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ISSN: 1517-9257 Papéis : rev. Letras Campo Grande, MS v. 3/4 n. 5/10 p. 1-48 1999/2001 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Reitor Manoel Catarino Paes - Peró Vice-Reitor Mauro Polizer CÂMARA EDITORIAL Alda Maria Quadros do Couto Ana Maria Souza Lima Fargoni Dercir Pedro de Oliveira José Batista de Sales Maria Adélia Menegazzo Paulo Sérgio Nolasco dos Santos Rita Maria Baltar Van Der Laan Ronaldo Assunção Vânia Maria Lescano Guerra Ficha Catalográfica preparada pela Coordenadoria de Biblioteca Central/UFMS Papéis : rev. Letras / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997). Campo Grande, MS : A Universidade, 1997. v. : il. ; 27 cm. Semestral. ISSN 1517-9257 1. Literatura. Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD-805 2 APRESENTAÇÃO O número 5 da Papéis, Revista de Letras da UFMS, apresenta trabalhos voltados para os estudos literários e lingüísticos, ressaltando sua relação com as duas áreas do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Neste sentido, verifica-se uma diversidade de temas que traduz o caráter abrangente da publicação. No primeiro ensaio, Paulo Sergio Nolasco dos Santos embrenha-se pelas veredas do cerrado e dá conta de desenhar uma paisagem da região a partir da visão de escritores, historiadores e poetas, numa perspectiva mitopoética que permite compreender os sentidos de seus nomes, como também suas faces. Lucy Mitiko Nakamura propõe uma leitura semiótica do conto O enfermeiro, de Machado de Assis, valorizando o modo simbólico como recepção ideal. A literatura brasileira de expressão latina é apresentada por João Bortolanza, analisando e comparando textos de Anchieta, Castro Lopes e Vieira, atribuindo aos estudos clássicos e humanísticos sua real importância e necessidade. Compreendendo o discurso como prática de certas regras às quais o sujeito deve obedecer, Marlon Leal Rodrigues analisa, com base em Foucault e Pêcheux, enunciados dos discursos Fundador, da Reforma Agrária e dos Movimentos Populares do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) contrapondo-os ao Estatuto da Terra e à Constituição Federal. Ana Maria Souza Lima Fargoni avalia a fusão da fala e da escrita no discurso de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, como um modo talking de narrar, comparando-o ao de Marcel, personagem de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. O livro de Edgar Cezar Nolasco, Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura recebe resenha de Márcio Antonio de Souza Maciel, ressaltando o trabalho criterioso e apaixonado do autor na leitura do texto clariciano. Temas variados, leituras diversificadas dão o tom deste número. Maria Adélia Menegazzo 3 Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica, Impressão e Acabamento Editora UFMS Revisão A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores Distribuição Livraria UFMS Publicação da UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMS Fone: (67) 387-1004 - Campo Grande - MS e-mail:[email protected] CARLA DE CÁPUA "Ruínas de um teatro romano" Pastel seco sobre papel 50 x 70 cm Col. Particular 4 Carla de Cápua Licenciada em Artes Plásticas pela FAAP, São Paulo, e Doutora em Antropologia pela Université Paul Valléry, Montpellier III, França – é Professora de História da Arte e Escultura no Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. SUMÁRIO 6 NOMES E FACES DE UMA REGIÃO 14 LEITURA E O MODO SIMBÓLICO NO TEXTO LITERÁRIO 22 LITERATURA BRASILEIRA DE EXPRESSÃO LATINA 34 ESTUDO DA IDEOLOGIA QUE SUSTENTA O MST Paulo Sérgio Nolasco dos Santos Lucy Mitiko Nakamura João Bortolanza Marlon Leal Rodrigues 42 GRANDE SERTÃO: UM MODO "TALKING" DE NARRAR 46 Resenha CLARICE LISPECTOR: NAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA, de Edgar Cézar Nolasco Márcio Antonio de Souza Maciel Ana Maria Souza Lima Fargoni 5 Este artigo propõe uma leitura de textos a partir da interface “literatura versus cultura,” revelando aspectos da região sulmato-grossense numa perspectiva mitopoética. Palavras-chave: Literatura Comparada; Crítica This article proposes a reading text from the interface “literature in contrast with culture”, revealing aspects of Mato Grosso do Sul state in a mithpoetic perspective. Keywords: Comparative Literature; Critic 6 NOMES E FACES DE UMA REGIÃO * ** Paulo Sérgio Nolasco dos Santos “Quem me fez assim, foi minha gente e minha terra.” Carlos Drummond de Andrade O cronista da famosa expedição Langsdorff, Hércules Florence, cruzando o extremo oeste do Brasil, em 1827, com o olhar do descobridor europeu, registrou as “maravilhas” de um eldorado que não conhecia fronteiras, nem limites, quer sejam dos domínios e posses dos largos campos e sertões, quer seja na perspectiva do imaginário dos bandeirantes que ocuparam a vasta depressão da planície pantaneira, constituída pelos amplos horizontes do Planalto do Brasil Meridional . Em um de seus relatos, o cronista assim teria anotado: Havia na província de Mato Grosso uma região chamada Firme. Essa região foi batizada por Fazenda Firme, que foi habitada pelo pioneiro Nheco, de onde derivou o nome Nhecolândia. Assim podia sintetizar-se o relato do nosso cronista1 que, entre retratar as “maravilhas” do sertão isolado da corte por muitas léguas, cujo contato só podia ser feito pela bacia do prata, ou , apreender, pela tarefa mesma de seu ofício, a arte de cronista, o impossível traslado da experiência e da força do con- Vinheta do Boletim da Nhecolândia (1934). Os bois caminhando para leste parecem indicar o sentido da ocupação desses pantanais (BARROS, 1998: 100). * Uma primeira versão deste texto, com o título No Pantanal da Nhecolândia: outras conversas com o vaqueiro Mariano, foi apresentada na mesa redonda Literatura comparada: os limiares críticos, no colóquio 2000 palavras: o futuro das letras (UFPel, abr. 2000). Na versão atual ele foi apresentado na sessão Região e representação literária, no VII Congresso ABRALIC (UFBA, jul. 2000). ** 1 Doutor em Letras. Professor de Teoria e Crítica Literárias nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da UFMS. O cronista H. Florence dedica nove páginas de seu relato à região da Nhecolândia (Barros, 1998, p.63). Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001 7 tato vivenciado naquele outro muntraços pessoais de sua gente ou de Interessa-nos do, tão distante, tão estranho porsua maneira particular de ver o especificamente refletir que tão diferente – entre retratar e mundo. interpretar os sinais das novas terSegundo Barros, num imporsobre a idéia de ras conhecidas – impunha-se como tante volume que constitui valioso paisagem como resistência a própria natureza se material histórico, sociológico, ansentimento do lugar oferecendo como enigma – posto tropológico, folclórico, lingüístico reinventado no próprio que desconhecida – que enovela e genealógico (Gente Pantaneira), fazer poético... paisagens variadas, encantatórias, o meio físico-geográfico deveria reafirmadoras de sua própria influir no comportamento humaphysis, na construção de um terrino; assim, o homem das montatório outro, produto de um espanhas, tendendo à introversão, ao ço reinventado (SILVA,1998:23-27). ensimesmamento – constituindo nisso sua paisagem Neste sentido, importante conceituação da pai- – diferencia-se do da planície, como o pantaneiro, sagem como transgressão de limiares foi apresen- cuja personalidade mostra-se mais aberta, solta e tada pela Profª. Maria Luiza Berwanger da Silva, tendente à aventura e à mobilidade. Daí resulta que a que, seguindo a esteira de Derrida, entre outros, beleza da paisagem – da planície – acaba impriminnos fala da composição da paisagem enquanto des- do uma certa estética da amplidão ligada à abertura locamento incessante ao horizonte infinito, como le- e largueza de vista. Refere ainda, Barros, o ritmo do gítima expressão do processo de criação literária, desacontecimento e outras heranças indígenas que que se segue pelo duplo ritmo do tecer e do destecer. comporão o variegado perfil e o esgarçado tecido Assim, os estudos sobre a paisagem, os rumos da representação cultural da gente mato-grossense. norteadores do enfoque da paisagem, consideran- Tal ritmo, ou ritual do desacontecimento, assume o do sua articulação pela representação espacial, tra- caráter de citação, pois que se refere aos seguintes tariam de “perceber, na intimidade do artesanato versos manoelinos: “As coisas que acontecem aqui, poético, o fio condutor do espaço cujo traço da acontecem paradas. Ou, melhor dizendo, oscilação, do espaço que hesita entre o fazer e o desacontecem.” (BARROS, 1985:33). Tomando a desfazer, sulca a paisagem intervalar mas infinita, pai- própria obra de Manoel de Barros, seguida do jocosagem que concretiza o sonho baudeulairiano do so subtítulo/paratexto Roteiro para uma excursão ‘vaste’’ (SILVA,1998:27). poética no Pantanal , mais o lendário desinteresse Interessa-nos especificamente refletir sobre a idéia de seu autor a tudo o que representa exposição de paisagem como sentimento do lugar reinventado midiática — como legítimo pantaneiro, Manoel tem no próprio fazer poético, considerando a imagem do forte pudor da notoriedade —, configura-se um sighorizonte como tema e elemento estruturador do con- nificativo traço da gente pantaneira, ou como propuceito de imagem visada pela busca do horizonte ina- nha discutir o VII Congresso da ABRALIC, da tertingível, infinito. Horizonte que o autor de Horizonte ra & gente pantaneira. Assim, o ritual do e Complementaridade assim o conceituou: “Decer- desacontecimento refere-se aqui ao exemplo com o to, o horizonte é o que se encontra sempre à vista de qual o crítico ilustra sua análise psicossocial: certa nossos olhos, mas nunca ao alcance de nossos pas- vez, estava ele insatisfeito e ansioso, por assim dizer, sos” (SOUSA, 1975:21). com a lentidão das tarefas, quando um velho bugre Retomando então o início dessa exposição, o re- pantaneiro lhe teria advertido, tocando-lhe com a mão lato do cronista da expedição Langsdorff, Hércules no ombro: “Não fique nervoso, não adianta...o traFlorence, queremos considerar a questão da paisa- balho não tem fim...”. gem tomando por locus o espaço geofísico do PanEsse descompasso, sentimento de desinteresse, tanal e o caráter psicossocial da gente pantaneira, não-atendimento ‘as demandas de última hora, papor ser o Pantanal uma grande planície, das maiores rece, com efeito, ser a marca, o Nome (com maiúsdo mundo e que decerto é responsável por alguns cula), que, impregnando a densa camada constitutiva 8 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001 da representação cultural, acaba indicando uma faceta da gente e da terra, e de resto da vida sóciocultural da região dos pantanais. Continuando a citação manoelina: a historiadora e crítica de arte Aline Figueiredo assim expressou a face da nossa identidade ameríndia: Fomos desvendados, em termos europeus, pela captura do índio, descobertos pelos metais e fixados pelo boi. Pela procura ou pelo encontro dos metais, prata na Bolívia, ouro em Mato Grosso, fomos ocupados entre os séculos XVI e XVII, no caso do Paraguai e da Bolívia e no século XVIII, no contexto mato-grossense, e, com a sua ausência ou escassez, fomos despovoados e esquecidos com a mesma rapidez com que fomos ocupados. Durante três séculos ruminamos com os nossos bois a mesmice e o marasmo do tempo. E com eles, pastando soltos pelos campos indivisos, delimitamos as nossas fronteiras. Nesse decorrer vivenciamos a sanha das atrocidades como ninguém. Construímos a nossa sociedade mestiça, mesclada de usurpados e usurpadores (FIGUEIREDO, 1988:8). Sublinha-se aqui o quanto a distância e o isolamento, inicialmente responsáveis pelas dificuldades do nosso desenvolvimento no extremo oeste do Brasil, vão configurar, depois, o nosso desprendimento, que é sombra da nossa nostalgia, oriunda de um espaço de amplos horizontes do planalto, acentuando também a nossa vocação de sonhadores incorrigíveis: com o planalto, herdamos também a vasta depressão da planície pantaneira e talvez por isso, continua Aline, sejamos tão ensimesmados. É ilustrativo o fato referido por Barros que a expansão da Nhecolândia deu-se seguindo a orientação de que a leste as terras do Nheco tinham o limite da sua ambição; terras sem dono e sem fim (em 1899 as terras já legalizadas somavam 380 mil hectares). E continua o autor de Gente Pantaneira: “Eram grandes extensões de pastagens em terra firme. Firme foi o nome dado ao lugar. Fazenda Firme depois, célula inicial de toda a Nhecolândia” (BARROS,1998:80). Essa região, encravada no coração da América, assim caracterizada, parece ter sido, por força de Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001 um magnetismo próprio – centro geodésico –, alvo dos afetos dos grandes escritores que por ali estiveram e viveram, ou, ainda, por efeito de seus próprios encantos que teriam feito imprimir nas melhores páginas da literatura brasileira sua natural vocação marcada por riquezas culturais, ecológicas, turísticas e econômicas que, por motivações poéticas literárias ainda mais justificadas, fertilizaram um dos mais representativos textos do escritor mineiro, Guimarães Rosa, bem como a obra do escritor sulmato-grossense, Manoel de Barros. Referimo-nos especificamente ao relato “Entremeio com o vaqueiro Mariano” e, grosso modo, à obra de Manoel de Barros, problematizando o mesmo universo de representação, sobretudo no seu Livro de Pré-Coisas que traz como subtítulo, repetimos, o significativo paratexto: Roteiro para uma excursão poética no Pantanal. Já o Visconde de Taunay, compondo suas “visões do sertão”, registrara o poder de rememoração que aquelas planícies exerciam como se lhe ficassem estereotipadas na retina: “ Sobremaneira notáveis todas as paizagens d’aquelle mal conhecido recanto de Matto-Grosso...” (TAUNAY, 1923:11). Taunay prossegue sua narrativa, relatando que o cenário que os cercava estava continuamente mudando. As serras de Maracaju que tanto o impressionaram, mostrando suas reentrâncias e saliências e as bandas do aldeamento dos índios terenas da Pirainha causando legítimo pasmo, com Já o Visconde de Taunay, compondo suas "visões do sertão", registrara o poder de rememoração que aquelas planícies exerciam como se lhe ficassem estereotipadas na retina... (...) arcos, arcos naturaes de