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ISBN 85–87266–07–1 Módulo 2 – Fascículo 3 – Ano 2 – 2003 II.III Aterosclerose Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia •Tomografia computadorizada e ressonância magnética na detecção da aterosclerose •Revascularização cirúrgica do miocárdio revisitada •Epidemiologia das ateroscleroses coronária (DAC) e cerebrovascular (AVC) •Atualização diagnóstica e terapêutica da miocardite Sumário Presidente Juarez Ortiz 4 Escolha do editor Diretor científico Rubens Nassar Darwich Editor responsável Edson A. Saad Editores associados Protásio Lemos da Luz Tânia L. Martinez Ângelo de Paola Tomografia computadorizada e ressonância magnética na detecção da aterosclerose Carlos Buchpiguel; Ibraim Masciarelli F. Pinto 8 Editor Newton Marins Revascularização cirúrgica do miocárdio revisitada Direção de arte Hélio Malka Y Negri 13 Adib Jatene Coordenação editorial Beatriz Couto Epidemiologia das ateroscleroses coronária (DAC) e cerebrovascular (AVC) Assistência editorial Helio Cantimiro 17 Aloyzio Cechella Achutti; Ana Marice Ladeia; Armênio Costa Guimarães; Maria Inês Reinert Azambuja Revisão Claudia Gouvêa Leila Dias Projeto gráfico Roberta Carvalho Atualização diagnóstica e terapêutica da miocardite Marcelo Westerlund Montera; Fábio Fernandes 28 Editoração eletrônica Karla Lemos Uma publicação de DIA GR A PHIC No próximo fascículo... Escolha do Editor – Edson A. Saad ® E D I T O R A Diagraphic Projetos Gráficos e Editoriais Ltda. Av. Paulo de Frontin 707 – Rio Comprido CEP 20261-241 – Rio de Janeiro-RJ Telefax: (21) 2502.7405 e-mail: [email protected] www.diagraphic.com.br 1. Artigo dos drs. Evandro Tinoco Mesquita e Ari Timerman – Atendimento de dor torácica na emergência 2. Artigo dos drs. Hans Fernando Dohmann e Radovan Borichevitch – Perscrutando o futuro. Terapia celular em cardiologia: fundamentos, possibilidades e limitações As matérias assinadas, bem como suas respectivas fotos de conteúdo científico, são de responsabilidade dos autores, não refletindo necessariamente a posição da editora. 3. Artigo do dr. Jorge Pinto Ribeiro – Avaliação crítica dos ensaios Distribuição exclusiva à classe médica. Comercialização e contato médico 4. Artigo do dr. Luiz Antonio Campos – Tratamento da insuficiência recentes sobre antitrombóticos: suas evidências, fraquezas e aplicabilidade prática coronariana aguda e crônica baseada em evidências Nota importante: As referências bibliográficas de todos os artigos publicados estarão disponíveis para consulta, via internet, no Portal da Sociedade Brasileira de Cardiologia, no endereço www.cardiol.br/pec. Escolha do editor When power leads man toward arrogance, poetry reminds him of his limitations. When power narrows the areas of man’s concern, poetry reminds him of the richness and diversity of his experience. When power corrupts, poetry cleanses. For art establishes the basic human truths which must serve as the touchstones of our judgement. The artist… faithful to his personal vision of reality, becomes the last champion of the individual mind and sensibility against an intrusive society and an offensive state. John F. Kennedy Napoleão Sobre uma ilha isolada, Por negros mares banhada Vive uma sombra exilada, De prantos lavando o chão; E esta sombra dolorida, No frio manto envolvida, Repete com voz sumida: – Eu inda sou Napoleão. Tremem convulsas as plagas, Bravias lutam as vagas, Solta o vento horríveis pragas Nos sendais da escuridão; Mas nas torvas penedias Entre fundas agonias, Ela diz às ventanias: – Eu inda sou Napoleão. – E serei! do céu, da glória, Nem dos bronzes da memória, A864 Nem das páginas da história Meus feitos se apagarão; Passe a noite e as tempestades, Venham remotas idades, Caiam povos e cidades, – Sempre serei Napoleão. Da coluna de Vendôme, O bronze, o tempo consome, Porém não apaga o nome Que tem por bronze a amplidão. Apesar de infausto dia, Da infâmia que tripudia, Dos bretões a cobardia, – Sempre serei Napoleão. Nos vastos plainos do Egito, Sobre Titães de granito, Eu tenho um poema escrito Que deslumbra a solidão. Das Ísis rasguei os véus, Entre os altares fui deus, Aterosclerose : Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia : módulo 2 . – Ano 1, n. 1 (2002) – fasc. 2 (2002) . – Rio de Janeiro : Diagraphic, 2002. v. : il. ; 28cm. Bimestral ISBN 85-87266-07-1. 1. Aterosclerose – Periódicos. I. Sociedade Brasileira de Cardiologia. CDD 612.1205 4 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Fiz povos escravos meus, – Ah! inda sou Napoleão. Desde onde o crescente brilha Até onde o Sena trilha, Tive o mundo por partilha, Tive imensa adoração; E de um trono de fulgores Fiz dos grandes – servidores, Fiz dos pequenos – senhores, – E sempre fui Napoleão. Quando eu cortava os desertos, Vinham-me os ventos incertos De incenso e mirra cobertos Lamber-me as plantas no chão; As caravanas paravam, E os romeiros que passavam Às solidões perguntavam: – É este o deus Napoleão? E lá nas plagas fagueiras, Onde as brigas forasteiras, Entre selvas de palmeiras Corre o sagrado Jordão; O lago dizia ao prado, O prado ao monte elevado, O monte ao céu estrelado: – Vistes passar Napoleão? Dizei, auras do Ocidente, Dizei, tufão inda quente Do bafejo incandescente Do não vencido esquadrão, Como é ele, é belo, ousado? Tem o rosto iluminado? Tem o braço denodado? Sempre é grande Napoleão? E as águias no céu corriam, E os areais se volviam, E horrendas feras bramiam No imenso da solidão; Mas as vozes do deserto Se erguiam como um concerto E vinham saudar-me perto: – Tu és, senhor, Napoleão! – Se sou! que Marengo o conte, De Austerlitz o horizonte, E aquela soberba ponte Que transpus como o tufão! E a minha vila de Ajaccio, E o meu sublime palácio, E os pescadores do Lácio Que só dizem – Napoleão! Se o sou! que digam as plagas Onde do sangue nas vagas, Coberta de enormes chagas Dorme vil população; Digam da Ásia as bandeiras, Digam longas cordilheiras, Que se abatiam, rasteiras, Ao corcel de Napoleão! Se o sou! diga Santa Helena Onde a mais sublime cena Fechou tranqüila e serena Minha história de Titão; Digam as ondas bravias, Digam torvas penedias, Onde rijas ventanias Vêm murmurar: – Napoleão. – E serei! do céu, da glória, Nem dos bronzes da memória, Nem das páginas da história Meus feitos se apagarão! Assim na rocha isolada Pelas espumas banhada, Disse a sombra desterrada, De prantos lavando o chão. As névoas rolam nos céus, Da noite escura nos véus Soltam grandes escarcéus Rugidos de imprecação; Mas das sombras a espessura, A face da onda escura, O salgueiro que murmura Tudo fala – Napoleão! Fagundes Varela Nossos Clássicos (Vozes da América) Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 5 I – Juca-Pirama* IV Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. Já vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei. Andei longes terras Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés; Vi lutas de bravos, Vi fortes – escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés. Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d’espinhos Chegamos aqui! O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só qu’ria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer. Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego. Qual seja, – dizei! Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou. E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz. Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? – Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixai-me viver! Aos golpes do imigo Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri. Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro: Se a vida deploro, Também sei morrer. * Pertence este poema aos Últimos Cantos, editados em 1851. É o mais importante poema indianista de Gonçalves Dias, tanto pelo seu conteúdo épico-dramático como pelo sustentado vigor de linguagem, que atinge a sua maior força de expressão na admirável maldição do velho tupi. 6 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 VII “Por amor de um triste velho, Que ao termo fatal já chega, Vós, guerreiros, concedestes A vida a um prisioneiro. Ação tão nobre vos honra, Nem tão alta cortesia Vi eu jamais praticada Entre os Tupis, – e mas foram Senhores em gentileza. “Eu porém nunca vencido, Nem nos combates por armas, Nem por nobreza nos atos; Aqui venho, e o filho trago. Vós o dizeis prisioneiro, Seja assim como dizeis; Mandai vir a lenha, o fogo, A maça do sacrifício E a muçurana ligeira: Em tudo o rito se cumpra! E quando eu for só na terra, Certo acharei entre os vossos Que tão gentis se revelam, Alguém que meus passos guie; Alguém, que vendo o meu peito Coberto de cicatrizes, Tomando a vez de meu filho, De haver-me por pai se ufane!” Mas o chefe dos Timbiras, Os sobrolhos encrespando, Ao velho Tupi guerreiro Responde com torvo acento: – Nada farei do que dizes: É teu filho imbele e fraco! Aviltaria o triunfo Da mais guerreira das tribos Derramar seu ignóbil sangue: Ele chorou de cobarde; Nós outros, fortes Timbiras, Só de heróis fazemos pasto. – Do velho Tupi guerreiro A surda voz na garganta Faz ouvir uns sons confusos, Como os rugidos de um tigre, Que pouco a pouco se assanha! VIII “Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés. “Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem pátria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz, Ser das gentes o espectro execrado; Não encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz! “Não encontres doçura no dia, Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar: Não encontres um tronco, uma pedra, Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos, Onde possas a fronte pousar. “Que a teus passos a relva se torre; Murchem prados, a flor desfaleça, E o regato que límpido corre, Mais te acenda o vesano furor; Suas águas depressa se tornem, Ao contacto dos lábios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas com asco e terror! “Sempre o céu, como um teto incendido, Creste e punja teus membros malditos E oceano de pó denegrido Seja a terra ao ignavo tupi! Miserável, faminto, sedento, Manitôs lhe não falem nos sonhos, E do horror os espectros medonhos Traga sempre o cobarde após si. “Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d’argila cuidoso Arco e frecha e tacape a teus pés! Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és.” Gonçalves Dias Nossos Clássicos (Últimos Cantos) Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 7 II.III Autores Carlos Buchpiguel Ibraim Masciarelli F. Pinto Tomografia computadorizada e ressonância magnética na detecção da aterosclerose A aterotrombose é uma doença de caráter sistêmico que compromete a parede dos vasos e que exibe características distintas nas diversas artérias do corpo humano. Há particular interesse para o cardiologista na análise das placas no território coronário, em especial daquelas que apresentam tendência à ruptura, pois existem evidências de que elas estariam associadas a eventos isquêmicos. Tais ateromas habitualmente mostram capa fibrosa fina (65 a 150 micra), núcleo rico em lípides e não promovem diminuição relevante da luz arterial, contrastando com os ateromas considerados de risco no território carotídeo, que apresentam conteúdo fibrótico e acentuada redução do lúmen vascular. O uso de técnicas de imagem para o estudo da aterotrombose é revestido de grande interesse, pois elas podem auxiliar no esclarecimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na progressão desta doença, além de fornecer subsídios para o tratamento e o acompanhamento de pacientes comprometidos. Entre os diferentes métodos atualmente disponíveis, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética destacam-se, por permitir a identificação de obstruções graves, a obtenção direta de imagens das placas e a caracterização da sua composição. Além disso, elas podem fornecer informações que se complementam, auxiliando a conduta clínica nestes pacientes. Ressonância magnética A ressonância nuclear magnética é uma técnica de diagnóstico por imagem que se encontra disponível para aplicações cardiológicas desde o final da década de 1980. Ela não emprega radiação ionizante para a composição das imagens, mas tem como princípio de funcionamento a interação da energia magnética com o núcleo de certos átomos presentes no corpo humano. As várias partículas (nucleotídeos) que compõem o núcleo do átomo, ao serem expostas a campos magnéticos potentes, adotam movimento circular (spin), com velocidade e direção proporcionais à intensidade da energia à qual se encontram expostas. Uma variedade de núcleos apresenta esta propriedade, mas é o do hidrogênio, devido à sua disponibilidade em tecidos biológicos, bem como ao seu sinal relativamente intenso, que é habitualmente empregado para a composição das imagens de ressonância. Os spins podem ser estimulados com novos campos eletromagnéticos com freqüência igual àquela dos spins nucleares, que transferirão para estes últimos a sua energia. Ao suspendermos a exposição dos nucleotídeos a estes novos campos eletromagnéticos, eles liberarão a energia acumulada, retornando ao estado de repouso, num processo conhecido como relaxamento. O tempo necessário para que isto ocorra é medido por dois parâmetros, T1 e T2, que são a base da formação das imagens, uma vez que todos os prótons absorvem a energia administrada homogeneamente, mas, dependendo da molécula à qual o hidrogênio está ligado, o tempo de retorno ao repouso mostra diferenças substanciais, conforme pode ser observado na Tabela. Isto confere à ressonância elevada resolução de contraste, ou seja, capacidade de diferençar tecidos de natureza distinta, fato particularmente útil na avaliação de pacientes comprometidos por aterotrombose. Dois tipos básicos de imagem são usados em ressonância cardíaca. As imagens do tipo sangue ausente, nas quais não se observa a presença do sangue, mas que são considera- Médicos do Serviço de Diagnóstico por Imagem (DI) do Hospital do Coração (HCor). 