociedade.
O contraponto vem de «um samaritano». O texto mostra magistralmente que também ele «vê» o
homem meio morto e «desvalido», acentuando, todavia, a originali-dade e a qualidade desta
«visão»: O sacerdote e o levita veem-no, e, por o terem visto, afastam-se; ao contrário, o
samaritano che-gou primeiro junto dele, e por ter chegado junto dele, é que o vê. O «ver» do
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samaritano vem depois do «chegar-se junto dele»: não é condição (aproximo-me de ti, porque te
vi), mas consequência (vejo-te, porque me aproximei de ti). O samaritano não «viu» o homem meio
morto e «desvalido» como se veem objetos, mas ouviu a sua palavra, e foi precisamente porque lhe
obedeceu respondendo «eis-me aqui», que ficou em condições de o ver e teve compaixão dele,
interrompeu a sua viagem, cuidou dele, perdeu tempo, per-deu dinheiro.
Estamos perante dois paradigmas de comportamento: o paradigma de identidade e o
paradigma de alteridade. O paradi-gma de identidade marca os comportamen-tos dos
assaltantes, do sacerdote e do levita. Embora de maneiras diferentes, todos vivem para si e a partir
de si, natural e espontane-amente, pautando o seu comportamento pe-lo interesse, autoconservação, auto-expan-são, auto-realização e auto-satisfação; aquilo a que Levinas chama
«egoísmo alérgico» – os nossos egoísmos em guerra uns contra os outros, todos contra todos.
Ao contrário, o samaritano não vive para si e a partir de si, debruçado sobre si mesmo, «ruminando
as suas próprias palavras» (Sl 49,14) dentro do seu arco desiderativo, projetual e instintivo; mas
vive para o outro e a partir do outro, não com o fito da auto-rea-lização e da auto-satisfação, do
proveito próprio ou do lucro, mas auto-destituindo-se para servir incondicionalmente o outro, para
dar a vida ao outro.
Viver a partir de mim, seguindo espontaneamente ou dando livre curso aos meus desejos,
projetos e instintos, buscando a auto-satisfação, integrando e dominando o outro para o pôr ao meu
serviço, ou viver a partir do outro, pondo-me eu ao seu serviço, são duas maneiras
irreconciliáveis de viver. Está aqui o primeiro desafio que eu sou diariamente chamado a enfrentar,
e também o primeiro desafio que a Bíblia lança à moral.
Neste sentido, o coração da mensagem bíblica, quer do Antigo quer do Novo Testamento
(sobretudo do Novo), e que é também o coração «removido» da tradição hebraico-cristã, em que
pulsa a gratuidade, a bondade e o desinteresse, não terá chegado a atingir plenamente o
coração do homem dos dois primeiros milénios da era cristã, talvez porque, ao longo destes dois mil
anos, se tenha servido com bastante água o «vinho da revelação», no intuito, errado, de o tornar
mais apetecível à cultura grega, que é a nossa. De facto, o coração da mensagem bíblica –
traduzido na gratuidade, na bondade radical e no desinteresse – não chegou a pulsar
verdadeiramente na nossa cultura, tendo sido vivido e testemunhado apenas por “justos” e por
“santos”; mas pode e deve ser o dom maior a oferecer às pessoas do terceiro milénio.
III. O meu próximo é aquele que me dá
a vida verdadeira
Ao fio do texto, sobressai a ação boa do bom samaritano, sendo por isso que as diversas traduções
da Bíblia titulam habitualmente esta história por «parábola do bom samaritano» (e é também assim
que nós a conhecemos), salientando a ação daquele que pôs de lado os seus projetos e se fez
próximo da-quele «um homem» meio morto, salvando-lhe a vida. Desta leitura ao fio do texto,
resulta óbvio que o grande beneficiado deste encon-tro entre o samaritano e o homem meio mor-to
foi o homem meio morto.
