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RIDLEY SCOTT E O REINO DO PARAÍSO: O CINEMA E OS CONFLITOS
ORIENTE E OCIDENTE
Tobias Dias Goulão (UEG/UnUCSEH)
A sociedade contemporânea faz frequente uso da História como uma forma
de orientação para encontrar respostas frente as questões que mais lhe preocupa. E é
esse o seu papel, segundo aponta o historiador Jörn Rüsen ao caracterizar a função da
história como orientadora da carência de orientação no tempo (RÜSEN, 2010). Mostrase necessário conhecer elementos do passado para buscar formas de explicação e
afirmação de aspectos contemporâneos. Característica essa que fez com que nos últimos
anos várias publicações tivessem foco na exibição de temas históricos, com o intuito de
lembrar a sociedade daquilo que fosse essencial. Estado esse no qual alguns estudiosos,
como a professora Sônia Maria de Menezes Silva afirma, vivermos em um mundo que
não se pode esquecer, tal como o personagem Funes1 de Jorge Luis Borges (SILVA,
2007).
No que toca às características da sociedade contemporânea, um dos meios
para a aquisição de informação é o audiovisual. Vivemos um período no qual o vídeo
tomou a vez que o livro possuía em tempos passados como fonte de informação. Desde
que o cinema surge, seu potencial de mobilização já é grande, e como caracteriza
Hobsbawm no livro A Era dos Extremos, dizendo que “a Era da Catástrofe foi a era da
tela grande de cinema” (HOBSBAWM, 1995, p. 192). Dentro dessa perspectiva, é
notável ao longo do século XX e XXI o potencial que o cinema adquire na formação de
um imaginário social, de uma consciência histórica nos seus espectadores, que vão
aumentando cada vez mais.
A percepção da narrativa cinematográfica como agente da história foi
abordada por Marc Ferro no livro Cinema e História, em que ele discute a utilização do
cinema como fonte de trabalho para o historiador. Pois como forma de expressão do
homem, o cinema carrega os elementos do imaginário e das concepções de mundo
1
Personagem do conto Funes, o Memorioso de Jorge Luis Borges do livro Ficções (1944) que tem como
característica uma prodigiosa memória que tudo recorda, em outras palavras não esquece nada que vê ou
lê.
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(políticas, ideológicas, etc.) daqueles que o utilizam do cinema como meio de transmitir
uma informação. Essa facilidade que o cinema encontra, é devido a sua linguagem, que
é apontada pelo escritor, roteirista, diretor e ator francês Jean-Claude Carrière como
sendo uma “linguagem não só nova, como também universal” (CARRIÈRE, 2006, p.
20), o que não exclui os que não conseguem decifrar os códigos da escrita. A
combinação de imagem em movimento e som é acessível a qualquer um.
Dentro da concepção do cinema como agente da história podemos ressaltar
a observação que Marc Ferro faz do cinema soviético e do cinema nazista, pois “foram
os primeiros a encarar o cinema em toda sua amplitude, analisando sua função,
atribuindo-lhe um estatuto privilegiado no mundo do saber, da propaganda e da cultura”
(FERRO, 2010, p. 52). A propaganda para a União Soviética feita por Eisenstein com
seus filmes, como o Encouraçado Potemkin, e também a propaganda de ideias nazistas
observadas no filme de Veit Harlan, O Judeu Süss, mostram que “a utilização política
dos filmes, nasceu praticamente junto com ele” (FERRO, p.51).
