universidade federal do amazonas instituto de ciências humanas e
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universidade federal do amazonas instituto de ciências humanas e
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM DA DANÇA NA OBRA “RITO DE PASSAGEM”. MANAUS - AMAZONAS 2014 1 OLVÍDIA DIAS DE SOUZA CRUZ SOBRINHA A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM DA DANÇA NA OBRA “RITO DE PASSAGEM”. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de PósGraduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Processos Socioculturais na Amazônia. 2 MANAUS - AMAZONAS 2014 Ficha Catalográfica Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a) Cruz Sobrinha, Olvídia Dias de Souza C957c A construção da linguagem da dança na obra "Rito de Passagem". / Olvídia Dias de Souza Cruz Sobrinha. 2014 176 f.: il. color; 31 cm. Orientadora: Artemis de Araújo Soares Coorientadora: Rosemara Staub de Barros Zago Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia) Universidade Federal do Amazonas. 1. práticas corporais. 2. processo de criação. 3. Yara Costa. 4. dança contemporânea. I. Soares, Artemis de Araújo II. Universidade Federal do Amazonas III. Título 3 OLVÍDIA DIAS DE SOUZA CRUZ SOBRINHA A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM DA DANÇA NA OBRA “RITO DE PASSAGEM”. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de PósGraduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Processos Socioculturais na Amazônia. Aprovada em: ......./ ......./ 2014 Banca examinadora Presidente Profª. Drª. Artemis de Araújo Soares Universidade Federal do Amazonas Julgamento: ......................................... Assinatura:.................................................. Coorientadora Universidade Federal do Amazonas Profª. Drª. Rosemara Staub de Barros Zago Julgamento: ........................................ Assinatura:................................................. Profª. Drª. Ítala Clay de Oliveira Freitas Universidade Federal do Amazonas Julgamento: ....................................... Assinatura:................................................. Prof. Dr. João Luis da Costa Barros Universidade Federal do Amazonas Julgamento: ......................................... Assinatura:.................................................. MANAUS – AMAZONAS 2014 4 Dedico este produto-reflexão a meus pais pelo cuidado, pelo amor incondicional e pelo apoio em todos os momentos da minha vida. Dedico ainda a minha família e amigos próximos pelo apoio nos momentos difíceis. E por fim a dança, arte pela qual me apaixonei e que muito contribuiu para a minha formação profissional, acadêmica e pessoal, fonte de inspiração e alegria. 5 AGRADECIMENTOS A Deus - com a certeza de que dispensa provas. A meus pais pelo apoio em todos os momentos. Meus irmãos pelo apoio em momentos difíceis. Ao Programa de Pós-graduação Sociedade e cultura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) pela acolhida no curso de mestrado. As minhas orientadoras Artemis de Araújo Soares e Rosemara Staub de Barros por acreditarem no projeto e apontarem os caminhos para concretizá-lo. A diretora da Índios.com Cia de Dança, bailarina, coreógrafa e professora Yara Costa por concordar com a realização da pesquisa sobre uma de suas produções artísticas e pelo apoio, dedicação e valiosas contribuições através de entrevistas e empréstimo de materiais sobre a obra. A família da coreógrafa Yara Costa pela calorosa acolhida e disposição para colaborar com a pesquisa. Aos professores do Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na Amazônia que muito contribuíram ao longo do processo (Nelson Noronha, Selda Vale, Artemis Soares, Rosemara Staub, Elenise Scherer, Iraildes Caldas). As professoras doutoras Ítala Clay de Oliveira Freitas e Elenise Scherer pelas contribuições por ocasião do exame de qualificação. Aos colegas do mestrado (Rooney Barros, Priscila Pinto, Gustavo Kienen, Maurício Adu, Ivone, Jeanne Chaves, Mirian, Lara Almeida, Roseane, Priscila Lima, Socorro) pelo apoio e por compartilharem seus processos e conhecimentos. Aos professores da banca examinadora da defesa: Profª. Drª. Ítala Clay de Oliveira Freitas e Prof. Dr. João Luis da Costa Barros pela contribuição ao trabalho dissertativo. A todos que de alguma forma colaboraram com a pesquisa e com a minha caminhada durante esse percurso no mestrado. A CAPES pelo apoio a pesquisa. 6 RESUMO Esta pesquisa trata de investigar através do estudo de processo de criação como as práticas corporais foram resignificadas na obra de dança contemporânea “Rito de Passagem”, criada em 2007 pela coreógrafa amazonense Yara Costa. Buscamos em um primeiro momento nos reportar aos estudos culturais abrangendo o global e o local, as práticas corporais na região amazônica e na dança contemporânea. Também abordamos a performance em arte e especificamente na dança. Em um segundo momento nos aprofundamos nos estudos de processo de criação tomando como base a teoria da complexidade, a teoria dos signos e os estudos de processos criativos em arte. No terceiro momento da pesquisa nos reportamos ao processo de criação de “Rito de Passagem” através de documentos do processo da obra para uma análise sobre as práticas corporais apresentadas no trabalho artístico. Utilizamos na pesquisa de cunho qualitativo, entrevistas semiestruturadas, a pesquisa documental assim como para a análise a hermenêutica e a dialética. Concluímos que os estudos de processo de criação podem colaborar com pesquisas nas artes cênicas e mais especificamente a dança e para os estudos das práticas corporais que vem sendo incorporadas a essa forma artística, possibilitando identificar e analisar como as práticas corporais cotidianas e de diferentes campos que envolvem o movimento vem sendo resignificadas na dança contemporânea. Palavras-chave: práticas corporais, processo de criação, Yara Costa, dança contemporânea. 7 ABSTRACT This research comes to investigate through the creative process study as the body practices were resignificated in contemporary dance artwork “Rito de Passagem”, created in 2007 by the amazon choreographer Yara Costa. We looked for in a first moment to report to cultural studies including the global and local, bodily practices in amazon region and in contemporary dance. We also discussed art performance and specifically in dance. In a second step deeper into the studies of the creation process building on complexity theory, the theory of signs and studies of creative processes in art. In the third phase of research reported in the creation of "Rite of Passage" through documents in the work to an analysis of the bodily practices presented in the artwork process. Used in the research of qualitative nature, semi-structured interviews, documentary research as well as for the analysis hermeneutics and dialectics. We conclude that studies of the creation process can collaborate with research in the performing arts and dance and more specifically to the study of bodily practices that have been incorporated into the art form, enabling to identify and analyze how everyday bodily practices and different fields involve the movement has been resignified in contemporary dance. Key-Words: body practices, create process, Yara Costa, contemporary dance. 8 FIGURAS Figura: 01 Documento 01 de processo da pesquisa em dança aérea, de Yara Costa, caderno de anotações, s.d. .....................................................................................................................92 Figura: 02 Documento 02 de processo da pesquisa em dança aérea de Yara Costa, caderno de anotações, s.d. .....................................................................................................................94 Figura: 03 Documento 03 notações (símbolos representando movimentos) em dança, caderno de anotações, s.d. .....................................................................................................................96 Figura: 04 Documento 04 (anotações relacionadas à pesquisa sobre o índio para “Rito de Passagem”, caderno de anotações, s.d. ....................................................................................98 Figura: 05 Documento 05 recorte de reportagem sobre dança aérea. caderno de anotações, 2000. ......................................................................................................................................100 Figura: 06 documento 06 recorte reportagem sobre o grupo Bandaloop, 2000. ..................101 Figura: 07 Documento 07 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”, caderno de anotações, s.d. ..........................................................................................................................................102 Figura: 08 Documento 08 anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança aérea, s.d. ................................................................................................................................................104 Figura: 09 Documento 09 relatório de participação no grupo de pesquisa aérea, s.d. .........105 Figura: 10 Documento 10 primeiras anotações sobre a obra “Rito de Passagem”, s.d. ......107 Figura: 11 Documento 11 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”, s.d. .........................108 Figura: 12 Yara descendo no rapel em uma ponte, s.d. ......................................................109 Figura: 13 Yara treinando movimentos para a dança aérea na ponte, s.d. .........................110 Figura: 14 Caboclo descendo do pé de açaí, s.d. ................................................................111 Figura: 15 Yara na primeira cena entrada da intérprete no palco, 2008. ............................114 Figura: 16 Túnica estampada colorida, 2008. .....................................................................117 Figura: 17 Yara utilizando o equipamento corda trançada, 2008. ......................................117 Figura: 18 Yara na primeira cena, subindo na corda trançada, 2008. ................................118 Figura: 19 Yara na primeira cena, sequência na corda trançada, 2008. .............................119 9 Figura: 20 Yara na segunda cena referência a menina moça, 2008. ...................................120 Figura: 21 calça de malha corsário e tanga de miçanga, 2008. ..........................................121 Figura: 22 Equipamento do rapel cadeirinha (boldrié), corda e mosquetão, 2008. ...........122 Figura: 23 Yara à frente do suporte e objeto cênico maloca, 2008. ...................................123 Figura: 24 Yara na 3ª cena de “Rito de Passagem com o objeto cênico nomeado de maloca, referência ao momento de reclusão e aprendizagem da menina moça, 2008. .....................124 Figura: 25 casaquinho de malha furta-cor, 2008. ...............................................................125 Figura: 26 Yara por trás do cenário tela branca vazada, 2008. ..........................................126 Figura: 27 Yara na quarta cena referência a maternidade, 2008. .......................................127 Figura: 28 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa prox. ao solo, 2008. ..............................................................................................................................................128 Figura: 29 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa no espaço aéreo, 2008. ....................................................................................................................................129 Figura: 30 Yara na quinta cena de “Rito de Passagem” com um figurino a mais o vestido de algodão, 2009. .....................................................................................................................130 Figura: 31 Vestido de algodão marrom, 2014. ..................................................................132 Figura: 32 Yara na sexta cena referência a maturidade, 2008. ..........................................132 Figura: 33 Saia de barbante última cena de “Rito de Passagem”, 2008. ...........................134 Figura: 34 Yara na sexta cena interagindo com os objetos cênicos, 2008. .......................135 Figura: 35 Yara na sexta cena de “Rito de Passagem”, 2008. ..........................................136 Figura: 36 Agradecimento de uma parte da equipe que atuou em “Rito de Passagem”, 2008. .............................................................................................................................................137 Figura: 37 Vista aérea da cidade de Urucurituba/AM, s.d. ..............................................148 Figura: 38 Localização geográfica do município de Urucurituba no mapa do Amazonas, s.d. ............................................................................................................................................148 Figura: 39 Residência de infância da coreógrafa em Urucurituba, 1973. ........................149 Figura: 40 A coreógrafa em Uricurituba na infância, 1973. ............................................150 Figura: 41 A coreógrafa na infância junto com sua família, 1973. ..................................150 Figura: 42 Yara à frente com o Grupo de GR da ETFAM, 1983. ....................................151 Figura: 43 Yara durante o tempo em que integrou o GEDAM e Renascença, 1995. ......152 10 Figura: 44 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM e Renascença, 1995. ............................................................................................................................................152 Figura: 45 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM, 1996. ..............153 Figura: 46 Foto de uma performance durante o curso de Pós-graduação em Dança na Bahia, 1997. ..................................................................................................................................154 Figura: 47 Audição para o C.D.A, 1998...........................................................................155 Figura: 48 No Teatro Amazonas após a apresentação do espetáculo “Mandala” junto com o diretor do DCA na época Jofre Santos, 1999. ...............................................................156 Figura: 49 Atividades do AGAM treino da coreógrafa no rapel, 1999. ...........................................................................................................................................158 Figura: 50 Atividades do AGAM e experimentações de dança da coreógrafa no rapel, 2001. ...........................................................................................................................................158 Figura: 51 Prática esportiva da artista – paraquedismo, s.d. ...........................................159 Figura: 52 Prática esportiva da artista – escalada, s.d .....................................................159 Figura: 53 Prática esportiva da artista – Aikido, s.d. ......................................................160 Figura: 54 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas da Índios.com Cia de Dança, 2005. ................................................................................................................161 Figura: 55 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas e com seu esposo e companheiro de trabalho na Índios.com Cia de Dança Ednaldo Passos, 2005. .............161 Figura: 56 Divulgação do espetáculo “O Processo”, 2004. ..........................................162 Figura: 57 Apresentação do espetáculo “O Processo”, 2004. ........................................162 Figura: 58 Bastidores do espetáculo “O Processo”, 2004. ............................................163 Figura: 59 Cena de “Rito de Passagem”, 2008. ..............................................................163 Figura: 60 Foto do cartaz do Prêmio Palco Giratório, 2009. ..........................................164 Figura: 61 A coreógrafa com sua orientadora e as professoras de sua banca logo após a defesa do mestrado, 2008. ................................................................................................166 Figura: 62 Folder da obra “Rito de Passagem”, 2007. ....................................................167 Figura: 63 Documento 08 na íntegra, anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança aérea. ................................................................................................................................168 Figura: 64 Documento 05 na íntegra, reportagem sobre dança aérea .............................169 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................................................13 1 CAPÍTULO - TEXTOS E CONTEXTOS DAS LINGUAGENS CORPORAIS CONTEMPORÂNEAS................................................................................................................................17 1.1Cultura e sociedade contemporânea: o global e o local....................................................17 1.1.2 O global – Contemporaneidade..........................................................................24 1.1.3 O local - Manaus ontem e hoje...........................................................................30 1.2 Práticas corporais: corpo e corporeidade.........................................................................37 1.2.1 Noção de técnica do corpo..................................................................................37 1.2.2 Corporeidade......................................................................................................42 1.3 Corpo e performance em dança contemporânea.............................................................49 1.3.1 O corpo na cena contemporânea.........................................................................49 1.3.2 Performance na dança contemporânea...............................................................56 2 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO: DIVERSOS OLHARES..........................67 2.1 Processos de criação em arte...........................................................................................67 2.2 Processos de criação na dança........................................................................................78 3 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO DA OBRA “RITO DE PASSAGEM” .....86 3.1 Documentos de processos................................................................................................92 3.2 Corpo e performance ......................................................................................................99 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................139 REFERÊNCIAS..................................................................................................................142 ANEXOS.............................................................................................................................147 A. Trajetória biográfica da coreógrafa..................................................................................147 B. Folder de “Rito de Passagem”.........................................................................................167 C. Documento 08 na íntegra.................................................................................................168 D. Documento 05 na íntegra.................................................................................................169 12 E. Roteiro de entrevista semiestruturada 2012.....................................................................170 13 INTRODUÇÃO O processo de envolvimento com esse tema de pesquisa vem desde muito antes do meu ingresso na faculdade. Retrocedendo assim a minha infância na cidade de Manaus, quando minha família e eu íamos assistir a espetáculos circenses que apresentavam uma diversidade de performances, os artistas demonstravam grande domínio de diferentes técnicas corporais. A performance que mais me chamava a atenção era a dos trapezistas pelas acrobacias aéreas, a força e precisão dos movimentos e o risco que corriam, como se não pudessem errar. Recordo de estar sempre treinando principalmente os movimentos relacionados ao trapézio, pois tinha um balanço grande em casa e eu passava horas me preparando para algum dia ir embora e trabalhar no circo. Envolta nesse universo circense de sonho e ciente da necessidade de existir um trabalho árduo de treinos para torná-lo realidade, passei a prestar mais atenção nas práticas esportivas, marciais e artísticas principalmente através da TV e de eventos festivos de cunho folclórico como as festas juninas onde se apresentam diferentes estilos de danças folclóricas. No esporte as práticas que mais me chamaram a atenção foram a ginástica rítmica e a patinação no gelo, dentre as artes marciais o Kung-Fu e Ninjutso e na dança o balé clássico, o rock na dança de salão e o balé moderno, conforme conhecia outros estilos de dança essa lista foi se alargando. Na adolescência pratiquei Kung-Fu, dança Flamenca, balé clássico, teatro e capoeira. Após finalizar o ensino médio fiz aulas de dança moderna e tive a oportunidade de fazer testes para três grupos de dança, vindo a fazer parte de dois destes grupos, o Balé Folclórico do Amazonas e o Grupo Espaço de Dança do Amazonas (GEDAM), começando uma carreira profissional na dança. Na faculdade cursei bacharelado e depois completei a licenciatura plena em dança, aprendi a importância da parte teórica e da pesquisa. Na pós-graduação latu senso, escolhi um curso que ajudou a ampliar o olhar sobre as práticas artísticas, Artes visuais, cultura e criação, sempre juntando a teoria com a prática nos trabalhos durante e na finalização do curso. 14 No percurso da minha formação acadêmica, profissional e pessoal tive muitas experiências que só reforçaram o meu interesse pela dança e as artes em geral, até chegar ao curso de mestrado mantendo o olhar voltado para a nossa região, a arte produzida aqui na cidade de Manaus, no meu primeiro curso de pós me reportei a alguns artistas locais e suas obras. No cenário da dança local há grande interesse por parte dos artistas em temáticas que se reportam a realidade amazônica, voltando o olhar para questões étnicas antropológicas. Essas questões despertam em nós enorme interesse, razão porque decidimos fazer um estudo abordando as práticas corporais a partir do processo de criação da obra de dança contemporânea “Rito de Passagem” da coreógrafa amazonense Yara Costa, que apresenta uma trajetória com a pesquisa e produção artística em dança contemporânea na cidade de Manaus. Junto com a sua Índios.com companhia de dança a coreógrafa apresenta um trabalho intrinsecamente ligado à investigação de movimento, que envolve a técnica do rapel e a técnica circense de tecido, vindo a tornar-se uma referência em dança aérea no Estado do Amazonas. Yara nasceu no interior do Amazonas em Urucurituba e descende da mistura étnica de indígenas e portugueses, desde criança demostrava interesse pela dança e no ensino fundamental praticou ginástica rítmica. No ensino médio teve contato com os estilos de dança clássica, moderna e contemporânea, cursou faculdade de engenharia elétrica e fez a pósgraduação tanto latu senso como stricto senso em dança. Integrou alguns dos grupos de dança do Amazonas GEDAM (Grupo Espaço de Dança do Amazonas), Renascença, CDA (Corpo de Dança do Amazonas), foi diretora artística de dança no SESC (Serviço Social do Comércio) e atualmente é diretora e intérprete da Índios.com Cia de Dança e professora de processo de criação na UEA (Universidade do Estado do Amazonas). Para conhecer a artista criadora da obra estudada, sua trajetória vivida, acrescentamos em anexo à biografia de Yara Costa cuja pesquisa misturando técnicas de dança, esportiva e circense começou com um projeto de extensão dentro da Universidade do Estado do Amazonas investigando a mistura entre a técnica do esporte radical rapel e alguns movimentos da dança buscando a possibilidade de realizar uma dança no espaço aéreo. Depois foi introduzida no processo a técnica circense de tecido. 15 Yara venceu diversos editais nacionais e internacionais se destacando no cenário da dança local com ênfase para a dança aérea e trabalhos com temática cultural. “Rito de Passagem” se reporta a cultura indígena utilizando na maior parte da obra a dança aérea. Trata-se de uma obra que apresenta temática voltada para a realidade do cotidiano da mulher indígena amazônica, além de apresentar referências universais ao se reportar a todas as mulheres através das diferentes fases de vida dessas mulheres, que implicam mudanças físicas e psicológicas. Os processos criativos apresentam uma variedade ampla de referenciais e um determinado número de relações entre esses referenciais para formarem um todo complexo, mas, coerente. As práticas corporais presentes na cena da dança na atualidade estão cada vez mais diversificadas, há abertura para mesclar a dança, por exemplo, com técnicas esportivas, marciais, teatrais, práticas cotidianas e também outros estilos artísticos. Os intérpretes vêm conseguindo uma hibridez na mistura dessas diferentes movimentações, causando experiências estéticas de grande riqueza para os participantes da obra e do público que a prestigia. Para a pesquisas que envolvem processo de criação o estudo dos signos e das interrelações entre eles assim como sobre as relações e inter-relações do criador com o ambiente ao seu redor, se mostra relevante para uma melhor compreensão da obra, de seu desenvolvimento e para uma possível análise dessas informações. Ressaltamos a importância de se ter um olhar sistêmico sobre esses estudos de processo de criação artística devido a sua composição complexa. As obras artísticas nascem a partir de inquietações, inspirações e da pesquisa e trabalho de um ou mais criadores. A obra “Rito de Passagem” foi criada pela coreógrafa amazonense Yara Costa que também é (bailarina, diretora da índios.com Cia de Dança e professora da Universidade Estadual do Amazonas UEA), a partir de suas inquietações relacionadas com suas origens da mistura entre indígenas e europeus e das referências indígenas de nossa cultura amazônica. Conhecer melhor um processo criativo é mergulhar em um universo próprio que trás consigo diversas referências de uma vida e de diferentes pesquisas, que parte de um ou mais criadores. Ao nos reportarmos a determinado processo criativo estamos voltando o olhar para o trabalho de um ou mais artistas de e em determinado lugar. 16 Nesta pesquisa qualitativa buscamos investigar na obra “Rito de Passagem” como as práticas corporais escolhidas pela coreógrafa foram transpostas, resignificadas para a linguagem da dança contemporânea, utilizamos na metodologia a entrevista semiestruturada, a pesquisa documental assim como a hermenêutica e a dialética. Dentre os campos científicos podemos perceber no caso da obra observada uma relação com a história, a sociologia, a antropologia. Ampliar o olhar neste contexto significa ampliar o campo de conhecimento, buscar perceber as partes e o todo em sua completude, com um maior número de conexões. No primeiro capítulo abordamos o referencial teórico buscando embasamento a princípio nos estudos de Geertz (2008), Laraia (2009), Santos (2008), Giddens (2000) sobre os estudos culturais e a globalização; Mauss (2010), Le Breton (2007) e Soares (1996) para analisar as práticas corporais, Peirano (2013), Ligiéro (2012) e Schechner (2012) para verificar questões relacionadas à performance entre outros autores como Xavier (2002) sobre a dança na cidade de Manaus, Le Breton (2012), sobre o corpo na cena contemporânea e Katz (2004) sobre a dança contemporânea. Partimos dos estudos culturais para termos uma visão mais ampla sobre a diversidade cultural, a globalização e a influência das culturas nos trabalhos artísticos até chegarmos aos estudos das práticas corporais, ao corpo na cena contemporânea e a performance em dança. No segundo capítulo abarcamos o processo de criação na arte e especificamente na dança tendo como base os estudos de Peirce (1977), Langendonk (2004), Santaela e Vieira (2004), Morin (2003) e Salles (1998) sobre o estudo dos signos, ícones, a complexidade dos trabalhos artísticos e também nos estudos de Ostrower (2004), Marques (2010), Lobo e Navas (2008), Martins (2007) e Laban (1990) para abordar a criação na dança, técnicas de dança e traços estéticos. No terceiro capítulo, nos reportamos sobre a obra “Rito de Passagem” seu processo criativo, documentos de processo (cadernos de anotações, equipamentos etc.), a produção, os componentes da obra figurino, trilha sonora, práticas corporais utilizadas e a performance. A partir dessas informações fizemos uma análise em cima do processo criativo sobre as práticas corporais presentes na obra e como elas foram transpostas, resignificadas para a linguagem da dança. Esta pesquisa concluiu que através dos estudos de processo de criação é possível perceber e conhecer partes do processo criativo de um trabalho artístico são detalhes que 17 colaboram para decifrar alguns pontos importantes como alguns questionamentos, inquietações e inspirações da criadora que a motivaram a criar a obra, assim como os diferentes referenciais e vivências da artista que influenciam nas escolhas dos elementos sígnicos selecionados para compor a obra. A artista passa por momentos de introspecção e de busca inconsciente e consciente até chegar a algo mais concreto, são diversos discursos no decorrer do processo que podem concordar ou discordar uns com os outros, e a artista cabe conciliar tudo para organizar e produzir a obra tirando-a do campo das ideias para o da realidade. As práticas corporais que compõem a obra “Rito de Passagem” são bem diversificadas e verificamos que foi necessário um bom tempo reservado a pesquisa de movimento para chegar à composição coreográfica da obra concebida em 2007, ainda em um primeiro estágio das experimentações para a dança aérea partindo dos conhecimentos da dança, esporte radical rapel e arte circense tecido. As possibilidades de diálogo entre as diferentes práticas corporais e expressões artísticas são inúmeras e requerem tempo, dedicação e ousadia. E a coreografa conseguiu unir esses elementos dentro dos seus conhecimentos e também buscando em outras fontes dialogando com outras áreas e artistas o que nos leva a mais um ponto importante nos trabalhos em dança contemporânea, a necessidade do diálogo, de experimentar, vivenciar as diferentes práticas corporais para apreendê-las, percebê-las, corporificá-las para então transformá-las, o que pode ser de forma mais orgânica ou não, mas lembrando de manter a segurança dos intérpretes. 18 1. CAPÍTULO - TEXTOS E CONTEXTOS DAS LINGUAGENS CORPORAIS CONTEMPORÂNEAS. 1.1 CULTURA E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O GLOBAL E O LOCAL A cultura é dinâmica e o homem como um ser cultural que é, acompanha as diversas transformações que as sociedades apresentam a sua sobrevivência, mantém relação com a capacidade de se adaptar ao meio cultural no qual vive ou com o qual convive. Para Geertz (2008) o homem se desenvolveu partindo de fatores biológicos em um processo de variação genética e seleção natural e posteriormente, durante sua evolução sofreu alguma alteração genética que o tornou capaz de produzir e transmitir cultura. E ao se transformar em um ser cultural passou a responder de forma diferente as mudanças nos ambientes aos quais se expunha, buscando se adaptar de acordo com suas descobertas e conhecimentos culturais e não mais genéticos. Para sobreviver nas diferentes regiões da terra Geertz (2008) esclarece que o homem se protege em lugares frios com peles de animais ou outros materiais e usa pouca roupa ou nenhuma no calor, cria instrumentos para aumentar a sua eficiência e facilitar a busca por alimentos e na luta pela sobrevivência. Com o desenvolvimento cultural, o homem se considera fora da cadeia alimentar do reino animal e busca uma conexão com uma força superior/divina, o homem passou então a acumular e transmitir conhecimento, desenvolvendo-se principalmente a partir do crescimento da organização cultural. Segundo Geertz (2008, p. 35), após o período de transformações da era glacial, [...] “para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de fontes culturais fundo acumulado de símbolos significantes”. Tais símbolos para o autor estão relacionados com a linguagem, com a arte, o mito e o ritual, que servem de apoio para a orientação da comunicação e do autocontrole. O apoio nesses sistemas 19 simbólicos criou um novo ambiente para o homem se adaptar, agora organizado e moldado pela cultura. A cultura apresenta distintas variações de acordo com o processo evolutivo e com as necessidades de cada ambiente ao qual o grupo humano esteja inserido. Sobre seu próprio conceito de cultura Geertz (2008, p. 66) afirma que: [...], o conceito de cultura ao qual me atenho não possui referentes múltiplos nem qualquer ambiguidade fora do comum, segundo me parece: ele denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. Geertz (2008, apud Goodnough, p. 08), ao se reportar ao conceito de cultura, também cita Goodenough onde expõe: “A cultura de uma sociedade consiste no que quer que seja que alguém tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros”. O autor apresenta o homem como um ser que se desenvolveu e se tornou o que é hoje devido à criação e organização cultural da qual ele próprio é o autor. Também coloca a ideia de controle onde as pessoas pertencentes a determinado núcleo cultural, aprendem a agir de acordo com os comportamentos aceitáveis dentro da sociedade na qual estão inseridas. Se não existisse determinada organização e orientação seria difícil manter uma ordem. Para Geertz (2008) a cultura acumulada é transmitida através de símbolos, que partem de significados acumulados ao longo de períodos históricos diferenciados representados por padrões simbólicos convencionalizados através dos quais o homem amplia seu conhecimento e pode modificar sua realidade, resultando em um processo evolutivo através do acúmulo e transferência de saberes diversos. Sobre o uso do termo símbolo o autor esclarece que: Para alguns, ele é usado para qualquer coisa que significa uma outra coisa para alguém – as nuvens escuras são as precursoras simbólicas de uma chuva que vai cair . Para outros é usado apenas em termos de sinais explicitamente convencionais de um outro tipo – uma bandeira vermelha é um símbolo de perigo , uma bandeira branca de rendição. [...]. Para outros, entretanto, ele é usado para qualquer objeto, ato acontecimento, qualidade ou relação que serve de vínculo a uma concepção – a concepção é o “significado” do símbolo – e é essa concepção que usarei aqui. O número 6, escrito, imaginado, disposto em uma fileira de pedras ou indicado em um programa de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo, falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze, dedilhado quando pendurado em uma corrente [...]. Todos eles são símbolos ou pelo menos elementos simbólicos, pois são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações 20 concretas de ideias, atitudes julgamentos, saudades ou crenças (Ibdem, 2008, p. 67-68). Então para o autor a concepção que se tem de símbolo escolhida para uso na sua pesquisa na qual estamos nos embasando, é que todo objeto é um símbolo ou elemento simbólico, pois representa algo concreto cuja forma pode relacionar-se com significados diferenciados, mas dentro de um mesmo contexto, convencionalizados a partir de experiências, ideias e crenças. Laraia (2009, p. 45) que também se reporta aos estudos culturais comenta que: O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. O conhecimento é transmitido de uma geração a outra e sempre as informações são atualizadas de acordo com o contexto em que as pessoas estão incluídas. Nesse processo de aprendizagem e armazenamento de informação os cinco sentidos do corpo humano paladar, audição, tato, olfato e visão são de extrema importância, pois percebemos o mundo ao nosso redor através de nossos sentidos. Outro fator que faz muita diferença é a nossa grande capacidade de comunicação e de armazenar, transformar e produzir conhecimento. Na natureza o homem se destaca como o único ser cultural. Para a sociedade humana as mudanças podem ocorrer de forma mais lenta tal como nos processos de evolução natural, ou acelerada como em um processo de colonização. Seja em um processo de colonização ou outra forma de intercâmbio cultural Herkovits (1960, p. 348) afirma: [...] a transmissão da cultura, processo de mudança cultural [...] ocorre quando dois povos quaisquer têm contato histórico respectivo. Onde um grupo, por ser maior ou estar tecnologicamente melhor equipado que o outro obriga as mudanças nos modos de vida de um povo conquistado, pode-se chamar, o que governa, o grupo dominante. E ainda para Herkovits (1960, p. 348) com relação ao contato entre povos com culturas diferentes, “o ponto importante a citar é que qualquer que seja a natureza do contato, o resultado parece ser o empréstimo mútuo e a subsequente revisão dos elementos culturais”. 21 Somos seres com uma grande capacidade de adaptação, inteligência e temos acesso a uma diversificada gama de conhecimento, o que contribui para sobrevivermos às mudanças e influências no ambiente. Adaptamo-nos constantemente às transformações ao nosso redor, aprendemos com pessoas de nosso convívio como familiares, professores e amigos o modo de pensar e agir da sociedade em que vivemos e com as quais temos contato. Parece que não há maneira de o homem não influenciar ou não ser influenciado de alguma forma pelo todo ao redor ou com qualquer coisa que este venha a ter um contato que exerça certo impacto sobre ele, influência ou tenha uma determinada duração de tempo que leve a isso. O ser humano tem uma grande capacidade de aprendizagem e percepção, mas somente as desenvolve se receber estímulos que colaborem para que isso aconteça. A capacidade existe e só se desenvolve mediante a variada estimulação de fontes diferenciadas. Laraia (2009) ressalta que apesar do ser humano nascer inteligente, ele precisa receber os estímulos, as informações necessárias para que possa desenvolver as suas capacidades criadoras e revolucionárias. Cita o exemplo de Santos Dumont que deixou sua cidade no final do século XIX e foi para Paris onde teve acesso a um grande acúmulo de conhecimento da civilização ocidental. Esse fato contribuiu para ele ter criado um aparelho que proporcionou ao homem se locomover pelo espaço aéreo. O que não teria sido possível se permanecesse em sua cidade natal. Ainda segundo Laraia (2009), independente do local de nascimento de uma criança, comunidade, cidade, pais, por exemplo, se ela nasceu em Londres e pouco tempo depois for levada para ser criada em uma família no Rio de Janeiro, ela não se diferenciará mentalmente de seus irmãos da família brasileira. Para Laraia (2009), muitas vezes acontece de o que é considerada uma atividade inteiramente feminina em determinada localidade pode ser uma atividade masculina em outra. O que diferencia o comportamento entre homens e mulheres é, em sua maior parte, de cunho cultural e não biológico. Sobre a influência biológica no comportamento do ser humano em relação à diferenciação por gênero, afirma que se dá principalmente pela ação dos hormônios sexuais. 