pdf completo - Revista Papeis

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pdf completo - Revista Papeis
ISSN: 1517-9257
Papéis : rev. Letras
Campo Grande, MS
v. 3/4
n. 5/10
p. 1-48
1999/2001
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
MATO GROSSO DO SUL
Reitor
Manoel Catarino Paes - Peró
Vice-Reitor
Mauro Polizer
CÂMARA EDITORIAL
Alda Maria Quadros do Couto
Ana Maria Souza Lima Fargoni
Dercir Pedro de Oliveira
José Batista de Sales
Maria Adélia Menegazzo
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
Rita Maria Baltar Van Der Laan
Ronaldo Assunção
Vânia Maria Lescano Guerra
Ficha Catalográfica preparada pela
Coordenadoria de Biblioteca Central/UFMS
Papéis : rev. Letras / Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997). Campo
Grande, MS : A Universidade, 1997.
v. : il. ; 27 cm.
Semestral.
ISSN 1517-9257
1. Literatura. Periódicos. I. Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul.
CDD-805
2
APRESENTAÇÃO
O número 5 da Papéis, Revista de Letras da UFMS, apresenta trabalhos voltados
para os estudos literários e lingüísticos, ressaltando sua relação com as duas áreas
do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul. Neste sentido, verifica-se uma diversidade de temas que traduz o caráter
abrangente da publicação.
No primeiro ensaio, Paulo Sergio Nolasco dos Santos embrenha-se pelas veredas
do cerrado e dá conta de desenhar uma paisagem da região a partir da visão de
escritores, historiadores e poetas, numa perspectiva mitopoética que permite
compreender os sentidos de seus nomes, como também suas faces. Lucy Mitiko
Nakamura propõe uma leitura semiótica do conto O enfermeiro, de Machado de
Assis, valorizando o modo simbólico como recepção ideal. A literatura brasileira de
expressão latina é apresentada por João Bortolanza, analisando e comparando
textos de Anchieta, Castro Lopes e Vieira, atribuindo aos estudos clássicos e
humanísticos sua real importância e necessidade. Compreendendo o discurso como
prática de certas regras às quais o sujeito deve obedecer, Marlon Leal Rodrigues
analisa, com base em Foucault e Pêcheux, enunciados dos discursos Fundador, da
Reforma Agrária e dos Movimentos Populares do MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra) contrapondo-os ao Estatuto da Terra e à
Constituição Federal. Ana Maria Souza Lima Fargoni avalia a fusão da fala e da
escrita no discurso de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa,
como um modo talking de narrar, comparando-o ao de Marcel, personagem de
À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. O livro de Edgar Cezar
Nolasco, Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura recebe resenha de
Márcio Antonio de Souza Maciel, ressaltando o trabalho criterioso e apaixonado
do autor na leitura do texto clariciano.
Temas variados, leituras diversificadas dão o tom deste número.
Maria Adélia Menegazzo
3
Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica,
Impressão e Acabamento
Editora UFMS
Revisão
A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores
Distribuição
Livraria UFMS
Publicação da
UNIVERSIDADE FEDERAL
DE MATO GROSSO DO SUL
Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMS
Fone: (67) 387-1004 - Campo Grande - MS
e-mail:[email protected]
CARLA DE CÁPUA
"Ruínas de um teatro romano"
Pastel seco sobre papel
50 x 70 cm
Col. Particular
4
Carla de Cápua
Licenciada em Artes Plásticas pela FAAP, São Paulo,
e Doutora em Antropologia pela Université Paul Valléry,
Montpellier III, França – é Professora de História da
Arte e Escultura no Curso de Artes Visuais
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
SUMÁRIO
6
NOMES E FACES DE UMA REGIÃO
14
LEITURA E O MODO SIMBÓLICO NO TEXTO LITERÁRIO
22
LITERATURA BRASILEIRA DE EXPRESSÃO LATINA
34
ESTUDO DA IDEOLOGIA QUE SUSTENTA O MST
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
Lucy Mitiko Nakamura
João Bortolanza
Marlon Leal Rodrigues
42
GRANDE SERTÃO: UM MODO "TALKING" DE NARRAR
46
Resenha
CLARICE LISPECTOR: NAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA, de Edgar Cézar Nolasco
Márcio Antonio de Souza Maciel
Ana Maria Souza Lima Fargoni
5
Este artigo propõe uma leitura de textos a partir da interface
“literatura versus cultura,” revelando aspectos da região sulmato-grossense numa perspectiva mitopoética.
Palavras-chave:
Literatura Comparada; Crítica
This article proposes a reading text from the interface
“literature in contrast with culture”, revealing aspects
of Mato Grosso do Sul state in a mithpoetic perspective.
Keywords:
Comparative Literature; Critic
6
NOMES E FACES DE
UMA REGIÃO
*
**
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
“Quem me fez assim,
foi minha gente e minha terra.”
Carlos Drummond de Andrade
O cronista da famosa expedição Langsdorff,
Hércules Florence, cruzando o extremo oeste do Brasil, em 1827, com o olhar do descobridor europeu,
registrou as “maravilhas” de um eldorado que não
conhecia fronteiras, nem limites, quer sejam dos domínios e posses dos largos campos e sertões, quer
seja na perspectiva do imaginário dos bandeirantes
que ocuparam a vasta depressão da planície
pantaneira, constituída pelos amplos horizontes do
Planalto do Brasil Meridional . Em um de seus relatos, o cronista assim teria anotado: Havia na província de Mato Grosso uma região chamada Firme. Essa região foi batizada por Fazenda Firme,
que foi habitada pelo pioneiro Nheco, de onde
derivou o nome Nhecolândia.
Assim podia sintetizar-se o relato do nosso cronista1 que, entre retratar as “maravilhas” do sertão
isolado da corte por muitas léguas, cujo contato só
podia ser feito pela bacia do prata, ou , apreender,
pela tarefa mesma de seu ofício, a arte de cronista, o
impossível traslado da experiência e da força do con-
Vinheta do Boletim da Nhecolândia (1934). Os bois caminhando
para leste parecem indicar o sentido da ocupação desses pantanais
(BARROS, 1998: 100).
*
Uma primeira versão deste texto, com o título No Pantanal da Nhecolândia: outras conversas com o vaqueiro Mariano, foi
apresentada na mesa redonda Literatura comparada: os limiares críticos, no colóquio 2000 palavras: o futuro das letras (UFPel, abr.
2000). Na versão atual ele foi apresentado na sessão Região e representação literária, no VII Congresso ABRALIC (UFBA, jul.
2000).
**
1
Doutor em Letras. Professor de Teoria e Crítica Literárias nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da UFMS.
O cronista H. Florence dedica nove páginas de seu relato à região da Nhecolândia (Barros, 1998, p.63).
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7
tato vivenciado naquele outro muntraços pessoais de sua gente ou de
Interessa-nos
do, tão distante, tão estranho porsua maneira particular de ver o
especificamente
refletir
que tão diferente – entre retratar e
mundo.
interpretar os sinais das novas terSegundo Barros, num imporsobre a idéia de
ras conhecidas – impunha-se como
tante volume que constitui valioso
paisagem como
resistência a própria natureza se
material histórico, sociológico, ansentimento do lugar
oferecendo como enigma – posto
tropológico, folclórico, lingüístico
reinventado no próprio
que desconhecida – que enovela
e genealógico (Gente Pantaneira),
fazer poético...
paisagens variadas, encantatórias,
o meio físico-geográfico deveria
reafirmadoras de sua própria
influir no comportamento humaphysis, na construção de um terrino; assim, o homem das montatório outro, produto de um espanhas, tendendo à introversão, ao
ço reinventado (SILVA,1998:23-27).
ensimesmamento – constituindo nisso sua paisagem
Neste sentido, importante conceituação da pai- – diferencia-se do da planície, como o pantaneiro,
sagem como transgressão de limiares foi apresen- cuja personalidade mostra-se mais aberta, solta e
tada pela Profª. Maria Luiza Berwanger da Silva, tendente à aventura e à mobilidade. Daí resulta que a
que, seguindo a esteira de Derrida, entre outros, beleza da paisagem – da planície – acaba impriminnos fala da composição da paisagem enquanto des- do uma certa estética da amplidão ligada à abertura
locamento incessante ao horizonte infinito, como le- e largueza de vista. Refere ainda, Barros, o ritmo do
gítima expressão do processo de criação literária, desacontecimento e outras heranças indígenas que
que se segue pelo duplo ritmo do tecer e do destecer. comporão o variegado perfil e o esgarçado tecido
Assim, os estudos sobre a paisagem, os rumos da representação cultural da gente mato-grossense.
norteadores do enfoque da paisagem, consideran- Tal ritmo, ou ritual do desacontecimento, assume o
do sua articulação pela representação espacial, tra- caráter de citação, pois que se refere aos seguintes
tariam de “perceber, na intimidade do artesanato versos manoelinos: “As coisas que acontecem aqui,
poético, o fio condutor do espaço cujo traço da acontecem paradas. Ou, melhor dizendo,
oscilação, do espaço que hesita entre o fazer e o desacontecem.” (BARROS, 1985:33). Tomando a
desfazer, sulca a paisagem intervalar mas infinita, pai- própria obra de Manoel de Barros, seguida do jocosagem que concretiza o sonho baudeulairiano do so subtítulo/paratexto Roteiro para uma excursão
‘vaste’’ (SILVA,1998:27).
poética no Pantanal , mais o lendário desinteresse
Interessa-nos especificamente refletir sobre a idéia de seu autor a tudo o que representa exposição
de paisagem como sentimento do lugar reinventado midiática — como legítimo pantaneiro, Manoel tem
no próprio fazer poético, considerando a imagem do forte pudor da notoriedade —, configura-se um sighorizonte como tema e elemento estruturador do con- nificativo traço da gente pantaneira, ou como propuceito de imagem visada pela busca do horizonte ina- nha discutir o VII Congresso da ABRALIC, da tertingível, infinito. Horizonte que o autor de Horizonte ra & gente pantaneira. Assim, o ritual do
e Complementaridade assim o conceituou: “Decer- desacontecimento refere-se aqui ao exemplo com o
to, o horizonte é o que se encontra sempre à vista de qual o crítico ilustra sua análise psicossocial: certa
nossos olhos, mas nunca ao alcance de nossos pas- vez, estava ele insatisfeito e ansioso, por assim dizer,
sos” (SOUSA, 1975:21).
com a lentidão das tarefas, quando um velho bugre
Retomando então o início dessa exposição, o re- pantaneiro lhe teria advertido, tocando-lhe com a mão
lato do cronista da expedição Langsdorff, Hércules no ombro: “Não fique nervoso, não adianta...o traFlorence, queremos considerar a questão da paisa- balho não tem fim...”.
gem tomando por locus o espaço geofísico do PanEsse descompasso, sentimento de desinteresse,
tanal e o caráter psicossocial da gente pantaneira, não-atendimento ‘as demandas de última hora, papor ser o Pantanal uma grande planície, das maiores rece, com efeito, ser a marca, o Nome (com maiúsdo mundo e que decerto é responsável por alguns cula), que, impregnando a densa camada constitutiva
8
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da representação cultural, acaba
indicando uma faceta da gente e
da terra, e de resto da vida sóciocultural da região dos pantanais.
Continuando a citação
manoelina: a historiadora e crítica
de arte Aline Figueiredo assim expressou a face da nossa identidade ameríndia:
Fomos desvendados, em termos
europeus, pela captura do índio,
descobertos pelos metais e fixados pelo boi. Pela procura ou pelo encontro dos
metais, prata na Bolívia, ouro em Mato Grosso, fomos ocupados entre os séculos XVI e XVII, no
caso do Paraguai e da Bolívia e no século XVIII,
no contexto mato-grossense, e, com a sua ausência
ou escassez, fomos despovoados e esquecidos com
a mesma rapidez com que fomos ocupados. Durante três séculos ruminamos com os nossos bois a
mesmice e o marasmo do tempo. E com eles, pastando soltos pelos campos indivisos, delimitamos as
nossas fronteiras. Nesse decorrer vivenciamos a
sanha das atrocidades como ninguém. Construímos
a nossa sociedade mestiça, mesclada de usurpados
e usurpadores (FIGUEIREDO, 1988:8).
Sublinha-se aqui o quanto a distância e o isolamento, inicialmente responsáveis pelas dificuldades
do nosso desenvolvimento no extremo oeste do Brasil, vão configurar, depois, o nosso desprendimento,
que é sombra da nossa nostalgia, oriunda de um espaço de amplos horizontes do planalto, acentuando
também a nossa vocação de sonhadores incorrigíveis: com o planalto, herdamos também a vasta depressão da planície pantaneira e talvez por isso, continua Aline, sejamos tão ensimesmados.
É ilustrativo o fato referido por Barros que a expansão da Nhecolândia deu-se seguindo a orientação de que a leste as terras do Nheco tinham o limite
da sua ambição; terras sem dono e sem fim (em 1899
as terras já legalizadas somavam 380 mil hectares).
E continua o autor de Gente Pantaneira: “Eram
grandes extensões de pastagens em terra firme. Firme foi o nome dado ao lugar. Fazenda Firme depois,
célula inicial de toda a Nhecolândia” (BARROS,1998:80).
Essa região, encravada no coração da América,
assim caracterizada, parece ter sido, por força de
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um magnetismo próprio – centro
geodésico –, alvo dos afetos dos
grandes escritores que por ali estiveram e viveram, ou, ainda, por
efeito de seus próprios encantos
que teriam feito imprimir nas melhores páginas da literatura brasileira sua natural vocação marcada
por riquezas culturais, ecológicas,
turísticas e econômicas que, por
motivações poéticas literárias ainda mais justificadas, fertilizaram um
dos mais representativos textos do escritor mineiro,
Guimarães Rosa, bem como a obra do escritor sulmato-grossense, Manoel de Barros. Referimo-nos
especificamente ao relato “Entremeio com o vaqueiro Mariano” e, grosso modo, à obra de Manoel de
Barros, problematizando o mesmo universo de representação, sobretudo no seu Livro de Pré-Coisas que traz como subtítulo, repetimos, o significativo paratexto: Roteiro para uma excursão poética
no Pantanal.
Já o Visconde de Taunay, compondo suas “visões
do sertão”, registrara o poder de rememoração que
aquelas planícies exerciam como se lhe ficassem estereotipadas na retina: “ Sobremaneira notáveis todas as paizagens d’aquelle mal conhecido recanto de
Matto-Grosso...” (TAUNAY, 1923:11). Taunay
prossegue sua narrativa, relatando que o cenário que
os cercava estava continuamente mudando. As serras de Maracaju que tanto o impressionaram, mostrando suas reentrâncias e saliências e as bandas do
aldeamento dos índios terenas da Pirainha causando
legítimo pasmo, com
Já o Visconde de
Taunay, compondo suas
"visões do sertão",
registrara o poder de
rememoração que
aquelas planícies
exerciam como se lhe
ficassem estereotipadas na retina...
(...) arcos, arcos naturaes de extraordinaria regularidade geometrica, já destacados (...); letras,
inscripções, traços, gregas, como que borrados pela
mão do homem, algum mysterioso e cyclópeo artista; columnas a meio partidas, porticos inacabados
ou então rasgões monumentaes, quer singelos, quer
ornamentados de delicadissimos recortes e
rendilhados, __ enfim, essas formas tão caprichosas e variadas, (...) como se por alli houvesse, em
tempos fabulosos, perpassado o genio fantasioso,
criador, subtil, de algum architecto arabe
(TAUNAY,1923:13-14).
A aproximação dos dois artífices da palavra –
Rosa e Manoel – toma projeção de um encontro mar9
se: Quem acumula muita informacado nas paragens da Fazenda
ção pode perder o Dom de adiviA arte de inventar,
Firme, tendo por quadro de fundo
nhar. São as obscuridades coerena Planície da Nhecolândia: seguncompartilhada
tes do povo. Vai daí começamos a
do Manoel de Barros, esse enconpor Rosa e
prosear lourenço (REVISTA CULtro se deu em junho de 1953, quanManoel de Barros,
TURAL, 1995: 11).
do Rosa, embevecido pela prosa
traduz-se na busca
A expressão ser pantaneiro de
de um vaqueiro – o Mariano – ia
incessante
da
chapa e cruz – como se apresenconstruindo o seu relato à medida
linguagem poética.
ta Manoel de Barros –, além do
que cavalgava pelo Pantanal, onde
seu significado cultural, aquele que
“repetiam-se as paisagens”. A
tem a sua ancestralidade autenticonversa de Rosa não era só com
cada, puro de origem, gente simo vaqueiro Mariano, era também
uma conversa com Manoel que é quem nos fala do bolicamente brasonada (BARROS, 1998: 34), tamsabor e do élan daquelas conversas: “Nossa con- bém confirma o caráter de genuinidade que atribuíversa era desse feitio. Ele (Rosa) inventava coisas de mos à poética manoelina. A arte de inventar, comCordisburgo. Eu inventava coisas do Pantanal” partilhada por Rosa e Manoel de Barros, traduz-se
(BARROS, 1990: 338). Pantaneiro e/ou vaqueiro, na busca incessante da linguagem poética, que neste
tanto Rosa quanto Manoel mostram-se exímios caso transforma o Sertão e o Pantanal, pertencentes
campeadores em sua “tauromaquia” da palavra. Se- à mesma categoria de terra-do-sem-fim, num preguindo a forma de um relato mitopoético, Manoel de texto, também pré-texto, para aquilo que Manoel
explica como sendo a loucura do verbo: “Temos que
Barros evoca o seu primeiro encontro com Rosa:
Por impulso de admiração peguei em Porto Espe- enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto
rança o vapor Fernandes Vieira que levaria o escri- que esse verbo possa transfigurar a natureza” (BARtor Guimarães Rosa até Corumbá, pelo rio ROS,1990:341), cujo exemplo citado seria o “Com
Paraguaio. Era de noite entre árvores. Águas pa- o Vaqueiro Mariano”, um livro intenso de poesia e
radas no escuro. Calor e mosquitos levaram os pas- transfigurações.