Nesse campo, no qual encontramos filmes que fazem um trabalho político e
ideológico, podemos fazer várias observações pertinentes ao seu contexto de produção e
lançamento, e quando for o caso, fazer uma observação sobre como a história do filme é
representada. Isso deve ser feito, pois como todo o trabalho de um historiador há seleção
dos documentos que conduzirá a narrativa. É assim também para o diretor do filme, que
escolherá dentro do contexto o que ele está filmando, os problemas necessários dentro
da situação na qual está centrada sua trama, é a escolha do cineasta que determina a
obra (FERRO, 2010). Outra observação sobre o uso da história dentro do cinema é feita
por John Sayles, cineasta norte-americano, e lembrada por José Rivair Macedo no livro
A Idade Média no Cinema, que diz
A História é um celeiro para ser pilhado. Dependendo de quem você é e de
qual é a sua agenda, ela pode ser útil ou não. Você lê seis livros sobre a
história que vai filmar. Acha parte do que leu útil e descarta o resto:
personagens, ideias, países...’. Por isto é que, em geral, a consultoria de
historiadores diz respeito a detalhes e não ao quadro geral (MACEDO, 2009,
p. 40).
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Sendo esse o contexto da utilização da história nos filmes, devemos nos ater
ao que Marc Ferro coloca como as possibilidades de trabalho com o filme pelo
historiador. Segundo ele dentro do trabalho com o cinema como agente histórico,
formador de consciência histórica e ícone da cultura de massas do século XX podemos
destacar as duas principais leituras em estudos históricos com a produção
cinematográfica. Podemos fazer uma leitura histórica dos filmes, na qual esse é
documento das mentalidades de seu tempo, trazendo sua crítica social e perspectivas de
mundo; e também uma leitura cinematográfica da história, que “coloca para o
historiador o problema de sua própria leitura do passado” (FERRO, p. 12).
A primeira observação seria a dos elementos do imaginário que são visíveis
nas produções cinematográficas, como os exemplos dos cinemas soviéticos e nazistas,
que utilizavam dos filmes para atingir a maior quantidade possível de pessoas com suas
propostas ideológicas, e assim construir uma imagem dos partidos e de seus opositores.
Já a segunda proposta visa observar e analisar a forma como a narrativa historiográfica é
representada no cinema, levando em consideração todos os aspectos de produção e de
sociedade que a produziu, como lembra Ferro “a crítica não se limita ao filme, ela se
integra ao mundo que o redeia com o qual se comunica” (FERRO, p. 32). Nesse
contexto entra o trabalho com os filmes históricos e com as narrativas históricas
cinematográficas que eles criam, e consequentemente agem como formadoras de uma
imagem da história para a grande população.
Com o filme histórico deve-se tratar de alguns aspectos como, por exemplo,
a tempo que ele reproduz na tela, onde e quando foi feito, as características que são mais
visíveis no seu roteiro. Sendo o objeto de análise desse trabalho o filme Cruzada (EUA,
2005) de Ridley Scott, ele é um filme que reproduz um período da Idade Média, com
foco no conflito entre os cristãos e muçulmanos no Oriente Médio do século XII, feito
nos EUA alguns anos depois dos atentados terroristas ao World Trade Center (11 de
setembro de 2001), e que destaca em seu roteiro os motivos dos principais embates
entre esses povos culturalmente diferentes pelo controle de um território sagrado para
ambos.
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No que diz respeito à utilização da temática medieval no cinema, o
professor José R. Macedo organizou em parceria com a professora Márcia Mongelli o
livro A Idade Média no Cinema, no qual uma seleção de artigos de vários autores
abordam as produções cinematográficas que tem em seu enredo elementos do medievo.
Nesse trabalho, Macedo coloca as características que são buscadas pelo diretor ao
realizar um filme com essa temática e as ferramentas que ele utiliza, dentro da indústria
cinematográfica e histórica para fazer um filme.
Segundo ele podemos colocar que
nos filmes de reconstrução histórica, o Diretor (com consultoria, ou não, de
historiadores profissionais) vê-se na contingencia de organizar imagens de
um determinado momento da História, em função da coerência trama – em
geral romanescas – conferindo-lhe um tratamento artístico” (MACEDO p.
