A arte deouvir - Rede Nacional Primeira Infância
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A arte deouvir - Rede Nacional Primeira Infância
ENTREVISTA A arte de ouvir Dois ouvidos e uma boca. A simples formação do corpo humano já sugere: temos que ouvir mais do que falar. E a Pedagogia da Escuta mostra a riqueza dessa lógica simples para uma prática educacional eficiente. Mais que isso, prazerosa. Pedagoga e há 10 anos consultora na formação de professores, Elisabet Ristow mostra um pouco dos princípios traçados por Loris Malaguzzi. Elisabet é também pós-graduada em práticas pedagógicas, artes, educação e tecnologia contemporâneas, mestre em educação, integrante de grupo de estudos da América Latina "A prática Educativa numa perspectiva inovadora" além de pesquisadora e assessora técnica pedagógica do Programa de Formação de Professores (PROINFANTIL - MEC/UFPR). "Escutar é possibilitar que a criança seja também o sujeito no seu processo de desenvolvimento e aprendizagem, o protagonista da sua história vivendo um processo de instrução e investigação criado e pensando por si" disse ela em entrevista a Projetos Escolares Creche. Inspirador? Continue a leitura e delicie-se. Projetos Escolares - N o que se baseia a Pedagogia da Escuta? Elisabet Ristow - A Pedagogia da Escuta fundamenta-se e m princípios básicos norteados pela ética do pensamento e pela obra pedagógica de L o r i s M a l a g u z z i aprimorada, instituída e divulgada por muitas escolas italianas, sendo mais conhecidas no Brasil as experiências da cidade de Reggio E m i l i a . Ela se estrutura, principalmente, e m grandes eixos c o m o o da ética, o da estética e o da política. P.E. - N o que consistem esses eixos? E.R. - Por exemplo, no eixo da ética estão enumerados os princípios pautados na imagem da criança, que revela a indeterminação do ser h u m a n o ; n o qual educar significa incrementar o número de oportunidades possíveis; no qual a criança é u m sujeito de direitos históricos e culturais. Para cada princípio existem estratégias especificas para o desenvolvimento do trabalho e objetivos propostos. A s s i s t i m o s estarrecidas propostas que a n u n c i a m u m a pedagogia de respeito à criança e m alguns setores da sociedade, mas que, se esvaziam na retórica e na falta de u m a fundamentação teórica. P.E. - N a Pedagogia da Escuta a criança é vista c o m o sujeito capaz de aprender e ensinar. Sendo assim, qual é o papel do professor? E.R. - C a b e ao educador ter consciência do grande p o t e n c i a l da criança, pois a s s i m a m p l i a m - s e os m o dos da escuta, da atenção, da observação e nos m o d o s que a c r i a n ç a se revela n o t e m p o , espaço e saberes. O professor ora é o m e d i a d o r , o r a o i n t e r l o c u t o r , ora sujeito e p r o t a g o n i s t a . P o r t a n t o , ele t e m função f u n d a m e n t a l n o processo da a p r e n d i z a g e m e d o desenv o l v i m e n t o da c r i a n ç a . A p o i a r a c u r i o s i d a d e i n f a n t i l e se e m b r e n h a r na c o m p e t ê n c i a da criança d e m a n d a m formação c o n t i n u a d a específica para o exercício da função. M u i t o s professores c o n f u n d e m a escuta c o m a t e n d i m e n t o aos c a p r i c h o s e às vontades das c r i a n ç a s . E s c u t a r não é fazer as vontades, mas s i m c r i a r c o n d i ç õ e s p a r a que a c r i a n ç a seja o sujeito dos seus processos de d e s e n v o l v i m e n t o e a p r e n d i z a g e m , o protagonista da sua história v i v e n d o u m processo de investigação, experiências e descobertas. P.E. - Poderia ilustrar esse "papel" n u m a situação prática que o professor vive e m sala de aula? E.R. - Tomo uma experiência de projeto, pautado nas descobertas dos habitantes do gramado da escola, a partir das formigas que ora apareciam na calçada ora entravam no gramado sendo objeto de interesse e pesquisa das crianças. Aquilo que poderia ter passado despercebido pelos professores ou ter sido u m a explicação rápida se tornou u m objeto de i n vestigação. A primeira pergunta que os professores fizeram