Como bem refere Paul Beauchamp, «explicar um texto é dizer o que ele não diz». De facto, não
basta copiá-lo; é necessário fa-zer outro texto. Vejamos, portanto, um pouco mais fundo na
tentativa de chegarmos a ouvir a voz não ouvida no texto: a voz do homem meio morto. Escutar a
voz ainda não ouvida é, biblicamente, a grande experiência que nos toca fazer. É pôr-se à
escuta da voz da criação, pois a voz criadora é silenciosa: voz que nunca se ouviu, silêncio que
nunca se calou.
Tendo-se aproximado daquele «um homem» meio morto, sem nenhum poder nem dizer, o
samaritano sentiu-se interpelado por um mandamento fortíssimo, que soa: «cuida de mim, salvame!» Estava ali «um homem» que se entregava completamente àquele samaritano, deixando-lhe
toda a sua vida nas mãos. Exatamente como sucede quando eu tropeço no meu caminho ou à
minha porta com um ser humano entre a vida e a morte. Ele não faz nada, não diz nada, não
levanta a voz, não reivindica nada. E, todavia, eu oiço um mandamento fortíssimo, não condicional
[= «se quiseres, podes salvar-me»], mas in-condicional [= «tu deves salvar-me!»], que me obriga
a tomar uma decisão indeclinável.
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O que se passa, na verdade, é que aquele ser humano que jaz à minha porta se entrega
completamente a mim, e, entregando-se completamente a mim, entrega-me a mim, isto é, libertame do meu eu espontâneo e de-terminístico, e institui-me como ser respon-sável na verdadeira
aceção da palavra, para que eu me possa entregar livremente a ele.
Vendo bem, a minha resposta positiva àquele «um homem» meio morto e «desvalido» não se
inscreve no horizonte da animalidade, da necessidade e da espontaneidade, pois não há nele
nenhum «valor» que me seduza, que satisfaça os meus desejos ou realize os meus projetos. Mas
oiço um manda-mento, o maior dos mandamentos, que não provém de qualquer outra coação
exterior; provém daquele homem meio morto, que, na sua radical pobreza e impotência, me
aparece como verdadeiro soberano, com muito mais poder do que qualquer Hitler ou Estaline. A
estes, eu posso obedecer só enquanto sou obrigado, porque só têm o poder de me subjugar. Não
têm o poder de me dar a li-berdade, de me recriar. Aquele homem meio morto, é que é o
verdadeiro soberano, pois, ao entregar-se a mim sem arma nenhuma, ordenou que eu me
entregasse livremente a ele, concedendo-me aí a liberdade radical e instituindo-me como sujeito de
responsabilidade indeclinável por ele.
Vendo bem, aquilo que eu fiz e o samaritano fez, não é explicável pelas leis elementares da
natureza. É da ordem do milagre – o inesperado imprevisto, assente na liberda-de dada. Ao fio do
texto, é o homem meio morto que sai beneficiado daquele encontro com o samaritano ou comigo.
Mas, vistas as coisas mais a fundo, talvez tenhamos de re-conhecer que o verdadeiro beneficiado é
o sa-maritano e sou eu, a quem o homem meio morto abriu um horizonte novo, para além da
necessidade e da espontaneidade: o horizonte da gratuidade e da liberdade para o amor de
alteridade, não de éros, mas de agápê.
Dissemos que, no seu encontro com Jesus, quando quis saber quem era o seu próximo, talvez o
legista ficasse a saber mais do que queria fazer, e talvez menos do que queria saber. Ficou a
saber o que fazer para ser o próximo de alguém. Mas não sabemos se ficou a saber quem era o
seu verdadeiro próximo, o único que nos pode chamar a ser pró-ximos.