extraordinaria regularidade geometrica, já destacados (...); letras, inscripções, traços, gregas, como que borrados pela mão do homem, algum mysterioso e cyclópeo artista; columnas a meio partidas, porticos inacabados ou então rasgões monumentaes, quer singelos, quer ornamentados de delicadissimos recortes e rendilhados, __ enfim, essas formas tão caprichosas e variadas, (...) como se por alli houvesse, em tempos fabulosos, perpassado o genio fantasioso, criador, subtil, de algum architecto arabe (TAUNAY,1923:13-14). A aproximação dos dois artífices da palavra – Rosa e Manoel – toma projeção de um encontro mar9 se: Quem acumula muita informacado nas paragens da Fazenda ção pode perder o Dom de adiviA arte de inventar, Firme, tendo por quadro de fundo nhar. São as obscuridades coerena Planície da Nhecolândia: seguncompartilhada tes do povo. Vai daí começamos a do Manoel de Barros, esse enconpor Rosa e prosear lourenço (REVISTA CULtro se deu em junho de 1953, quanManoel de Barros, TURAL, 1995: 11). do Rosa, embevecido pela prosa traduz-se na busca A expressão ser pantaneiro de de um vaqueiro – o Mariano – ia incessante da chapa e cruz – como se apresenconstruindo o seu relato à medida linguagem poética. ta Manoel de Barros –, além do que cavalgava pelo Pantanal, onde seu significado cultural, aquele que “repetiam-se as paisagens”. A tem a sua ancestralidade autenticonversa de Rosa não era só com cada, puro de origem, gente simo vaqueiro Mariano, era também uma conversa com Manoel que é quem nos fala do bolicamente brasonada (BARROS, 1998: 34), tamsabor e do élan daquelas conversas: “Nossa con- bém confirma o caráter de genuinidade que atribuíversa era desse feitio. Ele (Rosa) inventava coisas de mos à poética manoelina. A arte de inventar, comCordisburgo. Eu inventava coisas do Pantanal” partilhada por Rosa e Manoel de Barros, traduz-se (BARROS, 1990: 338). Pantaneiro e/ou vaqueiro, na busca incessante da linguagem poética, que neste tanto Rosa quanto Manoel mostram-se exímios caso transforma o Sertão e o Pantanal, pertencentes campeadores em sua “tauromaquia” da palavra. Se- à mesma categoria de terra-do-sem-fim, num preguindo a forma de um relato mitopoético, Manoel de texto, também pré-texto, para aquilo que Manoel explica como sendo a loucura do verbo: “Temos que Barros evoca o seu primeiro encontro com Rosa: Por impulso de admiração peguei em Porto Espe- enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto rança o vapor Fernandes Vieira que levaria o escri- que esse verbo possa transfigurar a natureza” (BARtor Guimarães Rosa até Corumbá, pelo rio ROS,1990:341), cujo exemplo citado seria o “Com Paraguaio. Era de noite entre árvores. Águas pa- o Vaqueiro Mariano”, um livro intenso de poesia e radas no escuro. Calor e mosquitos levaram os pas- transfigurações. sageiros para os camarotes. Manhãzinha, outro dia, O referido encontro de Rosa e Manoel de Barum vento macio e alvo soprava. Rosa saíra cedo do ros, ganha, no relato da conversa que tiveram, concamarote. Estava sentado no tombadilho tomando fresca. Do bolso da paisagem borboletas queriam forme narra Manoel de Barros, um sabor de coisas escapar. Rosa abriu a paisagem e as borboletas inventadas à maneira do próprio vaqueiro Mariano sairam. O corpo do vapor quase tocava nas árvo- que, sabendo, e por saber a seu modo particular de res do barranco. Andava essa lancha que nem um ver e explicar o Pantanal como mundo, recria recorcágado travado. Dava pra ver nas lapas abertas tes de textos, de enunciados colhidos ao longo do lontras dormidas. Dava pra ver rancho amanhe- tempo e da vida. Como no caso dos sapos que são cendo. Talvez uma chácara amanhecendo. Dava cantores: ao relatar a conversa que teve com Rosa, pra ver um curral de bezerros, um homem e um Manoel diz que perguntara se em Minas tinha sapo menino pardos. Eu fabricava coragem para puxar demais, ao que Rosa, desafiando, respondeu: “Tem uma prosa com aquele João. Nessa hora as mariquase menos que por aqui, mas os poucos que tem posas relavam na água as bundas. Uma anhuma rasou por cima de nós, tocando fagote. Eu disse por lá cantam mais bonito.” O teor dessa conversa para o Rosa ouvir: O canto desse pássaro diminui a não se pode atribuir, originariamente, à invenção dos manhã. Rosa pôs tento. Ele tinha uma sede anor- dois (Rosa/Manoel), a menos que se considere o remal por frases com ave. Me olhou sentado na fra- lato da conversa a partir do estatuto do sujeito da se e se riu para mim. Gostou que eu estava enunciação. Porque e segundo um outro relato, mais fraseando no vento. Quer dizer que esse anhuma recente, o das crônicas da gente pantaneira, na realidiminui a manhã? – ele perguntou. Eu disse: um dade, a referência aos sapos cantores é atribuída ao homem que não tem ensino me ensinou. Ele não inveterado bairrismo dos primeiros livramentanos tem informação das coisas, mas adivinha. Rosa dismigrantes do pantanal: o velho Mané Gregório, pro10 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001 veniente do Livramento, parente do Confirma-se nesses fragmenSe o humor e a ironia pai de Manoel de Barros, recémtos a luminosidade do verbo ensempre destilaram sua chegado, à beira do rio Paraguai, louquecido, freando os excessos exibia as vantagens do Livramende natural como queria Manoel seiva nas melhores to mas era obrigado a concordar em sua conversa com Rosa, que páginas da literatura, que sapo, afinal, aqui tinha mais; anos depois lhe oferece um nesses textos em mas os poucos de lá (do Livramenexemplar do seu “Com o Vaqueianálise ele encontra to) cantavam mais bonito... Por aí ro Mariano”: Olha aí, Manoel, sua condensação afora o bairrismo de cuiabanos e sem folclore nem exotismos – genuína. livramentanos é descrito minuciocomo você queria (BARsamente por Abílio de Barros, cheROS,1990:341). Nem folclore, gando às raias do provincianismo nem exotismos – disse Rosa. Ane do isolamento grupal caracterizadores do tes a visão de uma paisagem transfigurada pelo poinsulamento muito próprio da “nossa gente”: “Do Li- eta que em silêncio assiste ao pôr-do-sol, tendo-o vramento e Cuiabá tudo era melhor. Pacu do rio como suporte de uma paisagem mais densa, volátil: Paraguai tinha gosto de lodo, a cana era aguada, a o homem, o pantaneiro, o vaqueiro. Se o humor e a abóbora, sem gosto. Da banana, nem falar, pois a do ironia sempre destilaram sua seiva nas melhores páLivramento, no cortar, escorria mel” (BAR- ginas da literatura, nesses textos em análise ele enROS,1998:56). contra sua condensação genuína. Quer venha do vaDeixemos por hora a interessante querela, tão pró- queiro Mariano, ou ainda do Bernardo, esse pria de vaqueiros e prosadores, na sua inveterada transfazedor da natureza ( alter ego de Manoel), vocação de contar estórias – concordando com Rosa “ser cuja palavra amplia o silêncio”, a predisposique, se verdadeiras, belas são as estórias, se imagi- ção para o jogo intelectual é uma constante que renadas, ainda mais –, para acompanharmos nossos sulta em palavras ácidas, farpas trocadas, entre ridois prosadores pelas terras do Nheco. A compara- sos. Com isso o poeta reflete a ânima do pantaneiro, ção do vaqueiro Mariano com o escritor é lindamen- naturalmente afeto ao espírito irônico constitutivo te declarada por Guimarães Rosa já no enunciado do gracejo, do ato inteligente. O episódio envolde abertura de seu relato: “Em julho, na Nhecolândia, vendo o Neco Caolho – conforme relata Barros – Pantanal de Mato Grosso, encontrei um vaqueiro que é síntese ilustrativa dessa índole pantaneira: vinha o reunia em si, em qualidade e cor, quase tudo o que a Neco Caolho pela calçada, quando uma das moças literatura empresta esparso aos vaqueiros principais” do grupo, lança-lhe a pergunta irônica: “Seu Neco, (ROSA,1994:775). Logo depois o narrador rosiano, feiúra dói?”. De imediato, veio a resposta ferina: refletindo sobre as lides de um e de outro, da sua “Acho que não, minha filha, eu nunca vi você geassaz solidão, que é também no nível metafísico e mer!”. Essa estória, com os elementos definidores existencial, motivadora de toda a paisagem da deso- de um espírito crítico peculiar – ironia, surpresa e lação humana, problematiza o próprio ato de narrar certa dose de agressão – até parece caracterizar o como sendo um ato de resistência: estilo de um embaixador muito conhecido nosso – Te aprendo ao fácil, Zé Mariano, maior vaqueiro, Roberto Campos – que, por sinal, é de origem sob vez de contador. A verdadeira parte, por quan- papabanana e vem a ser sobrinho-neto daquele to tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo Neco Caolho da ilustrativa estória narrada por Barpoderás transmitir-me. O que a laranjeira não ensi- ros. na ao limoeiro e que um boi não consegue dizer a Quer se chamar a atenção, aqui, para a condioutro boi. Ipso o que acende melhor teus olhos, que ção de emaranhamento que perpassa o horizonte dá trunfo à tua voz e tento às tuas mãos. Também as estórias não se desprendem apenas do narrador, do pantaneiro, entrelaçando a paisagem num ato sim o performam; narrar é resistir. performativo, onde o ser pantaneiro é ser arborizado e é, por extensão, a própria paisagem: (ROSA,1994:779). o seu isolamento, o seu pequeno mundo de coPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001 11 nhecimento, é sobrepujado pela uma vez, quando procura uma fraEnfim, recorrência às imagens e brincase para encimar as fotografias de a paisagem, deiras, ou como diz Manoel de seu livro-álbum Para encontrar Barros: “No uso de cantos e o azul eu uso pássaros?: “Nessimultaneamente recontos / O pantaneiro enconta hora de escândalo amarelo / os desoladora tra o seu ser. / Aqui ele alcança a pingos de sol nas folhas / cantam e encantatória, altura das manhãs / E os cinzenhinos ao esplendor”. Para em searranca de tos do entardecer.” Esse guida anotar sobre a fotografia de sua matriz poética, emaranhamento dos seres com a uma palmeira: “Uma palmeira cotransfigurada... paisagem e com o infinito acaba berta de abandono / é como um compondo o Texto, único, comhomem / de escura solidão”. plexo, que não indica nenhum Mas a gente já está chegando pre-texto. “Quisera humanizar de mim as paisa- de volta, disse o vaqueiro Mariano, o Firme é ali... E gens./ (...)/Que eu possa cumprir esta tarefa sem / aponta para Rosa. que o meu texto seja engolido pelo Olhei. Vinha uma nuvem, engrossado vulto, rodancenário.”(BARROS,1999). do no ar. Seu revoluteio era muito lento; parecia abdorme enxame de abelhas. Zumbia, zunia. Ora Um momento de elevada transfiguração poética turbilhonava, sempre à mesma altura. Oscilou, foi, é o da queimada. No relato de Rosa, a queimada é veio. mais do que uma herança cultural, necessidade agro– É um bandão de caturritas... O senhor repare pastoril; ela metamorfoseia o olhar fascinado do sernaquele redondo de espinheiro, mais alto, mais vertanejo que aprecia o espetáculo do incêndio. O ende do que o capim: ali é uma baía seca, que não trechoque, o entreofuscamento da queimada, do recebeu água este ano... As caturritas comem as fogo propriamente dito, com o cair da tarde ou da frutinhas do espinheiro, elas vão p’ra lá... O bolo noite, evoca, para além do relato de Rosa,outras negro balançou-se mais, subiu como um deslastrado imagens poéticas como as dos versos de Guilherme balão, pairando, alto, bem por cima do círculo de de Almeida: “Tarde grande tarde / de verdade/ arbustos. Partiam clingos, pios, do primitivo rondo (...)Tarde autêntica em que há / apenas o calor, a de rio cheio. Algumas caturritas se desprenderam fumaça pesada / e o estouro oco dos toros verdes e entrevoaram em volta, expeditas, mas tornavam na queimada / grande, teatral / como um crepúsculo logo ao bando. A massa boiava no ar e bojava. Por que não desciam?. artificial.” E nestes outros versos de Castro Alves: “O estampido estupendo das queimadas/Se enrola – É a hora! de quebradas em quebradas / Galopando no ar” Do fundo da bola, aves se despegaram, umas. Bai(WERNECK SOBRÉ,1966:211). Enfim, a paisaxavam, colorindo-se de verde: quando iam tocar nos ramos, já estavam do tom do espinheiro. E gritagem, simultaneamente desoladora e encantatória, arvam, de alegria. Derramaram-se outras, uma porranca de sua matriz poética, transfigurada, o grande ção, todas desciam. Era uma chuva, era esplêndipoder fátuo que o verso manoelino os arrebóis lado: as caturritas se despenhavam, escorriam, caítejam emoldura numa paisagem esteticamente exuam em catarata. berante: o fogo que corre pelas macegas quer toQuando o vôo se dissipou, Mariano desmanchou a mar à noite imensa, com o brilho de sua lua e estreminha surpresa. las, seu poder de velar segredos de beleza... E quan– Vou mostrar ao senhor um ninho de tabuiaiá... – do ele passa, deixa ver o que repousava no limbo disse. E, como quem corrige: da aparência – cinzas, floradas no campo, – Aquelas voando ali são curicacas... Tem a caramujos, ossos e terras vermelhas, antes vislumcuricaca-do-brejo e a curicaca-do-seco... bradas apenas em sua densa poeira Retomamos a andada, repetiam-se as paisagens (NOLASCO,1999:177). (ROSA,1994:797). Não seria desses arrebóis, ou dessa grande tarde de verdade, que nos fala Manoel de Barros, mais 12 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001 Concluindo, evoco mais uma vez o encontro marcado que tiveram, nas paragens do Firme, Guimarães Rosa, Manoel de Barros e o vaqueiro Mariano, enaltecendo a simpatia que o vaqueiro pantaneiro despertou em nossos dois escritores. Tanto na entrevista famosa quanto na carta singular, Guimarães Rosa mostrou o quanto as “veredas” do sertão pantaneiro marcaram sua obra. Na entrevista concedida ao seu tradutor alemão, Günter W. Lorenz, ele afirma: “Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros” (LORENZ, 1973:323). E, ao se despedir da viagem que fizera à nossa região, assim escreveu numa carta para um conterrâneo sulmato-grossense: Não esqueço o boi laranja. (...) Sorvi o bafo do campo largo, os berros dos bois, toda a vivência de uma gente sadia e brava, ao longo do tropear das boiadas, esse mundo autêntico de sentimento, pitoresco, variado e sincero.(...) Apreciei imenso as passagens no genuíno linguajar nativo _ gostoso como o tereré, como a guavira. Deu-me vontade de voltar um dia a esse Mato Grosso Meridional, que me deslumbrou tanto: rever Aquidauana, Nioac, Miranda, Dourados, a Fazenda Jardim e o ‘Buracão do Perdido’ [s.n.t.] Referências Bibliográficas 1. BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira. (Crônicas de sua História). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998, 251p. 2. BARROS, Manoel de. Conversas por escrito (l970-l989), Entrevistas. In: Gramática Expositiva do Chão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990, 343p. 3. BARROS, Manoel de. Livro de Pré-Coisas. Roteiro para uma excursão poética no Pantanal. Rio de Janeiro: Philobilion Livros de Arte Ltda., 1985, 94p 4. BARROS, Manoel de. Para encontrar o azul eu uso pássaros. 1ª ed.Campo Grande: Saber Sampaio Barros Editora, 1999. 5. FIGUEIREDO, Aline. Por Uma Identidade Ameríndia . In: CATÁLOGO DO VI SALÃO DE ARTES PLÁSTICAS DE MS: Por Uma Identidade Ameríndia. Campo Grande: FCMS/SEC, 1987. 6. LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina – Panorama de uma literatura do futuro. Trad. Rosemary Costhek Abílio e Fredy de Souza Rodrigues. São Paulo: E.P.U., 1973. 7. NOLASCO, Paulo Sérgio. Um outdoor invisível: imagens do pantanal sul-mato-grossense. In: CARVALHAL, T. F. (Org.). Culturas, Contextos e Discursos. Limiares Críticos no Comparatismo.Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999. 8. NOLASCO, Paulo Sérgio. No Pantanal da Nhecolândia: outras conversas com o vaqueiro Mariano. In: COSSON, Rildo. (Org.). O Presente e o Futuro das Letras. Pelotas: Editora da UFPel, 2000. 9. NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Manoel de Barros: Datas, encontros, conversas e afinidades literárias.In: NOLASCO, P.S.(Org.).Ciclos de Literatura . Campo Grande: Editora UFMS. 2000. 10. REVISTA CULTURAL. Ano I. n 1, abr./mai. Pedro Juan Caballero/Paraguay: Gráfica Nice,1995. 11. ROSA, João Guimarães. Entremeio com o vaqueiro Mariano. In: Ficção Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A.,1994. Vol. II, 1190p, p.773-799. 12. SILVA, Maria Luiza Berwanger da. Limiares críticos e paisagens da transgressão. In: Limiares críticos. Rio de Janeiro: UERJ, 1998. (Col. A teoria na prática ajuda – GT de Literatura Comparada da ANPOLL, 6). 13. SOUSA, Eudoro de. Horizonte e complementaridade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975. 145p. 14. TAUNAY, Visconde de. Visões do Sertão. 1ªed. São Paulo: Off. Graph. Monteiro Lobato, 1923. 247p. 15. WERNECK SODRÉ, Nelson. A queimada. In: Tipos e Aspectos do Brasil. 8ª ed., IBGE-Conselho Nacional de Geografia. Rio de Janeiro: 1966, 491p. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 6-13, 1999/2001 13 O presente artigo estuda a leitura do texto literário como uma análise capaz de penetrar no mundo criado pela obra, através de uma educação semiótica que leve à simbologia contida nas palavras. Uma leitura semiótica do texto literário que valorize o modo simbólico implica a importância de uma recepção ideal, em que o leitor possua domínio lingüístico, para que seja possível perscrutar o sentido dos significados. Na leitura do conto O Enfermeiro, de Machado de Assis, faremos algumas considerações baseadas no Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Palavras-chave: Leitura semiótica. Símbolo. The present article studies the reading about literary text as an analyses is able to penetrate in the world created into the work, through the Semiotic education finds the Symbology there is in the words. A Semiotic reading about literary works has valued the Symbolic way because it is important for an ideal reception and the reader needs to be able to know linguistic theory to investigate the sense of meanings. Through the short story O Enfermeiro, written by Machado de Assis, we will consider some symbols are based on Dictionnaire des Symboles, by Jean Chevalier and Alain Gheerbrant. Keywords: Semiotic reading. Symbol. 14 LEITURA E O MODO SIMBÓLICO NO TEXTO LITERÁRIO * Lucy Mitiko Nakamura ** Introdução O objetivo deste estudo é o de analisar a obra literária, enfatizando a importância da recepção, pois a obra literária é, segundo Jauss, “como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura” (Jauss, 1994: 25). Sendo assim, o juízo crítico está suscetível a mudanças porque é possível haver “livros que morrem injustamente e por muito tempo (pois a morte literária é sempre passageira ou pelo menos sujeita a ressurreições periódicas) por falta de uma crítica adequada...” (Lima, 1945:32) conforme as palavras de Alceu Amoroso de Lima, que na década de 40 já preconizava a relevância da recepção formulada com suportes teóricos e não com impressionismos. O juízo crítico acerca de um texto literário normalmente influencia a posição do leitor - é possível que não se enxergue a ‘qualidade’ de uma obra, quando esta não consta na lista dos cânones; ao passo que, numa situação oposta, (no caso, na produção literária já consagrada pela crítica), de repente o leitor passa a enxergar inúmeros elementos no mesmo texto, caso ele assimile um (pré) conceito sobre a ‘qualidade’ da obra e do autor. A classificação de obras num prisma meramente genérico também limita a leitura a uma visão estética do texto literário, incapaz de romper a estrutura superficial que ele apresenta. O Ensino Médio, por exemplo, peca quando tenta transmitir aos alunos uma sistematização imutável que enquadra os textos literários em gêneros, ao longo de um percurso diacrônico de produção e, o que é mais grave, sem penetrar no texto literário propriamente dito, ou seja, considerando apenas elementos extrínsecos e avais canônicos - tentar separar cada obra por gênero não é suficiente mesmo porque o Lírico, o Dramático e o Narrativo podem estar presentes numa mesma obra literária. Não se pode mediar a obra num prisma estritamente estilístico ou num prisma estritamente histórico - uma leitura profunda exige muito mais do que apenas um olhar sobre os aspectos formais da obra, preso nos ditames de um espaço cronológico. Neste estudo, a leitura pressupõe um domínio lingüístico na análise da obra literária, capaz de enxergá-la como ato sêmico, ultrapassando os limites da massa verbal, embasado em suportes teóricos de uma educação semiótica. Ao mergulharmos na estrutura profunda do texto, chegaremos à simbologia que * O presente artigo é resultante de um dos trabalhos apresentados na disciplina Teorias da Narrativa e do Gênero Poético ministrada pelo professor dr. Orlando Antunes Batista, no curso de Mestrado em Estudos Literários pela UFMS / Campus de Três Lagoas. ** Mestranda em Estudos Literários (CEUL/UFMS, 2000); Especialista em Língua Portuguesa (CEUL/UFMS, 1998); Graduada em Licenciatura Plena em Letras (CEUL/UFMS, 1997). Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 14-21, 1999/2001 15 configura melhor as idéias da obra Numa perspectiva do “percurso - quais imagens e tema nela estão gerativo de sentido”, Fiorin explicita A recepção adequada contidos - trata-se de uma visão mimecanismos para interpretação do é que possibilita croscópica e desmetaforizadora do texto literário, em que a ‘leitura’ pasdesvendar texto: o importante não é o que o sa por um “processo que vai do texto diz, mas sim, como ele diz mais simples ao mais complexo” o que o texto algo. (Fiorin,1994:17). No nível discursivo, guarda em si, Concordamos com a afirmação mais complexo, Fiorin explica que no jogo infinito das de Todorov de que “Os que sus“não é com o significado de uma expressões... tentam a idéia de 'analisar a obra figura isolada que vamos até o pelo que ela é, não pelo que ela tema (...) é preciso analisar como exprime' não encontrarão pois funcionam as figuras num texto. o que desejam através da poétiPara isso, observemos os lexemas, ca” (Todorov, 1979:70) e adotamos uma perspectiva ou seja, as palavras que se acham no léxico de uma semiótica que é incompatível com a interpretação língua” (Fiorin, 1994:69). Fiorin aponta na isotopia baseada no senso comum, pois o “senso comum sus- (“recorrência do mesmo traço semântico ao longo tenta que as coisas em geral só têm um significado, de um texto”) a justificativa porque o “texto está abere que este é quase sempre óbvio, gravado nas fa- to para várias leituras”, não significando que ele adces dos objetos que encontramos” (Eagleton, mita qualquer leitura: “o texto que admite múltiplas 1997:148). A recepção adequada é que possibilita des- interpretações possui indicadores dessa polissemia” vendar o que o texto guarda em si, no jogo infinito das (Fiorin, 1994:81). E este é um dos grandes méritos que expressões: valorizar o modo simbólico talvez seja um precisam ser conquistados durante a leitura, porque a dos caminhos mais acertados, quando se tem a certe- polissemia vai depender muito do horizonte de expectaza de que as palavras são prenhes de significados. tivas do próprio leitor. Buscar a simbologia durante a leitura significa perscrutar o que há por trás das palavras e não é nenhum devaneio: inúmeros estudos científicos tratam a questão do ‘símbolo’ no texto literário. No capítulo IV da Porque valorizar o modo simbólico Semiótica e filosofia da linguagem, por exemplo, Eco no texto literário expõe várias definições e abordagens acerca do símNossa opção em não subestimar uma obra, numa bolo: • Northrop Frye: “indica qualquer unidade de postura julgadora, justifica-se pela necessidade de ‘aprender a ler’ o texto, analisá-lo, penetrar no imagi- qualquer estrutura literária suscetível de análise crítica” (p.199); nário que ele cria; até porque • Raymond Firth: “Na interpretação de um sím“Fazer progredir o pensamento não significa bolo, as condições de sua apresentação são tais necessariamente rejeitar o passado: às vezes, que um intérprete usualmente tem muito maior essignifica revisitá-lo, não apenas para entender paço para exercitar o próprio juízo do que com o que foi dito, mas o que poderia ter sido dito, sinais regulados por um código comum a emissor e ou pelo menos, o que se pode dizer atualmente destinatário” (p.200); (talvez só atualmente) ao reler tudo o que havia • Ernst Cassirer: “O símbolo não é um revestisido dito antes” (Eco, 1991:12). mento meramente acidental de pensamento, mas o pois o mundo não permanece estático diante de nos- seu órgão necessário e essencial (...) Assim todo sos olhos, tudo está em constantes transformações, pensamento verdadeiramente rigoroso e exato enincluindo a visão de mundo vivenciado por cada gera- contra seu ponto firme apenas na simbólica, na ção de escritores, de leitores, da humanidade. Uma semiótica, sobre a qual se apóia” (p.203-4); das vantagens que o tempo nos lega é a polifonia neste • Tzvetan Todorov: “Há (...) em todo discurso, processo de ‘fazer progredir o pensamento’, ou o ‘mito uma produção indireta de sentido (...) O signo faz de interesse’ denominado por Frye - enfim, todo o pas- sempre conhecer alguma coisa a mais mediante a sado acaba encontrando ressonâncias no presente e atividade da interpretação (...) ‘Não procuro definada disso pode ser ignorado pela recepção atual. nir o que seja símbolo, o que seja uma alegoria, Fundamentação Teórica 16 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 14-21, 1999/2001 nem como encontrar a boa interde interesse dentro da obra (tudo o Considerando-se que não pretação: mas entender e, se posque se diz hoje, de certa maneira já há uma leitura única sível, manter o que é complexo e foi dito anteriormente, ao longo da trapara cada texto literário, plural’” (p.208-9); jetória humana) - é de Frye a afirma• Goethe: “O simbolismo transção de que “Um mito completamente a nossa visão acerca forma a experiência em idéia e a desenvolvido ou enciclopédico endesta obra apenas busca idéia em imagem, de modo que a cerra todas as coisas de que a sua a apreensão do enigma idéia obtida na imagem permanesociedade tem necessidade de safigurativo como um dos ça sempre infinitamente ativa e ber” (Frye, 1973:35), referindo-se ao inalcançável, e, embora expres“mito de interesse” existente na obra caminhos possíveis de sa em todas as línguas, permade todo escritor. E para perscrutar o interpretação... neça inexprimível. A alegoria caráter polissêmico do texto literário, transforma a experiência num lançaremos mão dos símbolos que conceito e o conceito numa imagem, mas de modo comporão o seu enigma figurativo. que na imagem o conceito seja sempre definido, No começo do antagonismo com o paciente, o encontido e exprimível” (p.215); fermeiro “era burro, camelo, pedaço d’asno, idio• Hegel: “Símbolo em geral é uma existência ex- ta, moleirão, era tudo” (p.132) - e o asno, como a terna que está imediatamente presente ou dada à jumenta, pode ser o símbolo da “paz, de pobreza, intuição, mas que não deve ser tomada com base de humildade, de paciência e de coragem” nela mesma, assim como imediatamente se apresen- (Chevalier, 1990:95). Mas também apresenta o “cata, mas num sentido mais amplo e mais universal. ráter difícil” (Chevalier, 1990:171), tal como o caPor isso, no símbolo se distinguem imediatamente melo. Procópio tenta relevar as maldades do coronel, dois lados: o significado e sua expressão” (p.217). passando por provações como Jó (seu nome é “José”, sugestivo à imagem de Jó), até na semelhança de eleA seguir, serão expostos alguns temas e simbologias mentos do versículo 3: “E era o seu gado sete mil encontrados no conto O enfermeiro, de Machado de ovelhas, e três mil camelos, e quinhentas juntas de Assis. Considerando-se que não há uma leitura única bois, e quinhentas jumentas”. para cada texto literário, a nossa visão acerca desta Por outro lado, caracterizando a personalidade do obra apenas busca a apreensão do enigma figurativo coronel, a simbologia da muleta (bengala) “é como um dos caminhos possíveis de interpretação, rereveladora de uma fraqueza, mas essa fraqueza forçando a idéia de que a Literatura tem a sua maneipode ser autêntica ou simulada (...) Simulada é a ra própria e especial de narrar o mundo. dos (...) que fingem uma fraqueza exterior para melhor dissimular sua força maléfica” (Chevalier, 1990:623-4) - como é o caso do coronel Felisberto, que sempre provocava o enfermeiro, submetendo-o a humilhações, golpes de bengala etc. Felisberto possuía A simbologia no conto O enfermeiro, “uma espécie de riso maligno” (p.131) e parecia de Machado de Assis. O conto O enfermeiro é narrado em primeira pes- desejar que o enfermeiro cometesse o crime, talvez soa, como um ato de confissão que o narrador convicto de que somente transgredindo um dos Dez autodiegético realiza por escrito, dias antes de sua mandamentos, haveria a garantia de que o herdeiro morte, sobre o assassinato do coronel Felisberto. A praticaria o sermão da montanha para redimir-se. No primeiro momento estabelece-se uma relação simbologia da confissão na tradição bíblica implica a “confissão das faltas cometidas, e não a lembran- de provação entre o bem e o mal, estando Felisberto e ça dos atos bons (...) A confissão simboliza aqui a Procópio ligados pelo ofício que intitula o conto, do qual vontade de se livrar do mal da falta” (Chevalier, podemos extrair o primeiro enigma figurativo: 1990:271). A confissão é o ato final de Procópio e é o que o faz distanciar a enunciação do enunciado, já que a fábula vai sendo construída num flashback de lembranças do narrador/protagonista. A nossa leitura de O enfermeiro volta os olhos principalmente aos textos bíblicos, considerando-os como o mito Discussão dos Dados Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 14-21, 1999/2001 17 Na primeira semana de convivência entre Felisberto e Procópio não ocorre nenhuma estranheza, nenhum antagonismo: “A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias” (p.131). A simbologia do sete “encerra, entretanto, uma ansiedade pelo fato de que indica a passagem do conhecido ao desconhecido: um ciclo concluído, qual será o próximo?” (Chevalier, 1990:828). A partir do oitavo dia, Procópio sofre transformações: • Primeira fase: o lado bom de Procópio (o seu lado Jó). As relações entre Procópio e Felisberto vão-se tornando difíceis, marcadas por antagonismos, em crescente tensão. Procópio tenta resistir ao sofrimento, como Jó:“entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão (...) com um ar de resignação e conformidade (...) No fim de três meses estava farto de o aturar (...) Eu, com o tempo, fui calejando (...) era burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo (...) Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade (...) trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão.” (p.132-3). Eis que a tensão entre paciente e enfermeiro chega ao seu limite máximo: “Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda” (p.134). Procópio, pobre mortal que é, perde a razão ao invés de seguir a lição do sermão da montanha - “Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra” (Lucas 6, 29) - estrangula o enfermo: “e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos e esganei-o” (p.134). • Segunda fase: a transgressão do Mandamento “Não matarás” (Êxodo 20, 13). 18 Procópio mata Felisberto e passa a ser perseguido pelo remorso: “Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado (...) Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas (...) eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino! (...) qualquer cousa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência (...) arrependia-me de ter vindo. - ‘Maldita a hora em que aceitei semelhante cousa!’ (...) Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso (...) mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele (...) ‘Caim, que fizeste de teu irmão?’ (...) Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém (...) Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência (...) vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...” (p.134-136). ...o estilo machadiano não tenciona enquadrar a humanidade distigüindo os bons dos ruins, mas nos conduz a um raciocínio realista, em que a provação trabalha com esses dois pólos do caráter humano, dialeticamente. • Terceira fase: redimindo o pecado com o sermão da montanha. Embora a primeira fase seja de ascensão representando o bem, e a segunda fase seja de queda, representando o mal, o estilo machadiano não tenciona enquadrar a humanidade distingüindo os bons dos ruins, mas nos conduz a um raciocínio realista, em que a provação trabalha com esses dois pólos do caráter humano, dialeticamente. No caso de Procópio, isto fica claro no imprevisível da terceira fase: Procópio tenta se redimir da culpa através de palavras, “fazendo muitos elogios ao morto” (p.136); e também com atos, quando “mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento” (p.136). Mas na verdade, ele tenta convencer a si mesmo de que não era culpado pela morte do coronel, tentando seguir o texto Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 14-21, 1999/2001 bíblico: “Bendizei os que vos maldos por Zeus (...) transformaramO nosso Procópio dizem, e orai pelos que vos caluse naqueles seres que os mortais niam” (Lucas 6, 28), elogiando o chamam os Bem-aventurados dos encarna a figura dos morto e mandando rezar a missa em Infernos, gênios inferiores, mas homens de ferro, num sua memória. que alguma felicidade ainda mundo doente, cético, Ao ser designado o herdeiro uniacompanha (...) Os homens de cheio de (des)culpas; versal no testamento do coronel, bronze, culpados (...) do excesso Procópio encontra um meio de se de sua própria força terrificante, ele é o enfermeiro e o redimir: “receberia a herança e sucumbiram às suas próprias enfermo deste círculo dá-la-ia toda, aos bocados e às mãos e partiram para o Hades vicioso. escondidas. Não era só escrúpu(...) Quanto à raça divina dos lo; era também o modo de resgasemideuses, ela habita, de coratar o crime por um ato de virtução leve e sem cuidados, as Ilhas de; pareceu-me que ficava assim de contas saldas” dos Bem-Aventurados” (Chevalier, 1990:244-5). O (p.137). Contudo, com o passar do tempo, Procópio nosso Procópio encarna a figura dos homens de ferro, rende-se à ambição, ao apego material, à “tênia mo- num mundo doente, cético, cheio de (des)culpas; ele é ral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, o enfermeiro e o enfermo deste círculo vicioso. recompunha-se e ia ficando” (p.138), sentindo denO mesmo fim de Felisberto acaba tendo Procópio tro de si “um prazer, um demônio ruim, que eu sin- (o seu nome é sintomático: pró/cópia), que adoece e ceramente, buscava esganar” (p.138 nota). deixa o seu “documento humano” (o narrador diriO seu lado humano, fraco, pecador, domina o seu ge-se claramente a um destinatário, que supomos ser lado Jó (que Deus descreve como “homem sincero e um enfermeiro) confessando seu pecado maior ao reto, temente a Deus, e desviando-se do mal” ) - seu futuro herdeiro: “leia isto e queira-me bem; perProcópio, “não sendo religioso” (p.136), escreve o doe-me o que lhe parecer mau” (p.130). Esta conseu próprio sermão cético: “Bem-aventurados os que fissão escrita será revelada apenas após a morte de possuem, porque eles serão consolados” (p.139) e, Procópio; este segredo é “fonte de angústia pelo sendo assim, fica convencido de que o melhor cami- seu peso interior” (Chevalier, 1990:808). Ao adoenho era usufruir da herança, ao invés de doar tudo aos cer, Procópio aguarda sua própria morte com resigpobres - “distribuí alguma cousa aos pobres, dei à nação - “pode ser que oito dias, se não for mematriz da vila uns paramentos novos, fiz uma es- nos; estou desenganado (...) Não tarda o sol do mola à Santa Casa de Misericórdia, etc.: ao todo outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como trinta e dous contos. Mandei também levantar um a vida” (p.130). túmulo ao coronel, todo de mármore” (p.138). Na Na simbologia, o oitavo dia na tradição cristã, sesimbologia o túmulo, segundo Jung, “é o lugar da gundo Santo Agostinho, “assinala a vida dos justos metamorfose do corpo em espírito ou do e a condenação dos ímpios (...) é o símbolo da renascimento que se esboça; mas é também o abis- ressurreição, da transfiguração, anúncio da era mo onde o ser é devorado pelas trevas passagei- futura eterna.” (Chevalier, 1990:652); e o Sol “imorras e fatais.” (Chevalier, 1990:915). tal nasce toda manhã e se põe toda noite no reino Os trinta e dois contos doados nos levam à dos mortos; portanto, pode levar com ele os hosimbologia do número cinco (3+2=5), que “ é o nú- mens e, ao se pôr, dar-lhes a morte” (Chevalier, mero da existência material e objetiva (...) O 1990:836). O sol pode representar também o olhar diQuinário é o número da criatura e da individuali- vino sobre os pecadores terrestres: por mais que dade” (Chevalier, 1990:245). Além disso, o número Procópio busque justificativas para a morte de cinco também pode ser relacionado à obra Os traba- Felisberto, no fundo ele sabe que nada escapa aos olhos lhos e os dias, do poeta grego Hesíodo, que afirma ter de Deus. sido a terra habitada por 5 humanidades sucessivas O conto finaliza parodiando ironicamente o sermão (homens de ouro, de prata, de bronze, os semideuses, da montanha: “Bem-aventurados os que possuem, até chegar a nossa geração que é a dos homens de porque eles serão consolados” (p.139) e na leitura ferro). A primeira geração “se tornaram guardiães dos versículos bíblicos (Mateus 5), podemos perceber da terra (...) seus sucessores, os homens de prata, o tom cético que Procópio adota ao formular o seu culpados dos mais loucos excessos, foram sepulta- próprio sermão: Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 14-21, 1999/2001 19 “3. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus; 4. Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados;” (Bíblia Sagrada. Mateus 5, 3-11. Ver também Lucas 6, 20-29). Considerações Finais As “isotopias” (Fiorin) verificadas no conto revelam uma relação do homem com o divino, coincidindo com o “mito de interesse”(Frye) construído com passagens bíblicas (o sermão da montanha, a ira de Caim, a infração de um dos Dez Mandamentos e o livro de Jó). E evidenciando as várias “marcas” (Frye) prenhes de significados e desmetaforizados pelo seu apelo simbólico (a exemplo da simbologia dos numerais sete, cinco e oito) construímos o tema principal deste conto machadiano, como uma leitura possível e coerente, que é a provação humana. Ao assumir a função de enfermeiro, Procópio tenta exercitar o seu lado Jó de auxiliar o enfermo e relevar a ignorância, recebendo injúrias e até golpes de bengala; passa por períodos de isolamento total como se fosse um monge ou um iniciante ao seminário (“havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio”, p.133). Mas o fato principal vai ocorrer na “noite de vinte e quatro de Agosto” e aos quarenta e dois anos do protagonista. Esta coincidência numérica guarda a simbologia do número Seis (note o jogo de espelho: 2+4 ou 4+2 = 6): “o senário marca essencialmente a oposição da criatura ao Criador, em um equilíbrio indefinido. Essa oposição não é necessariamente de contradição; pode marcar uma simples distinção, mas que virá a ser a origem de todas as ambivalências do seis (...) Pode inclinar-se para o bem, mas também para o mal; em direção à união com Deus, mas também com a revolta (...) É a perfeição (...) Mas essa perfeição virtual pode abortar e esse risco faz do 6 o número da prova entre o bem e o mal” (Chevalier, 1990:809). No desfecho irônico de Procópio, encontra-se o tema filosófico do conto - trata-se de uma visão pessimista da condição humana na terra, num “documento humano” (p.130): o poder material é capaz de consolar os pecadores; mas somente através do pecado, o 20 homem tenta redimir-se, dedicando-se a atos caridosos. Caso não houvesse uma transgressão de um dos Dez mandamentos, quais motivos teria o homem em praticar voluntariamente o sermão da montanha, dividindo seus pertences com atos caridosos? Subentende-se que o coronel quisesse redimir-se de seus pecados ( pois “ ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros”, p.132) deixando a herança para o pobre enfermeiro; por sua vez, Procópio assassina Felisberto (ferindo um dos Mandamentos) inconsciente de que seria ele o seu herdeiro universal. Suponhamos que Procópio herdasse a fortuna tendo o coronel falecido por causa da doença, será que o herdeiro seria motivado a praticar as lições do sermão da montanha? E Procópio parece percorrer o mesmo caminho do coronel, supostamente deixando a sua herança a um enfermeiro (o narratário a quem se dirige), pedindo-lhe: “pague-me também com um túmulo de mármore” (p.139). Pôr o ser humano à prova divina é como colocá-lo numa encruzilhada para desvendar o mistério do seu íntimo, de seu caráter. Afinal, se todos resistissem bravamente como Jó, o homem seria muito mais previsível. E o ser pode ocultar os seus piores pecados de seus semelhantes, mas não consegue ocultá-los de Deus, porque o sol “impenetrável como a vida” (p.130) nasce todos os dias e é o “olho do Deus supremo” (Chevalier, 1990:836). Pôr o homem à prova, entre o bem e o mal é crucificá-lo: “O sacrifício da cruz era necessário e necessária, em conseqüência, a morte do Cristo para que o homem fosse libertado dos efeitos do pecado” (Chevalier, 1990:312), segundo a teologia da redenção. Na Divina Comédia, Dante “mostra a cruz no meio do céu estrelado, cercada de bem-aventurados em adoração. A cruz é, então, o símbolo da glória eterna, da glória conquistada pelo sacrifício...” (Chevalier, 1990:312). Portanto, o ponto de tensão máxima do conto centrado no assassinato do coronel Felisberto, resgata os valores do sermão da montanha, numa prática que implica a redenção de um pecado na busca pelo perdão. O sacrifício que leva Procópio a tentar escalar a montanha dos Bem-aventurados. A provação humana representada na obra machadiana, com o tom irônico e cético, permeada pela No desfecho irônico de Procópio, encontra-se o tema filosófico do conto trata-se de uma visão pessimista da condição humana na terra... Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 14-21, 1999/2001 polifonia dos textos bíblicos e por enfermo: Felisberto morre e deixa Portanto, o ponto de vozes de outras obras (Hesíodo e sua herança a Procópio, que toma tensão máxima do conto Dante), nos permite estabelecer sio lugar do primeiro e no fim da vida centrado no assassinato tuações protagonizadas pelo horepete o mesmo ciclo, tornando-se mem em seu íntimo. Este é um dos enfermo e novamente deixando sua do coronel Felisberto, grandes méritos da obra literária: pôr herança ao próximo enfermeiro. resgata os valores do a cru as possibilidades infinitas de Mas o que realmente parece servir sermão da montanha, enxergar o ser do homem, já que a de pano de fundo a esse círculo vinuma prática que implica mimesis permite ao autor esta relacioso é a enfermidade do mundo, ção franca entre criador e criatura. ou seja, aquela tênia moral. a redenção de um pecaO que nos interessa não é a imitaPortanto, todas estas possibilidado na busca pelo perdão. ção do homem, representá-lo numa des ganham densidade à medida em pretensa cópia de como ele é, mas que o leitor penetra no imaginário experimentar todas as possibilidades de como poderia criado pela obra, munido de uma visão semiótica caser - eis aí a poética do texto literário, que eleva o mito paz de reconhecer a simbologia latente nas palavras e, a um nível universal. assim, passar pela insubstituível experiência de vivenciar O título do conto se justifica pelo círculo vicioso a leitura num horizonte muito mais amplo e profundo que acaba sendo estabelecido entre o enfermeiro e o que a obra literária sempre nos oferece. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. 3ed., São Paulo: Ars Poetica, 1993. BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Pesquisas semiológicas. 4ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1976. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 2ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. COSTA LIMA, Luiz (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 3ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997. ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática, 1991. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 4ed., São Paulo: Contexto, 1994. FRYE, Northrop. O caminho crítico. Um ensaio sobre o contexto social da crítica literária. São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates, 1973. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 2ed., São Paulo: Ática, 1985. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. 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Palavras-chave: Autores Latinos; Escritores Brasileiros; Obras Neolatinas. In this paper i am going to show some brazilian authors who deal with Latin Literature, after saying about the unforgivable scorn that the searchers of Historical Literature have with the authors and works more significant of this literary branch. This is a didatic exposition, so i present the authors (who were object of my searches) by parts chosen among the more meanful works, thus the readers are going to be able to evaluate the importance of Anchieta, Castro Lopes and Vieira as real latin writers in brazilian context. Keywords: Latin Authors; Brazilian Authors; Literary Works 22 LITERATURA BRASILEIRA DE EXPRESSÃO LATINA João Bortolanza* A Literatura Brasileira tem uma faceta importante e pouco conhecida, a vertente clássico-humanista, escrita em Latim. Anchieta foi o primeiro novilatino significativo com mais de 10.300 versos latinos, além de sua produção em prosa latina. Silva Belchior publicou em plena época de 90 Carmina Drummondiana e Carmina Pessoana, versão de alguns poemas seletos de ambos os poetas da atualidade: um veio rico , portanto, que merece maior enfoque. Estranha-se, ao se abrirem nossos compêndios de Literatura Brasileira, ver o pouco espaço que é dado a este veio de nossa Literatura, com um tratamento às vezes preconceituoso, indigno da probidade científica, como o que é dado a autores como Anchieta e José Rodrigues de Melo por Sílvio Romero: Obrigado a tratar somente dos espíritos autonômicos e investigadores do pensamento nacional, nada tenho a falar sobre alguns enfastiados, que, se diz, escreveram aqui no primeiro século alguns versos latinos, ou coisas de laia semelhante, que se perderam. São quase todos tipos mortos, estéreis, inúteis. Sufocados pelo culteranismo jesuítico, desprendidos da consciência nacional, para cuja determinação nada contribuíram, passaram a vida a versejar sensaborias e não têm o direito de figurar na história. (1943, Vol. II, p 397) Nada se terá que ver com alguns frades despreocupados ou ociosos que mataram o tempo a escrever versos latinos, ou a publicar sensaborias em Roma. (1943, Vol. I, p. 58). Enquanto em Portugal os Padres Antônio dos Reis e Manuel Monteiro de 1745 a 1748 deram à luz 8 volumes do Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum qui latine scripserunt; enquanto em Coimbra existe um Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos com grande produção, aqui no Brasil ainda pouco se pesquisou e divulgou sobre a nossa Literatura de Expressão Latina. A UNESP de Assis, apenas na década de 70, sob a coordenação do Prof. Dr. Enio Aloísio Fonda, criou o Archivum Generale Poetarum Latinorum Brasiliensium, o primeiro e único a explorar esse tema. Como pesquisador dessa linha de pesquisa, vou destacar alguns nomes e algumas obras, especialmente os que foram e ou estão sendo objeto de minha pesquisa: Antônio de Castro Lopes, Pe. José de Anchieta e Pe. Antônio Vieira. Edição de 1997, pela Editora da UEPG, de Ponta Grossa, veio à luz o resultado de uma longa pesquisa e de um excelente trabalho de Crítica Textual ou Ecdótica, com o título Temas Rurais do Brasil, em edição bilíngüe, com introdução, tradução e notas dos professores Raul José Sozim e Sérgio Monteiro Zan. Trata-se do poema didático, nos moldes das Geórgicas * Doutor em Letras pela UNESP Assis (1994) com Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra 1998/1999, Professor de Língua e Literatura Latinas e Filologia Românica na UFMS./ Campus de Dourados. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 23 de Virgílio, bem do gosto da nossa Apologética ao poema o Uruguay, Castro Lopes escola neoclássica, De Rusticis em que o Pe. Kaulen deixa claro que dá um tom Brasiliae Rebus Carminum Libri IV as composições que Termindo Sipílio, do Pe. José Rodrigues de Melo, edipseudônimo de Basílio da Gama, apreclassicizante a sua tado em Roma em 1781, tendo em sentava na Arcádia Romana eram tradução livre, apêndice o De Sacchari Opificio feitas pelos Jesuítas; embora cite a produzindo versos Carmen do Pe.Prudêncio do Amaral, Bibliografia Brasileira do Período que não raro superam corrigido e completado pelo Pe. Colonial em que Rubens Borba de Jerônimo Muniz. Obra calcada em Morais referenda as suspeitas do Pe. o próprio original Cultura e Opulência do Brasil de Kaulen, afirmando que são várias as de Gonzaga. André João Antonil, pseudônimo de semelhanças com o De Rusticis outro jesuíta, o Pe. João Antônio Brasiliae Rebus do Padre José Andreoni, o De Rusticis Brasiliae Rodrigues de Melo – não seria com Rebus também procura mostrar as riquezas da Colônia. o Antonil? – simplesmente assume como óbvia a autoria. Os primeiros dois livros tratam da cultura e da utilização Preciosa é a contribuição do Pe. Serafim Leite, com da “raiz brasílica”, isto é, a mandioca; o terceiro, da cria- seus 10 volumes da História da Companhia de Jesus ção do gado; o quarto, do cultivo da erva nicotiniana, o no Brasil. Ao falar do Padre Francisco da Silveira, jesutabaco. Em vez da mineração do Ouro, acrescenta em íta nascido em Açores em 1718 e que professou no Braapêndice De Sacchari opificio, sobre o Açúcar. sil até a expulsão, transcreve (Vol. IX: 127) Sommervogel: Surge então outro problema para a Crítica Textual: Poemas das Minas de Oiro : “Ha fatta uma lunga edita-se em Roma o Brasilienses Aurifodinae, constandescrizione dello scavo delle miniere dell’oro Del do como autor José Basílio da Gama, ex-membro da Brasile in versi latini exametri. Ma non l’ha fatta Companhia de Jesus e protegido dos Jesuítas para ter fin ora stampare.” acesso à Arcádia Romana. Faziam-lhe poemas latinos Traduzindo: “Fez uma longa descrição das espara que ele os expusesse nas sessões acadêmicas. Ao cavações das minas de ouro do Brasil em verque consta, José Basílio da Gama não escreveu um verso sos latinos hexamétricos. Mas até agora não a sequer em Latim – teria ele, tão jovem (nem 25 anos), fez ainda publicar. maturidade e preparo para escrever tão extenso e polêMuitos outros poetas novilatinos brasileiros foram mico tratado sobre as Minas de Ouro do Brasil? E justa- objeto de pesquisa, entre eles Manoel Botelho de Olimente na língua universal que era o Latim? Há até uma veira com sua Música do Parnaso, Dom Aquino dissertação de Mestrado recente (1992), de João António Correia e Pe. Pedro Sarneel, cuja poesia latina foi Lourenço Gonçalves, da Universidade de Coimbra, ori- publicada em 1973 pelo Prof. Dr. Enio Aloisio Fonda. entado pelo preclaro Professor Américo da Costa Atenho-me, enfim, aos 3 poetas novilatinos brasiRamalho, Contributos para a História Económica e leiros que foram e continuam sendo objeto de minha Social do Brasil. Embora lembre a Resposta pesquisa. 1. ANTÔNIO DE CASTRO LOPES (Rio de Janeiro, 1827-1901) e sua Musa Latina Sem dúvida um dos maiores latinistas brasileiros, Castro Lopes foi uma figura polêmica que viveu no século passado na cidade do Rio de Janeiro, polígrafo, autor de várias obras nas mais diversas áreas. Sua gramática latina, Novo sistema para estudar a língua latina, teve 3 edições (1856, 1859 e 1879). Compôs também 915 versos latinos que em nada devem aos versos de Virgílio e Ovídio, como pude comprovar em minha tese de doutorado, Corpus da poesia latina de Antônio de Castro Lopes (1994). A maior parte de seus poemas latinos encontram-se em Musa Latina (edições de 1868 e 1887). Amaryllidos Dircaei aliquot selecta Lyrica in Latinum sermonem translata ad usum scholarum Brasiliensium é o subtítulo de Musa Latina, já que são 25 as Liras Seletas vertidas para o Latim por Castro Lopes, num total de 577 versos latinos. De 1995 a 1998, vim fazendo um paralelo entre ambas as versões e pude comprovar que Castro Lopes dá um tom classicizante a sua tradução livre, produzindo versos que não raro superam o próprio original de Gonzaga. Parte apenas dos resultados veio a público, v.g. a Lira I da 1ª Parte (Vide Clássica): 24 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 1. 2. 3. 4. 5. Rusticus, o Amaryllis, ego non, sole, geluque Torridus, alterius qui servem armenta, bubulcus: Fert oleum, fructus, fundus mihi, vina, legumen; Lacte ovium vescor, tegit et me lana mearum: Me fortunatum! tribuunt cui talia Divi! Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado, De tosco trato, d’expressões grosseiro, Dos frios gelos e dos sóis queimado. Tenho próprio casal, e nele assisto, Dá-me vinho, legume, fruta, azeite, Das brancas ovelhinhas tiro o leite E mais as finas lãs de que me visto. Graças, Marília bela! Graças à minha Estrela! Reduzindo à metade os versos, pela exclusão de perífrases e adjetivos internos, além das freqüentes invocações, tão ao gosto arcádico, Castro Lopes prima pelo verso conciso, dentro dos cânones clássicos. Comparem-se as versões de Gonzaga e de Castro Lopes da Lira XXX da 1ª Parte: 1. Ad claram mater lympham consedit Amoris Fulta manu vultus; advenit ecce sopor. 3. Prospicit hanc, illic currit laetusque Cupido; Deceptus specie tum oscula fronte rapit. 5. Irata expergiscitur; est mox cognita nato, Qui supplex orat, sic veniamque petit: 7.‘‘Te cernens, genetrix, Amaryllida cernere rebar, Namque Amaryllidis est vultus et ipse tuus. 1. Junto de uma clara fonte A mãe de Amor se sentou: Encostou na mão o rosto, No leve sono pegou. 3. Cupido, que a viu de longe, Contente ao lugar correu; Cuidando que era Marília, Na face um beijo lhe deu. 5. Acorda Vênus irada: Amor a conhece; e então Da ousadia, que teve, Assim lhe pede perdão: 7. “Foi fácil, ó Mãe formosa, Foi fácil o engano meu: Que o semblante de Marília É todo o semblante teu.” Esta Lira, como o excerto da Lira II infra, ambas de cunho anacreôntico, atêm-se aos cânones arcádicos, compõem-se de redondilhas maiores, dentro da lírica tradicional portuguesa, primando pela linguagem simples e singela, não dispensando, por outro lado, os ornatus da transgressio (inversão) e sobretudo da repetitio, num entrecruzar-se de figuras que revela certo cultismo de Gonzaga. 8. Promissi, haud flavi, nigrant per colla capilli, 9. Phoebei plus quam formosi; horumque colores 10. Pulchre miscentur vultus candore micanti. 11. Curva supercilia; ei frons est convexa, polita; 12. Dulciloquus, caste aspiciens; ei lumina soles; 13. Et superat caelum, bini nam fronte refulgent. 14. Purpureis commixta rosis sunt lilia vultu; 15. Ex ebore et dentes, carbunculus inque labellis. 11. Tem redonda e lisa a testa, Arqueadas sobrancelhas; A voz meiga, a vista honesta, E seus olhos são uns sóis. Aqui vence Amor ao Céu, Que no dia luminoso O Céu tem um Sol formoso, E o travesso Amor tem dois. 8. Os seus compridos cabelos, Que sobre as costas ondeiam, São que os de Apolo mais belos; Mas de loura cor não são, Têm a cor da negra noite, E com o branco do rosto Fazem, Marília, um composto Da mais formosa união. 14. Na sua face mimosa, Marília, estão misturadas Purpúreas folhas de rosa, Brancas folhas de jasmim. Dos rubis mais preciosos Os seus beiços são formados; Os seus dentes delicados São pedaços de marfim. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 25 O texto latino, em seu caráter mais classicizante, suprime adjetivos internos: compridos cabelos, negra noite, Sol formoso, travesso Amor, dia luminoso, face mimosa, brancas folhas de jasmim, rubis preciosos, dentes delicados; exclui perífrases: de loura cor, a cor da negra noite, folhas de rosa, folhas de jasmim; simplifica expressões: os seus compridos cabelos que sobre as costas ondeiam... mas de loura cor não são, têm a cor da negra noite < promissi, haud flavi, nigrant per colla capilli; dos rubis mais preciosos os seus beiços são formados; os seus dentes delicados são pedaços de marfim < “ex ebore dentes, carbunculus inque labellis”. Uma tradução mais ou menos literal permitirá estabelecer um paralelo e verificar as muitas mudanças introduzidas pela tradução livre de Castro Lopes, sobretudo o sintetismo latino, com 8 versos traduzindo 3 oitavas portuguesas (24 v > 8 v !): Longos, não loiros, negrejam-lhe pelos ombros os cabelos Que os de Apolo mais formosos; mesclam-se suas cores Maravilhosamente com o candor luzente de (seu) rosto. Arqueadas as sobrancelhas, é-lhe redonda e lisa a testa; De voz doce, de casto olhar; seus olhos, como sóis, Vencem o Céu, porquanto dois em sua fronte brilham. Lírios misturam-se a purpúreas rosas em seu rosto, Dentes de marfim e rubi nos labiozinhos. Um dos poemas de Castro Lopes de maior fortuna crítica é o poema deutoglota Ave, Aurora!, feito para poder mostrar a “consangüinidade” do Latim e do Português (Cf. BORTOLANZA, 1999, Boletim..., p. 91-94): Salve, aurora ! eia, refulge ! Eia, anima valles, montes ! Hymnos canta, o Philomela, Hymnos jucundos, insontes ! Quam pura, quam pudibunda Es tu, aurora formosa ! Diffunde odores suaves, Divina, purpurea rosa ! Eia, surge, vivifica Pendentes ramos, aurora ! Aureos fulgores emitte, Pallidas messes colora Matutina aura, mitiga Solares, nimios ardores; Salve, aurora ! eia, refulge! Eia, anima valles, montes ! Inspira gratos Favonios, Euros, Zephyros protectores. Eoa, Tithonia Diva, Fecundos campos decora, Canoras aves excita, O serena, bella aurora ! Protege placidos somnos, Inquietas mentes tempera, Duras procellas dissipa, Terras, flores refrigera. Extingue umbrosos vapores, O sol, o divina flamma ! Lucidas portas expande, Tristes animos inflamma ! Hymnos canta, o Philomela, Hymnos jucundos, insontes ! Brilhante é também sua versão latina do episódio “Ignez de Castro” de Os Lusíadas de Luís de Camões. Apresento apenas os primeiros 9 dos 72 versos (Cf. BORTOLANZA, 1999, Humanitas, p. 301-316): 1. Agnes interea, blande labentibus annis, Deliciis data, quas reddit fortuna fugaces, Pulchra quiescebat Mondae maerentibus arvis 4. Rorati lacrimis, caelatum pectore nomen, Et flores, montesque docens resonare. Vicissim Formosae Princeps Agnis reminiscitur absens, 26 Que a fortuna não deixa durar muito; Nos saudosos campos do Mondego, De teus formosos olhos nunca enxuito, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas, Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 7. Ante oculos defixa semper imagine vultus Quaeque videt, mendacia quaeque insomnia fingunt, Omnia laetitiae vestigia: 1. Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo o doce fruito, Naquele engano da alma ledo e cego, 5. Do teu príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus formosos se apartavam; De noite em doces sonhos, que mentiam, De dia em pensamentos, que voavam: E quanto enfim cuidava e quanto via Eram tudo memórias de alegria. Para celebrar o grande feito da inauguração, em 1854, do primeiro trecho de estrada de ferro do Brasil, compôs, com todo o preciosismo próprio dos centões poéticos, num apanhado de versos colhidos nos mais representativos poetas latinos, esta outra obra-prima sua: a Descripção de uma Estrada de Ferro. Em minha tese (1994), estabeleci o texto, traduzi-a e ubiquei os versos latinos: 1. Atque hic ingentem comitum affluxisse novorum 2. Invenio admirans numerum, matresque, virosque, 3. Undique collectam pubem, et miserabile vulgus. 4. Haud mora; prosiluere suis jam sedibus omnes; 5. Intenti exspectant signum; exit carcere currus. 6. Fit sonus; et toti senserunt sibila montes: 7. Consonat omne nemus strepitu, collesque resultant: 8. Inde fragore gravi strepitus loca proxima terret. 9. Advolat ille Noto citius, volucrique sagitta, 10. Tenuia vix summo vestigia pulvere signat; 11. Quae manet in statione, ea praeter creditur ire. 12. Evomit ad caelum picea caligine nubem 13. Faucibus ingentem; vacuas it fumus ad auras 14. Aestuat in clausis rapidus fornacibus ignis; 15. Implentur cuncta et nebula caliginis atrae. 16. Inde ruunt alii, magna stipante caterva, 17. Uma eademque via, certo neque ab ordine cedunt: 18. Rupis in anfractu rupem subiere cavatam. 19. Est specus in medio, vastoque immanis hiatu, 20. Efficiens humilem lapidum compagibus arcum: 21. Tum sonus auditur gravior, fragor intonat ingens, 22. Et silvae reboant, furit et mugitibus aether 23. Concussus, qualemve sonum, quum Jupiter atras 24. Increpuit nubes, extrema tonitrua reddunt. 25. Non tam grande sonat motis incudibus Aetna ! 26. Advolat ille, iterumque volat vapor ater ad auras: 27. Portarum vigiles nutu signisque loquuntur: 28. Antra subit, tofis laqueataque pumice vivo. 29. Progreditur; tenebris nigrescunt omnia circum; 30. Delituit caelum, et subito lux candida cessit; 31. Itur et obscuras sola sub nocte per umbras; 32. Quamquam et dependent lychni laquearibus altis, 33. Ut primum umbrosae penitus patuere cavernae, 34 . Extemplo tremefacta novus per pectora cunctis 35. Insinuat pavor, et tum facta silentia linguis. 36. Jam sole infuso, jam rebus luce retectis, 37. Tum per aperta volans est fulminis ocior alis, 38. Et studet optatam cursu contingere metam. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 1. Eis que encontro admirado enorme acorrência de novos companheiros afluindo de toda parte, homens e mulheres, grupos de jovens e a miseranda plebe. Logo em seguida, todos se dirigem a seus assentos e esperam atentos o sinal; sai o carro da estação. 6. Soa o apito; os montes todos ouviram o silvo, toda a floresta ressoa com o ruído que as colinas ecoam, enchendo de terror as cercanias com esse fragor colossal. O trem voa mais veloz que o vento Noto e que a seta ligeira, mal deixando à superfície leves vestígios do pó. 11. O que fica na estação parece estar deslocando-se para frente. O trem, de suas fauces, vomita para o alto espessa nuvem escura como o pez, eleva-se a fumaça pelos ares, e o fogo voraz arde nas suas cerradas fornalhas: tudo se cobre com a nuvem de negra fuligem. 16. De lá outros surgem desabalados formando uma grande esquadra, avançam impecavelmente por um e mesmo caminho sem sair da linha, penetrando pela fenda aberta da rocha. No meio dessa rocha há uma caverna de medonha e enorme boca, fomando no sopé da montanha um arco de pedras. 21. Ouve-se então um som mais forte, retumba um ingente fragor, reboam as matas e o ar atingido se enfurece com esses como que mugidos, ou como o estrondo que repercute dos trovões mais longínquos com que Júpiter fustiga as negras nuvens. Não ronca tão forte o Etna com suas bigornas em plena atividade ! 26. Ele voa, e junto voa o negro vapor pelos ares; comunicam-se com acenos e bandeiras os vigias das cancelas. Ei-lo que penetra pelos antros forrados de pedras e de rocha viva. Avança. Tudo em volta se cobre de trevas,o céu 27 se esconde, e de repente desaparece a clara luz do dia; 31. caminha-se na solidão da noite pelas sombras escuras. Embora dos altos tetos pendam lampiões, tão logo se penetra nas umbrosas cavernas, novo pavor logo assalta os já apavorados peitos de todos, e então o silêncio impera. 36. Eis que o sol aparece, eis que com a luz as coisas se desvendam, e o trem voa pelos descampados mais veloz que as asas do raio, e correndo busca alcançar a desejada meta. 2. PADRE JOSÉ DE ANCHIETA (1534-1597) O canarino Anchieta veio ao Brasil em 1553, aos 19 anos de idade, não antes de ter passado 5 anos por intenso tirocínio na Universidade de Coimbra. Lá aprendeu as Humanidades, tornando-se exímio na Língua Latina, um poeta novilatino. Sua produção poética latina compreende duas grandes obras: De Beata Virgine Dei Matre Maria, com quase 5800 versos e De Gestis Mendi de Saa, poema épico com 3135 versos. Além destes, De Eucharistia et Aliis Poemata Varia – título dado pelo Pe. Armando Cardoso à coletânea de vários poemas. Ao todo, foram 10300 versos latinos de qualidade que nos legou, ao lado de vasta produção em Língua Portuguesa, Tupi e Espanhola, sem contar com a sua prosa latina e a obra dramática. Primeiro grande épico deste novo País, o missionário Jesuíta Anchieta, de ótima formação humanista, encontrou no herói Mem de Sá as grandes façanhas para sua epopéia: foi o Governador que, em pouco tempo, conseguiu conter os índios, dominá-los, possibilitando com isso a presença do missionário catequizador. Desenhava-se o cenário de uma epopéia, com o triunfo da colonização portuguesa sob a égide da Cruz e da Espada, da Ideologia da Fé e Império, a que fará eco o grande poema épico de Camões, 9 anos mais tarde. Parece contraditório que Anchieta, que tanto amou os índios, a ponto de, no ano da 1ª edição da epopéia (1563), fazer-se espontaneamente refém dos índios na Confederação dos Tamoios, tenha cantado com altissonância os Feitos de Mem de Sá, o herói que dominou os índios que se opunham à dominação colonizadora do Português. É que, para Anchieta, foi isto que operou o verdadeiro herói, Cristo Rei, no seu plano de salvação: permitiu, através de seu herói terreno, que os bárbaros fossem catequizados e “salvos”, a libertá-los da dominação do terrível antagonista infernal. Assim surge De Gestis Mendi de Saa, a primeira epopéia nacional e primeira epopéia das Américas, até hoje a merecer maior divulgação, pela sua importância histórico-literária de Literatura Brasileira de expressão latina. Analisando o texto latino, estabelecido pelo Pe. Armando Cardoso, várias pesquisas vêm sendo desenvolvidas (por mim e por orientandos), com o projeto O Poema Épico De Gestis Mendi de Saa do Padre Anchieta: Lexicon Concordantiarum e Outros Estudos. A partir do estudo do léxico empregado, duas pesquisas já foram apresentadas em congressos internacionais: “A Ideologia da Adjetivação Indígena em De Gestis Mendi de Saa” e “A Mitologia Pagã em De Gestis Mendi de Saa”. Nesta, mostro como Anchieta, seguindo os cânones clássicos, serviu-se expressivamente da mitologia pagã. No texto latino, encontram-se mais de 300 alusões diretas a entidades mitológicas. Já, no texto português do Pe. Armando Cardoso, a maioria delas não consta. Isto se deve ao fato de Anchieta normalmente valer-se da metonímia: os epítetos pagãos referem-se a fenômenos da natureza, quando não são cristianizados. Assim, no mais das vezes, Apolo, Netuno, Vulcano, Minerva ou Marte, entre outros, são empregados como sinônimos de, respectivamente, o sol, o mar, o fogo, a arte ou a guerra. Outras vezes, são as figuras infernais ou celestiais que passam a integrar a dominante mitologia cristã da epopéia: Styx, Cerberus, Dis ou seu epíteto Tyrannus, Acheron, Infernus, Bellua, Chaos empregam-se dentro do contexto infernal e diabólico cristão, enquanto Olympus, Altitonans ou Tonans, Superi, Aether e aethereus, Superus Parens etc passam a referir-se ao Céu cristão, a Deus Pai. 28 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 O maravilhoso pagão, nesta epopéia, não representa o Fatum, a força suprema a mover o imo dos acontecimentos, a operar as Mirabilia ad aeternum memoranda, deixando ao herói humano um papel secundário, como o foi para Camões em Os Lusíadas, que veio à luz 9 anos mais tarde (1572). Em Anchieta, o verdadeiro Herói pertence ao maravilhoso cristão e o heroísmo do herói humano advém de sua consonância com os ditames daquele. Aliás, em Camões, o maravilhoso cristão parece às vezes sobrepor-se ao maravilhoso pagão. Na comunicação “A Ideologia da Adjetivação indígena...”, expus o resultado de um minucioso levantamento dos adjetivos empregados por Anchieta ao se referir aos índios. Referindo-se aos habitantes do Brasil, emprega, entre outros, os seguintes substantivos: gens, natio, tellus, brasillia, brasilles, indus, populus, hostis, catervae, turmae, agmina e turbae. Raramente estes aparecem sem o qualificante, quando não mais de um. Farta adjetivação com o sema da “crueldade/ferocidade”: os índios brasileiros são vistos como saevi, feri, crudeles, immanes, atri, cruenti, diri, atroces, feroces e sanguinolenti, tendo sido levantadas 162 ocorrências. Cruéis duma ferocidade selvagem, muitas vezes comparada e enfocada como superior à dos lobos, leões e tigres, perigosos sobretudo para o ser humano, uma vez que este instinto sanguinário é apontado como parte do caráter indígena, os índios só poderiam mudar seus costumes se domados. É que, além desse encarniçamento, são bárbaros, hostis, indômitos e soberbos (60), infrenes em seus vícios, ávidos de sangue humano. Entre os adjetivos, cumpre destacar as 25 ocorrências de humanus, à primeira vista sem conotação desabonante, mas que, no texto, qualificam normalmente a antropofagia: carne (11), sangue (7), corpo ou membros (4) humanos. Entre os excertos, vejam-se, por exemplo, estes hexâmetros iniciais a referirem-se ao prius (período anterior aos Feitos de Mem de Sá), omitindo-se os alternados pares que mostram o resultado da ação do herói: 3 Jam fera deposuit tumidos Brasillia fastus 5 Quae prius horrendo funesto furore gerebat 7 Quae prius umbrosis degebat condita silvis 9 Quae rabidis hominum rodebat corpora malis 11 Quae saeva humanum sugebat fauce cruorem Brasillia / Fastus Furore Brasillia / silvis Malis (queixadas) fauce / cruorem À ferocidade e ao orgulho acresça-se o caráter de selvagem arredio a esconder-se nas sombrias florestas. Completa-se este quadro, logo a seguir, quando o Poeta, nesta 1ª descrição do indígena brasileiro – Gens fuit australis –, desvenda sua concepção a respeito do habitante desta nova Terra, pertencente ao reino do antagonista infernal de que só poderá ser tirado com a intervenção sobrenatural: o verdadeiro Herói decide enviar o “semideus” salvador a estas “humano sudantes sanguine terras”, a esses “loca sepulta nocte horrifica”, a dizimarem as “Christicolas gentes”: 131 Obtenebrata diu barathri caligine caeci, Gens fuit australis, saevi subjecta tyranni Colla jugo, cassum divini luminis aevum Traducens, multisque malis immersa; superba, 135 Effrenis, crudelis, atrox, fusoque cruenta Sanguine: docta necem rapidis inferre sagittis; Immanesque tigres feritate luposque voraces Et rabidos superare canes saevosque leones, Humanis avidam pascebat carnibus alvum. 140 Multa diu scelera intentans, immanibus atri Regnatorem Erebi, (qui mortem primus in orbem Induxit, primus seducens fraude parentes), Sponte sequens factis, multorum corpora saevo Discerpens leto, crudele superba furore 145 Christicolas multo populabat funere gentes; Donec ab aethereis spectans regionibus oras Brasilles Pater omnipotens, loca nocte sepulta Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 Caligine Gens / Tyranni / Colla Malis / Gens Gens / Sanguine/ Gens Gens Tigres / Lupos Canes / Leones Carnibus / Alvum Scelera / Factis / Erebi Leto Furore / Gens Funere Oras / Loca Nocte / Sanguine / Terras 29 Horrifica, humano sudantes sanguine terras, Misit ab Arctois ultoris criminis oris, 150 Criminis infandi ultorem; qui pelleret iras Crudeles terra; qui funera dira, cruentis Perpetrata modis, compesceret, horrida sedans Bella, feros animos mulcens, rabidisque cruorem 159 Rictibus humanum pasci non ferret inultus. Criminis Iras / Funera / Modis Funera / Bella Animos / Rictibus Cruorem / [Ille] Não muito diferente é este outro trecho selecionado, em que se descreve o Tamuya da capitania do Espírito Santo, a justificar o primeiro grande Feito de Mem de Sá – obrigá-lo a aceitar a presença da colonização portuguesa – enviando uma expedição sob o comando de seu filho Fernão, posto que o pequeno grupo lusíada estava prestes a ser dizimado: 199 Terra procul paucis colitur fecunda colonis, (...) 