sageiros para os camarotes. Manhãzinha, outro dia,
O referido encontro de Rosa e Manoel de Barum vento macio e alvo soprava. Rosa saíra cedo do
ros,
ganha, no relato da conversa que tiveram, concamarote. Estava sentado no tombadilho tomando
fresca. Do bolso da paisagem borboletas queriam forme narra Manoel de Barros, um sabor de coisas
escapar. Rosa abriu a paisagem e as borboletas inventadas à maneira do próprio vaqueiro Mariano
sairam. O corpo do vapor quase tocava nas árvo- que, sabendo, e por saber a seu modo particular de
res do barranco. Andava essa lancha que nem um ver e explicar o Pantanal como mundo, recria recorcágado travado. Dava pra ver nas lapas abertas tes de textos, de enunciados colhidos ao longo do
lontras dormidas. Dava pra ver rancho amanhe- tempo e da vida. Como no caso dos sapos que são
cendo. Talvez uma chácara amanhecendo. Dava cantores: ao relatar a conversa que teve com Rosa,
pra ver um curral de bezerros, um homem e um Manoel diz que perguntara se em Minas tinha sapo
menino pardos. Eu fabricava coragem para puxar
demais, ao que Rosa, desafiando, respondeu: “Tem
uma prosa com aquele João. Nessa hora as mariquase menos que por aqui, mas os poucos que tem
posas relavam na água as bundas. Uma anhuma
rasou por cima de nós, tocando fagote. Eu disse por lá cantam mais bonito.” O teor dessa conversa
para o Rosa ouvir: O canto desse pássaro diminui a não se pode atribuir, originariamente, à invenção dos
manhã. Rosa pôs tento. Ele tinha uma sede anor- dois (Rosa/Manoel), a menos que se considere o remal por frases com ave. Me olhou sentado na fra- lato da conversa a partir do estatuto do sujeito da
se e se riu para mim. Gostou que eu estava enunciação. Porque e segundo um outro relato, mais
fraseando no vento. Quer dizer que esse anhuma recente, o das crônicas da gente pantaneira, na realidiminui a manhã? – ele perguntou. Eu disse: um dade, a referência aos sapos cantores é atribuída ao
homem que não tem ensino me ensinou. Ele não inveterado bairrismo dos primeiros livramentanos
tem informação das coisas, mas adivinha. Rosa dismigrantes do pantanal: o velho Mané Gregório, pro10
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veniente do Livramento, parente do
Confirma-se nesses fragmenSe
o
humor
e
a
ironia
pai de Manoel de Barros, recémtos a luminosidade do verbo ensempre
destilaram
sua
chegado, à beira do rio Paraguai,
louquecido, freando os excessos
exibia as vantagens do Livramende natural como queria Manoel
seiva nas melhores
to mas era obrigado a concordar
em sua conversa com Rosa, que
páginas da literatura,
que sapo, afinal, aqui tinha mais;
anos depois lhe oferece um
nesses textos em
mas os poucos de lá (do Livramenexemplar do seu “Com o Vaqueianálise ele encontra
to) cantavam mais bonito... Por aí
ro Mariano”: Olha aí, Manoel,
sua condensação
afora o bairrismo de cuiabanos e
sem folclore nem exotismos –
genuína.
livramentanos é descrito minuciocomo você queria (BARsamente por Abílio de Barros, cheROS,1990:341). Nem folclore,
gando às raias do provincianismo
nem exotismos – disse Rosa. Ane do isolamento grupal caracterizadores do tes a visão de uma paisagem transfigurada pelo poinsulamento muito próprio da “nossa gente”: “Do Li- eta que em silêncio assiste ao pôr-do-sol, tendo-o
vramento e Cuiabá tudo era melhor. Pacu do rio como suporte de uma paisagem mais densa, volátil:
Paraguai tinha gosto de lodo, a cana era aguada, a o homem, o pantaneiro, o vaqueiro. Se o humor e a
abóbora, sem gosto. Da banana, nem falar, pois a do ironia sempre destilaram sua seiva nas melhores páLivramento, no cortar, escorria mel” (BAR- ginas da literatura, nesses textos em análise ele enROS,1998:56).
contra sua condensação genuína. Quer venha do vaDeixemos por hora a interessante querela, tão pró- queiro Mariano, ou ainda do Bernardo, esse
pria de vaqueiros e prosadores, na sua inveterada transfazedor da natureza ( alter ego de Manoel),
vocação de contar estórias – concordando com Rosa “ser cuja palavra amplia o silêncio”, a predisposique, se verdadeiras, belas são as estórias, se imagi- ção para o jogo intelectual é uma constante que renadas, ainda mais –, para acompanharmos nossos sulta em palavras ácidas, farpas trocadas, entre ridois prosadores pelas terras do Nheco. A compara- sos. Com isso o poeta reflete a ânima do pantaneiro,
ção do vaqueiro Mariano com o escritor é lindamen- naturalmente afeto ao espírito irônico constitutivo
te declarada por Guimarães Rosa já no enunciado do gracejo, do ato inteligente. O episódio envolde abertura de seu relato: “Em julho, na Nhecolândia, vendo o Neco Caolho – conforme relata Barros –
Pantanal de Mato Grosso, encontrei um vaqueiro que é síntese ilustrativa dessa índole pantaneira: vinha o
reunia em si, em qualidade e cor, quase tudo o que a Neco Caolho pela calçada, quando uma das moças
literatura empresta esparso aos vaqueiros principais” do grupo, lança-lhe a pergunta irônica: “Seu Neco,
(ROSA,1994:775). Logo depois o narrador rosiano, feiúra dói?”. De imediato, veio a resposta ferina:
refletindo sobre as lides de um e de outro, da sua “Acho que não, minha filha, eu nunca vi você geassaz solidão, que é também no nível metafísico e mer!”. Essa estória, com os elementos definidores
existencial, motivadora de toda a paisagem da deso- de um espírito crítico peculiar – ironia, surpresa e
lação humana, problematiza o próprio ato de narrar certa dose de agressão – até parece caracterizar o
como sendo um ato de resistência:
estilo de um embaixador muito conhecido nosso –
Te aprendo ao fácil, Zé Mariano, maior vaqueiro, Roberto Campos – que, por sinal, é de origem
sob vez de contador. A verdadeira parte, por quan- papabanana e vem a ser sobrinho-neto daquele
to tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo Neco Caolho da ilustrativa estória narrada por Barpoderás transmitir-me. O que a laranjeira não ensi- ros.
na ao limoeiro e que um boi não consegue dizer a
Quer se chamar a atenção, aqui, para a condioutro boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, que
ção de emaranhamento que perpassa o horizonte
dá trunfo à tua voz e tento às tuas mãos. Também
as estórias não se desprendem apenas do narrador, do pantaneiro, entrelaçando a paisagem num ato
sim o performam; narrar é resistir. performativo, onde o ser pantaneiro é ser
arborizado e é, por extensão, a própria paisagem:
(ROSA,1994:779).
o seu isolamento, o seu pequeno mundo de coPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001
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nhecimento, é sobrepujado pela
uma vez, quando procura uma fraEnfim,
recorrência às imagens e brincase para encimar as fotografias de
a
paisagem,
deiras, ou como diz Manoel de
seu livro-álbum Para encontrar
Barros: “No uso de cantos e
o azul eu uso pássaros?: “Nessimultaneamente
recontos / O pantaneiro enconta hora de escândalo amarelo / os
desoladora
tra o seu ser. / Aqui ele alcança a
pingos de sol nas folhas / cantam
e encantatória,
altura das manhãs / E os cinzenhinos ao esplendor”. Para em searranca de
tos do entardecer.” Esse
guida anotar sobre a fotografia de
sua matriz poética,
emaranhamento dos seres com a
uma palmeira: “Uma palmeira cotransfigurada...
paisagem e com o infinito acaba
berta de abandono / é como um
compondo o Texto, único, comhomem / de escura solidão”.
plexo, que não indica nenhum
Mas a gente já está chegando
pre-texto. “Quisera humanizar de mim as paisa- de volta, disse o vaqueiro Mariano, o Firme é ali... E
gens./ (...)/Que eu possa cumprir esta tarefa sem / aponta para Rosa.
que o meu texto seja engolido pelo
Olhei. Vinha uma nuvem, engrossado vulto, rodancenário.”(BARROS,1999).
do no ar. Seu revoluteio era muito lento; parecia
abdorme enxame de abelhas. Zumbia, zunia. Ora
Um momento de elevada transfiguração poética
turbilhonava, sempre à mesma altura. Oscilou, foi,
é o da queimada. No relato de Rosa, a queimada é
veio.
mais do que uma herança cultural, necessidade agro– É um bandão de caturritas... O senhor repare
pastoril; ela metamorfoseia o olhar fascinado do sernaquele redondo de espinheiro, mais alto, mais vertanejo que aprecia o espetáculo do incêndio. O ende do que o capim: ali é uma baía seca, que não
trechoque, o entreofuscamento da queimada, do
recebeu água este ano... As caturritas comem as
fogo propriamente dito, com o cair da tarde ou da
frutinhas do espinheiro, elas vão p’ra lá... O bolo
noite, evoca, para além do relato de Rosa,outras
negro balançou-se mais, subiu como um deslastrado
imagens poéticas como as dos versos de Guilherme
balão, pairando, alto, bem por cima do círculo de
de Almeida: “Tarde grande tarde / de verdade/
arbustos. Partiam clingos, pios, do primitivo rondo
(...)Tarde autêntica em que há / apenas o calor, a
de rio cheio. Algumas caturritas se desprenderam
fumaça pesada / e o estouro oco dos toros verdes
e entrevoaram em volta, expeditas, mas tornavam
na queimada / grande, teatral / como um crepúsculo
logo ao bando. A massa boiava no ar e bojava. Por
que não desciam?.
artificial.” E nestes outros versos de Castro Alves:
“O estampido estupendo das queimadas/Se enrola
– É a hora!
de quebradas em quebradas / Galopando no ar”
Do fundo da bola, aves se despegaram, umas. Bai(WERNECK SOBRÉ,1966:211). Enfim, a paisaxavam, colorindo-se de verde: quando iam tocar nos
ramos, já estavam do tom do espinheiro. E gritagem, simultaneamente desoladora e encantatória, arvam, de alegria. Derramaram-se outras, uma porranca de sua matriz poética, transfigurada, o grande
ção, todas desciam. Era uma chuva, era esplêndipoder fátuo que o verso manoelino os arrebóis lado: as caturritas se despenhavam, escorriam, caítejam emoldura numa paisagem esteticamente exuam em catarata.
berante: o fogo que corre pelas macegas quer toQuando o vôo se dissipou, Mariano desmanchou a
mar à noite imensa, com o brilho de sua lua e estreminha surpresa.
las, seu poder de velar segredos de beleza... E quan– Vou mostrar ao senhor um ninho de tabuiaiá... –
do ele passa, deixa ver o que repousava no limbo
disse. E, como quem corrige:
da aparência – cinzas, floradas no campo,
– Aquelas voando ali são curicacas... Tem a
caramujos, ossos e terras vermelhas, antes vislumcuricaca-do-brejo e a curicaca-do-seco...
bradas apenas em sua densa poeira
Retomamos a andada, repetiam-se as paisagens
(NOLASCO,1999:177).
(ROSA,1994:797).
Não seria desses arrebóis, ou dessa grande tarde de verdade, que nos fala Manoel de Barros, mais
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Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001
Concluindo, evoco mais uma vez o encontro marcado que tiveram, nas paragens do Firme, Guimarães Rosa, Manoel de Barros e o vaqueiro Mariano,
enaltecendo a simpatia que o vaqueiro pantaneiro
despertou em nossos dois escritores. Tanto na entrevista famosa quanto na carta singular, Guimarães
Rosa mostrou o quanto as “veredas” do sertão
pantaneiro marcaram sua obra. Na entrevista concedida ao seu tradutor alemão, Günter W. Lorenz,
ele afirma: “Eu queria que o mundo fosse habitado
apenas por vaqueiros” (LORENZ, 1973:323). E,
ao se despedir da viagem que fizera à nossa região,
assim escreveu numa carta para um conterrâneo sulmato-grossense:
Não esqueço o boi laranja. (...) Sorvi o bafo do
campo largo, os berros dos bois, toda a vivência de
uma gente sadia e brava, ao longo do tropear das
boiadas, esse mundo autêntico de sentimento, pitoresco, variado e sincero.(...) Apreciei imenso as
passagens no genuíno linguajar nativo _ gostoso
como o tereré, como a guavira. Deu-me vontade
de voltar um dia a esse Mato Grosso Meridional,
que me deslumbrou tanto: rever Aquidauana, Nioac,
Miranda, Dourados, a Fazenda Jardim e o ‘Buracão
do Perdido’ [s.n.t.]
Referências Bibliográficas
1. BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira. (Crônicas de sua História). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998, 251p.
2. BARROS, Manoel de. Conversas por escrito (l970-l989), Entrevistas. In: Gramática Expositiva do Chão. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1990, 343p.
3. BARROS, Manoel de. Livro de Pré-Coisas. Roteiro para uma excursão poética no Pantanal. Rio de Janeiro: Philobilion Livros de Arte
Ltda., 1985, 94p
4. BARROS, Manoel de. Para encontrar o azul eu uso pássaros. 1ª ed.Campo Grande: Saber Sampaio Barros Editora, 1999.
5. FIGUEIREDO, Aline. Por Uma Identidade Ameríndia . In: CATÁLOGO DO VI SALÃO DE ARTES PLÁSTICAS DE MS: Por Uma
Identidade Ameríndia. Campo Grande: FCMS/SEC, 1987.
6. LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina – Panorama de uma literatura do futuro. Trad. Rosemary Costhek Abílio e Fredy
de Souza Rodrigues. São Paulo: E.P.U., 1973.
7. NOLASCO, Paulo Sérgio. Um outdoor invisível: imagens do pantanal sul-mato-grossense. In: CARVALHAL, T. F. (Org.). Culturas,
Contextos e Discursos. Limiares Críticos no Comparatismo.Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999.
8. NOLASCO, Paulo Sérgio. No Pantanal da Nhecolândia: outras conversas com o vaqueiro Mariano. In: COSSON, Rildo. (Org.). O
Presente e o Futuro das Letras. Pelotas: Editora da UFPel, 2000.
9. NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Manoel de Barros: Datas, encontros, conversas e afinidades literárias.In:
NOLASCO, P.S.(Org.).Ciclos de Literatura . Campo Grande: Editora UFMS. 2000.
10. REVISTA CULTURAL. Ano I. n 1, abr./mai. Pedro Juan Caballero/Paraguay: Gráfica Nice,1995.
11. ROSA, João Guimarães. Entremeio com o vaqueiro Mariano. In: Ficção Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A.,1994.
Vol. II, 1190p, p.773-799.
12. SILVA, Maria Luiza Berwanger da. Limiares críticos e paisagens da transgressão. In: Limiares críticos. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.
(Col. A teoria na prática ajuda – GT de Literatura Comparada da ANPOLL, 6).
13. SOUSA, Eudoro de. Horizonte e complementaridade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975. 145p.
14. TAUNAY, Visconde de. Visões do Sertão. 1ªed. São Paulo: Off. Graph. Monteiro Lobato, 1923. 247p.
15. WERNECK SODRÉ, Nelson. A queimada. In: Tipos e Aspectos do Brasil. 8ª ed., IBGE-Conselho Nacional de Geografia. Rio de
Janeiro: 1966, 491p.
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O presente artigo estuda a leitura do texto literário como uma
análise capaz de penetrar no mundo criado pela obra, através de
uma educação semiótica que leve à simbologia contida nas palavras. Uma leitura semiótica do texto literário que valorize o modo
simbólico implica a importância de uma recepção ideal, em que o
leitor possua domínio lingüístico, para que seja possível perscrutar o sentido dos significados. Na leitura do conto O Enfermeiro,
de Machado de Assis, faremos algumas considerações baseadas
no Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.
Palavras-chave:
Leitura semiótica. Símbolo.
The present article studies the reading about literary text as an
analyses is able to penetrate in the world created into the work,
through the Semiotic education finds the Symbology there is in
the words. A Semiotic reading about literary works has valued
the Symbolic way because it is important for an ideal reception
and the reader needs to be able to know linguistic theory to
investigate the sense of meanings. Through the short story O
Enfermeiro, written by Machado de Assis, we will consider some
symbols are based on Dictionnaire des Symboles, by Jean
Chevalier and Alain Gheerbrant.
Keywords:
Semiotic reading. Symbol.
14
LEITURA E O MODO SIMBÓLICO
NO TEXTO LITERÁRIO
*
Lucy Mitiko Nakamura **
Introdução
O objetivo deste estudo é o de analisar a obra literária, enfatizando a importância da recepção, pois a
obra literária é, segundo Jauss, “como uma partitura
voltada para a ressonância sempre renovada da
leitura” (Jauss, 1994: 25). Sendo assim, o juízo crítico
está suscetível a mudanças porque é possível haver
“livros que morrem injustamente e por muito tempo
(pois a morte literária é sempre passageira ou pelo
menos sujeita a ressurreições periódicas) por falta
de uma crítica adequada...” (Lima, 1945:32) conforme as palavras de Alceu Amoroso de Lima, que na
década de 40 já preconizava a relevância da recepção
formulada com suportes teóricos e não com impressionismos.
O juízo crítico acerca de um texto literário normalmente influencia a posição do leitor - é possível que
não se enxergue a ‘qualidade’ de uma obra, quando
esta não consta na lista dos cânones; ao passo que,
numa situação oposta, (no caso, na produção literária
já consagrada pela crítica), de repente o leitor passa a
enxergar inúmeros elementos no mesmo texto, caso
ele assimile um (pré) conceito sobre a ‘qualidade’ da
obra e do autor.
A classificação de obras num prisma meramente
genérico também limita a leitura a uma visão estética
do texto literário, incapaz de romper a estrutura superficial que ele apresenta. O Ensino Médio, por exemplo, peca quando tenta transmitir aos alunos uma sistematização imutável que enquadra os textos literários
em gêneros, ao longo de um percurso diacrônico de
produção e, o que é mais grave, sem penetrar no texto
literário propriamente dito, ou seja, considerando apenas elementos extrínsecos e avais canônicos - tentar
separar cada obra por gênero não é suficiente mesmo
porque o Lírico, o Dramático e o Narrativo podem estar presentes numa mesma obra literária. Não se pode
mediar a obra num prisma estritamente estilístico ou
num prisma estritamente histórico - uma leitura profunda exige muito mais do que apenas um olhar sobre
os aspectos formais da obra, preso nos ditames de um
espaço cronológico.
Neste estudo, a leitura pressupõe um domínio
lingüístico na análise da obra literária, capaz de
enxergá-la como ato sêmico, ultrapassando os limites
da massa verbal, embasado em suportes teóricos de
uma educação semiótica. Ao mergulharmos na estrutura profunda do texto, chegaremos à simbologia que
*
O presente artigo é resultante de um dos trabalhos apresentados na disciplina Teorias da Narrativa e do Gênero Poético ministrada pelo
professor dr. Orlando Antunes Batista, no curso de Mestrado em Estudos Literários pela UFMS / Campus de Três Lagoas.
**
Mestranda em Estudos Literários (CEUL/UFMS, 2000); Especialista em Língua Portuguesa (CEUL/UFMS, 1998); Graduada em
Licenciatura Plena em Letras (CEUL/UFMS, 1997).
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configura melhor as idéias da obra
Numa perspectiva do “percurso
- quais imagens e tema nela estão
gerativo de sentido”, Fiorin explicita
A recepção adequada
contidos - trata-se de uma visão mimecanismos para interpretação do
é que possibilita
croscópica e desmetaforizadora do
texto literário, em que a ‘leitura’ pasdesvendar
texto: o importante não é o que o
sa por um “processo que vai do
texto diz, mas sim, como ele diz
mais simples ao mais complexo”
o que o texto
algo.
