Sobre os tempos - Portal do Envelhecimento

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Reflexões
Sobre os tempos
Por Vera Brandão
Fotos: Acervo pessoal
A
foto que inicia esta reflexão representa mais do que uma simples
ilustração.
Foi a partir deste lugar, e das sensações e pensamentos que lá me ocorreram,
aliados a uma crônica que, por coincidência (?), li neste mesmo dia, e
transcrevo ao final na íntegra, que nasceram as reflexões que aqui partilho.
Um pequeno barco, a névoa, uma indecifrável paisagem...
Solidão ou plenitude? Uma nesga do tempo capturada por um olhar encantado.
Um segundo no tempo. O tempo no tempo.
O tempo é hoje um bem precioso. Ter tempo é o desejo de todos.
Diz-se - “O tempo passa depressa”; - “O “tempo não para”; - “Não tenho
tempo”; - “Quanto tempo se passou, mas parece que foi ontem”!”.
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Mudou o tempo ou mudamos nós?
Sim, o tempo não para. Mas o tempo cronológico não mudou – o dia continua
tendo 24 h, o ano 365 dias, 8760 h! Quanto tempo!
Este é Cronos, o tempo datado, historicamente referido e base do
pertencimento a uma época determinada. Mas ele também nos oprime, sufoca
acelerado em sua urgência de modernidade. Como afirma Bosi “datas são
pontas de icebergs” e, por meio desta metáfora, podemos pensar no que não
está aparente, submerso, uma dimensão desconhecida. Este é o nosso tempo,
um processamento particular do tempo Cronos, que nos ajuda a construir um
tempo pessoal único Kairós - o tempo vivido.
Podemos pensar em Tempos plurais, em uma superposição de tempos vividos
durante todas as etapas da vida, e sobre os tempos ancestrais. Criança, o
tempo demora passar. Muitas vezes os desejos tem data certa para serem
satisfeitos; adolescentes, submergimos em tempos de mudança, de quereres,
de revolta, de incompreensão, de frustrações (quem disse que se têm
saudades deste tempo turbulento?); na maturidade caímos nas “correntes” do
tempo: trabalho, família, obrigações financeiras, sociais, políticas... E chega a
velhice. Que tempo é este? E o que é o tempo?
Do latim tempus, o termo pode ser definido como “a duração relativa das coisas
que cria no ser humano a sensação de presente, passado e futuro” (Houaiss,
2001:2690).
Analisando esta definição temos a noção da passagem ou alternância do
tempo como uma sensação, mas também como duração. A noção trabalhada
profundamente, entre outros, por Santo Agostinho, nos remete ao real tempo
vivido-kairós, mas aprofunda a reflexão para outra dimensão do tempo, de
significado existencial.
Confesso-vos, Senhor, que ainda ignoro o que seja o
tempo. De novo vos confesso também, Senhor – isto não
o ignoro -, que digo estas coisas no tempo é que já há
muito tempo que falo do tempo, e que esta longa demora
não é outra coisa senão uma duração de tempo. E como
posso saber isto, se ignoro o que seja o tempo?
Acontecerá talvez que não saiba exprimir o que sei? Ai de
mim, que nem mesmo sei o que ignoro! (1980: XI,25-33
pp. 225-6)
Este é o tempo vivido “como uma das dimensões do ser”, como afirma o
filósofo Joel Martins (1998), que se conecta com a noção de projeto existencial.
E se penso em tempo e projeto, penso no presente, ligando passado ao futuro,
planos de um ser que (se) projeta. Como afirma Bergson:
Meu presente consiste num sistema combinado de
sensações e movimentos [...] é, por essência, sensório-
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motor [...] equivale dizer que meu presente consiste na
consciência que tenho do meu corpo [...] colocado entre a
matéria que influi sobre ele e a matéria sobre a qual ele
influi, meu corpo é um centro de ação, o lugar onde as
impressões recebidas escolhem inteligentemente seu
caminho para se transformarem em movimentos
efetuados; portanto, representam efetivamente o estado
atual do meu devir, daquilo que, em minha duração, está
em vias de formação. (1990:114)
Observamos que o corpo - enquanto matéria - é mediador das percepções e
sensações, sendo elas operadas pelo espírito (subjetividade, inconsciente,
sinapses cerebrais) que se transformarão em um saber. O processo se dá em
um tempo do qual o corpo é, também, o sistema de aferição.
O corpo está “no tempo” físico, cronológico. Vivemos em horas, dias, meses,
anos marcados. Mas também vivemos o tempo como possibilidade, fruto de
nossas sensações e experiências. Se vividas no tempo datado, a ele
ultrapassam na medida das maquinações e artimanhas do imaginário. Aí se
constroem os projetos. Vivemos (convivemos) com várias dimensões de um
mesmo tempo. E aqui poderíamos pensar como Heiddeger, que propõe o
tempo como estrutura de possibilidade, um por-vir. O tempo, como o ser, é
uma possibilidade. Não se apresenta como única, mas múltipla.