22 A partir da experiência vivida e de relatos no meio da dança é possível destacar que na prática do balé clássico, no Brasil, ainda há muito preconceito por parte da sociedade quanto a ser praticado por meninos e, normalmente, os pais referem que os filhos pratiquem esportes ou lutas marciais. O balé é considerado uma atividade feminina por apresentar movimentos leves e delicados, apesar de que nos solos masculinos os movimentos são vigorosos e fortes com grandes saltos. Já na Rússia, país onde há uma grande tradição desse estilo de dança, é uma alegria para a família ter um filho ou uma filha que se interesse em estudar balé clássico. Outro exemplo é a dança praticada quase unicamente por mulheres no Brasil conhecida por ser extremamente sensual chamada de Pole Dance, recentemente transformada em uma modalidade esportiva ressaltando a performance de força e flexibilidade, já na Índia é praticada pelos homens não como dança, mas como uma atividade esportiva competitiva onde eles realizam principalmente movimentos de força, flexibilidade e acrobacias. Laraia (2009) também ressalta que é devido à capacidade de resolver problemas através do uso não apenas do conhecimento, mas também utilizando a criatividade, os habitantes de uma mesma região apresentam modos de vida diferenciados e cita os povos habitantes da calota polar norte, os esquimós e os lapões. Os primeiros vivem em casas feitas de gelo chamadas iglus, sendo forradas por peles de rena por dentro possibilitando que eles tirem as pesadas roupas em seu interior. Eles preferem caçar ao invés de criar animais e quando se mudam simplesmente abandonam o local. Já os lapões constroem suas casas com peles de rena e pedaços de madeira, são criadores de rena e ao se mudarem precisam desmontar tudo e transportar para o próximo local escolhido para residir. Outro exemplo citado pelo autor são os Xinguanos como ele coloca (Kamayurá, Kalapalo, Trumai, Waurá), habitantes do Parque Nacional do Xingu que por motivos culturais não comem os grandes mamíferos e se dedicam acaça de aves e a pesca. E os Kayabi, que habitam o norte da mesma região preferem os grandes mamíferos como as antas, os veados e os caititus. Herkovits (1960, p. 349) também se reporta a manifestações culturais diferenciadas em uma mesma região partindo da relação de intercâmbios culturais onde expõe que: 23 Os tipos de contato entre os povos diferem em muitos aspectos. Podem ocorrer entre populações inteiras, ou entre segmentos substanciados dessas populações, ou pode ainda surgir do contato entre agrupamentos menores ou mesmo entre indivíduos. Onde os representantes de um grupo levam a outro uma faceta particular de sua cultura, os elementos tomados de empréstimo serão evidentemente os da faceta apresentada. Os filmes americanos são um exemplo de como nos dias de hoje determinado produto como as produções cinematográficas podem influenciar diferentes parcelas da sociedade, causando interferência desde a maneira como a pessoa se produz até na forma de pensar e ver o mundo. É uma forma de intercâmbio cultural e pode-se dizer até mesmo que é uma forma atual de colonização. O homem está sujeito às intempéries da natureza principalmente na região em que habita, seu organismo responde aos estímulos e transformações necessárias para uma melhor adaptação como ser biológico que é, mas ele descobre diferentes maneiras de conviver e transformar essa natureza, às vezes com sabedoria como uma grande parte da população indígena brasileira ainda faz e às vezes não como os habitantes das grandes cidades que desperdiçam tudo e consomem mais do que realmente precisam. Um exemplo são as modificações geográficas feitas na cidade de Manaus, que era uma cidade cortada por inúmeros igarapés, devido ao “progresso” os cursos desses rios foram mudados, os igarapés foram aterrados ou transformados em esgotos sem pensar em cuidar de um bem tão precioso à vida humana que é a água. E esse comportamento foi culturalmente construído. Laraia (2009, p. 25) esclarece que o conceito de cultura mais utilizado foi definido pela primeira vez por Edward Tylor: No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente as realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que ‘tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade’. Todas as práticas, crenças, formas de organização, enfim todo contexto em que vive o ser humano está relacionado com a cultura, faz parte de quem somos porque é a partir das relações e aprendizagens culturais que nos desenvolvemos. 24 Sobre os estudos culturais da antropologia Geertz (2008, p. 09) afirma que “a cultura é pública porque o significado o é”, se reporta ao fazer do antropólogo e de questionamentos sobre esse fazer, acrescenta que não conseguimos nos situar completamente em uma cultura diferente da nossa, apenas parcialmente, não entendemos completamente o povo do local e que a pesquisa etnográfica consiste em situar-se parcialmente em determinada cultura pesquisada. Esclarece também que “estar situado eis o que consiste o texto antropológico como empreendimento científico” (GEERTZ, p. 10). Acrescenta ainda que “estamos procurando, no sentido mais amplo do texto, que compreende muito mais do que simplesmente falar, é conversar com eles o que é muito mais difícil (p. 10)”. O autor ainda afirma que visto desse ângulo um dos objetivos da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. Para Geertz (2008, p. 10) esse objetivo se destaca por ser o qual o conceito de cultura semiótica se adapta muito bem. “Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis [...], a cultura [...] é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade”. A capacidade de comunicação que parte dos estímulos recebidos através dos cinco sentidos dos humanos possibilita a leitura e compreensão de todos esses sistemas entrelaçados de signos. Na relação entre povos distintos a comunicação não verbal, a gestual se torna dominante e assim também o é na dança. Podemos perceber uma mensagem corporal através da maneira como outra pessoa nos olha, através do sorriso, de um gesto de suas mãos, na sua postura corporal e todas essas nuances são utilizadas na dança, o corpo fala através de seus movimentos, gestos, características próprias. Para o ser biológico, social e cultural que é o homem, a cultura irá se desenvolver de acordo com cada sociedade não havendo um modelo fixo, ele estará adaptado ao ambiente ao qual habita e partindo dessas condições se organizará socialmente e culturalmente. Os indivíduos tem uma grande capacidade de adaptação, os instintos de sobrevivência biológicos e os conhecimentos adquiridos são diferenciais que ajudam nas mudanças ao longo da vida, seja uma troca de emprego ou a mudança para outro país. A pessoa consegue se 25 adaptar ao novo ambiente cultural, mas não perde as referências culturais do seu local de origem. A cultura é mantida e reorganizada continuamente, o conhecimento seja cultural ou não é transferido através de significações e representações simbólicas convencionalizadas. Essas especificações biológicas e a capacidade de armazenar e comunicar é que tornam os humanos dominantes entre as diferentes espécies. Voltando nosso olhar para os contatos entre diferentes culturas, mais especificamente na Amazônia para chegarmos à cidade de Manaus podemos observar as influências culturais que principalmente a população que foi colonizada sofreu ao longo de anos de contato hostil. Os povos nativos da região amazônica eram as diferentes etnias indígenas e entre os que aqui chegaram estavam principalmente os portugueses que devido a seu conhecimento tecnológico chamaram a atenção dos nativos com artigos materiais e dominaram a sociedade local. Os portugueses trouxeram consigo escravos africanos que também contribuíram com a miscigenação das raças. Outra organização cultural que chegou à Amazônia através de propaganda enganosa com promessas de trabalho e riqueza foram os nordestinos que ficaram conhecidos principalmente como soldados da borracha. Herkovits (1960, p. 352) ao se reportar sobre o período de colonização do Brasil expõe que: Os negros levados ao Brasil influíram na cultura dos portugueses dominantes, eles próprios também imigrantes e do mesmo modo sujeitos à influência dos índios. Estas várias influências podem ver-se fundidas em tão diferentes aspectos da vida moderna brasileira como a cozinha, a estrutura social, crenças de várias espécies, formas musicais correntes e usos linguísticos, para não citar o que persistiu do comportamento e das crenças africanas mantidas pelos próprios africanos. O autor se reporta a um quadro nacional desse intercâmbio por meio do contato não amistoso entre povos, mas que não muda o fato dessas culturas se mesclarem com o tempo, dando origem a uma nova organização cultural. Esse processo aconteceu em todas as regiões do Brasil e cada uma com sua especificidade. Na cidade de Manaus, por exemplo, a maior influência cultural que resiste nos dias atuais no ambiente urbano vem dos portugueses, nordestinos e indígenas. Com base nos estudos culturais apresentados sabemos que o ser humano é um ser cultural que utiliza signos para perceber a si mesmo e o mundo ao redor, o que só é possível 26 através da linguagem, da capacidade que o homem tem de se comunicar. A cultura é resultado do acúmulo, transmissão e transformação de conhecimento através dos diferentes signos de linguagem e cada sociedade tem suas características próprias, por exemplo, crenças, costumes, expressões artísticas. A arte é resultado da necessidade de comunicação do ser humano, de suas inquietações e questionamentos sejam eles coletivos ou individuais, reflexões/provocações. Cada artista trás consigo uma gama de referenciais simbólicos e busca tantos outros para suas produções, o que transforma uma obra em uma rede complexa de signos e significados. Podemos dizer que a arte resulta de uma reflexão sociocultural onde o artista pode ser considerado um ser questionador e transformador e quanto maior o grau de complexidade de uma cultura mais complexa pode ser a sua arte. Os avanços tecnológicos, as transformações socioculturais, o advento da globalização exercem influências na vida cotidiana dos indivíduos e em suas produções culturais contribuindo para novas experimentações, novas formas de ver e fazer arte nos mais diferentes segmentos artísticos incluindo a dança. Se a globalização está influenciando e transformando as diferentes sociedades, tornase relevante uma melhor compreensão do fenômeno devido às influências que exerce nas produções artísticas, principalmente as dentro do conceito de arte contemporânea, que envolve a interconexão entre diferentes linguagens apresentando um olhar crítico sobre os temas abordados, uma reflexão, uma parceria, um diálogo entre artista e público. 1.1.1 O Global - Contemporaneidade Os indivíduos e as sociedades estão em constante transformação reformulando seus valores, crenças e manifestações artísticas, seja por necessidade ou por influência do ambiente em que vivem e aos quais tem acesso, influenciando o ambiente e sendo influenciados por ele. A evolução dos meios de comunicação foi um dos fatores que contribuiu para acelerar as transformações na contemporaneidade, trouxe uma maior proximidade entre os povos e acelerou o atual processo de globalização. Para Santos (2008) a globalização está em quase todas as partes do mundo, e assim como diminui as fronteiras também aumenta as diferenças, pois é possível conhecer melhor a cultura de cada localidade. E essa 27 possibilidade tem provocado uma busca pelas características e manifestações próprias, regionais, dirigindo o olhar para as origens, as raízes de cada povo e suas manifestações socioculturais. Parece que estamos em um momento de descobertas de novos mundos, mas também de reflexão sobre a própria cultura de origem de cada região, buscando um novo olhar, novas informações que podem levar a mudanças, a reformulações de tradições. E isso faz com que apareçam novas possibilidades e caminhos a serem percorridos. As mudanças que os avanços tecnológicos trouxeram para a humanidade estão presentes no cotidiano das mais diferentes sociedades com maior ou menor impacto e os trabalhos artísticos também apresentam essa influência, pois o artista incorpora em sua arte muitas de suas referências vividas. Ressaltamos que o trabalho coreográfico estudado data do ano de 2007 e reflete esse momento de buscar as origens, voltando o olhar para o local, mas sem deixar de dialogar com o global. A obra de dança escolhida para essa pesquisa se reporta a cultura indígena e um pouco à urbana envoltas em toda uma estrutura de recursos tecnológicos, a coreógrafa trás para a cena recortes culturais através de personagens femininas projetadas na tela ao fundo e uma personagem principal que está presente no palco. Esse jogo entre o real e o virtual acontece durante todo o trabalho. Apresenta em cena algumas das influências desse mundo globalizado da era da comunicação. A globalização faz parte da nossa atual realidade e sobre o termo Giddens (2000, p. 20) esclarece que vem sendo mais amplamente utilizado depois do final dos anos 80, está relacionado com a “tese de que agora vivemos todos num único mundo”. Separou os pensadores que discutem o termo em dois grupos devido a grande contradição existente nos dois discursos. Ao primeiro denominado céticos, são os que acreditam que tudo que é dito sobre o termo são apenas conversas e que a economia global pouco mudou nos últimos anos. Ao segundo grupo nomeou de radicais, acreditam que a globalização é um fato bem concreto e seus efeitos podem ser sentidos em toda parte. O comércio internacional está muito desenvolvido e se coloca de forma indiferente as fronteiras nacionais. “As nações perderam uma boa parte da soberania que tinham e os políticos perderam muita da sua capacidade de 28 influenciar os acontecimentos [...]. Acabou a era do Estado-nação” (GIDDENS, 2000, p. 2021). Para o autor a razão está com o grupo dos radicais devido à evidencias que demonstram que: O volume do comércio externo de hoje é superior ao de qualquer período anterior e abrange uma gama muito mais extensa de bens e serviços. Mas a maior diferença registra-se a nível financeiro e nos movimentos de capitais. Alimentada pelo dinheiro eletrônico — isto é, dinheiro que só existe como informação digital nos discos dos computadores – a economia do mundo atual não tem paralelo com a das épocas anteriores (Ibdem, 2000, p. 21). Cada vez mais há a possibilidade de verificar o quanto as economias mundiais estão interligadas, pois quando um país está passando por uma crise financeira, pelo menos, as maiores potências, todos os outros países sofrem consequências financeiras que influenciam todas as outras áreas, saúde, educação, cultura etc. Essa é uma realidade da contemporaneidade, a internet apresentou e divulgou amplamente a ideia de redes interligadas e a economia mundial é um bom exemplo desse sistema que está presente tanto no mundo virtual como real. O autor também afirma que o fenômeno da globalização não é apenas de natureza econômica. “A globalização é política, tecnológica e cultural, além de econômica. Acima de tudo tem sido influenciada pelo progresso nos sistemas de comunicação, registrado a partir do final da década de 1960” (GIDDENS, 2000, p. 22). Alguns exemplos são as grandes invenções que contribuíram para melhorar e expandir a comunicação iniciando o processo de globalização. Conforme expõe Giddens (2000), a criação do código Morse pelo pintor Samuel Morse no século XIX, que ao transmitir a primeira mensagem através do telégrafo elétrico iniciou uma nova fase da humanidade. Em 1969 o primeiro satélite foi lançado em órbita com uma grande quantidade de informação possibilitando pela primeira vez na história existir comunicação instantânea entre um continente e outro diminuindo a distância entre as fronteiras e criando outro capítulo na história da humanidade. Outro exemplo de transformação apresentado pelo autor foi o rádio, que nos Estados Unidos levou quarenta anos para atingir os cinquenta milhões de ouvintes, já o computador pessoal, após quinze anos de sua invenção atingiu todos os cinquenta milhões e em apenas quatro anos esse mesmo número de habitantes passou a usar a internet com regularidade. 29 Esses eventos transformaram para sempre a humanidade, as informações agora chegam a muitos lugares do globo terrestre em tempo real, as pessoas têm acesso às informações com maior facilidade e agilidade. As transformações tecnológicas e através delas as culturais estão acontecendo em períodos de tempo muito curtos. O ser contemporâneo tem acesso a mais informação do que pode absorver, e cada vez mais as crianças nascidas nessa geração apresentam muita afinidade com as tecnologias, interagindo com uma naturalidade no mundo virtual às vezes até maior que no mundo real. O uso de tecnologia e as transformações que isso acarreta também estão presentes na dança. Apresentamos como exemplo o balé clássico, com o uso das sapatilhas de ponta, as estruturas móveis que formavam os cenários utilizados nos grandes balés, como exemplos mais atuais têm a dança criada com a linguagem do vídeo e a dança na web utilizando a linguagem da computação, acompanhando as transformações socioculturais e tecnológicas. Como resultado de todos esses avanços na técnica temos a globalização, e Santos (2008) esclarece que há três ideias que se reportam a uma forma de perceber esse fenômeno global: na primeira o mundo é apresentado conforme a idealização e interesses das grandes potências, dos grandes empresários, redes corporativas e políticos que o autor chama de a globalização como fábula, em que e as informações são manipuladas e só é mostrado ao grande público o que se quer que seja visto. Na segunda ideia exposta pelo autor a globalização como perversidade, ele apresenta principalmente os aspectos negativos da globalização e de todo o sistema principalmente capitalista onde a competitividade é ensinada e altamente estimulada assim como o egoísmo e a corrupção. Neste cenário agressivo, corrupto de desconfiança e desrespeito o homem não vale pelo que é e sim pelo que têm, os valores familiares estão se perdendo assim como a ética, não há interesse em educar e sim em manipular as pessoas para que sirvam a quem está no poder. E na terceira ideia o autor apresenta um caminho para transformar essa realidade que ele chama de “uma outra globalização”, que seria uma globalização mais humana, pautada em valores éticos e respeito à vida. Santos (2008, p. 24) afirma que na arquitetura da globalização atual os fatores que contribuem são: “a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único na história representado pela mais-valia globalizada”. 30 Para o autor as técnicas não se apresentam isoladamente e sim em um conjunto, grupos de técnicas que podem ser vistas como sistemas, cada um desses sistemas está relacionado a um período de evolução da história do desenvolvimento do homem. Na contemporaneidade o conjunto de técnicas que se destacam são as da informação por meio da cibernética, informática e eletrônica e o grande diferencial é que elas se comunicam. De certa forma, alguns dos mesmos fatores que contribuem para a globalização como a perversidade, também contribui para uma outra globalização e Santos (2008) esclarece que através do acesso a informação, da possibilidade de um maior conhecimento a respeito do planeta e das sociedades diversas o homem passa a ter um maior número de referências aumentando sua capacidade de comparação e possibilidade de escolha. E com a crescente mistura entre povos, raças, culturas e filosofias principalmente nos grandes centros urbanos onde uma enorme quantidade de pessoas dividem espaços cada vez menores aumentando o intercâmbio sociocultural e o conhecimento a respeito das possibilidades existentes, permitindo assim aparecer além do desejo também a busca por transformações da realidade que se torna cada vez mais insatisfatória pelo aumento da desigualdade, corrupção, violência e perda da qualidade de vida que supostamente com o progresso da técnica deveria aumentar. Hoje é possível observar nas redes sociais existentes não apenas o aumento do conhecimento e interação entre membros de diferentes tribos urbanas e sociedades, mas que essa interação vem gerando uma busca pela transformação da atual realidade em que vivemos. As pessoas questionam as atitudes praticadas nas outras sociedades e na sua própria, apesar de postarem na maioria dos casos apenas momentos felizes e de conquistas, as manifestações de repúdio a muitas questões são claras assim como o apoio a possíveis soluções e mudanças. Nos dias atuais, principalmente, as grandes empresas procuram por funcionários que estejam familiarizados e atuantes nas redes sociais para que se mantenham informadas do interesse mais atual do público consumidor, seja com relação a produtos, serviços e mesmo preocupações ideológicas para repensarem sua estratégia de venda em cima dessas informações. As manifestações da população que aconteceram em 2013, em todo o Brasil, pedindo mudanças e melhorias para diversas áreas cujo funcionamento está cada vez mais precário 31 como o transporte, por exemplo, buscaram por melhorias sociais, econômicas e até mesmo culturais. Esses manifestos tiveram início e foram organizados a partir das redes sociais, o próprio governo brasileiro contratou uma equipe de pessoas para monitorar as redes sociais para acompanhar a organização das manifestações tanto dos cidadãos como dos grupos organizados que criam confusões, realizam saques e incitam a violência. Devido à entrada de grupos de vândalos que se aproveitam ou são contratados para causarem o caos nesses movimentos, diminuiu significativamente o número das manifestações das pessoas, o aumento da violência tanto por parte dos grupos infiltrados como dos policiais desestimulou a participação mais efetiva nesses eventos. Esse direito a liberdade de expressão foi adquirido através da luta e sacrifício de muitos personagens, tanto anônimos como famosos, da nossa história e Farias (2010, p. 18) expõe que: O último século deixou por legado, para além das marcas da industrialização, da urbanização e da tecnificação da guerra, a extensão sem igual dos meios e ambiências sintonizadas à realização do direito a expressão. Os potentes meios técnicos de reprodução cultural e da informação inseriram-se profundamente na importância, montante e volume adquiridos pelas manifestações públicas: passeatas, greves, desfiles marciais e civis, olimpíadas, festivais e outras. Em um primeiro momento o rádio, depois a televisão, o computador e agora os smartphones contribuem para a divulgação e organização desses movimentos que antes eram compostos principalmente por jovens e hoje apresenta a participação de toda a população, da criança ao idoso, quase todos eles usuários de redes sociais na internet. Essa ferramenta de comunicação que é a internet e dentro dela as redes sociais, estão sendo usada por artistas de diferentes áreas para divulgar suas produções artísticas, criando uma rede de contatos que colabora com o artista principalmente com relação à divulgação. Mas também para a troca de experiências, para buscar e firmar parcerias, para discutir ideias, organizar eventos entre outras possibilidades. A ideia de rede nos remete a imagem de diferentes pontos interligados, é assim que funciona a internet e é assim a nossa forma de pensar, as ideias vão se relacionando, se interligando e isso também acontece em um processo de criação artística em que diferentes 32 sistemas interagem até que uma obra seja composta. O criador trás os seus e busca por novos referencias uma rede de significados que irá resultar em algo novo. Nos reportamos aqui a ideia de sistema apresentada por Morin onde o todo está contido nas partes e as partes estão contidas no todo, os diferentes segmentos sociais estão ligados, há a necessidade de observar não apenas a pessoa, mas também, o ambiente ao qual ela está inserida e a arte contemporânea não se mantêm distante do que acontece e sim observa e se reporta a esses acontecimentos de forma questionadora e instigante. Carvalho (2003, p.101) tendo como base os estudos de Edgar Morin afirma: A reorganização e religação dos saberes, fundamental para o pensamento complexo, é sempre biodegradável, redefine-se a todo o momento, funda-se na dialogia, na recursividade e no holograma, operadores cognitivos a serem simultaneamente acionados em qualquer pesquisa, ensaio, tese, conferência. O primeiro associa termos aparentemente irreconciliáveis; o segundo nega a linearidade entre causa-efeito; o terceiro identifica na parte e no todo a totalidade da informação contida em todo o sistema. O todo, que simultaneamente está na parte que, por sua vez, se presentifica nele, produz uma miríade de fluxos, dobras, interconexões, multidimensionalidades, ressonâncias, ondas, partículas, vidas, mortes, desejos, recalques. Indivíduo, sociedade, cosmo encontram-se mutuamente implicados na totalidade da natureza, aqui entendida como a totalidade inatingível da vida. O homem ao longo de todo seu processo evolutivo chegou a um ponto de organização e acumulação de saberes diversos, que quando passam a ser vistos com suas conexões e interconexões automaticamente levam a reorganizações, reformulações desses saberes, passando a enxergá-los de forma complexa e com a consciência de que tudo está, de certa forma interligado, são diversos sistemas que formam um todo um sistema único. Ao compreender um pouco melhor o desenvolvimento evolutivo do homem e com ele o da cultura com os estudos de Gerrtz e Laraia, é possível compreender a importância desse segmento nos dias atuais, parece que estamos em meio a um processo de redescoberta de nossa ligação com a natureza tanto quanto de nossa ligação com a tecnologia. Parece que não há como negar mais a necessidade de estudar o homem abarcando além da sua origem biológica a sua característica cultural. O ser humano precisa ser visto por completo e não por partes, ele é um todo complexo, na contemporaneidade é possível visualizar melhor a necessidade de observar, estudar o ser humano como um todo dentro do seu contexto sociocultural e ambiente ao 33 qual habita, levando em conta o estágio de seu desenvolvimento com a tecnologia e o acúmulo cultural. Buscamos partir de um campo de visão mais aberto investigando o conceito de cultura, como é a cultura contemporânea para compreendermos melhor os estudos de processos de criação e as práticas corporais que são uma parcela de extrema importância dentro da estética da dança. Todos os assuntos abordados levarão a uma maior aproximação com a dança praticada na cidade de Manaus na atualidade e na maneira que escolhemos estudá-la, percebê-la para uma possível análise. 1.1.2 O local - Manaus ontem e hoje Em todo o grande território brasileiro existem registros das misturas raciais e socioculturais que foram moldando nossa história e transformando o Brasil em um país multicultural e com a região Amazônica não foi diferente. É possível acompanhar as mudanças através de alguns momentos históricos até chegarmos aos dias atuais. O Brasil foi habitado primeiramente, de acordo com Freire (1991), pelos povos indígenas, e em seus estudos expõe que na região de São Raimundo Nonato no Piauí foi encontrado um sítio arqueológico de aproximadamente 41.500 anos. Com relação à ocupação da Amazônia brasileira há várias hipóteses sobre ondas de migrações que não foram confirmadas devido à dificuldade dos objetos utilizados por esses povos serem perecíveis e dificilmente resistirem ao clima da região. Freitas (2004) esclarece que entre os indígenas existiam posições hierárquicas de comando e religiosidade que eram organizadas e seguidas pela comunidade e respeitadas por outras comunidades e etnias indígenas. Tinham também suas disputas e guerras, em alguns casos era durante essas guerras que roubavam mulheres para casar. Os colonizadores acreditavam que os habitantes das terras recém-descobertas eram selvagens que precisavam de cultura e civilização. Uma grande parte do território brasileiro foi colonizada pelos portugueses que se empenharam em implantar a sua cultura e transformar a colônia em um pedaço de Portugal. Essa atitude resultou em uma transformação na vida dos povos indígenas brasileiros, ocasionando extinção de algumas etnias indígenas e também de parte da cultura de alguns povos que hoje tentam descobrir e aprender um pouco sobre sua própria cultura, como em 34 alguns casos, apenas os mais velhos de determinadas etnias sabem falar em sua língua nativa. Quando a Amazônia se integrou ao Brasil em 1853 através de um sistema de transporte a vapor, também se integrou ao comércio internacional por meio da exploração da seringa e iniciou o período conhecido como Ciclo da Borracha. Com a extração do látex colhido da seringueira, esse produto tornou-se estratégico na primeira revolução industrial do século XXI. Devido ao aumento da procura do produto foi necessário aumentar a mão de obra, período em que vieram os nordestinos para trabalhar como soldados da borracha em um regime escravista. Foi nesse período que a miscigenação se tornou mais forte e diversificada na região amazônica assim como a diversidade cultural. Da primeira mistura do índio com o europeu nasce o caboclo, e no período da borracha essa miscigenação aumenta com o negro e o nordestino, essas distintas etnias aprenderam a se adaptar ao ambiente em que se encontravam se familiarizando um pouco com os conhecimentos e costumes de cada cultura, dando origem a uma cultura própria rica e diversificada. Devido a grande riqueza dos senhores da borracha Manaus foi transformada em uma cidade com aparência europeia, ficando conhecida internacionalmente como a Paris dos Trópicos, onde havia todos os luxos e serviços de uma grande cidade da Europa, foi a primeira cidade a ter luz elétrica e uma universidade no Brasil, as casas eram construídas ao estilo europeu e o Teatro Amazonas também foi construído nesse período, assim como centenas de comunidades humildes que surgiram ao redor da cidade (BENTES, 1991). As manifestações culturais da cidade eram exportadas da Europa apenas para uma pequena elite. A cultura indígena continuava a ser dizimada e só era bom e bonito o que vinha da Europa. As culturas negra, nordestina e indígena iam se mesclando e dando origem à cultura cabocla e ribeirinha, algumas danças e ritmos indígenas tiveram influência de ritmos africanos e os nordestinos também trouxeram suas danças, festas e religiosidade. O período áureo da borracha compreendido entre 1901 e 1920, teve fim quando a seringueira foi levada para ser produzida na Ásia, onde conseguiram uma maior e melhor produção por menores custos (PEREIRA, 2006). 35 Foi um momento histórico de grande importância para o desenvolvimento, mesmo que de forma extremamente desigual para a cidade e para o Estado, ficando até hoje heranças arquitetônicas e mesmo socioculturais desse período também conhecido como o Boom da borracha, devido à expansão do comércio de exportação do látex e aumento dos lucros. Após o término do período áureo da borracha, a Amazônia volta ao isolamento até a implantação da Zona Franca de Manaus. É a Zona Franca que ainda mantêm a cidade ativa, isso muitos anos depois de sua implantação e só permanece por estratégias políticas, o que só aumenta a necessidade de se ter realmente uma política interna de desenvolvimento. A situação econômica atual da Amazônia parece que não está tão diferente assim ao que diz respeito à política interna de desenvolvimento e independência da Zona Franca de Manaus com relação ao restante do país. A Amazônia parece ser o objeto de desejo de muitos por suas riquezas naturais muitas ainda desconhecidas, relacionadas principalmente a fauna e flora. São muitos os motivos para a população local despertar e buscar caminhos para uma autonomia da região e maior valorização da cultura local. Com relação à cultura local há registros em jornais do ano de 1956 de manifestações artísticas e de artistas da cidade que nessa época estavam ligados ao restante do Brasil e do mundo através do rádio, havia também poucas salas de cinema que exibiam filmes com uma média de seis meses depois da estreia (AGUIAR, 2002). Uma manifestação cultural e também um espaço para intelectuais e artistas discutirem tudo o que estava acontecendo nas artes e mesmo relacionado à política e com a sociedade em geral a nível local, nacional e internacional foi o Clube da Madrugada de onde saíam veementes críticas ao governo. Foi um movimento que pode ser comparado a semana de 1922 para o restante do país (AGUIAR, 2002). Atualmente, na cidade de Manaus, temos uma diversificada e grande demanda cultural dentro dos diversos segmentos artísticos com destaque para manifestações folclóricas, para o cinema, a dança, o teatro, a música e as artes plásticas. Os municípios do Amazonas também tem apresentado um grande crescimento cultural, pois agora existe um maior investimento do governo do Estado em manifestações culturais próprias de cada município e também há uma preocupação com o intercâmbio cultural entre a capital Manaus e seus municípios. 36 Os festivais de artes cênicas, teatro e dança organizados pelo governo do Estado do Amazonas, que em anos anteriores eram realizados na cidade de Manaus, no ano de 2013 passaram a ser itinerantes tendo alguns municípios escolhidos para sediar o festival, com a realização de oficinas e apresentações na capital e no interior. É possível perceber através da convivência do dia a dia com a população seja da cidade e com maior ênfase a do interior, algumas heranças culturais deixadas no período da colonização, através de usos e costumes, dentre os quais a preferência por comer peixe com farinha de mandioca seja assado, frito ou em caldeirada, tomar vários banhos ao dia devido ao calor como os indígenas, usar perfumes, fazer cantigas de roda como os europeus, misturar crenças religiosas como fizeram os africanos no período da escravidão para não perderem suas crenças, assim como algumas iguarias de sua culinária como o vatapá e o caruru. Também aprendemos com os nordestinos a apreciar iguarias da sua culinária como a rapadura, realizar festas para os santos dentro da religião católica e dançar o Boi-Bumbá ou Bumba meu boi, cuja origem é europeia e que ao se misturar com a cultura indígena deu origem ao Boi-Bumbá do Amazonas. O Boi-Bumbá do Amazonas nasceu na cidade de Parintins e é conhecido internacionalmente, une o auto do boi trazido da região nordeste com a cultura indígena, tendo personagens que representam os senhores das terras, o caboclo e o indígena, apresenta de forma artística e grandiosa a nossa diversificada mistura cultural. O Amazonas apesar dos investimentos culturais existentes ainda precisa de mais incentivos e melhores políticas de desenvolvimento cultural, principalmente para a produção por parte dos grupos independentes seja de teatro ou dança. Antes da colonização as manifestações culturais existentes eram as das diferentes etnias que habitavam a região, dentro de suas celebrações como os rituais de troca, ritos de passagem, cerimônias fúnebres entre outras. As primeiras danças praticadas na região foram as étnicas e ritualísticas das diversas etnias que habitavam a Amazônia. Com a colonização vieram às danças folclóricas principalmente portuguesas, assim como as danças nordestinas e afros. O contato direto dos imigrantes com os nativos indígenas ocasionou na influência de uma cultura sobre à outra, nas manifestações de dança, 37 as batidas mais dinâmicas dos tambores africanos podem ter influenciado a cultura indígena levando a mistura de ritmos e possível aceleração de passos. Após o período áureo da borracha, mesmo em um momento de crise econômica as manifestações culturais permaneceram acontecendo e na Manaus do século XX, segundo Freitas (2010) a partir de sua pesquisa de doutorado, esclarece que nos anos de 1930 aparece em alguns jornais da época, como o Diário da tarde, reportagens sobre diversas festas na cidade tanto populares como as realizadas pela elite manauara. Outra atividade cultural nesse período eram os filmes exibidos nos cinemas, dentre esses, alguns faziam referência à dança com dançarinos famosos de Hollywood como Fred Astaire e Ginger Rogers. Também passavam pela cidade artistas do teatro e da dança como foi o caso da bailarina Maria Caetana que além de atuar em uma peça também apresentou uma performance de dança, presença divulgada no jornal Diário da tarde. Freitas (2010) ainda acrescenta que no ano de 1969 foi realizado na cidade de Manaus o II Festival de Danças Clássicas e Danças Modernas, uma das escolas participantes era a Escola de Dança do Teatro Amazonas que era mantida pela Fundação Cultural. Nas décadas de 1950 e 1960 os professores de balé que atuavam na cidade eram Beatriz d’Agostinho, Glória Velasquez e Zenira Ferreira da Silva. E na década de 1970 o professor diplomado em música e balé Adair de Paula lecionou na escola montada por ele na Associação dos Sargentos da Amazônia (ASA), aulas de balé, Jazz e danças folclóricas. A cena cultural da cidade com relação ao cinema, ao teatro, as artes plásticas e a dança, não estagnou, passando por períodos com maior ou menor destaque, sempre com o esforço dos artistas em permanecer fazendo e divulgando a sua arte, buscando seu espaço, melhor estrutura, maior organização, respeito e reconhecimento. Ainda na década de setenta segundo Xavier (2002) o bailarino amazonense José Resende, após um longo período longe num primeiro momento no Rio de Janeiro e depois na Europa, retorna a Manaus pretendendo encerrar o que foi uma promissora carreira como intérprete da dança principalmente clássica, monta sua própria academia de balé clássico onde ministrou aulas por muitos anos. Foi a partir da iniciativa e luta desse bailarino que a dança acadêmica fincou realmente raízes na região e ocorreu a primeira formação de artistas da área de dança. 38 Xavier (2002) ressalta que nesse período surgiram outras academias e os espetáculos de dança locais apresentados praticamente eram apenas as finalizações das atividades realizadas durante todo o período anual das academias. Ainda na década de 1970 segundo Freitas (2010), chega a Manaus o carioca Arnaldo Peduto trazendo e implantando o estilo de dança Jazz. Até hoje a academia fundada por ele é referência na modalidade em Manaus participando ao longo de sua história de inúmeros festivais de dança a nível nacional, como o Festival de dança de Joinville. Dentre os alunos formados na academia do professor Rezende destacaram-se Ana Mendes, Paulo Henrique Torres, Jaime Tribuzzy, Isa Kokay e Conceição Souza, sendo que Conceição contribuiu para uma grande mudança na história da dança local, no início da década de oitenta funda o grupo independente Dança Viva, o primeiro da cidade. O grupo Dança Viva, em acordo com Xavier (2002), foi o primeiro grupo de dança contemporânea da cidade de Manaus, se espelhando em companhias nacionais como o Grupo Corpo de Belo Horizonte e o Ballet Stagium de São Paulo. Com a proposta de unir a dança com outros meios de expressão artística como o teatro e a música, utilizava música popular brasileira e latino-americana nas coreografias e apresentava um discurso estético que discordava do autoritarismo vigente. Por ser um grupo pioneiro enfrentou todas as dificuldades da época como a falta de recursos, incentivos da iniciativa privada e a inexistência de políticas públicas culturais para manter o grupo e produzir espetáculos de dança. O grupo deixou de existir por desentendimento da direção com alguns membros ainda no início da década de 80, mas deixou frutos, bailarinos que passaram a fazer parte de outros grupos de dança e até mesmo fundar seus próprios, dentre os quais o Grupo Movimento e Grupo Origem. Esses profissionais da dança de forma direta ou indireta até os dias atuais estão envolvidos com a dança no Amazonas. Xavier (2002) expõe que o Grupo Origem dirigido por Chico Cardoso ainda na década de oitenta já apresentava temas amazônicos em seu repertório, onde denunciava a devastação da floresta e das populações indígenas. O coreógrafo e diretor tinha como marca pessoal a linguagem contestadora, um de seus espetáculos de grande destaque foi “Metalmadeira”. Acompanhando as mudanças no cenário político, econômico e 39 sociocultural o grupo passa a utilizar outra linguagem onde se reporta aos conflitos internos do homem moderno e a abstração, tendo como marco na transformação do trabalho do grupo o espetáculo “Balanço”. E como acontecia com outros grupos de dança da época o Grupo Origem se desfez, mas seu diretor o transformou em um grupo teatral que fez bastante sucesso durante toda a década de noventa e quando encerrou suas atividades em 1999 afirma Xavier (2002, p. 95): “O Grupo Origem deixou como exemplo e pioneirismo de uma pesquisa que associava à gestualidade indígena e, sobretudo, o compromisso de mergulhar na cultura cabocla, sem se render aos apelos comerciais do falso regionalismo”. Outros grupos de destaque na dança moderna e contemporânea do século XX e que em momentos diferenciados buscaram se reportar também a cultura regional foi o Grupo Espaço de Dança do Amazonas (Gedam) com direção de Conceição Souza e que se mantêm até os dias atuais; o grupo de dança Renascença dirigido por Jorge Kennedy e Núcleo Universitário de Dança Contemporânea (Nucad) dirigido por Lia Sampaio. O Nudac foi um marco na história da dança em Manaus e dentro da Universidade Federal do Amazonas, vindo a contribuir para a criação do Centro de Artes da Universidade e por movimentar a dança dentro do ambiente acadêmico não apenas com aulas e apresentações, mas com oficinas de intercâmbio com professoras do curso de dança da Universidade Federal da Bahia, também promovendo seminários, palestras e parcerias entre diferentes grupos artísticos como o Coral Universitário e o Madrigal. Também foi o primeiro grupo a representar o Amazonas em eventos internacionais como o fez oito vezes no Festival de La Confraternidad Amazônica na cidade de Letícia (Colômbia), foi o primeiro grupo a ser institucionalizado pela Universidade Federal do Amazonas e inspirou a criação de outro grupo dentro da Universidade o Gedef (Grupo Experimental de Dança da Educação Física). Com relação ao trabalho do grupo a metodologia utilizada pela diretora e coreógrafa Lia Sampaio se destacou por buscar trabalhar a criatividade e motricidade com grande ênfase e que tempos depois essa pesquisa e trabalho a levou a produzir obras literárias específicas para a dança educação. O grupo Gedam focou seus trabalhos principalmente nos estilos moderno e contemporâneo e o grupo Renascença em um primeiro momento na dança teatro de origem alemã e em um segundo momento no neoclássico. 