(Fiorin,1994:17). No nível discursivo,
guarda em si,
Concordamos com a afirmação
mais complexo, Fiorin explica que
no
jogo
infinito
das
de Todorov de que “Os que sus“não é com o significado de uma
expressões...
tentam a idéia de 'analisar a obra
figura isolada que vamos até o
pelo que ela é, não pelo que ela
tema (...) é preciso analisar como
exprime' não encontrarão pois
funcionam as figuras num texto.
o que desejam através da poétiPara isso, observemos os lexemas,
ca” (Todorov, 1979:70) e adotamos uma perspectiva ou seja, as palavras que se acham no léxico de uma
semiótica que é incompatível com a interpretação língua” (Fiorin, 1994:69). Fiorin aponta na isotopia
baseada no senso comum, pois o “senso comum sus- (“recorrência do mesmo traço semântico ao longo
tenta que as coisas em geral só têm um significado, de um texto”) a justificativa porque o “texto está abere que este é quase sempre óbvio, gravado nas fa- to para várias leituras”, não significando que ele adces dos objetos que encontramos” (Eagleton, mita qualquer leitura: “o texto que admite múltiplas
1997:148). A recepção adequada é que possibilita des- interpretações possui indicadores dessa polissemia”
vendar o que o texto guarda em si, no jogo infinito das (Fiorin, 1994:81). E este é um dos grandes méritos que
expressões: valorizar o modo simbólico talvez seja um precisam ser conquistados durante a leitura, porque a
dos caminhos mais acertados, quando se tem a certe- polissemia vai depender muito do horizonte de expectaza de que as palavras são prenhes de significados.
tivas do próprio leitor.
Buscar a simbologia durante a leitura significa perscrutar o que há por trás das palavras e não é nenhum
devaneio: inúmeros estudos científicos tratam a questão do ‘símbolo’ no texto literário. No capítulo IV da
Porque valorizar o modo simbólico
Semiótica e filosofia da linguagem, por exemplo, Eco
no texto literário
expõe várias definições e abordagens acerca do símNossa opção em não subestimar uma obra, numa bolo:
• Northrop Frye: “indica qualquer unidade de
postura julgadora, justifica-se pela necessidade de
‘aprender a ler’ o texto, analisá-lo, penetrar no imagi- qualquer estrutura literária suscetível de análise
crítica” (p.199);
nário que ele cria; até porque
• Raymond Firth: “Na interpretação de um sím“Fazer progredir o pensamento não significa
bolo, as condições de sua apresentação são tais
necessariamente rejeitar o passado: às vezes,
que um intérprete usualmente tem muito maior essignifica revisitá-lo, não apenas para entender
paço para exercitar o próprio juízo do que com
o que foi dito, mas o que poderia ter sido dito,
sinais regulados por um código comum a emissor e
ou pelo menos, o que se pode dizer atualmente
destinatário” (p.200);
(talvez só atualmente) ao reler tudo o que havia
• Ernst Cassirer: “O símbolo não é um revestisido dito antes” (Eco, 1991:12).
mento meramente acidental de pensamento, mas o
pois o mundo não permanece estático diante de nos- seu órgão necessário e essencial (...) Assim todo
sos olhos, tudo está em constantes transformações, pensamento verdadeiramente rigoroso e exato enincluindo a visão de mundo vivenciado por cada gera- contra seu ponto firme apenas na simbólica, na
ção de escritores, de leitores, da humanidade. Uma semiótica, sobre a qual se apóia” (p.203-4);
das vantagens que o tempo nos lega é a polifonia neste
• Tzvetan Todorov: “Há (...) em todo discurso,
processo de ‘fazer progredir o pensamento’, ou o ‘mito uma produção indireta de sentido (...) O signo faz
de interesse’ denominado por Frye - enfim, todo o pas- sempre conhecer alguma coisa a mais mediante a
sado acaba encontrando ressonâncias no presente e atividade da interpretação (...) ‘Não procuro definada disso pode ser ignorado pela recepção atual.
nir o que seja símbolo, o que seja uma alegoria,
Fundamentação Teórica
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nem como encontrar a boa interde interesse dentro da obra (tudo o
Considerando-se
que
não
pretação: mas entender e, se posque se diz hoje, de certa maneira já
há uma leitura única
sível, manter o que é complexo e
foi dito anteriormente, ao longo da trapara cada texto literário,
plural’” (p.208-9);
jetória humana) - é de Frye a afirma• Goethe: “O simbolismo transção de que “Um mito completamente
a nossa visão acerca
forma a experiência em idéia e a
desenvolvido ou enciclopédico endesta obra apenas busca
idéia em imagem, de modo que a
cerra todas as coisas de que a sua
a apreensão do enigma
idéia obtida na imagem permanesociedade tem necessidade de safigurativo
como
um
dos
ça sempre infinitamente ativa e
ber” (Frye, 1973:35), referindo-se ao
inalcançável, e, embora expres“mito de interesse” existente na obra
caminhos possíveis de
sa em todas as línguas, permade todo escritor. E para perscrutar o
interpretação...
neça inexprimível. A alegoria
caráter polissêmico do texto literário,
transforma a experiência num
lançaremos mão dos símbolos que
conceito e o conceito numa imagem, mas de modo comporão o seu enigma figurativo.
que na imagem o conceito seja sempre definido,
No começo do antagonismo com o paciente, o encontido e exprimível” (p.215);
fermeiro “era burro, camelo, pedaço d’asno, idio• Hegel: “Símbolo em geral é uma existência ex- ta, moleirão, era tudo” (p.132) - e o asno, como a
terna que está imediatamente presente ou dada à jumenta, pode ser o símbolo da “paz, de pobreza,
intuição, mas que não deve ser tomada com base de humildade, de paciência e de coragem”
nela mesma, assim como imediatamente se apresen- (Chevalier, 1990:95). Mas também apresenta o “cata, mas num sentido mais amplo e mais universal. ráter difícil” (Chevalier, 1990:171), tal como o caPor isso, no símbolo se distinguem imediatamente melo. Procópio tenta relevar as maldades do coronel,
dois lados: o significado e sua expressão” (p.217). passando por provações como Jó (seu nome é “José”,
sugestivo à imagem de Jó), até na semelhança de eleA seguir, serão expostos alguns temas e simbologias
mentos do versículo 3: “E era o seu gado sete mil
encontrados no conto O enfermeiro, de Machado de
ovelhas, e três mil camelos, e quinhentas juntas de
Assis. Considerando-se que não há uma leitura única
bois, e quinhentas jumentas”.
para cada texto literário, a nossa visão acerca desta
Por outro lado, caracterizando a personalidade do
obra apenas busca a apreensão do enigma figurativo
coronel, a simbologia da muleta (bengala) “é
como um dos caminhos possíveis de interpretação, rereveladora de uma fraqueza, mas essa fraqueza
forçando a idéia de que a Literatura tem a sua maneipode ser autêntica ou simulada (...) Simulada é a
ra própria e especial de narrar o mundo.
dos (...) que fingem uma fraqueza exterior para
melhor dissimular sua força maléfica” (Chevalier,
1990:623-4) - como é o caso do coronel Felisberto,
que sempre provocava o enfermeiro, submetendo-o a
humilhações, golpes de bengala etc. Felisberto possuía
A simbologia no conto O enfermeiro,
“uma espécie de riso maligno” (p.131) e parecia
de Machado de Assis.
O conto O enfermeiro é narrado em primeira pes- desejar que o enfermeiro cometesse o crime, talvez
soa, como um ato de confissão que o narrador convicto de que somente transgredindo um dos Dez
autodiegético realiza por escrito, dias antes de sua mandamentos, haveria a garantia de que o herdeiro
morte, sobre o assassinato do coronel Felisberto. A praticaria o sermão da montanha para redimir-se.
No primeiro momento estabelece-se uma relação
simbologia da confissão na tradição bíblica implica a
“confissão das faltas cometidas, e não a lembran- de provação entre o bem e o mal, estando Felisberto e
ça dos atos bons (...) A confissão simboliza aqui a Procópio ligados pelo ofício que intitula o conto, do qual
vontade de se livrar do mal da falta” (Chevalier, podemos extrair o primeiro enigma figurativo:
1990:271). A confissão é o ato final de Procópio e é o
que o faz distanciar a enunciação do enunciado, já que
a fábula vai sendo construída num flashback de lembranças do narrador/protagonista.
A nossa leitura de O enfermeiro volta os olhos principalmente aos textos bíblicos, considerando-os como o mito
Discussão dos Dados
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Na primeira semana de convivência entre Felisberto e Procópio não
ocorre nenhuma estranheza, nenhum
antagonismo: “A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete
dias” (p.131). A simbologia do sete
“encerra, entretanto, uma ansiedade pelo fato de que indica a
passagem do conhecido ao desconhecido: um ciclo concluído,
qual será o próximo?” (Chevalier,
1990:828). A partir do oitavo dia,
Procópio sofre transformações:
• Primeira fase: o lado bom de Procópio (o seu lado Jó).
As relações entre Procópio e Felisberto vão-se tornando difíceis, marcadas por antagonismos, em crescente tensão. Procópio tenta resistir ao sofrimento, como
Jó:“entrei na vida dos meus predecessores, uma vida
de cão (...) com um ar de resignação e conformidade (...) No fim de três meses estava farto de o aturar
(...) Eu, com o tempo, fui calejando (...) era burro,
camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo
(...) Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa
dose de piedade (...) trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão.” (p.132-3).
Eis que a tensão entre paciente e enfermeiro chega
ao seu limite máximo: “Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão
da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive
tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face
esquerda” (p.134). Procópio, pobre mortal que é, perde
a razão ao invés de seguir a lição do sermão da montanha - “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra” (Lucas 6, 29) - estrangula o enfermo:
“e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao
doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos e esganei-o” (p.134).
• Segunda fase: a transgressão do Mandamento “Não matarás” (Êxodo 20, 13).
18
Procópio mata Felisberto e passa a ser perseguido pelo remorso:
“Quando percebi que o doente
expirava, recuei aterrado
(...)
Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas (...) eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!
(...) qualquer cousa que significasse a vida, e me restituísse a
paz à consciência (...) arrependia-me de ter vindo. - ‘Maldita a
hora em que aceitei semelhante cousa!’
(...) Só
então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso (...)
mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia
fazer desaparecer os vestígios dele
(...) ‘Caim,
que fizeste de teu irmão?’
(...) Queria ver no
rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava
fitar ninguém (...) Estava em paz com os homens.
Não o estava com a consciência
(...) vivi aqui
aterrado, embora longe do crime; não ria, falava
pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...”
(p.134-136).
...o estilo machadiano
não tenciona enquadrar a
humanidade distigüindo
os bons dos ruins, mas
nos conduz a um
raciocínio realista, em que
a provação trabalha com
esses dois pólos do caráter
humano, dialeticamente.
• Terceira fase: redimindo o pecado com o sermão
da montanha.
Embora a primeira fase seja de ascensão representando o bem, e a segunda fase seja de queda, representando o mal, o estilo machadiano não tenciona
enquadrar a humanidade distingüindo os bons dos ruins, mas nos conduz a um raciocínio realista, em que a
provação trabalha com esses dois pólos do caráter
humano, dialeticamente.
No caso de Procópio, isto fica claro no imprevisível
da terceira fase: Procópio tenta se redimir da culpa
através de palavras, “fazendo muitos elogios ao
morto” (p.136); e também com atos, quando “mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento” (p.136). Mas na verdade, ele tenta convencer a si mesmo de que não era
culpado pela morte do coronel, tentando seguir o texto
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bíblico: “Bendizei os que vos maldos por Zeus (...) transformaramO
nosso
Procópio
dizem, e orai pelos que vos caluse naqueles seres que os mortais
niam” (Lucas 6, 28), elogiando o
chamam os Bem-aventurados dos
encarna a figura dos
morto e mandando rezar a missa em
Infernos, gênios inferiores, mas
homens de ferro, num
sua memória.
que alguma felicidade ainda
mundo
doente,
cético,
Ao ser designado o herdeiro uniacompanha (...) Os homens de
cheio de (des)culpas;
versal no testamento do coronel,
bronze, culpados (...) do excesso
Procópio encontra um meio de se
de sua própria força terrificante,
ele é o enfermeiro e o
redimir: “receberia a herança e
sucumbiram às suas próprias
enfermo deste círculo
dá-la-ia toda, aos bocados e às
mãos e partiram para o Hades
vicioso.
escondidas. Não era só escrúpu(...) Quanto à raça divina dos
lo; era também o modo de resgasemideuses, ela habita, de coratar o crime por um ato de virtução leve e sem cuidados, as Ilhas
de; pareceu-me que ficava assim de contas saldas” dos Bem-Aventurados” (Chevalier, 1990:244-5). O
(p.137). Contudo, com o passar do tempo, Procópio nosso Procópio encarna a figura dos homens de ferro,
rende-se à ambição, ao apego material, à “tênia mo- num mundo doente, cético, cheio de (des)culpas; ele é
ral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, o enfermeiro e o enfermo deste círculo vicioso.
recompunha-se e ia ficando” (p.138), sentindo denO mesmo fim de Felisberto acaba tendo Procópio
tro de si “um prazer, um demônio ruim, que eu sin- (o seu nome é sintomático: pró/cópia), que adoece e
ceramente, buscava esganar” (p.138 nota).
deixa o seu “documento humano” (o narrador diriO seu lado humano, fraco, pecador, domina o seu ge-se claramente a um destinatário, que supomos ser
lado Jó (que Deus descreve como “homem sincero e um enfermeiro) confessando seu pecado maior ao
reto, temente a Deus, e desviando-se do mal” ) - seu futuro herdeiro: “leia isto e queira-me bem; perProcópio, “não sendo religioso” (p.136), escreve o doe-me o que lhe parecer mau” (p.130). Esta conseu próprio sermão cético: “Bem-aventurados os que fissão escrita será revelada apenas após a morte de
possuem, porque eles serão consolados” (p.139) e, Procópio; este segredo é “fonte de angústia pelo
sendo assim, fica convencido de que o melhor cami- seu peso interior” (Chevalier, 1990:808). Ao adoenho era usufruir da herança, ao invés de doar tudo aos cer, Procópio aguarda sua própria morte com resigpobres - “distribuí alguma cousa aos pobres, dei à nação - “pode ser que oito dias, se não for mematriz da vila uns paramentos novos, fiz uma es- nos; estou desenganado (...) Não tarda o sol do
mola à Santa Casa de Misericórdia, etc.: ao todo outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como
trinta e dous contos. Mandei também levantar um a vida” (p.130).
túmulo ao coronel, todo de mármore” (p.138). Na
Na simbologia, o oitavo dia na tradição cristã, sesimbologia o túmulo, segundo Jung, “é o lugar da gundo Santo Agostinho, “assinala a vida dos justos
metamorfose do corpo em espírito ou do e a condenação dos ímpios (...) é o símbolo da
renascimento que se esboça; mas é também o abis- ressurreição, da transfiguração, anúncio da era
mo onde o ser é devorado pelas trevas passagei- futura eterna.” (Chevalier, 1990:652); e o Sol “imorras e fatais.” (Chevalier, 1990:915).
tal nasce toda manhã e se põe toda noite no reino
Os trinta e dois contos doados nos levam à dos mortos; portanto, pode levar com ele os hosimbologia do número cinco (3+2=5), que “ é o nú- mens e, ao se pôr, dar-lhes a morte” (Chevalier,
mero da existência material e objetiva (...) O 1990:836). O sol pode representar também o olhar diQuinário é o número da criatura e da individuali- vino sobre os pecadores terrestres: por mais que
dade” (Chevalier, 1990:245). Além disso, o número Procópio busque justificativas para a morte de
cinco também pode ser relacionado à obra Os traba- Felisberto, no fundo ele sabe que nada escapa aos olhos
lhos e os dias, do poeta grego Hesíodo, que afirma ter de Deus.
sido a terra habitada por 5 humanidades sucessivas
O conto finaliza parodiando ironicamente o sermão
(homens de ouro, de prata, de bronze, os semideuses, da montanha: “Bem-aventurados os que possuem,
até chegar a nossa geração que é a dos homens de porque eles serão consolados” (p.139) e na leitura
ferro). A primeira geração “se tornaram guardiães dos versículos bíblicos (Mateus 5), podemos perceber
da terra (...) seus sucessores, os homens de prata, o tom cético que Procópio adota ao formular o seu
culpados dos mais loucos excessos, foram sepulta- próprio sermão:
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“3. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles
é o reino dos céus;
4. Bem-aventurados os que
choram, porque eles serão
consolados;”
(Bíblia Sagrada. Mateus 5, 3-11.
Ver também Lucas 6, 20-29).
Considerações
Finais
As “isotopias” (Fiorin) verificadas no conto revelam uma relação do homem com o divino, coincidindo
com o “mito de interesse”(Frye) construído com passagens bíblicas (o sermão da montanha, a ira de Caim,
a infração de um dos Dez Mandamentos e o livro de
Jó). E evidenciando as várias “marcas” (Frye) prenhes de significados e desmetaforizados pelo seu apelo simbólico (a exemplo da simbologia dos numerais
sete, cinco e oito) construímos o tema principal deste
conto machadiano, como uma leitura possível e coerente, que é a provação humana.
Ao assumir a função de enfermeiro, Procópio tenta
exercitar o seu lado Jó de auxiliar o enfermo e relevar a ignorância, recebendo injúrias e até golpes de
bengala; passa por períodos de isolamento total como
se fosse um monge ou um iniciante ao seminário (“havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé
de um doente bravio”, p.133). Mas o fato principal
vai ocorrer na “noite de vinte e quatro de Agosto”
e aos quarenta e dois anos do protagonista. Esta
coincidência numérica guarda a simbologia do número Seis (note o jogo de espelho: 2+4 ou 4+2 = 6): “o
senário marca essencialmente a oposição da criatura ao Criador, em um equilíbrio indefinido.
Essa oposição não é necessariamente de contradição; pode marcar uma simples distinção, mas
que virá a ser a origem de todas as ambivalências
do seis (...) Pode inclinar-se para o bem, mas também para o mal; em direção à união com Deus,
mas também com a revolta (...) É a perfeição (...)
Mas essa perfeição virtual pode abortar e esse
risco faz do 6 o número da prova entre o bem e o
mal” (Chevalier, 1990:809).
No desfecho irônico de Procópio, encontra-se o
tema filosófico do conto - trata-se de uma visão pessimista da condição humana na terra, num “documento
humano” (p.130): o poder material é capaz de consolar os pecadores; mas somente através do pecado, o
20
homem tenta redimir-se, dedicando-se a atos caridosos. Caso não
houvesse uma transgressão de um
dos Dez mandamentos, quais motivos teria o homem em praticar
voluntariamente o sermão da montanha, dividindo seus pertences com
atos caridosos?
Subentende-se que o coronel
quisesse redimir-se de seus pecados ( pois “ ele era também mau,
deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros”, p.132) deixando a herança para o pobre enfermeiro; por sua vez,
Procópio assassina Felisberto (ferindo um dos Mandamentos) inconsciente de que seria ele o seu herdeiro universal. Suponhamos que Procópio herdasse a
fortuna tendo o coronel falecido por causa da doença,
será que o herdeiro seria motivado a praticar as lições
do sermão da montanha? E Procópio parece percorrer o mesmo caminho do coronel, supostamente deixando a sua herança a um enfermeiro (o narratário a
quem se dirige), pedindo-lhe: “pague-me também com
um túmulo de mármore” (p.139).