8 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 das ideais para o estudo da anatomia cardíaca e também para a avaliação da parede dos vasos, têm sido empregadas para a avaliação do comprometimento aterosclerótico (Figura 1). Já as aquisições gradiente-eco ou de sangue brilhante são sensíveis para revelar tecidos em movimento e, recentemente, beneficiaram-se do desenvolvimento de técnicas rápidas que permitem a construção de imagens em tempo quase real. Estas utilizam meio de contraste paramagnético, substâncias metálicas em estado líquido, que não sofrem o efeito do magnetismo e, portanto, manifestam sua presença com intensidade de sinal elevada e com a característica cor branca (Figura 2). Ressonância magnética e detecção de aterosclerose A ressonância magnética tem sido apontada como a modalidade diagnóstica de maior potencial para a visibilização e a caracterização incruenta das placas de ateroma, lançando mão dos dois tipos de imagens mencionados anteriormente. As aquisições de sangue ausente são úteis para revelar de modo preciso a parede dos vasos, e as técnicas de sangue brilhante servem como auxiliares para a apreciação da capa fibrosa dos ateromas e a integridade das placas, especialmente no território carotídeo. Este exame tem sido aplicado com freqüência para a identificação de placas de ateroma em diferentes regiões do corpo, de modo especial na aorta e nas artérias carótidas. Na verdade, o território carotídeo foi o primeiro a ser abordado, uma vez que a localização mais superficial destes vasos tornava sua abordagem relativamente mais simples. Diversos estudos foram realizados e validaram este tipo de avaliação, demonstrando que a ressonância apontava de forma Figura 1. Imagem de sangue ausente, ou sangue escuro, que mostra o ventrículo direito, o ventrículo esquerdo, a raiz da aorta e parte da coronária direita Tabela – Valores de T1 e T2 de diferentes tecidos do sistema cardiovascular Tecido T1 T2 Miocárdio 870 57 Gordura 260 84 Sangue 830 160 Valvas 200 22 adequada a localização de placas e sua composição e gravidade. No nosso serviço realizamos estudo avaliando cem pacientes pela angiorressonância e pela angiografia invasiva e comparamos os resultados destes exames com a análise dos ateromas retirados durante a endarterectomia carotídea. Tanto o exame invasivo como o não-invasivo mostraram o mesmo diâmetro de referência das artérias e documentaram a mesma gravidade das obstruções. Por outro lado, houve excelente correlação entre núcleos lipídicos e de ulcerações (Figura 3). A avaliação dos ateromas aórticos também tem sido realizada com sucesso pela ressonância magnética. Este exame é empregado rotineiramente para o estudo das doenças aórticas, com excelentes resultados, e mostra-se capaz de identificar hematomas, inflamações e ulcerações na parede do vaso. Sua aplicação em indivíduos assintomáticos, mas que apresentam antecedentes importantes para a incidência de doença aterosclerótica, tem revelado a presença de placas Figura 2. Imagem sangue brilhante, que permite a fácil distinção entre miocárdio e o sangue circulante. Nesta figura observa-se o átrio direito, o ventrículo esquerdo, a raiz da aorta, a porção proximal da artéria coronária direita e parte da artéria circunflexa Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 9 de ateroma promovendo aumento da espessura parietal. A presença deste achado tem sido apontada por alguns autores como um fator de risco independente para a ocorrência de fenômenos isquêmicos (Figura 4). No que se refere ao uso da ressonância como forma de investigação da doença aterotrombótica das artérias coronárias, o exame tem duas aplicações distintas. A angiografia não-invasiva das artérias coronárias tem sido utilizada de forma experimental desde 1993, com o uso de vários protocolos de obtenção de imagens cardíacas. A despeito deste grande interesse e da intensa pesquisa realizada nesta área, ainda não foi apresentada nenhuma variante de ressonância magnética que tenha resultados equivalentes àqueles da angiografia invasiva. Uma da principais limitações dos resultados conseguidos por este exame reside no fato de que as aquisições para revelar a anatomia coronária são feitas ao longo de vários ciclos cardíacos, o que induz a ocorrência de inúmeros artefatos de movimento. Por outro lado, recente estudo multicêntrico mostrou resultados satisfatórios para a análise dos segmentos proximais (3-5 cm) das artérias coronárias em mais de 109 pacientes. Os autores lograram definir obstruções graves no tronco da coronária esquerda e na porção proximal das três principais artérias em 84% dos casos em que elas encontravam-se presentes. Por outro lado, não foram identificados 18% dos casos de obstrução grave uniarterial, proximal e todos os casos de obstruções no segmento médio e distal, traduzindo as limitações que ainda existem com o uso deste exame na prática cardiológica (Figura 5). A segunda aplicação da ressonância no território coronário é caracterizada pela tentativa de se proceder à obtenção de imagens das placas que comprometam aquelas artérias. No momento, os resultados ainda são limitados pela existência de dificuldades decorrentes dos movimentos cardíacos, da respiração, do tipo de trajeto não-linear das coronárias, além da localização central e do reduzido diâmetro destes vasos. De qual- Figura 3. Exemplo de angiorressonância de carótidas, mostrando obstruções graves na origem da artéria subclávia e no segmento distal da artéria carótida comum esquerda. O corte transversal da lesão da artéria carótida demonstrou que a placa tinha conteúdo fibrolipídico, era ulcerada e mostrava trombo intraluminal 10 quer modo, já foram obtidas imagens em animais de experimentação e em seres humanos que foram capazes de reproduzir a parede das artérias do coração. Fayad et al. conseguiram encontrar diferenças significativas na espessura da parede de indivíduos sem doença coronária comparados com pacientes portadores de obstrução coronária. Bertini et al., no nosso meio, demonstraram que a ressonância magnética podia evidenciar a presença de remodelamento positivo em pacientes com angina instável, achado este não-relatado nos pacientes com angina estável. Pinto et al. conseguiram documentar a presença de sinal heterogêneo em pacientes na fase evolutiva do infarto. Do ponto de vista clínico, a ressonância tem sido utilizada para o acompanhamento não-invasivo de pacientes tratados com redutores de lípides por apresentarem obstruções em vasos extracardíacos. Corti et al. adotaram este exame como forma de controlar pacientes assintomáticos com obstruções de carótidas, e em uso de estatinas. Eles relataram que ao final de 12 meses havia significativa redução do volume da placa, bem como mudanças na estrutura da parede arterial, revelando o potencial deste método diagnóstico para a avaliação seqüencial de portadores de aterotrombose carotídea. Assim, é possível que progressos tecnológicos adicionais que aumentem ainda mais a resolução espacial, associados a mudanças que possam elevar a resolução temporal da ressonância magnética, permitam a sua utilização nas artérias coronárias com resultados equivalentes aos relatados para os demais segmentos arteriais. Tomografia computadorizada Até 1999, a tomografia mecânica não podia ser considerada uma opção para a realização de exames cardíacos, a despeito de apresentar adequada resolução espacial e relação sinal/ruído, pois não possibilitava a obtenção de imagens com resolução temporal inferior a 800 milissegundos, estando, portanto, sujeita a importantes artefatos provocados pelo movimento cardíaco. Há dois anos, porém, houve nova perspectiva, caracterizada pela introdução da tomografia computadorizada de múltiplos detectores. Este é um sistema helicoidal mecânico, no qual o tubo gerador de raios X está posicionado sobre um braço que gira ao redor do paciente, na velocidade de duas vezes por segundo (500 milissegundos por ciclo). A par disso, a radiação emitida pelo tubo gerador incide sobre quatro fileiras de detectores, situados em posição diametralmente oposta à do gerador. Assim, podem-se compor até oito imagens por segundo, o que dá ao sistema a resolução temporal máxima de 125 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 milissegundos. Adicionalmente, estes tomógrafos possibilitam a obtenção de cortes muito finos, com espessura menor do que 1mm. A combinação de cortes finos com grande velocidade de aquisição permitiu cogitar o emprego desta ferramenta para estudos cardíacos. A aplicação clínica deste exame inclui atualmente a investigação de doenças da aorta e da artéria coronária e tem se mostrado relevante. A despeito de apresentar menor resolução de contraste do que a ressonância, mostra resolução espacial muito superior, possibilitando a avaliação pormenorizada da parede das estruturas vasculares. Além disso, este exame é muito sensível à presença de cálcio na parede arterial, e este foi exatamente o fator que despertou o interesse de se tentar aplicálo para estudar pacientes com doenças cardiovasculares. A angiotomografia da aorta em equipamentos que utilizam a metodologia de múltiplos detectores é realizada em apenas 45 segundos e possibilita a análise de todo o vaso. Clinicamente, este tipo de exame tem sido utilizado para o diagnóstico de estenoses, aneurismas e dissecções da aorta com grande sucesso. No nosso serviço temos observado que seus resultados nesta área equivalem àqueles da angiorressonância, devendo ser lembrado, porém, que a tomografia mostra limitada capacidade de análise da função ventricular esquerda, ao contrário da ressonância, que é extremamente eficaz neste sentido (Figura 6). Contudo, é na avaliação não-invasiva das artérias coronárias que este exame tem mostrado enorme potencial. Sua demonstração da anatomia das artérias coronárias é muito superior à da angiorressonância e podem-se visualizar todos os trechos da árvore arterial coronária. Becker et al. obtiveram sucesso na identificação de obstruções coronárias, inclusive na determinação de placas nãocalcificadas. Eles ressaltaram o fato de que pelo menos 10% dos pacientes com doença coronária têm obstruções importantes, a despeito de mostrarem ausência de cálcio naquele território. Mais tarde, Achenbach et al. aplicaram o mesmo protocolo e analisaram 25 indivíduos sem estenoses relevantes nas artérias coronárias, pela angiografia invasiva e por meio da tomografia computadorizada de múltiplos detectores, logrando expor 78% dos segmentos coronários sem nenhum artefato. Ao compararem as dimensões arteriais medidas pela tomografia e pela angiografia quantitativa, obtiveram coeficiente de correlação igual a 0,86. Outra investigação do mesmo grupo, estudando 64 pacientes com insuficiência coronária, ainda com o mesmo protocolo, demonstrou sensibilidade de 91% e especificidade de 84% para a detecção de estenoses obstruindo em mais do que 75% a luz arterial. A experiência do grupo alemão foi reproduzida por Nieman et al., que, em 35 casos, identificaram com sucesso 81% das estenoses maiores do que 50%, Figura 4. A ressonância magnética pode identificar placas gordurosas mesmo em estágios iniciais de sua evolução. Neste exemplo observamos um caso de aorta sem anormalidades apreciáveis à angiorressonância (A), mas que já exibe depósito de gordura (sinal branco) e espessamento parietal (seta) na imagem em secção transversal (B) ao mesmo tempo em que determinaram como normais 97% dos territórios isentos de lesões à cinecoronariografia. No nosso grupo utilizamos este exame rotineiramente em 2 mil pacientes até setembro de 2002. A tomografia mostrou-se adequada para identificar o grau de calcificação coronária, demonstrar a presença de obstruções graves e oclusões em pontes de safena e em artérias coronárias e, também, para descartar a presença de doença coronária obstrutiva (Figura 7). Todavia, ainda há dificuldades em se avaliar placas de ateroma que promovam estenose moderada da luz arterial, faixa na qual a exatidão do método ainda é limitada. A maior contribuição que este exame tem dado para a investigação cardiológica é a análise das placas. Embora ainda não seja possível determinar a Figura 5. Angiorressonância magnética exibindo o tronco da coronária esquerda e as porções proximais da artéria descendente anterior e da artéria circunflexa Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 11 Figura 6. A tomografia computadorizada por múltiplos detectores da aorta revela a anatomia de todo o vaso em cerca de 45 segundos, possibilitando tanto a caracterização de casos normais (A) como o diagnóstico de aneurismas (B) condição da capa fibrosa por este exame, pode-se diferençar com segurança a presença de cálcio ou de gordura no interior do ateroma, assim como é factível a determinação de remodelamento positivo no local comprometido pela aterotrombose, elemento que sugere fortemente a instabilidade da placa. Recentemente comparamos, através da angiotomografia, 30 pacientes com angina instável e 20 pacientes com angina estável. No primeiro grupo havia reduzido grau de depósitos de cálcio no local comprometido, as placas eram fundamentalmente lipídicas e havia remodelamento positivo. Nos pacientes com angina estável, o grau de calcificação era significativamente superior e não havia casos de remodelamento positivo. Este tipo de achado demonstra o potencial que a tomografia apresenta para o estudo não-invasivo das artérias coronárias, em particular para a caracterização das placas (Figura 8). Perspectivas Figura 7. Angiotomografia das artérias coronárias mostrando ausência de calcificação e, também, a presença de obstrução no segmento proximal da artéria descendente anterior (seta), que mostra fluxo reduzido ao longo de todo seu trajeto Figura 8. Tomografia de coronária exibindo placa instável localizada na artéria descendente anterior (setas). Esta caracteriza-se pela presença de material exclusivamente lipídico, com remodelamento positivo e irregularidade no segmento comprometido 12 Apesar dos resultados satisfatórios relatados pela ressonância e pela tomografia, ambos os exames ainda mostram limitações e vantagens complementares. Em decorrência disto, alguns centros começam a associar a investigação pelos dois métodos diagnósticos, com o objetivo de obter maior número de informações a respeito da doença aterotrombótica, em particular no território das artérias coronárias. A estratégia mais comumente escolhida é a de iniciar a investigação com o uso da angiotomografia das artérias coronárias, devido à melhor reprodução anatômica conseguida com este tipo de estudo. Em seguida, complementa-se a investigação com a realização da ressonância magnética sobre o território comprometido, para melhor avaliar os ateromas encontrados. Este tipo de avaliação pode fornecer informações suplementares e úteis tanto do ponto de vista investigacional como clínico. Porém o custo e o tempo de exame ainda são elevados. Portanto, à medida que progressos tecnológicos forem incorporados à ressonância e à tomografia, assim como os aspectos de custo e disponibilidade forem resolvidos, os métodos de diagnóstico por imagem podem transformar-se em instrumentos fundamentais na avaliação de pacientes portadores de doença aterotrombótica. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Revascularização cirúrgica do miocárdio revisitada II.III Nota do Editor O Professor Dr. Adib D. Jatene dispensa apresentação. Professor na Universidade de São Paulo, o modelo ultrapassa a moldura. Ele é na realidade um Mestre do Mundo e reproduz o que Georges Sand dizia de Chopin: “Um homem como este, nasce um de cem em cem anos!”. A cirurgia de revascularização do miocárdio experimentou duas fases distintas, delimitadas pela introdução da cinecoronariografia por Mason Sones, em 1962(1). Na primeira fase, iniciada em 1916, e como as lesões das artérias coronárias não podiam ser identificadas, os métodos cirúrgicos não abordavam a artéria comprometida. Eram métodos indiretos, seja para cortar a via nervosa da dor ou provocar vasodilatação, seja para induzir o desenvolvimento de circulação colateral através da formação de aderências entre o epicárdio e o pericárdio, usando irritantes físicos ou químicos. Tentativas de melhoria da circulação coronariana foram feitas pela colocação de tecidos vascularizados sobre o epicárdio escarificado. Merece destaque o implante de uma ou das duas artérias mamárias em túneis construídos na espessura do miocárdio por Vineberg(2). A ineficácia destas operações, excluindo o implante de artéria mamária e a falta de método diagnóstico capaz de demonstrar alterações de circulação coronariana, levou a cirurgia ao descrédito como método terapêutico capaz de reverter a isquemia do miocárdio. Foi o desenvolvimento da cinecoronariografia, demonstrando não só a presença das obstruções das artérias, mas, também, o estado das porções distais, que tornou possível a abordagem das mesmas, diretamente, para restabelecer o fluxo sangüíneo normal, e, em conseqüência, a isquemia geradora dos sintomas, responsável pelo risco a que estavam expostos os pacientes. Este segundo período já conta com experiência de 40 anos, quando centenas de milhares de pacientes foram operados em todo o mundo, utilizando técnicas que, agora, podiam ser avaliadas, e sua eficácia, relacionada diretamente ao resultado da revascularização do miocárdio. Autor Adib D. Jatene Revisitar o que aconteceu nesses 40 anos pode ser feito didaticamente, considerando-se quatro períodos. O primeiro período, que pode ser chamado de década das propostas eficazes, iniciou-se com a cinecoronariografia e inaugurou a abordagem da artéria obstruída. Inicialmente atuou-se sobre a própria área lesada por três abordagens distintas. A primeira foi realizando-se uma endarterectomia ou retirada da íntima espessada(3). Na segunda técnica, o ateroma não era retirado. Fazia-se incisão sobre a área lesada, prolongando-se a mesma, proximal e distalmente, até atingir-se áreas preservadas da artéria. A sutura de remendo de pericárdio ou veia garantia o restabelecimento do fluxo sangüíneo normal(4). Na terceira abordagem, proposta em 1967 por Favarolo(5), o cirurgião ressecava a porção lesada da artéria e restabelecia o fluxo através de um fragmento de veia safena suturada nos dois cotos da artéria coronária resultantes da ressecção da porção obstruída. Esta última técnica por vezes não podia ser realizada devido ao comprometimento da porção proximal da artéria, o que levou Favarolo a abandonar a abordagem da área obstruída, fazendo o restabelecimento do fluxo sangüíneo através de ponte de veia safena suturada proximalmente na própria aorta e distalmente na artéria coronária após a obstrução(6). Poucos centros se dedicaram, inicialmente, a realizá-la, acumulando progressivamente experiências cujos resultados estimularam sua difusão. Em nosso meio a revascularização, utilizando veia safena, iniciouse em setembro de 1968(7). Até junho de 1971 já havíamos operado 271 pacientes(9). Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 13 O segundo período pode ser chamado de década da análise e da expansão. Cardiologistas de renome no início posicionaram-se contra o procedimento, e a maioria dos serviços na Europa e nos Estados Unidos não realizava a operação. À medida que os resultados foram sendo apresentados, demonstrando controle dos sintomas pela eliminação da isquemia, a reação foi diminuindo e novos serviços passaram a realizar a técnica, com ampliação considerável do número de pacientes operados, com redução significativa do risco operatório e manutenção de resultados na evolução tardia. Introduziu-se, além da veia safena, a utilização da artéria mamária como conduto alternativo(9). Ao entusiasmo inicial com a anastomose mamária coronariana seguiu-se período de retração, quando pesquisa conduzida por Flema(10) demonstrou que, para a mesma artéria, o fluxo fornecido pela veia safena era duas a três vezes maior que aquele fornecido pela artéria mamária. Admitiu-se que a mamária deveria ser reservada para pequenos leitos vasculares. Em nosso serviço, que entre 1972 e 1974 tinha realizado esta operação em mais de 400 doentes, o procedimento foi praticamente eliminado. Naquela década foram realizados vários estudos multicêntricos. Três deles(11-13) tiveram ampla divulgação, e sua interpretação deu margem, de um lado, à confirmação do valor do método e, por outro lado, a interpretações equivocadas, utilizando-se indevidamente os dados encontrados. Isto ocorreu porque, pelo protocolo, só eram incluídos no estudo pacientes com angina leve ou moderada, com boa função ventricular, sendo excluídos pacientes com lesão de tronco, angina de graus III e IV, angina instável ou progressiva, bem como pacientes que tivessem apresentado episódios agudos nos últimos seis meses. O que se buscava demonstrar, nesse grupo selecionado de pacientes de baixo risco, era a comparação dos resultados entre os tratados clinicamente e os submetidos à operação. Quando se buscava como indicador a mortalidade, a diferença, embora favorável à cirurgia, não era muito expressiva, mas quando se buscava a eliminação das manifestações de isquemia, como angina e teste de esforço negativo, o resultado era amplamente favorável ao grupo operado. Este achado levou à conclusão de que o paciente portador de angina estável, controlada por medicação, poderia ser mantido em tratamento clínico enquanto a medicação permitisse qualidade de vida aceitável, e só quan- 14 do a angina se tornasse resistente, ou sofresse agravamento súbito, seria indicado o tratamento cirúrgico. A extrapolação deste conceito a todo o universo de portadores de aterosclerose coronariana foi o equívoco que gerou muita discussão. Com o acúmulo da experiência ficou claro que não existia correspondência direta entre a gravidade dos sintomas e a gravidade da doença, principalmente do risco de morte. Passava-se a aceitar que, diante do diagnóstico de aterosclerose coronariana sintomática ou detectada por teste de esforço, o único exame capaz de demonstrar a extensão e a gravidade da doença era a cinecoronariografia, a partir da qual a opção terapêutica poderia ser decidida com todas as variações conhecidas. Um grupo especial era o dos pacientes que se apresentavam na fase aguda da doença. A cinecoronariografia de urgência seguida de revascularização cirúrgica foi praticada em nosso meio, incluindo a desobstrução por cateterismo(14, 15). Também foi objeto de discussão se a cinecoronariografia deveria ser feita antes da alta naqueles pacientes que apresentavam infarto do miocárdio com evolução favorável. No nosso meio, Piegas(16) advogava a importância dessa abordagem, argumentando com a nãorelação direta entre sintoma e comprometimento anatômico e a conveniência de se conhecer a extensão e a distribuição das lesões nas artérias coronárias de maior utilidade para interpretação de eventos futuros. De todas as contribuições do período resultou a aceitação universal da cinecoronariografia como o padrão-ouro para o diagnóstico e o estabelecimento do risco, seja de infarto ou de morte súbita, ao qual o paciente estava submetido por lesões de tronco de coronária esquerda, de porção proximal de artérias com extensas áreas de irrigação e lesões multiarteriais. Desta forma, as indicações para implante de pontes de safena aortocoronária ou anastomoses entre a artéria mamária e a artéria coronária poderiam ser feitas fora da fase aguda. Os cirurgiões buscavam aprimorar a técnica usando fios de sutura cada vez mais delgados, e desenvolviam métodos para proteção do miocárdio durante a circulação extracorpórea, usada em todos os pacientes. Clampeamento intermitente da aorta foi confrontado com diferentes técnicas de cardioplegia, usando soluções salinas ou sangue com níveis elevados de potássio, para induzir a parada cardíaca. Estas soluções eram usadas, seja a 4ºC ou em temperatura normal, de forma anterógrada ou retrógrada, conforme a preferência dos cirurgiões. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Chegou-se ao claro entendimento de que ao cardiologista cabia o diagnóstico clínico e hemodinâmico, e ao cirurgião a revascularização do miocárdio. A discussão centrava-se na oportunidade do tratamento cirúrgico, postergando-se sua indicação em pacientes com angina estável controlada por medicação e antecipando-se a operação quando lesões críticas em porções proximais poderiam causar eventos catastróficos. O terceiro período, chamado de década do aperfeiçoamento e da evolução, caracterizou-se pela preferência do conduto arterial, representado principalmente pela artéria mamária esquerda. Os pacientes que tinham sido revascularizados com anastomose da artéria mamária para artérias coronárias com grande leito vascular na década anterior e que foram reestudados demonstraram que a quase interrupção do uso deste conduto não se justificava. O estudo de Loop(17), em 1982, demonstrou que a artéria mamária utilizada mantinha-se eficaz e, mais importante, que o índice de pontes pérvias, tardiamente, era significativamente maior que o das pontes de safena. A artéria mamária interna esquerda passou a ser largamente utilizada. O uso de conduto arterial se expandiu para a mamária direita e para os outros condutos arteriais. Carpentier(18) introduziu a artéria radial, que, inicialmente, foi questionada pela ocorrência de índice maior de obstrução, mas, posteriormente, com o refinamento da técnica de sua retirada e detalhes de sutura e o uso de vasodilatadores para prevenir espasmo, passou a ser regularmente utilizada. Puig(19), em nosso meio, introduziu o uso de artéria epigástrica, que, embora eficaz, não obteve a mesma aceitação dos condutos anteriores. A artéria gastroepiplóica(20) igualmente vem sendo usada, seja como enxerto livre ou in situ, mas não ganhou ampla utilização, ficando reservada a casos especiais. O enxerto venoso manteve sua posição, tomandose cuidados especiais na sua retirada e no seu preparo, substituindo-se a solução salina empregada por sangue e controlando-se a pressão intravenosa durante o preparo. É desta década a introdução da angioplastia, proposta por Grundzig(21), utilizando cateter com balão insuflável ao nível da lesão, que esmagava a placa, restabelecendo o diâmetro normal da artéria e dispensando a necessidade de cirurgia. A equipe cirúrgica ficava na espera para a eventualidade de complicação que exigisse intervenção imediata. O relativo ceticismo inicial quanto a esta técnica, reforçado pela incidência de reoclusão em 40% dos casos nos primeiros seis meses, não causou maiores preocupações aos cirurgiões que consideravam a operação o procedimento de eleição, especialmente quando os condutos arteriais eram utilizados. Entretanto o fato de o cardiologista que realizava o estudo hemodinâmico ser capaz de se tornar o operador usando a angioplastia causou turbulência no fim da década, em comparação com a calmaria da década anterior, onde havia separação nítida entre quem fazia o diagnóstico e quem fazia a intervenção, no caso, o cirurgião. Criou-se até o termo hemodinâmica intervencionista, ou seja, a que trata não só obstruções de artérias coronárias, mas de valvas cardíacas, coarctação da aorta e busca ocluir defeitos do septo atrial ou fechar o canal arterial persistente. O quarto período, que se prolonga até os nossos dias, chamado por alguns de o da confusão, eu prefiro chamar de o das opções. O aprimoramento da angioplastia, com o emprego dos stents(22), inicialmente não-revestidos e, recentemente, cobertos com substâncias capazes de inibir crescimento tecidual(23) na área onde fica colocado, bem como