a si próprios foi como poderiam apoiar as crianças naquela investigação e propor novas descobertas, experimentações e aprendizagens. Elaborou-se, então, o projeto, e as estratégias foram sendo desenvolvidas optando-se por elementos que contribuíssem com a pesquisa. E m muitos momentos as crianças foram protagonistas, apresentaram possibilidades e elementos que ampliaram a investigação. M u d a o papel do professor, que deixa de ser "o dono do saber", para ser aquele que contribui, possibilita e também aprende com os modos investigativos e interpretativos da criança. P.E. - N a educação infantil brasileira já temos isso c o m o ponto central, e m sua opinião? E nos demais anos da escola, há meios de manter esse princípio presente? E.R. - Considero que no campo teórico no Brasil temos muitas produções vindas da pesquisa contínua com crianças nas universidades. Pesquisadores como a professora Silvia Helena C r u z , da Universidade Federal do Ceará, que desenvolve pesquisa no campo teórico e na prática com a escuta das crianças há mais de 20 anos. Para melhorar o atendimento das crianças na Educação Infantil, temos legislação, documentos, produções, pesquisas e militância de certo modo, mas falta muita coisa para acontecer na rede pública. Há municípios que divulgam resultados espetaculares, mas que, na prática, não é assim que funciona. Precisamos garantir que os conceitos de u m a pedagogia que respeita a criança sejam experimentados e desenvolvidos na ação pedagógica. Para a introdução dessa metodologia para crianças acima de 6 anos no Brasil, penso que, hoje, não temos espaços, pois implica em mudanças estruturais e curriculares. Considero que os estudos contemporâneos da área da sociologia da infância e da neurociência apontam elementos importantes para uma educação de qualidade, pautada em u m a Pedagogia da Escuta que se propõe a "escutar", "dar voz e vez" e respeitar as crianças. P.E. - N o fato dessa pedagogia entender que a c r i a n ça aprende por m e i o da relação c o m os contextos c u l t u r a l e s o c i a l está u m p o n t o semelhante a Piaget e V y g o t s k y ? A Pedagogia da E s c u t a é i n s p i r a d a e m quais l i n h a s de estudo? E.R. - Loris M a l a g u z z i foi u m pesquisador incansável sobre a formação de seus professores e os modos de se compreender e desenvolver a educação de crianças pequenas. E r a u m devorador de conhecimentos. Viajava muito. Q u e r i a conhecer e compreender as ideias vindas de pesquisadores e teóricos. Não se prendia a u m único, mas bebia de muitas fontes. Concordava c o m Piaget que a aprendizagem acontece na interação da criança c o m u m objeto e tinha interesse nos estudos de Jerome Bruner, que estava resgatando u m a solidariedade mais explícita nos recursos das crianças falando em sinergia entre o lado direito e o lado esquerdo do cérebro, na época. P.E. - U m a vez que a criança aprende por meio da relação c o m o meio, este passa a ser determinante para o seu processo de desenvolvimento? O u seja, crianças que vivem em famílias problemáticas, em condições de p o breza, mesmo tendo u m aparato da escola estão fadadas ao fracasso? E.R. - Considero que relacionar pobreza c o m o fracasso não é adequado, agora ofertar u m a educação de má qualidade, essa sim, tem a ver com fracasso. A s marcas que ficam na criança vindas de experiências ruins podem desencadear problemas para a aprendizagem e o desenvolvimento. Quiçá as questões da Educação Infantil pública não fossem tão problemáticas em nosso País. N a rede privada, ainda que estejam em melhores condições que as públicas, encontrei muitos problemas. Também estive em escolas boas, mas que queriam aprimorar ainda mais seu trabalho. N a rede pública, visitei municípios que estão tirando da instituição de Educação Infantil as crianças que c o m pletam 3 anos e levando para a Escola Básica Integral, sem que essas instituições tenham se estruturado para receber essas crianças. Segundo depoimento da secretária, essa foi a forma que encontraram para atender à demanda da creche. M a s , as crianças precisam ser respeitadas! P.E. - N o