40 Os primeiros artistas que se tornaram intérpretes da dança a partir de suas experiências em dança e mesmo teatro em momentos diferenciados de suas formações como bailarinos, deram origem aos grupos locais de dança Nudac, Gedam, que foram os primeiros que surgiram na cidade voltados para uma proposta mais pós-moderna na dança. Foi a partir das atividades desses grupos e artistas que foram surgindo outros grupos, companhias independentes de dança e corpos artísticos que atuam até os dias atuais no cenário da dança local. Foi com o trabalho desses pioneiros que a dança se fixou e se desenvolveu na cidade. Dentre os artistas diretores de companhias independentes da dança que se destacam no cenário da dança atualmente e cuja formação passou por um desses grupos podemos citar Conceição Souza, Yara Costa, Mara Pachêco, Francisco Rider, Francis Bayard, Cléa Alves, Eliezer Rabello, entre outros. Podemos perceber que a dança esteve presente na cidade de Manaus desde o século XX e que os primeiros grupos de dança apresentavam interesse pelo regionalismo, alguns trabalhos artísticos incluindo de dança se reportavam a uma possível identidade cultural. A pesquisa e produção no âmbito da dança contemporânea, dentro do conceito de arte contemporânea tem início ainda no século XX e continua se desenvolvendo no século XXI. Cada vez mais vem sendo divulgada e aceita pelos diferentes segmentos da dança, essa forma de fazer arte abarca questões relacionadas à arte conceitual, a performance, a processo de criação, a ter abertura para dialogar com diferentes campos artísticos ou de outros conhecimentos durante a criação, a experimentar e apresentar frutos do conhecimento advindo de diversas fontes, é um repensar a respeito do que se tem feito e do que se pode fazer a partir de todas essas referências. A dança contemporânea está sendo mais e melhor aceita na cidade de Manaus em todos os diferentes segmentos existentes. O aumento nas interações com artistas nacionais e até internacionais vem crescendo através de projetos de festivais de dança dentre os quais o Mova-se festival de Solos, Duos e Trios e o mais recente Alimenta Dança. E mesmo dentro da Universidade Estadual do Amazonas em eventos como a semana do profissional da dança e com o curso de Pós-graduação em Dança Educação que acontece de forma modular, trazendo grandes pesquisadoras na área de dança educação e dança contemporânea para ministrar alguns módulos. 41 A opção pela temática regional não é nova e continua presente em trabalhos de alguns grupos de dança na cidade de Manaus, que cada vez mais buscam fazer pesquisas mais consistentes e voltar o olhar para o conceito de arte contemporânea. Dentre alguns grupos independentes cito o Grupo espaço de Dança do Amazonas (Gedam), Cia de Dança Renascença, Cia Uate de Dança, Índios.com Cia de Dança, trabalhos dos corpos artísticos do Estado Corpo de Dança do Amazonas e Balé Folclórico do Amazonas. O artista local parece estar buscando suas origens, se percebendo, reconhecendo as suas raízes culturais que se originam da mistura de etnias e culturas, podemos perceber esse interesse através da temática local em diversos trabalhos artísticos produzidos na capital e interior. Essa grande diversidade cultural pode confundir em um primeiro momento, mas quando o artista passa a reconhecer, aceitar e a buscar sua própria identidade pode levar a um fazer singular e rico. O homem possui uma identidade cultural que se forma ao longo de sua vida, de acordo com as culturas com a quais se relacionou. As influências de outras culturas na nossa região foram muitas, mas ainda se mantêm usos e costumes da cultura regional indígena, por exemplo, com relação a culinária e alguns hábitos. O manauara ainda apresenta uma postura de colonizado, pois, valoriza mais o que vem de fora e não confere a si próprio e as suas características culturais o devido valor, respeito e preservação, mas, ao longo dos anos isso vem mudando, passando a se ter um olhar mais questionador e consciente. Os intercâmbios culturais que estão acontecendo de forma esporádica entre artistas de diversos segmentos não apenas da dança, podem influenciar de forma positiva e negativa na arte local. Mas, é importante saber o que está sendo pesquisado no Brasil e no mundo, trocar informações, experiências e conhecimentos, sempre de forma crítica e analítica, tomando o devido cuidado para não aceitar verdades alheias como nossas, para não nos vermos pelo olhar do outro. 1.2 Práticas corporais: corpo e corporeidade 1.2.1 Noção de técnica do corpo Sobre as técnicas do corpo, Mauss (2010) entende por técnicas corporais, “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, 42 sabem servir-se de seu corpo” (p. 401). Para comprovar esse entendimento sobre as técnicas do corpo, o autor parte da observação de atividades cotidianas. Percebe, primeiramente, observando as práticas cotidianas nos treinos esportivos, por exemplo, na natação ressalta o fato de que a sua geração do final do século XIX era ensinada a engolir a água e cuspi-la, e na geração seguinte início do século XX, esse costume não era mais ensinado, assim como o nado a braçadas com a cabeça fora d’água fora substituído por diferentes espécies de nado crawl. Foi possível através de esses estudos perceber o quanto essas práticas corporais esportivas evoluíram de uma geração a outra, e acrescenta a dificuldade de se modificar uma prática adquirida, pois quando ele nadava ainda executava o ato de engolir e cuspir a água (MAUSS, 2010). Esse exemplo exposto pelo autor pode ser transposto para a atividade da dança de forma clara quando nos reportamos ao corpo do bailarino que foi treinado no balé clássico e ingressa em aulas de dança moderna. Nos primeiros contatos com esse outro estilo que é o oposto do clássico, o bailarino sente uma grande dificuldade na postura, nas posições de pernas e braços, na respiração, em ter que trabalhar a contração do corpo, são inúmeras as diferenças que causam um total desconforto e estranheza ao corpo até que ele consiga se adaptar. Mauss (2010) afirma que uma habilidade manual é aprendida de forma lenta e que “toda técnica propriamente dita tem sua forma. Mas o mesmo vale para toda atitude do corpo. Cada sociedade tem seus hábitos próprios” (p.403). Partindo da afirmação do autor podemos dizer que toda pessoa tem seus hábitos corporais próprios relacionados, tanto a uma cultura mais ampla na qual se insere como a uma mais específica que inclui hábitos familiares e atividades específicas que esse indivíduo tenha praticado ou pratique, toda essa vivência e conhecimento ficam em sua memória corporal sensorial. No balé clássico, mesmo depois de anos sem executar os exercícios desse estilo de dança, um bailarino é capaz de executar um movimento como o grand plié (grande dobra do joelho), por exemplo, de forma correta tendo consciência do cuidado com a posição dos pés, joelhos, coluna, braços, de todo o corpo, mas, provavelmente só conseguirá realizar o movimento com todos os devidos cuidados de forma mais lenta, sem a mesma destreza quando com um ritmo mais acelerado. 43 Ao observar a forma de andar das moças na tela do cinema ou em seu cotidiano Mauss (2010, p. 403) concluiu que: A posição dos braços e das mãos enquanto se anda é uma idiossincrasia social, e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e mecanismos individuais, quase que inteiramente psíquicos. Por exemplo: creio poder reconhecer assim uma jovem que foi educada no convento. Ela anda geralmente, com as mãos fechadas. Também observou outros movimentos convencionalizados de acordo com cada sociedade, por exemplo, a posição dos braços ao comer a mesa, a forma de correr, essas observações sobre a natureza social dos hábitos perduraram durante muitos anos e sobre isso Mauss (2010, p. 404) expõe que: Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam, sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição. Cada sociedade apresenta suas convencionalidades referentes a comportamento, as atividades pessoais e interpessoais, um modelo ideal, que pode ser observado e apreendido através da educação que normalmente se enquadra dentro dos padrões exigidos, e prepara os indivíduos para a vida dentro dessas exigências. Contudo, as mudanças acontecem naturalmente, principalmente de uma geração a outra por mais que a estrutura permaneça a forma de apresentação sofre modificações. Um exemplo atual seria a manifestação popular do Boi-Bumbá de Parintins em que o roteiro permanece assim como seus personagens tradicionais, a marujada de guerra e a marcação do tempo, mas, a forma de apresentação sofreu muitas mudanças, o ritmo está mais acelerado, os passos coreográficos apresentam evoluções com um grau bem maior de dificuldade e agilidade acompanhando a mudança rítmica. As habilidades pessoais, interpessoais e comportamentos corporais específicos para cada sociedade e região são moldados ao longo de um período de constante aprendizado, sendo passado de geração em geração e sofrendo modificações por parte dos mais jovens devido a adaptações com relação a mudanças no ambiente e as transformações nas organizações sociais. A globalização presente na maioria das sociedades ocidentais trouxe grandes mudanças nos mais diferentes aspectos relacionados ao homem e ao ambiente, ampliando e 44 acelerando a comunicação entre nações, comunidades, aproximando culturas, levando a um novo olhar sobre o conhecimento que se tinha sobre tudo. Nas sociedades ocidentais mais atuais, que estão em constante e acelerada transformação, Le Breton (2003) informa sobre o uso do corpo como suporte, como forma de expressão de uma personalidade, algo que deve ser constantemente aprimorado e para isso a tecnologia é o principal meio utilizado para as constantes transformações, como as cirurgias plásticas que possibilitam uma mudança radical na aparência física da pessoa sem deixar de lado as implicações psicológicas que a levaram a tais mudanças. Ao se reportar sobre a sociologia do corpo Le Breton (2006, p.7) esclarece: A sociologia do corpo constitui um capítulo da sociologia especialmente dedicado à compreensão da corporeidade humana, como fenômeno social e cultural, motivo simbólico, objeto de representações e imaginários. [...]. Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída. O autor complementa as ideias de Mauss sobre a intrínseca relação da corporeidade com o contexto sociocultural e acrescenta que as técnicas, interações corporais, jogos diversos, enfim todos os gestos simbólicos representativos estabelecidos pela sociedade são perceptíveis no corpo. Mauss (2010) apresenta um tríplice ponto de vista para se observar o ser humano, o do “homem total” levando em conta os aspectos biológicos, psicológicos e sociológicos desse homem. E afirma que a educação abrange todos esses aspectos, inclusive em relação à arte de dominar o corpo, pois apesar do homem ter a capacidade de imitação, em alguns indivíduos essa capacidade é mais desenvolvida que em outros e a educação se mostra eficaz nesse processo de aprendizagem, todos se submetem a ela podendo alcançar bons resultados. Também acrescenta que o homem imita atos bem-sucedidos, a criança principalmente se espelha em ações vitoriosas de pessoas próximas e que exercem alguma autoridade sobre ela. É bom lembrar que hoje essa relação de proximidade com um modelo de sucesso pode se referir a um ídolo que é acompanhado e imitado através das diferentes mídias visuais. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo “o indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros”, Mauss (2010, p. 405). 45 Dessa forma, tudo é apreendido e assimilado de acordo com referências e imposições sociais, psicológicas, biológicas e referentes ao meio ao qual o ser humano pertence ou se desenvolveu. Tomamos, como exemplo, a comunidade indígena dos Saterê Mawé no Bairro Santos Dumont, local que visitamos no ano de 2012 durante as aulas da disciplina “Práticas corporais dos povos tradicionais”. Ao comparar as pessoas da comunidade com alunos de uma escola de balé clássico, é possível observar tanto na primeira como na segunda uma postura corporal característica que possibilite identificá-las em sua singularidade corporal. Na comunidade indígena, uma característica que chamou a atenção por propiciar um amortecimento maior de impactos sofridos pelo corpo principalmente a coluna vertebral ao caminhar foi a posição semiflexionada dos joelhos, mais visível nos anciãos e adultos do que nos jovens. Com relação aos alunos de balé clássico, apesar de existirem diferentes escolas com métodos diferenciados de ensino, a base da técnica do balé é a mesma, ressalto a postura com os quadris encaixados e pés voltados para fora da linha do corpo possibilitando maior leveza e equilíbrio na execução dos movimentos que apresentam uma grande leveza. Os estudos antropológicos em muito contribuem para o conhecimento sobre o comportamento humano, possibilitando uma visão mais ampla das mais diferenciadas situações referentes ao homem e as sociedades colaborando para uma aceitação do outro, da sua singularidade biológica, social, cultural, territorial, para respeitar as diferenças e instigar a conhecê-las com menos preconceitos. Os trabalhos artísticos contemporâneos também vêm colaborar para isso, com toda a diversidade e diálogos entre os mais diferentes campos do conhecimento. Mauss (2010, p. 407) chama de técnica “um ato tradicional eficaz, sem excluir o religioso, o simbólico [...], não há técnica e não há transmissão se não houver tradição”. Essa característica diferencia os homens dos animais, a transmissão das técnicas, a transmissão oral, é o que difere a técnica de um ato religioso, político, moral, um ato tradicional é um ato de ordem mecânica ou físico-química e é efetuado com esse objetivo. 46 O corpo é o primeiro e mais antigo instrumento ou objeto técnico do homem, e este foi aprendendo a utilizar esse instrumento de forma lenta e cada vez mais precisa. Na contemporaneidade o avanço da ciência e das técnicas devido à soma do conhecimento adquirido ao longo de muitos anos de existência da espécie humana, tem contribuído de forma cada vez mais eficaz para o aprimoramento das técnicas corporais e da interação e mesmo a mistura do ser humano com a tecnologia principalmente através das próteses. Antes a humanidade dominava algumas técnicas a partir das quais e de diversos experimentos e experiências estas foram se aprimorando e dando margem para que surjam outras muito melhores. Hoje, conhecemos mais a respeito do funcionamento do corpo humano, diferentes formas de preparar esse corpo para as mais diversificadas atividades, e a ciência parece caminhar para o aprimoramento dessas técnicas englobando o ser como um todo buscando obter melhores resultados. Se uma pessoa está preocupada com algo, seu corpo automaticamente reagirá de forma diferente da habitual, ele estará sob um estresse e isso pode resultar em um desempenho anormal, seja em uma atividade física, intelectual e mesmo espiritual. E, hoje, além das ciências biológicas médicas existe a união com os demais campos de investigação a respeito do uso do corpo e de técnicas corporais como a educação física e a fisioterapia. Essa união está mais presente em atividades esportivas, mas a arte principalmente a dança vem se informando com esses saberes e aprimorando suas diferentes técnicas. Os conhecimentos a respeito do funcionamento do corpo ajudam nas pesquisas de movimento, para mesclar as técnicas e transcender limites. Se um coreógrafo, um intérprete da dança conhecem as facilidades e dificuldades de seus corpos, podem trabalhar de forma mais segura, com certa precisão, respeitar e ultrapassar fronteiras sem prejudicar a si mesmo ou comprometer a obra. 1.2.2 Corporeidade A partir do momento em que começamos a perceber, tomar conhecimento de nosso corpo e de que ele existe em determinado lugar, espaço e tempo, estamos tomando consciência, mesmo que pequena de nossa corporeidade. Um exemplo é a criança que nas diferentes fases da infância vai descobrindo cada parte do corpo e as possibilidades de movimentos que cada uma delas tem. Sente, movimenta, observa os movimentos dos outros e 47 os seus próprios para aprender e conhecer sua movimentação. Nóbrega ( 2000, p. 69) esclarece que: Na perspectiva fenomenológica, a corporeidade é compreendida como a condição essencial do ser humano, sua presença corporal no mundo, um corpo vivo que cria linguagens e expressa-se pelo movimento, com diferentes sentidos e significados. Nesse sentido, consciência corporal é a percepção que o ser humano possui de sua realidade existencial como corpo em movimento como corporeidade. Podemos estar em diferentes estágios de compreensão da consciência corporal de acordo com a idade, a necessidade e os estímulos recebidos ao longo da vida. Para um músico, o sentido da audição é mais aguçado que os outros sentidos, o que pode levar o indivíduo a perceber o movimento com a finalidade maior de verificar o ritmo. Já para um bailarino a percepção do movimento é maior, identifica com maior facilidade as partes do corpo que o executam, do espaço que utiliza ao se deslocar, acompanhando ou não o ritmo musical. Cada pessoa percebe o mundo partindo das referências e estímulos que recebeu dentro da sociedade a qual atua e através de seu corpo, com suas facilidades e limitações corporais. Não apenas a sociedade e a cultura influenciam nas escolhas de um indivíduo, seu corpo e a maneira como este responde aos estímulos recebidos são fatores importantes em suas decisões. Nóbrega (2000, p. 70) apresenta a corporeidade partindo de um processo histórico de desenvolvimento, com o acúmulo de conhecimento e com as transformações de acordo com cada sociedade e esclarece que: A corporeidade seria a matriz a partir da qual as expressões corporais estruturadas pelo homem ao longo da história - os jogos, as danças, as lutas, etc. – estariam fundamentadas, no sentido que são expressões temporais, históricas, vivas e significantes, portanto mutáveis, o que pode oferecer possibilidades de reagir ao condicionante da ideologia do mercado e o viés mecanicista de corpo banalizado pela sociedade de consumo, sendo necessário o resgate da sensibilidade e o redimensionamento do ser. O indivíduo acompanhando as mudanças ideológicas e comportamentais de seu tempo transforma sua percepção e a sua própria corporeidade. Na nossa sociedade capitalista atual, os seres humanos mantendo uma constante interação com as máquinas, tecnologias, se condicionaram a elas. Os movimentos do homem em diferentes ambientes de trabalho se tornaram mecanizados. Em muitos casos, tudo na vida de uma pessoa é feito quase que de forma automática, acorda, toma café, leva os filhos para à escola, vai para o trabalho normalmente por um mesmo caminho, e ao fim do dia, volta para casa. Muitas vezes tudo é 48 tão condicionado a ponto de que quando ocorre uma necessidade de mudança pode acontecer um acidente. Um exemplo que toma como base casos verídicos é o de um indivíduo qualquer que vive uma rotina em que apenas leva os filhos para a escola e não há a necessidade de buscálos. O que cabe a outra pessoa. Se um dia ele precisar ir à escola depois do trabalho para pegar os filhos, ele simplesmente pode esquecer e ir direto para a casa, tendo que retornar para pegar as crianças na escola. Parece algo corriqueiro e simples, mas o grau de condicionamento pode ser tão grande a ponto de esquecer um bebê dentro do carro e a criança vir a óbito, como já aconteceu na cidade de São Paulo e foi noticiado a nível nacional. Casos assim nos proporcionam perceber a influência do modo de vida da sociedade contemporânea e o grau de condicionamento que pode chegar um ser humano, ficando apenas no automático das sequências de atividades realizadas ao longo do dia. O que lembra também as recentes manifestações e pequenas transformações por parte de alguns grupos de pessoas pela busca de uma mudança, de um maior contato com a natureza, de autodescoberta e da descoberta de nosso ambiente natural, o que faz muitos pais moradores de grandes cidades levarem seus filhos para passar as férias em ambientes mais naturais como fazendas. Nossa sociedade contemporânea está chegando a um momento crucial, em que ou mudamos e passamos a ver as coisas com toda a sua complexidade e interligações, sendo que já está provado que o que acontece em uma parte do planeta pode afetar outras e buscamos soluções para os problemas que criamos, dentre os quais o consumo exagerado, a poluição e devastação da natureza, ou sucumbiremos ao condicionamento de nosso sistema capitalista de consumo e sofreremos as consequências que entre muitas podemos citar o esgotamento de bens naturais como água potável, minerais, diferentes espécies de plantas e animais. Na natureza tudo tem uma singularidade o que faz com que mesmo sendo de uma mesma espécie um ser seja diferente de outro. Nóbrega (2000, p. 71) ao se reportar sobre as atividades corporais em aulas de Educação Física esclarece que: [...] o professor deve considerar que, ao realizar movimentos, os alunos não são objetos, corpo-máquina, prontos a reagir com precisão diante das solicitações externas, mas são sujeitos cuja condição corporal marca sua singularidade e autonomia, pois o corpo é vivo e significante e ao mover-se, o sujeito humano cria e recria a história e a cultura. 49 Nas aulas de atividades físicas como a dança, por exemplo, toda e qualquer pessoa apresenta sua singularidade comportamental e gestual que adquiriu ao longo de sua existência, que está relacionada com a sua herança biológica, social e cultural, que colaboram para que cada indivíduo seja único, tenha características próprias dentro do meio ao qual pertence ou convive. Nos estudos que envolvem o corpo na atualidade o indivíduo vem sendo visto como um todo, o intérprete da dança, por exemplo, trás para a cena toda a sua trajetória e referências vividas e o coreógrafo pode escolher o que deixa aparecer na cena ou não. Em “Rito de Passagem” a coreógrafa apresenta diferentes práticas corporais executadas por um mesmo personagem, é possível perceber algumas técnicas de base, que fizeram parte da formação da intérprete e que influenciam a sua movimentação como o balé clássico e moderno. Dessa forma, nós temos a movimentação da Yara que está relacionada com a sua capacidade psicomotora que está de acordo com sua herança biológica, genética, relacionada com seu ambiente sociocultural de criação e com as diferentes técnicas corporais aprendidas em suas práticas de dança, esportes e circo, assim como as práticas corporais de povos indígenas. Em uma perspectiva fenomenológica Nóbrega (2000, p. 75) reforça a sua visão sobre o corpo: Na perspectiva fenomenológica, o corpo não se reduz aos condicionantes biológicos, mas abriga em si o mundo da cultura e da história, expressando a totalidade do Ser. Esta expressão manifesta-se nos movimentos do cotidiano ou nos gestos do esporte, das lutas, da dança e da ginástica. Esses movimentos por sua vez não se reduzem ao aspecto da funcionalidade mecânica, mas possuem uma intencionalidade, isto é, um sentido e uma significação. Ao concordarmos com a autora em seu posicionamento sobre corpo e corporeidade, buscaremos um olhar que venha abranger os demais aspectos relacionados a estudos que envolvem o corpo como a sua história e a cultura na qual se insere. Neste ponto, tendo em vista que a pesquisa se reporta as práticas corporais dentro de um processo de criação em dança e que a obra apresenta um contexto cultural indígena amazônico, lancemos então o olhar para as práticas corporais dos povos tradicionais. 50 Na obra Rito de Passagem, a coreógrafa trás para a cena práticas corporais da mulher indígena, dentre as quais o transporte de alimento utilizando um cesto de palha trançada, o ato de apanhar açaí no pé de açaizeiro, tirar o açaí do talo para poder fazer o vinho, lavar roupa no rio. Essas atividades nas diferentes etnias são em grande parte acompanhadas pelas crianças, principalmente as meninas que repetem essas práticas em suas brincadeiras, imitando os mais velhos e aprendendo a cultura. A coreógrafa também faz referência aos ritos de passagem da mulher indígena e ao ritual de passagem masculino da etnia Baniwa. No ritual da moça nova da etnia Tikuna, as meninas moças ficam em uma cabana por certo período de tempo até saírem no dia da celebração que marca a sua entrada na vida adulta. E o ritual de iniciação masculino Baniwa se caracteriza como uma reunião em uma maloca onde os meninos e homens se dispõem a tomar chicotadas de um ancião e receber um conselho do mesmo. Ambos rituais envolvem toda a comunidade e acabam virando também uma forma de confraternização. Os indivíduos não indígenas (urbanos ocidentais) devido a toda uma evolução histórica e sociocultural com a implantação principalmente do capitalismo apresenta sua maneira de ver o mundo centrado no eu, diferente dos indígenas que ainda mantêm em muitos casos uma visão coletiva da pessoa que podemos representar pelo pronome de tratamento nós. E Soares (2011, p. 2) esclarece que: A produção física de indivíduos se insere em um contexto voltado para a produção social de pessoas, isto é, membros de uma sociedade específica. É nesta constatação que se capta a originalidade das sociedades brasileiras. Nelas não existe a ideia de que a sociedade preexiste ao indivíduo, a qual ele irá integrar-se. Nas mesmas, o indivíduo não só constrói-se fisicamente como socialmente através dos rituais de passagem, das tatuagens e das escarificações, por exemplo. Portanto, nas sociedades indígenas brasileiras o indivíduo é submetido a um processo de fabricação tanto externo como interno. O referido processo abrange elementos que vão desde o complexo de nominação até as teorias sobre a alma, sem deixar de enfatizar que o corpo é um importante objeto e instrumento da referida construção. Parece que em qualquer sociedade a construção do indivíduo passa pelo corpo e nesses dois casos apresentados a sociedade não indígena está centrada no eu e a indígena no coletivo, enquanto o homem ocidental representa a si mesmo e a sua própria personalidade visando apenas seus próprios interesses e desejos, o homem indígena representa a sua etnia, seu grupo, povo, a noção social de indivíduo. A autora também chama atenção para a diferença que na nossa sociedade “o público justifica a sociedade e o privado justifica o indivíduo [...] numa 51 sociedade indígena não são demarcados os limites entre um e outro – o público justifica o privado e vice-versa (SOARES, 2011, p. 3)”. Ou seja, nas sociedades indígenas tudo o que eles têm pertence a todos. Ainda tomando como base as pesquisas sobre práticas corporais de Soares (1997) nas sociedades indígenas, as crianças também aprendem as tarefas diárias dos adultos através de brincadeiras. Ao acompanharem os mais velhos em suas tarefas diárias elas costumam seguir o exemplo nas brincadeiras e entre uma diversificada quantidade de brincadeiras que se reportam desde o comportamento dos animais e lendas, existem as em que os pequenos brincam de pescar, de colher frutos, de caçar, de plantar, de fazer farinha. As crianças parecem na maioria das etnias pesquisadas como os Baniwa e Tikuna, participar dos diferentes rituais realizados em cada etnia principalmente para aprenderem, sem um compromisso maior até atingirem a idade de se tornarem homens e mulheres quando terão de passar por um ritual de passagem para então serem considerados adultos. Nas sociedades indígenas existe um período menor de tempo para que a criança entre na fase adulta, para as meninas, por exemplo, após a menarca são consideradas adultas e passam por um período de preparação específico e um ritual para essa nova fase. A autora expõe que a noção de pessoa desenvolvida foi herdada da civilização latina onde a pessoa é um fato fundamental e de direito e não apenas um direito reconhecido a um personagem. Também acrescenta que segundo Mauss ao primeiro esboço latino da noção de pessoa foi acrescentado o fato moral herdado dos gregos e mais um elemento também é inserido que é a base metafísica advinda do cristianismo, trazendo a noção de propriedade. Soares (2011, p. 7) esclarece que: Temos, portanto a noção de unidade da pessoa, assim como a noção de unidade da Igreja, todas inspiradas na unidade de Deus [...]. É a partir da noção de uno que a noção de pessoa foi criada, inicialmente para designar as pessoas divinas, mas, ao mesmo tempo esse modelo foi estendido à pessoa humana [...]. Para concluir o desenvolvimento da noção de pessoa até os dias de hoje, Mauss acrescenta-lhe o ser psicológico: a categoria do eu, entretanto não anuncia aí o fim do desenvolvimento da mesma, diz que ela continua, ainda em nossos dias, lentamente, a edificar-se, esclarecer-se, a especificar-se [...]. Os seres humanos estão em constante transformação cultural, sejam com relação a sua aparência, as suas referências, virtudes, problemas entre outros. As diversas culturas apresentam semelhanças e diferenças e muitas vezes são essas semelhanças e diferenças que 52 nos aproximam e ao mesmo tempo nos distanciam uns dos outros. Parece que os autores concordam em que o homem é um ser complexo em desenvolvimento, aprendendo cada vez mais um pouco sobre si mesmo, sua própria espécie, o ambiente e suas relações e interrelações. As diferentes sociedades indígenas parecem sentir um grande respeito pelo corpo e todas as transformações corporais estão ligadas ao crescimento e amadurecimento do indivíduo como membro da sociedade. Segundo a autora para a sociedade Xinguana: Toda reclusão é concebida como uma mudança do corpo. Fica-se recluso para “mudar o corpo”. Também para formar ou reformar a personalidade idealadulta, sobretudo no caso da reclusão pubertária, a mais importante. A personificação do homem ideal depende de uma adesão correta às regras ditadas pela tecnologia do corpo na reclusão (SOARES, 1996, p. 33). Nas sociedades indígenas, o corpo sofre inúmeras transformações que representam muitas vezes não apenas a fase da vida em que o indivíduo se encontra ou sua posição na comunidade como guerreiro, chefe, pajé, enfim, o corpo também é extremamente representativo nos rituais, celebrações, nos diferentes eventos da comunidade. Muitas vezes esses eventos podem durar vários dias e há pinturas e adornos corporais que representam esses momentos. E, Soares (1996, p. 35) expõe que: Os ornamentos físicos devem ser tratados como símbolos com uma variedade de referenciais, e devem ser examinados como um sistema e não isoladamente. Esses ornamentos corporais em geral são inseridos em ritos de passagem e constituem marcas de status. Antes do contato com os não indígenas, esses povos não utilizavam roupas, apenas tapa sexo em algumas etnias e pinturas e adornos corporais apresentando grande diversidade e riqueza de materiais extraídos da floresta, como sementes, folhas de palmeiras entre outros materiais como frutos que utilizam para fazer tinta para pintar a pele, barro para confeccionarem potes. Apesar de muitas coisas terem se perdido ao longo de todo o processo colonizador, ainda hoje a maioria das etnias mantêm esses conhecimentos da arte de decorar o corpo com pintura e ornamentos cuja representatividade dentro das sociedades indígenas é de grande importância, sendo necessário um estudo minucioso para falar especificamente desse assunto levando em conta que para cada etnia há pinturas e adornos específicos, que podem representar os diferentes clãs, status dentro da comunidade entre outros. 53 As diferentes etnias indígenas tem a confecção de artesanatos utilizando materiais da natureza em suas tradições, entre esses objetos temos cestos para transportar e guardar alimentos, potes e utensílios de barro, e diversificados adornos como colares, brincos, alargadores, cocares e mesmo instrumentos musicais utilizados em rituais e celebrações. Soares (1996, p. 31) ressalta a importância do corpo e corporeidade nas sociedades indígenas: E é essa matriz, portanto o corpo, que ocupa lugar de destaque na organização das sociedades indígenas. As mitologias, a vida cerimonial e a organização social giram em torno da fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos. Nas sociedades humanas, em geral, o corpo seja de forma discreta ou mais evidente como nas sociedades indígenas ocupa um papel de destaque pela sua própria condição de que tudo que vivemos e aprendemos passa por ele, é nele que estão nossos sentidos e é principalmente através deles que percebemos o mundo. Os não indígenas utilizam roupas por cima da pele para proteger o corpo, para dar status, para representar uma empresa, para demonstrar sua personalidade, para provocar ou chamar a atenção. São diversos motivos além de ser uma tradição de nossa sociedade e para algumas uma questão de sobrevivência, essa diversidade de roupas e acessórios podem representar um grupo específico como funcionários de uma firma podem representar os costumes de toda uma cidade ou simplesmente a personalidade de cada um, seu estilo, sua marca que representa quem ele é e como ele é. Nas sociedades indígenas, dos dias atuais, a maioria dos jovens já adotou algum tipo de roupa, principalmente uma bermuda, peça que é muito presente. Mas, para os indígenas, a pele parece ser a principal vestimenta, e as pinturas, os adornos são o que representam o status dentro da etnia, as etapas vividas e são extremamente artísticas, impressionam pela beleza. O corpo a corporeidade são importantes em qualquer sociedade, umas dedicam um cuidado maior do que outras, mas todas sabem a importância do corpo, da maneira como lidamos com ele de acordo com as facilidades e dificuldades, o homem é o seu corpo, e sendo assim, tudo o que o ser humano faz tem que estar ou acaba ficando relacionado ao corpo. O corpo é constituído de uma parte física, mental e psicológica, todas essas partes se completam e necessitam ser alimentadas, receber orientação, interagir umas com as outras e com o ambiente para funcionarem em harmonia. O corpo funciona também como uma máquina, sendo necessário de manutenção, cuidados para funcionar bem e dependendo da função a ser exercida por ele precisa de mais ou menos treino para executá-la bem. 54 Entendemos que o corpo humano é um todo complexo cujas partes mantêm constante troca de informação, seja de forma consciente ou inconsciente por parte do ser humano. Ao conhecermos melhor nosso corpo, seu funcionamento e funções nos conhecemos melhor, assim como o todo ao nosso redor. 1.3 Corpo e performance em dança contemporânea. 1.3.1 O corpo na cena contemporânea Para conhecermos mais sobre o corpo na cena contemporânea é importante perceber como está à sociedade na atualidade, quais as principais influências que afetam o indivíduo e consequentemente seu corpo, um dos grandes pesquisadores do corpo na contemporaneidade Le Breton (2012, p. 15) esclarece que: Estamos doravante imersos em uma “sociedade do indivíduo”. Com uma margem de manobra relativamente grande, cada ator erige de maneira movediça e deliberada suas próprias fronteiras, a trama de sentido que orienta seu caminho. Obviamente a decisão pessoal é limitada pelos fardos sociológicos, pela ambiência do tempo, pela condição social, pela história própria... A autonomia do ator parece ser alargada, mas ela é essencialmente uma liberdade de mover-se entre as idas e vindas aos supermercados para escolher o produto que participa do estilo do qual o ator se sente mais próximo. Dois fatores exercem grande influência em todos os campos da sociedade contemporânea que são o capitalismo e as tecnologias. Com o capitalismo veio o consumismo e o individualismo e consequentemente o egoísmo, a insatisfação com o básico, e quanto mais uma pessoa tem mais ela quer ter. O indivíduo capitalista pensa principalmente no seu próprio bem estar e satisfação, prioriza o particular, individual e não o coletivo. Com os avanços tecnológicos que desde a revolução industrial só vem acelerando o desenvolvimento, aconteceram as grandes mudanças na comunicação chegando a Internet e com esta a globalização. Esses avanços encurtaram as fronteiras e transformaram a vida cotidiana da população mundial visando um melhor uso do tempo, ampliando o acesso a comunicação e aos diversos conhecimentos existentes na rede mundial de computadores. O ator ao qual Le Breton se refere na citação anterior é esse ser que se encontra envolto a todas essas mudanças que não param de acontecer, não há mais tempo para absorver as informações e mudanças que acontecem diariamente, talvez à maneira de lidar com tudo 55 isso seja se voltar para si mesmo, o lugar onde o indivíduo pensa que tem um maior controle que é seu próprio corpo. Mas para acompanhar as transformações e se integrar dentro desse contexto tecnológico e de mudanças de paradigmas, de conceitos e crenças, o indivíduo parece querer se hibridizar com a tecnologia ou mesmo buscar uma nova realidade criada por ele próprio dentro das diversas redes sociais. Nos anos mais atuais é possível verificar diversas mudanças nos núcleos familiares que apresentaram uma grande mudança principalmente quando as mulheres começaram a trabalhar fora de casa, a exercer uma jornada dupla de trabalho e ainda cuidar dos filhos. Hoje o núcleo familiar está altamente diversificado com pais separados, lares apenas com o pai ou a mãe, filhos da mãe e filhos do padrasto e vice-versa, pais homossexuais, filhos adotivos entre muitos outros. Parece que essas adaptações no núcleo familiar vêm contribuindo para uma nova visão de mundo, tudo ainda parece estar em um grande emaranhado de indefinições, os padrões antigos ainda são reconhecidos, usados como exemplo e até desejados o que aumenta o ambiente de incertezas sobre certo, errado, bom, mal. Todas essas questões sociais, econômicas, culturais, éticas e etnográficas influenciam o ser humano de forma que este tente encontrar um caminho que possa seguir e se encontrar como pessoa. Le Breton (2012, p. 16) acrescenta que: A destituição de sentido de sistemas sociais e a necessidade de criar seu próprio caminho para existir levam a uma centralização acentuada de si. O dobrar-se sobre o próprio corpo e sobre a aparência é um meio de reduzir a incerteza ao se buscar os limites simbólicos o mais proximamente possível [...]