Temos um tempo interno (subjetivovivido-kairós) e um tempo externo
(objetivo, histórico, datado-cronos).
Nesses “tempos” estão incluídos, o
tempo reversível (mítico/místico/da
memória-circular) e o irreversível
(histórico, de direção única, flecha do
tempo).
Reflexões que se completam no real.
Capturei a imagem-metáfora com os
cinco sentidos: com meus olhos, vi;
ouvi o som da água batendo,
levemente, sob o balcão do terraço onde estava; o cheiro de sal e maresia, do
vento frio, no calor de um sol pálido, que começava a romper a bruma.
Espaço-tempo se articularam neste instante. A imagem reflete um momento
fugidio da minha estada em uma charmosa pousada1 situada às margens da
Ria de Aveiro, Portugal2.
1
http://www.pousadas.pt/historic-hotels-portugal/pt/pousadas/center-hotels/pousada-detorreira-murtosa/ria-de-aveiro/pages/home.aspx
2
http://www.av.it.pt/aveirocidade/pt/ria/ria.htm
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A Ria de Aveiro estende-se, pelo interior, paralelamente ao mar, numa
distância de 47 km e com uma largura máxima de 11 km, no sentido EsteOeste, desde Ovar até Mira. A Ria é o resultado do recuo do mar, com a
formação de cordões litorais que, a partir do séc. XVI, formaram uma laguna
que constitui um dos mais importantes e belos acidentes hidrográficos da costa
portuguesa.
Abarca 11 000 hectares, dos quais 6 000 estão permanentemente alagados,
desdobra-se em quatro importantes canais ramificados em esteiros que
circundam um sem número de ilhas e ilhotes. Nela desaguam o Vouga, o Antuã
e o Boco, tendo como única comunicação com o mar um canal que corta o
cordão litoral entre a Barra e S. Jacinto, permitindo o acesso ao Porto de
Aveiro, de embarcações de grande calado.
Esta paisagem concreta se apresenta difusa, e volta a questão final do tempo a velhice. Que tempo é este?
Novas possibilidades, perdas, sonhos desfeitos, sensação de “missão
cumprida”, tempo de espera, de reflexão, apaziguamento? Tempo do medo!
Como viveremos os nossos tempos finais? Qual e como será este último e
derradeiro minuto de vida, no qual deixaremos o “ser”, material? E será que
existe este outro tempo de esperançosa bem aventurança, negado por muitos,
esperança de tantos? Fracos contornos de imagens apenas adivinhadas, entre
sono-sombra-indefinição.
Temos tempo para pensar no tempo? Nos poucos momentos de “pausa” não
buscamos, frequentemente, inúmeras atividades para “preencher o tempo” que
seria de descanso?
Viagens apressadas - o tempo vale dinheiro, temos de aproveitar o máximo,
conhecer tudo. Fins de semana com tantos compromissos que nos impedem
de refletir. A dificuldade em estar só e a ânsia (voraz) por companhia e
“programas”. Encontro com os amigos e familiares podem ser tempo de
renovação dos vínculos afetivos? É isto possível?
A noção de um fragmento do tempo longo de reflexão vivido em segundos.
Emoções filtradas pelo meu corpo, meu presente, mas que duram...
Ainda agora posso “ouvir o mar” e olhar uma imagem de mim...sem palavras
para exprimir estes segundos.
Admitamos, por exemplo, um escritor que esteja tentando
transmitir certas ideias que para ele estão encerradas sob
forma de imagens mentais. Não estando totalmente
seguro de como essas imagens se harmonizam em seu
espírito, vai procedendo por tentativas, exprimindo-as ora
de um modo ora de outro, para chegar finalmente a uma
determinada versão. Mas sabe acaso de onde tudo isto
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provém? Apenas de maneira vaga. A maior parte da fonte
permanece, como um iceberg, imersa profundamente na
água, fora de vista, - e ele sabe disso. (Hofstader, citado
por Calvino,1990:103)3.
A crônica de Jose Luis Peixoto4, lida neste mesmo dia, recompõe circularmente
e magicamente o vivido, e encerra estas breves e difusas, como a névoa,
reflexões sobre o tempo.5
“Estar aí, estando aqui.
Se existem várias realidades em simultâneo, se cada um vê o mundo desde
um ponto diferente, é porque existem vários tempos a partilharem o mesmo
espaço. Tempo fora e dentro do corpo.