Pôr o ser humano à prova divina é como colocá-lo
numa encruzilhada para desvendar o mistério do seu
íntimo, de seu caráter. Afinal, se todos resistissem
bravamente como Jó, o homem seria muito mais previsível. E o ser pode ocultar os seus piores pecados
de seus semelhantes, mas não consegue ocultá-los
de Deus, porque o sol “impenetrável como a vida”
(p.130) nasce todos os dias e é o “olho do Deus
supremo” (Chevalier, 1990:836). Pôr o homem à
prova, entre o bem e o mal é crucificá-lo: “O sacrifício da cruz era necessário e necessária, em conseqüência, a morte do Cristo para que o homem
fosse libertado dos efeitos do pecado” (Chevalier,
1990:312), segundo a teologia da redenção. Na Divina Comédia, Dante “mostra a cruz no meio do
céu estrelado, cercada de bem-aventurados em
adoração. A cruz é, então, o símbolo da glória
eterna, da glória conquistada pelo sacrifício...”
(Chevalier, 1990:312). Portanto, o ponto de tensão
máxima do conto centrado no assassinato do coronel
Felisberto, resgata os valores do sermão da montanha, numa prática que implica a redenção de um pecado na busca pelo perdão. O sacrifício que leva
Procópio a tentar escalar a montanha dos Bem-aventurados.
A provação humana representada na obra
machadiana, com o tom irônico e cético, permeada pela
No desfecho irônico
de Procópio,
encontra-se o tema
filosófico do conto trata-se de uma visão
pessimista da
condição humana na
terra...
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 14-21, 1999/2001
polifonia dos textos bíblicos e por
enfermo: Felisberto morre e deixa
Portanto,
o
ponto
de
vozes de outras obras (Hesíodo e
sua herança a Procópio, que toma
tensão máxima do conto
Dante), nos permite estabelecer sio lugar do primeiro e no fim da vida
centrado no assassinato
tuações protagonizadas pelo horepete o mesmo ciclo, tornando-se
mem em seu íntimo. Este é um dos
enfermo e novamente deixando sua
do coronel Felisberto,
grandes méritos da obra literária: pôr
herança ao próximo enfermeiro.
resgata os valores do
a cru as possibilidades infinitas de
Mas o que realmente parece servir
sermão da montanha,
enxergar o ser do homem, já que a
de pano de fundo a esse círculo vinuma
prática
que
implica
mimesis permite ao autor esta relacioso é a enfermidade do mundo,
ção franca entre criador e criatura.
ou seja, aquela tênia moral.
a redenção de um pecaO que nos interessa não é a imitaPortanto, todas estas possibilidado na busca pelo perdão.
ção do homem, representá-lo numa
des ganham densidade à medida em
pretensa cópia de como ele é, mas
que o leitor penetra no imaginário
experimentar todas as possibilidades de como poderia criado pela obra, munido de uma visão semiótica caser - eis aí a poética do texto literário, que eleva o mito paz de reconhecer a simbologia latente nas palavras e,
a um nível universal.
assim, passar pela insubstituível experiência de vivenciar
O título do conto se justifica pelo círculo vicioso a leitura num horizonte muito mais amplo e profundo
que acaba sendo estabelecido entre o enfermeiro e o que a obra literária sempre nos oferece.
Referências Bibliográficas
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BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Pesquisas semiológicas. 4ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1976.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
COSTA LIMA, Luiz (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 3ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 4ed., São Paulo: Contexto, 1994.
FRYE, Northrop. O caminho crítico. Um ensaio sobre o contexto social da crítica literária. São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates,
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PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1972.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O enfermeiro. Várias histórias. 2ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília, INL, 1977,
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TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979.
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Neste artigo, vou apresentar alguns autores da Literatura Brasileira de expressão latina, depois de ter dito do desprezo imperdoável dos historiógrafos da Literatura com relação aos autores e
obras mais significativas deste veio da Literatura. A exposição é
didática, por isso apresento os autores objeto de minhas pesquisas por meio de excertos escolhidos entre os mais significativos,
que permitirão aos leitores avaliar a importância de Anchieta, Castro Lopes e Vieira como verdadeiros escritores latinos do Brasil.
Palavras-chave:
Autores Latinos; Escritores Brasileiros;
Obras Neolatinas.
In this paper i am going to show some brazilian authors who
deal with Latin Literature, after saying about the unforgivable
scorn that the searchers of Historical Literature have with the
authors and works more significant of this literary branch. This
is a didatic exposition, so i present the authors (who were object
of my searches) by parts chosen among the more meanful works,
thus the readers are going to be able to evaluate the importance
of Anchieta, Castro Lopes and Vieira as real latin writers in
brazilian context.
Keywords:
Latin Authors; Brazilian Authors;
Literary Works
22
LITERATURA BRASILEIRA
DE EXPRESSÃO LATINA
João Bortolanza*
A Literatura Brasileira tem uma faceta importante
e pouco conhecida, a vertente clássico-humanista, escrita em Latim. Anchieta foi o primeiro novilatino significativo com mais de 10.300 versos latinos, além de
sua produção em prosa latina. Silva Belchior publicou
em plena época de 90 Carmina Drummondiana e
Carmina Pessoana, versão de alguns poemas seletos
de ambos os poetas da atualidade: um veio rico , portanto, que merece maior enfoque.
Estranha-se, ao se abrirem nossos compêndios de
Literatura Brasileira, ver o pouco espaço que é dado a
este veio de nossa Literatura, com um tratamento às
vezes preconceituoso, indigno da probidade científica,
como o que é dado a autores como Anchieta e José
Rodrigues de Melo por Sílvio Romero:
Obrigado a tratar somente dos espíritos autonômicos e investigadores do pensamento nacional,
nada tenho a falar sobre alguns enfastiados,
que, se diz, escreveram aqui no primeiro século
alguns versos latinos, ou coisas de laia semelhante, que se perderam. São quase todos tipos
mortos, estéreis, inúteis. Sufocados pelo
culteranismo jesuítico, desprendidos da consciência nacional, para cuja determinação nada
contribuíram, passaram a vida a versejar sensaborias e não têm o direito de figurar na história. (1943, Vol. II, p 397)
Nada se terá que ver com alguns frades despreocupados ou ociosos que mataram o tempo a
escrever versos latinos, ou a publicar sensaborias em Roma. (1943, Vol. I, p. 58).
Enquanto em Portugal os Padres Antônio dos Reis
e Manuel Monteiro de 1745 a 1748 deram à luz 8 volumes do Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum qui
latine scripserunt; enquanto em Coimbra existe um
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos com grande produção, aqui no Brasil ainda pouco se pesquisou
e divulgou sobre a nossa Literatura de Expressão Latina. A UNESP de Assis, apenas na década de 70, sob
a coordenação do Prof. Dr. Enio Aloísio Fonda, criou
o Archivum Generale Poetarum Latinorum Brasiliensium, o primeiro e único a explorar esse tema.
Como pesquisador dessa linha de pesquisa, vou
destacar alguns nomes e algumas obras, especialmente os que foram e ou estão sendo objeto de minha pesquisa: Antônio de Castro Lopes, Pe. José de Anchieta
e Pe. Antônio Vieira.
Edição de 1997, pela Editora da UEPG, de Ponta
Grossa, veio à luz o resultado de uma longa pesquisa e
de um excelente trabalho de Crítica Textual ou
Ecdótica, com o título Temas Rurais do Brasil, em
edição bilíngüe, com introdução, tradução e notas dos
professores Raul José Sozim e Sérgio Monteiro Zan.
Trata-se do poema didático, nos moldes das Geórgicas
* Doutor em Letras pela UNESP Assis (1994) com Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra 1998/1999, Professor de Língua e
Literatura Latinas e Filologia Românica na UFMS./ Campus de Dourados.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
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de Virgílio, bem do gosto da nossa
Apologética ao poema o Uruguay,
Castro
Lopes
escola neoclássica, De Rusticis
em que o Pe. Kaulen deixa claro que
dá um tom
Brasiliae Rebus Carminum Libri IV
as composições que Termindo Sipílio,
do Pe. José Rodrigues de Melo, edipseudônimo de Basílio da Gama, apreclassicizante a sua
tado em Roma em 1781, tendo em
sentava na Arcádia Romana eram
tradução livre,
apêndice o De Sacchari Opificio
feitas pelos Jesuítas; embora cite a
produzindo versos
Carmen do Pe.Prudêncio do Amaral,
Bibliografia Brasileira do Período
que não raro superam
corrigido e completado pelo Pe.
Colonial em que Rubens Borba de
Jerônimo Muniz. Obra calcada em
Morais referenda as suspeitas do Pe.
o próprio original
Cultura e Opulência do Brasil de
Kaulen, afirmando que são várias as
de Gonzaga.
André João Antonil, pseudônimo de
semelhanças com o De Rusticis
outro jesuíta, o Pe. João Antônio
Brasiliae Rebus do Padre José
Andreoni, o De Rusticis Brasiliae
Rodrigues de Melo – não seria com
Rebus também procura mostrar as riquezas da Colônia. o Antonil? – simplesmente assume como óbvia a autoria.
Os primeiros dois livros tratam da cultura e da utilização
Preciosa é a contribuição do Pe. Serafim Leite, com
da “raiz brasílica”, isto é, a mandioca; o terceiro, da cria- seus 10 volumes da História da Companhia de Jesus
ção do gado; o quarto, do cultivo da erva nicotiniana, o no Brasil. Ao falar do Padre Francisco da Silveira, jesutabaco. Em vez da mineração do Ouro, acrescenta em íta nascido em Açores em 1718 e que professou no Braapêndice De Sacchari opificio, sobre o Açúcar.
sil até a expulsão, transcreve (Vol. IX: 127) Sommervogel:
Surge então outro problema para a Crítica Textual:
Poemas das Minas de Oiro : “Ha fatta uma lunga
edita-se em Roma o Brasilienses Aurifodinae, constandescrizione dello scavo delle miniere dell’oro Del
do como autor José Basílio da Gama, ex-membro da
Brasile in versi latini exametri. Ma non l’ha fatta
Companhia de Jesus e protegido dos Jesuítas para ter
fin ora stampare.”
acesso à Arcádia Romana. Faziam-lhe poemas latinos
Traduzindo: “Fez uma longa descrição das espara que ele os expusesse nas sessões acadêmicas. Ao
cavações das minas de ouro do Brasil em verque consta, José Basílio da Gama não escreveu um verso
sos latinos hexamétricos. Mas até agora não a
sequer em Latim – teria ele, tão jovem (nem 25 anos),
fez ainda publicar.
maturidade e preparo para escrever tão extenso e polêMuitos outros poetas novilatinos brasileiros foram
mico tratado sobre as Minas de Ouro do Brasil? E justa- objeto de pesquisa, entre eles Manoel Botelho de Olimente na língua universal que era o Latim? Há até uma veira com sua Música do Parnaso, Dom Aquino
dissertação de Mestrado recente (1992), de João António Correia e Pe. Pedro Sarneel, cuja poesia latina foi
Lourenço Gonçalves, da Universidade de Coimbra, ori- publicada em 1973 pelo Prof. Dr. Enio Aloisio Fonda.
entado pelo preclaro Professor Américo da Costa
Atenho-me, enfim, aos 3 poetas novilatinos brasiRamalho, Contributos para a História Económica e leiros que foram e continuam sendo objeto de minha
Social do Brasil. Embora lembre a Resposta pesquisa.
1. ANTÔNIO DE CASTRO LOPES (Rio de Janeiro, 1827-1901)
e sua Musa Latina
Sem dúvida um dos maiores latinistas brasileiros, Castro Lopes foi uma figura polêmica que viveu no século
passado na cidade do Rio de Janeiro, polígrafo, autor de várias obras nas mais diversas áreas. Sua gramática
latina, Novo sistema para estudar a língua latina, teve 3 edições (1856, 1859 e 1879). Compôs também 915
versos latinos que em nada devem aos versos de Virgílio e Ovídio, como pude comprovar em minha tese de
doutorado, Corpus da poesia latina de Antônio de Castro Lopes (1994). A maior parte de seus poemas
latinos encontram-se em Musa Latina (edições de 1868 e 1887).
Amaryllidos Dircaei aliquot selecta Lyrica in Latinum sermonem translata ad usum scholarum
Brasiliensium é o subtítulo de Musa Latina, já que são 25 as Liras Seletas vertidas para o Latim por Castro Lopes,
num total de 577 versos latinos. De 1995 a 1998, vim fazendo um paralelo entre ambas as versões e pude comprovar que Castro Lopes dá um tom classicizante a sua tradução livre, produzindo versos que não raro superam o
próprio original de Gonzaga. Parte apenas dos resultados veio a público, v.g. a Lira I da 1ª Parte (Vide Clássica):
24
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
1.
2.
3.
4.
5.
Rusticus, o Amaryllis, ego non, sole, geluque
Torridus, alterius qui servem armenta, bubulcus:
Fert oleum, fructus, fundus mihi, vina, legumen;
Lacte ovium vescor, tegit et me lana mearum:
Me fortunatum! tribuunt cui talia Divi!
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado,
De tosco trato, d’expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto,
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite,
Das brancas ovelhinhas tiro o leite
E mais as finas lãs de que me visto.
Graças, Marília bela!
Graças à minha Estrela!
Reduzindo à metade os versos, pela exclusão de perífrases e adjetivos internos, além das freqüentes
invocações, tão ao gosto arcádico, Castro Lopes prima pelo verso conciso, dentro dos cânones clássicos.
Comparem-se as versões de Gonzaga e de Castro Lopes da Lira XXX da 1ª Parte:
1. Ad claram mater lympham consedit Amoris
Fulta manu vultus; advenit ecce sopor.
3. Prospicit hanc, illic currit laetusque Cupido;
Deceptus specie tum oscula fronte rapit.
5. Irata expergiscitur; est mox cognita nato,
Qui supplex orat, sic veniamque petit:
7.‘‘Te cernens, genetrix, Amaryllida cernere rebar,
Namque Amaryllidis est vultus et ipse tuus.
1. Junto de uma clara fonte
A mãe de Amor se sentou:
Encostou na mão o rosto,
No leve sono pegou.
3. Cupido, que a viu de longe,
Contente ao lugar correu;
Cuidando que era Marília,
Na face um beijo lhe deu.
5. Acorda Vênus irada:
Amor a conhece; e então
Da ousadia, que teve,
Assim lhe pede perdão:
7. “Foi fácil, ó Mãe formosa,
Foi fácil o engano meu:
Que o semblante de Marília
É todo o semblante teu.”
Esta Lira, como o excerto da Lira II infra, ambas de cunho anacreôntico, atêm-se aos cânones arcádicos,
compõem-se de redondilhas maiores, dentro da lírica tradicional portuguesa, primando pela linguagem simples e
singela, não dispensando, por outro lado, os ornatus da transgressio (inversão) e sobretudo da repetitio, num
entrecruzar-se de figuras que revela certo cultismo de Gonzaga.
8. Promissi, haud flavi, nigrant per colla capilli,
9. Phoebei plus quam formosi; horumque colores
10. Pulchre miscentur vultus candore micanti.
11. Curva supercilia; ei frons est convexa, polita;
12. Dulciloquus, caste aspiciens; ei lumina soles;
13. Et superat caelum, bini nam fronte refulgent.
14. Purpureis commixta rosis sunt lilia vultu;
15. Ex ebore et dentes, carbunculus inque labellis.
11. Tem redonda e lisa a testa,
Arqueadas sobrancelhas;
A voz meiga, a vista honesta,
E seus olhos são uns sóis.
Aqui vence Amor ao Céu,
Que no dia luminoso
O Céu tem um Sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.
8. Os seus compridos cabelos,
Que sobre as costas ondeiam,
São que os de Apolo mais belos;
Mas de loura cor não são,
Têm a cor da negra noite,
E com o branco do rosto
Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.
14. Na sua face mimosa,
Marília, estão misturadas
Purpúreas folhas de rosa,
Brancas folhas de jasmim.
Dos rubis mais preciosos
Os seus beiços são formados;
Os seus dentes delicados
São pedaços de marfim.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
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O texto latino, em seu caráter mais classicizante, suprime adjetivos internos: compridos cabelos, negra noite,
Sol formoso, travesso Amor, dia luminoso, face mimosa, brancas folhas de jasmim, rubis preciosos, dentes
delicados; exclui perífrases: de loura cor, a cor da negra noite, folhas de rosa, folhas de jasmim; simplifica
expressões: os seus compridos cabelos que sobre as costas ondeiam... mas de loura cor não são, têm a cor da
negra noite < promissi, haud flavi, nigrant per colla capilli; dos rubis mais preciosos os seus beiços são
formados; os seus dentes delicados são pedaços de marfim < “ex ebore dentes, carbunculus inque labellis”.
Uma tradução mais ou menos literal permitirá estabelecer um paralelo e verificar as muitas mudanças
introduzidas pela tradução livre de Castro Lopes, sobretudo o sintetismo latino, com 8 versos traduzindo 3
oitavas portuguesas (24 v > 8 v !):
Longos, não loiros, negrejam-lhe pelos ombros os cabelos
Que os de Apolo mais formosos; mesclam-se suas cores
Maravilhosamente com o candor luzente de (seu) rosto.
Arqueadas as sobrancelhas, é-lhe redonda e lisa a testa;
De voz doce, de casto olhar; seus olhos, como sóis,
Vencem o Céu, porquanto dois em sua fronte brilham.
Lírios misturam-se a purpúreas rosas em seu rosto,
Dentes de marfim e rubi nos labiozinhos.
Um dos poemas de Castro Lopes de maior fortuna crítica é o poema deutoglota Ave, Aurora!, feito
para poder mostrar a “consangüinidade” do Latim e do Português (Cf. BORTOLANZA, 1999, Boletim...,
p. 91-94):
Salve, aurora ! eia, refulge !
Eia, anima valles, montes !
Hymnos canta, o Philomela,
Hymnos jucundos, insontes !
Quam pura, quam pudibunda
Es tu, aurora formosa !
Diffunde odores suaves,
Divina, purpurea rosa !
Eia, surge, vivifica
Pendentes ramos, aurora !
Aureos fulgores emitte,
Pallidas messes colora
Matutina aura, mitiga
Solares, nimios ardores;
Salve, aurora ! eia, refulge!
Eia, anima valles, montes !
Inspira gratos Favonios,
Euros, Zephyros protectores.
Eoa, Tithonia Diva,
Fecundos campos decora,
Canoras aves excita,
O serena, bella aurora !
Protege placidos somnos,
Inquietas mentes tempera,
Duras procellas dissipa,
Terras, flores refrigera.
Extingue umbrosos vapores,
O sol, o divina flamma !
Lucidas portas expande,
Tristes animos inflamma !