24)
É perceptível que ao realizar uma obra cinematográfica, é necessário que os
elementos históricos sejam favoráveis à trama e assim o filme servirá aos seus
propósitos, que vão alem de ser simples veículo de informação, mas também de
legitimação de uma ideologia e de lotar salas de cinema. O que acontece é que
“escolhem-se informações que parecem significativas no momento em que a obra é
realizada” com a observação de que “não é o passado que se encontra no comando, mas
sim o presente” (FERRO, p. 177).
Mesmo com as características da escolha do tema e da forma como
apresentá-lo estar vinculada com o momento de sua produção, é necessário saber o que
leva a utilização de um período histórico específico para a narrativa do filme. E nesse
caso, é saber o motivo de usar a Idade Média. Se observarmos a dinâmica dos choques
comuns entre o Ocidente e o Oriente já se nota um motivo para a seleção do tema. Mas,
além disso, Umberto Eco nos mostra outro motivo, pois segundo ele, a utilização da
temática medieval segue a perspectiva de que “a Idade Média representa o crisol da
Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todas as coisas com as quais
ainda estamos ajustando contas”(ECO, 1989, p.78). E um dos ajustes nos podemos
colocar como sendo a relação conturbada que existe entre cristãos ocidentais e
muçulmanos orientais.
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O que segue a partir das discussões dentro do enredo da obra
cinematográfica é uma mistura de ficção e história. Isso permitirá ao diretor fazer um
elo entre o a estética cinematográfica e a discussão historiográfica, criando um
momento propício para lançar ao público o tema que ele deseja discutir.
Os filmes com temática histórica serão assistidos pelo grande público e para
muitos, eles terão um caráter de real, de “documentário”. Sendo visível, eles trazem essa
característica que é criar uma visão sobre o passado, passando a ensinar, mesmo com
exageros, os costumes cavalheirescos, as práticas dos ocidentais no Oriente, mostrará os
peregrinos, os pregadores, sonhos dos cruzados em salvar a alma ou enriquecer os
cofres. Para os historiadores e eruditos podem ser falhos, mas para os espectadores que
estão distantes das produções acadêmicas, ele construirá a noção de Idade Média, de
cruzadas e de muçulmanos a ser lembrada, criando uma visão sobre a história que é
difícil de ser apagada.. Eles não leem o suficiente, eles veem, e isso é o mais comum na
sociedade atual na ora de buscar informação. Nessa hora o filme substitui a História.
O fato do trabalho do diretor ter um caráter de disseminação de uma
concepção de história, faz com que ele acabe criando uma narrativa cinematográfica da
história, como Eisenstein fez no cinema soviético, criando um fato dentro da história do
Potenkin que superou a versão original. Isso vem a fazer do diretor um fazedor de
história, um history maker.
Dentro da dinâmica do trabalho com a história no cinema, o diretor acaba
fazendo às vezes do historiador. É ele que faz os cortes, coloca uma interpretação, uma
discussão e remonta uma narrativa e uma estética sobre o passado. Com esse trabalho
do diretor, ele se assemelha ao historiador, que no processo de trabalho com o
documento faz estas ponderações sobre as informações contidas no mesmo. É aqui que
entra a característica do history maker.
O history maker é uma figura que aparece na sociedade de várias formas.
Em alguns casos ele aparece como um guardião local da memória, em outros ele é o
escritor que sem o conhecimento metodológico do historiados registra fatos
importantes, é o jornalista que faz ser lembrado todo o ano acontecimentos locais que,
pela concepção de um grupo, não podem ser esquecidos. É um escritor que apropriando
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de um evento histórico, recria parte do mesmo e inseri um personagem fictício nesse
passado, mas mesmo assim recria todo o contexto e atmosfera desse passado. São
pessoas que estão sempre trabalhando com esses fatores da história ou da memória
sendo esta uma das características da contemporaneidade, que segundo Jaques Le Goff,
hoje se vive “obcecado pelo medo de uma perda da memória, de uma amnésia coletiva,
que se exprime desajeitadamente pela moda retro, explorada sem vergonha pelos
mercadores de memória desde que a memória se tornou um dos objetos da sociedade de
consumo que se vende bem” (LE GOFF, 1990, p. 472).