O percurso que fizemos mostra que o nosso próximo é aquele que primeiro se entrega a nós,
concedendo-nos o dom da liberdade e da vida. A proximidade do samaritano ou a minha será
sempre a segunda resposta a uma proximidade primeira que, pri-meiro, me chamou e amou. Por
isso, aguda-mente a parábola mostra que a proximidade do samaritano não brota da visão, pois
está antes da visão, mas da escuta, não se produzindo, portanto, diante do outro como objeto, mas
diante do outro como apelo, que me precede e me institui como próximo.
Neste sentido, no discurso bíblico, próximo é, antes de mais, DEUS (Dt 4,7; Sl 145, 18; Is 55,6;
Lm 3,57), e é por isso que é tam-bém o nosso redentor (go’el) (Is 63,16), isto é, o nosso familiar
mais chegado, a quem compete reconstituir a nossa liberdade, sendo que, neste profundo sentido
bíblico, Deus é redentor, e é por isso que nos redime; e não é porque nos redime, que passa a ser
redentor.
Próximo e dador de vida e de liberdade é também Cristo crucificado que, tal como o Servo
de YHWH, não abriu a boca (Is 53,6), mas foi «exposto por escrito diante dos nossos olhos» (Gl 3,
1), tornando assim «a pa-lavra da Cruz» (1 Cor 1,18) uma evidência para os olhos, como o foi
também o Servo de YHWH para quantos, vendo-o (Is 52,14-15), reconheceram no seu aspeto
disforme e nas suas feridas as nossas transgressões (Is 53,4. 6. 8.11.12) e a nossa cura (Is 53,5;
cf. 1 Pe 2,24).
Mas próximo e dador de liberdade e de vida é também o que tem fome e sede, o que anda nu,
o que está doente ou na prisão, o «desvalido», pois Cristo se identifica com eles, conforme a lição
magistral e paradoxal de Mt 25,31-40.
Próximo é o homem meio morto da parábola, que é o mesmo que eu encontro no meu
caminho ou deitado na soleira da mi-nha porta, e que, entregando-se a mim co-mo um
mandamento, me entrega a mim como recebido, quebrando o círculo férreo e idolátrico da minha
animalidade e espontaneidade, e instituindo-me no horizonte novo da dádiva e da responsabilidade.
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De facto, o étimo de «responsabilidade» remete para «resposta». E, se é verdade que eu posso
responder também a mim mesmo, a minha responsabilidade realiza-se sobretudo quando há
verdadeira alteridade, isto é, quando eu respondo pelo outro e ao outro. Responder implica então
verdadeiramente a anterioridade e a prioridade, a precedência e a transcendência, do outro sobre
mim, que rasga o meu protagonismo e me institui como sub/jectum [= sub/metido] passivo e
recetivo, como «eis-me aqui», às ordens do outro.
Neste sentido, não deixa de ser sintomático que as principais personagens que a-travessam a
Escritura, como o «messias», o «profeta», o «príncipe», o «consagrado», o «líder»/pessoa investida
de autoridade civil, militar ou religiosa, o encarregado, o homem «piedoso» e «bom», o «pobre»,
sejam pessoas que vivem prevalentemente na passiva e na recetiva, sempre dependentes de Deus
e por conta de Deus, e não na ativa e por conta própria.
A responsabilidade bíblica é esta responsabilidade indeclinável pelo outro e ao outro que
questiona e inquieta a responsabilidade iden-titária, exercida no domínio do eu (desejos, projetos,
poder, fama, sucesso...) e seus prolongamentos (filhos, pais, amigos, partidários, fãs...). Neste
sentido, a responsabilidade, biblicamente compreendida, não é nem pode ser um produto da
história, da cultura ou da «natureza», gerada dentro do horizonte humano, mas é um e/vento [do
latim e/venire = vir de fora do horizonte humano] que pro-vém de fora do «eu» e do seu mundo,
portanto, de fora da história e da cultura, o extra da liberdade boa ou da vontade boa [= benevolência] – bondade radical – que interrompe e julga este mundo e esta história, pondo-os em
crise.