Hymnos canta, o Philomela,
Hymnos jucundos, insontes !
Brilhante é também sua versão latina do episódio “Ignez de Castro” de Os Lusíadas de Luís de Camões.
Apresento apenas os primeiros 9 dos 72 versos (Cf. BORTOLANZA, 1999, Humanitas, p. 301-316):
1. Agnes interea, blande labentibus annis,
Deliciis data, quas reddit fortuna fugaces,
Pulchra quiescebat Mondae maerentibus arvis
4. Rorati lacrimis, caelatum pectore nomen,
Et flores, montesque docens resonare. Vicissim
Formosae Princeps Agnis reminiscitur absens,
26
Que a fortuna não deixa durar muito;
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxuito,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas,
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
7. Ante oculos defixa semper imagine vultus
Quaeque videt, mendacia quaeque insomnia fingunt,
Omnia laetitiae vestigia:
1. Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo o doce fruito,
Naquele engano da alma ledo e cego,
5. Do teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus formosos se apartavam;
De noite em doces sonhos, que mentiam,
De dia em pensamentos, que voavam:
E quanto enfim cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
Para celebrar o grande feito da inauguração, em 1854, do primeiro trecho de estrada de ferro do Brasil,
compôs, com todo o preciosismo próprio dos centões poéticos, num apanhado de versos colhidos nos mais
representativos poetas latinos, esta outra obra-prima sua: a Descripção de uma Estrada de Ferro. Em minha
tese (1994), estabeleci o texto, traduzi-a e ubiquei os versos latinos:
1. Atque hic ingentem comitum affluxisse novorum
2. Invenio admirans numerum, matresque, virosque,
3. Undique collectam pubem, et miserabile vulgus.
4. Haud mora; prosiluere suis jam sedibus omnes;
5. Intenti exspectant signum; exit carcere currus.
6. Fit sonus; et toti senserunt sibila montes:
7. Consonat omne nemus strepitu, collesque resultant:
8. Inde fragore gravi strepitus loca proxima terret.
9. Advolat ille Noto citius, volucrique sagitta,
10. Tenuia vix summo vestigia pulvere signat;
11. Quae manet in statione, ea praeter creditur ire.
12. Evomit ad caelum picea caligine nubem
13. Faucibus ingentem; vacuas it fumus ad auras
14. Aestuat in clausis rapidus fornacibus ignis;
15. Implentur cuncta et nebula caliginis atrae.
16. Inde ruunt alii, magna stipante caterva,
17. Uma eademque via, certo neque ab ordine cedunt:
18. Rupis in anfractu rupem subiere cavatam.
19. Est specus in medio, vastoque immanis hiatu,
20. Efficiens humilem lapidum compagibus arcum:
21. Tum sonus auditur gravior, fragor intonat ingens,
22. Et silvae reboant, furit et mugitibus aether
23. Concussus, qualemve sonum, quum Jupiter atras
24. Increpuit nubes, extrema tonitrua reddunt.
25. Non tam grande sonat motis incudibus Aetna !
26. Advolat ille, iterumque volat vapor ater ad auras:
27. Portarum vigiles nutu signisque loquuntur:
28. Antra subit, tofis laqueataque pumice vivo.
29. Progreditur; tenebris nigrescunt omnia circum;
30. Delituit caelum, et subito lux candida cessit;
31. Itur et obscuras sola sub nocte per umbras;
32. Quamquam et dependent lychni laquearibus altis,
33. Ut primum umbrosae penitus patuere cavernae,
34 . Extemplo tremefacta novus per pectora cunctis
35. Insinuat pavor, et tum facta silentia linguis.
36. Jam sole infuso, jam rebus luce retectis,
37. Tum per aperta volans est fulminis ocior alis,
38. Et studet optatam cursu contingere metam.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
1. Eis que
encontro admirado enorme
acorrência de novos companheiros afluindo de
toda parte, homens e mulheres, grupos de jovens e a miseranda plebe. Logo em seguida, todos se dirigem a seus assentos e esperam atentos o sinal; sai o carro da estação.
6. Soa o apito; os montes todos ouviram o silvo,
toda a floresta ressoa com o ruído que as colinas ecoam, enchendo de terror as cercanias com
esse fragor colossal. O trem voa mais veloz
que o vento Noto e que a seta ligeira, mal
deixando à superfície leves vestígios do pó.
11. O que fica na estação parece estar deslocando-se para frente. O trem, de suas fauces,
vomita para o alto espessa nuvem escura como
o pez, eleva-se a fumaça pelos ares, e o fogo
voraz arde nas suas cerradas fornalhas: tudo
se cobre com a nuvem de negra fuligem.
16. De lá outros surgem desabalados formando
uma grande esquadra, avançam impecavelmente por um e mesmo caminho sem sair da linha,
penetrando pela fenda aberta da rocha. No meio
dessa rocha há uma caverna de medonha e enorme boca, fomando no sopé da montanha um arco
de pedras.
21. Ouve-se então um som mais forte, retumba
um ingente fragor, reboam as matas e o ar atingido se enfurece com esses como que mugidos,
ou como o estrondo que repercute dos trovões
mais longínquos com que Júpiter fustiga as negras nuvens. Não ronca tão forte o Etna com
suas bigornas em plena atividade !
26. Ele voa, e junto voa o negro vapor pelos
ares; comunicam-se com acenos e bandeiras os
vigias das cancelas. Ei-lo que penetra pelos antros forrados de pedras e de rocha viva.
Avança. Tudo em volta se cobre de trevas,o céu
27
se esconde, e de repente desaparece a clara luz do
dia;
31. caminha-se na solidão da noite pelas sombras
escuras. Embora dos altos tetos pendam lampiões,
tão logo se penetra nas umbrosas cavernas, novo
pavor logo assalta os já apavorados peitos de todos, e então o silêncio impera.
36. Eis que o sol aparece, eis que com a luz as
coisas se desvendam, e o trem voa pelos descampados mais veloz que as asas do raio, e correndo
busca alcançar a desejada meta.
2. PADRE JOSÉ DE ANCHIETA (1534-1597)
O canarino Anchieta veio ao Brasil em 1553, aos 19 anos de idade, não antes de ter passado 5 anos por
intenso tirocínio na Universidade de Coimbra. Lá aprendeu as Humanidades, tornando-se exímio na Língua
Latina, um poeta novilatino. Sua produção poética latina compreende duas grandes obras: De Beata Virgine
Dei Matre Maria, com quase 5800 versos e De Gestis Mendi de Saa, poema épico com 3135 versos. Além
destes, De Eucharistia et Aliis Poemata Varia – título dado pelo Pe. Armando Cardoso à coletânea de vários
poemas. Ao todo, foram 10300 versos latinos de qualidade que nos legou, ao lado de vasta produção em Língua
Portuguesa, Tupi e Espanhola, sem contar com a sua prosa latina e a obra dramática.
Primeiro grande épico deste novo País, o missionário Jesuíta Anchieta, de ótima formação humanista, encontrou no herói Mem de Sá as grandes façanhas para sua epopéia: foi o Governador que, em pouco tempo,
conseguiu conter os índios, dominá-los, possibilitando com isso a presença do missionário catequizador. Desenhava-se o cenário de uma epopéia, com o triunfo da colonização portuguesa sob a égide da Cruz e da Espada,
da Ideologia da Fé e Império, a que fará eco o grande poema épico de Camões, 9 anos mais tarde.
Parece contraditório que Anchieta, que tanto amou os índios, a ponto de, no ano da 1ª edição da epopéia
(1563), fazer-se espontaneamente refém dos índios na Confederação dos Tamoios, tenha cantado com
altissonância os Feitos de Mem de Sá, o herói que dominou os índios que se opunham à dominação colonizadora
do Português. É que, para Anchieta, foi isto que operou o verdadeiro herói, Cristo Rei, no seu plano de salvação:
permitiu, através de seu herói terreno, que os bárbaros fossem catequizados e “salvos”, a libertá-los da dominação do terrível antagonista infernal. Assim surge De Gestis Mendi de Saa, a primeira epopéia nacional e
primeira epopéia das Américas, até hoje a merecer maior divulgação, pela sua importância histórico-literária de
Literatura Brasileira de expressão latina.
Analisando o texto latino, estabelecido pelo Pe. Armando Cardoso, várias pesquisas vêm sendo desenvolvidas (por mim e por orientandos), com o projeto O Poema Épico De Gestis Mendi de Saa do Padre Anchieta:
Lexicon Concordantiarum e Outros Estudos. A partir do estudo do léxico empregado, duas pesquisas já
foram apresentadas em congressos internacionais: “A Ideologia da Adjetivação Indígena em De Gestis Mendi
de Saa” e “A Mitologia Pagã em De Gestis Mendi de Saa”.
Nesta, mostro como Anchieta, seguindo os cânones clássicos, serviu-se expressivamente da mitologia pagã.
No texto latino, encontram-se mais de 300 alusões diretas a entidades mitológicas. Já, no texto português do Pe.
Armando Cardoso, a maioria delas não consta. Isto se deve ao fato de Anchieta normalmente valer-se da
metonímia: os epítetos pagãos referem-se a fenômenos da natureza, quando não são cristianizados. Assim, no
mais das vezes, Apolo, Netuno, Vulcano, Minerva ou Marte, entre outros, são empregados como sinônimos de,
respectivamente, o sol, o mar, o fogo, a arte ou a guerra. Outras vezes, são as figuras infernais ou celestiais que
passam a integrar a dominante mitologia cristã da epopéia: Styx, Cerberus, Dis ou seu epíteto Tyrannus,
Acheron, Infernus, Bellua, Chaos empregam-se dentro do contexto infernal e diabólico cristão, enquanto
Olympus, Altitonans ou Tonans, Superi, Aether e aethereus, Superus Parens etc passam a referir-se ao Céu
cristão, a Deus Pai.
28
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
O maravilhoso pagão, nesta epopéia, não representa o Fatum, a força suprema a mover o imo dos acontecimentos, a operar as Mirabilia ad aeternum memoranda, deixando ao herói humano um papel secundário,
como o foi para Camões em Os Lusíadas, que veio à luz 9 anos mais tarde (1572). Em Anchieta, o verdadeiro
Herói pertence ao maravilhoso cristão e o heroísmo do herói humano advém de sua consonância com os ditames
daquele. Aliás, em Camões, o maravilhoso cristão parece às vezes sobrepor-se ao maravilhoso pagão.
Na comunicação “A Ideologia da Adjetivação indígena...”, expus o resultado de um minucioso levantamento
dos adjetivos empregados por Anchieta ao se referir aos índios. Referindo-se aos habitantes do Brasil, emprega,
entre outros, os seguintes substantivos: gens, natio, tellus, brasillia, brasilles, indus, populus, hostis, catervae,
turmae, agmina e turbae. Raramente estes aparecem sem o qualificante, quando não mais de um.
Farta adjetivação com o sema da “crueldade/ferocidade”: os índios brasileiros são vistos como saevi, feri,
crudeles, immanes, atri, cruenti, diri, atroces, feroces e sanguinolenti, tendo sido levantadas 162 ocorrências. Cruéis duma ferocidade selvagem, muitas vezes comparada e enfocada como superior à dos lobos, leões
e tigres, perigosos sobretudo para o ser humano, uma vez que este instinto sanguinário é apontado como parte do
caráter indígena, os índios só poderiam mudar seus costumes se domados. É que, além desse encarniçamento,
são bárbaros, hostis, indômitos e soberbos (60), infrenes em seus vícios, ávidos de sangue humano. Entre os
adjetivos, cumpre destacar as 25 ocorrências de humanus, à primeira vista sem conotação desabonante, mas
que, no texto, qualificam normalmente a antropofagia: carne (11), sangue (7), corpo ou membros (4) humanos.
Entre os excertos, vejam-se, por exemplo, estes hexâmetros iniciais a referirem-se ao prius (período anterior
aos Feitos de Mem de Sá), omitindo-se os alternados pares que mostram o resultado da ação do herói:
3 Jam fera deposuit tumidos Brasillia fastus
5 Quae prius horrendo funesto furore gerebat
7 Quae prius umbrosis degebat condita silvis
9 Quae rabidis hominum rodebat corpora malis
11 Quae saeva humanum sugebat fauce cruorem
Brasillia / Fastus
Furore
Brasillia / silvis
Malis (queixadas)
fauce / cruorem
À ferocidade e ao orgulho acresça-se o caráter de selvagem arredio a esconder-se nas sombrias florestas.
Completa-se este quadro, logo a seguir, quando o Poeta, nesta 1ª descrição do indígena brasileiro – Gens fuit
australis –, desvenda sua concepção a respeito do habitante desta nova Terra, pertencente ao reino do antagonista infernal de que só poderá ser tirado com a intervenção sobrenatural: o verdadeiro Herói decide enviar o
“semideus” salvador a estas “humano sudantes sanguine terras”, a esses “loca sepulta nocte horrifica”, a
dizimarem as “Christicolas gentes”:
131 Obtenebrata diu barathri caligine caeci,
Gens fuit australis, saevi subjecta tyranni
Colla jugo, cassum divini luminis aevum
Traducens, multisque malis immersa; superba,
135 Effrenis, crudelis, atrox, fusoque cruenta
Sanguine: docta necem rapidis inferre sagittis;
Immanesque tigres feritate luposque voraces
Et rabidos superare canes saevosque leones,
Humanis avidam pascebat carnibus alvum.
140 Multa diu scelera intentans, immanibus atri
Regnatorem Erebi, (qui mortem primus in orbem
Induxit, primus seducens fraude parentes),
Sponte sequens factis, multorum corpora saevo
Discerpens leto, crudele superba furore
145 Christicolas multo populabat funere gentes;
Donec ab aethereis spectans regionibus oras
Brasilles Pater omnipotens, loca nocte sepulta
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
Caligine
Gens / Tyranni / Colla
Malis / Gens
Gens / Sanguine/ Gens
Gens
Tigres / Lupos
Canes / Leones
Carnibus / Alvum
Scelera / Factis / Erebi
Leto
Furore / Gens
Funere
Oras / Loca
Nocte / Sanguine / Terras
29
Horrifica, humano sudantes sanguine terras,
Misit ab Arctois ultoris criminis oris,
150 Criminis infandi ultorem; qui pelleret iras
Crudeles terra; qui funera dira, cruentis
Perpetrata modis, compesceret, horrida sedans
Bella, feros animos mulcens, rabidisque cruorem
159 Rictibus humanum pasci non ferret inultus.
Criminis
Iras / Funera / Modis
Funera / Bella
Animos / Rictibus
Cruorem / [Ille]
Não muito diferente é este outro trecho selecionado, em que se descreve o Tamuya da capitania do Espírito
Santo, a justificar o primeiro grande Feito de Mem de Sá – obrigá-lo a aceitar a presença da colonização
portuguesa – enviando uma expedição sob o comando de seu filho Fernão, posto que o pequeno grupo lusíada
estava prestes a ser dizimado:
199 Terra procul paucis colitur fecunda colonis, (...)
204 Spiritus hanc sacro designat nomine Sanctus,
205 Lysiadum cultam populis; quos horrida contra
Bella movens Tamuya ferox, (id nomen avorum
Hostis habet saevus), damna infert plurima passim,
Devastans agros fecundaque fructibus arva;
Abducensque homines, it praeda victor abacta,
210 Captivoque avidos impinguat sanguine ventres.
Jamque omnes variis concurrere partibus hostes,
Et saevam glomerare manum, populentur ut omnem
Christiadum populum; furit imis ira medullis
Et belli vesanus amor carnisque cupido
215 Humanae; gliscunt insano corda furore,
Et, ni dextra Dei coeptis crudelibus obstet,
Auxilium caeleste ferens, gentemque superbam
Bellorum ardentem furiis avidamque cruoris
Disturbet, saevo jam protinus omnia Marte
220 Incestent, madidentque piorum sanguine terram. (...)
243 “Cernis ut innumero crudeles agmine gentes
“Praelia Christiadum populo truculenta minentur
245 “Indignamque necem; jamjam et cervicibus instent,
“Non secus ac saevae carpturae corpora tigres,
“Hausturaeque pium sitienti fauce cruorem.
Colonis / Terra
Terram / Bella
Tamuya
Hostis / Damna
Tamuya
Tamuya / Praeda
Sanguine /Ventres
Manum
Medullis
Amor
Carnis / Furore
Coeptis
Gentem
Gentem / Gentem
Marte
Agmine / Gentes
Praelia
Necem
Tigres
Tigres / Cruorem / Fauce
Observe-se também este Finale:
3048 Et mundi extremos penetravit adusque Japones.
Te quoque adorabit caecis erepta tenebris,
3050 Divinae exortu lucis radiata micanti
Natio, quae humana pascit fera viscera carne,
Et subjecta Noto noscet tua nomina tellus;
Aureaque australi succedent saecula mundo,
Cum tua Brasilles servabunt dogmata gentes.
Japones
Tenebris / Natio
Lucis / Natio / Exortu
Carne / Viscera
Tellus / Nomina
Saecula / Mundo
Dogmata / Gentes
Pode-se concluir, ante o exposto, que a adjetivação indígena em De Gestis Mendi de Saa, dada a abundância com que é empregada e considerada a sua carga semântica, mostra em Anchieta um lídimo representante da
Ideologia da Fé e Império, a que não escapará o próprio Camões em Os Lusíadas, logo depois, em 1572. Como
toda ideologia, peca pela parcialidade: insiste-se naquilo que vem a justificar os fatos — e não se está aqui a
duvidar das boas intenções do Venerável Apóstolo do Brasil — deixando-se de destacar o que levou os índios a
30
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
esta hostilidade, com as várias tentativas de escravização, com a prepotência de alguns colonizadores. Há
referências sim a estas “culpas” dos portugueses, mas estão diluídas, restritas a pequenas alusões. As pistas do
texto, através do caminho da adjetivação, como também poderia ser o dos verbos, evidenciam a ideologia que é
a razão de ser deste grande feito poético de Anchieta.
3. PADRE ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697)
O Padre Antônio Vieira é, sem dúvida, um dos escritores em Língua Portuguesa que mais despertou o
interesse da crítica. O poeta latino Vieira, no entanto, está a merecer maior destaque: urge uma edição crítica de
seus poemas.
Dentro de meu projeto de Pós-Doutorado, “Poesia Novilatina Luso-Brasileira”, pude recolher boa parte da
fortuna crítica dos seus poemas latinos. Apresento aqui em parte o poema de maior fortuna: Cortex Eucharisticus,
id est, Sacrae Pyxidis ex cortice affabre elaboratae descriptio, conforme o título do códice 166 do Fondo
Gesuitico da Biblioteca Nazionale Centrale de Roma.