o tratamento de mais de uma artéria, representou um avanço inegável, acrescido do apelo da nãoabertura do tórax. O procedimento está consagrado e vem sendo largamente utilizado em todo o mundo, suportado por uma estrutura industrial que produz e aprimora cateteres e stents. Os cirurgiões, por sua vez, aprimoraram seus procedimentos, buscando simplificá-los e reduzir as incisões. A operação sem o uso de circulação extracorpórea, no nosso meio divulgada por Buffolo(24), com resultados posteriormente confirmados por vários cirurgiões brasileiros, e na Argentina por Benetti(25), conseguiu ampla aceitação e vem sendo realizada de forma crescente no país e em todo o mundo, inclusive para casos com lesões multiarteriais(26). Com base na anastomose mamário-coronariana, com o coração batendo sem circulação extracorpórea, introduziu-se a minitoracotomia(27), utilizando-se, ou não, a videotoracoscopia para dissecção da artéria mamária. Das miniincisões laterais evoluiu-se para a médioesternal, com redução da extensão da incisão da pele Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 15 do tórax e realização de pontes múltiplas anastomosadas na artéria mamária, portanto sem tocar na aorta. Também técnicas para implante de veia safena na aorta, sem utilizar qualquer clampeamento e com dispositivos que dispensam sutura, vêm sendo empregadas. Mais recentemente, a introdução da robótica, em que braços mecânicos articulados são comandados pelo cirurgião, que olha a imagem do campo operatório na tela de televisão, é uma tentativa de se oferecer mais precisão sem necessidade de incisões maiores. Inclusive pode-se colocar o paciente em circulação extracorpórea sem abrir o tórax e, com instrumentos introduzidos no tórax por pequenos orifícios, realizar anastomose da artéria mamária com ramos de artéria coronária. Os procedimentos cirúrgicos, hoje, têm sua eficiência largamente comprovada, particularmente porque o uso de pelo menos uma artéria mamária é a regra. Os resultados tardios, em conseqüência, são cada vez melhores. Técnicas de redução da dor, com infiltração peridural alta, têm permitido um pós-operatório com ausência de dor nos primeiros três dias. Já existem serviços que, com esta técnica, conseguem operar com o doente acordado e sem intubação traqueal. Por isso chamo esta década de das opções, em que o tipo e a localização das obstruções, a existência de 16 eventuais complicações e, principalmente, a experiência de hemodinamicistas e cirurgiões irão determinar, em cada caso, se a melhor indicação é a intervenção por hemodinâmica ou por cirurgia. Há casos de pacientes com repetição de várias intervenções hemodinâmicas que terminam por ser operados, como há casos operados que se beneficiam, posteriormente, da intervenção hemodinâmica. O que necessitamos é de postura ética e de critérios para não submeter o paciente a um tipo de procedimento quando tudo fazia indicar que aquele não seria o mais adequado. Acresça-se o fato de que o tratamento clínico medicamentoso também evoluiu e que, portanto, significa mais uma alternativa, não só para acompanhamento posterior de qualquer dos dois tipos de intervenção, mas como tratamento alternativo a ambos. Diante de doença grave, e potencialmente fatal ou incapacitante, chegamos a um tempo onde existem três formas de tratamento eficazes e onde a opção por um deles estará baseada nas características de cada caso, lançando mão dos métodos de diagnóstico anatômico e funcional, que permitem aferir a viabilidade do músculo cardíaco a exigir revascularização capaz de eliminar as manifestações da doença e devolver o paciente à atividade normal. É a cooperação entre clínico, hemodinamicista e cirurgião que oferecerá ao paciente o melhor tratamento no melhor momento. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Epidemiologia das ateroscleroses coronária (DAC) e cerebrovascular (AVC) Epidemiologia da aterosclerose A epidemiologia é o estudo das doenças e de seus determinantes na população. Pode-se dizer que através dela se avalia o estado de saúde de uma população e são investigadas as causas de seu adoecimento e seus níveis de mortalidade. O tratamento populacional correspondente (reabilitador-recuperador, preventivo e de promoção da saúde) está afeito ao campo da saúde pública, com o qual a medicina tem importante interface. Enquanto a medicina foca principalmente aqueles que buscam assistência, em geral, de forma espontânea, a saúde pública olha para o conjunto dos indivíduos: os doentes (que buscam, não buscam ou não têm acesso aos serviços médicos) e também aqueles (ainda) não-doentes, ou não identificados como tal. Este artigo pretende dimensionar a contribuição das doenças cardiovasculares (DCV) para o adoecimento e a mortalidade da população, buscando analisar seus determinantes e variações ao longo do tempo e do espaço, e dentre os seus distintos grupos sociodemográficos. Estão incluídos não somente os fatores de risco para os casos individuais (ex.: fumo, dieta inadequada), mas também suas diferentes histórias de vida (abrangendo gerações anteriores, até suas mães e avós) e o acesso à informação, aos serviços de saúde e ao tratamento efetivo correspondente à inserção social, em conjunto, determinando diferentes perfis de vulnerabilidade para as doenças e mortes em estudo. Como expressão da aterosclerose, dois grandes grupos nosológicos comparecem com maior importância, tanto nos registros populacionais como na prática clínica: a doença arterial coronária (DAC) e a doença cerebrovascular (AVC). Esta última sigla, correspondente a acidente vascular cerebral, será adotada neste artigo para evitar confusão com a das doenças cardiovasculares. Ambas estão freqüentemente associadas, quase sempre conseqüentes a fatores de risco comuns e seguindo modelos fisiopatogênicos semelhantes. II.III Autores Aloyzio Cechella Achutti1 Ana Marice Ladeia2 Armênio Costa Guimarães3 Maria Inês Reinert Azambuja4 Sua abordagem em separado tem finalidade didática e reflete categorias consagradas pela prática e pela expressão clínica mais chamativa na fase avançada da doença ou na vigência de novos eventos da história natural. No momento do registro, entretanto, a causa básica da doença ou do óbito pode ficar restrita a uma única entidade e até mesmo ficar encoberta por outro diagnóstico de maior relevância momentânea. Mortalidade por doenças cardiovasculares O impacto das doenças cardiovasculares (DCV) é muito variado comparando-se populações e países diferentes. Estatísticas recentes disponíveis (Tabela 1) permitem cotejar a importância das DCV e, mais especificamente, da doença arterial coronariana (DAC) e da doença cerebrovascular (AVC) com a mortalidade por todas as causas no mundo, nas Américas, nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) e no Brasil. A comparação dos números absolutos de óbitos sem levar em conta o tamanho e a estrutura etária das populações, bem como o impacto comparativo das demais causas de morte, pode induzir a erro de avaliação, especialmente quando se quer comparar o risco do adoecimento e da morte por aquela causa entre diferentes populações. Mas é indubitável que a DAC não tem, no Brasil, a mesma importância sobre, por exemplo, a demanda por atendimento médico que tem nos EUA. Mesmo se somando às mortes atribuídas à DAC todas 1 Membro da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina; Professor Aposentado da UFRGS e da PUC/RS. Doutora em Medicina pelo Curso de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Professora Adjunta do Departamento de Medicina Interna da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Professor Titular de Cardiologia da UFBA; Presidente da Liga Baiana de Hipertensão e Aterosclerose; Membro da Academia de Medicina da Bahia. 4 Doutora em Medicina pelo PPG de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Professora Adjunta do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da UFRGS. 2 3 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 17 Tabela 1 – População e óbitos por todas as causas e por DCV no Mundo, nas Américas, nos EUA e no Brasil Mundo+ Américas++ EUA# Brasil* 6.122.210.000 813.085.000 273.000.000 169.202.000 Óbitos por todas as causas 56.554.000 5.687.000 2.390.960 979.480 Óbitos por DCV1 16.585.000 1.942.000 958.775 261.172 Óbitos por DAC2 7.181.000 886.000 529.659 76.639 Óbitos por AVC3 5.454.000 418.000 167.366 83.475 População 1 Doença cardiovascular (DCV): CID 10, i00-i99 e Q20-Q28; 2doença cerebrovascular (AVC) (Stroke): CID 10: i60-i69; 3doença arterial coronária (DAC) (CHD): CID 10, i20-i25. Mesmas categorias usadas pela publicação da American Heart Association. +Relatório Mundial da Saúde, ano 2002, Organização Mundial da Saúde; ++estimativa para 1999. Relatório Mundial da Saúde, ano 2000, OMS; #dados de 1999. Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA; *dados de 1999. Sistema de Informações de Mortalidade, Funasa, Min. da Saúde, CD-ROM 2002. as mortes codificadas como devidas à insuficiência cardíaca (IC) (29.531 óbitos em 1999), a proporção DAC + IC/todas as causas (10,8%) corresponde a menos da metade da mortalidade proporcional por DAC nos EUA (22%). Se todas as mortes classificadas como por causas mal definidas em maiores de 35 anos (16,3%) fossem lançadas na categoria doença arterial coronária, ainda assim não chegaríamos à proporção norte-americana do total de óbitos por esta causa. Já a proporção de óbitos atribuída à DCBV no Brasil (8,5%) está entre a registrada nos EUA (7%) e a estimativa mundial da OMS (9,6%). Como se pode ver na Tabela 2, há grande variação regional na mortalidade por estas causas nas distintas regiões do Brasil. Em parte, esta diferença deve estar associada à diferença na qualidade dos registros (e possivelmente no acesso e qualidade da assistência médica), como pode ser inferido pela variação na proporção de óbitos atribuídos a causas mal definidas entre as regiões. A Região Sul tem a menor proporção de óbitos por causas mal definidas (6,5%) e a maior ocorrência relativa de DAC (10,7% do total de óbitos em 1999). Já as Regiões Norte e Nordeste têm as maiores proporções de óbitos por causas mal definidas (22,6% Tabela 2 – Número (e proporção) de óbitos no Brasil e grandes regiões em 1999, por algumas causas Brasil n (%) Norte n (%) Nordeste n (%) Sudeste n (%) Sul n (%) Centro-Oeste n (%) Nº de mortes por todas as causas 979.480 (100) 49.070 (100) 232.155 (100) 486.098 (100) 155.225 (100) 56.931 (100) Nº de mortes por doenças cardiovasculares* 261.172 (26,6) 8.251 (16,8) 46.959 (20,2) 141.316 (29,1) 49.682 (32) 14.963 (26,3) Nº de mortes por DAC** 76.639 (7,8) 1.993 (4,1) 11.166 (4,8) 43.394 (8,9) 16.592 (10,7) 3.494 (6,2) Nº de mortes por AVC*** 83.475 (8,5) 3.075 (6,3) 16.561 (7,1) 42.808 (8,8) 16.246 (10,5) 4.785 (8,4) Nº de mortes por causas mal definidas+ 141.751 (14,5) 11.103 (22,6) 67.254 (29) 47.316 (9,7) 10.583 (6,8) 5.495 (9,6) Nº de mortes por causas externas++ 116.895 (11,9) 6.226 (12,7) 24.385 (10,5) 60.974 (12,5) 16.316 (10,5) 8.994 (15,8) Fonte: Sistema de Informações de Mortalidade, Funasa, Min. da Saúde, CD-ROM 2002. 18 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 e 29%, respectivamente) e as menores ocorrências relativas de DAC (4,1% e 4,8% dos óbitos em 1999, respectivamente). Além de diferenças nos registros, esta variação também reflete diferenças na média da expectativa de vida ao nascer entre estas regiões, como resultado de diferenças na exposição a situações de desgaste crônico da saúde ao longo da vida – desnutrição, infecções de repetição, trabalho infantil, gravidez precoce, multiparidade, más condições de trabalho, acesso inadequado ou insuficiente aos serviços de saúde, etc. A Figura 1 ilustra a diferença nos níveis de saúde das Regiões Norte e Sul, com base na distribuição proporcional da mortalidade por grupos etários (Curva de Nélson de Moraes). A curva da Região Norte, mais em forma de U, reflete um nível de saúde regular, com 50% dos óbitos ocorrendo até os 50 anos. A da Região Sul, mais em forma de J, expressa um melhor nível de saúde de sua população, com 70% dos óbitos ocorrendo após os 50 anos. Como a ocorrência de DCV tende a aumentar com a idade (Figura 2), para que o número total de mortes por DCV numa população seja alto é preciso que um número suficiente de pessoas sobrevivam à infância e à fase de adulto-jovem relativamente saudável, para que possam então morrer por esta causa. Como mostra a Figura 3, nos EUA, 67,6% das mortes atribuídas à DCV ocorreram após os 75 anos de idade. No Brasil, apenas 38,1% (entre 40,1% na Região Sul e 31,4% na Região Centro-Oeste). A maior proporção de mais jovens (< 65 anos) entre os mortos por DCV no Brasil (35,9%) do que nos EUA (15,2%) reflete este déficit comparativo de idosos no Brasil (Figura 4). A distribuição das mortes por sexo também varia de uma população para outra, conforme se pode ver na Tabela 3, refletindo diferenças na estrutura etária, bem como exposições diferentes aos diversos fatores determinantes da morbidade. Morbidade por doenças cardiovasculares Como a mortalidade expressa apenas parcialmente o impacto das doenças, nos últimos anos tem-se utilizado cada vez mais uma outra unidade como indicadora: os anos ajustados de incapacidade e morte precoce perdidos cada ano, DALYs em inglês (disability adjusted lost years). Para as mesmas doenças e estratos populacionais anteriormente considerados, podem se examinar as estimativas de seu impacto, na Tabela 4, onde se vê que as proporções correspondentes às 80 70 60 50 Norte Sul 40 30 20 10 0 <1 1-4 45-14 15-49 > 50 Figura 1. Distribuição proporcional da mortalidade geral por grupos etários nas Regiões Norte e Sul do Brasil, em 1999 DCV – Coeficientes de mortalidade (/100.000) por grupo etário, 1999 10.000 1.000 Brasil 100 EUA 10 1 <35 35-44 45-54 55-64 65-74 ≥75 Figura 2. Coeficientes de mortalidade por