Assim, podemos conceituar o history maker como “autores que escrevem
sobre o passado sem fazer uso das regras estabelecidas pela comunidade acadêmica, ou
que recolhem depoimentos orais carregando a crença em que o relato individual
expressa em si mesmo a história” (FERREIRA, 2002, p. 326). Ao tratar sobre a questão
da memória, das identidades atuais e como é feito o conhecimento histórico a
terminologia utilizada pela professora Marieta de Morais Ferreira caracteriza então,
aqueles que fazem uso do conhecimento histórico dentro de suas produções,
principalmente as midiáticas.
Nós teremos nessa categoria jornalistas, romancistas e os diretores de
cinema e televisão. Estes, que utilizando dos meios artísticos e trarão momentos
históricos ao cotidiano. Eles exibirão séries, livros, filmes, matérias de jornais, com
conteúdo histórico para legitimar, criticar, expor ou informar sobre a história à massa
consumidora. Essa massa que procura por sua identidade fragmentada pelas mudanças
culturais e filosóficas do século XX e fazem dos meios de comunicação de massa a
fonte de informação dos tempos pós-modernos.
No meio cinematográfico, temos vários diretores que seguem as
características do history makers. O historiador que também trabalha com o cinema,
Robert Rosenstone aponta, por exemplo, o diretor Oliver Stone como um historiador da
América recente (ROSENSTONE, 2009), devido ao peso dos seus filmes na concepção
dos acontecimentos dos Estados Unidos durante a época moderna e relativa às
situações, principalmente, da guerra do Vietnã. Outros diretores também podem entrar
nessa lista, como Bergman com O Sétimo Selo (Suécia, 1959), Mel Gibson com
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Coração Valente (EUA, 1995) e O Patriota (EUA, 2000); Jerry Zucker com Lancelot, o
primeiro cavaleiro (EUA, 1995); Carl Theodor Dreyer e A paixão de Joana D’Arc
(França, 1928), Jean-Jacques Annaud com O Nome da Rosa (França, 1980), entre
outros, que também trouxeram para o cinema alguma encenação de algum contexto
histórico ou criação dentro de parâmetros históricos, o que caracteriza esses diretores
dentro dos history makers.
Para este trabalho observaremos a produção do diretor Ridley Scott, que
mostra sua característica como history maker. A produção dele não é apenas histórica,
mas trataremos aqui dos filmes que possuem essa característica. Os filmes de Ridley
Scott com temas históricos são Os Duelistas (The Duellists, Inglaterra, 1977), 1492: A
Conquista do Paraíso (1492: Conquest of Paradise, ESP/FRA/ING 1992), Gladiador
(Gladiator, EUA, 2000), Cruzada (Kingdom of Heaven, EUA/Marrocos, 2005), O
Gângster (EUA, 2007) e Robin Hood (Robin Hood, EUA, 2010). Eles são narrativas
que tratam de contextos históricos específicos nos quais o diretor reconstruiu,
reinterpretou, incluiu ou inseriu situações, em nome da narrativa cinematográfica. Em
seus trabalhos históricos percebemos que há uma produção maior em temas de História
Antiga, Medieval e Moderna.
Ridley Scott pode ser considerado um history maker por produzir um
determinado conhecimento histórico, não conhecimento acadêmico. Observações, novas
interpretações, elementos cotidianos, tudo isso passa a ser conhecimento das pessoas
graças a filmes como esses. Robert Rosenstone comenta que “hoje em dia, a principal
fonte de conhecimento histórico para a maioria da população é o meio audiovisual”
(ROSENSTONE, 1997) e Ridley Scott, com seus filmes, acaba formando uma
consciência histórica naqueles que são levados à salas de cinema, e saem com algum
conhecimento sobre o passado.