IV. A prioridade do outro sobre mim
Num mundo em que a prioridade é «eu e mais ninguém» (Sf 2,15) ou «o eu», «o eu» e outra vez
«o eu» – como se vê até nos anúncios publicitários, o outro é mais importante do que eu, e eu
encontro a minha identidade – note-se bem: encontro-a, não a perco – em destituir-me do meu ser
patronal e imperialista, e em pôr-me ao seu serviço. Neste sentido, podemos dizer que, em termos
bíblicos, há experiência religiosa verdadeira quando eu faço esta experiência ética da
prioridade do outro sobre mim, quando eu experimento a transcendência do outro sobre mim,
quando eu experimento a transcendência do órfão, da viúva, do pobre, do abandonado e do
marginalizado, do inimigo, isto é, do outro na sua irredutível alteridade, no seu «des/valor», que
grita e ordena, porventura em silêncio: «dá-me de comer, dá-me de beber!»
Aparecendo como «des/valor», vem de fo-ra do meu horizonte de desejo, projeção e identificação
que é movimento ascensional para o «valor» atraente, e, pondo-me num movimento descensional
para o «des/valor» não atraente, quebra o cadeado que me prende a mim mesmo (idolatria),
operando em mim o milagre da bondade radical do dom, trans-formando-me de eu natural que se
autoconstitui, se auto-afirma e se auto-expande, em eu que se reconhece passividade, recetividade,
acolhimento, hospitalidade, responsabilidade.
O lugar originário onde o transcendente aparece ao homem e o interpela é o grito do pobre, do
órfão e da viúva, que me retira da minha falsa paz – a paz do egoísta – e me inquieta, instaurandome na paz verdadeira, a do eu responsável, que responde pelo ou-tro e ao outro. Biblicamente,
dizer “eu” significa dizer “eis-me aqui” para os outros; e as coisas não são objetos, mas dons
com que me posso apresentar de mãos cheias junto do pobre, do órfão e da viúva, daqueles que
perderam a chave da sua humanidade, para eliminar o seu «des/valor».
V. Questões, inquietações, considerações finais
1. Vivo a partir de mim, seguindo espontaneamente os meus desejos, projetos e instintos,
buscando a auto-satisfação, integrando e dominando o outro para o pôr ao meu serviço, ou vivo a
partir do outro, pondo-me eu ao seu serviço?
2. Sigo o modelo da responsabilidade identitária, em que respondo só pelos meus sucessos ou
insucessos, ou sigo o modelo da responsabilidade bíblica, em que eu me recebo do outro e
respondo por ele e a ele?
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3. Já dei conta da minha componente passiva e recetiva, ou sou um executivo sem es-cuta e sem
tempo, calculista, que passa pelo outro lado da estrada?
4. Aproximo-me do outro incondicionalmente, ou vejo primeiro quem é para saber se vale a pena
aproximar-me?
5. Sei o que significa a prioridade do outro sobre mim? Já algum dia fiz essa experiência por amor?
6. Somos da ordem dos assaltantes possuidores e violentos ou dos sacerdotes e levitas
«responsáveis», impassíveis e insensíveis, que vêem o homem e o mundo cada vez mais só em três
dimensões, como meros objetos de posse, fruição e ostentação?
9. Por mim, é cada vez mais urgente descobrir o tempo do samaritano em viagem, que não é o
tempo do mercado, do coisismo e do consumismo, da violência e da posse, da responsabilidade
identitária, de éros, mas o tempo da dádiva, da gratuidade e do amor novo que o Testamento Novo
chama agápê, do amor de alteridade, que me ensina a ver o outro, não como objecto com três
dimen-sões que eu posso comprar, possuir, fruir ou dominar, mas como verdadeiro sujeito de
necessidade que me interpela e me institui como sujeito de recetividade e responsabilidade. Assim,
em vez de me auto-constituir co-mo princípio face ao outro, eu auto-destituo-me face a ele, para,
por amor, o fazer ser e lhe dar a vida.

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