idade, no Brasil e nos EUA, em 1999 DCV – Mortalidade proporcional por idade, 1999 100% ≥75 65-74 55-64 45-54 35-44 < 35 80% 60% 40% 20% 0% Brasil EUA Figura 3. Mortalidade proporcional por idade, no Brasil e nos EUA, em 1999 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 19 5 4,5 4 3,5 3 2,5 2 1,5 1 0,5 0 Figura 4. Tamanho relativo da população dos EUA com relação à do Brasil, em sucessivas faixas etárias ≥75 65-74 55-64 35-44 45-54 25-34 15-24 5-14 0-4 EUA/Brasil doenças cardiovasculares ficam menores ao serem inseridas no grande contexto, e quando se ponderam também precocidade dos danos, morbidade e incapacidade. Quanto mais baixa a mortalidade infantil e de adultos, tanto maior a expectativa de vida e a proporção de velhos e menor, proporcionalmente, o peso global de todas as DCV, da DAC e da AVC. No ano 2000 ocorreram 12.426.137 internações hospitalares pelo SUS (no mínimo 75% do total das hospitalizações no Brasil) (PNAD, 1998). Descontadas as 2.913.953 autorizações de internação hospitalar (AIH) correspondentes a gravidez, parto e puerpério (primeira causa de internação), as demais 9.512.184 internações dividiram-se igualmente entre os sexos. Entre estas, as doenças cardiovasculares responderam por 12,2% das admissões ao hospital (segundo lugar), abaixo das doenças respirató- rias (20,3%) e seguidas pelas doenças do aparelho digestivo (10,6%) e pelas correspondentes ao capítulo I da CID – algumas doenças infecciosas e parasitárias (9,3%). Já nos EUA, em 1999, as doenças cardiovasculares foram o grupo diagnóstico mais comum entre todas as doenças registradas no momento da alta hospitalar (Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA). Enquanto as internações por todas as DCV e aquelas por AVC foram, respectivamente, 5,5 e 5,8 vezes mais freqüentes nos EUA do que no Brasil, as por doença arterial coronária foram 15,2 vezes mais freqüentes. Nos EUA, esta causa respondeu a 35,7% das internações por DCV, contra apenas 12,8% no Brasil. A razão por sexo (H/M) na cardiopatia coronária foi semelhante lá e aqui (1,4 e 1,3). Já no caso dos AVC, o número de diagnósticos foi maior nos homens no Brasil, e nas mulheres nos EUA. Insuficiência cardíaca e hipertensão arterial, ao contrário do que ocorre nos EUA, foram diagnósticos mais freqüentes que a doença arterial coronária como justificativa de internação no Brasil (Banco de Dados AIH, 2000). No caso da insuficiência cardíaca, é provável que parte dos casos tivesse como causa básica a cardiopatia coronária, sem que este registro tivesse sido feito. Já a maior prevalência de hospitalização por HAS parece estar de acordo com a mortalidade mais elevada por AVC no Brasil (Banco de Dados do Sistema de Informação de Mortalidade). Tendências temporais A mortalidade por DCV nos EUA (onde sua tendência temporal tem sido bem documentada) (MMWR 2001) aumentou ao longo do século XX, Tabela 3 – Óbitos por DCV selecionados por sexo, no Brasil e nos EUA, em 1999 Brasil Homens (%) Mulheres (%) Total (%) Doença arterial coronária Doença cerebrovascular Doenças cardiovasculares EUA Homens (%) Mulheres (%) Total (%) 44.317 32.299 76.616 267.258 262.391 529.659 (57,8) (42,2) (100) (51,5) (49,5) (100) 42.876 40.561 83.437 102.881 64.485 167.366 (51,4) (48,6) (100) (61,5) (38,5) (100) 137.505 123.358 260.863 445.871 512.904 958.775 (52,7) (47,2) (100) (46,5) (53,5) (100) Fonte: EUA: Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA. Brasil: Sistema de Informações de Mortalidade, Funasa, Min. da Saúde, CD-ROM 2002. 20 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Tabela 4 – Número de DALYs: causas selecionadas, sexo, mundo e regiões das Américas, 2001 Mundo América Homens (‘000) Mulheres (‘000) Ambos (‘000) Ambos (‘000) Ambos (‘000) Ambos (‘000) Muito baixa MI e adultos Baixa* MI e adultos Alta MI e adultos População 3.083.854 3.038.327 6.122.210 328.176 437.142 72.649 Tot. DALYs 768.131 699.126 1.467.257 46.520 81.270 17.427 Todas DCV 77.155 67.316 144.471 6.950 7.194 1.001 DAC 33.826 24.899 58.725 3.523 2.688 295 AVC 23.603 22.267 45.870 1.486 2.332 277 Fonte: OMS: World Health Report, 2002. *Partes da América com mortalidade infantil (MI) e do adulto relativamente baixas (dentro das quais se insere o Brasil), mas não as mais baixas (da América do Norte). até 1968, quando um declínio ainda não adequadamente explicado teve início. A ascensão foi atribuída à emergência da doença arterial coronária como causa relevante de morte, retrospectivamente localizada ao redor de 1925 (Stallones). Como podemos ver na Figura 5, a mortalidade por doença cerebrovascular teria paradoxalmente declinado durante todo o período de observação. No entanto, estudos recentes comparando a evolução temporal na relação trombose x hemorragia em necropsias sugerem tendências temporais divergentes para estas duas formas de apresentação. A mortalidade secundária à trombose teria acompanhado a curva epidêmica da DAC, sendo a tendência predominante de declínio decorrente da queda na mortalidade por DCBV hemorrágica (Lawlor DA et al., 2002). Tendências similares de ascensão e queda na mortalidade por doença coronária foram documentadas em vários países ocidentais, embora com alguma defasagem (Le Fanu). As taxas mais elevadas hoje ocorrem em países do leste europeu, aparentemente com taxas de mortalidade por DCV ainda ascendentes (Le Fanu). No Brasil, a mortalidade por DCV manteve-se relativamente estável em valores elevados nos anos 1970 e foi declinante no período mais recente (Lotuffo et al. 1996; Mansur AP, 2002). Este declínio foi documentado tanto para a DAC como para o AVC. A ascensão da mortalidade por DAC foi atribuída, no pós-guerra, à degeneração decorrente do envelhecimento populacional e de estilos de vida (sedentarismo, estresse/HAS) e padrões de consumo (fumo, dieta rica em gorduras), que se expandiam em uma população mais urbana e afluente. Nas décadas de 1960 e 1970, três fatores de risco (hoje denominados clássicos) eram considerados determinantes para a ocorrência da DAC: a hipercolesterolemia (secundária ao consumo de gorduras saturadas), o fumo e a HAS. Após o início do inesperado declínio, abriu-se espaço para novas formulações teóricas e experimentais. Na década de 1980, com a descoberta das citocinas e de fatores de crescimento celular e os avanços na biologia celular, uma nova concepção de fisiopatogenia para a aterogênese começa a ganhar corpo: a degeneração não mais parecia adequada para explicar os achados anatomopatológicos. Em seu lugar vai-se introduzindo a in- Figura 5. Taxas de mortalidade (ajustadas por idade) para todas as doenças cardiovasculares, doenças do coração, doença coronária e acidente vascular cerebral, por ano (EUA, 1900-1996) 500 DCV (total) 400 300 Doenças do coração 200 DAC 100 AVC 0 1900 1920 1940 1960 1980 1996 Taxas por 100.000 padronizadas pela população de 1940. Fonte: Achievements in public health, 1900-1999: decline in death rates from heart diseases and stroke – United States, 1900-1999. MMWR 1999; v. 48, n. 30, p. 649-56 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 21 flamação (Ross R, 1993) como “a melhor síntese das alterações identificadas na placa aterosclerótica” (Capron, 1993). A consolidação do paradigma inflamatório dá-se não só concomitantemente ao declínio na mortalidade por DAC, mas também em paralelo à aparente emergência de um novo perfil de risco associado ao desenvolvimento da doença aterosclerótica. A hipercolesterolemia perde espaço, substituída por baixos níveis de HDL, LDL e TG elevados, hiperglicemia, obesidade central e resistência à insulina (Ziegler O, 1998). Aliados a estes novos fatores de risco, níveis de proteína C reativa associados a um estado de inflamação crônica têm-se mostrado capazes de predizer não apenas a ocorrência de eventos ligados à DCV (Libby et al., 2002) mas também a incidência de diabetes em mulheres (Han et al., 2002). Assim, num período de 50 anos (do pós-guerra até a virada do século) foi possível observar não somente uma epidemia de DCV mas também uma revolução na concepção fisiopatogênica da aterosclerose coronária, embora as concepções predominantes não tenham conseguido explicar adequadamente as variações temporais e geográficas na mortalidade ao longo do século (Azambuja e Duncan, 2002). com uma em cada 25 que morrerá de câncer de mama(9). O uso de contraceptivos orais e apenas uma gestação contribuem para o aumento do risco de AVC(9). Raça e etnia A incidência e a mortalidade por AVC é maior em negros. No estudo ARIC (Atherosclerosis Risk in Communities), a incidência de AVC foi 38% maior em negros do que em brancos(23). A alta prevalência de hipertensão, de obesidade e de diabetes entre negros pode contribuir para estas elevadas taxas de incidência e mortalidade por AVC. Estudos epidemiológicos demonstraram que hispânicos, japoneses e chineses também apresentam alta incidência de AVC(9). História familiar História materna ou paterna de AVC está relacionada com aumento do risco. Esse aumento pode refletir aspectos genéticos propriamente ditos, mas também aspectos ambientais ligados aos hábitos de vida familiar (AHA). Contudo, a incidência e prevalência de AVC é maior em gêmeos monozigóticos que nos dizigóticos, destacando a influência do fator genético(24). Fatores de risco O conhecimento dos fatores de risco é de importância fundamental para melhorar o controle clínico e epidemiológico destes grupos de doenças. De forma semelhante à doença arterial coronária, os fatores de risco para o acidente vascular cerebral (AVC) podem ser divididos em modificáveis e não-modificáveis. Fatores de risco não-modificáveis Estes fatores de risco são importantes para identificar indivíduos com potencial de alto risco e que se beneficiarão de intervenções preventivas ou terapêuticas rigorosas sobre os fatores de risco modificáveis. Idade A idade é um importante fator de risco de DCV. O risco de AVC duplica após os 55 anos (AHA). Em Salvador, o AVC é 340 vezes mais incidente entre pessoas acima dos 65 anos em comparação ao grupo etário entre 15 e 24 anos(21). Sexo O AVC é mais prevalente e incidente em homens que em mulheres(9), exceto entre 35 e 44 anos e acima dos 85 anos(9). Contudo, a mortalidade relacionada ao AVC é maior em mulheres. Nos Estados Unidos, uma em cada seis mulheres morrerá por AVC, comparada 22 Fatores de risco modificáveis Hipertensão arterial (HA) A relação entre vários fatores de risco e AVC está bem estabelecida. A HA é o fator de risco mais importante para AVC isquêmico ou hemorrágico. Existe uma relação direta e contínua entre o aumento da pressão arterial sistólica e/ou diastólica e o risco de AVC(9). Nos idosos, pressão arterial sistólica > 160mmHg, mesmo isolada, é importante fator de risco de AVC(9). No Brasil, a exemplo de outros países ocidentais, a HA é o maior fator de risco para AVC, presente em 85% dos pacientes(25). O controle da pressão arterial contribui para a prevenção do AVC(9). Vários estudos demonstram que o tratamento com betabloqueador ou diurético é efetivo na prevenção do AVC(26). No estudo Shep (The Systolic Hypertension in Elderly Program) houve uma redução de 36% na incidência de AVC com o uso de atenolol ou clortalidona(27). Diabetes Pacientes diabéticos, insulinodependentes ou não, apresentam maior susceptibilidade para aterosclerose. Estudos de caso-controle e estudos epidemiológicos prospectivos confirmam a importância do diabetes Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Tabela 5 – Hospitalizações nos EUA e no Brasil (SUS) por DCV selecionadas e sexo, 2000 DAC DCBV Homens Brasil Internações no SUS Mulheres EUA Diagnósticos na alta hospitalar Homens Mulheres Total 83.935 (56,4) 64.918 (43,6) 148.859 (100) 1.317.000 (58,2) 945.000 (41,8) 2.262.000 (100) 15,5 10,5 12,8 41,7 29,7 35,7 86.365 (51,9) 79.869 (48,1) 166.235 (100) 434.000 (45,2) 527.000 (54,8) 961.000 (100) 15,9 12,9 14,3 13,7 16,5 15,1 Total HA 162.010 (100) 439.000 Insuf. cardíaca 398.514 (100) 962.000 Todas DCV 543.224 (46,8) 616.884 (53,2) 1.160.118 (100) 3.161.000 (49,8) 3.183.000 (50,2) 6.344.000 (100) 100 100 100 100 100 100 Fonte: Brasil: Banco de Dados AIH, Funasa, Min. da Saúde. CD-ROM 2002. EUA: Heart and Stroke Statistical Update 2002, AHA. como fator de risco de AVC, com risco relativo variando entre 1,8 e 6(9). Para homens, no Honolulu Heart Program, o risco de AVCI foi duas vezes maior em diabéticos, independente de outros fatores associados(28). A intolerância à glicose, per se, já confere aumento do risco de AVCI(29). A HA é muito freqüente em diabéticos, com prevalência de 30% nos insulinodependentes e de 40%60% nos não-insulinodependentes, o que torna difícil a dissociação da magnitude desses dois fatores de risco na morbimortalidade por AVC. No subgrupo de 3.577 diabéticos, no estudo Hope (Heart Outcome Prevention Evaluation), o risco de AVC diminuiu 33% no grupo em uso de ramipril, mesmo quando o decréscimo absoluto dos níveis pressóricos foi pequeno(30). Controle glicêmico inadequado e proteinúria também conferem maior risco de AVCI em diabéticos(31). Dislipidemia Estudos recentes sugerem que hipercolesterolemia e HDL-colesterol diminuído podem aumentar o risco de AVCI, embora a relação de risco não seja tão significativa como aquela com a doença coronariana(9). Por outro lado, os benefícios na prevenção do AVCI em pacientes coronarianos, em uso de estatinas, têm sido apoiados por várias metanálises(32, 33). Resta, porém, esclarecer se o mecanismo dessa proteção está mais relacionado ao efeito hipolipemiante das estatinas ou aos seus efeitos benéficos sobre o endotélio, com maior estabilidade das placas ateroscleróticas, e às suas propriedades antitrombóticas e antiinflamatórias (Goldstein). Vale salientar que a redução do risco esteve associada com redução dos níveis lipídicos mesmo nos indivíduos com perfil lipídico considerado normal(34). Evidências patológicas