Rosenstone trabalha em um texto que compõe o livro Cinematógrafo
(UNESP, 2009), seis observações a serem feitas em um filme histórico, tendo como seu
referencial os filmes do diretor Oliver Stone. Ele aponta as principais características do
que Oliver Stone mostra na construção de seus filmes e de seu impacto na sociedade
estadunidense devido, principalmente, as questões da guerra do Vietnã. Utilizando
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como base o estudo sobre Oliver Stone o aplicaremos na produção de Ridley Scott, em
específico no filme Cruzada, para observarmos as situações do conflito Oriente x
Ocidente que ele retrata, alem do papel do diretor como um history maker.
Rosenstone coloca que “O filme dramático conta história como história, um
conto com começo, meio e fim. Um conto que te deixa uma lição de moral e
(geralmente) um sentimento de melhora” (ROSENSTONE, 2009, p. 396). No enredo
que Ridley Scott monta para o Cruzada, temos questões sobre a honra, o proteger o
povo, a diplomacia vencendo ao final, a relação entre o homem e o seu mundo
conturbado e dividido por religiões. Scott utiliza momentos específicos dos eventos
históricos reais, introduzindo novas observações sobre os fatos e interpretações que
tendem a buscar uma reflexão. Em Cruzada o papel do fanatismo residente nos dois
lados do conflito é um ponto que remete a reflexão sobre o papel violento dos cristãos, e
a forma como o líder muçulmano mostra-se tão benévolo ao negociar e não querer
repetir o feito dos cruzados ao tomar Jerusalém em 1099. Como Saladino mesmo
lembre no diálogo com Balian: - Os cristãos massacraram todos os muçulmanos quando
tomaram a cidade. (Balian), - Eu não sou um desses homens. Sou Saladino. Saladino.
(Saladino) (Cruzada, 2:05:02).
Outra característica que Rosenstone aponta é que
Filmes insistem em que a história é a história de indivíduos. Podem ser
homens ou mulheres que já são renomados (mas geralmente homens), ou
indivíduos criados para parecer importantes porque foram singularizados pela
câmera. Aqueles que ainda não são famosos são pessoas comuns, mas que
fizeram coisas heróicas ou admiráveis, ou que sofreram más e incomuns
circunstâncias de exploração e opressão. Colocar indivíduos no centro do
processo histórico pode significar que a solução de seus problemas pessoais
passam a ser a solução dos problemas históricos. (ROSENSTONE, 2009, p.
397)
A câmera é focada a exaltar os feitos e a participação dos protagonistas das
tramas. No caso de Cruzada os protagonistas são o cruzado Balian, e em segundo plano
Saladino, pois sua figura é uma das mais importantes no filme. São eles que realçam a
narrativa do filme e as especificidades históricas. É o bastardo elevado a nobre que pode
mudar sua vida e os caminhos da Guerra Santa, e o nobre inimigo que age tão
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honradamente, ou ate mais que os cristãos e impede que a carnificina seja repetida. A
história é de personalidades centrais, que permitem uma melhor assimilação da
mensagem pelo espectador.
Rosenstone também destaca que
O filme nos oferece história como uma história fechada, simples e completa
do passado. Não sugere possibilidades alternativas para o que vemos
acontecer na tela, não admite dúvidas e fornece toda afirmação histórica com
o mesmo grau de confiança. (ROSENSTONE, 2009, p. 397)
A narrativa em Cruzada coloca o passado fechado. O desfecho é conhecido,
e isso faz com que a narrativa não fique variando tanto. O que deve ser modificado,
adicionado é relativo ao desenrolar da trama, mas o fim é conhecido e esperado. Balian
lutará contra o exército de Saladino, resistirá bravamente, mas no final verá que a única
forma de sair com vida do confronto é entregando a Jerusalém ao inimigo sob um
acordo colocando fim ao cerco de Jerusalém. O aprendizado sobre o tempo histórico
será feito pela estética do filme, o efeito de trazer o passado para frente de quem vê. A
partir disso o que a obra mostra de fictício acaba não comprometendo os ensinamentos
sobre o choque entre os exércitos na Terra Santa.