Existe o tempo deles; a brincarem com legos, a admirarem-se com os saltos de
um gafanhoto, a rirem-se de caretas no espelho. E existe o nosso tempo:
preocupados com a segurança social, com o boletim meteorológico, com as
alergias, com o parquímetro, com o trânsito, atrasados para a reunião, para o
3
Calvino cita a obra de Douglas Hofstader: Godel, Escher, Bach (pp.102/114/ sd)
Luís Peixoto (Galveias, Ponte de Sor, 4 de setembro de 1974, Portugal) é um dos mais
destacados escritores portugueses do início do século XXI. É licenciado em Línguas e
Literaturas Modernas (inglês e alemão) pela Universidade Nova de Lisboa. Antes de dedicar-se
profissionalmente à escrita em 2000, trabalhou como professor na cidade da Praia (Cabo
Verde) e em várias cidades de Portugal. http://www.joseluispeixoto.net/
5- Ver Revista Espiral do Tempo. Disponível em:
http://issuu.com/espiraldotempo/docs/espiral_do_tempo_39?mode=window&backgroundColor=
%23222222 . Primavera-Verão 2012 (impressa), nº 39, pp. 161
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jantar, para a aula de yoga. Impressiona considerar que estes dois tempos
existem sobrepostos. Por isso, parecem o mesmo tempo. Mas não são. A
contemporaneidade engana muito.
Se formos dados á caminhada, cruzamo-nos todos os dias nos passeios das
cidades com multidões de pessoas de outro tempo. Cada um caminha na sua
época privada, na sua idade única, contabilizada não apenas em anos, meses
e horas, mas, mais do que isso, contabilizada em memória e em consciência.
Da mesma maneira que cada indivíduo vive um tempo próprio, construído a
partir de notícias de jornal, de boatos de vizinhas, de aconchegos e de
suspeitas, também é certo que cada um desses mesmos indivíduos vive a um
tempo que lhe pertence, que é impartilhável, intransmissível. A velocidade da
respiração depende do tamanho dos pulmões, da pressa com que se caminha
e, sobretudo, da vontade de respirar. O ritmo de cada um é biológico, mas é,
também, fruto do pensamento e da relação maior ou menor com que se aceita
a dor. Essa atitude pessoal com que se encara os gestos necessários e a ação
perante o mundo mexe no ritmo geral das coisas e desregula o tempo. Aos
olhos daqueles que correm ou que estão parados, existe a sensação de
minutos que passam demasiado depressa ou demasiado devagar.
E, de modo subliminar, é como se houvesse períodos em que o tempo passa
ao seu ritmo devido e outros, de prazer, que passam rápido, e outros, de dor,
que passam devagar. No centro dessas marés, o tempo que se levanta mais
questões é aquele que julgamos ter decorrido ao passo natural do próprio
tempo. Que tempo é esse? Qual é o tempo que não avança demasiado
depressa ou demasiado devagar? Essa variação parece-me, só se notam no
momento em que se olha para o relógio. Então, as pessoas dizem: “já?” E
procuram gentilezas tão banais como: “Que conversa tão agradável, o tempo
passou a voar.” Ou, perante a dor, debaixo dela, olha-se para um relógio e a
pausa entre os segundos é enorme, como se os ponteiro estivessem indecisos
e, segundo a segundo, tivessem de resistir à tentação de voltar para trás.
E, no entanto, existe o tempo delas: a saírem de casa às cinco da manhã para
limpar escritórios, a esperarem na paragem de autocarros, com as orelhas
geladas. E, existe o tempo delas: a irem para casa de taxi depois de uma ladies
night, com hálito de gin tónico, com as roupas e os cabelos a cheirarem a fumo.
Existe também o tempo delas: a acordarem com pijamas de flanela, a
avançarem ensonadas pelos corredores. E existo eu: bem desperto de
madrugada, insone, a escrever estas palavras e a imaginar aquilo que existe
ao longo de toda a distância que se vê da minha janela”.
Referências
BOSI, Alfredo. “O tempo e os tempos”, em Tempo e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
BRANDÃO, Vera M, A. Tordino. A Construção do Saber. Desafios do Tempo.
(2004). Tese Doutorado em Ciências Sociais - Antropologia, PUC São Paulo.
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BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
MARTINS, Joel. “Não somos Cronos, somos Kairós”, Revista Kairós, nº. 1. São
Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia (PUC/SP), 1998.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, coleção Os Pensadores,
1980.
Dicionário de Língua Portuguesa – Antonio Houaiss, Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
Veja mais
10/08/2012 - José Luís Peixoto. Em entrevista ao Leituras, o escritor José Luís
Peixoto fala de seu novo romance, “Livro”. Na obra ele aborda o caminho que
leva a um inevitável exílio e todo o drama da imigração
http://www.senado.gov.br/noticias/tv/videos/cod_midia_188087.flv
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Vera Brandão - Pedagoga (USP). Mestre e Doutora em Ciências Sociais Antropologia pela PUC/SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do
Envelhecimento (NEPE) do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Gerontologia da PUC/SP. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas
Interdisciplinares (GEPI) do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Educação/Currículo (PUC/SP). Docente do Cogeae - PUC/SP. Idealizadora e
docente da Oficina: Memória Autobiográfica – Teoria e Prática. Editora do
Portal do Envelhecimento e da Revista Portal de Divulgação.
www.portaldoenvelhecimento.org.br. Membro da Equipe fundadora do OLHE –
Observatório
da
Longevidade
Humana
e
Envelhecimento.
http://www.olhe.org.br e [email protected].
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