desses benefícios têm sido demonstradas em estudos recentes, indicando relação inversa entre níveis lipídicos e grau de aterosclerose carotídea extracraniana(35). Tabagismo O tabagismo ativo têm sido considerado um fator de risco importante para AVCI. Os efeitos fisiopatológicos do tabaco afetam diretamente a função endotelial, são pró-trombóticos e diminuem os níveis de HDL-c. Metanálise de 22 estudos demonstrou o dobro de risco de AVCI nos fumantes quando comparados aos nãofumantes(36). Dados do Estudo de Framingham também confirmam um aumento de risco de AVCI de 1,8 nos fumantes, após ajustes para outros fatores de risco(37). Também já foi demonstrado que tabagistas passivos, independente do sexo, apresentam aumento de 1,8 no risco de desenvolver AVCI(38). Além desses quatro fatores de risco modificáveis, cuja relação com AVCI associado à doença aterosclerótica se encontra bem comprovada, alguns outros fatores devem ser considerados na análise de risco do paciente em geral, tais como obesidade, sedentarismo, abuso de álcool e cocaína, presença de fibrilação atrial e anemia falciforme, terapia de reposição hormonal da menopausa, uso de contraceptivos orais, estenose carotídea assintomática e cardiopatias embolizantes. Vale ressaltar que estenose carotídea é um fator de risco impor- Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 23 tante apenas para AVC ou ICT, como pode ser também um indicador de risco de doença coronariana concomitante (AHA). É evidente que a ação preventiva tem como objetivo a identificação e o controle de todos os fatores de risco. Medindo o impacto dos fatores de risco O impacto de alguns fatores de risco, estimado em DALYs (unidade que pretende medir os anos ajustados de vida perdidos por morte precoce e incapacidade), pode ser examinado na Tabela 6, que apresenta grandes grupos de risco. O primeiro corresponde à desnutrição materna e infantil. O segundo grande grupo também se relaciona com desvios nutricionais e sedentarismo, entre os quais podem ser reconhecidos diversos fatores comprometidos com o tema deste texto: pressão arterial, hipercolesterolemia, sobrepeso, falta de frutas e verduras na alimentação e sedentarismo. O terceiro – exposição a substâncias aditivas – contém ao menos dois fatores relacionados com o tema deste artigo: tabagismo e alcoolismo. Programação fetal de doenças do adulto Na busca da causalidade das doenças e das causas para poder intervir mais precocemente e com maior chance de sucesso, a medicina cada vez mais se antecipa ao limiar clínico, e busca as primeiras manifestações anatomopatológicas e biológicas capazes de predizer o risco futuro. Diversos investigadores têm reunido evidências no sentido da programação fetal e do primeiro ano de vida para várias doenças do adulto, entre as quais a hipertensão arterial, a doença cerebrovascular e a doença arterial coronária. Inicialmente chamada hipótese de Barker, cada vez mais se reforça a consistência com mecanismos fisiopatogênicos capazes de explicar uma predisposição para a ocorrência mais precoce ou acelerada da aterosclerose e outras doenças em estratos populacionais submetidos a condições inadequadas de gestação e de desenvolvimento nas primeiras fases da vida. Programação precoce (intra-uterina e infantil), metabólica, neuro-humoral, imunológica, e alterações metabólicas e estruturais têm sido demonstradas em recém-nascidos de baixo peso, alterações estas explicativas para distúrbios encontrados no decorrer da vida. Basicamente são modificações no fígado, acarretando distúrbios no metabolismo das lipoproteínas; alterações hormonais, do hormônio do crescimento e corticosteróides; alterações de nível neurológico central (celularidade do hipocampo e desempenho poste- 24 rior frente a estresse); e alterações imunológicas – todas elas podendo levar ao desenvolvimento mais precoce e acelerado de aterosclerose. Em população brasileira, numa coorte da cidade de Pelotas (RS) acompanhada desde o nascimento, Fernando Barros e César Victora demonstraram comportamento semelhante com relação à pressão arterial e desenvolvimento intra-uterino no primeiro ano de vida. Aspectos fisiopatológicos da aterosclerose nas doenças cerebrovascular e coronária A aterosclerose, causa mais comum de doença cerebrovascular (AVC) (70% ou mais dos acidentes vasculares cerebrais), tem sua patogênese inicial, semelhante à doença arterial coronária, numa lesão do endotélio vascular, caminho para um processo inflamatório crônico pela ação de citocinas, peróxidos ou outros estímulos associados à injúria hipóxica, com liberação de moléculas de adesão do tipo 1, intercelular (ICAM-1) e da célula vascular (VCAM-1), as quais estimulam receptores celulares que favorecem a aterogênese. A turbulência do fluxo sanguíneo também contribui para a resposta dos receptores celulares de moléculas de adesão, justificando, assim, a localização preferencial de placas ateroscleróticas nas bifurcações dos vasos(2, 3). Os locais mais comumente acometidos são a bifurcação da carótida interna, a origem da artéria cerebral média e qualquer uma das extremidades da artéria basilar. O processo inflamatório agudo parece participar da fisiopatologia da doença cerebrovascular aterosclerótica (AVC). Citocinas, células T ativadas e macrófagos foram encontrados em amostras de carótidas, pós-endarterectomia(4). Estudos observacionais sugerem que a inflamação aguda participe do AVC isquêmico, haja vista a associação fortemente positiva entre níveis de proteína C reativa de alta sensibilidade (PCRas) e AVC(5, 6). Além disso, o uso de pravastatina por um período de cinco anos reduziu significativamente o risco de AVC, o que se associou à redução dos níveis de PCRas(7). O AVC se manifesta por déficit neurológico focal, de origem isquêmica e caráter transitório (isquemia cerebral transitória, ICT) ou definitivo (acidente vascular cerebral isquêmico, AVCI). A sua patogênese resulta de trombose intravascular secundária à ruptura de placas ateroscleróticas instáveis. O infarto cerebral constitui a patologia básica do AVCI. Este pode ocorrer no local da trombose ou à distância, por embolismo de material trombótico de Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Tabela 6 – Número de DALYs atribuíveis por fatores de risco, sexo e estrato de região da OMS que poderia corresponder à situação do Brasil em 2000 Mundo América* Homens (‘000) Mulheres (‘000) Homens (‘000) Mulheres (‘000) Subnutrição materno-infantil Subnutrição Déficit de ferro Déficit vit. A Déficit Zn Dieta e sedentarismo Riscos sexuais e reprodutivos Sexo inseguro Falta de contracepção 111.286 116.243 1.210 1.165 69.733 15.756 11.596 14.201 68.067 19.301 15.042 13.833 570 446 79 115 498 465 103 99 97.875 86.000 5.860 5.325 42.600 42.600 58.083 49.269 8.814 843 843 1.287 912 375 Substâncias aditivas 106.243 22.379 10.802 2.579 Riscos ambientais Água, sanitário e higiene inseguros Poluição urbana Combustíveis sólidos domésticos Exposição ao chumbo Alterações climáticas 60.697 27.432 4.413 19.040 7.112 2.700 58.307 26.726 3.452 19.499 5.814 2.816 1.992 686 171 193 907 35 1.815 603 136 251 789 36 Riscos ocupacionais 19.253 12.071 1.138 2.771 485 2.788 3.299 1.054 283 267 333 1.362 1.082 745 49 134 32 122 156 74 11 13 15 43 9.290 9.407 160 123 Risco de lesão Carcinógenos Partículas aéreas Estresse ergonômico Ruído Outros riscos selecionados Fonte: OMS: World Health Report, 2002. *Partes da América com mortalidade infantil e do adulto relativamente baixas (dentro das quais se insere o Brasil), mas não as mais baixas (da América do Norte). artérias cerebrais de maior calibre ou do sistema carótido-vertebral e aorta ascendente. A DCBV, quando associada à hipertensão, pode combinar à sua fisiopatologia acidentes trombóticos e hemorrágicos. A viabilidade funcional da área cerebral isquêmica depende, basicamente, da grandeza da circulação colateral e da duração, magnitude e rapidez de instalação da isquemia, o que se reflete em quadros clínicos de apresentação, intensidade e evolução variáveis. Epidemiologia da doença cerebrovascular No Brasil, nos últimos 40 anos, a mortalidade por acidente vascular cerebral (AVC) foi maior de que por doença coronária, situação inversa à de outros países ocidentais, com exceção de Portugal, com coeficientes próximos aos nossos(18). No Brasil, a mortalidade por AVC também apresenta variação regional. De 1979 a 1996, a mortalidade declinou no Sul e Sudeste, e aumentou no Centro-Oeste, exceto dos 30 aos 39 anos(19). O Nordeste apresentou o menor de risco de morte, exceto dos 40 aos 59 anos, quando aumentou(19). O Norte mostrou tendência à estabilidade. Vale ressaltar que a análise dessas tendências foi prejudicada pela grande proporção de causas mal definidas de morte. Em estudo recente em 11 capitais observou-se a mesma tendência geral de redução da mortalidade por AVC, com algumas diferenças a depender de idade e sexo. Em Porto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Goiânia, houve declínio da mortalidade em todas as faixas etárias, para ambos os sexos, com Goiânia apresentando a maior redução de risco de morte, 72% e 73%, em homens e mulheres, entre 30 e 39 anos, respectivamente. Em Salvador, com a maior incidência de AVC (168/100.000 adultos)(21), também foi observada tendên- Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 25 Tabela 7 – Desdobramento do segundo e quarto conjuntos de fatores de risco Mundo América* Homens (‘000) Mulheres (‘000) Homens (‘000) Mulheres (‘000) Pressão arterial 34.920 29.350 1.807 1.438 Colesterol 22.136 18.301 1.070 803 Sobrepeso 15.543 17.872 1.505 1.918 Poucas frutas e vegetais 15.117 11.544 896 581 Sedentarismo 10.159 8.933 582 585 Tabaco 48.177 10.904 2.190 813 Álcool 49.397 8.926 7.854 1.443 Drogas ilícitas 8.669 2.549 758 323 Dieta e sedentarismo Substâncias aditivas cia de redução na mortalidade, apesar do aumento em mulheres com 50 ou mais anos(20). O oposto ocorreu em Brasília, onde o risco aumentou de 78% e 97% em homens e mulheres, respectivamente, dos 50 aos 59 anos(20). O AVC é a terceira causa de morte nos Estados Unidos, com 700 mil casos novos por ano e 4,4 milhões de sobreviventes(8), representando importante problema econômico, com gasto de 51 bilhões de dólares no ano 1999(9). No Brasil, entre 1980 e 1995, um terço dos óbitos por doenças circulatórias decorreu de AVC, com 49.676 a 73.899 hospitalizações por ano entre 1984 e 1997(10). Os anos de vida produtiva perdidos por mortalidade entre 20 e 59 anos e o pagamento de pensões, em média 13 anos antes do esperado (12) , constituem outro importante aspecto socioeconômico do AVC no cenário nacional(11). A tendência epidemiológica da mortalidade por AVC foi decrescente na maioria dos países desenvolvidos, mas a expectativa projetada entre os anos de 1990 e 2020 é ainda de crescimento, embora num percentual bem menor que o observado e esperado nos países em desenvolvimento, nos quais a tendência tem sido crescente. Na América Latina, o crescimento esperado é de 138% para as mulheres e de 145% para os homens, em comparação a 28% e 56%, respectivamente, para os países desenvolvidos (Yussuf). Aspecto epidemiológico importante é a semelhança das tendências de mortalidade por infarto cerebral e cardiopatia isquêmica ao longo do século XX, sugerindo uma base etiopatogênica comum (Lawlor e Yussuf). Nos Estados Unidos, além das diferenças observadas para o sexo, com mortalidade masculina 25% 26 maior que a feminina, e para raça, com mortalidade em negros 40% maior que em brancos, há também uma importante variação geográfica. Assim, observa-se que na região conhecida como stroke belt (cinturão do AVC), que inclui os estados de Carolina do Norte e do Sul, Alabama, Mississippi, Arkansas, Tenessee e Louisiana, onde a concentração de negros é grande, a mortalidade é 40% maior que no restante do país (Howard-Stroke, 2001). É necessário discutir a importância clinicoepidemiológica dessas evidências, a fim de equacionar a influência das reduções na incidência e na letalidade sobre as reduções das taxas de mortalidade. Assim, no estudo Monica, dois terços da redução na mortalidade foram secundários à diminuição da incidência, por melhor controle dos fatores de risco, e um terço, por diminuição da letalidade(22). No Brasil, a avaliação e a confiabilidade desses dados sofrem grande influência da qualidade dos registros de ocorrência de casos e de óbitos, em algumas regiões, além das diferenças étnicas, socioeconômicas e culturais, sendo difícil uma avaliação real das nossas perspectivas. Considerações finais A epidemiologia das doenças arterial coronária e cerebrovascular torna evidente a importância da aterosclerose como causa de morbimortalidade cardiovascular em todo o mundo e também em nosso país. Diferenças em estratos populacionais distintos, inclusive em nosso meio, encontram explicação em variáveis sociodemográficas, exposição diferenciada a fatores de risco comuns, muitos deles controláveis. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Populações com níveis de impacto menores ou se encontram em fase precoce de transição, na qual se pode ainda interferir para reverter a tendência, ou já estão na fase descendente desejável, e servem como demonstração da efetividade da promoção da saúde, dentro de sua ampla concepção. Além dos fatores de risco modificáveis clássicos, classificados junto ao segundo mais importante grupo de impacto sobre a saúde em todo o mundo, é preciso considerar também a programação fetal e infantil dos problemas de saúde do adulto, incluído no primeiro grupo, de maior impacto, o da desnutrição materno-infantil. Pelo seu distanciamento da fase clínica no tempo, pela aparente falta de associação com as características das categorias tradicionais fisiopatogênicas e de intervenção, e por sua magnitude em países como o nosso (com desigualdade social e miséria), merece uma atenção es- pecial que não nos será enfatizada pela literatura originária de países com menor interesse pelo assunto. Como contraponto, em quase todo o mundo é possível observar uma epidemia de sobrepeso. Em nosso país, em torno da metade de nossas crianças tem desvio ponderal para um extremo ou para outro em proporções aproximadas. Embora já se reconheça há mais tempo a importância dos excessos quantitativos e da inadequação qualitativa da alimentação, também este fator de risco não tem sido suficientemente abordado. Um importante papel do cardiologista clínico é o do registro adequado do diagnóstico correto no atestado de óbito e em qualquer outro formulário na prática do atendimento individual, pois a informação é essencial para qualificar os estudos epidemiológicos e permitir uma avaliação adequada do estado de saúde de uma população, de suas tendências e da efetividade das intervenções. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 27 II.III Autores Marcelo Westerlund Montera1 Fábio Fernandes2 Atualização diagnóstica e terapêutica da miocardite A miocardite se caracteriza pela presença de resposta inflamatória, freqüentemente em decorrência de uma agressão infecciosa. Em conjunto com a miocardite, o processo inflamatório pode vir a acometer outras estruturas do coração, ocasionando pericardite ou vasculite coronariana. O agente agressor mais freqüente é o infeccioso, mas a miocardite pode também ser secundária a agressões pelo sistema imunológico, como na miocardite periparto, por radioterapia ou quimioterapia. Entre os agentes infecciosos, o mais comum é o viral, principalmente os enterovírus. Entre estes, o coxsackie do tipo B é o mais comum, sendo responsável por cerca de 50% dos casos. A miocardite secundária a agressão viral tem bemdefinidas três fases distintas de agressão e resposta inflamatória (Figura 1). A primeira fase se caracteriza pela presença de viremia com infecção viral miocárdica. Nesta fase temos a invasão dos miócitos pelo vírus, com agressão direta do vírus sobre o miócito, e a ativação de um sistema de defesa local, mediado principalmente pelos linfócitos teciduais locais, os chamados T killers, que liberam uma série de mediadores, entre eles a perforina, que tem como objetivo destruir o vírus e que acaba também lesando o miócito. Associada a estes mediadores, temos a liberação de citocinas, como interferon gama e interleucinas 1 e 6, que amplificam a resposta inflamatória de defesa. Esta fase 1 se caracteriza por viremia com ativação imune celularhumoral local. Ela tem um pico de atividade entre o quarto e o sétimo dia. Na fase 2, temos o desenvolvimento da resposta imune celular, em função do desenvolvimento de receptores de histocompatibilidade de superfície nos miócitos, pela exposição na superfície da membrana do miócito dos aminoácidos virais produzidos no interior do miócito. Estes receptores estimulam a resposta inflamatória mediada pelo linfócito T, que terá uma atuação direta e através de mediadores inflamatórios que promovem a agressão do miócito. Esta agressão terá repercussão funcional, com redução dos beta-receptores adrenérgicos, disfunção dos canais de cálcio voltagem-dependente, desacoplamento da ativação da proteína G estimuladora e alterações na cadeia respiratória que induzem disfunção contrátil. Outra fase da agressão é estrutural, com miocitólise e ativação da cadeia enzimática da apoptose. A fase 2 tem o seu pico entre a segunda e a quarta semana após a infecção viral do miocárdio. A fase 3 pode apresentar três modelos diferenciados de evolução. Podemos ter a progressão da agressão, em decorrência de uma resposta imune-humoral mediada pela permanência do RNA viral no miocárdio, cadeia ganglionar, baço, ou por reinfecção, que induz a ativação de complexos de histocompatibilidade com agressão miocitária permanente, induzindo cardiomiopatia dilatada com disfunção progressiva. Podemos ter o desenvolvimento de uma resposta reparativa, com proliferação de colágeno e fibrose, se manifestando com remodelagem ventricular e cardiomiopatia dilatada estável. Ou podemos ter a regressão do processo inflamatório, com recuperação da função ventricular ou manutenção de leve disfunção ventricular. A fase 3 é a que geralmente nos chega ao ambulatório, onde o paciente refere uma história de infecção há cerca de dois ou três meses. O seu pico de atividade é em torno do segundo ao terceiro mês. 1 Professor de pós-gaduação em Cardiologia da Santa Casa do Rio de Janeiro; Professor de Cardiologia da Universidade Gama Filho (UGF); Doutorando em Cardiologia pela USP; Médico do Hospital Pró-Cardíaco. Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da USP. 2 28 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 É de fundamental importância clínica tentar estabelecer em que fase evolutiva da doença se encontra o seu paciente, pois isto terá implicação no que se deve esperar dos métodos diagnósticos (Figura 2), assim como no estabelecimento da estratégia terapêutica (Figura 3). Fase 1 0-4º dia Infecção viral Necrose Inflamação (citocinas) NATURAL KILLERS + macrófagos Diagnóstico O diagnóstico baseia-se na presença de sinais e sintomas, além do alto grau de suspeita clínica e confirmação pelos métodos complementares. Fase 2 4º-14º dia CLEARANCE viral Agressão morfológica e funcional Auto-imune Quadro clínico A apresentação clínica é variável (Figura 4), podendo ser assintomática ou exteriorizar-se por arritmias freqüentes, morte súbita, quadro clínico infeccioso, disfunção ventricular assintomática, disfunção ventricular sintomática e forma fulminante de miocardite. Setenta por cento das disfunções ventriculares assintomáticas ou com poucos sintomas regridem sem deixar seqüelas. Das formas com maior disfunção ventricular, cerca de 25% regridem, 50% estabilizam e 25% evoluem progressivamente com piora da função ventricular. Os sintomas prodrômicos variam desde febre com presença de infecções não-específicas do trato respiratório ou gastroenterite até quadros mais específicos como síndrome coxsackievirus (rash, pleurodinia, linfadenite, orquite, hepatite ou meningite). É evidente que a valorização desta fase prodrômica geralmente se dá de forma retrospectiva, pois a incidência de quadros virais é muita elevada, principalmente em épocas de surtos. Após estes surtos, a ocorrência de miocardite é mais elevada que em épocas nas quais eles não ocorrem. O clínico deve levantar a hipótese de miocardite viral quando estiver presente história de doença viral prévia. Outros possíveis dados diagnósticos seriam: 1) presença de taquicardia desproporcional a quadro febril; 2) ausência de doença cardíaca preexistente; 3) aparecimento súbito de arritmias ou distúrbio de condução; 4) presença de aumento da área cardíaca ou sintomas de insuficiência cardíaca congestiva sem causa aparente; 5) quadro de dor torácica e insuficiência cardíaca em pacientes jovens. Arritmias podem ser manifestações únicas de miocardite, com ou sem dilatação de câmaras. Pacientes com taquicardia ventricular sem causa aparente, quando submetidos a biópsia endomiocárdica, de- Fase 3 14º-90º dia Fibrose Depressão funcional Resolução espontânea Progressão Figura 1. Fases evolutivas da miocardite monstram processo inflamatório. Portanto, arritmias cardíacas que surgem sem causa aparente devem ter entre as hipóteses diagnósticas a miocardite. Pacientes com quadro clínico de pericardite fibrinosa ou aguda, como nós clínicos gostamos de chamá-la, com dor precordial, atrito pericárdico e segmento ST supradesnivelado ao eletrocardiograma recebem, em geral, o diagnóstico de pericardite viral e são tratados com antiinflamatórios. Muitos destes, entretanto, são portadores de perimiocardite, que pode evoluir para miocardite linfocitária e posterior dilatação cardíaca. Portanto, mesmo após o desaparecimento do quadro agudo, devem ser observados atentamente. Do exposto, depreende-se que a apresentação clínica da miocardite é heterogênea, devendo haver sempre alto grau de suspeição por parte do clínico. Figura 2. Relação dos métodos diagnósticos de acordo com a fase evolutiva da miocardite Pesquisa diagnóstica na miocardite Fase 1 Pesquisa viral Imunoistoquímica Biópsia Fase 2 Fase 3 Imunoistoquímica Biópsia ANTC-antimiosina Cintigrafia gálio Pesquisa RNA viral Imunoistoquímica Biópsia Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 29 Fase 1 Vacinas Antiviral Anticitocinas Modulação imune Fase 2 Imunossupressão Fase 3 Vacinas Antiviral Imunoabsorção Ieca Betabloqueador Eletrocardiograma Figura 3. Estratégia terapêutica de Alterações laboratoriais acordo com a fase Os exames laboratoriais não são diagnósticos. evolutiva da Eles indicam a presença de atividade inflamatória miocardite ou de agressão miocárdica. Cerca de 60% dos paci- entes irão apresentar um aumento dos marcadores de inflamação como VHS ou da PTN C reativa; e 25%, leucocitose inespecífica. A ausência de marcadores inflamatórios positivos, ou de elevação Figura 4. Formas enzimática, não nos permite excluir o diagnóstico clínicas de apresentação de miocardite. As enzimas miocárdicas poderão ese evolução da tar elevadas na presença de necrose miocárdica miocardite Morte súbita Arritmias Leve disfunção Leve dilatação CF II Apresentação e evolução clínica das miocardites detectável. Destas, as troponinas T e I são as que apresentam a maior sensibilidade na detecção da agressão do miócito, estando elevadas em 32% dos pacientes, enquanto que a CKMB encontra-se elevada em 12%. Os níveis séricos enzimáticos correspondem ao grau de agressão miocárdica e apresentam um comportamento diferente do infarto agudo do miocárdio, pois não seguem o padrão usual da curva enzimática, permanecendo com pico mais prolongado e queda mais lenta. Outros exames estariam relacionados à tentativa de se identificar a presença do agente viral nas análises de sangue, fezes, pericárdio e miocárdio, como pesquisa de IGM e PCR para diversos vírus, como coxsackie, citomegalovírus e hepatite C, ou na avaliação de atividade de doença do colágeno (esclerodermia, lúpus eritematoso sistêmico, polimiosite) e doença reumática. 70% regressão O eletrocardiograma do paciente portador de miocardite apresenta-se de forma heterogênea, sendo descritos: taquicardia sinusal, fibrilação atrial, sobrecarga ventricular esquerda, bloqueios atrioventriculares, alterações do segmento ST, alterações de repolarização e complexos de baixa voltagem. As alterações eletrocardiográficas são observadas com maior freqüência do que as alterações clínicas. As alterações mais comuns são as do segmento ST, podendo apresentar-se como supra ou infra de ST, e da onda T, com ondas apiculadas ou invertidas. Usualmente, as alterações se distribuem difusamente e são transitórias. Raramente temos a presença de onda Q. Arritmias atriais, taquicardia sinusal persistente, extrasístoles ventriculares ou taquicardias ventriculares não-sustentadas também podem ser observadas. Os distúrbios de condução atrioventricular não são comuns e, quando ocorrem, são transitórios. Os bloqueios de ramo, principalmente o esquerdo, geralmente estão associados com importante envolvimento miocárdico, e indicam pior prognóstico. Ecocardiograma 25% regressão Importante disfunção Importante dilatação CF III-IV 50% IC crônica 25% IC progressiva Fulminante 30 Pode-se detectar disfunção sistólica com diminuição da fração de ejeção do ventrículo esquerdo, dilatação de câmaras ventriculares e atriais, insuficiências mitral e tricúspide secundárias e, eventualmente, disfunção diastólica. Outros achados são: hipertrofia miocárdica, acinesia, discinesia, derrame pericárdico e trombose intracardíaca. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Cintilografia miocárdica A medicina nuclear é um método não-invasivo que apresenta importante papel tanto no diagnóstico como na evolução da miocardite. Vários radiofármacos têm sido utilizados no diagnóstico de inflamação, entre eles o gálio-67, a cintilografia com leucócitos marcados com In-111 (indium-111) e o estudo cintilográfico com anticorpo monoclonal antimiosina marcado com In111 ou Tc-99m3. Na cintilografia cardíaca com gálio-67, as imagens são adquiridas 48 ou 72 horas após administração endovenosa do radiofármaco, na incidência anterior do tórax. A captação é considerada discreta, moderada ou severa, sendo a comparação feita entre a intensidade de captação cardíaca e a captação com arcos costais e externo. Em nosso meio, Camargo, em 1990, estudando crianças portadoras de miocardiopatia dilatada, tomando como padrão-ouro a biópsia endomiocárdica de ventrículo direito, observou sensibilidade da cintilografia de 87% e especificidade de 81% na detecção de miocardite. As conclusões desse estudo foram: 1) todos os pacientes com miocardite tiveram gálio positivo; 2) gálio discretamente positivo tem alta incidência de falsa positiva, sendo que 40% destes pacientes têm fragmentos obtidos pela biópsia endomiocárdica normais à microscopia de luz; 3) não se justifica biópsia em pacientes cujo resultado do gálio é negativo. A capacidade da cintigrafia de detectar a presença de resposta inflamatória miocárdica está diretamente relacionada com a fase evolutiva em que se encontra a doença. Temos uma capacidade de detecção de cerca de 80% na fase 1, 40% a 60% na fase 2, e 8% a 12% na fase 3. O outro método de avaliação de miocardite em atividade é através da detecção de miocitólise por cintigrafia com anticorpo antimiosina indium-111. A aplicação desta técnica tem demonstrado sensibilidade de 83% e especificidade de 53%, com um valor preditivo positivo de 92%. Ressonância nuclear magnética A análise pela RNM de ambos os ventrículos traz informações precisas sobre a presença e a extensão do processo inflamatório. O método pode ser utilizado no início do processo inflamatório, assim como no seguimento dos pacientes com miocardite. É um exame sensível, que traz importantes