O cinema constrói situações que “provocam impressões muito fortes nos
espectadores e são dotados de alto potencial de convencimento, gerando aquilo que se
denomina de ‘efeito real’” (MACEDO, 2009: p. 24). Favorecendo à absorção do visto
como meio de informação.
Outra característica que podemos relembra de Rosenstone é que
O filme mostra a história como experiência. Ele emociona e dramatiza o
passado, nos dá a história como triunfo, angústia, alegria, desespero,
aventura, sofrimento, e heroísmo. Fazendo isso, ele acaba com a distância
que os historiadores tradicionais mantêm dos sentimentos e sugere que a
emoção é uma parte importante do nosso legado histórico, que, de alguma
maneira, podemos adquirir conhecimento histórico através da empatia.
(ROSENSTONE, 2009, p.398)
Em Cruzada a trama é elaborada dentro do tempo histórico é narrado de
forma a fazer sentido dentro da linguagem cinematográfica. Desde o figurino,
maquiagem, trilha sonora são elaborados para transportar o espectador para dentro dos
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problemas de Balian frente ao avanço de Saladino. Quanto mais ele atrair e ser
assimilado pelo público ela fará com que aquele assunto tratado na tela seja entendido
por quem o vê. A tentativa de criar um “reino dos céus” na Terra, a promessa de
proteger o povo, a benevolência do vencedor. Os personagens passam a corresponder a
anseios dos espectadores, os aproximam os que possuem as características que os
personagens estão mostrando e defendendo e “o cinema passa assim a ser visto como
um modificador de mentalidades, sentimentos e emoções de milhões de indivíduos”
(NÓVOA, 2009, p. 175).
Ainda temos a constatação de que “o filme mostra a história como processo.
O mundo na tela traz um conjunto de coisas que, para propósitos analíticos ou
estruturais, a história escrita muitas vezes tem de separar” (ROSENSTONE, 2009, p.
398). O que ele mostra é que os capítulos dos livros de história que separam as
especificidades de uma análise como comportamento, vestuário, culinária, crenças, na
tela estão todos juntos, em uma única tomada. Podemos observar como Ridley Scott faz
essas exposições ao promover uma reconstrução com base no realismo de suas
películas. Em seus filmes fazem essa união de aspectos na tela que os livros de história
separam, devido á própria dinâmica da escrita e da descrição historiográfica. Na
imagem, principalmente quando esta possui movimento e som, é simples aglomerar a
um diálogo a forma de falar, de vestir, de se portar. Nóvoa diz que “do cinema vem o
fato de que a “escrita” cinematográfica possibilitou a única linguagem capaz de, na
exposição fundir dialeticamente a multiplicidade dos tempos históricos” (NÓVOA,
2009, p. 165). Assim a história nos filmes torna-se mais atraente e mais fácil de ser
compreendia na pluralidade de elementos que estão presentes na tela. Torna-se mais
fácil conhecer no filme o motivo que levou os cristãos a irem para ao Oriente, e o
motivo que fez os muçulmanos buscarem reconquistar os territórios invadidos. Fator
esse que chama a atenção para os acontecimentos cotidianos envolvendo os dois grupos.
Sendo agora conhecido por uma grande parte que as hostilidades entre eles são
históricas e não são unilaterais.