que essa questão implica? E.R. - Implica que as crianças de 3 a 6 anos partilham de tempo, espaço e saberes que não foram planejados nem pensados para essa faixa etária. Não é possível você chegar à escola e encontrar crianças de 3 anos na balança de ferro feita para crianças de 7 anos, em pleno meio-dia de sol escaldante. Temos leis, documentos, normativas, produções de alta qualidade, pesquisadores, militantes e formadores, mas falta comprometimento e responsabilidade, tanto da esfera política, quanto da sociedade civil, para fazer valer o direito da criança de frequentar a Educação Infantil de qualidade. Estudos apontam para a necessidade de se ofertar uma educação de qualidade que respeite os modos que são próprios da criança ser, ver, interpretar e compreender o mundo. Essa qualidade implica em ofertar espaços adequados e, prioritariamente, u m a formação continuada e em serviço aos professores que atuam com crianças pequenas. A formação do professor da Educação Infantil não pode ser desenvolvida por qualquer u m . Por exemplo, para ser u m professor de escola da infância, em muitas cidades italianas, são necessários no mínimo 8 anos de formação na área. P.E. - E c o m o c o m e ç o u o seu t r a b a l h o j u n t o a essa l i n h a pedagógica? E.R. - E m 2 0 0 0 d e b r u c e i - m e nas experiências desenvolvidas p o r L o r i s M a l a g u z z i q u a n t o à formação dos professores e e x p e r i m e n t e i - a s na prática. Não c o m o reprodução o u cópia, mas c o m o m e i o para superar as práticas educativas que não respeitavam a c r i a n ç a e a infância, e m contextos e realidades diferentes das italianas. F o i aí que nasceu a empresa Pantákulo. D e s e n v o l v e m o s u m a t é c n i c a que fomos aperfeiçoando no t r a n s c o r r e r d o t r a b a l h o , que é a formação no "chão da escola", p r o m o v i d a e m cada instituição, de www.revistaonline.com.br acordo c o m seu contexto, seus interesses e suas ne- 4ft&&&&?ÊftÊ'&& cessidades. À m e d i d a que professores e gestores se c o n v e n c e m de que é possível "escutar as crianças", m u d a m - s e os m o d o s de atender e de desenvolver as práticas educativas. A s s i m , a prática educativa e a relação entre professor/criança/família m u d a . A c r i a n ça é respeitada, aprende m e l h o r , gosta de f r e q u e n t a r a escola e as famílias se sentem a c o l h i d a s e p a r t i c i p a tivas de t o d o o processo. P.E. - Desde então você vem trabalhando na formação de professores seguindo as linhas de M a l a g u z z i . Q u a l tem sido o maior desafio na formação desses professores? E.R. - O m a i o r desafio é q u e b r a r a resistência dos a d u l t o s n a m u d a n ç a da sua prática. N o r m a l m e n t e , q u a n d o a escola nos p r o c u r a , já e x i s t e u m a p r e d i s posição p a r a m u d a r . O s d e p o i m e n t o s dos professores nos m o s t r a m que no início da f o r m a ç ã o , eles a c r e d i t a m que vão t r a b a l h a r m e n o s , planejar m e n o s , mas c o m o d e s e n v o l v i m e n t o do t r a b a l h o p e r c e b e m que n e c e s s i t a m e s t u d a r m a i s e se e m p e n h a r , não de m a n e i r a obrigatória, mas pelo p r a z e r que s e n t e m . O fato é que o professor, após c o n h e c e r e e x p e r i m e n t a r a P e d a g o g i a da E s c u t a , não aceita t r a b a l h a r de o u t r a f o r m a . A escola t o r n a - s e m a i s alegre, i n v e s t i g a t i v a , participativa e prazerosa para adultos, crianças e pais/familiares. P.E. - E m sua opinião, o que temos de mais i m p o r t a n t e para aprender c o m as bem-sucedidas experiências italianas na Educação Infantil? E.R. - A s políticas públicas de q u a l i d a d e na formação f o r m a l e c o n t i n u a d a p a r a os professores. C o n t a m o s c o m excelentes pesquisadores e f o r m a d o r e s das u n i versidades, mas p o u c o s f a z e m o t r a b a l h o a r t i c u l a d o à prática e ao c o n t e x t o da escola, de f o r m a sistemática, t a l c o m o as escolas italianas f a z e m c o m os p e s q u i s a