informações clínicas e apresenta baixo risco e desconforto mínimo quando comparado a exames invasivos. Friedrich et al. acompanharam 19 pacientes com suspeita clínica de miocardite, utilizando a variação na seqüência em T1 com gadolínio. Em sete pacientes também foi realizada a biópsia endomiocárdica, e o padrão morfológico, comparado com RNM. Os exames foram realizados nos seguintes dias após o início dos sintomas: 2, 7, 14, 28 e 84. A miocardite aguda no início apresentou-se como um processo localizado, evoluindo para doença miocárdica difusa. A RNM permitiu visualizar a localização, a atividade e a extensão da inflamação, sendo um bom método complementar diagnóstico não-invasivo. Da mesma forma que a cintigrafia, a RNM tem uma menor capacidade de detecção nas fases mais tardias da doença, sendo a sua maior acurácia nas fases 1 e 2. Biópsia endomiocárdica do ventrículo direito A miocardite tem definição histopatológica, de tal forma que seu diagnóstico final deverá ser feito com a biópsia endomiocárdica do ventrículo direito. A capacidade diagnóstica da biópsia endomiocárdica está intimamente relacionada com a fase evolutiva da doença. Uma vez que a biópsia busca detectar a fase imune-celular, esta terá maior capacidade diagnóstica nas fases 1 e 2. Na fase tardia da doença, esta só consegue detectar a ativação inflamatória em cerca de 8% dos casos. A fim de padronizar o diagnóstico de miocardite, um grupo de especialistas reuniu-se em Dallas, nos Estados Unidos, em 1987, para estabelecer critérios histológicos para o diagnóstico por meio da biópsia endomiocárdica. Com estes critérios atingiu-se um consenso para o desenvolvimento de trabalhos. Na miocardite severa não há controvérsia entre os patologistas. O problema, porém, estaria nos casos discretos, pois os critérios de Dallas não estabelecem o número mínimo de células no infiltrado inflamatório para um exame anormal. Atualmente, além do diagnóstico histopatológico, também podem-se obter importantes informações pela técnica de biologia molecular (Desmond). Detecção de genoma viral: técnicas de biologia molecular Evidências sugerem que os vírus não somente contribuem para a fase aguda da miocardite, mas também para a evolução da doença cardíaca. Com as novas técnicas de biologia molecular, a persistência dos vírus e sua interação com o sistema imune permitem novas Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 31 pistas na compreensão das miocardites e da miocardiopatia dilatada (Kawai). Em crianças, a principal causa de insuficiência cardíaca é a miocardite. Utilizando técnicas de biologia molecular, polymerase chain reaction (PCR) ou transcriptase reversa (TR), Calabrese et al. analisaram 59 biópsias endomiocárdicas, de 48 pacientes consecutivos (< 18 anos), com diagnósticos clínico e histológico de miocardite, empregando primers para amplificar várias seqüências de vírus DNA e RNA. Genoma viral foi encontrado em 20 pacientes (49%): 12 de 26 pacientes (46%) com miocardite, seis de 13 pacientes (46%) com miocardiopatia dilatada. Enterovírus foram os agentes mais comumente encontrados na miocardiopatia dilatada (72%), e os adenovírus e os enterovírus foram os mais prevalentes na miocardite (36%). Os autores também observaram que, nos casos em que havia a presença do genoma viral, existia também infiltrado inflamatório e lesão miocárdica, assim como pior função ventricular. Detecção de agressão imunehumoral na fase 3 A avaliação da agressão imune nesta fase se faz através de métodos de imunoistoquímica, com a marcação de HLA de tipos 1 e 2 tecidual e vascular. Podemos encontrar a presença de HLA positivo em até 90% a 100% dos casos em que a detecção por análise de celularidade tem somente 8% de positividade. Terapêuticas Tratamento imunossupressor O tratamento imunossupressor baseia-se na segunda fase da evolução da miocardite, na qual a ação viral desencadeia uma resposta imune do hospedeiro. Em nosso meio, Arteaga et al., em 1990, publicaram um estudo com 102 pacientes com diagnóstico de miocardiopatia dilatada com até 12 meses de evolução. Em 51 pacientes foi observada miocardite linfocitária. Dez pacientes, além do tratamento convencional com digital, diurético e inibidores da enzima conversora da angiotensina, receberam prednisona e azatioprina por seis meses. Neste grupo não foi observada melhora significativa em relação ao quadro clínico ou à função do ventrículo esquerdo, quando comparado ao grupo de 41 pacientes que apenas receberam a medicação convencional. Entretanto, a mortalidade foi três vezes maior no grupo que recebeu drogas imunossupressoras. 32 Com o objetivo de analisar os efeitos favoráveis da terapia imunossupressora em crianças com cardiomiopatia e miocardite ativa, Camargo, em 1995, estudou 68 crianças com idades variando de 10 meses a 15 anos. Elas foram divididas em quatro grupos: I) controle – nove pacientes (digital, diurético, vasodilatadores); II) prednisona – 12 pacientes com a terapêutica convencional mais prednisona; III) azatioprina – 16 pacientes submetidos à terapêutica convencional mais prednisona e azatioprina; IV) ciclosporina – 13 pacientes tratados com a terapêutica convencional mais prednisona e ciclosporina, analisando-se os resultados por meio de exames nãoinvasivos e invasivos (hemodinâmica). Dos pacientes submetidos à terapêutica convencional, apenas 2/ 9 apresentaram melhora clínica e hemodinâmica. Entre os pacientes submetidos à terapêutica convencional mais prednisona, 3/12 casos tiveram melhora clínica e hemodinâmica. Em contraste, pacientes submetidos à terapêutica com azatioprina e ciclosporina apresentaram melhores resultados: 13/16 e 10/13 pacientes, respectivamente, tiveram melhora clínica e hemodinâmica. Este trabalho demonstra os efeitos benéficos da terapêutica imunossupressora em crianças, porém o número de pacientes alocados em cada grupo é pequeno. Em 1995 foram publicados os resultados do Myocarditis Treatment Trial, realizado em 31 centros de EUA, Canadá, Reino Unido e Japão, que entre 1986 e 1990 estudou 2.233 pacientes com diagnóstico de miocardiopatia dilatada, fração de ejeção menor do que 0,45 e idade média de 42 anos, que realizaram biópsia endomiocárdica do ventrículo direito. Apenas 214 pacientes (10%) apresentavam diagnóstico histopatológico sugestivo de miocardite. Cerca de 111 pacientes foram randomizados: os 47 pacientes do grupo controle receberam medicação convencional; prednisona e azatioprina foram dadas a 19 pacientes; e outros 45 receberam prednisona e ciclosporina durante quatro meses. Ao final do estudo não se observou melhora significativa da função do ventrículo esquerdo, nem da sobrevida, nos pacientes que receberam medicação imunossupressora, quando comparados aos do grupo controle. As críticas realizadas a este estudo incluem: 1) muitos pacientes alocados não tinham miocardite vigente; 2) os pacientes eram estáveis e não apresentavam risco elevado ou imediato; 3) a dose de prednisona e ciclosporina dada à grande maioria dos pacientes não era muito potente. O próprio Mason, em um editorial publicado em 2002, questiona se muitos dos pacientes Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 alocados para o tratamento imunossupressor e que haviam apresentado doença viral recente estariam na terceira fase (remodelamento adverso com miocardiopatia dilatada), ou seja, persistência de níveis virais nãodetectáveis porém suficientes para manter um baixo nível de destruição imune mediada. Por outro lado, a melhora espontânea ocorre em muitos pacientes com miocardite. Em uma metanálise de 12 estudos, com 388 indivíduos, com e sem biópsia endomiocárdica, observou-se melhora em 58% dos pacientes, que estavam recebendo apenas medicação para insuficiência cardíaca congestiva, enquanto 37% não apresentaram melhora ou pioraram. Em outra metanálise, de 19 estudos e 250 indivíduos, que além do tratamento convencional da insuficiência cardíaca receberam prednisona e azatioprina ou ciclosporina, observou-se que 61% dos pacientes melhoraram e 39% não apresentaram melhora ou pioraram, de forma muito semelhante aos pacientes que não receberam medicação imunossupressora. Deve haver subgrupos de pacientes que poderiam se beneficiar do tratamento imunossupressor. Seriam pacientes com processo inflamatório evidente e com baixo grau de deposição de colágeno, havendo assim maior possibilidade de involução dos volumes ventriculares. Esta idéia poderia explicar a diferença entre os resultados de crianças e adultos obtidos no Instituto do Coração. Outros marcadores devem existir, ainda desconhecidos por nós. Infelizmente, esses pontos não foram aventados no trabalho de Mason et al., e os maus resultados obtidos geraram descrédito em relação ao tratamento. Portanto, achamos que a idéia de tratamento imunossupressor não deve ser totalmente abandonada, e sim individualizada. Imunomodulação: gamaglobulina Novos tratamentos imunomodulatórios foram propostos para o tratamento da miocardite aguda. O uso da gamablobulina baseia-se no fato de que a lesão miocárdica é mediada por mecanismos auto-imunes, em adição aos efeitos diretos miocárdicos da infecção viral. O mecanismo de ação da gamaglobulina parece ser a modulação da resposta imune, além do mecanismo antiviral, que resulta em diminuição da inflamação miocárdica pela down-regulation de citocinas pró-inflamatórias, as quais possuem efeito inotrópico negativo direto. Em 1994, Drucker et al. publicaram um estudo de 46 crianças com insuficiência cardíaca de início menor que três meses e biópsia endomiocárdica demonstrando miocardite. Em 21, além do tratamento convencional foi dada gamaglobulina endovenosa na dose de 2g/kg. Após um ano, o grupo que recebeu gamaglobulina mostrou melhora significativa da fração de ejeção, diminuição da cavidade ventricular esquerda e uma tendência a melhor sobrevida. Em 1996 foi desenvolvido um estudo duplo-cego randomizado, The Intervention in Myocarditis and Acute Cardiomyopathy (Imac), com o objetivo de determinar a ação das imunoglobulinas na função ventricular em pacientes com miocardiopatia dilatada de recente começo ou miocardite. Sessenta e dois pacientes com miocardiopatia dilatada de recente começo (seis meses de sintomas) e fração de ejeção de 40% foram randomizados com 2g/kg de imunoglobulina endovenosa ou placebo. Todos foram submetidos a biópsia endomiocárdica de ventrículo direito, sendo que apenas 16% tinham miocardite. O objetivo primário foi alteração da fração de ejeção ventrículo esquerdo (FEVE) em seis e 12 meses. A FEVE melhorou de 0,25 ± 0,08 para 0,41 ± 0,17 em seis meses (p < 0,001) e 0,42 ± 0,14 (p < 0,001 versus basal) em 12 meses. O aumento foi virtualmente idêntico nos pacientes que receberam imunoglobulina (IVIG) e placebo (seis meses: IVIG 0,14 ± 0,12, placebo 0,14 ± 0,14; 12 meses: IVIG 0,16 ± 0,12, placebo 0,15 ± 0,16). As conclusões deste estudo foram de que, em pacientes com miocardiopatia dilatada de início recente, o uso de imunoglobulina endovenosa não trouxe melhora para a função ventricular. No entanto, a fração de ejeção melhorou significativamente, e o prognóstico a curto prazo foi favorável em ambos os grupos. Perspectivas Está em andamento o estudo The European Study of Epidemiology and Treatment of Cardiac Inflammatory Disease (Esetcid), baseado na etiologia da miocardite com medicação direcionada de acordo com a etiologia. Tratamento da miocardite em modelos experimentais • Interferon α – inibe a replicação viral e reduz a resposta inflamatória quando administrado anteriormente ou simultaneamente à inoculação viral (Matsumori). Anticorpos antiinterferon a diminuem o grau de lesão miocárdica e melhoram a sobrevida de ratos tratados um dia antes da inoculação do vírus da encefalomiocardite; • imunização passiva com vacinas vírus-específicas previne o aparecimento de miocardite. Vacina contra enterovírus coxsackie B3 em ratos evitou o aparecimento de miocardite; Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 33 • vesnarinone, do grupo das quinolonas com efeito inotrópico positivo, possivelmente modula a produção de citocinas no início da infecção. Em modelo de rato infectado pelo vírus da encefalomiocardite, melhorou a sobrevida por suprimir a produção de TNF-α e de celular natural killers. • bloqueador de angiotensina II (AT1) diminui o dano miocárdico e melhora a sobrevida de ratos infectados pelo vírus da encefalomiocardite; • captopril diminui a necrose celular e o infiltrado inflamatório na miocardite induzida pelo vírus coxsackie B3; • ribavirina, agente antiviral de largo espectro, reduziu a replicação viral miocárdica e a resposta inflamatória e aumentou a sobrevida em camundongos com miocardite induzida pelo vírus da encefalomiocardite; • vitamina E melhora a evolução da miocardiopatia em hamsters sírios, possivelmente por seu efeito antioxidante; 34 • L-arginina – o óxido nítrico é um radical livre que medeia funções fisiológicas vitais, além da imunidade não-específica. Vários tipos celulares são capazes de produzir óxido nítrico pela conversão da L-arginina para L-citrulina pela enzima óxido nítrico sintetase. A inibição desta enzima aumenta os níveis de títulos virais e agrava a fase aguda da miocardite, além de diminuir a produção da matriz extracelular. O óxido nítrico parece exercer um importante papel protetor na inflamação cardíaca. Inibe aderência de leucócitos a linfócitos e suprime a expressão local de citocinas inflamatórias, regulando o tônus vasomotor. Hiraoka et al., em trabalho experimental, demonstraram que o tratamento com Larginina melhora o curso e reduz o dano cardíaco na miocardite murina, com elevações de L-arginina e os níveis de óxido nítrico elevam-se com o tratamento com L-arginina. Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 Programa de Educação Continuada da Sociedade Brasileira de Cardiologia • Módulo 2 • Fascículo 3 • Ano 2 • 2003 35