Foi este um poema de ocasião. Vieira se achava em Santarém, para pregar nas exéquias do seu padrinho de
batismo, primeiro conde de Unhão, D. Fernão Teles de Meneses, quando, a 06 de maio de 1651, se inaugurou
com grande pompa a nova sede, os Paços doados por D. João IV aos Jesuítas (RODRIGUES, 1994, P.14). Foi
o orador também desta grande solenidade. Encantou-se ele ante a simplicidade da capela improvisada e sobretudo do altar e píxide artisticamente elaborados em cortiça pelo Padre Sebastião de Novais. (Seria o mesmo
Padre Novais que iria dirigir os trabalhos de construção da nova igreja nos anos posteriores. Seria também um
outro padre jesuíta, Antônio Vieira, dito de Arraiolos, quem iria concluir a obra, nos anos de 1712 a 1716. Op.
Cit., p. 15). Isto se atesta na tradição impressa, em que, ao título Pixis, seu Cortex Eucharisticus, se acrescem
os seguintes dizeres:
Pyxidem eucharisticam e suberis cortice miro artifício fabrefactam, et sculpturae artis legibus
ingeniosissime inventam, conditamque a Patre Sebastiano de Novais Societatis Jesu, canebat,
modulatissime, merum fundens ab ore melos, P. Antonius Vieira, ut in divinis, sic in humanioribus litteris
apprime excultus.
Estava o humanista Vieira diante de motivo ímpar para “reacender os extintos fogos e a chama que arrefece
com a idade”, compondo versos em Latim, língua ainda universal nos meios cultos. O “milagre” da cortiça
transformada em “casa” da Divina Presença Eucarística oferecia-lhe um tema predileto para seus malabarismos verbais e conceptuais. Apresento apenas os primeiros 26 versos:
CORTEX EUCHARISTICUS, id est, Sacrae Pixidis ex cortice affabre elaboratae descriptio
1. Quo me Musa rapit, longumque relictus Apollo?
Exstinctos iterum, juvenes quos lusimus, ignes,
3. Frigentemque aetate jubet recalescere flammam?
Corticis est, quae forma senem pulcherrima vatem
5. Concipere Aonios effeta mente furores,
Suspensamque lyram, fractumque resumere plectrum
7. Cogit, et oblitos reminisci carmine fontes.
Corticis est, non ficta cano: vos lumina testes,
9. Vosque manus, tentastis enim, nec lusit imago.
10. Corticis est: o quanta sacer miracula cortex
Et tegit, et prodit, certantque patentia tectis!
Mysterii jam clara fides: si talia cerno
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
1. Para onde me arrebata a Musa, e Apolo, por
muito tempo abandonado? Manda ele reacender os
extintos fogos com que nos divertimos na juventude e
a chama que arrefece com a idade? 4. É a forma da
cortiça que, lindíssima, impeliu o vate já velho a conceber na mente exaurida os estros aônios, a retomar a
lira suspensa e o plectro quebrado e a relembrar num
carme as fontes esquecidas.8. É mesmo de cortiça,
não canto ficção: com efeito, vós, olhos, sois testemunhas e vós, mãos, apalpastes e a imagem não vos
iludiu.
10. É de cortiça! Oh! quantos milagres a sagrada
cortiça a um tempo encobre e manifesta! e como
porfia o manifesto com o oculto! Já se aclara a fé
misteriosa: se reconheço que a arte mortal reali31
13. Mortalem fecisse artem, quid credere dignum est
Divinas potuisse manus? De cortice Pyxis,
15. Nomine maius opus, solique aequabilis ipsi
Ingenio Artifici, de cortice fabrica surgit,
17. Quam non Vulcanus ferro, non Daedalus auro,
Marmore Praxiteles, nec pluma auderet Apelles.
21. Fundamenta locat cortex, de cortice membra
Adsurgunt, cortex calicem, cortexque columnas
23. Erigit, excelsos cortex sinuatur in arcus;
Cortice pyramides crescunt, fastigia cortex
25. Culminat, Angelici spirant in cortice vultus;
Cortice poma tument, nascuntur cortice flores,
27. Pallentes flores omnes; sed forma colorem
Distinguit, variatque, ac puro cortice pingit.
zou tais prodígios, o que é digno crer possam as
mãos divinas fazer?
14. Surge da cortiça uma Píxide, obra maior do
que o nome e só igual em engenho a tão grande
artista; brota da cortiça um artefato, que Vulcano
não se teria atrevido a extrair do ferro, nem Dédalo
do ouro, nem Praxíteles do mármore, nem Apeles
do seu pincel.
21. A cortiça estabelece a base, da cortiça se erguem as partes; a cortiça eleva o cálice; a cortiça
eleva as colunas; a cortiça se recurva em excelsos
arcos; da cortiça crescem pirâmides, a cortiça sobreleva a parte superior, em cortiça respiram os
vultos angélicos.
24. De cortiça tumescem frutos, de cortiça nascem
flores, todas de cor pálida, mas a forma, em pura
cortiça, lhes distingue, varia e pinta a cor.
Cumpre salientar que a edição crítica está em andamento. Exponho aqui apenas aspectos do que apresentei
no XI Simpósio Nacional de Estudos Clássicos.
Para mostrar a maestria do “retórico” Vieira, aponto infra algumas figurae elocutionis da repetitio: observe-se como se distribuem por todo o texto, desde a epímone de CORTEX (destacada em maiúsculas). Abundam
a anáfora e a epanalepse, o poliptoto e a figura etimológica, epíforas, polissíndetos, a palilogia ou ritornelo,
anadiploses, diáforas, homeoteleutos, aliterações e toda uma série de recursos à mão do artista barroco, a incluílo entre os melhores cultistas. De fato, mesmo aliadas ao labirinto conceptista em que os conceitos se cruzam e
entrecruzam, sempre a gerarem novas seqüências, estas figuras não tolhem ao estilo de Vieira a clareza, a graça
e a arte persuasória que o tornam exemplar em tudo o que escreve. Enaltecem-no poeta latino de primeira
grandeza.
1. Quo me Musa rapit, longumque relictus Apollo?
2. Exstinctos iterum, juvenes quos lusimus, ignes,
3. Frigentemque aetate jubet recalescere flammam?
4. CORTICIS est, quae forma senem pulcherrima vatem
5. Concipere Aonios effeta mente furores,
6. Suspensamque lyram, fractumque resumere plectrum
7. Cogit, et oblitos reminisci carmine fontes.
8. CORTICIS est, non ficta cano: vos lumina testes,
9. Vosque manus, tentastis enim, nec lusit imago.
10. CORTICIS est: o quanta sacer miracula CORTEX
11. Et tegit, et prodit, certantque patentia tectis!
12. Mysterii jam clara fides: si talia cerno
13. Mortalem fecisse artem, quid credere dignum est
14. Divinas potuisse manus? De CORTICE Pyxis,
15. Nomine maius opus, solique aequabilis ipsi
16. Ingenio Artifici, de CORTICE fabrica surgit,
17. Quam non Vulcanus ferro, non Daedalus auro,
18. Marmore Praxiteles, nec pluma auderet Apelles.
19. Fundamenta locat CORTEX, de CORTICE membra
20. Adsurgunt, CORTEX calicem, CORTEXque columnas
21. Erigit, excelsos CORTEX sinuatur in arcus;
22. CORTICE pyramides crescunt, fastigia CORTEX
23. Culminat, Angelici spirant in CORTICE vultus;
32
Figura etimológica
Concinnitas
Concinnitas
Poliptoto/ Ritornelo: Corticis est
Concinnitas
Aliteração
Concinnitas
Figura etimológica
Mesarquia
Epanalepse poliptótica
Epanalepse poliptótica / Polissíndeto
Isócolo / homeoteleuto
Mesodiplose / isócolo
Fig. etimológica
Começa longa epímone “CORTEX”
Poliptoto / isócolo / anáfora de colos
Homeoteleuto
Epanalepse poliptótica
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
24. CORTICE poma tument, nascuntur CORTICE flores,
25. Pallentes flores omnes; sed forma colorem
26. Distinguit, variatque, ac puro CORTICE pingit.
Mesoteleuto
Mesarquia
Evidentemente, muito pouco foi destacado quanto ao emprego de figurae elocutionis, quase nada quanto às
inversões bem ao gosto clássico, mas o suficiente para se aquilatar do quanto o artista da palavra quis imitar o
artista plástico que da cortiça, matéria inerte, extraiu tão preciosa obra. Não poderia a solenidade contar com
maior brilho.
Eis, portanto, um excelente subsídio aos humanistas e estudiosos de Latim.
Como conclusão, insisto que o Brasil não pode continuar desconhecendo a Literatura Brasileira de expressão latina,
até para preservar a sua própria cultura: somos herdeiros da civilização greco-romana, muito devemos às Humanidades,
nelas reconhecemo-nos como in speculo.
Voltar aos estudos clássicos e humanísticos, estudar o Português como parte que é da Latinidade e, portanto, ressuscitar o ensino de Latim talvez seja o viés que nos cabe ousar para fazer frente à crise da Educação Brasileira.
Referências Bibliográficas
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BORTOLANZA, João. Corpus da Poesia Latina de Antônio de Castro Lopes. Assis: UNESP, 1994, 4 vol. (Tese de Doutorado em Letras
– Latinidade Brasileira)..
BORTOLANZA, João. A Ideologia da Adjetivação Indígena em De Gestis Mendi de Saa. Atas do Congresso Internacional Anchieta 400
Anos. São Paulo, p.39-49, 1998.
BORTOLANZA, João. Marília de Dirceu / Amaryllidos Dircaei. Clássica: Revista Brasileira de Estudos Clássicos. Belo Horizonte,
SBEC/UFMG, v.9/10, p. 224-232, 2000.
BORTOLANZA, João. O Poema dutoglota “Ave, Aurora!” de Castro Lopes. Coimbra, Boletim De Estudos Clássicos, v. 31, p. 91-94,
1999.
BORTOLANZA, João. O Poeta novilatino carioca Antônio de Castro Lopes (1827-1901). Coimbra, HVMANITAS. Coimbra, v.51, p.
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LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,1949.
RODRIGUES, Pe. Francisco. História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal. Porto: Apostolado da Imprensa, 1944, Vol.
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SARNEEL, Pedro. Poesia Novilatina. Enio Aloisio Fonda e Fonda (org.). Assis-SP: FFCL, 1973.
SOMMERVOGEL, Karl. Bibliothèque de la Compagnie de Jésus. Bruxelles: Oscar Schepens., 1816.
VIEIRA, Pe. Antônio. Obras várias o Padre Antonio Vieira. Lisboa, J.M.C. Seabra & T.Q. Antunes, 1857, tomo II.
VIEIRA, Pe. Antônio. Obras Escolhidas. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1952, Vol. VII.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001
33
Se os discursos para inscreverem-se na memória discursiva
devem ter uma certa importância, o movimento popular para
ter importância histórica deve marcar sua posição social,
de forma que tanto os discursos, quanto o movimento popular devem ser investidos de algumas marcas ideológicas ou
de determinados discursos. Este é o caso do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Palavras-chave:
discurso, ideologia, paráfrase, movimento social.
If the discourses for to inscrible in the discoursive
memory nud to be important, the popular moviment for
to be important and show your historic and social
position, they nud to invest in the mark ideological
discourses or to build your own discourse; like is the
case of the Landless Rural Workers (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST).
Keywords:
discourse; ideology; paraphrase; social moviment.
34
ESTUDO DA IDEOLOGIA QUE
SUSTENTA O MST
*
Marlon Leal Rodrigues**
Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar os principais
discursos e ideologias – na perspectiva de Foucault e
Pêcheux (1986 e 1988) -, contidas nos editoriais dos
boletins e jornais (1981 até 1999) do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -, a fim de
levantar os discursos que dão sustentação às atividades discursivas e pragmáticas que vêm preocupando
os órgãos governamentais do Brasil e a comunidade
internacional.
Assim, o acontecimento MST coloca em evidência a disputa pela terra como um fato antigo na história da humanidade e em particular no Brasil, que data
desde o seu “achamento” pelos portugueses. Nos quinhentos anos de existência, vários movimentos populares levantaram-se na disputa pela terra como a dos
índios que defendiam seus territórios, passando pelo
Quilombo dos Palmares, Canudos e inúmeras revoltas populares que a História Oficial registra com outras versões.
O MST compreende mais um prolongamento
ou extensão dessa luta pela terra que é um fruto
de grandes concentrações seculares nas mãos de
*
poucos, o que gera, como conseqüência, uma desigualdade social, também secular, que cada vez
se agrava.
Discurso, sujeito
e ideologia
O discurso, enquanto pré-construído, é um conjunto de condições pré-existentes, segundo Foucault (1986:
124), “um conjunto de enunciados que se apóiam em
um mesmo sistema de formação.” Mas o discurso, para
Foucault (1996), é, também, um jogo estratégico de
ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, e também de luta, “o espaço em
que o saber e o poder se articulam, pois quem fala,
fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido
institucionalmente”. O discurso é ainda acontecimento. Por possuir uma realidade material como acontecimento, o discurso possui uma certa inquietação de sentido com duração relativamente curta ou instável.
O discurso é controlado, selecionado, organizado e
redistribuído a partir de determinados procedimentos
que colocam em jogo seus poderes e perigos. Em outras palavras, existe controle, seleção, organização e
Este artigo foi apresentado em forma de comunicação no encontro do GEL em Bauru-SP (1999).
**
Prof. da UNEMAT, Câmpus de Alto Araguaia-MT, e prof. convidado do curso de Especialização da UFMS, Câmpus de Três Lagoas-MS.
Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001
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Quando o sujeito
distribuição dos discursos porque é
“colhe” os discursos disponíveis no
enunciador
parafraseia,
necessário eliminar toda e qualquer
repertório social, (o eixo vertical),
ele
coloca
em
cena
a
ameaça à permanência do poder
pelo recurso de parafrasagem,
identidade do sentido a
instituído.
substituição, sinonímias etc.. Esse
partir
de
um
discursoO discurso, em última análise, é
processo chama-se memória
fonte
que
percorre
a
uma prática (prática regulamentadiscursiva, segundo Courtine
instância de todo sentido
da dando conta de um certo núme(1994). Trata-se, como nos alerta
semântico em uma
ro de enunciados), entendendo-se
Courtine, de um tipo de memória
situação-dada onde o
por “prática” a existência objetiva
que não se confunde com a memósentido do texto-fonte é
e material de certas regras às quais
ria psicológica, de um sujeito em
"sempre re-re-constituição".
o sujeito tem de obedecer quando
particular. O sujeito, ao se apropriparticipa do “discurso”. As normas
ar de um determinado discurso, prédessa prática são “regras” ou “regularidades”.
construído, faz ocorrer, na linearidade do discurso, no
O sujeito para Foucault (1986) é apenas uma fun- eixo horizontal, o fenômeno de ocultação do eixo verção fundadora do discurso, espaço de possibilidades tical.
de realização discursiva ou de posição que deve e pode
A paráfrase, de acordo com Fuchs (1982: 29), siocupar todo indivíduo para ser sujeito de determinado tua-se entre a “língua e o discurso”, excede “o campo
discurso. Já Pêcheux, mais comprometido com o ma- da lingüística não somente pelo nível do sentido onde
terialismo histórico, nega a evidência explícita do su- se pode estabelecer a relação semântica em jogo, mas
jeito, pois a evidência é apenas um efeito ideológico também pela tensão.
elementar. O sujeito se constitui pela ideologia que o
Quando o sujeito enunciador parafraseia, ele colointerpela na medida em que se inscreve em uma for- ca em cena a identidade do sentido a partir de um dismação discursiva dada, assim, o sujeito se “liberta” de curso-fonte que percorre a instância de todo sentido
uma ideologia somente ao passo que é interpelado por semântico em uma situação-dada onde o sentido do
outra.
texto-fonte é “sempre re-re- constituição" (idem, p. 30).
A Ideologia, segundo Pêcheux (1988), não consti- Além disso, “o único conhecimento da situação
tui apenas os sujeitos, mas também os sentidos. Os discursiva permite decidir se se trata ou não de uma
sentidos (assim como os sujeitos) são constituídos his- identificação parafrástica” (p. 32), e por conseguinte,
toricamente, o que equivale a dizer que os sentidos o sujeito parafraseador é produtor decodificador do
não existem de per si na língua, não sendo, portanto, texto-fonte.
literais. Os sentidos advêm das formações discursivas
(sempre tomadas como um lugar mais ou menos proDiscurso Institucional
visório) que os constituem, através de relações de
metáfora ou transferência de sentidos, as quais se reou Fundador
alizam em efeitos de paráfrases, sinonímia, substituiO discurso (1), Institucional ou Fundador, entre ouções etc..
tros que compõem o repertório do MST, foi o primeiro a
Eagleton (1997) faz uma síntese histórica do con- se inscrever ou a “ser invocado”, chamado à cena no
ceito de ideologia e a concebe como uma intervenção “nascedouro” do movimento. Sua configuração, ao conpolítica no que tem de idéias e atitudes reflexivas vol- trário do que tem sido alardeado pelos meios de comutadas para a prática social do sujeito relacionado com nicação e grande mídia, não se afigura um discurso
as intrincadas redes tecidas com e pelo poder. É no “marginal” ou revolucionário naquele instante (1981),
seio deste poder que a ideologia se torna um conjunto como se verá a seguir nos seguintes enunciados:
de valores e crenças, não em si, mas voltadas para a (1) Como agricultor, achamos que temos direito a ter
ação, para a prática social.
um pedacinho de terra (1981); (2) Preço da paz, é jusO processo pelo qual a formação discursiva cons- tiça e terra para todos (1981); (3) Terra para quem
trói sua memória ou pré-construído, chama-se me- nela trabalha (1981); (4) Os trabalhadores querem terra
mória discursiva, lugar onde o sujeito “escolhe” e
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para produzir (1983); (5) Sem retomada de postura ou ato
O
discurso
do
MST,
forma agrária não há democracia
perlocucionário, mas sim um ato de
Fundador
ou
Institu(1986); (6) Lutando por um ideal;
fala locucionário, um discurso sem
cional, constitui-se em
por uma causa justa: viver como hoefeito, somente no nível da referêntrabalho
de
interdiscurmem (1982); (7) A seguir esclarecia.
sividade,
em
reivindicacemos as manobras do Incra que
O sentido e o significado das
responde aos colonos dizendo que
unidades “assegurada e acesso”,
ção que postula o direito
não há terra para eles no estado.
para o MST, distinto do discurso do
inviolável já assegurado
Mas os agricultores sabem que elas
Estado, no trabalho de interdisde ter "acesso à terra"
existem e que o Estatuto da terra
cursividade por pura repetição,
para nela trabalhar...
fala em desapropriação do latifúnreconfiguram com a significação de
dio (1981); (8) Só com muita luta,
direito, que implica garantias
com muita garra conquistaremos e asseguraremos o invioláveis, enquanto no discurso do Estado tais unidanosso direito de ter um pedaço de terra para produzir e des não implicam garantias, direito inviolável. A
garantir o sustento de nossa família (1987); (9) Para reconfiguração é verificada, como atividade de
nós, trabalhadores rurais, a constituinte já está total- interdiscursividade parafrástica (Fuchs, 1982), nos
mente desmoralizada e não merece mais a confiança enunciados: (1) “temos o direito”, (2) “justiça e terra”,
de ninguém. Lá só prevalece os interesses dos grupos (3) “os mesmos direitos”, (5) “terra para produzir”, (6)
econômicos e o carreirismo pessoal, tirando qualquer “democracia”, (6) “viver como homem, (8) “nosso diesperança de nós trabalhadores termos nossas pro- reito” e (10) “justa e legítima”. A passagem de “assepostas garantidas (1987); (10) Reconhecemos justa e gurada e acesso” para o sentido de “direito” é relelegítima a luta dos sem terra. (1982); (10-A) é assegu- vante para este discurso do MST, uma vez que consisrada a todos a oportunidade de acesso à propriedade tirá em estratégia para burlar os controles de exclusão
da terra, condicionada pela sua função social (1984). do discurso e sua ação.