dores que d i a l o g a m d i r e t a m e n t e c o m os professores nas escolas. Estive p o r três anos em Reggio E m i l i a e este ano estive nas cidades de Milão, Pistóia, B o l o g n a , San M i n i a t o , M ó d e n a e P a r m a , sentei c o m a gestão pública, c o o r d e n a d o r e s e v i s i t e i escolas de m o d o i n vestigativo a p r i m o r a n d o a i n d a m a i s o que ao longo dos anos. N o B r a s i l , não p o d e m o s d e i x a r a f o r m a ç ã o dos professores da Educação I n f a n t i l "a Deus dará". P r e c i s a m o s s i m , c o n h e c e r nossas crianças, nossa c u l t u r a , nossa história, nossa gente. S o m o s u m país d i v e r s o e de diversidades. Reverter da nossa história o v e l h o hábito de c o p i a r experiências de realidades h o m o g é n e a s e colá-las e m nossa realidade heterogénea, tão diversa e de diversidade, talvez seja o p r i n c i p a l desafio dos professores. Por o u t r o lado, e m várias partes d o B r a s i l temos práticas educativas interessantes, foco de interesse de m u i t o s e u r o p e u s que b u s c a m aprender a lidar c o m a heterogeneidade. Kfet> A pedagogia de Reggio Emilia tem suas origens na c i dade de mesmo nome, na região de Emilia Romagna, na Itália. Surgiu em 1945, quando o país vivia o final da ditadura fascista e da Segunda Guerra M u n d i a l . Era, portanto, u m momento em que o desejo de mudar e criar u m m u n do livre da opressão, incitava homens e mulheres a reunir suas forças e construir c o m suas próprias mãos as escolas para seus filhos pequenos. A s s i m , foram criadas pré-escolas que se mantiveram em operação, sob o comando da própria comunidade local, até 1967, quando, então, foram transferidas para o governo da cidade. Apesar de o desejo de união e ação estar latente naquele momento específico, o trabalho colaborativo já fazia parte da cultura local em todas as áreas da sociedade. Tinha, portanto, uma longa história de tradição, interrompida pela atuação facista e pelos tempos de guerra. Tão logo restabelecida a normalidade, a cultura local voltou a mostrar suas marcas e a pedagogia reggiana foi u m dos primeiros frutos dessa nova era. /nffuèocias N o final da década de 1950 e início da década de 1960, uma associação organizada de professores do ensino fundamental, inspirada nas obras de John Dewey e outras teorias francesas, atuava c o m o objetivo de inovar a educação, desenvolvendo formas de ensinar que estivessem em sintonia com a nova sociedade democrática, com a realidade do mundo moderno e que tivesse mais relevância na vida das crianças, além de lutar para que as pré-escolas públicas não tivessem critérios de seleção ou discriminação de alunos. A obra de Jean Piaget e, mais tarde, de Lev Vygotsky, também serviram de inspiração, tendo u m forte impacto local após o f i m do período facista, já que, até então, tal bibliografia não estava disponível à sociedade italiana. Foi nesse momento de efervecência de ideias que Loris Malaguzzi u m professor local que atuou em conjunto com trabalhadores, agricultores e a União da Mulheres Italianas (UDI) na criação das primeiras pré-escolas - afastou-se da pedagogia para especializar-se em psicologia, ciente do potencial dessa ciência, em especial se combinada a suas próprias ideias. E m pouco tempo, ele tornou-se u m líder, j u n tamente c o m outros mais conhecidos na Itália até aquele momento, sendo, em seguida, referência para os professores que queriam levar inovação para a educação infantil. M a l a g u z z i tinha participado ativamente da constituição das primeiras pré-escolas, em 1945, mas com alguns diferenciais que o fizeram ser considerado o fundador da filosofia reggiana: ele era capacitado para dar o suporte necessário a essas instituições criadas por pessoas da própria comunidade, que não tinham formação específica. Foi ele também quem liderou a batalha para conseguir que o governo da cidade assumisse a gestão dessas instituições e abrisse a primeira pré-escola municipal, em 1963. Fonte: North American Reggio Emilia Alliance (Narea). Mais informações em www.reggioalliance.org