Rosenstone aponta para a transformação que os filmes causam. Segundo ele
“filmes nos dão uma imagem tão obvia do passado – de prédios, paisagens e artefatos –
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que talvez não vejamos o que isso faz com o nosso senso de história” (ROSENSTONE,
2009, p.398). A isso podemos colocar a assimilação imediata da história dos filmes à
história que ele representa. As características do passado que estão nos filmes ganham
sentido de “documento”, de reconstrução factual, e passa a fazer parte do imaginário
sobre o passado. Não mais a descrição, mas sim a imagem do ator que representou
algum personagem histórico. Saladino agora tem o rosto de Ghassan Massoud, Balian
não é mais o homem maduro que surge nas crônicas das cruzadas apenas no cerco de
Jerusalém, mas é um herói que vi a queda do reino de Jerusalém desde o início. As
ações nos filmes serão ora de conflitos, ora de conformidades com as biografias e os
relatos historiográficos. São formas de história que se fazem “necessária para preencher
as especificidades de uma cena histórica particular. É também necessária ou para criar
uma sequência visual coerente (e movimentada) ou para criar personagens históricos”
(ROSENSTONE, 2009, p.400). Ridley Scott não chega a criar uma “história paralela”,
já que a sua trama está centrada em um fato histórico. Assim, apenas em pontos
específicos e que tem mais relevância no que diz respeito à narrativa cinematográfica,
que as grandes modificações aparecem.
Ao vermos em características gerais a forma com que Ridley Scott monta
seus filmes, podemos dizer que ele conta realmente uma história, que seus filmes pode
ser classificados como históricos segundo os requisitos que Rosenstone aponta. Esses
requisitos são
mais do que um simples drama de época, um filme deve reunir questões,
ideias, fatos e argumentos neste campo do conhecimento. O filme histórico
não pode cair nas invenções caprichosas, não pode ignorar os achados e
asserções dos quais já sabemos. Como qualquer estudo de história, um filme
deve ser julgado nos termos do conhecimento que nós já possuímos. Como
qualquer trabalho de história, ele se situa dentro do corrente debate sobre a
importância dos eventos e o significado do passado (ROSENSTONE, 2009,
p.403)
Se Ridley Scott transmite uma forma de conhecimento através de seus filmes, ele
também colocou em pauta novamente a discussão sobre o papel das imagens no que diz respeito
à transmissão do conhecimento. Pois “dada uma sociedade na qual a leitura, particularmente
leitura séria sobre o passado, é um esforço elitista, é possível que esta história na tela seja a
história que se fará no futuro” (ROSENSTONE, 2009, p. 407). E “não importa o que achemos
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deles, devemos admitir que filmes nos dão história como visão” (ROSENSTONE, 2009, p.407).
Estamos mergulhados em imagens e serão elas que farão a inserção de vários conhecimentos em
nosso cotidiano.
Dentro das circunstâncias nas quais o filme toca é o caso dos atentados de 11 de
setembro de 2001 às Torres Gêmeas nos EUA. Devido a essa situação ser recente, muitos
achavam que o filme viesse a provocar reações por parte do mundo islâmico, retratando nas
telas o estereótipo do oriental que muito foi explorado pelo Ocidente. No que remete a posição
que Eduard Said mostra, de que se criou uma visão do Oriente que se tornou o próprio Oriente,
violento, exótico, misterioso, etc. (SAID, 2007). Esse fator, por ser constante, levava a crer que
os traços marcantes que sempre foram explorados ao extremo pelo Ocidente pudessem vir a ser
novamente utilizados, mas o filme mostra uma outra perspectiva. Ridley Scott fez uma narrativa
utilizando de meios que, mesmo sendo perceptíveis alguns estereótipos, eles abrem espaço para
uma nova observação: os excessos e fanatismos por parte dos cristãos. O massacre da tomada de
Jerusalém de 1099 é lembrado, a posição de Saladino como alguém que não repetirá o feito é
focada, a provocação do conflito por parte do rei Guy é outro aspecto importante.
Portanto, ao elaborar uma narrativa histórica cinematográfica, Ridley Scott, mesmo
com a utilização do monomito do herói (CAMPBELL, 1997), mesmo utilizando de uma estética
que mostra-se real em grande parte apenas no vestuário e no arquitetônico, ainda assim
conseguiu mostrar aspectos históricos que precisavam ser mostrados: que a violência, a
intolerância, a honra e o heroísmo estiveram presentes em todos os lados.
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