O enunciado (6), “Sem reforma agrária não há deO MST imprimiu nesse discurso a voz da reivindicação de um direito prescrito pelo próprio Estado du- mocracia”, articula certos efeitos (Eagleton, 1997) no
interior do discurso. Esses efeitos redimensionam o
rante a ditadura militar (1964 - 1980), conforme a Lei
sobre o Estatuto da Terra, que estabelece em seu Ar- sentido de “democracia”, e determinam também a prátigo 2º: “é assegurada a todos a oportunidade de aces- tica efetiva do movimento, ao fixar-se um novo valor,
so à propriedade da terra, condicionada pela sua fun- reforma agrária e suas implicações, assim provocando
uma alteração de sentido: a democracia só será conção social”. Assim, esse discurso do Estado constitui
a origem de uma relação de interdiscurso (Pêcheux, cebida como legítima se em seu interior estiver asse1988) sobre o qual o MST fundará o argumento que gurada, na prática, enquanto direito, a reforma agrária
do MST (para diferenciar de outros sentidos de reforlegitimará sua pragmaticidade e seus discursos.
O enunciado (10-A) do MST: “é assegurada a to- ma agrária), uma vez que a questão do direito é
dos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, inviolável para a democracia, de acordo com o discurcondicionada pela sua função social” estabelece uma so do próprio Estado.
O discurso do MST, Fundador ou Institucional,
relação de interdiscursividade por pura repetição com
constitui-se
em trabalho de interdiscursividade, em
o discurso do Estado, acabando por tornar-se o “fio do
discurso” do MST, o seu intradiscurso, com o qual cons- reivindicação que postula o direito inviolável já assetruirá a sua rede discursiva. Essa relação resultará tam- gurado de ter “acesso à terra” para nela trabalhar e
bém em uma condição necessária de reconfiguração as demais prerrogativas advindas deste “direito”, conde sentido e significado, que serão outros, contrapon- siderando que “ter acesso” não equivale a “ter direido o sentido e significado imprimidos pela ditadura mi- to”, e que o MST redimensiona o “ter acesso” para
litar, sentido de pró-forma. Assim, o Estatuto da Terra, “direito”. Fica ainda configurado que ter direito não
enquanto discurso do Estado, não implicava uma nova significa poder usufruir, o que implica e justifica a
ação do MST, a partir do próprio discurso do Estado,
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de onde tece seu discurso para
sustentação de uma ação pragmática.
Discurso de
Reforma Agrária
O Discurso de Reforma Agrária, (2), é o segundo a ser evidenciado no “nascedouro” do MST; é a
razão pela qual o movimento existe
e reafirma sua posição social. Enquanto o discurso Institucional ou Fundador afigura-se
em um interdiscurso do que prescreve a lei que rege
sobre a “terra, sua função social e o direito”, o discurso de Reforma Agrária possibilita a materialização e
prática efetiva do discurso Institucional ou Fundador.
Assim, seguem os enunciados do Discurso de reforma
Agrária:
(11) A reforma agrária solucionará os problemas do
campo brasileiro (1981); (12) Sem reforma agrária não
há democracia (1994); (13) Reforma agrária não é
crime. A Constituição Federal em seu Capítulo III determina: “art. 184. Compete à União desapropriar por
interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social (1996).
Se, por um lado, o discurso Institucional ou Fundador mantém relações interdiscursivas, em seus vários
aspectos, com o discurso do Estado, cujo foco recai
sobre o referente “direito” e suas implicações, por outro, o discurso de Reforma Agrária focaliza o referente: divisão de terra, função social da terra, distribuição
de terra para quem nela trabalha, cujo pressuposto é o
discurso Institucional ou Fundador, pois este faculta ao
discurso de Reforma Agrária inscrever-se na ordem
do discurso.
No trabalho de interdiscursividade, com o
Institucional ou Fundador, por pura repetição, a reivindicação de reforma agrária vai estender-se a outros
sentidos como: (12) “sem reforma agrária não há democracia”, cujo sentido não é mais o de incorporar a
reforma agrária no bojo da concepção de democracia
ou evitar sua exclusão, mas trata-se de uma questão
de cidadania, que implica divisão de terra, a partir de
sua função social, como em (13) “reforma agrária não
é crime”. A constituição Federal em seu Capítulo III,
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Art. 184, determina: “compete à
União desapropriar por interesse
social, para fins de reforma agrária”. Assim, de certa forma, podese afirmar que se trata do mesmo
discurso, porém com sentidos distintos, desta forma constituindo-se
também em um outro discurso.
Assim, (11), “A reforma agrária solucionará os problemas do
campo brasileiro”, é enunciado de
base do discurso do MST na medida em que faz o discurso progredir, religando sentidos: a questão da terra no Brasil é histórica, os problemas são graves, existe conflito, enquanto houver
“problema” não haverá paz nem justiça no campo.
Na mesma proporção, em que se constitui pelo avesso dos sentidos negativos que circulam no Senso Comum, enquanto discurso, segundo o qual “o problema
do campo brasileiro não é o latifúndio”, “para quem
quer trabalhar existe terra”, “o Brasil sempre foi assim”, “pobre - agricultor - não tem vez mesmo”, “esse
negócio de reforma agrária é desculpa de agitador”
etc..
O trabalho de religar e anular sentidos é uma atividade tensa de linguagem, em que existe uma relação interdiscursiva com o discurso do Senso Comum.
Esse relação tem como pressuposto: o problema do
campo é um fato concreto; existe terra para efetivar
a reforma agrária; existe trabalhador rural querendo
terra para trabalhar; é possível resolver o problema
do campo brasileiro; é possível transformar a realidade histórica do campo brasileiro; a reforma agrária
é uma problema social etc. Ao religar alguns sentidos e anular outros, favorece-se a progressão do discurso, na medida em que se envolve a sociedade no
problema da reforma agrária, a partir do próprio discurso do Estado.
O trabalho de religar
e anular sentidos é
uma atividade tensa de
linguagem, em que
existe uma relação
interdiscursiva
com o discurso do
Senso Comum.
Discurso de Reforma Agrária
e Movimentos Populares
O Discurso de Reforma Agrária e Movimentos
Populares, (3), em certa instância, é uma paráfrase do
anterior, somente na proporção em que este concebe
e preserva certos sentidos de reforma agrária (existe
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terra para reforma agrária, existe
virada de século quase que excluO MST, além de
trabalhador sem terra, o agricultor
sivamente lideradas pelo MST etc..
incorporar nesse
tem direito à terra, existe a necesDo discurso partidário, confordiscurso a posição de
sidade de uma mudança na concepme Pedrosa (1980: 60), Partido dos
vanguarda, também
ção de propriedade da terra e exisTrabalhadores: “ao anunciar que
acaba
por
estabelecer
te o movimento). No entanto, ao
seu objetivo é organizar politicauma conexão primordial
compartilhar do mesmo campo
mente os trabalhadores urbanos e
entre a luta pela reforma
discursivo, incorpora certos elemenos trabalhadores rurais, o PT se
tos pré-construídos (no eixo vertideclara aberto à participação de
agrária e o interesse dos
cal, memória discursiva) dos movitodas as camadas assalariadas do
trabalhadores em geral.
mentos populares o que, em certo
país”, o MST incorpora a posição
sentido, contribui para o
de vanguarda: “o objetivo é orgaredirecionamento do discurso: ser o mesmo discurso nizar politicamente os trabalhadores”, o que outrora
de reforma agrária, mas também sendo outro, de Re- fora “objetivo” do Partido dos Trabalhadores e hoje
forma Agrária e Movimentos Populares.
não o é mais. Tal fato foi possível, a posição de vanAssim, incorpora, dos movimentos populares al- guarda do MST, em virtude de o Partido dos Trabaguns pré-construídos: “o povo unido jamais será ven- lhadores deixar de ocupar um espaço político de lidecido”; de forma que algumas marcas como “união do rança dos movimentos populares, conforme afirma
povo” cujo sentido refere-se aos marginalizados e ex- Cardoso (1999a: 382): “entre o MST e o PT, o priplorados, do operariado, conforme Valentim (1990: meiro está ocupando o lugar do ‘velho’ movimento
45): “defender a CSN [Companhia Siderúrgica naci- sindical urbano de onde o saiu o PT”. Assim, o MST,
onal - Volta Redonda-RJ] é defender a soberania além de incorporar nesse discurso a posição de vannacional”, a defesa das questões ligadas ao interesse guarda, também acaba por estabelecer uma conexão
do trabalhador, em oposição à elite e ao capital inter- primordial entre a luta pela reforma agrária e o intenacional, diz respeito à “defesa da soberania nacio- resse dos trabalhadores em geral. Isso é possível consnal”.
tatar de forma clara nos discursos e pronunciamento
Segundo Giannotti e Neto (1991: 10), “essa greve do PT e da CUT no uso da unidade “apoiar” que é
mostrou para milhões de operários, funcionários públi- bem diferente de “assumir”. Em “apoiar” não há comcos, trabalhadores rurais ou de serviços, a urgência de prometimento ideológico, pode-se conceber que é apeter uma central que unisse suas lutas”. Se, por um lado, nas circunstancial, enquanto que “assumir” implica
a mobilização em torno da “greve” é, para o operaria- fazer parte de maneira integrante dos movimentos
do, demonstração de força e organização que aponta populares e dos trabalhadores.
para a união das “lutas”, por outro lado, para o MST, a
Considerando o discurso da ex-tendência interna
mobilização, enquanto fator de força, organização que do Partido dos Trabalhadores (Causa Operária, 1988:
aponta para a união de “lutas”, está na capacidade de 31), “a ação direta quer dizer que as massas tomam
realização de ocupações massivas com o apoio de ou- em suas mãos seus problemas e os do país e os resoltros movimentos populares.
vem por sua própria conta, utilizando suas organizaDo discurso religioso (Follmann, 1985: 85): “em ções, sua força e seus recursos próprios”, constata-se
tudo a gente deve partir sempre de nosso interesse nesse discurso, “ação direta”, “tomam em suas mãos
de povo pobre” e “participar de todas as ferramentas seus problemas e os do país” e “sua força e seus reque vão nos ajudar, associações, partidos e outras que cursos próprios” dizem respeito à posição de vanguarsejam nossas”, assim é possível inferir que o “povo da do MST, pois amplia de forma considerável seu
pobre” e “todas as ferramentas” dizem respeito à campo discursivo de atuação, uma vez que o problema
unificação das mobilizações populares daqueles que da reforma agrária está vinculado às questões estrutusão os menos favorecidos socialmente ou deixados à rais mais complexas do que apenas divisão de terra e
margem da sociedade enquanto as ferramentas são isto também diz respeito ao conjunto dos trabalhadoas greves, ocupações, protestos, mobilizações nesta res, segundo uma mesma ótica e ação política, uma
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vez que as lutas isoladas não resolRússia, México ou China etc., não
A bandeira de reforma
vem nem os problemas dos trabafora dada pela deserção da burguelhadores rurais sem terra nem os
sia ou dos governos, e sim como
agrária deve ser "uma
problemas dos movimentos populaparte de um processo revolucionáluta de todos",
res.
rio em que os movimentos populaconsiderando que todos
Analisando o discurso do Partires, operariado e agricultores semos trabalhadores estão
do da Causa Operária (1999): “só a
terra e a população em geral, pesob
o
mesmo
regime
de
mobilização popular pode acabar
garam em armas como condição
governo e, portanto, de
com FHC, o arrocho, o desempreprimordial para a mudança radical
go e a repressão aos sem-terra”,
exploração social.
de sistema político. Ainda é possípode-se afirmar que a questão “só
vel evidenciar que sem luta armaa mobilização popular” tem sido
da não se faz reforma agrária;
para o MST condição sine qua non para as ações do questão que foi condição sine qua non para as transmovimento e sua posição de liderança.
formações abruptas quando estavam em pauta a muA partir das considerações acima, verifica-se que dança de sistema político, capitalismo e a questão da
o MST incorpora alguns elementos com os quais terra.
reconfigura o seu discurso, de forma que Reforma
Em virtude disso, não é difícil evidenciar a relaAgrária distancia-se e passa a constituir um discurso ção interdiscursiva por redirecionamento, também,
distinto, o de Reforma Agrária e Movimentos Popula- que o MST mantém com os movimentos revoluciores. Com o distanciamento, ambos passam a ter re- nários quando afirma que “reforma agrária, uma luta
presentações diferentes, muito embora o discurso de de todos”. A relação discursiva e pragmática do
Reforma Agrária e Movimentos Populares tenha como MST com os demais movimentos populares faz eco
pressuposto o anterior. Assim, pode-se considerar que com análise feita pelo historiador Hobsbawm (1995:
discurso de Reforma Agrária diz respeito a existência 347): “entre 1945 e 1950, quase metade da raça
do MST, enquanto Reforma Agrária e Movimentos humana se viu vivendo em países que passavam por
Populares representa a configuração de que os agri- algum tipo de reforma agrária - comunista na Eurocultores sem terra são uma classe distinta das demais pa Oriental e, após 1949, na China”. Ainda, segune por isso participam do universo político dos demais do Hobsbawm, a revolução egípcia de 1952, seguimovimentos populares.
da pelo Iraque, Síria e Argélia; a revolução boliviaO enunciado (14), “reforma agrária: uma luta de na de 1952, a mexicana de 1910 e cubana, que totodos”, estabelece relações interdiscursivas por alian- das há muito defenderiam “o agrarismo”, ou seja,
ça com os movimentos revolucionários que sugere que a reforma agrária que somente o MST defende nesta
sem luta armada não se faz reforma agrária. Por isso, virada de século.
a bandeira de reforma agrária deve ser “uma luta de
No dizer do autor, “para os modernizadores, a detodos”, considerando que todos os trabalhadores estão fesa da reforma agrária era política (conquistar apoio
sob o mesmo regime de governo e, portanto, de explo- camponês para regimes revolucionários ou para os que
ração social.
queriam adiantar-se à revolução, ou algo parecido),
Desse forma, na Revolução Russa, conforme Lenin ideológica (‘devolver a terra a quem nela trabalha’)...
( Apud Gomes,1999: 96): “a ‘chave’ do combate na aos sem-terra ou aos pobres de terra”.
revolução russa estava na luta contra os latifundiáriAssim, nesse discurso, Reforma Agrária e Movimenos”; na revolução Cubana, de acordo com Sader (1985: tos Populares, cujo enunciado de base (14), “reforma
33), “a guerra de guerrilhas se apoiaria mais imediata- agrária, uma luta de todos”, podem ser considerados um
mente nos camponeses, base social potencialmente mais trabalho amplo de paráfrase, intertexto, interdiscursividade
mobilizável para uma luta radical contra o sistema de no âmbito do próprio MST e do operariado, com outros
exploração”.
discursos e textos na arena do poder, lugar de onde o
Pode-se afirmar que a reforma agrária “deseja- MST re-elaborou sua posição enunciativa.
da”, bandeira dos que na terra trabalham, em Cuba,
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Considerações
Assim, nesse discurso,
Reforma Agrária e
Movimentos Populares
podem ser considerados
um trabalho amplo de
paráfrase, intertexto,
interdiscursividade no
âmbito do próprio MST
e do operariado...
Os discursos, uma vez recuperados da memória discursiva, no eixo
vertical, e inscritos de forma assumida pelo sujeito do MST no eixo
horizontal, passam a compor em sua
materialidade discursiva um efeito
de sentido no cenário das instabilidades na ordem discurso, assim
implicando em “rituais ideológicos”
(Pêcheux, 1990), nos quais todo
“discurso marca a possibilidade de
uma desestruturação-restruturação (...) todo discurso
é índice, potencial de uma agitação nas filiações sóciohistóricas e identificação, na medida em que ele constitui, ao mesmo tempo, um efeito dessas filiações em
trabalho (...) de deslocamento no seu espaço “
(Pêcheux, 1990: 56).
Na virulência da inscrição discursiva do MST na ordem do discurso, quando o agente do discursivo posicionase, impõe o seu discurso e o discurso sendo sempre o
mesmo, já é outro, parafraseado,
acrescido de algumas unidades na
medida em que perde outras. Assim
divide alguns espaços na medida em
que domina e ao mesmo tempo perde outros. Isso pelo fato de sua existência ser tensa, conflituosa, de “amor
e ódio”, na arena onde sujeitos e discursos se camuflam, disfarçam, reconhecem, toleram, assumem, dispersam, identificam, reencontram, transformam etc..
Essa análise desenvolveu algumas considerações
relevantes a respeito dos discursos, seus variados tipos,
suas paráfrases, o perfil do MST, sua origem histórica,
alguns de seus anseios, razões e motivos de sua constituição político-ideológica em uma “época” de grandes
avanços científicos e tecnológicos, que sugere, no senso comum, que a humanidade está cada vez mais desenvolvida e esse desenvolvimento é para todos, premissa neoliberal que o discurso do MST constrange.
Referências Bibliográficas
CARDOSO, Sílvia H. B. Ideologia: um conceito obsoleto? In Gel – Grupo de Estudos Lingüísticos. V. 28, pp. 379-84, 1999.
––––––––. Discurso, ideologia e representação. Três Lagoas, UFMS, 1998. Mimeo.
––––––––. A realidade e os sentidos: de Jeca aos sem-terra. In Abralin, Fortaleza, 2001d.
EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.
––––––––. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio . Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.
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Mostra-se o discurso de Riobaldo, personagem-narrador de
“Grande sertão: veredas”, como um modo talking de narrar,
semelhante ao de Marcel, em “À la recherche du temps
perdu” de Marcel Proust. Como o dele, o discurso é mostrado como algo que se situa entre o showing e o telling,
transgredindo os limites entre o mostrar e o narrar.
Palavras-chave:
oralidade, discurso, conversação
Riobaldo is the main character in “Grande sertão: veredas” and his speech is a “talking” way of speaking,
in the same way as Marcel’s, in “À la recherche du temps
perdu” is. In both cases, the speech is shown as the
something situated between the showing and the teling,
going beyond the limits displaying and narrating.