. A transformação de seu estatuto acompanha o movimento de mercantilização do mundo. A obsolescência da mercadoria tornou-se assim aquela do corpo. [...] Importa então ter o corpo para si, um corpo por si. O sonho é inventar a própria singularidade pessoal. O corpo não determina mais a identidade ele está a seu serviço. O ser humano parece está preocupado em encontrar-se, em descobrir ou criar sua identidade, busca incessantemente suprir essa necessidade, talvez as chamadas tribos urbanas sejam um exemplo dessa busca, assim como as diferentes redes sociais parecem ser um espaço para que as pessoas possam firmar, encontrar ou criar suas identidades, para serem ouvidas. Ao se reportar sobre o grande fluxo e troca de informações Le Breton (2012, p, 23) afirma que: 56 A circulação incessante das informações em um mundo reduzido à informação alimenta essa vontade de ativamente e por conta própria do fluxo das trocas, e leva a recusar um sentimento de si estável e bem enraizado. Na era da informação, a identidade não passa de uma soma provisória de informações destinada aos outros, no desejo de sentir-se a vontade em sua definição. Da mesma forma que o corpo a identidade tornase um trabalho, um permanente work in process. O indivíduo contemporâneo segundo a afirmação do autor, diferente das gerações anteriores não cria raízes profundas, um exemplo, são as inúmeras reportagens sobre o que as empresas podem fazer para manter seus melhores funcionários que assim que recebem uma proposta melhor de trabalho rapidamente trocam de empresa, não há um vínculo maior, certa fidelidade, raiz. Como tudo passa se transforma muito rapidamente, há a necessidade de acompanhar essas mudanças e mesmo até chegar ao ponto de se reinventar acompanhando as transformações, se enquadrando nos padrões mais atuais de forma a se encaixar confortavelmente, assim: O corpo se transforma em narrativa pessoal e em programa ajustado, matéria prima a retrabalhar ou a conservar para bem corresponder aos episódios das personagens rebaixadas pelo indivíduo. [...]. A identidade narrativa, tornada nosso quinhão, e os jogos de transformações corporais, reduzem doravante a identidade a um permanente comentário sobre si (LE BRETON, 2012, p. 23). É nesse atual contexto da era da comunicação, da globalização que o corpo entra em cena e é usado a favor dessa transformação, adaptação desejável, o corpo como suporte de uma identidade reinventada de acordo com a vontade ou necessidade do ser, um corpo em processo de transformação onde cada vez mais as fronteiras assim como os padrões são rompidos. O corpo na atualidade parece sofrer muito mais influências relacionadas a diferentes referências culturais ou de uma cultura dominante ou de maior influência. Com a ampla divulgação das diferentes culturas pelos meios de comunicação TV, cinema, pela internet e mesmo através das aulas de idiomas tão comuns nos dias atuais, despertam a curiosidade dos indivíduos em conhecer um pouco mais sobre as culturas que mais lhe chamam a atenção, incentivando o turismo e o intercâmbio cultural. Essa curiosidade e atitude de conhecer outra cultura parece também exercer um despertar desse corpo contemporâneo que tem seus sentidos aguçados com sabores, cheiros, 57 sons, sensações e situações diferentes de seu cotidiano. Situação que nos reportam a um período em que o homem era nômade e matinha seus sentidos aguçados, mas principalmente por uma questão de sobrevivência. Tomando como base principalmente os estudos de Le Breton percebemos que os conhecimentos das ciências principalmente das ciências biológicas, da saúde e do esporte contribuíram para o maior conhecimento a respeito do corpo e também para que este passasse a ser visto hoje como um suporte, um meio de realização, satisfação. O corpo não é mais sagrado, ele pode ser modificado, reestruturado, mutilado ao gosto do freguês, é objeto de satisfação, insatisfação, de desejo, de estudo e pode ser extremamente lucrativo para os segmentos do esporte/fitness, beleza/cosmética, moda, saúde/estética entre outros. Le Breton (2003) evidencia esse corpo contemporâneo que está sempre em transformação, não apenas pelas mudanças naturais do decorrer do tempo, mas mudanças promovidas a partir do conhecimento tecnológico. É possível mudar a cor, o tamanho, e a textura dos cabelos, das unhas, a cor dos olhos, da pele, assim como mudanças mais duradouras como o tamanho de músculos glúteos, dos seios, das panturrilhas, coxas entre outras mudanças cada vez mais agressivas, por exemplo, as cirurgias que modificam completamente o rosto. Ao longo do desenvolvimento do ser humano em diferentes sociedades aparece um cuidado com a aparência e hoje, mais que em outras épocas, as pessoas são estimuladas a tratar da sua imagem de forma que ela é reconhecida e respeitada pelo fato de estar de acordo com as exigências da moda, ir ao salão de beleza deve virar um hábito incentivado principalmente pelas revistas especializadas em moda, em fofoca e saúde, que vendem um padrão ideal de beleza a ser seguido. Faz parte da realidade de muitas pessoas fazer uma breve transformação ou manutenção de um visual. O salão de beleza também pode ser considerado um ambiente de socialização e afirmação social, ao entrar em um salão e observar mesmo que em um período curto de tempo, é possível perceber uma insatisfação e um desejo de mudança por parte de muitos frequentadores, seja pela contínua troca de corte ou cor do cabelo que melhor possa atender os desejos de transformação corporal. Silva (2001, p. 18) esclarece que: Todas essas práticas sociais que se propõe a ser uma intervenção sobre o corpo têm como fundamento, em maior ou menor grau, os conhecimentos produzidos pelas ciências biomédicas e pela tecnologia e, em especial, pela medicina. Estudar a área médica se torna fundamental para se compreender como se constituem os fundamentos da expectativa de corpo atual, 58 caracterizados por um desejo de intervenção e de dominação sobre o corpo e sua “naturalidade” tal qual o desejo de dominação de toda a natureza externa ao ser humano. Todas essas transformações são motivadas ou influenciadas por diferentes segmentos sejam de cunho cultural, social, econômico, científico, religioso. A cultura capitalista parece ter acelerado e aumentado esse processo de insatisfação com o corpo e o desejo de mudança devido à ampla divulgação de padrões idealizados, levando a um crescimento no lucro de diferentes segmentos econômicos principalmente de grandes empresas multinacionais. Podemos observar através de jornais, revistas de diversos segmentos sejam voltadas para o público jovem abordando assuntos sobre a adolescência, namoros etc. ou revistas de moda, de fofoca, sobre saúde, que existe atualmente uma idealização de beleza corporal ocidental que é amplamente divulgada tanto nesses meios de comunicação escrita como principalmente na televisão, internet e cinema. Nesse ideal de corpo de saúde e beleza o homem aparece com músculos bem definidos e a mulher bem magra ou tão musculosa quanto o homem (SILVA, 2001). Essa busca pela mudança seja na transformação do ambiente ou do corpo parece fazer parte da natureza do homem devido a sua capacidade de se adaptar ao meio, mas ao percebermos o ser humano principalmente como um ser cultural essa adaptação é principalmente relacionada aos diferentes modos de vida nas sociedades, cada sociedade pode ter seu próprio padrão de beleza ou adotar um padrão de outra sociedade devido à influência de uma cultura sobre a outra. Silva (2001) expõe que no Brasil há uma aceitação devido a grande divulgação, de um padrão de beleza baseado na magreza, sendo este importado de padrões internacionais impostos pelas grandes indústrias da moda. O Brasil também é um dos maiores consumidores de cosméticos do mundo e apresenta dados estatísticos preocupantes relacionados com a insatisfação com a autoimagem. O indivíduo contemporâneo tem uma grande preocupação devido a não corresponder com os padrões que lhe são impostos. A insatisfação leva a atitudes que vão desde simples mudanças de hábitos que possam contribuir com a modelagem do corpo até intervenções drásticas que podem mesmo colocar em risco a saúde da pessoa, dentre os quais dietas variadas, cirurgias plásticas e a ingestão de medicamentos para emagrecer ou tonificar os músculos. Essa preocupação com o corpo não é exclusiva da modernidade e Silva (2001, p. 15) afirma que: 59 O que se pode perceber ao longo dos últimos três séculos é que há uma ampliação do interesse pelo corpo, deixando transparecer uma identificação do indivíduo com sua dimensão corporal. A identificação ocorre concomitantemente com uma opção pelo privado e pelo individual, exacerbada pelo capitalismo e por sua ideologia, o Liberalismo, no qual prevalece o interesse por si mesmo e para si mesmo. A preocupação com a mera aparência parece estar entrelaçada com o surgimento de uma concepção moderna de indivíduo na perspectiva de um atomismo social, no qual os interesses subjetivos é que parecem predominar; caracterizando-se um novo indivíduo na fase contemporânea, com implicações importantes no seu projeto de vida e nas interações que estabelecem com a sociedade e com a natureza. Reafirmando a influência da cultura capitalista, a autora traz o individualismo como uma das principais características do homem contemporâneo, há uma preocupação exagerada consigo mesmo, seus próprios desejos, necessidades principalmente relacionadas com o status social, a imagem que esse ser quer aparentar ter para a sociedade. O corpo também é o cartão de visita do homem, expressa quem ele é, suas preferências, ambientes que frequenta e estilo de vida, se é saudável ou não, equilibrado ou não, bem sucedido ou fracassado, as roupas, acessórios e bens como telefones móveis entre outros contribuem para a composição desse eu construído detalhadamente e aparente. E a autora acrescenta que: A expectativa de corpo moderna se fundamenta no reforço de um sentimento contraditório que se vê explodir na atualidade: dominar o corpo e, ao mesmo tempo, libertá-lo; subjugá-lo e depender dele para a sua felicidade; acreditar na superioridade e independência da mente, mas submeter-se aos rituais necessários ao corpo “em forma” (SILVA, 2001, p. 18). Parece-nos que esse sentimento contraditório é sentido de forma bem particular por cada indivíduo e assim também o é a forma de expressá-lo. Para algumas pessoas dominar ou libertar o corpo pode ser submetê-lo aos seus limites sejam da dor, do prazer, seja com a imposição de limitações ou liberando-o para diversas extravagancias. O corpo é o meio pelo qual o homem percebe, sente o mundo, se comunica com o ambiente e outros seres humanos, expressa suas dúvidas, alegrias, tristezas, insatisfações e satisfações. Na dança o intérprete se submete não apenas as aulas que moldam e preparam seu corpo, mas também aos ensaios e especificidades necessárias para melhor interpretar cada trabalho coreográfico. É possível nas aulas e ensaios perceber um pouco dessa dicotomia e tênue linha entre a dor dos exercícios com os esforços repetidos e o prazer de dançar, de interpretar determinada obra de dança com todas as suas nuances, desafios e exigências próprias. 60 A arte como fruto da cultura criada pelo ser humano reflete todo esse turbilhão de acontecimentos que o cerca, suas referências e sentimentos e Silva (2001, p. 17) expõe que: A arte também é ela própria, profundamente influenciada por todo esse movimento científico que se estrutura mais fortemente a partir do século XVIII e XIX, e apresenta obras clássicas que caracterizam toda uma nova expectativa em relação aos corpos humanos. A “Lição de Anatomia do Doutor Tulp”, pintada por Rembrandt em 1632, é um exemplo clássico do início de um novo período no que se refere à concepção de corpo e que é impensável em épocas anteriores; porém o desenvolvimento da ciência tradicional traz uma valorização do conhecimento inexistente até então. Solidifica-se a ideia de que se pode fazer a aplicação de leis gerais e que, por isso, o mundo é manejável através da ciência. A partir principalmente dos avanços científicos é que a sociedade contemporânea criou suas bases, cada descoberta levava a certo domínio e controle sobre a natureza e a razão foi cada vez mais valorizada, como o corpo faz parte da natureza assim como crescia o desejo pelo domínio da natureza também crescia o de dominar o corpo até transformá-lo em suporte como nos apresentou Le Breton. Na arte contemporânea, podemos ver o corpo apresentado de diversas formas, como suporte, como questionador, como objeto, como forma, como um conceito de corpo, como metáfora, como avatar, enfim as possibilidades são inúmeras e depende da criatividade ou relação que o artista faça e queira apresentar. Dentro do contexto da dança contemporânea, Greiner e Katz (2011) afirmam que o corpo pode ser visto como uma mídia sendo ele próprio a mensagem. Ao longo de sua existência, o homem recebe, armazena, transforma e transmite informações existindo inúmeras possibilidades de interação entre este e o todo ao redor, também afirmam que “o homem está inteiramente implicado naquilo que observa” (p. 285). O que o faz tornar-se parte do todo, ele se adapta e absorve os conhecimentos necessários a sua sobrevivência e que melhor o inserem no contexto ao qual vive. Todas as características, marcas, nuances, referências, gestos, interpretação de si mesmo e de seus sentimentos, todas as reações expressas, todo o acúmulo cultural adquirido e do qual o corpo se encontra impregnado fazem dele um corpo mídia; um corpo que é ele próprio não uma, mas várias mensagens demonstrando nossa tão surpreendente capacidade de transmitir, decodificar e ser uma mensagem. Na atual cena da dança o corpo que dança apresenta mais de uma base, incluindo além de técnicas corporais diversas, discursos sobre o corpo cênico, que se adapta e sabe 61 adaptar os diferentes conhecimentos para o seu corpo. Parece ser mais consciente de si e de sua relação com o todo, com seu ambiente, seu tempo, seu contexto sociocultural. Também é mais criativo e alerta. Hoje, o artista cênico, principalmente que atua dentro do contexto de arte contemporânea é nomeado também de intérprete, porque além de executar uma ação, ele consegue interpretar o que se quer dizer ou sua própria forma de sentir a obra da qual participa, ele realmente interpreta toda a sua arte, se envolve, procura saber o que fala, seja com palavras, sons, símbolos ou gestos, dialogando com o público. Na dança contemporânea, também, há o termo cocriador utilizado por diferentes autores da área de dança, onde o intérprete é ao mesmo tempo o próprio criador ou colaborou criativamente no processo de criação do coreógrafo. E nos processos criativos de dança da atualidade, os intérpretes trazem para a cena sua personalidade ou suas próprias concepções de personagens e movimentos a partir da orientação do coreógrafo, são criações coletivas, conhecimentos somados. De acordo com o pensamento de Katz o artista da dança contemporânea na forma mais atual de apresentação desta, em seus trabalhos artísticos, ele instiga, questiona, propõe, ele ressignifica, transforma um signo em outro signo. A partir dessas informações podemos verificar a importância do corpo na cena contemporânea ser um corpo presente, perceptivo, atualizado, aberto as propostas e que se disponha a se adaptar as mais diferentes técnicas, redescobrindo suas capacidades, potencialidades e buscando lidar com suas limitações de forma consciente e se respeitando. A construção e desconstrução das referências de movimentos e hábitos contribuem com o processo criativo. Há uma busca maior pelo uso da técnica em conjunto com a interpretação e a criatividade. 1.3.2 Performance na dança Em meados do século 19 a performance dentro de um contexto artístico já se fazia presente na Europa. Um artista e intelectual que se destacou no final do século 19 e início do século 20 foi o rico poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, que participou e influenciou o movimento Futurista, que foi um movimento de vanguarda que se opunha “aos valores estabelecidos da pintura e das academias literárias” (GOLDBERG, 2006, p. 1). 62 A performance esteve presente segundo a autora em vários movimentos artísticos de vanguarda, dentre os quais, além do futurismo o construtivismo, o dadaísmo, o surrealismo. Foi um período de destaque para a declamação de textos, “versos livres” de forma diferenciada, os artistas também utilizavam em suas performances marionetes, expressão teatral e dança. Nas performances futuristas e em alguns dos demais movimentos artísticos que o sucederam, havia um grande destaque para as declamações de poesias, os manifestos literários e as apresentações teatrais. Ainda segundo a autora (GOLDBERG, 2006), outro artista de grande destaque com relação à arte da performance foi Oskar Schlemmer, professor da escola alemã de arte Bauhaus que criou uma teoria da performance pautada na relação do performer com o espaço, criou cenas performáticas que incluíam a dança, em cima de uma relação espacial bem definida, apresentando com destaque os ângulos de proporção e de profundidade da pintura. Na Alemanha a escola de Arte Bauhaus foi principalmente um local de experimentações e descobertas, voltada para um estudo interdisciplinar, abarcando diversas áreas do conhecimento dentre as quais a arquitetura, o designer, os alunos tinham aulas teatrais e todos esses conhecimentos se somavam nas performances criadas por professores e alunos, dando ênfase a mistura entre arte e tecnologias (GOLDBERG, 2006). A Bauhaus apresentou diversos balés mecânicos, como eram chamados devido à utilização de objetos tecnológicos acoplados no corpo, o que limitava os movimentos do performer, um exemplo, a dança do vidro de 1929 de Schlemmer, onde a performer usava “uma saia formada por um aro do qual pendiam filetes de vidro, a cabeça coberta por um globo de vidro, e levando nas mãos esferas de vidro” (GOLDBERG, 2006, p. 97), nesses balés parecia haver a busca por uma metamorfose entre homem e máquina. A Europa foi o berço de diferentes movimentos de vanguarda e da arte da performance. Com a segunda grande guerra mundial muitos artistas se refugiaram em outros países incluindo os Estados Unidos onde a performance começou a surgir no final dos anos 30, junto com a chegada dos refugiados principalmente na cidade de Nova York. E, em 1945, já havia se tornado “uma atividade independente, reconhecida como tal pelos artistas e indo além das provocações que marcaram as primeiras performances” (GOLDBERG, 2006, p. 111). 63 Foram muitas as mudanças que aconteceram nesse período da história, tanto econômicas como sociais e culturais, a educação que as pessoas recebiam em casa e, nas instituições de ensino parecia ser mais rígida. A sociedade era mais conservadora, os artistas de vanguarda deveriam causar reações fortes no público da época pelas suas propostas que rompiam com tudo o que era politicamente correto e convencional com relação às manifestações artísticas. Hoje, depois de tantas mudanças socioculturais, quase tudo parece ser normal ou aceitável, os padrões são variados, e apesar dos diferentes preconceitos ainda estarem enraizados e serem disseminados de forma mais camuflada, o diferente não é tão estranho e espantoso como era considerado em tempos anteriores. Nos Estados Unidos, segundo (GOLDBERG, 2006), uma escola que se destacou nas atividades interdisciplinares e artísticas foi o Black Mountein College devido à contratação para o corpo docente de ex-professores da Bauhaus que buscaram dar continuidade as pesquisas que estavam realizando na Alemanha e cujas atividades logo chamaram a atenção de vários artistas tanto entre os refugiados quanto entre os locais, dentre eles o jovem músico John Cage e o jovem dançarino Merce Cunningham. O primeiro professor contratado pelo Black Mountain College vindo da Bauhaus foi Josef Albers que trouxe a combinação de disciplina e criatividade que marcaram seu período na Bauhaus e durante uma palestra explicou aos alunos que “a arte diz respeito ao COMO e não ao O QUÊ, não ao conteúdo literal, mas á representação do conteúdo factual. É na representação – no modo como isso se faz – que se encontra o conteúdo da arte” (GOLDBERG, 2006, p. 111). Para o professor Albers a maior ênfase para o conteúdo da arte estava no processo, o como se faz era mais importante de que o que se faz e a arte contemporânea ou pósmoderna vem apresentando seja nas artes cênicas, plásticas ou do vídeo um grande interesse em trazer o processo para a cena. Segundo Lopes (2003) o termo performance de língua inglesa, é considerada uma palavra estrangeira de uso regular em nosso idioma. Primeiramente se reportava ao rendimento de máquinas e relacionado ao desempenho dos atletas, apenas mais recentemente adentrou no âmbito das artes indicando um ato mais ou menos teatral, que faz uso da improvisação e do acaso, e nos Estados Unidos passou a ser uma área de estudos acadêmicos. 64 Dois artistas de grande destaque nos Estados Unidos foram John Cage e Merce Cunningham que estavam desenvolvendo suas teorias e práticas artísticas e não demorou muito para que começassem uma parceria apresentando-se com performances multimídia. Goldberg (2006, p. 106), esclarece que: Enquanto Cage observava que “cada unidade mínima de uma composição mais ampla reflete, como um microcosmo, as características do todo”, Cunningham enfatizava “cada elemento do espetáculo”. Era necessário, dizia ele, levar em conta a natureza inerente a cada circunstância, de modo que se possa atribuir valor intrínseco a todo e qualquer movimento. Esse respeito pelas circunstâncias dadas foi reforçado pelo uso do acaso na preparação de obras como Dezesseis danças para solista e companhia de três (1951), em que a ordem das “nove emoções permanentes do teatro indiano clássico” era decidida pelo arremesso de uma moeda. Todas essas reflexões e proposições de pesquisas e performances explicitando e modificando a forma de ver o mundo, a arte e as interrelações existentes continuaram a se desenvolver e a se ampliar contribuindo diretamente para a arte contemporânea. John Cage na música e Merce Cunningham na dança, ao trabalharem juntos suas propostas inovadoras, e ao desenvolverem suas pesquisas influenciaram diretamente para a criação da dança de hoje. Muitos movimentos performáticos foram aparecendo e a partir destes surgindo outros, o inconformismo de alguns artistas ousados, inovadores e atentos às mudanças sociais, políticas e tecnológicas não apenas marcaram uma época, mas contribuíram para o desenvolvimento de outra. Goldberg (2006, p. I) informa que: A performance passou a ser aceita como meio de expressão artística independente na década de 1970. Naquela época, a arte conceitual – que insistia numa arte em que as ideias fossem mais importantes que o produto e numa arte que não pudesse ser comprada ou vendida – estava em seu apogeu, e a performance era frequentemente uma demonstração ou execução dessas ideias. Desse modo a performance transformou-se na forma de arte mais tangível do período. Os espaços dedicados a arte da performance surgiram nos maiores centros artísticos internacionais, os museus patrocinavam festivais, as escolas de arte introduziram a performance em seus cursos e as revistas especializadas começaram a aparecer. A performance saiu de uma posição marginal com relação ao mundo da arte e passou a integrá-lo, sendo aceita dentro das escolas de arte, transformou-se em uma forma de arte acessível a todo artista que quisesse expor suas ideias e experimentações mais livremente e Goldberg (2006, p. I) esclarece que: 65 A performance tem sido vista como uma maneira de dar vida a muitas ideias formais e conceituais nas quais se baseia a criação artística. As demonstrações ao vivo sempre foram usadas como uma arma contra os convencionalismos da arte estabelecida. [...]. Essa postura radical fez da performance um catalizador na história da arte do século XX; sempre que determinada escola – quer se tratasse do cubismo, do minimalismo ou da arte conceitual -- parecia ter chegado a um impasse, os artistas se voltavam para a performance como um meio de demolir categorias e apontar para novas direções (GOLDBERG, 2006, p. I). A forma como a performance se apresentou no século 20, pode ser comparada a um grito de liberdade que além de um desabafo vinha propondo e anunciando mudanças partindo de ideias conceituais e utilizando a interdisciplinaridade na sua forma de organização e apresentação. Para Lopes (2003), no campo artístico a performance é associada principalmente com a noção de processo do que a de resultado e com relação as artes cênicas afirma que: Em sentido lato, é uma exibição formal de uma peça de teatro, número de dança, programa musical, operístico ou circense, diante de uma audiência. Equivale ao termo apresentação ou presentação: processo de tornar presente uma certa pauta musical, coreográfica, textual, gestual, de movimentos etc. Em sentido estrito, refere-se à uma atuação de um artista (performer) numa apresentação específica (p. 7). As performances artísticas parecem ter estado sempre ligadas a questões da vida real, do cotidiano, dos acontecimentos sociais, os artistas trazem questões que se relacionam a todo um contexto social e demais seguimentos que envolvem o homem de sua época. Lopes (2003) destaca o fato de que apesar de haver essa inspiração e relação com a observação da vida cotidiana, e haver uma discussão sobre o conceito de performance, ela está relacionada a um fazer, refazer, interpretar a vida, “a vanguarda artística americana dos anos 60 desenvolveu os projetos de dissolução entre arte e vida, opondo-se a representação e buscando uma experiência direta, uma arte de presentação” (p. 8). Nos diferentes segmentos artísticos a performance jogava frequentemente com o acaso, quebrando barreiras e distância entre artista, público e obra de arte, apresentando o corpo do artista como um local privilegiado da experiência estética. Para o autor o conceito de performance não apenas quebrou barreiras entre os diferentes segmentos artísticos entre si, mas as artes buscaram se inspirar em outras expressões performáticas, dentre as quais, ritos religiosos, atividades esportivas e práticas cotidianas, levando a uma aproximação com as áreas do conhecimento que estudam tais práticas, sito a antropologia, a filosofia e a linguística. 66 Segundo Setenta: O conceito de performatividade refere-se a um modo de estar no mundo, podendo ser aplicado às relações pessoais, sociais, políticas, culturais e artísticas. A performatividade se caracteriza por movimentos inquietos questionadores [...] Dela faz parte a necessidade de mudanças porque se refaz a cada tentativa de resposta as inquietações que aparecem no processo de constituição de sujeitos/sociedades [...]. Traz para o presente marcas passadas e indica, no mesmo presente, marcas futuras. A performance como arte de vanguarda e questionadora pode estar enfatizando uma época e anunciando outra, estando presente assim nas duas ao mesmo tempo, pois o conceito da arte que está sendo anunciado já encontra-se ali. Também parece estar relacionada com o desejo de mudança de alguns artistas que se encontram um pouco além do seu tempo, mais visionários talvez ou que consigam assimilar as mudanças de seu tempo com maior agilidade. O diretor de teatro e professor Richard Schechner que há muito se enveredou nos estudos da performance e hoje é uma referência reconhecida em pesquisas que envolvem o tema inclusive dentro de um contexto antropológico e não apenas artístico expõe que: O “Ser” performance é um conceito que se refere a eventos definidos e delimitados, marcados por contexto, convenção, uso e tradição. No entanto qualquer evento, ação ou comportamento pode ser examinado como se fosse performance. Tratar o objeto como performance significa investigar o que esta coisa faz, como interage com outros objetos e seres e como se relaciona com outros objetos e seres (SCHECHNER, 2003, p. 25). Para o autor a performance vai muito além do contexto artístico, está inserida no cotidiano, nos rituais, nas atividades esportivas, relações de negócio na vida simples e corriqueira a situações diversificadas vivenciadas pelo ser humano. Ao se reportar sobre o ato da performance Schechner (2003, p. 25) esclarece que: No contexto dos negócios, do esporte ou do sexo, dizer que alguém fez uma boa performance é afirmar que tal pessoa realizou aquela coisa conforme um alto padrão, que foi bem sucedida, que superou a si mesma e aos demais. Na arte o performer é aquele que atua num show, num espetáculo de teatro, dança, música. Na vida cotidiana, performar é ser exibido ao extremo, sublinhando uma ação para aqueles que a assistem. No século XXI, as pessoas tem vivido, como nunca antes, através da performance. Fazer performance é um ato que também pode ser entendido em relação a: [...] ser a existência em si mesma. Fazer é a atividade de tudo que existe dos quazares aos entes sencientes e formações super galácticas. Mostrar-se fazendo é performar: apontar, sublinhar e demonstrar a ação. Explicar situações demonstradas é o trabalho dos Estudos da Performance. 67 O autor apresenta o uso do termo performance de três formas, a primeira se reportado ao desempenho realizado pelo performer cabendo este aos esportes, negócios ou em relação ao sexo, a segunda forma de uso se reporta ao artista em uma apresentação artística e a terceira referente a vida cotidiana. Com relação à terceira referência, os acontecimentos da vida cotidiana na contemporaneidade parecem exercer um grande interesse e fascínio por parte de um grande público. Nos programas de TV há um grande destaque para os reality shows, programas que apresentam o comportamento, as relações e reações de um grupo de pessoas normalmente ocupando determinado espaço restrito como uma casa, uma fazenda e passando por diferentes situações dentro de um jogo em que o público pode participar interferindo em decisões de quem permanece ou sai do jogo. Também como exemplo de reality shows sito as disputas entre cantores, grupos de dança e bandas. O público se coloca em posição de observar tudo o que acontece e ficar de certa forma julgando o comportamento de cada participante para votar em quem continua ou é eliminado do jogo. Um filme que se reporta a esse tipo de programa e que tem feito bastante sucesso é “Jogos Vorazes”, onde os competidores lutam até que reste apenas um, e há toda uma preocupação com cenário e distribuição de câmeras para que o público acompanhe tudo. Mostra os bastidores desse tipo de programa e o poder de atração que exercem em relação ao público. Isso demostra o poder da mídia na vida cotidiana das pessoas, parece que as pessoas preferem ver o cotidiano de outras pessoas a viverem os seus, dedicando cada vez mais tempo a TV, a internet, ao mundo virtual em que seus corpos ficam horas inertes e suas mentes vivem ou apreciam diferentes histórias. Isso deve em muito está influenciando para que o corpo se torne obsoleto, descartável, manipulável como nos apresentou Le Breton. Schechner (2003), também refere-se a performance como um comportamento restaurado, sendo este um processo chave para todos os tipos de performance, as do dia a dia, de curas xamânicas, brincadeiras e das artes. “Comportamento restaurado inclui uma vasta gama de ações. Todo comportamento é comportamento restaurado – todo comportamento consiste em recombinações de pedaços de comportamento previamente exercidos” (p. 34). Ou seja, a partir de uma atividade exercida de forma rotineira, seja no dia a dia, em um jogo, em uma aula de dança ou em um ritual sagrado o comportamento 68 restaurado irá utilizar apenas pedaços desses comportamentos reorganizá-los, tirá-los de seu contexto original e apresentá-los de uma forma diferente da habitual. Todas essas informações sobre a performance demonstram o quanto essa forma de expressão artística influenciou para que surgisse a arte contemporânea e mais especificamente a dança contemporânea ou pós-moderna, estando a interdisciplinaridade presente na criação, organização e apresentação das performances assim como acontece na arte produzida hoje. Com relação à expressão corporal relacionada às danças étnicas indígenas, Costa (2008) expõe que as danças indígenas estão intrinsicamente relacionadas com o contexto sociocultural, como se fossem uma forma visual de mitos e rituais. E Muller (2003, p. 128) se reportando as danças realizadas nos rituais xamanísticos dos Asuriní, afirma que “a dança, linguagem do corpo em movimento, organizada esteticamente pela coreografia e pelo canto vocal, ocupa lugar fundamental no desempenho ritual”. Sobre o estudo de rituais, Peirano (2003) apresenta uma definição operativa e ressalta a importância da compreensão de um ritual não ser antecipada, precisa ser etnográfica, ou seja, apreendida no campo pelo pesquisador junto ao grupo que observa. A autora também acrescenta que a antropologia tem a intenção de dar voz ao outro diferente de nós, que nas sociedades existem eventos tidos como especiais, não cotidianos, como exemplos na sociedade ocidental temos a cerimônia de formatura, de casamento, uma posse presidencial. “O pesquisador deve, portanto, desenvolver a capacidade de apreender o que os nativos estão indicando como sendo único, excepcional, crítico, diferente” (p. 09). Os rituais assim como as danças indígenas devem ser estudados dentro do contexto aos quais estão inseridos, pois são concebidas dentro da cultura de cada etnia, representando suas crenças, demonstrando assim a forma de ver o mundo de cada povo. Para Schechner (2012, p. 50) a performance perpassa por interações entre o jogo e o ritual e expõe que: Rituais são uma forma de as pessoas lembrarem. Rituais são memórias em ação, codificadas em ações. Rituais também ajudam pessoas e animais a lidarem com transações difíceis, relações ambivalentes, hierárquicas e desejos que problematizam, excedem ou violam as regras da vida diária. O jogo da às pessoas a chance de experimentarem temporariamente o tabu, o excessivo e o arriscado. [...]. Ambos ritual e jogo levam as pessoas a uma 69 segunda realidade separada da vida cotidiana. Esta realidade é onde podem se tornar outros que não seus eus diários. [...]. Por isso, ritual e jogo transformam as pessoas, permanente ou temporariamente. Estes são chamados “ritos de passagem”, e alguns exemplos são: iniciações, casamentos e funerais. Assim como as performances os jogos e rituais fazem parte da cultura de cada povo, em muitos casos exercem funções semelhantes e com relação aos rituais, estes contribuem para a transformação do ser, ajudando a moldá-lo ou a enfrentar momentos difíceis e mudanças significativas como a transição de uma fase da vida para outra ou aceitar a morte. Os rituais de acordo com Schechner (2012) podem ser divididos em dois tipos principais sagrados e seculares. O sagrado refere-se diretamente a cerimônias religiosas e os seculares se relacionam a atividades que não sejam diretamente relacionadas à religiosidade, se relacionam, por exemplo, a cerimoniais de estado, vida diária e esportes. Mas, o autor ressalta que essa divisão pura não é genuína e que acontecem cerimonias governamentais que assumem caráter religioso e cerimonias religiosas que incluem atividades consideradas mundanas como o uso de máscaras, bebidas e sexualidade. Os trabalhos artísticos e, nos reportamos mais especificamente as artes cênicas, apresentam esse formato performático e ritualístico, envolvem preparações corporais e do ambiente, repetição de ações, entrega e concentração total dos artistas, utilizam diferentes textos, contextos e técnicas. Podem ser inovadores ou não, mas apresentam interação com o público, seja em forma de diálogo, de perguntas, de despertar emoções, questionamentos e estranhesa. Os trabalhos artísticos contemporâneos apresentam uma característica específica referente a cada criador, como um traço específico onde é possível reconhecer o trabalho de determinado artista, Salles (1998) informa que cada artista apresenta uma repetição de elementos em suas obras, de forma que a observação e percepção desses elementos contribuem para verificar as características próprias das obras do criador ou sua identidade artística. Ao observar diferentes trabalhos de artistas manauaras seja da zona rural ou urbana, é possível perceber que eles trazem consigo toda uma característica cultural própria, resultado das misturas raciais e culturais e apresentam de forma consciente ou inconsciente 70 traços dessa miscelânea em seus trabalhos artísticos. Entendemos que o artista deve tomar cuidado com o excesso de informações da era da comunicação para não se perder e cair apenas no campo da repetição do que se vê, e aprofundar-se mais em si mesmo e nas suas referências de origem de modo a inovar e engrandecer suas obras, lembrando que a pesquisa é um dos caminhos. A dança em geral, e no caso dessa pesquisa especificamente, a dança contemporânea, se insere no contexto social e cultural como uma ferramenta de reflexão, surgindo nesse contexto de inovações e transformações da era da comunicação, das tecnologias, onde as culturas passam a ser reconhecidas e apreendidas em diferentes partes do mundo. A dança contemporânea nasce em meados dos anos 50 quando Merce Cunningham inicia o que ficou conhecido como movimento pós-moderno na dança e por volta dos anos 80 passa a se chamar dança contemporânea, trazendo uma nova forma de ver, criar e apresentar a dança. Engloba, os movimentos tradicionais da dança como (Balé Clássico, Jazz, Moderno) associadas a outras técnicas como (dança teatro, artes marciais, esportes e outras práticas corporais), diluindo as fronteiras existentes tornando as obras de dança híbridas. Na atual forma de apresentação da dança contemporânea, existe a possibilidade de se utilizar recursos dos mais diferentes tipos de arte, e mesmo chegar ao ponto de hibridizar, ou seja, mesclar diferentes técnicas de forma que uma venha a se apropriar de outra, sendo um exemplo a “dança teatro” de Pina Bausch, que apresenta um forte trabalho de interpretação através da expressão corporal e ainda hoje provoca polêmica, quando se pergunta onde termina a dança e onde começa o teatro. Essa apropriação também acontece na mistura da dança com as novas tecnologias, que usam projeções de imagens em tempo real a partir de eletrodos colocados nos corpos dos bailarinos, de filmagem com projeção ao vivo, do uso do vídeo como cenário ou mesmo na interação da imagem na tela com o bailarino no palco, onde este responde aos movimentos ou ações projetadas, demonstrando assim, outras possibilidades de pensar e fazer dança (SPANGHERO, 2003). Não há apenas a mistura entre as diferentes formas de apresentações artísticas, mas também a total interação público e artistas seja apenas no diálogo durante a apresentação da obra, seja em uma pesquisa que antecede a obra ou uma interação através de suportes e 71 recursos tecnológicos em que muitas vezes, o público é incentivado ou levado a interagir também fisicamente se movimentando e contribuindo de alguma forma. Spanghero (2003) expõe que outra forma de apresentação da dança contemporânea é a vídeodança, que nasce da mistura da dança com a fotografia e o cinema. Nesta forma de apresentação da dança, a coreografia é pensada, criada na linguagem do vídeo, a partir da gramática, as possibilidades de movimentação e mistura de técnicas é maior ainda. A vídeodança torna possível se fazer dança apenas com o foco no movimento em si, sem o uso do corpo humano para representá-lo. Pode-se misturar ás técnicas de documentário, fazer diversas mudanças de cenários e localidades, incluindo utilizar a sobreposição de imagens de forma a fazer com que os elementos das imagens pareçam pertencer a uma mesma cena. É a fusão da dança com o cinema. Para Helena Katz (2004) a dança contemporânea é mais que um apanhado de segmentos artísticos que se relaciona entre si, ela apresenta não apenas reflexões a respeito de algo, mas também questionamentos voltados para o espectador e mantêm um diálogo aberto com este. Para a autora a dança contemporânea instiga mais que distrai, e ao se reportar a algumas obras de Karole Armitage e Willian Forsythe em que ambos se utilizam da técnica clássica e da sapatilha de ponta afirma que mesmo com essas características em cena, ambas estão dentro do contexto da dança contemporânea e acrescenta que ambos os trabalhos: Como que nos obrigam a mirá-los com atenção investigativa para entender o que se passa. Não nos fazem buscar a história que contam nem os sentimentos que expressam. Fazem de nós não mais expectadores, mas parceiros. Precisamos construir juntos a legenda do que se passa. A obra me pergunta e cabe a mim levantar hipóteses sobre ela. Pronto. A obra fez uma pergunta. Não se deixou consumir em uma fruição instantânea, não permitiu que o olhar escorresse sem compromisso maior do que o de passar de uma cena à outra somente confirmando nossas expectativas e impressões. A dança contemporânea acontece num pacto entre palco e plateia. Não há emissor e receptor, mas um fluxo que atravessa todos os envolvidos com graus diferenciados de responsabilidade compartilhada (KATZ, 2004, p. 2-3). Estamos em uma nova etapa do fazer artístico e da apreciação, não há mais a contemplação, mas formas de instigar e possibilidades de construir juntos. Parece que as barreiras na relação entre artista e público em uma obra artística foram desfeitas e no lugar há uma parceria, um constante diálogo que pode levar a novas direções. 