Keywords:
orality, discourse, talking
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GRANDE SERTÃO:
UM MODO "TALKING" DE NARRAR
Ana Maria Souza Lima Fargoni*
A possibilidade de simbiose da fala e da escrita comprova que essas modalidades se separam por limites
muito tênues, de forma que é mais adequado dispô-las
em um continuum. O discurso de Riobaldo, personagem narrador de Grande sertão: veredas é, exatamente, uma amostra que comprova tal fato; tem, portanto, uma natureza ambivalente, pois participa, de algum modo, das duas modalidades. Atribuir-lhe caráter
anfíbio significa reconhecer-lhe a exuberância. O discurso do ex-jagunço, lembra, assim, o discurso do personagem de Marcel Proust, analisado por Genette
(1976), a propósito de estudar a narrativa em À la
recherche du temps perdu. Ali se retomam os dois
modos diferentes de narrar conceituados por Platão, na
República, com as seguintes explicitações: no primeiro,
o poeta1 fala em seu próprio nome, sem procurar fazer
crer que é um outro, que não ele quem fala. É a narrativa pura, distante e mediata, que Platão chama de
diegese. No segundo, o poeta se esforça por dar a ilusão de que não é ele quem fala, mas uma personagem,
se se tratar de falas pronunciadas. É a narrativa próxima e imediata que procura “imitar” a realidade tal como
o fato se passou e, por isso, é “imitação” ou mimese.
Para Genette, na verdade, a oposição apontada resu-
me-se à narrativa de falas, pois Platão omite qualquer
referência a narrativas de acontecimentos ou ações
mudas e, vinculando a narrativa apenas aos discursos
direto e indireto, restringe a oposição entre mimese e
diegese. Já Aristóteles, segundo Genette (1976:161), via
tal oposição de forma mais neutralizada, considerando a
narrativa pura e a mimética como duas variedades de
mimese. Continuando suas reflexões sobre a narrativa,
Genette ainda se reporta a Henry James e seus discípulos que, na Inglaterra e nos Estados Unidos, em fins do
século XIX e começo do XX, respectivamente, retomaram Aristóteles, a partir de Platão, para teorizar o romance. Esses estudiosos neo-aristotélicos propõem, para
mimese e diegese, os termos ingleses, showing (mostrar) e telling (contar).
Para Genette (1976:161), a narrativa romanesca tradicional antes de À la recherche du temps perdu era
constituída quase sempre pela alternância entre “cena”
e “sumário”. Segundo Reis e Lopes (1988:233), cena
é compreendida no domínio da velocidade imprimida
ao relato e constitui a tentativa mais aproximada de
imitação no discurso, da duração da história. Traduzse nas reproduções das falas das personagens em discurso direto, na seqüência em que ocorreram, fato de
*
Professora de Língua Portuguesa e Lingüística do Departamento de Letras do Câmpus de Aquidauana da UFMS. Doutora em Letras pela
Unesp Araraquara.
1
Tem o sentido de criador do texto, ou seja, aquele que opta por uma ou outra maneira de narrar.
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que resulta uma narrativa isocrônica
consistir, quase exclusivamente, de
... o narrador
e dramatizada, que se caracteriza pelo
cenas (singulativas ou iterativas) que
de "Grande sertão"
apagamento parcial ou total do
compõem uma narrativa, ao mesmo
é
singular
pois
com
narrador. Já, por sumário, entendem
tempo rica de informação e com
os autores, (1988:293) que designa
sua fala, rompe
forte presença do narrador, que é
toda forma de resumo da história, de
fonte mantenedora e organizadora
o convencional,
modo que o tempo no discurso fica
da narrativa, seja analisando, seja core-criando
reduzido a um espaço bem menor em
mentando o fato narrado. Assim, a
literariamente a
relação ao volume das informações
À la Recherche du temps perdu,
conversação,
no
modo
ali trazidas. A figura do narrador é
segundo Genette (1976:165), colocarelevada, sugerindo-lhe um papel de
"talking" de contar.
se no extremo do showing e do
censor que hierarquiza as informatelling “e mesmo um pouco mais
ções, atribuindo-lhes diferentes valolonge, nesse discurso tão liberto, por
res. Implica uma certa desvalorização da matéria nar- vezes, de qualquer preocupação de uma história a contar,
rada, que pode vincular-se tanto à economia da história, que talvez conviesse nomeá-lo na mesma língua, talking.”
como aos vetores semânticos que a regem.
Não se pode dizer que a história se conta sozinha, como
A alternância entre cena e sumário de que fala Genette propõe Booth (1961), apud Genette (1976:162) e, muito
acaba por opor conteúdos “dramáticos” e “não-dramáti- menos que o narrador se apague perante ela. “Não é
cos” que coincidem, respectivamente, com os tempos for- dela (história ) que se trata, mas da sua imagem, do seu
tes da ação – momentos mais intensos – e tempos fra- “rastro” na memória.”
cos, resumidos em traços longos – momentos menos inO mesmo se pode dizer de Grande sertão: veretensos. A inovação de Proust consiste, conforme Genette, das, em que Riobaldo, personagem principal, na longa
em constituir-se quase sempre de cena, do princípio ao conversação de que já se falou, “mostra” o seu percurfim – no sentido temporal – com a abstração do sentido so de jagunço, conferindo ao relato as minúcias da
iterativo de algumas. A ausência da alternância cena / mimese (showing) e, ao mesmo tempo, presente de
sumário faz de a À la Recherche du temps perdu quase forma intensa e contínua, enquanto narrador (telling).
que uma única e grande cena. O showing, de que se Nesse sentido, o narrador de Grande sertão é singular,
falou há pouco, é a narrativa pormenorizada que se ca- pois com sua fala, rompe o convencional, re-criando liracteriza pelo predomínio da cena. Trata-se de uma nar- terariamente a conversação, no modo talking de conrativa mimética e, portanto, bastante informativa. Como tar. Seu interlocutor, forasteiro ocasional, é o ouvinte
a narrativa mimética é a que contém o máximo de infor- interessado na sua vida de jagunço; ele, enquanto locumação e um mínimo de informador, a presença da entida- tor, a narra, “rastreando a memória” para decifrá-la. É
de narrativa nela se esfumaça, dando a impressão de que isso que o tipifica e faz de Grande sertão uma “grande
a história se conta a si mesma. Já, no telling, ao contrá- conversação” em processo.
rio, informação e informador apresentam-se de modo inEssa intersecção de extremidades que se cruzam,
versamente proporcional. Esses diferentes modos de con- vincula-se, muito provavelmente, àquilo a que
tar, conforme explica Genette (1976:165-6), ajuntam o Maingueneau (1993:113) denominou de perilíngua por
binômio informação / narrador que projeta dois fatores tangenciar as duas modalidades: no limite inferior, “a
inversamente proporcionais, com o seguinte desdobra- hipolíngua que, ambivalente, aproxima corpo e emomento: de um lado, a questão temporal, vinculada à velo- ção, inocência e caos; no superior, a hiperlíngua que,
cidade, pois quanto mais informação a narrativa apresen- ao contrário, espelha a perfeição luminosa de uma rete, mais tempo demora para processar-se e, portanto, é presentação ideal do pensamento.” O escritor, segunmais lenta; de outro, a questão da voz, vinculada ao do ele, não pode se fixar em nenhum dos extremos,
narrador, cujo grau de presença afeta a narrativa pelo mas deve indiciar seu texto com o fascínio de ambas.
fato de informar mais quanto menos presente estiver. Tais Este pode ser o “segredo” do fascinante talking de
conceitos, apresentados como regra geral, encontram, no Riobaldo que faz de Grande sertão, não um corpus
entanto, uma exceção, um desmentido, pois a obra de escrito, mas algo como que dotado de voz. Da
Proust é inteiramente rebelde à “norma” mimética por hipolíngua, traz o caos das desarticulações, hesitações,
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repetições, etc.; da hiperlíngua, a beleza, a originalidade, a perfeição. Dessa forma, assim, anfíbia, aproxima
as duas modalidades de linguagem, num discurso
instigante, envolvente, inovador...
Riobaldo é, portanto, um narrador-talking e, como o
personagem de Proust, situa-se também no limite do
showing e do telling. Assim, realiza o modo talking de
contar, explicitado no seu longo discurso que, prolixo, transgride os limites entre mostrar e narrar – com alto grau de
presença do narrador e o máximo de informação – e,
transcrito, subverte os limites entre o escrever e o falar –
com uma escrita que produz um efeito de sentido de fala.
Referências Bibliográficas
FARGONI, A. M. S. L. A magia da fala magicamente escrita: veredas do Grande sertão. Tese de doutorado. Unesp, 2000.
GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. (Figures-III) Lisboa: Vega, 1972.
MAINGUENEAU, D. Le context de l’ouvre littéraire: énonciation, écrivain, societé. Paris: Dunod, 1993.
PROUST, M. No caminho de Swann. Trad. de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
REIS, C. e LOPES, A. C. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. Unicamp, 1997.
ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. 18ª. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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Resenha
CLARICE LISPECTOR
NAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA,
de Edgar Cézar Nolasco
Márcio Antonio de Souza Maciel*
*
Professor Especialista. Departamento de Comunicação.
Câmpus de Dourados, UFMS.
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Clarice Lispector (1920-1977) tem despertado interesse/curiosidade desde a sua estréia no mundo
ficcional em 1943, quando da primeira publicação de
Perto do Coração Selvagem, na ocasião ainda uma
jovem aspirante à escritora. Apesar de estreante, a
autora fora apontada pelo crítico Antonio Candido como
um dos grandes talentos daquele período. “A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade
da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais
originais da nossa literatura, porque esta primeira
experiência (grifo meu) já é uma nobre realização”
(CANDIDO,1970:131). Sábio estudioso. Talvez residam já, nesse momento, nas oportunas e contemporâneas (uma vez que as escreveu no mesmo ano de publicação do romance, ou seja, 1943; não se sabendo
mais de Clarice além daquilo que ela apenas rascunhava nas letras brasileiras) palavras de Candido duas
verdades claricianas: uma de cunho amplo e, hoje em
dia, inquestionável; outra, de campo mais específico,
porém não menos verdadeira que, estudada e aceita
pelos críticos, somente mais tarde pudemos comprovar. A primeira diz respeito à genialidade e permanênPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 46-48, 1999/2001
cia da escritora; a segunda, ao seu
por si mesmos, servindo-lhe para
Não poderíamos rejeitar
processo de criação que hora estuquaisquer propósitos, uma vez que
ainda, e por último, a
damos.
o processo clariciano dá-se no níidéia
de
duplicidade,
de
Desde seu ingresso no universo
vel da experiência, como muito bem
simultaneidade, de mão
literário de então, adjetivos como
nos observou Antonio Candido, já
dupla,
de
que
Clarice
“hermética”, “escritora subjetiva”,
citado anteriormente. Parece tudo
“filosófica”, “difícil” e outros que
um texto só, mas não o é. A escrinão escreve os seus
circulam pelo mesmo campo semântora se parafraseia, se plagia, taltextos, mas sim que
tico do impenetrável ser-lhe-iam
vez até faça sua perfeita cópia
esses se escrevem por
conferidos à sua revelia, ao que
quanto ao conteúdo, porém a forsi
mesmos...
Clarice, amiúde, rebatia argumenma é nova, é outra porque Clarice
tando que “na verdade eu escrevo
já é outra e nós, igualmente, somos
muito simples”. Adjetivos que duo Outro - outros.
plamente pecavam, ora pelo reducionismo óbvio que
Assim como a escritora em relevo, também eu, à
parecia não dar conta da grandeza artística da escrito- minha maneira, me copio, me plagio, me parafraseio,
ra, ora porque a limitavam; antes, tentavam enquadrá- guardadas as devidas proporções. Algo dessas apaila em alguma espécie de gênero ou cárcere inventivo. xonadas palavras se refere a um estudo, em nível de
Entretanto, uma vez mais, eram refutados por ela mes- graduação, intitulado de “O germe literário em Clarice
ma: “gêneros não me interessam mais. Interessa-me o Lispector ou o ante-texto” no qual me propunha a comistério”(apud.GOTLIB, 1995:79) .
tejar os livros Felicidade Clandestina(1971) e Onde
Além de romancista (A maçã no escuro, 1961), Estivestes de Noite(1974) com o livro de crônicas, já
contista (Laços de família, 1960), tradutora (O Re- mencionado, A Descoberta do Mundo (1984) quanto
trato de Dorian Gray, de Oscar Wilde) e jornalista ao seu processo de (re) e criação literária, quando ain(colaborou durante alguns para várias publicações, da contava um pretenso-quartanista-suposto-possívelcomo a revista Manchete); Clarice manteve, como estudioso-clariciano. Passados alguns anos, já não
cronista, por sete anos, uma página semanal no Jornal quartanista, mas ainda –e sempre e mais e tanto- apaido Brasil, no Rio de Janeiro. O resultado de parte des- xonadamente clariciano, encontro-me com o e/ou ensas crônicas foi compilado em um livro-póstumo, contro-me em o admirável Clarice Lispector: nas
intitulado A Descoberta do Mundo (1984). entrelinhas da escritura. Ed. Annablume (2001), de
Concomitantemente a essa nova função de cronista Edgar Cézar Nolasco. Em o presente trabalho acerca
que vez por outra rejeitava ou mesmo questionava como da mais notável escritora em língua portuguesa, apreem: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica sentado primeiramente como dissertação de mestrado,
coisa nenhuma. Isto é apenas”; (apud. GOTLIB, encontro o livro que quisera ter escrito tal qual imagi1995:373) a escritora seguia na criação e feitura de nei há alguns anos, mas não o fiz. Se por imaturidade
seus livros, fossem eles romances, contos, livros in- intelectual, se pela diferença do corpus, se pela disfantis, apontamentos ou até mesmo “fundos de gave- tância de tempo leitural e/outros inúmeros motivos o
tas”. Não raras vezes, percebemos um diálogo cons- livro não saiu àquela época, diferentemente do que ocortante entre ambas e múltiplas atividades: a idéia- bási- re aqui, isso já não nos importa. O que realmente conca-origem aparece primeiramente em uma crônica ta, primeiramente, é a grata surpresa e o prazer que
para, mais tarde, a vermos diluída em um trecho de me proporcionaram as palavras de Nolasco sobre um
romance ou mesmo em um conto com um outro título tema que, segundo muitos, naquela passagem, era “poue outra paragrafação. Ou ainda, como em se tratando co estudável” e/ou algo “pouco resultável” no que faço
de Clarice ser o mais provável, o seu reverso: a idéia- coro com o epílogo do autor em que “só mais recenteembrião aparece por primeira vez em um conto, sendo mente e de forma muito iniciatória, a crítica tem se
aproveitada em parte ou no todo em um romance, para voltado para o projeto de criação literária da
só mais tarde ser lida como crônica. Não poderíamos autora”(NOLASCO, 2001:261); e, secundariamente,
rejeitar ainda, e por último, a idéia de duplicidade, de o interesse, a sensibilidade e a sintonia em preocuparsimultaneidade, de mão dupla, de que Clarice não es- se por um mesmo aspecto definido de uma autora tão
creve os seus textos, mas sim que esses se escrevem estudada. Pois sim, é, como diria Lacan, o tal do “inPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 46-48, 1999/2001
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consciente coletivo” de que somos
piladas, posteriormente, em A DesNessa derradeira
produtos.
coberta do Mundo (1984). Nesse
(des)composição de
Na primeira parte do livro o aumomento de (re)descoberta quanto
significantes,
Nolasco
tor nos esclarece a diferença entre
ao modo particular de escrever, o
tece e destece os
os vários conceitos de texto para,
autor pontua duas singulares distinfragmentos
do
livro
na seqüência, valendo-se da teoria
ções na escrita de Clarice e, por conmais próxima da escrita clariciana,
seguinte, entre a feitura dos citados
presentes tanto nas
adotar uma vertente –mais moderlivros: a superposição e a justaposicrônicas, como nos
na- que vislumbra no texto nem o
ção e nos esclarece tais matizes que
contos e outros
fim, tampouco o começo; nem o anparecem sem importância. De acorescritos
claricianos...
tes, tampouco o depois do impresdo com o autor o processo por
so, mas o “quase”; o “espaço de
superposição(um sobre/sob o oucriação inacabado eterno”, consotro), um pouco mais trabalhado, tenante os dizeres de Leyla Perrone-Moisés e Barthes ta diluir o texto primário de tal modo que esse se encon(apud.NOLASCO, 2001: 150).
tre por completo na segunda escritura, que fique um
Mais adiante, na segunda parte (cabendo aqui o “chapado” ao outro, segundo suas próprias palavras. E
devido esclarecimento de que essas divisões diferem segue discorrendo, comentando, analisando várias pasum pouco das encontradas no sumário do livro e estão, sagens exemplares de tal fenômeno presentes em Uma
por assim dizer, de modo simplificado, mais para a se- Aprendizagem e nas crônicas. Já o processo por
ara do conteúdo que para a da forma) encontramos o justaposição(um ao lado do outro), por seu turno, se
texto, agora o do autor-Nolasco, mais voltado para a distingue sobremaneira da primeira ocorrência, uma vez
problemática do tempo em que se dá a escritura que se dá às claras, sem escamoteamento, sem muito
clariciana. Segundo o estudioso, o tempo de leitura do cuidado; antes, com total escândalo de descuido propotexto de Clarice e ainda fazendo menção ao que fora sital, querido e regozijado. É o que percebemos na leitudito na primeira parte do trabalho, “está no momento ra-escritura, seja tanto tomando o autor-escritor quanto
em que dura a leitura do leitor”. Esse tempo abstrato, o receptor-leitor ou vice-versa: autor-leitor e receptorporém virtualmente real, assemelha-se, na linguagem escritor, de Água Viva que, segundo muitos estudiosos,
da escritora, ao it: “It é cada instante. It é vivo”. Ain- talvez seja sua maior façanha ante-anti-literária. Nessa
da para corroborar, “o ato de leitura se estrutura atra- derradeira (des)composição de significantes, Nolasco
vés de um processo que se volta sobre quem o prati- tece e destece os fragmentos do livro presentes tanto
ca” (NOLASCO, 2001:91).
nas crônicas, como nos contos e outros escritos
Na terceira e última parte temática do estudo, Edgar claricianos, tal qual – para citar o próprio estudioso – a
Cézar Nolasco nos brinda com uma espécie de “guia- clássica Penélope à espera de um Outro. Quiçá Clarice?
para-ler-Clarice Lispector ou um manual- pós-moder- Isso é matéria para uma outra pesquisa. Concluo parano-para-leituras-afins”, no qual, pela feliz denominação fraseando o próprio autor, onde a aprendizagem não está
de “Desconstrução escritural”, desentranha o processo em descobrir o novo; senão antes, em descobrir de novo
(re) criativo de Clarice em as feituras das obras Uma o novo ou o que se soube que era novo ou ainda o que
Aprendizagem ou livro dos prazeres (1969) e Água se pensou que se soubesse. O axioma é eterno:
Viva (1973) comparando-as com e/ou encontrando- as descubramo-nos de novo em O Novo, em Clarice
nas crônicas de então que escrevia para o jornal, com- Lispector. Ita est.
Bibliografia
GOTLIB, Nádia Batella. Clarice - Uma vida que se conta. São Paulo. Ed. Ática. 3.ed., 1995.
NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. São Paulo. Annablume, 2001.
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Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 46-48, 1999/2001