72 Em acordo com as ideias de Ostrower (1990), todos os acontecimentos históricos que foram moldando o ser humano e mudando a humanidade, o entendimento de si, do outro e da vida de forma geral, ampliaram a visão dos seres e sua compreensão do mundo e da existência. Todas as descobertas e conhecimentos acumulados nos trouxeram até nosso atual estágio evolutivo da era da comunicação, e é possível através das artes ao longo das diferentes décadas perceber todas as mudanças sociais, culturais, econômicas, tecnológicas, filosóficas e demais aspectos que envolvem a humanidade. Assim sendo, a arte contemporânea em todos os seus segmentos é o resultado de todo esse acúmulo de conhecimento e mudanças, o reflexo de como estamos e somos hoje, mesmo que ainda seja algo indeterminado, um momento transitório e talvez decisivo para a existência da raça humana e de nosso planeta. Talvez seja a hora de dialogarmos mais, percebermos mais, participarmos mais como nos propõe a arte contemporânea. 2 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO: OLHARES DIVERSOS 2.1 Processo de criação em Arte Os estudos de processo de criação se configuram de forma complexa devido à existência de relações e inter-relações entre diferentes signos dentro de um mesmo processo. Para uma melhor compreensão dessas inter-relações buscamos apoio na ciência da Semiótica através dos estudos semióticos de Peirce (1977), de Lúcia Santaella e Vieira (2008) e Cecília Almeida Salles (1998). Para Peirce (1977, p. 94) “um signo ou representamem, é algo que sobre certo aspecto ou de algum modo representa alguma coisa para alguém”. Para o autor signo tem um significado amplo podendo ser um objeto, uma palavra, uma imagem, um gesto, ele os dividiu 73 em três grandes categorias que denominou de segunda tricotomia dos signos que diz respeito ao signo em relação ao seu objeto: Um ícone é qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, será um ícone de algo na medida em que é semelhante a esse algo e usado como signo dele. Um indicador é um signo que se refere ao objeto que denota em razão de ver-se realmente afetado por aquele objeto. [...] Envolve, portanto, uma espécie de ícone, embora ícone de tipo especial; e não é a simples semelhança com seu objeto, mesmo sob esses aspectos, que faz dele um signo, mas a efetiva modificação dele por força do objeto. Um símbolo é um signo que se refere ao objeto que denota por uma força de uma lei, geralmente uma associação de ideias gerais que opera no sentido de levar o símbolo a ser interpretado como se referindo àquele objeto (PEIRCE, 1977, p. 101-102). Com base na citação de Peirce sobre a segunda tricotomia dos signos, podemos dizer que o ícone é semelhante ao objeto ou àquilo que significa como a fotografia de uma bicicleta se assemelha a própria bicicleta. Já o indicador é um signo que o significado é esclarecido por meio dos efeitos que seu objeto produz nele como determinado movimento pode ser o indício de uma técnica de dança específica, indicando que aquele movimento é utilizado dentro do repertório de movimentos da técnica, sendo assim, diretamente afetado por ela. E o símbolo se associa ao objeto por meio de convenções especiais, é um signo que se transforma em signo porque desta forma é entendido. Nos estudos semióticos de Charles Sanders Peirce a semiose descrita como as mudanças sofridas pelo signo ao longo de um processo ou também, criar e recriar significações vêm a ser, realmente relevante nos estudos sobre processos criativos devido as transformações sofridas pelos signos escolhidos pelo artista ao longo de um processo de criação. Ao se reportar sobre a Teoria Geral dos Signos, Langendonck (2004, p. 22) ressalta que ela “é tão geral e abstrata que tem a capacidade de abranger todas as formas possíveis de desenvolvimento e transmissão de um processo evolutivo, permitindo-nos olhar linguagens diferentes sobre um mesmo prisma”. E acrescenta que: O mundo é feito de diversos tipos de signos necessários à condução do pensamento e das linguagens. Esses signos se comunicam e interagem entre si [...]. Os documentos de processo formam uma cadeia sígnica com signos de diversas materialidades. Esta mistura vai-se transformando ao longo do processo. [...]. A compreensão de como esses signos se manifestam no processo de criação de uma obra literária possibilita a compreensão das manifestações diversificadas dos signos em outros processos de criação (p.23). 74 A autora ressalta a relevância de se observar e levar em consideração essas relações e inter-relações entre os signos que vão acontecendo ao longo do processo. Utiliza também como um exemplo de base metodológica o processo de criação de uma obra literária, afirmando a generalidade da Teoria de Peirce e trazendo a possibilidade de utilizar a metodologia dos estudos literários para os estudos em outros campos artísticos. Para exemplificar faremos uma relação entre a linguagem literária e a linguagem das artes cênicas tomando como exemplo os estudos linguísticos de Jakobson. Segundo Jakobson (2007 p. 122,123): “A linguagem deve ser estudada em toda a variedade de suas funções. {...} dos fatores constitutivos de todo o processo linguístico, de todo ato de comunicação verbal”. Ele se refere à ação de comunicar onde há a necessidade de um remetente, a pessoa que envia a mensagem, que codifica o que quer dizer e o destinatário quem irá receber e decodificar a informação. A mensagem em si que deve estar dentro de um contexto que seja acessível àquele que irá recebê-la para que seja mais bem compreendida, deve haver um código que seja pelo menos em parte comum entre quem envia e quem recebe a mensagem como também o contato ou canal físico por onde a mensagem será enviada. O autor ressalva a importância de existir uma conexão psicológica entre remetente e destinatário capacitando-os a entrarem e permanecerem em comunicação. Dentro desse contexto de relações entre signos e tomando como exemplo o ato de comunicar de acordo com Jakobson, podemos definir as artes cênicas como uma linguagem cujos textos vêm em forma de linguagens corporais verbais ou de movimentos, sendo que tanto a dança quanto o teatro utilizam as expressões corporais, embora de forma diferenciada. Ao considerar as artes cênicas como linguagem da mesma forma como a linguística tem seu código que são as letras, nas artes cênicas existem os textos falados e os de movimentos corporais, que em algumas técnicas estão bem definidos, e como exemplo temos a técnica do balé moderno na dança. Cada segmento artístico apresenta sua forma particular de comunicar algo para alguém, levando em conta que o ser humano sente necessidade de se expressar e esse ato sempre leva a transmissão de alguma informação. Normalmente onde há comunicação existe a função remetente e destinatário, independente da mensagem ser escrita ou não, e os elementos que transmitem as informações, os signos de cada linguagem. 75 Mas, ressaltamos que quando nos reportamos às artes o destinatário não precisa ter referências prévias a respeito dos signos utilizados pelo artista na mensagem, lembrando que nas artes há uma abertura para a interpretação. O artista pode ter a intenção ou não de passar uma mensagem, mas o que a pessoa que assiste a obra vai interpretar é livre e depende de suas referências, conhecimentos, da maneira como percebe e compreende as coisas. Ao nos reportarmos à arte contemporânea especificamente, a ideia de emissor e receptor desaparece e o que acontece é uma colaboração, ambos constroem a mensagem simultaneamente, a obra de arte contemporânea indaga o telespectador e cabe a ele levantar hipóteses. O público não recebe uma mensagem ele constrói a mensagem simultaneamente junto com a obra (KATZ, 2004). Com relação a estudos de linguagens, a ciência da semiótica que surgiu no século XX, nos chama a atenção por ser a ciência geral que estuda todas as linguagens indistintamente do campo onde estas estejam atuando, vem demonstrando grande evolução, partindo de estudos relacionados principalmente a criação na linguagem escrita como poemas, letras de músicas, partituras para distintas formas de linguagem como a dança por exemplo. A Semiótica tem por objetivo investigar “todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de sentido (SANTAELLA, 1983, p. 13,)”. Em seu estado atual inclui também os mais diferentes segmentos artísticos, investiga as relações existentes entre os diferentes signos que produzem a linguagem. E o que é relevante para essa investigação é a semiose, que é a transformação sofrida pelos signos dentro de um processo de criação. Todo processo criativo parte do ato de criar, que para Ostrower (1987, p. 09): “[...] é, basicamente, formar. {...}. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender, e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar”. Criar é ir além do banal, do comum, é ter um olhar diferente sobre algo conhecido, é voltar o pensamento e a ação de forma a reorganizar, modificar, reestruturar utilizando determinado conhecimento e a partir disso encontrar algo novo. O ato criador, de acordo com Ostrower (1987), abrange a função memória do ser humano onde ficam guardadas as inúmeras experiências vividas, todas as referências sociais, culturais e o conhecimento apreendido ao longo de sua existência, que serve como referencial para qualquer atividade atual. 76 Isso significa que o ser humano é capaz de relacionar passado e presente e imaginar, podendo até mesmo com base nesses conhecimentos antever possíveis consequências futuras, resultado de seus atos passados ou atuais. Para criar o indivíduo parte de um conhecimento apreendido e compreendido, relaciona esse conhecimento com as novas experiências e referências, ordenando-as de acordo com o contexto atual ao qual se insere resignificando esse conhecimento. Com relação à memória Ostrower (1987, p. 19) informa que: {...} de um ponto de vista operacional, a memória corresponderia uma retenção de dados já interligados em conteúdos vivenciais. {...}. Nota-se uma seletividade que organiza os processos em que a própria memória se vai estruturando. Os dados retidos na memória são apreendidos através de diversos estímulos recebidos a todo instante através dos cinco sentidos (olfato, paladar, audição, visão e tato), mas o ser humano não absorve todas as informações que chegam a ele, acontece uma seleção onde só o que interessa, ou atende as necessidades do ser é que é apreendido. O homem relaciona os fenômenos entre eles e a si próprio, se orienta de acordo com suas expectativas, desejos, medos e com sua ordenação interior (OSTROEWR, 1987). A ordenação interior de cada ser está relacionada com a sua consciência, que por sua vez, busca significados para as suas criações. E para Ostrower (1987) a consciência não é algo acabado, nem definitivo. “Ela vai se formando a si mesma, num desenvolvimento dinâmico, em que o homem, procurando sobreviver e agindo, ao transformar a natureza, se transforma também” (p. 10). Neste caso o homem é visto como um ser consciente de si e do ambiente ao redor, um ser sensível que percebe o meio ao qual pertence através de seus cinco sentidos corporais e de seus sentimentos, estando em constante transformação de si mesmo e do ambiente em que atua. Usa a memória para compreender os acontecimentos partindo do ato de relacionar as conexões entre as experiências vividas e observadas, podendo assim antecipar determinados acontecimentos. O homem não é apenas um ser biológico, também é um ser social e cultural, sendo assim, não pode ser visto separadamente do ambiente ao seu redor, é esse ambiente sociocultural que influência diretamente na necessidade, capacidade e maneira de criar do ser humano. 77 As referências adquiridas em seu meio cultural são os fatores que formam a sua consciência e a percepção delimita o que o homem é capaz “de sentir e compreender, porquanto corresponde a uma ordenação seletiva dos estímulos e cria uma barreira entre o que percebemos e o que não percebemos” (OSTROWER, 1987, p. 13). O ser mais sensível percebe melhor o que está a sua volta, a sensibilidade pode aumentar o potencial criativo de acordo com as ligações e inter-relações que o homem seja capaz de fazer. Cada pessoa dependendo de sua criação, influências e formação percebe melhor tudo o que está relacionado às suas referências, um exemplo, pode ser um artista que se dedique a área da música e um a área da dança, o primeiro perceberá melhor as variações e nuances musicais e o segundo padrões diferenciados de movimento, e ambos provavelmente tem uma boa percepção rítmica seja musical ou de movimento. Se os dois artistas passarem a trabalhar juntos em um processo de criação, por exemplo, podem contribuir sensivelmente para uma percepção das variações possíveis nas duas áreas, aumentando não apenas o conhecimento de cada um, mas também a capacidade perceptiva do artista da música em relação à dança e do artista da dança em relação à música. Criar faz parte da natureza do homem assim como a sensibilidade e a percepção, mas a cultura determina o que esse homem terá interesse em criar, seus anseios e desejos se baseiam nas suas referências adquiridas, nas suas necessidades, por isso a importância de olhá-lo de forma a perceber também o contexto ao qual se insere. O ambiente ao qual o artista pertence e com o qual se relaciona troca informações influencia e é influenciado, é chamado na semiótica da Cultura segundo Vieira e Santaella (2004) de Unwelt. Com relação às referências e influências vividas pelo criador, Vieira (2007) acrescenta que essa relação de troca com o ambiente interfere diretamente no fazer artístico e contribui para os acasos durante o processo criador, que podem levar a obra para direções diferentes das pensadas originalmente. Existe uma ideia inicial, uma primeira programação proposta pelo criador, mas nada é definitivo em um processo criativo, o projeto artístico pode se transformar gradativamente ou mesmo repentinamente dependendo das experiências vividas pelo artista e das influências que irá sofrer no percurso criativo. Tanto os homens como o ambiente como um processo criativo podem ser vistos de forma sistêmica com suas conexões e interconexões criadas entre o todo e suas partes ou 78 partindo das partes para o todo, a vida acontece de forma evolutiva e depois involutiva, em um processo de crescimento e envelhecimento, é cíclica. Fazemos parte de um sistema maior, mas também somos um sistema. Foi a partir do surgimento das ciências sistêmicas como a ecologia, que se passou a conhecer e estudar os diferentes sistemas existentes, partindo da ideia de ecossistema que engloba os animais, vegetais, minerais, ou seja, os sistemas ecológicos da Terra. E após estudos antropológicos, sociais e culturais, a ideia de sistema passa a ser usada também nas ciências humanas com a teoria de sistemas, de acordo com os estudos de Edgar Morin (2003) que expõe que todo sistema é aberto e complexo. Todas as questões processuais podem ter uma abordagem sistêmica, buscando encontrar pontos de conexão e interconexão, relações internas e externas de forma a compreender melhor o desenvolvimento de processos. Dentro dos estudos sobre sistema existe o termo parâmetros sistêmico, que foi utilizado por Uyemov (1975) e mantido por Vieira e Santaella (2008) e reporta-se: {...} aquelas características que ocorrem em todos os sistemas, independente da natureza particular de cada um, ou seja, traços que encontraríamos tanto em uma galáxia quanto em uma sinfonia, por exemplo, (2008, p. 32). São características gerais inerentes a todos os sistemas, que os definem como sistemas, como a questão da existência de conexões e interconexões, de haver uma comunicação com o meio externo relacionado aos sistemas complexos entre outras. Os parâmetros sistêmicos podem ser divididos em dois de acordo com Vieira e Santaella (2008), os básicos ou fundamentais e os evolutivos, onde os básicos todo sistema possui e os evolutivos passam a fazer parte do sistema conforme seu processo evolutivo, suas necessidades de transformação devido a mudanças no ambiente externo e interno. Com relação aos parâmetros básicos estes estão divididos em três, a permanência, o ambiente e a autonomia. Sobre o primeiro parâmetro a permanência, Vieira e Santaella (2008) informam que de acordo com uma discussão cosmológica, reportando-se aqui a ciência das leis que regem o universo, é uma solução encontrada pelo universo para manter a sua existência. Essa definição aparece embasada a partir da teoria do Big-Bang que em português significa grande explosão, essa teoria reporta-se sobre a origem e expansão do universo, e envolve questões relacionadas à transformação termodinâmica. 79 As coisas que surgem no universo surgem para satisfazer as necessidades da termodinâmica deste, e para que as coisas apareçam e permaneçam no tempo como um canal de viabilização da termodinâmica é necessário que o universo provenha condições prévias para que surja certo tipo de sistema necessário naquele momento. A essas condições chama-se de condições de permanência (VIEIRA e SANTAELLA 2008). A permanência está relacionada com a evolução dos sistemas e com o fato de existir uma abertura entre o sistema e o ambiente, para que aja uma constante troca de informações de modo que o sistema esteja sempre alerta às transformações do meio e assim possa produzir formas de sobreviver a essas transformações, o que pode resultar em um processo de evolução. Outra questão proposta pela autora é que há um meio prévio com relação ao sistema onde essas condições que permitem o surgimento de novos sistemas atuem localmente, esse meio que também é um sistema é o ambiente, sendo este o segundo parâmetro. “É no sistema ambiente que encontramos todo o necessário para trocas entre sistemas, desde energia até cultura, conhecimento, afetividade, tolerância e etc.” (VIEIRA e SANTAELLA 2008, p. 33). É através do segundo parâmetro, o ambiente, que se evidencia que há a necessidade de se ter uma abertura no sistema para que aconteça a troca de informações e mesmo surjam novos sistemas, pois o ambiente ao redor do sistema também é um sistema e sofre alterações. Se os diversos sistemas existentes não estiverem aptos a se adaptar as mudanças, correm o risco de se extinguirem. O terceiro parâmetro informado por Vieira e Santaella (2008) é a autonomia, que se refere aos estoques de informações criados a partir da interação entre o sistema e seu ambiente. Estas informações abrangem todas as áreas do conhecimento, vão desde questões biológicas, como físicas, como filosóficas etc., esses estoques garantem formas de permanência ou sobrevivência do sistema e possuem um caráter histórico, gerando a função memória. Os sistemas precisam acumular informação por ser um fator que influencia para a sua permanência, sendo uma necessidade o registro e acúmulo das modificações ocorridas no ambiente de forma a formar um banco de dados que pode ser acessado a qualquer momento para a resolução de possíveis problemas, esse acúmulo de informação pode ser comparado a um mecanismo de defesa. 80 Com relação aos parâmetros evolutivos, Vieira e Santaella (2008, p. 35,36) informam que eles exprimem temporalidade nos sistemas e são: A composição [...] consiste naquilo de que é formado o sistema. [...], a conectividade [...] capacidade que os elementos do agregado (m) têm em estabelecer relações ou conexões. A estrutura {..,} o número de relações estabelecidas no sistema até um determinado instante de tempo. A integralidade [...] quando as relações são estabelecidas entre os elementos que vão compor o sistema; a funcionalidade que se relaciona ao fato de subsistemas serem também sistemas, sendo que esses subsistemas contribuem para o funcionamento do sistema de forma integrada; a organização ocorre quando o sistema desenvolve sua conectividade de forma a se tornar integral e funcional. Os parâmetros sistêmicos explicam o que é, como se formam, organizam e funcionam os sistemas, ajudam a uma compreensão interna e causal desse mecanismo complexo. Cada parte que compõe um sistema tem a sua função de forma a contribuir para a permanência deste, e os sistemas mais complexos são compostos por inúmeros subsistemas que colaboram para o seu funcionamento de forma integrada e para a interação com o ambiente em que se insere. A partir das trocas de informações com o todo ao redor e da capacidade de armazenar informação é que o sistema produz conhecimento enviando novas informações. Todo ser vivo constitui um sistema complexo que existe em determinado ambiente influenciando e sendo influenciado por este de forma a armazenar e produzir informação. Com relação à complexidade, Vieira (2006) coloca que todos os parâmetros sistêmicos são permeados pela complexidade e esta atua como um parâmetro livre, não há ainda um conceito definido para a complexidade que seja aceito de forma consensual pela comunidade científica, o que se apresenta em diversos estudos de diferentes áreas da ciência como a física, biologia, filosofia entre outras, são definições que se reportam a formas de complexidade. Também ressalta que uma forma de compreender melhor a complexidade seria adotar um enfoque ontológico sistêmico, onde os sinais obtidos da atividade científica seriam tratados como sistema organizado de signos. Seria uma visão sistêmica da natureza do objeto de estudo, organizado e analisado através dos seus componentes sígnicos. Cordeiro (2008) concorda com Vieira quando se refere à complexidade como um parâmetro livre “uma qualidade ou característica do sistema que flutua no decorrer de todo o seu processo evolutivo [...]” (p. 131). 81 A complexidade implica diversidade, transformação, reestruturar, mudar conforme as necessidades se apresentem, é um fator que propicia a permanência que até então é o objetivo principal de todo sistema. Os processos criativos são complexos e não há como se ter uma previsibilidade fechada com relação a eles ou uma certeza absoluta sobre esses sistemas, pois, os diversos fatores que ele próprio contém e que estão ao redor dele implicam conexões e interconexões variadas e até mesmo inusitadas que causam transformações em todas as partes do todo, o que impede qualquer afirmação precisa. Uma forma de se estudar os sistemas é observar seu funcionamento, as causas e efeitos que resultam nas transformações que ele sofre ao longo de sua existência ou em determinado período desta, pois os sistemas são complexos, acumulam, geram e trocam informação com o meio, estão em constante mudança se adaptando ao ambiente ao qual pertencem, são imprevisíveis. Nas artes cênicas também conhecidas como efêmeras onde as apresentações acontecem ao vivo, não há a possibilidade de se repetir uma apresentação exatamente como foi à anterior devido a diversas influências externas e internas sofridas pelos artistas, e por modificações referentes ao próprio meio ao redor. O texto, o figurino, a história e o cenário podem ser os mesmos, mas a apresentação é diferente, o espaço utilizado apresenta pequenas alterações, o tempo, a atuação dos artistas, o público também é diferente. Podemos verificar bem essas pequenas mudanças quando temos um espetáculo em cartaz por um tempo determinado, este está em temporada, e se o público acompanha as apresentações de um espetáculo durante uma temporada consegue perceber algumas pequenas variações que acontecem nas cenas, porque eles já conhecem a sequência, guardaram na memória nuances, detalhes das apresentações anteriores e estão mais atentos para perceber as diferenças. Após vermos um pouco sobre o que é sistema e sua complexidade a partir dos estudos semióticos de Vieira e Santaella (2008), podemos dizer que os seres vivos são sistemas complexos, o ser humano, com sua mente, corpo e alma formam um sistema, o corpo humano por si só já se constitui como um sistema complexo, que faz parte da dança sendo este o meio para se criar e expressar dentro dessa arte. 82 O processo de criação que também é um sistema complexo acontece com a ligação e organização de diversos referenciais vividos que colaboram para a criatividade do ser. Para Ostrower (1999): A fonte da criatividade artística, assim como de qualquer experiência criativa é o próprio viver. Todos os conteúdos expressivos na arte, quer sejam de obras figurativas ou abstratas, são conteúdos essencialmente vivenciais e existenciais ( p. 7). Os processos criativos acontecem partindo de referências internas e externas do ser criador, que envolve seus desejos e anseios e toda a influência exercida pelo seu meio ambiente, principalmente social e cultural. Sendo que o acaso é outro fator importante nesse processo. Ostrower (1999, p. 3), afirma que: “Antes de mais nada , há o grande acaso na vida de cada pessoa, que é a sua própria existência”. Então o acaso faz parte da natureza do homem levando em conta o fato de sua própria origem e nascimento estarem vinculados a isso. Sobre o acaso, Ostrower (1999) expõe que o homem vê uma imagem de relance ou ouve um som que lhe chama a atenção por algum motivo que nem ele próprio sabe explicar, ficando guardado em sua memória até que um dia vem à tona novamente, e ele compreende que aquilo que ele viu ou ouviu por acaso faz parte ou vem completar todo um contexto que ele estava buscando materializar ou resolver. Na verdade o próprio acaso e o fato de ele acontecer de forma perceptível só é possível pela incessante busca do inconsciente em resolver ou encontrar o que se está procurando, pois o subconsciente estava trabalhando para isso. Assim como o cérebro funciona como uma teia de neurônios que se interconectam e passam informações entre si e para o resto do corpo, os processos criativos acontecem e se desenvolvem a partir de inúmeras conexões e interconexões, utilizando os mais diversos referenciais. Na dança, o elemento mais importante é o corpo, com toda a capacidade de articulação entre suas partes, os movimentos, os fatores espaço temporais internos e externos, toda a sua constituição complexa. As possibilidades de movimentações específicas do ser humano em conformidade com a sua anatomia e biomecânica, formam um sistema. Assim como os códigos de movimentos gerais e os específicos de cada estilo de dança e os elementos ou signos da composição coreográfica e processos de criação. Outros sistemas são o ambiente ou Unwelt de cada 83 intérprete/criador individual ou os ambientes comuns a todos os envolvidos em um processo criativo. O corpo compõe o sistema informacional na dança e constitui-se em relação ao sistema coreográfico como um subsistema fundamental (MARTINS, 2007, p. 134). Ele compõe o sistema dança como um subsistema mantendo uma conectividade e troca de informação com este. Sobre o sistema coreográfico Martins (2007, p.132) informa que: Para existir, o sistema coreográfico requisita, necessariamente, os parâmetros fundamentais apresentados na Teoria Geral dos Sistemas. Permanência, ambiente e autonomia, associados a ideia de existência, espaço e cooperatividade, possibilitam firmar o argumento que supõe a coreografia enquanto sistema. {...}. Os parâmetros evolutivos – composição, conectividade, estrutura, integralidade, funcionalidade e organização são, em princípio, parâmetros que acontecem ao longo do tempo em direção a complexificação do sistema, por aquisição de informação . Pode-se dizer que dança é sistema, pois esta é composta por todos os parâmetros que compõem um sistema, tanto os fundamentais quanto os evolutivos. O ambiente reporta-se ao corpo, espaço e tempo, a cooperatividade relaciona-se aos subsistemas como corpo, movimento e com a possível troca de informação entre eles. E a permanência relaciona-se com organização e complexidade, pois, quanto mais organizada for uma coreografia dentro de sua complexidade maior as chances de esta virar uma referência e permanecer como um repertório, tradição estética ou produção atualizada. Ao que se refere à conectividade, Martins (2007, p. 132) expõe: Conectividade é posterior à composição e implica seletividade. [...]. O parâmetro conectividade confere inteligência ao sistema através da sua competência em selecionar ou rejeitar elementos favoráveis ou prejudiciais ao sistema por uma qualidade de predição. Assim, a conectividade implica a existência de coerência entre os elementos selecionados, de haver uma consistência entre as partes, de serem feitas escolhas inteligentes que contribuam para o bom funcionamento ou que sejam a favor do sistema de forma a contribuir para a sua permanência. A dança é e acontece de forma sistêmica assim como o próprio ato de pensar e criar, partindo de fragmentos aparentemente desconexos e que no decorrer das relações propostas vão se mostrando complementares e formando um todo coerente, que seria a obra do artista, sendo esta o resultado de uma apropriação de um conhecimento e da relação deste com todas 84 as referências às quais foi exposto, buscando transpor esse conhecimento e informação utilizando a linguagem poética que neste caso está dentro da estética da dança. 2.2 Processo de criação na dança A dança faz parte da história da humanidade desde seus primórdios e vem sofrendo influências e modificações de acordo com a evolução, organização e reorganização do ser humano e das sociedades. Pode ser definida como “... um sistema de signos que permite a produção de significados” (MARQUES, 2010, p. 36). Uma linguagem que se expressa através do movimento onde há um conjunto de elementos com inúmeras possibilidades de serem combinados. A arte dança é formada por diferentes códigos de movimento que juntos compõem a linguagem gestual característica dessa expressão artística, há também códigos específicos, próprios de cada estilo como, por exemplo, o da dança moderna ou da dança do ventre. Callanzas (2008, p. 34) afirma: Dançar sentindo e pensando, é vivenciar uma maior consciência do sentido e da torção dos ossos, do movimento das articulações, das cinturas escapular e pélvica e da relação entre ambas do tônus e deslizamento muscular, da sensibilização da pele. Dançar é trabalhar com transferência de apoios, com percepção do peso, da direção, com micro e macro movimentos, com alteração de planos, de intenções, de intensidade. Estando em acordo com a autora acreditamos que a dança é um estar presente, sentindo o momento, percebendo a si mesmo e o todo ao redor, o corpo e a mente estão conectados entre si e com o meio em volta. Os movimentos podem ser soltos, o intérprete pode se deixar levar pela música entre outras possibilidades infindas, mas há uma intencionalidade, existe uma proposta, o corpo está sendo conduzido pelo bailarino, há um controle, uma atenção, uma consciência sobre o corpo, o espaço, o tempo e sobre seus próprios limites. Dentro da técnica de Klauss Vianna estudada por Neves (2008), o corpo do intérprete é visto como um corpo consciente, principalmente a respeito de seu próprio reportório de movimentos, e isso é alcançado a partir desse estar presente, percebendo-se e percebendo o ambiente, buscando suas referências vividas para criar e desenvolver performances. 85 O trabalho de Klauss Vianna é voltado tanto para o bailarino quanto para o ator, buscando a personalidade própria de cada intérprete, estando esta forma de trabalhar dentro do contexto contemporâneo em que a dança se situa. Já para Rudolf Laban (1978) a dança é movimento, movimento este em que consiste uma intencionalidade, que foi estudado, experimentado dentro de um sistema préestabelecido, codificado, sem deixar de fora a movimentação cotidiana em que se baseiam seus estudos. Em suas pesquisas em dança moderna Laban (1978) encontra na movimentação cotidiana a base para a pesquisa e o ensino em dança, mostrando a pessoas comuns, que não possuem técnicas de dança que todos podem dançar através do uso dos movimentos utilizados no dia a dia, sendo a dança coral uma das pesquisas mais importante de sua trajetória como pesquisador e coreógrafo e para o ensino em dança. A dança coral se apresenta como um trabalho de pesquisa coreográfica realizado por um grande número de pessoas, bailarinos e não bailarinos ao mesmo tempo. Os autores citados trabalham a dança de forma orgânica, Klauss Vianna partindo da técnica que os intérpretes já dominam e explorando as possibilidades de cada um e assim como Laban faz uso da percepção. Já Laban apresenta uma técnica específica criada por ele dentro da dança moderna e tomando como referência a movimentação cotidiana das pessoas durante suas atividades comuns como andar, sentar, comer, cozinhar entre outras. É relevante ressaltar que a dança pode estar inserida em vários campos da sociedade, como um fator social, ajudando na socialização, interação entre pessoas e grupos, relacionada à saúde ajudando na consciência sobre o próprio corpo, no condicionamento físico, na postura corporal, na flexibilidade e mobilidade dos movimentos do corpo e na autoestima de seus adeptos, sejam crianças, jovens, adultos ou pessoas idosas. Não há limite de idade, e cada pessoa pode encontrar o melhor estilo para as suas necessidades ou desejos. Destacamos que os fatores consciência corporal, autoestima, socialização, estão relacionados diretamente com a educação, ajudando na aprendizagem, estimulando a criatividade o cuidado consigo mesmo e com o outro, a si perceber e a perceber o outro, entrando em questões éticas e sociais. Laban ao longo de sua vida fez grandes contribuições para a dança educação abarcando diferentes fatores sociais que a atividade dança envolve como a colaboração, principalmente quando relacionada a grupos, sejam estes amadores ou profissionais, o que 86 leva a um pensar em comunidade, em um bem estar e sucesso comum ao grupo, e essa vivência, esse aprendizado é levado para onde quer que o membro do grupo circule na sociedade, no seu ambiente familiar, escolar, profissional e círculos de amizades. A prática da dança quando conduzida por um profissional capacitado e consciente de suas responsabilidades sociais em muito pode vir a contribuir para uma sociedade melhor, ou seja, um ambiente mais humano, de respeito e colaboração. O aprendizado na dança, que engloba todas as partes de um todo e suas conexões leva a um pensamento sistêmico e a uma prática sistêmica, pois o corpo humano já é um sistema e tem que interagir com os diferentes (ambientes) sistemas ao redor. Dentre os diferentes estilos de dança o de principal interesse dessa pesquisa por estar o objeto desse estudo dentro dessa modalidade é a dança contemporânea, que se apresenta como uma nova maneira de se pensar esta arte, não havendo modelos definidos em relação à técnica ou aos corpos que dançam. Existe a necessidade de se ter uma proposta com base em pesquisas. Muitas são as possibilidades e recursos para se criar em dança contemporânea. É possível perceber nas obras de dança contemporânea características que a identificam como a abertura para a experimentação e utilização de diferentes técnicas artísticas e de outros campos do conhecimento. Essas obras podem se apresentar de forma temporal ou atemporal, linear e não linear e as singularidades e características próprias de cada intérprete são evidenciadas. Para Meireles e Eizirik (2008, p. 87) a dança contemporânea: [...] parece ser menos um estilo e mais um apanhado de princípios que incluem: a individualização de um corpo e gesto sem modelo que exprimam uma identidade ou projeto insubstituível; a produção e não reprodução de um gesto a partir da própria esfera sensível de cada dançarino ou de uma adesão profunda ao ponto de partida de alguém; a pesquisa e o trabalho sobre a matéria do corpo; a afirmação da gravidade como mola propulsora de movimento e a não-antecipação da forma. As autoras colocam que ocorre a desconstrução e reconstrução do corpo do bailarino, este precisa criar consciência de que tem alguns hábitos de movimento para deixá-los de lado e conseguir adquirir nova movimentação corporal. Também há uma apropriação da ideia e elementos propostos pelo criador de modo que esses intérpretes atuem como cocriadores, sem que se perca a identidade de quem propôs o trabalho. 87 Neves (2008), em seus estudos sobre o pensamento do coreógrafo e pesquisador Klauss Vianna expõe que ele defendia um tipo de trabalho aberto, “a ser desenvolvido no corpo daqueles que o levavam para a vida e para a arte. {...} Aquele que propicia, dá ferramentas para que o outro desenvolva algo cujas possibilidades já trazem em si (p. 38)”. Klauss Vianna com sua forma de ver, pensar e ensinar dança consegue pontuar de forma clara como é a dança hoje, onde por mais diferentes que sejam os processos criativos no campo da dança, há sempre a possibilidade de desenvolver o potencial do intérprete pelo coreógrafo para a proposta do trabalho, valorizando as características do intérprete e enfatizando a personalidade do criador. Num processo de criação é necessário conhecer a linguagem e as ferramentas que serão utilizadas e no caso da dança a linguagem de movimento, as técnicas de composição coreográfica e as metodologias para a dança contemporânea. Retomando a afirmação de Marques (2010, p. 36) que: “A dança é um sistema de signos que permite a produção de significados”. O coreógrafo vai utilizar determinados signos para gerar significados que serão diferentes dos signos utilizados, e que para ele representarão algo, mas para o público que tem referenciais diferentes será outra interpretação. Por exemplo, o espetáculo “Lecuona” do Grupo corpo montado em 2004, traz como referência principal as músicas do cantor cubano Ernesto Lecuona, são canções fortes com tonalidade melancólica que se reportam a relacionamentos entre casais, o coreógrafo escolheu representar os sentimentos que trazem as canções de Ernesto através de vários pasde-deux onde dançam um bailarino e uma bailarina, com apenas um grupo de quatro casais, utilizando movimentos advindos da dança de salão Tango e movimentos do moderno e do clássico, sendo este último à base da técnica dos intérpretes. Na cena da valsa está em cena um casal com figurino de cor preta realizando por alguns momentos uma sequência coreográfica dramática e em seguida entra um casal com figurino de cor branca e ambos os casais começam a dançar a valsa, a cena continua com outros casais que entram em cena quase que de forma imperceptível ficando apenas casais com figurinos brancos. É uma cena muito poética, parecendo se reportar aos maus e bons momentos de um relacionamento. Mas isso depende das referências de cada pessoa, levando o público a se reportar as suas próprias experiências vividas, despertando assim, emoções diferenciadas. 88 Marques (2010) também apresenta a dança como sistema “quer dizer que ela é um conjunto organizado de elementos e suas possibilidades de combinação (2010, p. 36)”. Isto viabiliza um número infinito de possibilidades de criações de acordo com cada criador e cocriadores. Dentro do sistema dança a função memória é acionada pelo criador e cocriadores para buscar referências que colaborem com o processo de criação, ajudando a relacionar as informações e referências e mesmo esclarecer questões referentes à pesquisa do trabalho. Os elementos que se apresentam a partir da função memória vão sendo organizados, reorganizados, relacionados com outros elementos e estruturas para criar uma obra. Sobre os diferentes signos que formam as linguagens Santaella (1983, p. 58) em acordo com os estudos de Peirce (1997) esclarece: “O signo é uma coisa que representa outra coisa. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir outra coisa diferente dele”. Ao olhar para uma fotografia de determinado movimento, vê-se apenas a representação daquele movimento e somente em parte e não ele exatamente como é. Com relação à dança, por exemplo, se o signo escolhido for uma palavra ou frase ele terá que ser traduzido para a linguagem do movimento, se apresentando de forma diferenciada para cada criador, e neste caso o criador um, por exemplo, utilizará signos diferentes do criador dois para falar do mesmo assunto. Santaella também coloca que o signo representa apenas em parte um objeto para um intérprete e na mente deste é gerado “um signo ou quase signo, ocorre um processo relacional que se cria na mente do intérprete (1983, p. 58)”. O resultado dessa interpretação é outro signo que traduz o primeiro, e este é chamado de interpretante. Então um determinado movimento de dança como o demi plié (pequena flexão dos joelhos), por exemplo, é o objeto dinâmico, a fotografia desse movimento é o signo e a interpretação que o intérprete faz ao olhar a fotografia é o interpretante. Na criação em dança é necessário à vivência do processo criativo e entre os recursos utilizados, para que aconteça a composição coreográfica, além do uso das diversas técnicas de dança que envolve os fatores do movimento que são o tempo, espaço, peso, força e planos. Dentre estas, a técnica de Laban (1978), se destaca por enfatizar o estudo desses elementos na movimentação cotidiana do indivíduo, de forma a propiciar ao bailarino uma 89 maior consciência corporal e conhecimento teórico-prático, dando suporte para a pesquisa e para o processo criativo do intérprete criador. Também são usados os elementos de composição coreográfica como: o rondó, o espelho, a improvisação, o retrocesso, o acaso, a metáfora entre outros. De forma resumida, o rondó é quando uma frase de movimento é repetida durante uma célula coreográfica; o espelho caracteriza-se pela execução de movimentos onde um bailarino está de frente para o outro como se dançassem com o espelho, o que ocasiona movimentos simétricos. O acaso acontece por seleções aleatórias das movimentações dos intérpretes, direções e demais fatores do movimento (NEVES, 2008). Segundo Lobo e Navas (2008): O improviso se da por impulsos, mas é um processo estruturado, acontece fiel a nossa individualidade, conduzindo-nos de acordo com regras inerentes a nossa própria natureza. {...} improvisamos a partir do que está inscrito no corpo pelas nossas percepções, sensações, memórias e por todo tipo de relações com o meio ambiente (p. 119). Durante os exercícios de improvisação, o coreógrafo conhece mais sobre seus bailarinos, assim como, eles também a respeito de si próprios, e isso ocasiona uma abertura para a busca e a descoberta de novos caminhos, tanto para a vida, como para a arte. Já no retrocesso, se cria uma frase e esta será repetida de trás para frente; tema e variação, a partir de uma ideia se cria uma frase tema e depois são feitas variações como trocar o ritmo, o tempo, o espaço (LOBO e NAVAS, 2008, p. 134). O que pode mudar completamente a visão que se tem da composição coreográfica, existem vários trabalhos com um restrito número de movimentos e muitas variações dos mesmos. Santana (2006, p. 13-15), em seu trabalho de pesquisa coreográfica “Pele”, utiliza três metáforas do imaginário popular que são o mito de “Prometeu” o de “Frankenstein” e “Neuromancer”. Para referenciar a sua pesquisa envolta nesses conceitos da evolução da humanidade, com relação à imersão do ser humano nas suas criações tecnológicas, a projeção do corpo no ciberespaço, na figura do avatar, a linguagem do cinema e da Web, em um trabalho de dança que acontece ao vivo utilizando o real e o virtual. A metáfora gramaticalmente significa a “substituição de uma palavra por outra, com base em uma semelhança; é uma comparação sem junção comparativa: Ela é um taco de sinuca” (metáfora), ou seja, é como um taco de sinuca (comparação) (PIMENTEL, 2008, p. 31). 90 Durante os exercícios criativos, o coreógrafo já está experimentando o potencial dos bailarinos, e as possibilidades de criação dentro da proposta ou possível tema da obra. É no decorrer dessas atividades que acontecem em um ou vários ambientes e cujos participantes vem impregnados pelas suas relações sígnicas das suas semiosferas de convivência, que o trabalho vai tomando formas e direções variadas até que uma seja escolhida, ou se deixe o processo sempre em aberto, apresentando sempre novas possibilidades a cada apresentação. Todos esses exercícios que fazem parte do processo criador podem estar registrados e servir como documentos de processo. Sendo que: O olhar científico procura por explicações para o processo criativo que esses documentos guardam. {...} Retira-se da complexidade das informações que oferecem o sistema através do qual esses dados estão organizados. {...} É feito, desse modo, um acompanhamento crítico interpretativo dos registros. O movimento do olhar nasce no estabelecimento de nexos entre os vestígios. O interesse não está em cada forma, mas na transformação de uma forma em outra (SALLES, 1998, p. 19). Cabe ao pesquisador a preparação para que se faça a análise dentro da pesquisa proposta de modo a perceber detalhes de como o processo de criação foi acontecendo, quais os elementos que o artista usou e como ele foi fazendo as ligações entre eles até chegar à obra. Sendo que essa análise acontece apenas em partes da obra e não em toda a obra. Para que aconteça uma investigação de um processo é importante que o pesquisador compreenda o que é processo, como ele acontece e quais as suas partes. O fato de o propositor da pesquisa ter vivenciado ou estar vivenciando esse ambiente criativo lhe permite uma maior apropriação do tema e mais fundamentos para o discurso. Sobre processo de criação artística Ostrower (1999) expõe: Ao criar o artista não precisa teorizar a respeito de suas vivências, traduzir os pensamentos e as emoções em palavras. Ele tem mesmo que viver a experiência, incorporá-la em seu ser sensível, conhecê-la por dentro. Daí, espontaneamente, lhe virá a capacidade de chegar a uma síntese dos sentimentos – naquilo que a experiência contém de mais pessoal e universal—e de transpor essa síntese para uma síntese de linguagem, adequando as formas ao conteúdo (p. 17). O que leva um indivíduo a criar algo parte de inquietações pessoais que podem ser compartilhadas por determinado grupo, são questões que persistem de forma consciente ou inconsciente e o levam a busca por uma possível resposta e a expressar de forma mais concreta esse sentimento, essa descoberta ou apenas esse questionamento. 91 Torre (2005) ao reportar-se sobre os limites do campo criativo chama atenção para a direcionalidade e intencionalidade como elementos delimitadores da criatividade e expõe que: “O momento culminante da iluminação costuma ser precedido por uma fase escura de afastamento, esquecimento e incubação. Toda obra ou realização deve ter passado previamente por uma fase de criação, questionamento e pesquisa” (TORRE, 2005, p. 55). A criação e a própria criatividade são vistas como um processo que acontece ao longo de um tempo, partindo de fatores motivadores que provocam ou estimulam essas capacidades que são atributos dos seres racionais. E Torre (2005, p. 55) ressalta que “a criatividade é o potencial humano de gerar ideias novas dentro de uma escala de valores e comunicá-las”. O artista independente de sua área de atuação apresenta uma sensibilidade mais apurada, tem uma tendência a estar sempre em alerta e com certa abertura para receberem e compreenderem melhor as mensagens que chegam até eles, mantém uma curiosidade aguçada e estão sempre buscando algo, uma resposta, um link que venha a contribuir ou esclarecer uma inquietação que levará a solução de uma questão ou possível criação de um novo projeto artístico. Para os artistas da área de dança tudo também pode ser visto a partir da linguagem de movimento, por isso a grande preocupação em aprimorar sempre o instrumento de trabalho, seu próprio corpo e o de seu elenco, assim como os suportes que compõem as cenas da obra como cenário, figurino, iluminação, tecnologias. Outra preocupação é com o diálogo e a coerência entre todas essas linguagens, para que o resultado se aproxime do esperado pelo ou pelos criadores e consiga de alguma forma passar a mensagem ou representar a inquietação motivo da criação artística. A arte da dança demonstra uma grande capacidade de contribuir para o desenvolvimento do ser humano e sua capacidade de inclusão, assim como a maioria das formas artísticas, dependendo de como estas forem trabalhadas. Quando há um trabalho envolto em uma base na pesquisa de forma consciente de tudo o que se está estudando e utilizando, aumenta a eficácia nesse processo de desenvolvimento e inclusão, contribuindo para uma sociedade melhor. Não importa se a dança é de cunho social ou apenas artístico ela sempre poderá atuar nesses dois seguimentos, o artístico e o social e dialogará com outros campos artísticos. Os estudos de processos criativos e de práticas corporais cotidianas podem contribuir para o 92 autoconhecimento de uma cultura ou para ampliar o conhecimento ao se reportarem a culturas diferentes das locais. 3 CAPÍTULO - PROCESSO DE CRIAÇÃO DE “RITO DE PASSAGEM” A obra “Rito de Passagem” foi concebida e produzida em 2007, quando a Índios.com Cia de Dança foi contemplada com o prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna. Estreando em 2008, a obra levou a companhia a vencer outros editais como o projeto “Palco Giratório” patrocinado pelo SESC, de cunho nacional (COSTA 2013). O Palco Giratório apresenta-se como o maior projeto de circulação nacional de teatro e dança promovido no Brasil pelo Serviço Social do Comércio - SESC. Pela participação nesse projeto a companhia de dança apresentou a obra “Rito de Passagem” 33 vezes em mais de 25 cidades em todo o Brasil, tornando-se a primeira companhia independente de dança do Amazonas a realizar uma circulação desse porte (COSTA, 2013). A Índios.com Cia de Dança foi inicialmente composta por uma maioria de intérpretes femininas e atualmente apresenta um número similar de intérpretes masculinos e femininos. Desde o início da companhia havia o interesse em se aprofundar em uma proposta que utilizasse diferentes técnicas de dança e advindas de outros campos como o esportivo e circense. Um fator que contribuiu para a companhia de dança optar e se firmar com a técnica do rapel e do tecido foi para ter uma maior opção de espaço tanto para treino como apresentações, levando a companhia a estreitar a relação da dança com a técnica do rapel para criar uma dança aérea já existente em outras partes do país e do mundo, mas ainda era uma novidade na cidade de Manaus. O primeiro trabalho da companhia que apresenta em todo o contexto da obra as técnicas do rapel e do tecido foi “Por um Fio”, vencedor de edital com circulação nacional trazendo maior visibilidade e reconhecimento para a companhia, que veio a se tornar pioneira com essa proposta de trabalho em Manaus. 93 A companhia já estava em um período de maior amadurecimento artístico quando a obra “Rito de Passagem” começou a ser criada pela coreógrafa, propiciando a criação de um solo que foi um divisor na forma de criação, apresentação e proposta a qual a companhia estava habituada, trazendo a pesquisa para um contexto mais cultural. E, devido à maioria dos integrantes da companhia ser mulheres nesse período, a coreógrafa optava por criar trabalhos pensando nessa composição centrada na mulher. A obra “Rito de Passagem” apresenta questões relacionadas ao ambiente sociocultural indígena e urbano quando a coreógrafa apresenta em cena referências que se reportam a esses dois mundos, como a figura da mulher indígena e urbana em seus ambientes, sendo que a mulher urbana aparece de forma mais sutil. Para criar a obra “Rito de Passagem” a artista buscou referencias a partir da pesquisa que fez para sua dissertação de mestrado 1 sobre as danças Baniwa. Também utilizou as vivências da infância no interior do Estado do Amazonas onde tinha como exemplo e referencia sua mãe, suas avós e tias, todas elas mulheres criadas dentro da cultura ribeirinha e muito trabalhadoras. A característica física indígena foi herdada do pai, descendente direto de indígenas. Outras referências foram às mulheres da cidade, com suas vidas urbanas, com menos contato com a natureza e cujo fator tempo é sempre muito importante. O contexto sociocultural e as práticas corporais da mulher indígena são demonstrados com maior ênfase, a coreógrafa traz como referência também suas raízes da mistura étnica e cultural do índio com o colonizador. Implica também questões globais, pois apresenta um pouco do contexto urbano, o uso de novas tecnologias, o multiculturalismo (pluralismo cultural). Segundo a coreógrafa a mulher indígena e sua importância na formação social na Amazônia foi um dos interesses para a criação da obra, para trazer para a dança a temática regional sobre as influências da cultura indígena na cultura ocidental. Com relação ao seu processo criativo Yara declarou que a ideia fica por um bom tempo apenas no campo do pensamento, e conforme ela pesquisa e experimenta coisas que de 1 Um maior interesse para a criação da obra “Rito de Passagem” segundo a própria artista, surgiu a partir de suas pesquisas durante o curso de mestrado em composição coreográfica na Universidade Técnica de Lisboa Faculdade de Motricidade Humana em Portugal, cujo título da pesquisa era “Análise das danças Baniwa: Uma reflexão sobre a dinâmica identitária e cultural dos povos indígenas da Amazônia”. 94 certa forma se remetem a proposta que está surgindo, começando a tomar forma, é que ela vai transportando a ideia para um plano mais concreto até surgir o projeto. Sobre os trajetos percorridos em processos criativos Salles (2002) esclarece que: Uma visão semiótica nos permite falar de construção de uma representação que da a conhecer uma nova realidade, com características que lhe vão sendo atribuídas pelo artista. Seu esforço é o de fazer visível àquilo que está por existir – um trabalho sensível e intelectual executado por um artesão. Um movimento feito de sentir, agir e pensar, sofrendo intervenções do consciente e inconsciente. A criação mostra-se como uma metamorfose contínua (p.191). A inquietação já está presente na mente do criador, o que o leva a buscar em um primeiro momento mais de forma inconsciente caminhos que o levem para possíveis soluções da realização de seu desejo, e um segundo momento passa a apresentar interesse em tudo que se reporte a sua busca, sejam objetos, pessoas, acontecimentos, projetos entre outros. Nesse percurso de sentir, agir e pensar, as ideias vão clareando e se modificando até chegar a uma forma mais concreta e dentro das possibilidades do artista. Após um período vivenciado pela artista, de inquietação, em que a ideia de criar a obra surgiu a partir do desejo de falar sobre o contexto amazônico com maior propriedade, mas sem saber exatamente o caminho a ser seguido, por onde começar, o que foi esclarecido após a pesquisa teórica e a prática de campo na comunidade indígena no período do mestrado. A artista pode criar o projeto e um roteiro para o desenvolvimento da pesquisa e construção da obra. A produção da obra “Rito de Passagem” segundo a artista ficou dividida em sete fases: 1ª Fase: estudo do contexto cultural abordado na obra (pesquisa bibliográfica, pesquisa de campo e criação do roteiro). 2ª Fase: Pesquisa de movimento, seleção musical, pesquisa do figurino e cenário, filmagens, seleção e edição das imagens. 3ª Fase: Gravação dos textos falados (apenas som), definição dos suportes tecnológicos que seriam utilizados para projetar as imagens, som, equipamentos do rapel, equipamento da técnica do tecido, definição do figurino, do cenário, das imagens editadas que seriam utilizadas e da seleção musical e sons (vozes). 4ª Fase: Seleção do que realmente seria utilizado em cena a partir de experimentações com o que já havia sido produzido. 95 5ª Fase: colaboração de artistas convidados nas cenas já estruturadas, buscando outros olhares sobre o que estava sendo produzido. 6ª Fase: Ensaios da obra semiconcluída. 7ª Fase: Período de amadurecimento da obra durante a turnê a partir do vencimento do edital de circulação nacional Palco Giratório em 2009. Uma parte do período de criação da obra, apresentado pela coreógrafa também como a primeira fase da produção da obra, teve início durante os estudos e pesquisas no mestrado e ao finalizar o curso pode se dedicar com mais ênfase a pesquisas específicas para concretizar e estruturar a obra e compor as cenas. Estão incluídas nessa fase algumas anotações/reflexões da pesquisa para a obra “Rito de Passagem”, feitas pela coreógrafa em dois de seus cadernos de anotações, estando em meio a diversificados textos, dentre estes atividades vivenciadas no período do mestrado em Lisboa. A segunda fase teve como foco principal a pesquisa de movimento junto com os integrantes da companhia através de experimentações propostas pela coreógrafa, tendo como base as observações do cotidiano das mulheres indígenas da comunidade pesquisada, que foi a de Pana Pana no alto Rio Negro da etnia Baniwa. A coreógrafa se reporta a esse momento da pesquisa como rica e exaustiva, pois os ensaios eram totalmente voltados para as experimentações de movimento a partir das orientações propostas por ela, cada um inclusive ela experimentava sua própria sequência utilizando a improvisação, buscando maior afinidade com o tema, tentando se aproximar da experiência da convivência que apenas a coreógrafa teve. Durante os laboratórios de movimento para a criação da obra, Yara percebeu que a maior parte das experimentações deveria partir de seu próprio corpo, devido à vivência que teve com as comunidades indígenas. Selecionou então três de suas intérpretes que integravam a companhia há mais tempo para ajudá-la em suas experimentações corporais, observando a movimentação da coreógrafa e ajudando-a a encontrar o que ela queria. Ainda na segunda fase, paralelo a pesquisa de movimento foram realizadas as filmagens seguindo as indicações do roteiro, entre os elementos do vídeo estão à intérprete caminhando em um ambiente de floresta, o elenco de apoio, as bailarinas Rose Rosa, Alessane Negreiros e Carol Santa Ana caminhando em ruas da cidade, imagens de fetos no útero materno, imagens de guerra. 96 Todas as imagens foram capturadas pelo integrante da companhia e esposo da coreógrafa Ednaldo Passos que também capturou o som das vozes dos demais integrantes do elenco e de uma convidada indígena que atua no teatro, falando palavras chaves relacionadas à obra como mulher, rito, corpo, transformação, índio, desconstrução entre outras. As palavras foram pronunciadas na língua Portuguesa, Tukano, Tuyuka, Dessana e Baniwa. Toda a parte de imagem incluindo a edição foi uma realização de Ednaldo Passos quem editou o vídeo que é projetado na grande tela vazada de cor branca parecendo uma cortina cortada em tiras na vertical. Na terceira fase após a concepção e experimentação de algumas ideias e propostas, tudo foi tomando forma e se concretizando. A coreógrafa buscou selecionar dentre todos os materiais que estavam sendo experimentados os que estavam funcionando melhor em cada cena. Dentre esses materiais estão todos os suportes tecnológicos (imagens, sons, equipamentos esportivos, figurinos, cenário, objetos cênicos), pois cada um tem sua importância e destaque nas cenas, também selecionou a trilha sonora já sugerindo as mixagens. A quarta fase foi de tomadas de decisões, com a obra toda estruturada Yara pode ter uma visão mais geral do todo e definir o que realmente continuaria o que melhor funcionou para a obra e o que seria descartado das cenas. A quinta fase foi o momento de buscar outros olhares sobre o todo, chamando alguns dos artistas que colaboraram com a obra em determinados aspectos e momentos para assistirem o todo e passarem suas impressões, apesar de terem conhecimento do contexto e desenvolvimento da obra não estavam tão imersos quanto à criadora e intérprete. Entre os artistas e parceiros que foram convidados a assistir estava o amigo, professor, médico e artista Ricardo Risuenho, companheiro de outros trabalhos artísticos, que também venceu alguns editais nacionais relacionados a dança contemporânea, foi um dos grandes colaboradores para a montagem da obra “Rito de Passagem”, ficando responsável pela elaboração da iluminação, também colaborou na criação do roteiro e em algumas cenas com codireção. Partindo da observação de algumas obras de Risuenho, ele parece buscar embasamento na dança teatro para realizar um trabalho corporal com seus intérpretes, o que pode ajudar a tornar as suas obras mais expressivas, a parceria entre Yara e Risuenho é antiga, pois a coreógrafa já atuou como intérprete em alguns trabalhos criados por ele, o que 97 possibilitou a artista uma vivência e conhecimento com esse treino corporal utilizado pelo colega. Em seus projetos artísticos Yara busca parcerias com profissionais do teatro, da dança, de iluminação entre outros para que colaborem durante o processo criativo e com as demais partes que juntas compõem um trabalho de artes cênicas como a iluminação, trilha sonora, cenário e figurino. Dependendo da proposta do criador todos esses elementos mantêm uma relação dentro da obra. Nesse espetáculo o elenco de apoio Carol Santa Ana e Rose Rosa, ficou nos bastidores atuando na segurança da dança aérea para quem está no ar não se machucar e também participando ativamente das performances aéreas com a técnica do rapel aumentando ou diminuindo a distância da intérprete do chão de acordo com a coreografia. Esse processo mostra a corda como uma extensão do corpo e fazendo a conexão entre a intérprete e as duas bailarinas que estavam contribuindo com a coreografia elevando ou devolvendo a intérprete ao chão no tempo certo. A sexta e penúltima fase citada pela coreógrafa foi a pré-estreia onde aconteceram diversos ensaios para que tudo estivesse encaixado, os vídeos no tempo certo, as células coreográficas, as duas pessoas da segurança que também colaboram com o desenvolvimento da sequência de movimentos, o som, a luz enfim é um momento de afinação, das coisas se encaixarem da melhor forma possível, da intérprete e equipe acertar o tempo das cenas e seguirem do começo ao fim em harmonia. A sétima e última fase aconteceu durante as apresentações da Caravana Nacional do SESC e sobre esta a coreógrafa informou que foi um momento de crescimento e amadurecimento da obra, cada apresentação tinha sua própria forma, ela ia se percebendo mais madura na cena e mais preparada para realizá-la, ou seja, em uma turnê há uma maior apropriação com relação à proposta, há a possibilidade de fazer pequenas variações, também existem alguns imprevistos, a mudança de local e público que neste caso foi uma constante com uma grande variação de cidades. Quando um intérprete está em turnê ele pode observar as nuances e transformações de sua performance se ele se dispõe a isso, se o corpo não se acostuma ele se coloca em maior prontidão, os sentidos e propriocepções podem ser estimulados e o intérprete pode aprimorar sua técnica e seu desempenho. 98 Para que pudéssemos nos aproximar do processo da criação, recorremos aos documentos de processos disponibilizados pela coreógrafa. Os documentos de processos segundo Salles (1998) são os registros do processo criador. Para Zago (2002, p. 32) os documentos procuram dar conta de toda a materialidade do processo criativo, que observada pelo geneticista, a partir da análise interpretativa desta ação, ata conexões e relações de atuação processual. 3.1 Documentos de processos 3.1.1 Cadernos de anotações Durante a pesquisa de movimento para a dança aérea e que também fez parte do processo criativo para chegar a “Rito de Passagem” Yara fez algumas anotações sobre diferenças e semelhanças entre a arte da dança e o esporte radical rapel, as características de cada um compreendendo melhor o que é a dança aérea, como esses conteúdos podem ser mesclados, trabalhados, reorganizados. Como criar dança para esse espaço que não é natural para o homem. Para uma organização do material pesquisado retirado dos cadernos de anotações da coreógrafa, estes estão numerados de acordo com a ordem em que aparecem no texto. Fig.01 documento 1 de processo da pesquisa em dança aérea de Yara Costa. 99 Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Transcrição da figura 1: Ligam e diferenciam no contexto de motricidade humana (Xang, Luis). RAPEL/ESPORTE 1 -- Não há compromisso com a estética além de que se trabalha para a segurança do praticante, 2. Ação/adrenalina, 3. Fim, 4. Espaço próprio, 6. Tempo preciso. 6. Regras. Leitura complementar: texto dança ............ X DANÇA/ARTE 1. Precisa ver/ter estética, 2. Produção/criação, 3. Meio, 4. Espaço aleatório, 5. Tempo vivido em cada momento, 6. Liberdade. 2 categorias: dança, rapel, tecido. – Parâmetro de classificação: organização temporal 100 A) Tempo cinético: dependendo da altura (ou da distância da ancoragem) o tempo pode ser mais rápido ou mais lento. B) Tempo ...........: (simétrico ou assimétrico) depende do que o coreógrafo idealizar. No rapel, isso será condicionado pelo grau de segurança do rapelista-bailarina tiver, ou se joguem mais no movimento ou não. C) Tempo narrativo: tempo utilizado. O documento da figura 01 evidencia as dúvidas da artista sobre a nova modalidade de dança e o esforço em compreender bem as diferenças e possíveis semelhanças buscando se aprofundar e se apropriar do conhecimento para assim mesclar os dois e a partir desse entendimento e conhecimento criar sequências coreográficas em dança aérea. O rapel é uma técnica esportiva de descida seja em ambientes naturais (cachoeira) ou urbanos (prédios) e uma das maiores preocupações nesse esporte é com a segurança do praticante. Bem diferente da dança onde há uma grande valorização da estética, o tempo não é o de cada intérprete e sim o criado pelo coreógrafo entre outras diferenças. Nessa parte da pesquisa Yara percebe que o tempo da dança no espaço aéreo é diferente do da dança no térreo e que existem alguns fatores relevantes como o fator cinético, a distância da ancoragem (parte em que a corda fica presa ancorada) e a distância do equipamento e do artista do solo. Na figura 02 a coreógrafa também buscou fazer uma relação de técnicas possíveis de serem utilizadas, classificando quanto às possibilidades de movimentos, objetivos de cada técnica, tentando esclarecer o que realmente poderia ser definido como dança aérea, chegando à possibilidade de ter uma dança vertical e uma aérea. Fig.02 documento 2 de processo da pesquisa em dança aérea de Yara Costa. 101 Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Transcrição da figura 2: Durante a execução do movimento passar a mensagem que a coreógrafa deseja expressar no movimento. Obs.: O rapel em si é como no atletismo (p. 306, Charles L. Baile’s. Dança), pois também é organizado exclusivamente no tempo cinético. Segundo Charles L. Baile’s “Não pode ser considerado dança um fenômeno que não tenha os 3 tipos de organização temporal cinético, narrativo e de ...................., que porém são suplementares ao tempo de medida em que a dança é organizada”. ------------------------------X---------------------------------------CLASSIFICAÇÃO (POSSÍVEL) Isso é 1. RAPEL, DANÇA 2.TECIDO, VERTICAL! 3. CAMAS ELÁSTICAS, pois não 4. PECONHA temos o corpo o tempo todo solto no ar. Para ser aéreo – deveria ser uma dança que deixasse o bailarino no ar o tempo todo. 102 Yara parte de uma pesquisa teórica buscando uma diferenciação entre dança vertical em que ainda se mantêm contato com alguma superfície, por exemplo, uma parede, e a dança aérea onde não há contato com superfície alguma. Observa as diferenças ou similaridades no fator tempo de cada modalidade, sempre buscando certa relação com outras técnicas, no caso, a circense ou a ginástica olímpica (tecido e cama elástica/acrobacia) além das práticas corporais cotidianas, neste caso ribeirinha ou indígena, como a subida em árvores para apanhar frutos com o uso da peconha (material feito de palha usado como suporte para a subida). Em outro momento da pesquisa para a dança aérea (figura 03) temos uma notação (ou escrita em forma de símbolos de movimentos coreográficos) de passos da dança aérea buscando visualizar as possibilidades e definir nomes para os movimentos. Na figura 03, a coreógrafa desenha possibilidades de movimentos na dança aérea descrevendo-os, fazendo comparações com movimentos de animais, nomeando-os, um exemplo, é o nome “cristo” ou “T” dado ao passo em que a bailarina se posiciona com o corpo na horizontal como se estivesse deitado e abre os braços lembrando a figura do Cristo crucificado ou a letra “T”. Ainda na figura 03 aparecem orientações da coreógrafa sobre a necessidade de realizar contrações em alguns movimentos nas sequências coreográficas. 103 Fig.03 Documento 3 notações (símbolos representando movimentos) em dança. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Transcrição da figura 3: NOMES: 1. INVERTIDO BAILARINA GRAND ÉCART NA CORDA DE CABEÇA PARA BAIXO; 2. CRISTO OU T NA HORIZONTAL COM O CORPO EM T 104 3. DIAGONAL PODE-SE FAZER C/ O IMPULSO DO CAMBRÉ GIRAR EM TORNO DA CORDA DESCENDO COMO UMA COBRA OU 4. ARCO PODE-SE TENTAR FAZER GIROS COMO RODA DINÂMICA DOS GIROS: DE ONDE VEM? 5. Z CONTRAÇÕES P/ ESTENDER E FLEXIONAR JOELHOS 6. T C/ PERNA FLEXIONADA 7. GIRAR EM TORNO DO MEU EIXO – TRABALHANDO PERNAS NA LATERAL – COMO GATO PROCURANDO O RABO 8. CAMINHAR NA PAREDE – MERGULHAR E CAMINHAR COM AS MÃOS NA PAREDE – DE COSTAS Cada coreógrafo tem sua forma de fazer registros dos movimentos coreográficos também chamados de notações de dança, podem ser feitos de forma particular ou o coreógrafo pode seguir uma notação pré-estabelecida. Existem estudos específicos sobre notações do movimento e pesquisadores que criaram seus próprios sistemas como o coreógrafo, bailarino e pesquisador austríaco Rudolf Laban que criou o Labanotation, conhecido em diversos países e que exige um conhecimento maior sobre os estudos de Laban. Após vivenciar um período de pesquisa, experimentação e criação em dança aérea acrescentando também a técnica circense de tecido em seus espetáculos, Yara adentrando em 105 suas investigações do mestrado busca uma aproximação maior com a cultura regional e indígena e aparecem os primeiros esboços do que viriam a ser a obra “Rito de Passagem”. Na figura 04 aparecem às reflexões da coreógrafa sobre a movimentação do índio, o uso do espaço, as intensões possíveis na movimentação, preocupação com questões relacionadas a rituais, sobre identidade, talvez um caminho para se chegar a uma identidade, homem/índio/artista. Também há uma reflexão sobre possibilidades de adereços para compor cenário, levantar características próprias dos indígenas e dos bailarinos. Fig.04 Documento 4 (anotações relacionadas à pesquisa sobre o índio para “Rito de Passagem”). 106 Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Transcrição da figura 4: ORIGEM ÍNDIO ADEREÇOS MÚSICA RITUAIS RAÇA INDÍGENA HISTÓRICO HOJE ONTEM SIGNIFICADO/movimento PROCESSO LEVANTAMENTO CARACTERÍSTICAS INTRÍSECAS ANÁLISE TEMPO ESPAÇO MOVIMENTO DO MOVIMENTO PURO DO ÍNDIO ÍNDIOS OBJETO TEMPO DANÇA ESPAÇO RITUAIS FORMA P/ DEPOIS chegar a uma identidade! Ressaltamos que desde a vivência durante a pesquisa de campo quando a ideia de criar uma obra com temática cultural indígena realmente tomou forma, como é possível verificar nos primeiros esboços nas anotações da coreógrafa, a obra foi sendo visualizada de maneira integral, ou seja, os elementos, as referências e as experiências vividas pela artista foram se ligando, interconectando. 3.1.2 Técnica aérea em processo Um dos primeiros contatos que a coreógrafa Yara teve com a dança aérea foi através da reportagem sobre o projeto e grupo de mesmo nome Bandaloop, através da revista Smithsonian (fig. 05). Dica de uma companheira que participava do mesmo grupo de rapel que a Yara 107 o AGAM (Anjos Guerreiros do Amazonas) e viu a coreógrafa experimentando possibilidades de executar movimentos de dança no rapel. Bandaloop é um projeto que envolve artistas de diferentes áreas, esportes radicais, do circo, da dança e da ginástica. Esses artistas/atletas fazem performances em diferentes lugares com destaque para as que acontecem em ambientes naturais em lugares inusitados como grandes cachoeiras, montes entre outros. Fig. 05 Documento 05, recorte de reportagem sobre dança aérea. Fonte: arquivo pessoal de Yara Costa (Revista Smithsonian 2000). Transcrição e tradução da figura 05: Dançando no Ar COM CORDAS DE NYLON E NERVOS DE AÇO, O PROJETO BANDALOOP APRESENTA NO ALTO ACIMA DAS MULTIDÕES Na figura 06 a performer Kimm aparece de acordo com as pesquisas de Yara Costa realizando uma performance de dança vertical, pois há contato do corpo com uma superfície que no caso é a parede de uma cachoeira. A artista realiza movimentos de grande extensão o que facilita a visualização de quem a assiste, demonstra muita tranquilidade e domínio das técnicas utilizadas, o que só uma pessoa bem treinada e acostumada com as práticas esportivas radicais pode ter diante de um ambiente natural que apresenta uma beleza envolvente que pode levar a uma distração e risco se não houver autocontrole, conhecimento e domínio técnico. 108 Fig. 06 documento 06 (recorte reportagem sobre o grupo Bandaloop). Fonte: acervo pessoal de Yara Costa (revista Smithsonian 2000). Transcrição do texto da figura 06: Dancer Kimm F. Ward looks carefree despite the chilly spray from Yosemith Falls and the 2,500 feet between her and the valley floor. Tradução do texto da figura 06: Dançarina Kimm F. Ward parece despreocupada apesar do gelado borrifo da cachoeira Yosemite e os 2,500 metros entre ela e o chão do vale. 109 No documento da figura 07 a coreógrafa apresenta diferentes questionamentos dentro de sua pesquisa em dança aérea, com relação à transitoriedade das técnicas, quais as técnicas que podem ser utilizadas e quais as que melhor se encaixam para um trabalho em dança aérea, a importância dos equipamentos e suportes tecnológicos. Como adaptar as movimentações das técnicas do rapel e do circo para a dança, as limitações e outras possibilidades de movimento e criação que os equipamentos apresentam. Fig. 07 Documento 07 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. 110 Transcrição da figura 07: Trabalho de pesquisa Título: a dança aérea e a transitoriedade de técnicas: o hibridismo da arte contemporânea. 1. Subprojeto: do rapel a dança aérea: transitoriedade de técnicas, do suporte e da função. 2. P/ sistemática: técnicas utilizadas para dança aérea – qual me da melhor suporte de trabalho? 3. Sistematização do movimento na dança aérea: circo, esporte radical (RAPEL É ESCALADA ARTIFICIAL) (TECIDO). (+) ou (-) TÉCNICAS CIRCENSES DANÇA CORPO AÉREA GINÁSTICA ARTÍSTICA CULTURAS HÍBRIDO ESP. RADICAIS POPULARES OUTROS: INDÍGENAS CENÁRIOS OBJETOS. 1º Observação a liberdade de criação no rapel só é limitada pela forma do material utilizado (cadeirinha) e depende da altura em que se propõe estudar o movimento. [Yara Costa]. “O que faz uma habilidade motora geral transformar-se numa habilidade motora específica”. O rapel e o tecido foram selecionados para a pesquisa específica aérea, a ginástica artística também apresenta movimentos acrobáticos em aparelhos que estão presentes no circo e todas as três técnicas trabalham força, equilíbrio, acrobacias e a dança aérea está se desenvolvendo a partir dessas bases. E mais especificamente sobre a pesquisa cultural a artista se reporta a cultura indígena, entre a mistura das diferentes técnicas no corpo do intérprete pode-se chegar a um corpo híbrido, que apresenta características de diferentes práticas corporais em sua performance. Nesse documento da figura 07 a coreógrafa tráz uma forma mais concreta do projeto buscando a interação do intérprete com os objetos cênicos característicos da cultura indígena. Mostra o cuidado na interligação das cenas e de criar uma história para a personagem. Esses registros escritos feitos pela coreógrafa em diferentes períodos nos ajudam a conhecer uma parte do processo de criação de “Rito de Passagem” e a perceber como que 111 diferentes referências em momentos distintos vão se interconectando conforme ela consegue visualizar um todo maior, descobrindo caminhos para materializar suas inquietações, questões. Ostrower (1990) nos esclarece que os insights não ocorrem por acaso, são o resultado de todo um acúmulo de informações tanto do inconsciente como do consciente em um esforço conjunto para ajudar a encontrar uma resposta que muitas vezes ainda se encontra no campo do inconsciente. Os estudos de processo de criação colaboram para um conhecimento a respeito de como nosso cérebro funciona, como organizamos o pensamento, percebemos e processamos as coisas, as informações para criarmos algo. No documento 08 Yara escreve a estrutura do que posteriormente veio a ser o projeto de extensão para o grupo de estudos em dança aérea que continua em plena atividade na Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Agora em outro estágio das pesquisas, existe um grupo de iniciantes, um intermediário e um avançado, e conta com a participação principalmente dos alunos do curso de dança e teatro da UEA. Fig. 08 documento 08 anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança aérea. Fonte: acervo pessoal de Yara Costa. Transcrição da figura 08: Projeto (Título): Grupo de Estudo em Dnaça Aérea Índios.com. Nº horas / semana : 6 horas Participantes: x Local : Salão de Dança (1) / Área externa Do prédio Samuel Belchimol 112 (EAT) . ? Data : (início) : Natureza : Investigação de movimento aéreo executado no rapel. No documento 09 a ex-integrante da companhia Carol Santa Ana ainda durante os estudos de movimento para a dança aérea no projeto de extensão da UEA relata sua percepção a respeito da experiência na pesquisa, enfatizando os cuidados que o intérprete deve ter com a preparação adequada, com a segurança e vencer os medos para que consiga realizar uma boa performance na modalidade. Fig. 09 documento 09 relatório de participação no grupo de pesquisa aérea. 113 Fonte: Acervo pessoal de Yara Costa Transcrição da figura 09: devi ser adaptados para não que sua forma fique boa e sua execução também. O trabalho da dança aérea , requer muita preparação, cuidado e prin- 114 cipalmente dedicação, pois o nervosismo, o medo e a insegurança podem ser claramente percebidos pelo público. Carol 3. Cenas em processo Podemos perceber na figura 10, que a coreógrafa já formava uma ideia a respeito de como poderia ser o cenário, o figurino, os adereços, a movimentação, a composição da obra já estava presente em sua totalidade, mas ainda sem conexão estabelecida, sem a reorganização, a ressignificação que realmente transforma a realidade e as experiências vividas em um trabalho artístico. No documento da figura 10 Yara apresenta elementos da cena em que se reporta a reclusão da menina moça e apresenta também idéia para o figurino trazendo a figura do pássaro, mas com forma humana. Nessa cena são muitos os sentimentos e pensamentos que a artista buscou se reportar, apresenta diversos elementos que se completam e misturam deixando esse turbilhão de informações bem aparente, não apenas nos elementos, mas, na mistura de técnicas e mesmo na escolha da música. A figura que lembra uma caixa pode estar representando em um primeiro momento o que na obra é a maloca que além de fazer parte do cenário também é utilizada como objeto cênico. Yara apresenta em diferentes momentos do trabalho uma relação com a terra, o chão e o transcender, com o aéreo. Na maioria das cenas em que se refere ao cotidiano indígena e mesmo aos dois rituais distintos como é o caso dessa cena especificamente, a artista apresenta de forma positiva, lúdica, com certa proximidade com essa vivência do dia a dia. O desenho que lembra uma palmeira está relacionado à primeira cena em que a coreógrafa faz uma referência a colheita do açaí. A palmeira ficou representada por uma corda trançada de espessura grossa. Fig. 10 Documento 10 Primeiras anotações sobre a obra “Rito de Passagem”. 115 Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Transcrição da figura 10: Estudos, 2006. Lisboa Dança -- tecnologia [PENA] -- Pena de pássaro, -- Pena de sentimento (piedade), -- Pena de morte. Ornamentos, instrumentos de caça e vestimentas. REFLEXÃO pássaro sentimento TUBILHÃO voo transcender vencer a gravidade morte destruição do índio cultura, história vidas chão Teia de significado O documento número 11, a seguir, se reporta a ideias soltas. Tráz o elemento escolhido tanto como parte do cenário como objeto cênico que é o cesto de palha e 116 especificamente na última cena a intérprete/criadora dança interagindo com diferentes cestos indígenas. A coreógrafa ao se reportar ao cotidiano e aos ritos de passagem da vida da mulher, optou por se reportar mais especificamente a mulher indígena, criou uma estória apresentando as transformações corporais que não deixam de estar ligadas a questões emocionais, sociais e culturais. Fig. 11 Documento 11 pesquisa para a obra “Rito de Passagem”. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Transcrição da figura 11: Projeto: índia (solo) Ideias soltas: 1 interação com imagens/ objetos, projeção nos objetos p/ dar continuidade a cena inicial da dança com a história a ser contada. dança É importante observar nessas anotações que são produzidas durante um processo de criação que não há uma ordem, elas surgem conforme os pensamentos se encaixam e possibilitam uma visão de partes do que virá a ser a ser a obra. São fragmentos de pensamentos que começam a se organizar conforma as respostas vão sendo encontradas na mente do criador impulsionadas também pelos estímulos externos. 3.1.3 Equipamentos em processo 117 Outro ponto importante na criação da obra foram os equipamentos utilizados para as performances aéreas dentre os quais temos o equipamento do rapel (cadeirinha, mosquetão, freio e corda). Na figura 12 Yara aparece em um treino de rapel ao ar livre, utilizando todos os equipamentos necessários e com o acompanhamento de um profissional na segurança do rapelista, caso a pessoa que está descendo perca o controle ou aconteça algum acidente o segurança tem a possibilidade de frear e fazer com que esta desça em segurança. Fig. 12 Yara descendo no rapel em uma ponte. Fonte: arquivo pessoal de Yara Costa. Na imagem da figura13 Yara está em uma ponte pesquisando movimentos para a dança aérea sem nenhum contato com alguma superfície/parede. Buscando firmar a diferença entre o que seria a dança vertical onde há contato com uma superfície e a dança aéra onde não há esse contato, o corpo está solto no ar apenas preso pelo equipamento como se flutuasse. As possibilidades de movimentos sofrem variações pois na dança aérea o movimento parte dos impulsos do corpo e de como este consegue interagir com a corda principalmente. Na execução da técnica do rapel e principalmente a do tecido o performer utiliza para equlibrar o corpo a musculatura do abdômen e da costa, os braços e pernas além de atuarem no deslocamento também controlam a velocidade dos movimentos assim como no chão, mas sem o apoio. Fig. 13 Yara treinando movimentos para a dança aérea. 118 Fonte: arquivo pessoal de Yara Costa. Na próxima figura, a de número 14 temos uma imagem de cunho ilustrativo para uma visualização em parte de como é a movimentação de um caboclo ribeirinho descendo em um pé de açaí. Um suporte muito utilizado tanto por indígenas como pelos caboclos para auxiliar na subida e descida é a peconha, que é confeccionada com a própria palha do açaizeiro apenas trançada. Se usa a peconha apoiando-a entre os dois pés e no açaizeiro de forma que os pés tenham um apoio e não escorreguem no tronco da palmeira, os braços também são necessários para manter o corpo junto ao tronco da árvore e para puxar o corpo na subida e segurá-lo na descida. Normalmente sobe-se com um facão preso a boca para cortar a base que sustenta o fruto que fica presa na árvore e ao descer o caboclo ou indígena trás o fruto em uma das mãos se apoiando e segurando com a outra. Fig. 14 Caboclo descendo do pé de açaí. 119 Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702012000300014 Em uma das cenas da obra (fig. 16) a palmeira do açaí foi representada por uma grande corda trançada de espessura grossa onde a intérprete/criadora Yara se reporta ao movimento de subida para apanhar o fruto e na sequência da movimentação faz uso da técnica circense do tecido. Ressaltamos além da referência a prática corporal, a diferença de suporte, a árvore é estática e firme diferente da corda (espessa, móvel) que por sua vez é diferente do tecido de malha (flexível, macio) e normalmente são utilizados dois um do lado do outro que oferece maior apoio. Outro equipamento utilizado na obra é o tecido confeccionado com uma malha resistente e elástica, na obra a coreógrafa optou por utilizá-lo por trás do painel branco e vazado na cena em que ela se reporta a maternidade. Em “Rito de Passagem” o equipamento do rapel tem destaque, pois é utilizado em várias cenas e grande parte das sequencias coreográficas foram criadas em cima das possibilidades que dançar no ar utilizando este equipamento permitem. A dança aérea vem sendo um dos focos da pesquisa de movimento realizada pela coreógrafa há mais de dez anos e a Índios.com Cia de Dança é a principal referência na cidade 120 de Manaus. E segundo a própria criadora “Rito de Passagem” foi a realização de um sonho antigo de unir a dança aérea com a temática cultural amazônica. Cada equipamento teve sua importância no processo criativo, pois toda a sequência de movimento em que eles são utilizados precisaram ser criadas a partir de experimentações com eles e conforme as possibilidades de cada um. O cenário também influenciou na criação da sequência de movimentos da obra e além de ser composto pelos objetos cênicos e suportes tecnológicos como as cordas, equipamentos de projeção (computador, retroprojetor) e iluminação conta com o pano de fundo que é uma tela com cortes verticais parecendo uma cortina onde as imagens são projetadas. E na cena referente a maternidade a coreógrafa utiliza o espaço atrás da tela, onde seus movimentos estão relacionados com as imagens que estão sendo projetadas na tela a frente dela. Os objetos cênicos utilizados na obra foram os cestos indígenas de palha trançada de diferentes etnias, o único da etnia Baniwa é o que a coreógrafa aparece carregando no vídeo e no início da primeira cena quando ela entra no palco. Segundo a coreógrafa na escolha musical ela optou por uma seleção de músicas de grupos e cantores diferentes que foram: Grupo masculino Timbo 2 (Aldeia Metutire Timbo ), Ngthautumau – Cláudia Tikuna, Coracio de Bufalo – Keco Brandão, Epuwanay Yarakiri Eseponto – Mekuxi Serenkato, Keeping Warm – Mereth Monk, Canto das Mulheres – Sa Brito e Bady Assad, as falas Simone Saoul Sa Brito e integrantes da Índios.com. Edição de Ednaldo Passos utilizando o programa Nero. O processo de criação proposto pela coreógrafa dentro da Índios.com Cia de Dança é coletivo, todos contribuem com suas pesquisas de movimento dentro da proposta da coreógrafa, mas, “Rito de Passagem” foi uma exceção devido à escolha do tema e também ao fato de ser um solo, exigindo uma vivência para que se apresente uma maior propriedade e verdade em cena e somente a coreógrafa teve essa vivência em uma comunidade indígena. Outra intérprete que dançou esse solo foi a bailarina Rose Rosa que chegou a presentar a obra quatro vezes, três durante a turnê nacional após vencimento do edital de circulação nacional Palco Giratório e mais uma vez em Manaus pelo Festival de dança contemporânea MOVA-SE de solos, duos e trios um pouco antes de deixar de fazer parte da Índios.com Companhia de Dança. Em entrevista cedida à pesquisadora Olvídia Dias no ano de 2012, a artista Yara Costa que criou, dirigiu e interpretou a obra na maioria das apresentações, esclarece que a grande 121 dificuldade que sente enquanto intérprete-criadora está relacionada à direção, pois considera muito difícil se autodirigir em cena, quando se encontra nessas duas posições ao mesmo tempo de intérprete e criadora, conta com a participação de membros do grupo e de parceiros convidados para colaborar em alguns momentos durante o processo de criação. 3.2 Corpo e performance Os figurinos criados para a obra foram pensados de forma a ajudar a destacar as referências das culturas indígenas em cada cena, assim como complementar o contexto apresentado e colaborar com a movimentação, com exceção de uma peça, o vestido de algodão, cujo propósito era o de não deixar tão evidente o equipamento do rapel. Os figurinos fizeram parte da pesquisa da composição coreográfica, pois devido ao uso dos suportes tecnológicos os figurinos devem ser pensados com cuidado e testados para que a movimentação possa fluir tranquilamente. Cada cena apresenta um elemento que se destaca seja com relação a movimento, equipamento, música, figurino entre outros. As cenas de “Rito de Passagem” apresentam figurinos que se reportam ao tradicional e também uns mais criativos. Alguns como a tanga de missanga (fig.21) compõem a cena e outros como o casaquinho furta cor e a saia trançada, completam a cena fazendo parte da performance seja de forma sonora ou enaltecendo os movimentos. A criação e produção do figurino se deram em parceria entre Yara e o artista plástico Adroaldo Pereira, a coreógrafa expôs a ideia principal e detalhes que seriam interessantes serem ressaltados em cada cena e ele criou em cima da proposta resultando em seis peças. Observamos três momentos de destaque da obra “Rito de Passagem” dentro de um contexto mais geral, que são a descoberta do corpo representando a passagem de menina para mulher, a transformação vivenciada na maternidade e a maturidade representada pela anciã com toda a sua experiência e visão sobre a vida, essa é a parte da obra onde há uma maior utilização de objetos cênicos artesanais. O trabalho coreográfico foi dividido de forma mais detalhada e técnica pela coreógrafa em 8 partes, algumas compostas pela projeção de imagens que completam as cenas da obra, um exemplo é a primeira cena que começa com a projeção de um vídeo que podemos considerar o início desta. A descrição da obra apresentada a seguir se baseou no vídeo registro 122 da obra filmado no ano de 2008 no evento Laboratório Contemporâneo realizado no teatro do SESC Manaus-Am. Após observação do vídeo da obra, e ao perceber cada vídeo projetado durante a performance como parte integrante de cada cena, optamos por dividir a obra em seis cenas, lembrando que a mesma apresenta uma sequência linear que não está bem definida, podemos ver momentos distintos da vida da mulher e em um momento específico há a referência a um ritual indígena masculino ressaltando a transcendência que ocorre em rituais. A obra tem como orientação e inspiração a cultura indígena de forma geral e mais especificamente aspectos da cultura da etnia Baniwa. Dentre os quais destacamos alguns movimentos do cotidiano como carregar o aturá (cesto grande de palha) apoiado a cabeça, lavar roupas e o ritual de passagem masculino, todos partindo das observações de campo da coreógrafa. Junto à descrição da obra optamos por apresentar nesta pesquisa o figurino, cenário e objetos cênicos, destacamos também os equipamentos, sendo importante acompanhar a indicação das figuras no texto. No início da obra, a primeira cena começa com a projeção de imagens de mulheres caminhando em ruas da cidade, em seguida a intérprete caminha por uma trilha carregando um cesto indígena preso com uma alça apoiada no alto da cabeça, chamado segundo a criadora da obra de aturá, muito utilizado para o transporte da mandioca pelas mulheres. Yara parece estar caminhando na floresta e a trilha sonora apresenta sons de vozes falando palavras relacionadas a questões referentes à obra dentre as quais mulher, rito, urbano, corpo, memória, vida, transformação entre outras. As palavras são faladas em português e em algumas línguas indígenas, a Tukano, Tuyuca, Dessana, Baniwa. 123 Fig. 15 Yara na primeira cena entrada da intérprete no palco Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. No vídeo projetado na tela aparecem alguns closes nas pernas e pés das intérpretes, nas bolsas, na costa da Yara. Vemos pés descalços, sapatos de salto alto, sandálias, bolsas carregadas à tira colo, o cesto na costa da Yara, caminho na mata, riacho, calçadas, rua. A luz diminui até escurecer todo o palco por um breve momento e volta a clarear já com a intérprete em cena caminhando com o mesmo figurino e objeto cênico que estava carregando no vídeo (túnica colorida, calça de malha e o cesto de palha). A gravação das vozes de pessoas falando continuam sendo ouvidas. O ato de caminhar e a postura de cada personagem é o que nos chama a atenção nessa cena, pois a ação de caminhar nos é ensinada na infância e conforme crescemos vamos modificando-o de acordo com novas referências ou orientações e transformações sofridas pelo corpo. Caminhamos conforme nos é culturalmente ensinado, aqui tomamos como base os estudos de Marcel Mauss citado no capítulo 1 em que o autor se reporta a ação de caminhar de diferentes mulheres pesquisadas e a hábitos aprendidos em práticas esportivas como a natação. O andar feminino pode dizer muito sobre os ensinamentos a respeito do que se espera em determinada sociedade com relação à postura social da mulher, como se portar para ser bem vista pela sociedade por exemplo. Na obra é possível perceber a diferença principalmente pela postura corporal, entre o andar das bailarinas que representam transeuntes nas ruas e o caminhar apresentado pela 124 coreógrafa, Yara buscou adaptar ao seu corpo dentro das possibilidades a postura do indígena ao qual ela observou na pesquisa de campo. A postura é ereta e os joelhos semi-flexionados, o peso parece estar bem distribuído nos pontos de apoio dos pés que formam um triângulo na planta dos pés, os quadris bem encaixados e o olhar não parece influenciar muito no movimento da cabeça devido à necessidade de manter em equilíbrio o aturá cuja alça está apoiada na cabeça que pode estar pesado ou não. Essa forma de carregar peso parece ajudar a fortalecer e proteger a musculatura das costas, do pescoço, pois o peso se mantido em equilíbrio fica bem distribuído e apoiado sem levar o corpo a pender mais para um lado do que outro evitando muitos problemas posturais ao longo da vida. As demais transeuntes algumas de salto alto e outras com sandálias rasteiras apresentam uma postura também ereta, mas, mais imponente, com as costas bem colocadas, possivelmente com as omoplatas mais encaixadas que o de pessoas que não são adeptas do balé, com essa postura o corpo fica mais alongado. Outro destaque apresentado são os acessórios diversificados utilizados pelas mulheres urbanas com destaque para sapatos, bolsas e roupas, o que influencia muito na postura corporal e na forma de andar. Se uma pessoa caminha com sandálias baixas sua postura é mais natural, similar a como se estivesse descalça, mas se ela caminha com sapato de salto alto o peso do corpo é deslocado principalmente para a parte da frente da planta dos pés e para os dedos, exigindo assim uma organização postural diferente, é preciso que haja um pouco mais de esforço da estrutura corporal para se manter de pé e em movimento. Outra influência é a bolsa, se for uma bolsa para se carregar em um dos lados do corpo há uma tendência natural do corpo a compensar a diferença, principalmente se estiver pesada, a pessoa tende a subir ou baixar um pouco mais a altura do ombro onde carrega o objeto formando uma curvatura na direção horizontal da coluna. Existem diversos estudos da área médica que comprovam esse fato, pois normalmente a pessoa não tem total consciência corporal para estar constantemente corrigindo a sua própria postura. No cotidiano das mulheres principalmente de diferentes culturas indígenas, elas carregam bastante peso, buscam água em potes, carregam os alimentos colhidos na roça e durante as atividades como cozinhar ou descascar alimentos costumam utilizar a postura de 125 cócoras. Talvez essas atividades contribuam para uma postura encaixada, mas, sem a preocupação com um alongamento maior. Nas atividades da cultura indígena assim como da ribeirinha temos a colheita de frutos da floresta e ainda na primeira cena (fig.16) Yara executa movimentos cortados com os braços e em seguida ao chegar à frente a corda trançada, presa ao teto do lado direito do palco na visão de quem está na plateia, ela transfere-se para o plano aéreo ao subir na corda, descendo e subindo algumas vezes, tal como o gesto corporal de subir em um açaizeiro (fig.14). Fig. 16 Yara na primeira cena, subindo na corda trançada. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. A intérprete Yara sobe na corda utilizando movimentos que lembram a movimentação do caboclo ou indígena quando sobem na palmeira para colher frutos. Por outro lado, há a execução de uma evolução de movimentos utilizando a técnica do tecido utilizada principalmente no circo (fig.19). Parece que a intérprete brinca com as possibilidades de movimentação dentro da proposta metafórica, relacionada ao homem da floresta, na coleta de frutos nativos e as práticas corporais circenses. 126 Fig. 17 Yara na primeira cena, sequência na corda trançada. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Ainda na primeira cena, Yara muda de plano novamente, voltando para o solo e retirando do cesto a parte que sustenta o fruto açaí na palmeira, o talo, e o utiliza como um objeto cênico, a intérprete parece explorar as possibilidades de utilização deste. Na primeira movimentação executa movimentos de cima para baixo acompanhando as espécies de varetas do objeto lembrando a movimentação de debulhar o fruto (tirando ele do suporte natural). A bailarina também movimenta o objeto cênico como se estivesse varrendo o chão, lembrando o movimento das mulheres indígenas que varrem as folhas do chão utilizando essa parte que sustenta o fruto na palmeira e realiza movimentos que trazem o objeto a frente do corpo e o levam para trás do corpo, o encostando nas costas. O figurino utilizado nesta primeira cena é uma túnica de malha estampada com várias cores que lembra vestimentas de etnias da Guiana e segundo a coreógrafa foi intencional, ela queria utilizar referências de etnias diferentes e não focar só na etnia Baniwa (fig.18). Algumas peças tem detalhes que são diferenciais do artista plástico Adroaldo Pereira, como na figura 18 a túnica que foi confeccionada com cinco tiras de tecidos com estampas e detalhes diferenciados. 127 Fig. 18 túnica estampada colorida. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Com relação ao equipamento utilizado no início da obra na figura 19 observamos a corda trançada de espessura grossa e segundo a coreógrafa se reporta a colheita do fruto açaí (fig.14). Outra referência à colheita do açaí acontece tanto com relação à movimentação quanto com o uso do objeto cênico que é a parte da árvore que sustenta o fruto do açaizeiro. 128 Fig. 19 Yara utilizando o equipamento corda trançada. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Na transição da primeira para a segunda cena a intérprete tira a túnica e veste no palco, a tanga de missanga (fig.20 e 21) com uma meia luz na cor vermelho âmbar já ao som de uma música indígena com vozes femininas, essa transição acontece do lado direito do palco na visão de quem está de frente para o palco. Fig. 20 Yara na segunda cena referência a menina moça. 129 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Nessa cena (fig.20) Yara executa movimentos introspectivos principalmente com os braços, realiza contrações corporais que lembram a técnica de dança moderna, seus gestos parecem relacionar-se a sexualidade da mulher, ou a percepção dela através da descoberta do próprio corpo. A coreógrafa esclarece no roteiro da obra que a música utilizada nessa cena faz referencia a indignação dos povos indígenas em relação à comemoração dos 500 anos do Brasil, para os povos indígenas o Brasil não foi descoberto, pois eles já viviam aqui. Ainda na segunda cena Yara desloca-se para o centro do palco em frente a uma grande tela branca como uma cortina de tiras com cortes na vertical, imagens são projetadas na tela vasada e no corpo da intérprete, imagens que parecem tintas fluindo de algum recipiente, depois parecem imagens de tintas sendo misturadas, como se tudo fosse uma coisa só ou um momento vivido, uma lembrança. A música vai finalizando e a intérprete continua a movimentação de braços e as contrações de forma mais acelerada, os movimentos enfatizam em alguns momentos partes do corpo da intérprete como os seios, ventre e órgão sexual, na sequência temos outro black out finalizando a segunda cena. Na obra “Rito de Passagem” as características da dança moderna podem ser claramente identificadas, temos à contração de forma global do corpo como de apenas partes dele, o uso de movimentos naturais do corpo. Já mais especificamente com base em Laban, temos uma parte da pesquisa de movimento da coreógrafa relacionada à movimentação 130 cotidiana da cultura contemporânea e indígena, ressaltando o ato de caminhar de algumas mulheres com referências as urbanas e as indígenas. Outro fator que chama a atenção é a movimentação de braço em determinados momentos como na cena da figura 20 que remetem ao trabalho corporal usado também na dança teatro e lembra o trabalho do amigo da coreógrafa o diretor Ricardo Risuenho que usa esses elementos em suas obras. Em “Rito de Passagem” a coreógrafa opta por utilizar em algumas cenas a improvisação o que é uma escolha que pode ser vista em muitos trabalhos contemporâneos de dança. A improvisação pode propiciar uma entrega total ao momento vivido e vivenciado pelo intérprete, pois este pode adentrar mais profundamente na proposta da cena ou da obra assim como recorrer as suas referências e experimentações corporais. A improvisação pode ser de acordo com os estudos de Martins ( ), conduzida, ter um direcionamento de um diretor ou não, pode ser realizada dentro de um contexto, seguindo a música, pode ser combinado de acontecer o improviso em determinado momento da obra , ressaltando que quanto mais o intérprete se percebi e domina seu corpo e determinadas técnicas ele efetuará movimentos diferenciados dos quais seu corpo está acostumado. Cada cena apresenta um figurino sendo que a calça corsário segunda pele com detalhes que lembram couro de cobra com tons de marrons claros é o único que permanece do começo ao fim. O segundo figurino é uma tanga de missangas marrons com detalhes com sementes nas laterais e um grafismo em um dos lados (fig.21). fig.21 calça de malha corsário e tanga de miçanga. 131 Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Na sequência da obra no início da terceira cena Yara aparece rapidamente em uma meia luz branca no lado esquerdo do palco na visão do público, colocando o figurino que chamo de casaquinho amarelo (fig.23), apaga a luz e é exibida mais uma projeção com imagens da Yara e de uma das integrantes da companhia (Alessane Negreiros) realizando movimentos da dança aérea no rapel ao ar livre. Nessa cena assim como em outras Yara também utiliza o material básico específico do rapel a cadeirinha (equipamento que envolve a cintura e coxas, que possibilita a pessoa sentar), o mosquetão que é o elo entre a cadeirinha e o freio, fabricado em aço ou alumínio e a corda específica para a prática do esporte e neste caso dança (fig.22). Fig. 22 Equipamento do rapel cadeirinha (boldrié), corda e mosquetão. 132 Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Um dos destaques nesse momento da obra é o cenário composto pela maloca (fig.23) confeccionada com juta suspensa em um dos lados do palco que especificamente nessa cena também é utilizado como objeto cênico, é uma cena em que a coreógrafa brinca com ritmos, movimentos e há diferentes possibilidades de interpretação criadas pelo visual do figurino e do objeto cênico. Dando sequência a cena coloca-se o foco no objeto cênico que a coreógrafa nomeou de maloca (fig.23) do lado esquerdo do palco na visão do público onde Yara já está posicionada dentro desse objeto cênico que também faz parte do cenário. A intérprete já com o equipamento do rapel e segura também por uma corda presa no teto tem o corpo elevado variando entre um pouco acima da maloca e também apenas com metade do tronco acima da maloca. Fig. 23 Yara à frente do suporte e objeto cênico maloca. 133 Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Os movimentos executados sempre interagem com o objeto, é uma movimentação um pouco acelerada no ritmo da música que lembra um samba, utiliza contrações de corpo inteiro, alongamentos, movimentos curtos de pernas e braços juntos de forma assimétrica, movimentos em que abre a maloca e visualmente lembra um pássaro (fig.24). A iluminação também é focalizada com um vermelho e ambar, na sequência a intérprete é posicionada dentro da maloca, a música diminui e temos mais um black out. Com relação à cena da figura 24 Yara (2014) afirma que se reporta ao espaço de reclusão da mulher indígena em seu rito de passagem durante a menarca, que é um espaço que da margem para ela sonhar, aprender e se preparar para um casamento, a vinda dos filhos. Para a coreógrafa remeteu a uma espécie de voo, onde a maloca se transforma assim como a menina moça, ora a maloca é um pássaro, uma saia, uma rede, asas, uma espécie de brincadeira onde o personagem sorri e apesar da música utilizada nessa cena ser indígena ela lembra um samba, com um ritmo agitado e ritmado. Fig. 24 Yara na 3ª cena de “Rito de Passagem com o objeto cênico nomeado de maloca, referência ao momento de reclusão e aprendizagem da menina moça. 134 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. A coreógrafa parece fazer uma forte relação com a infância em que temos todo um mundo de brincadeiras e sonhos que ficará para trás e o que será esperado dessa menina daquele momento em diante após o aprendizado mais direcionado para as atividades e deveres de uma mulher, como um voo para a vida adulta. Nas movimentações aéreas onde a intérprete busca apresentar uma maior leveza nos movimentos aparecem com maior clareza os traços da técnica de dança clássica dentre as quais cito a posição dos pés na ponta com o dorso mais proeminente (flexão plantar), a postura mais característica clássica com o corpo bem ereto e alongado e o trabalho de braços contribuindo para a leveza dos movimentos nessas cenas. Essa cena apresenta uma movimentação aparentemente mais livre, mas percebemos que a intérprete propõe uma brincadeira tanto com relação à música, ao tempo de execução da movimentação, a interação com o objeto, com os movimentos hora mais contidos, hora mais expansivos. Pode ser que um ponto que facilite e mantenha a impressão de leveza seja além da base clássica a intencionalidade e o uso do lúdico pela intérprete, assim como o domínio e a tranquilidade por dominar no seu corpo as técnicas utilizadas na cena, dentre as quais a clássica, do rapel e moderna. Na terceira cena temos o terceiro figurino que é um casaquinho em furta-cor nas cores amarelo e laranja (fig.25) que junto com o objeto cênico proporciona um efeito visual que chama a atenção para a cena e lembra a figura de um pássaro, Yara relata que nesse figurino a 135 inspiração principal do artista adroaldo foram imagens de pássaros, foi nessa peça do figurino que o artista teve maior liberdade de criação e a que mais se aproxima de seus trabalhos artísticos, vindo a ser um ponto de referência da marca do artística. fig.25 casaquinho de malha furta-cor. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. A quarta cena tem início com uma projeção com imagens de óvulos sendo fecundados por espermatozóides, Yara aparece por detrás da tela branca vazada que faz parte do cenário da obra (fig.26), e uma imagem de ultrasom de um útero é projetada priemeiramente no canto direito da tela na visão de quem está no público, depois na lateral direita e no centro da tela já praticamente no tamanho da tela. Fig. 26 Yara por trás do cenário tela branca vazada. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. 136 Na cena da figura 27 Yara utiliza dois tecidos de malha que tem uma das pontas presas ao teto, seus movimentos nessa sequênncia são um pouco contidos, gira junto com o tecido, contrai todo o corpo e estende-o, movimenta os braços e as pernas como se estivesse caminhando de forma lenta. Na tela a imagem do ultrassom do útero (fig.27) em contraposição a imagem da intérprete se completam como se o público estivesse vendo o feto dentro do útero da mãe, a música apresenta uma sequência sonora que se repete contribuindo para a imersão da intérprete e da platéia nesse ambiente recluso, íntimo. Fig. 27 Yara na quarta cena referência a maternidade. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa Um detalhe é que ainda durante a movimentação da intérprete no tecido as assistentes já baixam a corda que comporá a próxima cena no meio do palco para que a mesma ficasse na altura adequada. Após o black out a intérprete sai por um dos espaços da tela e encaixa o equipamento da cadeirinha que está usando com o da corda virando de costas para o público, a intensidade da luz diminui novamente, começa a quinta cena aparecendo vagamente a intérprete se 137 movimentando ainda de costas para o público até que um foco de luz branca é posto sobre ela. Com o foco na intérprete, a movimentação começa com ela realizando um giro sentando e cruzando as pernas, enquanto gira é baixada a uma altura perpendicular ao chão, apoiando algumas partes do corpo no solo, utilizando diferentes apoios e torções, com algumas contrações, alongamentos do corpo inteiro e de partes do corpo e diferentes giros principalmente com as pernas flexionadas. Na sequência (fig.28) realiza deslocamentos circulares primeiramente em um espaço reduzido e depois se expandindo até onde a corda permita, no início ainda próximo ao solo e depois no espaço aéreo chegando a uma boa distância do térreo. Fig. 28 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa prox. Ao solo (2008). Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Essa sequência coreográfica (fig.28, 29 e 30) é uma das mais poéticas da obra, a intérprete criadora consegue mesclar a técnica de dança moderna com a técnica do rapel de tal forma que elas se completam e apesar de ser possível reconhecer ambas as técnicas elas se tornam algo diferente. Segundo a coreógrafa essa foi a primeira experimentação de movimento para a obra, talvez a dança aérea proposta pela coreógrafa após pesquisas teóricas e práticas esteja visível de forma mais clara nessa sequência coreográfica dessa cena que se reporta ao ritual de passagem masculino da etnia Baniwa. 138 A sequência de movimento que começa na posição de pé depois perpendicular ao solos, volta para a posição de pé no momento em que a Yara corre em círculos chegando até o momento em que as assistentes a elevam e ela continua realizando os movimentos de correr no espaço aéreo (fig.29), mas a posição do corpo muda ficando quase totalmente na horizontal como se estivesse deitada. Nesse momento do voo o foco na intérprete é retirado e abrem dois focos com tonalidade vermelha ao fundo, um de cada lado do palco. Fig. 29 Yara na quinta cena referência ao ritual de iniciação Baniwa no espaço aéreo (2008). Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Os círculos do giro vão se fechando conforme a intérprete varia sua movimentação até o momento em que as assistentes baixam-na novamente na altura perpendicular ao solo (fig.28,30), nesse momento a intérprete usa os apoios diferenciados com torções ainda girando, impulsiona novamente o giro e se coloca em uma posição de torção fazendo pequenos movimentos com o corpo até que as assistentes a sobem um pouco mais enquanto a música vai finalizando, a luz diminuindo a intensidade até o black out . 139 Fig. 30 Yara na quinta cena de “Rito de Passagem” com um figurino a mais o vestido de algodão (2009). Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Segundo a coreógrafa, é esta cena a qual se refere ao ritual de passagem Baniwa masculino, em que usam um chicote para dar lambadas nas pernas, braços e costas dos meninos e homens e após as lambadas o pajé lhes da de forma breve um conselho que o ajudará a se preparar para os próximos passos em sua vida. Yara relata que durante o processo de criação e produção de “Rito de Passagem” na cena em que se reporta ao ritual de iniciação masculino Baniwa, que ela coloca como uma cena que transcende, de iniciação a algo, tem uma referencia ao chicote do ritual Baniwa. A intérprete se encontra presa pelo boldrié (cadeirinha) no espaço central do palco a pouca distância do solo e na movimentação de forma discreta a referência às chicotadas são feitas com os braços batendo nas costas quando ela está na posição de costa para o público, os giros estão relacionados à questão de voar de transcender. A coreógrafa ressalta que é uma abstração de tudo o que pôde ver e perceber relacionado ao ritual de iniciação masculino Baniwa Pudali, no período da pesquisa de campo na comunidade Pana-Pana, onde os indígenas fizeram uma representação do ritual, todos os membros da comunidade do sexo masculino participavam desse ritual até mesmo as crianças recebiam as chicotadas. Essa comunidade é uma das poucas que preservam as flautas sagradas guardadas dentro do rio e quando vão fazer o ritual vão buscá-las e voltam já tocando, nessa parte do início do ritual há uma crença que as mulheres não podem ver e todas inclusive se tiver alguma visitante e mesmo um indígena que não seja da etnia vão para um lugar distante, no caso foram para um morro, aguardaram até serem chamados depois que os homens guardam as flautas, só lhes é possível ouvir o som delas. 140 A partir desse momento todos se reúnem e os meninos e os homens fazem fila e de um por um levantam os braços e levam chicotadas com um chicote feito com uma palha de palmeira trançada e depois o pajé dá um conselho para quem foi chicoteado, parece ser um processo educacional como um alerta para as fases futuras. Muller (2004) que estudou alguns rituais da etnia Asuriní, apresenta algumas observações a respeito da existência de semelhanças entre os rituais e os trabalhos artísticos performáticos como a utilização de um local que serve como palco para o que será realizado, o uso de objetos que compõem um cenário, a presença dos performers (pessoas que realizam a performance) das pessoas que estarão realizando o ritual ou espetáculo, o uso de roupas/figurinos apropriados para a ocasião e a própria transcendência, entrega, concentração no que se está fazendo como ocorre em ambos os casos. A coreógrafa parece ter buscado trazer para a obra uma referência ao ritual indígena Baniwa partindo de uma essência que se remeta ao sagrado, ao transcender, o uso de movimentações em círculo pode ser uma forma simbólica de se reportar ao sagrado, assim como a repetição de movimentos. O ritual aqui referenciado não é um ritual do cotidiano e sim um realizado em ocasiões específicas dentro da etnia Baniwa. Nas (fig.28 e 29) da apresentação realizada em 2008 no Laboratório Contemporâneo a intérprete se apresenta somente com a calça de malha, nas demais apresentações, apartir de 2009, (fig.30) ela está com o vestido (fig.31) criado como uma alternativa para que o equipamento do rapel não ficasse tão aparente. O vestido de tecido de algodão puro envelhecido, tingido com chá e café também em tons de marrom. Segundo a coreógrafa como a cena em que usa o vestido se reporta a um ritual, a uma transcendência e ela estaria usando o Boldrié (cadeirinha), não queria deixá-la a mostra. A música é instrumental com um ritmo mais lento, há um foco de luz na intérprete e o tom geral é azul, vermelho e ambar . 141 fig.31 vestido de algodão marrom. Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. No início da sexta cena da obra a intérprete está em pé no canto direito do palco de quem olha da posição da plateia, ainda com quase todas as luzes do palco apagadas , quando a intensidade da luz vai aumentando ela fica em posição de cócoras, coloca as mãos dentro de um cesto de palha e mexe o que parece ser uma espécie de rede de juta com sementes que fazem som ao se chocarem umas com as outras, a movimentação se reporta a figura da ribeirinha/indígena lavando roupa (fig.32). Fig. 32 Yara na sexta cena referência a maturidade. 142 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Após fazer alguns movimentos tirando e devolvendo o objeto para dentro do cesto de palha, a intérprete o arremessa um pouco acima da linha dos seus ombros e o apara com os braços passando a olhá-lo como se o examinasse, o esfrega na coxa direita com pressão nos movimentos de cima para baixo e vai se ajoelhando até o chão. Passa o objeto para o chão, primeiro o puxa para junto de si, depois o leva de um lado para outro no chão e volta a esfregá-lo na coxa direita como se o estivesse lavando, então o dobra e enrola e o coloca em seu ombro direito. Ela caminha desenhando um círculo pequeno retornando quase para o mesmo lugar, retira o objeto do ombro e o joga de um lado para outro do corpo batendo com ele nas costas até parar com ele a frente do corpo e sacudi-lo algumas vezes como se fosse uma roupa, então ela o veste como uma saia (fig.33) ajeitando-o ao seu corpo e o amarrando um pouco abaixo da cintura. A saia de barbante trançado com detalhes de cascas de sementes de seringueira (fig.33) é o último figurino que a intérprete usa na obra. As sementes utilizadas nesse figurino são muito utilizadas por algumas etnias indígenas em rituais, celebrações, como instrumento de percussão, pois produzem som ao se chocarem umas contra as outras. É possível ver durante algumas danças de etnias indígenas essas sementes amarradas nos tornozelos contribuindo com a marcação rítmica. 143 Esse figurino além de ser utilizado como objeto cênico no início da sexta cena também o é como instrumento de percussão. Parte da sequência coreográfica desta última cena foi criada a partir da ideia de como ele poderia interferir/colaborar na cena, partindo de experimentações das possibilidades de uso deste. Fig.33 saia de barbante última cena de “Rito de Passagem” Fonte: arquivo pessoal Yara Costa. Na sequência da última cena Yara começa a caminhar em círculo novamente parando em frente ao cesto, se agachando na posição de cócoras para pegá-lo, se curva pega outro cesto e caminha para um pouco depois do centro do palco, não há som durante essa parte da cena. 144 Yara para e se agacha novamente, começa a arrumar os cestos sendo que o elemento surpresa é que não são apenas dois cestos e sim vários um dentro do outro, ela parece verificar se estão como queria, se levanta e volta para o lado direito. A luz diminui a intensidade, o foco fecha e já abre o foco do canto direito novamente, isso acontece ao som de uma música mixada com vozes fazendo sons e com um instrumento indígena característico bem marcado confeccionado com sementes de seringueira as mesmas sementes que estão na saia. A intérprete se agacha na posição de cócoras mais uma vez e pega um cesto grande de tal forma ajeitando-o ao ombro como se estivesse carregando algo muito pesado, o que me remete aos carregadores dos mercados que transportam mercadorias pesadas nos ombros, nas costas, na cabeça. Novamente ela retorna para o outro lado do palco um pouco mais ao meio, coloca o cesto junto ao peito balançando o corpo e o cesto ao mesmo tempo de um lado para o outro, gira o cesto, agacha-se, gira o cesto no chão, vira-o de cabeça para baixo deixando cair mais um, puxa outro e distribui os cestos no espaço, mas agora com a abertura voltada para baixo. Retorna ao lado direito pega mais um cesto o coloca junto ao corpo com a abertura voltada para a barriga, volta para o outro lado girando com o cesto na barriga, para e se balança novamente com movimentos mais curtos que a primeira vez quase como se estivesse tremendo, os distribui no espaço rapidamente e repete o percurso. O foco continua do lado esquerdo e meio do palco, ela pega o restante dos cestos arrastando o maior que é o mesmo da entrada da primeira cena. Da uma volta pela frente do palco e para do lado esquerdo, no braço direito carrega um cesto menor com dois cestos dentro e com a mão esquerda segura a alça do cesto maior. Ao parar tira com o pé esquerdo (fig.34) um cesto que está dentro dos outros no lado direito do corpo, em seguida sacode os cestos para que caiam no chão, roda com um só braço e movimentando todo o corpo para ajudar a impulsionar o último que restou até jogá-lo para cima de sua cabeça, e este girando passa por sua cabeça e braço antes de cair no chão. Fig. 34 Yara na sexta cena interagindo com os objetos cênicos. 145 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Ainda na mesma cena Yara da uma volta completa no sentido anti-horário ao redor dos cestos no chão arrastando o cesto maior com a mão esquerda parando do lado esquerdo do palco e dos cestos, fica por um tempo parada com a respiração bem acentuada até a música mudar um pouco, apresentando um instrumento com som mais grave junto com a marcação do instrumento de sementes, ela caminha novamente em círculo arrastando o cesto (fig.35) e para no meio do palco ainda atrás de alguns cestos. Fig. 35 Yara na sexta cena de “Rito de Passagem”. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. 146 A intensidade da luz diminui e mais um vídeo é projetado na tela ao fundo, agora com imagens de guerras, no momento em que aparece a projeção de uma grande explosão a intérprete caminha para trás da tela passando pelo meio e se colocando em uma posição de cabeça para baixo, apoiando braços e ombro no chão deixando as pernas flexionadas e voltadas para cima, permanece assim por um tempo, se levanta e sai detrás da tela se posicionando do lado esquerdo do palco ainda em frente à tela. Seguindo com a cena imagens de fractais são projetadas e a intérprete executa movimentos de balançar o corpo de um lado para o outro de forma frenética, para por um momento com a cabeça abaixada e de forma lenta levanta os braços até aproximadamente a altura dos ombros quando executa uma movimentação rápida com os braços e passa-os pelo corpo e cabeça. Nesse momento deixa o braço esquerdo junto ao corpo enquanto o direito passa rapidamente pela cabeça várias vezes, a cabeça é movimentada para baixo e para frente até que a intérprete vire de costas para o público e comece uma sequência de movimentos rápidos com os braços seguidos pelo balançar quase frenético do corpo. As projeções agora são de queimadas, o foco está apenas nos cestos no chão e o som que se ouve é apenas o das sementes da saia da intérprete ao se chocarem umas com as outras devido à movimentação realizada. As projeções cessam por um momento, fica apenas o foco nos cestos e o som das sementes que a intérprete produz ao se movimentar, aparece mais uma projeção de guerra rapidamente. O foco vai diminuindo até escurecer o palco por completo, o som produzido com o movimento pode ser ouvido por mais um tempo na escuridão até parar terminando assim a apresentação da obra. As luzes gerais são ligadas e a Intérprete criadora Yara Costa junto com as integrantes da Índios.com Cia de Dança na época Rosilene Rosa e Carol Santa Ana agradecem ao público presente. Fig. 36 Agradecimento de uma parte da equipe que atuou em “Rito de Passagem”. 147 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Para a apresentação da obra segundo a própria coreógrafa as duas pessoas que atuam nos bastidores do palco fazem a dança acontecer juntamente com ela, devido à manipulação das cordas feita por elas para a realização da dança aérea, pois devem conhecer bem cada cena, sequência de movimento, música e propostas das cenas para estarem afinadas e conectadas para tudo acontecer no tempo certo. O vídeo registro da obra do ano de 2008 foi escolhido para análise devido a ser o registro de uma das primeiras apresentações, em que a obra está em sua forma mais original, logo após a finalização da produção, sem sofrer as pequenas alterações após inúmeras apresentações principalmente com relação a execução do movimento. Levando em conta que a dança é uma arte cênica, portanto uma arte do tempo, em que uma apresentação nunca será exatamente igual a anterior. A obra foi apresentada diversas vezes com poucas mudanças, uma das maiores foi o acréscimo do figurino que é o vestido usado na quinta cena, em que há a referência ao ritual de passagem Baniwa. As diferenças de uma apresentação para outra estão relacionadas com a performance da intérprete, as adaptações necessárias ao local da apresentação, normalmente envolvendo o uso do espaço, iluminação e sonorização, um exemplo seria uma apresentação no espaço de um teatro como o Teatro Amazonas, e outra em um espaço cultural em um prédio antigo adaptado para receber diversos segmentos artísticos. 148 Uma apresentação de destaque da obra ocorreu em 2013, no ano do projeto “Brasil em Portugal” tendo como intérprete a própria coreógrafa, quando a companhia também levou para apresentar nesse evento a obra “Rastros Híbridos” que enfoca questões culturais, mas direcionadas para a cultura indígena da Guiana, enfatizando territorialidade/espacialidades, sem o uso da dança aérea, mas, dando continuidade as pesquisas artísticas com a temática cultural indígena. A obra “Rito de Passagem” marca uma mudança no trabalho da coreógrafa e da Índios.com Cia de Dança devido a juntar a pesquisa aérea com a pesquisa voltada para a cultura indígena. Reporta-se a uma cultura cuja ligação com a terra, com a natureza é forte, mas, apresenta uma forma particular de olhar para a cultura local, transcendendo o espaço usual, levando o olhar do público para outras possibilidades sem deixar perder o contato com a raiz cultural. A coreógrafa faz isso com sensibilidade, destreza, harmonia, entrega, apresenta a mulher em toda a sua completude nas diferentes fases da vida, em seus ritos de passagem. Yara nos mostra uma dança para refletir, questionar, apresenta a condição de ser mulher, de ser indígena, as contribuições dessa cultura para a nossa sociedade local, as práticas corporais na floresta e na cidade, momentos de sonho e realidade em que o público muitas vezes pode sentir vertigem ao assistir essa dança que traz o uso de tecnologias multimídias e das diferentes práticas e técnicas corporais de forma equilibrada, ultrapassando os limites espaciais naturais do ser humano. Percebemos na pesquisa que o processo de criação de uma obra de arte envolve experiências de vida do criador desde muito antes de ele pensar na possibilidade de criar a obra. Está relacionado com suas referências e experiências acumuladas durante sua existência. São situações, momentos, sentimentos, aprendizagens, referências registradas no inconsciente e consciente que em determinado momento aparecem em destaque para o criador, seja ajudando a responder questionamentos, completando significados, contextos, criando links entre temáticas similares ou distintas, podem servir como fonte de inspiração, contribuem para o insight do criador. Para a criação de “Rito de Passagem”, Yara trás referências de diferentes momentos de sua vida, desde suas referências e lembranças da infância com o contato com a natureza, a mistura étnica, a convivência com sua mãe e irmãs. Da dança traz para a obra o conhecimento dos diferentes estilos de dança que praticou, estudou e diversas formas de ver 149 e vivenciar a dança, também trouxe referências dos esportes radicais que praticou e do circo, enfim, as transformações físicas e psicológicas que viveu até o momento que concebeu a idéia da obra, a produziu e a interpretou. Cada obra reflete seu criador de alguma forma, em algum ponto desta, a criação acontece quando o criador já está maduro ou preparado o suficiente para realizar aquele trabalho. Caso o artista tenha a ideia e perceba que não é o melhor momento para materializá-la este tende a armazená-la e retomá-la em um momento mais oportuno. No caso da obra “Rito de Passagem” a criadora apresenta um grande número de referências advindas de diversos campos artísticos, esportivo, tecnológico, circense, antropológico. A obra se reporta a mudanças e transformações na vida da mulher e a criadora trouxe referências de diferentes momentos de sua vida como se estivesse marcando uma grande mudança, revendo tudo para traçar caminhos novos. E a obra marca essa mudança onde a coreógrafa passa a focar suas pesquisas artistas em suas raízes, com essa visão e conhecimento antropológico e que para a ela pode ter sido uma espécie de rito de passagem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os aspectos relacionados ao processo de criação como as referências utilizadas pela artista, a forma como apreendeu as informações e as transpôs para a linguagem da dança, os elementos representativos dos ritos de passagem da mulher, a movimentação cotidiana da mulher indígena observada na composição da performance de dança contribuíram para a organização e composição da obra e das cenas. Foi através desses elementos principais que a artista se referiu ao regional e dialogou com as técnicas de dança escolhidas. Todos os elementos postos em cena são signos que representam um contexto sociocultural e contribuem para transportar o espectador ao ambiente de referência, e transmitir a informação proposta pela criadora de forma explícita ou implícita. Através da pesquisa realizada por meio de entrevistas e dos documentos de processo de criação da obra, foi possível perceber alguns processos de semiose ocorridos, e destacamos alguns momentos específicos como: a referência à subida no açaizeiro para apanhar o fruto, 150 que na cena a artista faz ao subir em uma corda no plano aéreo sem contato com outra superfície e utilizando a técnica circense do tecido, o movimento de subida na corda se assemelha ao de subida na árvore apesar das técnicas utilizadas serem diferentes. Também há a referência à reclusão da menina moça na maloca que na obra é apresentada de forma lúdica com símbolos de liberdade como um pássaro, brincadeiras e a imaginação da criança que mesmo estando só consegue brincar e sonhar. Na quinta cena que faz referência ao ritual de passagem masculino Baniwa é possível ver um entrelaçar das técnicas, a busca por algo novo, próprio. A coreógrafa Yara apresenta uma interação com diferentes tecnologias relacionadas à informação/comunicação (técnicas e equipamentos de filmagem, vídeo, programas de edição, fotografia digital, projeção de imagens, gravação de voz, equipamento de som), práticas esportivas (equipamentos para atividade esportiva rapel e de segurança), atividades artesanais e artísticas diversas (cestaria, confecção de figurino, equipamento de iluminação, utilização do tecido para atividade circense, materiais e confecção de cenário). Todos esses recursos tecnológicos, equipamentos e práticas corporais se complementaram, mesmo sendo um trabalho de composição com uma grande quantidade de informação, referências e até mesmo questionamentos. Por mais que existam parcerias com diferentes profissionais, o artista precisa ter um mínimo de conhecimento para criar e produzir utilizando essas tecnologias de forma que venham a somar com o seu trabalho. E no caso da coreógrafa Yara, ela buscou se aprimorar em uma técnica esportiva e pesquisar sobre a dança utilizando essa técnica para criar uma maneira mais pessoal de fazer sua dança. Com relação às práticas corporais diferenciadas temos a técnica do rapel que com certa influência das acrobacias circenses e também da ginástica rítmica levaram a pesquisa prática para a dança aérea que se insere em dança contemporânea, além da técnica circense do tecido e as práticas corporais cotidianas dos povos indígenas. Uma característica dos trabalhos artísticos pós-modernos ou contemporâneos na dança é o uso da improvisação, onde o artista utiliza seu repertório gestual que é recorrente, mas tentando manter um nível de consciência proprioceptiva que o ajude a buscar algo a mais que seja único para aquele trabalho. A coreógrafa traz para a cena diversos elementos regionais, dentre os quais, os cestos de trançado, a saia utilizada pela intérprete que parece uma rede de dormir indígena e a 151 movimentação que em diversos momentos é executada no espaço aéreo e em outros em espaço térreo e mesmo em plano baixo onde faz uso, por exemplo, da posição de cócoras que ainda é muito utilizada principalmente pelos anciãos e pelas crianças indígenas. Outra referência é o ato de caminhar logo no começo da obra que traz uma riqueza de detalhes de posturas corporais assim como usos e costumes que as mulheres amazônicas apresentam estejam elas no perímetro urbano ou não. Yara começa a cena caminhando na floresta carregando um grande cesto utilizado para transportar alimento e também apresenta mulheres caminhando na cidade carregando diferentes tipos de bolsas utilizadas para levar objetos pessoais diversos. “Rito de Passagem” é uma obra de dança rica em detalhes onde a cultura regional é exaltada, mas permeada pelo novo, pelas tecnologias, é um tempo presente, contemporâneo, uma realidade atual onde as diferentes referências, culturais se interconectam, se mesclam para quem sabe surgir algo novo. Yara traz para cena diversificadas referências e inquietações que se reportam desde as heranças culturais que ainda perduram, as que se mesclaram e deram origem a novas, até as pesquisas mais atuais da arte contemporânea com relação ao uso de suportes e técnicas diversas e a possível fusão entre elas. E o momento de transição são os ritos de passagem apresentados na figura da mulher em seus diferentes momentos da vida e que atualmente começa a ser vista pela sociedade com outro olhar, com mais respeito pelas suas conquistas crescentes, mas sem perder a sua essência. Os processos criativos são diferentes para cada criador apesar de existirem pontos em comum como a utilização do acúmulo de informações aprendidas e vividas ao longo da existência, a troca de informações com o ambiente e todo o contexto sociocultural. Mas também são únicos porque as pessoas não são iguais umas as outras, por mais que vivam experiências similares possuem personalidades diferentes e apreendem as coisas de formas distintas, assim como as interpretam de formas diferenciadas. As práticas corporais podem ser iguais em uma determinada sociedade ou comunidade, os corpos dos seres humanos podem ser semelhantes, mas cada um tem sua peculiaridade seja de cunho genético ou não. E na sociedade pós-moderna cada vez mais assim como nas artes tudo tende a se misturar, a somar, a transformar. Estamos reconhecendo a simplicidade e a complexidade das coisas e que tudo está de certa forma interligado, as ciências assim como as artes estão cada vez mais se permitindo 152 avançar e ir além. Talvez seja uma questão de sobrevivência ou apenas um maior despertar da consciência. Na obra pesquisada, percebemos que a artista se propôs a ir além dialogando com o tradicional que são as práticas corporais do cotidiano seja da sociedade indígena ou urbana e com o pós- moderno com as diferentes técnicas de dança, esportiva e circense e as tecnologias inseridas, tudo dialogando entre si, apresentando ações, situações semelhantes em parte, e diferentes principalmente em relação ao contexto em que são realizadas e formas de execução. Na obra“Rito de Passagem” as práticas corporais do cotidiano indígena e de diferentes campos que envolvem o movimento foram resignificadas mostrando o olhar da coreógrafa sobre esse recorte cultural, com novas perspectivas espaciais e de movimento. A obra apresenta o aspecto global no início da primeira cena, quando mostra a mulher no ambiente urbano, as tecnologias, técnicas de dança, esportivas e circences. Já o aspecto local é mostrado nos ritos de passagem, nas práticas corporais indígenas, nos objetos cênicos, cenário, figurinos e na própria figura da intérprete criadora, permeada por todas as suas referências vividas e apreendidas ao longo de sua trajetória. 153 REFERÊNCIAS AGUIAR, José Vicente de Souza. Manaus praça, café, colégio e cinema nos anos 50 e 60. Manaus: Valer, 2002. ASSMANN, Hugo. Paradigmas educacionais e corporeidade. 2ª ed. Piracicaba: Unimep, 1994. BRETON, David Le. A Sociologia do Corpo. 2ª ed. Tradução: Sonia M. S. Fuhrmann. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 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Esbelta palmeira em solo fértil es tu, Urucuri. Alegres pântanos e tão profundos escondedouros de ricos sáurios, mas teus quelônios em extinção. E o que te resta? Essa tua fauna ameaçada no pastiçal em teus barrancos, em tua floresta, em teus riachos, pelos teus lagos, em toda terra, virá um tempo e já não são mais. Esbelta palmeira em chão fecundo ontem e hoje és tu, Urucuri. (José Alberto Neves Urucurituba, Abril 1989, Reproduzido por R. Marques em: 24/08/2012). Fig. 37 Vista aérea da cidade de Urucurituba/AM. 160 Fonte: http://www.portalamazonia.com.br Nascida no Médio Amazonas, cercada por vasto rio e generosa beleza natural da biodiversidade amazônica, Yara Costa dos Santos nasceu no ano de 1969 na comunidade de Santa Isabel cujo município na época era chamado de Urucurituba Velho. Hoje é chamado de Vila Augusto Monte Negro ou apenas de Urucurituba. O município tem uma área aproximada de 2.903,68. Km², uma população de 18.265 habitantes (fonte: IBGE), está localizado no médio Amazonas, é a 8ª sub-região do Amazonas e fica a 207,51 km de Manaus (fonte: atlas de desenvolvimento humano PNUD). Fig.38 Localização geográfica do município de Urucurituba no mapa do Amazonas. Urucurituba Fonte:http://www.silascamara.com.br/index_municipios.php?var=municipios_ver&id=Urucur ituba O município foi denominado de “Urucurituba” que significa palmeiral e provém de “Urucuri”, uma espécie de palmeira que existia em abundância nas proximidades do 161 município. Urucuri e Tyba palavra de origem Tupi que significa grande abundância, quantidade. Sabe-se que entre as etnias que primeiro habitaram a região onde hoje é o município de Urucurituba estão os índios Mundurucus Mavés. O município de Urucurituba foi criado pela lei nº 1118 de 27 de abril de 1895, seu território foi desmembrado do município de Silves e Urucará. Hoje existem algumas manifestações culturais que movimentam a cidade de Urucurutuba, dentre as quais o Aniversário do Município comemorado no dia 24 de janeiro, a Festa do Cacau e Feira Cultural realizada de 01 a 03 de maio, Festa de São Benedito de 25 a 27 de julho e o Festival do Peixe Liso que se realiza no último final de semana do mês de agosto. Yara nasceu em meio a uma tradicional e grande família de nove irmãos, sete mulheres e dois homens, sendo a penúltima das mulheres, suas recordações sobre o período em que morou no município lhes são apresentadas apenas a partir das histórias contadas por sua mãe e irmãs, pois quando saiu da cidade era muito jovem. Yara provém de uma mistura étnica entre portugueses e indígenas, sendo que seu pai apresentava maior descendência indígena e sua mãe maior descendência portuguesa, mas, não há o conhecimento por parte da coreógrafa ou da família sobre qual etnia indígena descende. Fig. 39 Residência de infância da coreógrafa em Urucurituba. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Fig. 40 A coreógrafa em Uricurituba na infância). 162 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Fig. 41 A coreógrafa na infância junto com sua família. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Quando a família se mudou para Manaus Yara tinha apenas três anos de idade, e passaram a residir no bairro de Petrópolis. Depois a família foi morar no bairro do Japiim onde sua mãe reside até hoje. Sua formação escolar se deu no ensino público e federal, estudando em escolas próximas de onde morava até entrar na Escola Técnica Federal do Amazonas (ETFAM) hoje o Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e atende apenas ao ensino médio técnico, Yara cursou do sétimo ano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio nessa escola. Suas irmãs revelam que Yara sempre gostou de dançar, brincava de criar coreografias junto com elas, era uma criança cheia de energia. E que fora na ETFAM que teve seu primeiro 163 contato com a Ginástica Rítmica (GR) e através desta com a dança. Nesse período estava com treze anos de idade e não demorou a vir a integrar a equipe de GR da ETFAM com a professora Maria Antonieta, permanecendo pelo período de quatro anos até o final do ensino médio. Fig. 42 Yara à frente com o Grupo de GR da ETFAM. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Antes de finalizar o ensino médio Yara teve dúvidas sobre qual curso tentaria o vestibular, pois sabia que era importante pensar na família, e um curso que oferecesse uma melhor estabilidade financeira seria melhor. Ao conversar com a coordenadora da equipe de GR sobre o assunto tomou a decisão de cursar engenharia elétrica, pois estava formando em eletrônica na ETFAM. Ao tomar conhecimento da grande concorrência para o curso de engenharia elétrica Yara resolveu então, prestar o vestibular para estatística na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), vindo a adentrar na universidade no ano de 1989, depois do primeiro período estudando estatística pediu reopção para Engenharia Elétrica. Foi na UFAM onde conheceu o Grupo Experimental de dança da Educação Física GEDEF coordenado pela professora Chang Yen Yin permanecendo por um curto período de tempo como intérprete, coreógrafa e monitora. Em uma das apresentações do GEDEF no Fest Dance organizado pelo grupo Espaço de Dança do Amazonas (GEDAM), coordenado por Conceição Souza, conheceu um dos integrantes do GEDAM e passou a fazer aulas com o grupo no Teatro da Mineração no bairro 164 da Compensa, no qual fica hoje a Prefeitura de Manaus, também teve uma breve participação no grupo, integrando poucos trabalhos. Pouco tempo depois, Yara assistiu a uma apresentação da coreografia “Mulheres de Pequim” da qual afirma ter apreciado muito, do grupo de dança Renascença dirigido pelo coreógrafo Jorge Kennedy. Após a apresentação Yara conversou com Kennedy e pediu para fazer aulas com o grupo, desde então passou a ser uma das integrantes e ficou pelo período de 1991 a 1994. Quando o diretor Jorge Kenedy assumiu a coordenação de arte no Serviço Social do Comércio (SESI), levou o grupo para o espaço, e este passou a se chamar Cia de dança do SESC. Fig. 43 Yara durante o tempo em que integrou o GEDAM e Renascença. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Fig. 44 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM e Renascença. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. 165 Fig. 45 Yara durante o tempo em que integrou o GEDEF, GEDAM. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Nesta fase Yara teve oportunidade de atuar não apenas como intérprete, mas também de contribuir criativamente para a Companhia, o que ajudou em sua decisão de estudar composição coreográfica no curso de pós- graduação. Em 1995 assim que se formou em Engenharia elétrica, pouco antes de colar grau, recebeu o aceite para concorrer a uma vaga para o curso de pós- graduação na Universidade Federal da Bahia (UFBA) teve que viajar para fazer a prova de seleção e permaneceu lá até sair o resultado, durante esse período ficou hospedada na casa de uma das irmãs mais velhas que reside na Bahia. Como ainda não havia colado grau, pediu para uma das irmãs que reside em Manaus para representá-la no evento, vindo então, a saber, que havia se formado com mérito no curso em que a grande maioria dos alunos era homens. Sua irmã Solange que a representou relata que teve que ir a frente da turma duas vezes sem saber o que dizer pelo reconhecimento do mérito de Yara no curso, o que a faz recordar sempre esse momento em que ajudou a irmã que tanto gosta de dançar. Após verificar sua aprovação nos exames para o curso de pós-graduação, Yara saiu da casa da irmã para dividir um apartamento com algumas colegas, conseguiu uma bolsa de estudos algum tempo depois, na época o valor da bolsa era menor que o valor de um salário mínimo, mas ajudou-a bastante no período em que permaneceu na Bahia. 166 Yara relata que o mais difícil nessa época de sua vida foi à distância da família, também estranhou algumas matérias logo que começou a estudar por nunca ter tido um contato anteriormente com elas, dentre as quais a de filosofia e estética. Outro ponto que ressalta ter sido difícil foi o processo de transformação de intérprete para coreógrafa, pois apesar da experiência que teve com alguns grupos em Manaus, atuava mais como intérprete do que como criadora. Somente quando chegou à metade do curso de pós-graduação em Composição Coreográfica é que teve um maior contato com as atividades artísticas e grupos da universidade, vindo a integrar o grupo da professora da graduação Silvana Martins, vindo a participar em um dos trabalhos do grupo em uma apresentação que se realizou na Praia do Forte nas ruinas de um forte da cidade. Dentre as técnicas novas que pode conhecer durante o curso estava a de contato improvisação que estudou com um professor americano e o Butô que é bastante conhecida no teatro. Na época em que estudou na Bahia, havia em alguns dos teatros da cidade a oportunidade de assistir aos ensaios dos espetáculos que estavam em cartaz, assim como uma facilidade para ter acesso a informações, estimulando a pesquisa. Nessa fase desenvolveu seu lado de pesquisadora e buscou entender melhor seu próprio desenvolvimento na transformação para coreógrafa. Fig. 46 Fotos de uma performance durante o curso de Pós-graduação em Dança na Bahia. 167 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Yara declara que ficou a dúvida, se trabalharia com dança ou engenharia. Voltou para o grupo do coreógrafo Jorge Kennedy, mas precisou trabalhar com engenharia para ter maior estabilidade e no ano de 1996 entrou na empresa GramCitel, ficando como responsável elétrica. Ainda no ano de 1996, Yara recebeu o convite do professor Rubem Cesar da UFAM de quem já havia sido bolsista, para trabalhar em um projeto do CNPQ como (pesquisador DTI) no assentamento Iporá em Rio Preto da Eva, para implantação de novas fontes de energias. Yara não se afastou da dança, continuou na Companhia de Dança do SESC fazendo aulas e se apresentando em espetáculos da Companhia. No ano de 1998 o Governo do Estado do Amazonas abril o edital para audição do Corpo de Dança do Amazonas (CDA), Yara se inscreveu e venceu a audição, vindo a integrar a primeira formação do CDA. E por um período de seis meses conseguiu conciliar o trabalho de engenheira com o trabalho da dança, mas foi vencida pelo cansaço, escolhendo permanecer com a dança. Fig.47 Audição para o CDA 168 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Fig.48 No Teatro Amazonas após a apresentação do espetáculo “Mandala” junto com o diretor do CDA na época Jofre Santos. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Nos anos em que integrou o elenco do Corpo de Dança do Amazonas, pôde aperfeiçoar a sua técnica de dança clássica e moderna, o professor búlgaro Ivo Karaqueorquiev contribuiu muito com suas aulas de balé clássico para a evolução de sua 169 técnica, e o diretor e coreógrafo Jofre Santos colaborou em sua formação como profissional da dança. Dois espetáculos marcaram a carreira da artista durante sua passagem pelo Corpo de Dança do Amazonas segunda ela própria, o primeiro foi o espetáculo “Xamã” e o segundo foi “Mandala”, devido à interação com coreógrafos externos e de nível internacional e a grande exigência técnica e musical, o que elevou o nível técnico dos intérpretes e da companhia. Ainda como integrante do CDA, Yara também atuou como assistente de coreografia e coreógrafa criando duas coreografias para o Corpo de Dança do Amazonas que foram “DUAL” em 2001 e “Quem te Conduz?” em 2003. No ano de 2001 foi criada pelo Governo do Estado do Amazonas a Universidade Estadual do amazonas (UEA) oferecendo os cursos na área de arte de música e dança abrindo a seleção para compor o quadro de docentes de disciplinas teóricas e práticas. Por pensar em outras possibilidades de viver da dança e encontrar novos caminhos, Yara prestou a seleção para a docência e no mesmo período prestou o vestibular para o curso de dança vindo a passar no vestibular com uma boa colocação no quadro geral. Cursou um semestre como aluna regular e logo em seguida foi chamada para lecionar as matérias práticas de dança clássica e moderna, Yara escolheu a docência e em seguida também passou a ministrar aulas de composição coreográfica. Yara permaneceu até 2004 atuando tanto no Corpo de dança CDA quanto na Universidade UEA, quando teve início o horário matutino do curso de dança havendo a necessidade de atuar nesse novo horário o que a levou a mais uma vez ter que escolher entre a companhia e a universidade. Decidiu por permanecer na universidade deixando de vez o Corpo de Dança do Amazonas. Mas, manteve contato com alguns colegas do Corpo de Dança, que se reuniram para criar coreografias e apresentar performances de dança na cidade. Nesse período o Governo do Estado do Amazonas estava apoiando a criação de empresas, companhias de teatro e dança, foi quando decidiu criar a Índios.com Cia de Dança onde atuaria como intérprete/criadora. Yara e seus amigos Helem Rojas e Marcelo Dantas viram uma atividade de esporte radical rapel acontecendo na Ponte do Bairro Educandos, que fica próxima ao teatro Chaminé na região central da cidade de Manaus, resolveram ir até o local da atividade conseguindo participar, sendo está a primeira vez que praticou o esporte radical rapel, Yara pegou o 170 contato do grupo que estava praticando rapel, era a escola de rapel AGAM (Anjos Guerreiros do Amazonas). Yara manteve contato com o grupo e buscou fazer o curso básico e avançado de rapel, vindo a participar com assiduidade das atividades do grupo e começando já nesse período a sua pesquisa em dança aérea, experimentando movimentos da dança durante as práticas de rapel que estavam sendo realizadas nessa época principalmente na Caverna do Maruaga no município de Presidente Figueiredo. Durante os treinos do grupo AGAM, uma colega norte americana que participava das atividades e treinos do grupo de rapel, ao ver o interessa de Yara em juntar as duas linguagens dança e rapel, comentou sobre o grupo Bandaloop que experimentava essas duas linguagens, instigando-a a pesquisar sobre o trabalho desse grupo e vindo a ser a primeira referência com relação a essa mistura de linguagens específicas, dança e esporte radical. Durante a pesquisa que fez sobre o trabalho do grupo Bandaloop percebeu que estava começando uma pesquisa com uma proposta semelhante. Fig. 49 Atividades do AGAM treino da coreógrafa no rapel. 171 Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Fig. 50 Atividades do AGAM e experimentações de dança da coreógrafa no rapel. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. A partir dessas constatações resolveu levar o projeto para a Universidade do Estado do Amazonas-UEA, apresentando o projeto para a direção da instituição que apoiou a ideia e contribuiu com a aquisição de alguns dos materiais necessários para atividade e treino (corda específica e cadeirinhas). 172 Assim Yara pôde iniciar às atividades de curso básico de rapel para os alunos e dentre eles selecionar os que apresentavam maior afinidade para talvez integrarem a índios.com Cia de Dança, sendo que a maioria dos alunos eram mulheres. Yara sempre gostou de esportes de aventura e desde o começo de sua carreira ela apresenta em suas obras a representação de seus questionamentos internos. Em um de seus primeiros trabalhos na formação do curso de pós-graduação em dança chamado “Imagens Urbanas”, a artista se reporta a própria condição em que se encontrava, longe de casa e se adaptando ao novo ambiente, estando em meio a várias pessoas e ao mesmo tempo só. Figura 51 Prática esportiva da artista – paraquedismo. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Figuras 52 Prática esportiva da artista – escalada. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. 173 Figuras. 53 Prática esportiva da artista – Aikido. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Já com a Índios.com Cia de Dança formada a coreógrafa passou a apresentar performances de dança Aérea pela cidade de Manaus sendo convidada inúmeras vezes para participar do Concerto de Natal organizado pela Secretária de Cultura do Estado do Amazonas, que reúne todos os corpos artísticos do Estado e os alunos do Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro. Nessas performances haviam integrantes da Índios.com Cia de Dança e alunos e exalunos convidados da Universidade do Estado do Amazonas. Nas performances os intérpretes apareceram descendo a fachada do Teatro Amazonas, descendo de tirolesa do telhado do teatro para o de um prédio ao lado atravessando assim o Largo São Sebastião e também pendurados em cabos de aço a mais ou menos 60 metros de altura por um guindaste aparecendo na parte da frente do teatro dentre outras composições cênicas. 174 Figura 54 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas da Índios.com Cia de Dança. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Fig. 55 Ensaio para concerto de Natal no telhado do Teatro Amazonas e com seu esposo e companheiro de trabalho na Índios.com Cia de Dança Ednaldo Passos. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. A Índios.com Cia de Dança é composta atualmente pela diretora, coreógrafa e intérprete Yara Costa, por quatro técnicos de esportes verticais fixos que são o Georgio, Harry, Luck e Naldo, também pelos Intérpretes Daniela Alves, Kamilla Aguiar e Jonatas Amaral. Pela companhia dançaram vinte e dois bailarinos e no balé aéreo já passaram mais de oitenta pessoas que representaram a Índios.com, em todo Concerto de Natal Yara relata que trabalha com pelo menos vinte bailarinos e 10 técnicos de esportes verticais. 175 A Índios.com Cia de Dança venceu diversos prêmios, sendo o primeiro o prêmio Amazônia Celular em 2001 para montagem do espetáculo “O Processo” e em 2004 vence o prêmio Caravana Funarte de Circulação Regional-Brasil com o mesmo espetáculo apresentando-o em Porto Velho, Ji-Paraná, Cruzeiro do Sul e Rio Branco (A Crítica, 2013). Figuras 56 Divulgação do espetáculo “O Processo”. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Figuras 57 Divulgação e apresentação do espetáculo “O Processo”. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. 176 Figuras 58 Bastidores do espetáculo “O Processo”. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Outros editais foram vencidos a nível nacional dentre os quais: Em 2005- Venceu em duas categorias o prêmio Pequenos Projetos Grandes Ideias da Fundação Vila Lobos, a primeira /PPGI-Eventos para apresentação de “O Processo” e a segunda PPGI-Pessoa Jurídica para montagem do espetáculo “Por um Fio” onde a coreógrafa aborda o virtuosismo na dança aérea (A Crítica, 2013). No ano de 2007, Prêmio de dança Klauss Vianna para montagem da obra “Rito de Passagem” e em 2009 vence o mesmo prêmio sendo que para circulação da Intervenção urbana “Sob o Abrido de...”. Ainda em 2009 vence o Prêmio Palco Giratório para a circulação de “Rito de Passagem” em várias cidades do Brasil, no mesmo ano vence o Prêmio SESC Amazônia das Artes (A Crítica, 2013). Fig. 59 Cena de “Rito de Passagem” 2008. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. 177 Fig.60 Foto do cartaz do Prêmio Palco Giratório 2009. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Em 2010 o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2010 para montagem de “Rastros Híbridos”. Em 2011 vence também o Klauss Vianna só que para a circulação de “Rastros Híbridos” que foi apresentado em São Gabriel da Cachoeira (AM), Cuiabá (MT), Goiânia (GO) e Brasília (DF). E em 2012 venceu o Prêmio Funarte Petrobrás de Dança Klauss Vianna 2012 para a montagem da obra “AËËË: pra falar do que não foi perdido” que se reporta a cultura Yanomame e estreia em outubro de 2013 sendo o trabalho mais atual de sua carreira (A Crítica, 2013). Festivais nacionais e internacionais em que a coreógrafa apresentou trabalhos coreográficos da Índios.com Cia de Dança, além da participação nesses eventos a companhia também realiza oficinas de dança aérea e debates: Projeto Dança Aérea: Desafios da Beleza (SESC Consolação São Paulo); Mostra Garatuja de Dança e Teatro de Artes Cênicas-Mambembão 2012 (RJ); 4º e 5º encontro de Danses Metisses (Cayenne-Guiana Francesa); I Plataforma Internacional Estado da Dança (SP); 17º Festival Internacional de Dança do Recife (Recife); Mostra de Artes /Cênicas no ano do Brasil em Portugal (Coimbra Portugal). A companhia também apresentou-se em alguns municípios do Amazonas, dentre os quais: Manacapuru, Presidente Figueiredo, Itacoatiara e São Gabriel da Cachoeira. Yara também trabalhou no Serviço Nacional do Comércio (SESC), foi selecionada no concurso que prestou realizado em 2009, para a vaga de técnico de cultura. Após seu ingresso na instituição foi contratada para assumir a coordenação de cultura do SESC-AM. Foi um 178 período muito difícil para conciliar as atividades, pois estava viajando pelo Projeto Palco Giratório. Durante sua gestão no cargo propôs alguns projetos para o ano de 2010 que englobavam as artes de modo geral, dentre eles destacou-se a Residência Artística em Dança, na qual participaram cinco artistas de Manaus (Daniela Alves, Juliana Borges, Daniela Carla, Silmara Santos e Magna Valeria). Yara ressalta que foi o primeiro projeto de residência proposto em Manaus e infelizmente aconteceu apenas uma vez. Outro projeto bem divulgado a nível nacional pelo SESC foi o ARTE SESC-LER, relata Yara, no qual a Índios.com fez parceria com o SESC para realizar apresentações e oficinas em quatro municípios do Amazonas que tem Unidades do projeto SESC-LER, (Itacoatiara, Manacapuru, Presidente Figueiredo e Manaus (Cidade Nova). A Índios.com entrava com transporte, alimentação, hospedagem e cachê dos artistas envolvidos, já o SESC dava a infraestrutura (espaço das apresentações, técnico de luz e um transporte para os equipamentos de luz e cenários). Em janeiro de 2010 Yara passou a ser apenas técnica de dança, o que facilitou a execução dos projetos de dança, mas ao mesmo tempo não teve mais como trabalhar em outros projetos previstos para as outras áreas, pois isso ficava na responsabilidade do Coordenador e dos técnicos de cada área. Yara permaneceu no SESC até início de 2012, quando foi aprovada no concurso público da UEA (Universidade Estadual do Amazonas), escolhendo a efetivação como servidora pública da universidade e buscando uma maior estabilidade. Resolveu então investir em seu crescimento como professora e pesquisadora ingressando na Universidade Técnica de Lisboa Faculdade de Motricidade Humana em Portugal no curso de mestrado em composição coreográfica, foi nesse período que aumentou o interesse pela pesquisa com a cultura indígena que viria a influenciar todo seu trabalho artístico e mudar a estética da Índios.com Cia de Dança. O título da pesquisa de mestrado que também serviu de base para a criação de “Rito de Passagem” era “Análise das danças Baniwa: Uma reflexão sobre a dinâmica indenitária e cultural dos povos indígenas da Amazônia”. 179 Figura 61 (A coreógrafa com sua orientadora e as professoras de sua banca logo após a defesa do mestrado). Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. Em sua trajetória artística e de vida, Yara demonstra ser uma mulher forte, determinada e apaixonada pelo que faz sem esquecer-se de suas obrigações para com sua família, buscando se descobrir como artista em cada fase de sua vida e etapa de seu trabalho tanto como intérprete como coreógrafa, professora e diretora da companhia de dança. E assim como uma grande maioria de artistas amazonenses parece que busca se encontrar dentro de tantas referências culturais, descobrindo ou redescobrindo a própria identidade artística. 180 ANEXO B Fig. 62 folder da obra “Rito de Passagem” 2007. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. 181 ANEXO C Fig. 63 documento 08 na íntegra, anotações sobre a criação do grupo de estudo em dança aérea. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa. 182 ANEXO D Fig. 64 Documento 05 na íntegra, reportagem sobre dança aérea. Fonte: Arquivo pessoal de Yara Costa (revista Smithsonian, 2000). 183 ANEXO E INSTRUMENTOS DA PESQUISA 1. ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA 2012 Tendo conhecimento que a criação da obra “Rito de Passagem” surgiu durante a pesquisa de mestrado da coreógrafa Yara Costa relacionada às danças Baniwa e levando em conta o contexto da obra, elaboramos esse roteiro de entrevista para nortear entrevistador e entrevistado nos assuntos que serão abordados nessa pesquisa sobre a obra de dança “Rito de Passagem”. 1. Como surgiu a ideia de montar a obra “Rito de Passagem”? 2. Quais foram as suas principais referências? 3. Existiram situações que interferiram durante o período de criação ou montagem da obra? 4. Como a mulher foi vista pela artista? 5. Como as práticas corporais foram transpostas para a obra? 6. Por que escolheu como foco central essa temática regional indígena? 7. Porque a escolha dessas técnicas específicas de dança e demais técnicas corporais para esta obra? 8. Como as demais técnicas corporais foram introduzidas (colocadas) no contexto da obra? 9. Como foi a participação do grupo no processo de criação e montagem da obra? 10. O que a obra Representa para a artista? (Implicações pessoais). 2. ENTREVISTA NÃO ESTRUTURADA - RELATO DA ARTISTA SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DA OBRA. 3. DOCUMENTOS DE PROCESSO DA OBRA “RITO DE PASSAGEM” CEDIDOS PELA ARTISTA PARA A PESQUISA. 184