204 Spiritus hanc sacro designat nomine Sanctus, 205 Lysiadum cultam populis; quos horrida contra Bella movens Tamuya ferox, (id nomen avorum Hostis habet saevus), damna infert plurima passim, Devastans agros fecundaque fructibus arva; Abducensque homines, it praeda victor abacta, 210 Captivoque avidos impinguat sanguine ventres. Jamque omnes variis concurrere partibus hostes, Et saevam glomerare manum, populentur ut omnem Christiadum populum; furit imis ira medullis Et belli vesanus amor carnisque cupido 215 Humanae; gliscunt insano corda furore, Et, ni dextra Dei coeptis crudelibus obstet, Auxilium caeleste ferens, gentemque superbam Bellorum ardentem furiis avidamque cruoris Disturbet, saevo jam protinus omnia Marte 220 Incestent, madidentque piorum sanguine terram. (...) 243 “Cernis ut innumero crudeles agmine gentes “Praelia Christiadum populo truculenta minentur 245 “Indignamque necem; jamjam et cervicibus instent, “Non secus ac saevae carpturae corpora tigres, “Hausturaeque pium sitienti fauce cruorem. Colonis / Terra Terram / Bella Tamuya Hostis / Damna Tamuya Tamuya / Praeda Sanguine /Ventres Manum Medullis Amor Carnis / Furore Coeptis Gentem Gentem / Gentem Marte Agmine / Gentes Praelia Necem Tigres Tigres / Cruorem / Fauce Observe-se também este Finale: 3048 Et mundi extremos penetravit adusque Japones. Te quoque adorabit caecis erepta tenebris, 3050 Divinae exortu lucis radiata micanti Natio, quae humana pascit fera viscera carne, Et subjecta Noto noscet tua nomina tellus; Aureaque australi succedent saecula mundo, Cum tua Brasilles servabunt dogmata gentes. Japones Tenebris / Natio Lucis / Natio / Exortu Carne / Viscera Tellus / Nomina Saecula / Mundo Dogmata / Gentes Pode-se concluir, ante o exposto, que a adjetivação indígena em De Gestis Mendi de Saa, dada a abundância com que é empregada e considerada a sua carga semântica, mostra em Anchieta um lídimo representante da Ideologia da Fé e Império, a que não escapará o próprio Camões em Os Lusíadas, logo depois, em 1572. Como toda ideologia, peca pela parcialidade: insiste-se naquilo que vem a justificar os fatos — e não se está aqui a duvidar das boas intenções do Venerável Apóstolo do Brasil — deixando-se de destacar o que levou os índios a 30 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 esta hostilidade, com as várias tentativas de escravização, com a prepotência de alguns colonizadores. Há referências sim a estas “culpas” dos portugueses, mas estão diluídas, restritas a pequenas alusões. As pistas do texto, através do caminho da adjetivação, como também poderia ser o dos verbos, evidenciam a ideologia que é a razão de ser deste grande feito poético de Anchieta. 3. PADRE ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697) O Padre Antônio Vieira é, sem dúvida, um dos escritores em Língua Portuguesa que mais despertou o interesse da crítica. O poeta latino Vieira, no entanto, está a merecer maior destaque: urge uma edição crítica de seus poemas. Dentro de meu projeto de Pós-Doutorado, “Poesia Novilatina Luso-Brasileira”, pude recolher boa parte da fortuna crítica dos seus poemas latinos. Apresento aqui em parte o poema de maior fortuna: Cortex Eucharisticus, id est, Sacrae Pyxidis ex cortice affabre elaboratae descriptio, conforme o título do códice 166 do Fondo Gesuitico da Biblioteca Nazionale Centrale de Roma. Foi este um poema de ocasião. Vieira se achava em Santarém, para pregar nas exéquias do seu padrinho de batismo, primeiro conde de Unhão, D. Fernão Teles de Meneses, quando, a 06 de maio de 1651, se inaugurou com grande pompa a nova sede, os Paços doados por D. João IV aos Jesuítas (RODRIGUES, 1994, P.14). Foi o orador também desta grande solenidade. Encantou-se ele ante a simplicidade da capela improvisada e sobretudo do altar e píxide artisticamente elaborados em cortiça pelo Padre Sebastião de Novais. (Seria o mesmo Padre Novais que iria dirigir os trabalhos de construção da nova igreja nos anos posteriores. Seria também um outro padre jesuíta, Antônio Vieira, dito de Arraiolos, quem iria concluir a obra, nos anos de 1712 a 1716. Op. Cit., p. 15). Isto se atesta na tradição impressa, em que, ao título Pixis, seu Cortex Eucharisticus, se acrescem os seguintes dizeres: Pyxidem eucharisticam e suberis cortice miro artifício fabrefactam, et sculpturae artis legibus ingeniosissime inventam, conditamque a Patre Sebastiano de Novais Societatis Jesu, canebat, modulatissime, merum fundens ab ore melos, P. Antonius Vieira, ut in divinis, sic in humanioribus litteris apprime excultus. Estava o humanista Vieira diante de motivo ímpar para “reacender os extintos fogos e a chama que arrefece com a idade”, compondo versos em Latim, língua ainda universal nos meios cultos. O “milagre” da cortiça transformada em “casa” da Divina Presença Eucarística oferecia-lhe um tema predileto para seus malabarismos verbais e conceptuais. Apresento apenas os primeiros 26 versos: CORTEX EUCHARISTICUS, id est, Sacrae Pixidis ex cortice affabre elaboratae descriptio 1. Quo me Musa rapit, longumque relictus Apollo? Exstinctos iterum, juvenes quos lusimus, ignes, 3. Frigentemque aetate jubet recalescere flammam? Corticis est, quae forma senem pulcherrima vatem 5. Concipere Aonios effeta mente furores, Suspensamque lyram, fractumque resumere plectrum 7. Cogit, et oblitos reminisci carmine fontes. Corticis est, non ficta cano: vos lumina testes, 9. Vosque manus, tentastis enim, nec lusit imago. 10. Corticis est: o quanta sacer miracula cortex Et tegit, et prodit, certantque patentia tectis! Mysterii jam clara fides: si talia cerno Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 1. Para onde me arrebata a Musa, e Apolo, por muito tempo abandonado? Manda ele reacender os extintos fogos com que nos divertimos na juventude e a chama que arrefece com a idade? 4. É a forma da cortiça que, lindíssima, impeliu o vate já velho a conceber na mente exaurida os estros aônios, a retomar a lira suspensa e o plectro quebrado e a relembrar num carme as fontes esquecidas.8. É mesmo de cortiça, não canto ficção: com efeito, vós, olhos, sois testemunhas e vós, mãos, apalpastes e a imagem não vos iludiu. 10. É de cortiça! Oh! quantos milagres a sagrada cortiça a um tempo encobre e manifesta! e como porfia o manifesto com o oculto! Já se aclara a fé misteriosa: se reconheço que a arte mortal reali31 13. Mortalem fecisse artem, quid credere dignum est Divinas potuisse manus? De cortice Pyxis, 15. Nomine maius opus, solique aequabilis ipsi Ingenio Artifici, de cortice fabrica surgit, 17. Quam non Vulcanus ferro, non Daedalus auro, Marmore Praxiteles, nec pluma auderet Apelles. 21. Fundamenta locat cortex, de cortice membra Adsurgunt, cortex calicem, cortexque columnas 23. Erigit, excelsos cortex sinuatur in arcus; Cortice pyramides crescunt, fastigia cortex 25. Culminat, Angelici spirant in cortice vultus; Cortice poma tument, nascuntur cortice flores, 27. Pallentes flores omnes; sed forma colorem Distinguit, variatque, ac puro cortice pingit. zou tais prodígios, o que é digno crer possam as mãos divinas fazer? 14. Surge da cortiça uma Píxide, obra maior do que o nome e só igual em engenho a tão grande artista; brota da cortiça um artefato, que Vulcano não se teria atrevido a extrair do ferro, nem Dédalo do ouro, nem Praxíteles do mármore, nem Apeles do seu pincel. 21. A cortiça estabelece a base, da cortiça se erguem as partes; a cortiça eleva o cálice; a cortiça eleva as colunas; a cortiça se recurva em excelsos arcos; da cortiça crescem pirâmides, a cortiça sobreleva a parte superior, em cortiça respiram os vultos angélicos. 24. De cortiça tumescem frutos, de cortiça nascem flores, todas de cor pálida, mas a forma, em pura cortiça, lhes distingue, varia e pinta a cor. Cumpre salientar que a edição crítica está em andamento. Exponho aqui apenas aspectos do que apresentei no XI Simpósio Nacional de Estudos Clássicos. Para mostrar a maestria do “retórico” Vieira, aponto infra algumas figurae elocutionis da repetitio: observe-se como se distribuem por todo o texto, desde a epímone de CORTEX (destacada em maiúsculas). Abundam a anáfora e a epanalepse, o poliptoto e a figura etimológica, epíforas, polissíndetos, a palilogia ou ritornelo, anadiploses, diáforas, homeoteleutos, aliterações e toda uma série de recursos à mão do artista barroco, a incluílo entre os melhores cultistas. De fato, mesmo aliadas ao labirinto conceptista em que os conceitos se cruzam e entrecruzam, sempre a gerarem novas seqüências, estas figuras não tolhem ao estilo de Vieira a clareza, a graça e a arte persuasória que o tornam exemplar em tudo o que escreve. Enaltecem-no poeta latino de primeira grandeza. 1. Quo me Musa rapit, longumque relictus Apollo? 2. Exstinctos iterum, juvenes quos lusimus, ignes, 3. Frigentemque aetate jubet recalescere flammam? 4. CORTICIS est, quae forma senem pulcherrima vatem 5. Concipere Aonios effeta mente furores, 6. Suspensamque lyram, fractumque resumere plectrum 7. Cogit, et oblitos reminisci carmine fontes. 8. CORTICIS est, non ficta cano: vos lumina testes, 9. Vosque manus, tentastis enim, nec lusit imago. 10. CORTICIS est: o quanta sacer miracula CORTEX 11. Et tegit, et prodit, certantque patentia tectis! 12. Mysterii jam clara fides: si talia cerno 13. Mortalem fecisse artem, quid credere dignum est 14. Divinas potuisse manus? De CORTICE Pyxis, 15. Nomine maius opus, solique aequabilis ipsi 16. Ingenio Artifici, de CORTICE fabrica surgit, 17. Quam non Vulcanus ferro, non Daedalus auro, 18. Marmore Praxiteles, nec pluma auderet Apelles. 19. Fundamenta locat CORTEX, de CORTICE membra 20. Adsurgunt, CORTEX calicem, CORTEXque columnas 21. Erigit, excelsos CORTEX sinuatur in arcus; 22. CORTICE pyramides crescunt, fastigia CORTEX 23. Culminat, Angelici spirant in CORTICE vultus; 32 Figura etimológica Concinnitas Concinnitas Poliptoto/ Ritornelo: Corticis est Concinnitas Aliteração Concinnitas Figura etimológica Mesarquia Epanalepse poliptótica Epanalepse poliptótica / Polissíndeto Isócolo / homeoteleuto Mesodiplose / isócolo Fig. etimológica Começa longa epímone “CORTEX” Poliptoto / isócolo / anáfora de colos Homeoteleuto Epanalepse poliptótica Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 22-33, 1999/2001 24. CORTICE poma tument, nascuntur CORTICE flores, 25. Pallentes flores omnes; sed forma colorem 26. Distinguit, variatque, ac puro CORTICE pingit. Mesoteleuto Mesarquia Evidentemente, muito pouco foi destacado quanto ao emprego de figurae elocutionis, quase nada quanto às inversões bem ao gosto clássico, mas o suficiente para se aquilatar do quanto o artista da palavra quis imitar o artista plástico que da cortiça, matéria inerte, extraiu tão preciosa obra. Não poderia a solenidade contar com maior brilho. Eis, portanto, um excelente subsídio aos humanistas e estudiosos de Latim. Como conclusão, insisto que o Brasil não pode continuar desconhecendo a Literatura Brasileira de expressão latina, até para preservar a sua própria cultura: somos herdeiros da civilização greco-romana, muito devemos às Humanidades, nelas reconhecemo-nos como in speculo. Voltar aos estudos clássicos e humanísticos, estudar o Português como parte que é da Latinidade e, portanto, ressuscitar o ensino de Latim talvez seja o viés que nos cabe ousar para fazer frente à crise da Educação Brasileira. 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Palavras-chave: discurso, ideologia, paráfrase, movimento social. If the discourses for to inscrible in the discoursive memory nud to be important, the popular moviment for to be important and show your historic and social position, they nud to invest in the mark ideological discourses or to build your own discourse; like is the case of the Landless Rural Workers (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST). Keywords: discourse; ideology; paraphrase; social moviment. 34 ESTUDO DA IDEOLOGIA QUE SUSTENTA O MST * Marlon Leal Rodrigues** Introdução Este artigo tem como objetivo analisar os principais discursos e ideologias – na perspectiva de Foucault e Pêcheux (1986 e 1988) -, contidas nos editoriais dos boletins e jornais (1981 até 1999) do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -, a fim de levantar os discursos que dão sustentação às atividades discursivas e pragmáticas que vêm preocupando os órgãos governamentais do Brasil e a comunidade internacional. Assim, o acontecimento MST coloca em evidência a disputa pela terra como um fato antigo na história da humanidade e em particular no Brasil, que data desde o seu “achamento” pelos portugueses. Nos quinhentos anos de existência, vários movimentos populares levantaram-se na disputa pela terra como a dos índios que defendiam seus territórios, passando pelo Quilombo dos Palmares, Canudos e inúmeras revoltas populares que a História Oficial registra com outras versões. O MST compreende mais um prolongamento ou extensão dessa luta pela terra que é um fruto de grandes concentrações seculares nas mãos de * poucos, o que gera, como conseqüência, uma desigualdade social, também secular, que cada vez se agrava. Discurso, sujeito e ideologia O discurso, enquanto pré-construído, é um conjunto de condições pré-existentes, segundo Foucault (1986: 124), “um conjunto de enunciados que se apóiam em um mesmo sistema de formação.” Mas o discurso, para Foucault (1996), é, também, um jogo estratégico de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, e também de luta, “o espaço em que o saber e o poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente”. O discurso é ainda acontecimento. Por possuir uma realidade material como acontecimento, o discurso possui uma certa inquietação de sentido com duração relativamente curta ou instável. O discurso é controlado, selecionado, organizado e redistribuído a partir de determinados procedimentos que colocam em jogo seus poderes e perigos. Em outras palavras, existe controle, seleção, organização e Este artigo foi apresentado em forma de comunicação no encontro do GEL em Bauru-SP (1999). ** Prof. da UNEMAT, Câmpus de Alto Araguaia-MT, e prof. convidado do curso de Especialização da UFMS, Câmpus de Três Lagoas-MS. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001 35 Quando o sujeito distribuição dos discursos porque é “colhe” os discursos disponíveis no enunciador parafraseia, necessário eliminar toda e qualquer repertório social, (o eixo vertical), ele coloca em cena a ameaça à permanência do poder pelo recurso de parafrasagem, identidade do sentido a instituído. substituição, sinonímias etc.. Esse partir de um discursoO discurso, em última análise, é processo chama-se memória fonte que percorre a uma prática (prática regulamentadiscursiva, segundo Courtine instância de todo sentido da dando conta de um certo núme(1994). Trata-se, como nos alerta semântico em uma ro de enunciados), entendendo-se Courtine, de um tipo de memória situação-dada onde o por “prática” a existência objetiva que não se confunde com a memósentido do texto-fonte é e material de certas regras às quais ria psicológica, de um sujeito em "sempre re-re-constituição". o sujeito tem de obedecer quando particular. O sujeito, ao se apropriparticipa do “discurso”. As normas ar de um determinado discurso, prédessa prática são “regras” ou “regularidades”. construído, faz ocorrer, na linearidade do discurso, no O sujeito para Foucault (1986) é apenas uma fun- eixo horizontal, o fenômeno de ocultação do eixo verção fundadora do discurso, espaço de possibilidades tical. de realização discursiva ou de posição que deve e pode A paráfrase, de acordo com Fuchs (1982: 29), siocupar todo indivíduo para ser sujeito de determinado tua-se entre a “língua e o discurso”, excede “o campo discurso. Já Pêcheux, mais comprometido com o ma- da lingüística não somente pelo nível do sentido onde terialismo histórico, nega a evidência explícita do su- se pode estabelecer a relação semântica em jogo, mas jeito, pois a evidência é apenas um efeito ideológico também pela tensão. elementar. O sujeito se constitui pela ideologia que o Quando o sujeito enunciador parafraseia, ele colointerpela na medida em que se inscreve em uma for- ca em cena a identidade do sentido a partir de um dismação discursiva dada, assim, o sujeito se “liberta” de curso-fonte que percorre a instância de todo sentido uma ideologia somente ao passo que é interpelado por semântico em uma situação-dada onde o sentido do outra. texto-fonte é “sempre re-re- constituição" (idem, p. 30). A Ideologia, segundo Pêcheux (1988), não consti- Além disso, “o único conhecimento da situação tui apenas os sujeitos, mas também os sentidos. Os discursiva permite decidir se se trata ou não de uma sentidos (assim como os sujeitos) são constituídos his- identificação parafrástica” (p. 32), e por conseguinte, toricamente, o que equivale a dizer que os sentidos o sujeito parafraseador é produtor decodificador do não existem de per si na língua, não sendo, portanto, texto-fonte. literais. Os sentidos advêm das formações discursivas (sempre tomadas como um lugar mais ou menos proDiscurso Institucional visório) que os constituem, através de relações de metáfora ou transferência de sentidos, as quais se reou Fundador alizam em efeitos de paráfrases, sinonímia, substituiO discurso (1), Institucional ou Fundador, entre ouções etc.. tros que compõem o repertório do MST, foi o primeiro a Eagleton (1997) faz uma síntese histórica do con- se inscrever ou a “ser invocado”, chamado à cena no ceito de ideologia e a concebe como uma intervenção “nascedouro” do movimento. Sua configuração, ao conpolítica no que tem de idéias e atitudes reflexivas vol- trário do que tem sido alardeado pelos meios de comutadas para a prática social do sujeito relacionado com nicação e grande mídia, não se afigura um discurso as intrincadas redes tecidas com e pelo poder. É no “marginal” ou revolucionário naquele instante (1981), seio deste poder que a ideologia se torna um conjunto como se verá a seguir nos seguintes enunciados: de valores e crenças, não em si, mas voltadas para a (1) Como agricultor, achamos que temos direito a ter ação, para a prática social. um pedacinho de terra (1981); (2) Preço da paz, é jusO processo pelo qual a formação discursiva cons- tiça e terra para todos (1981); (3) Terra para quem trói sua memória ou pré-construído, chama-se me- nela trabalha (1981); (4) Os trabalhadores querem terra mória discursiva, lugar onde o sujeito “escolhe” e 36 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001 para produzir (1983); (5) Sem retomada de postura ou ato O discurso do MST, forma agrária não há democracia perlocucionário, mas sim um ato de Fundador ou Institu(1986); (6) Lutando por um ideal; fala locucionário, um discurso sem cional, constitui-se em por uma causa justa: viver como hoefeito, somente no nível da referêntrabalho de interdiscurmem (1982); (7) A seguir esclarecia. sividade, em reivindicacemos as manobras do Incra que O sentido e o significado das responde aos colonos dizendo que unidades “assegurada e acesso”, ção que postula o direito não há terra para eles no estado. para o MST, distinto do discurso do inviolável já assegurado Mas os agricultores sabem que elas Estado, no trabalho de interdisde ter "acesso à terra" existem e que o Estatuto da terra cursividade por pura repetição, para nela trabalhar... fala em desapropriação do latifúnreconfiguram com a significação de dio (1981); (8) Só com muita luta, direito, que implica garantias com muita garra conquistaremos e asseguraremos o invioláveis, enquanto no discurso do Estado tais unidanosso direito de ter um pedaço de terra para produzir e des não implicam garantias, direito inviolável. A garantir o sustento de nossa família (1987); (9) Para reconfiguração é verificada, como atividade de nós, trabalhadores rurais, a constituinte já está total- interdiscursividade parafrástica (Fuchs, 1982), nos mente desmoralizada e não merece mais a confiança enunciados: (1) “temos o direito”, (2) “justiça e terra”, de ninguém. Lá só prevalece os interesses dos grupos (3) “os mesmos direitos”, (5) “terra para produzir”, (6) econômicos e o carreirismo pessoal, tirando qualquer “democracia”, (6) “viver como homem, (8) “nosso diesperança de nós trabalhadores termos nossas pro- reito” e (10) “justa e legítima”. A passagem de “assepostas garantidas (1987); (10) Reconhecemos justa e gurada e acesso” para o sentido de “direito” é relelegítima a luta dos sem terra. (1982); (10-A) é assegu- vante para este discurso do MST, uma vez que consisrada a todos a oportunidade de acesso à propriedade tirá em estratégia para burlar os controles de exclusão da terra, condicionada pela sua função social (1984). do discurso e sua ação. O enunciado (6), “Sem reforma agrária não há deO MST imprimiu nesse discurso a voz da reivindicação de um direito prescrito pelo próprio Estado du- mocracia”, articula certos efeitos (Eagleton, 1997) no interior do discurso. Esses efeitos redimensionam o rante a ditadura militar (1964 - 1980), conforme a Lei sobre o Estatuto da Terra, que estabelece em seu Ar- sentido de “democracia”, e determinam também a prátigo 2º: “é assegurada a todos a oportunidade de aces- tica efetiva do movimento, ao fixar-se um novo valor, so à propriedade da terra, condicionada pela sua fun- reforma agrária e suas implicações, assim provocando uma alteração de sentido: a democracia só será conção social”. Assim, esse discurso do Estado constitui a origem de uma relação de interdiscurso (Pêcheux, cebida como legítima se em seu interior estiver asse1988) sobre o qual o MST fundará o argumento que gurada, na prática, enquanto direito, a reforma agrária do MST (para diferenciar de outros sentidos de reforlegitimará sua pragmaticidade e seus discursos. O enunciado (10-A) do MST: “é assegurada a to- ma agrária), uma vez que a questão do direito é dos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, inviolável para a democracia, de acordo com o discurcondicionada pela sua função social” estabelece uma so do próprio Estado. O discurso do MST, Fundador ou Institucional, relação de interdiscursividade por pura repetição com constitui-se em trabalho de interdiscursividade, em o discurso do Estado, acabando por tornar-se o “fio do discurso” do MST, o seu intradiscurso, com o qual cons- reivindicação que postula o direito inviolável já assetruirá a sua rede discursiva. Essa relação resultará tam- gurado de ter “acesso à terra” para nela trabalhar e bém em uma condição necessária de reconfiguração as demais prerrogativas advindas deste “direito”, conde sentido e significado, que serão outros, contrapon- siderando que “ter acesso” não equivale a “ter direido o sentido e significado imprimidos pela ditadura mi- to”, e que o MST redimensiona o “ter acesso” para litar, sentido de pró-forma. Assim, o Estatuto da Terra, “direito”. Fica ainda configurado que ter direito não enquanto discurso do Estado, não implicava uma nova significa poder usufruir, o que implica e justifica a ação do MST, a partir do próprio discurso do Estado, Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001 37 de onde tece seu discurso para sustentação de uma ação pragmática. Discurso de Reforma Agrária O Discurso de Reforma Agrária, (2), é o segundo a ser evidenciado no “nascedouro” do MST; é a razão pela qual o movimento existe e reafirma sua posição social. Enquanto o discurso Institucional ou Fundador afigura-se em um interdiscurso do que prescreve a lei que rege sobre a “terra, sua função social e o direito”, o discurso de Reforma Agrária possibilita a materialização e prática efetiva do discurso Institucional ou Fundador. Assim, seguem os enunciados do Discurso de reforma Agrária: (11) A reforma agrária solucionará os problemas do campo brasileiro (1981); (12) Sem reforma agrária não há democracia (1994); (13) Reforma agrária não é crime. A Constituição Federal em seu Capítulo III determina: “art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (1996). Se, por um lado, o discurso Institucional ou Fundador mantém relações interdiscursivas, em seus vários aspectos, com o discurso do Estado, cujo foco recai sobre o referente “direito” e suas implicações, por outro, o discurso de Reforma Agrária focaliza o referente: divisão de terra, função social da terra, distribuição de terra para quem nela trabalha, cujo pressuposto é o discurso Institucional ou Fundador, pois este faculta ao discurso de Reforma Agrária inscrever-se na ordem do discurso. No trabalho de interdiscursividade, com o Institucional ou Fundador, por pura repetição, a reivindicação de reforma agrária vai estender-se a outros sentidos como: (12) “sem reforma agrária não há democracia”, cujo sentido não é mais o de incorporar a reforma agrária no bojo da concepção de democracia ou evitar sua exclusão, mas trata-se de uma questão de cidadania, que implica divisão de terra, a partir de sua função social, como em (13) “reforma agrária não é crime”. A constituição Federal em seu Capítulo III, 38 Art. 184, determina: “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária”. Assim, de certa forma, podese afirmar que se trata do mesmo discurso, porém com sentidos distintos, desta forma constituindo-se também em um outro discurso. Assim, (11), “A reforma agrária solucionará os problemas do campo brasileiro”, é enunciado de base do discurso do MST na medida em que faz o discurso progredir, religando sentidos: a questão da terra no Brasil é histórica, os problemas são graves, existe conflito, enquanto houver “problema” não haverá paz nem justiça no campo. Na mesma proporção, em que se constitui pelo avesso dos sentidos negativos que circulam no Senso Comum, enquanto discurso, segundo o qual “o problema do campo brasileiro não é o latifúndio”, “para quem quer trabalhar existe terra”, “o Brasil sempre foi assim”, “pobre - agricultor - não tem vez mesmo”, “esse negócio de reforma agrária é desculpa de agitador” etc.. O trabalho de religar e anular sentidos é uma atividade tensa de linguagem, em que existe uma relação interdiscursiva com o discurso do Senso Comum. Esse relação tem como pressuposto: o problema do campo é um fato concreto; existe terra para efetivar a reforma agrária; existe trabalhador rural querendo terra para trabalhar; é possível resolver o problema do campo brasileiro; é possível transformar a realidade histórica do campo brasileiro; a reforma agrária é uma problema social etc. Ao religar alguns sentidos e anular outros, favorece-se a progressão do discurso, na medida em que se envolve a sociedade no problema da reforma agrária, a partir do próprio discurso do Estado. O trabalho de religar e anular sentidos é uma atividade tensa de linguagem, em que existe uma relação interdiscursiva com o discurso do Senso Comum. Discurso de Reforma Agrária e Movimentos Populares O Discurso de Reforma Agrária e Movimentos Populares, (3), em certa instância, é uma paráfrase do anterior, somente na proporção em que este concebe e preserva certos sentidos de reforma agrária (existe Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001 terra para reforma agrária, existe virada de século quase que excluO MST, além de trabalhador sem terra, o agricultor sivamente lideradas pelo MST etc.. incorporar nesse tem direito à terra, existe a necesDo discurso partidário, confordiscurso a posição de sidade de uma mudança na concepme Pedrosa (1980: 60), Partido dos vanguarda, também ção de propriedade da terra e exisTrabalhadores: “ao anunciar que acaba por estabelecer te o movimento). No entanto, ao seu objetivo é organizar politicauma conexão primordial compartilhar do mesmo campo mente os trabalhadores urbanos e entre a luta pela reforma discursivo, incorpora certos elemenos trabalhadores rurais, o PT se tos pré-construídos (no eixo vertideclara aberto à participação de agrária e o interesse dos cal, memória discursiva) dos movitodas as camadas assalariadas do trabalhadores em geral. mentos populares o que, em certo país”, o MST incorpora a posição sentido, contribui para o de vanguarda: “o objetivo é orgaredirecionamento do discurso: ser o mesmo discurso nizar politicamente os trabalhadores”, o que outrora de reforma agrária, mas também sendo outro, de Re- fora “objetivo” do Partido dos Trabalhadores e hoje forma Agrária e Movimentos Populares. não o é mais. Tal fato foi possível, a posição de vanAssim, incorpora, dos movimentos populares al- guarda do MST, em virtude de o Partido dos Trabaguns pré-construídos: “o povo unido jamais será ven- lhadores deixar de ocupar um espaço político de lidecido”; de forma que algumas marcas como “união do rança dos movimentos populares, conforme afirma povo” cujo sentido refere-se aos marginalizados e ex- Cardoso (1999a: 382): “entre o MST e o PT, o priplorados, do operariado, conforme Valentim (1990: meiro está ocupando o lugar do ‘velho’ movimento 45): “defender a CSN [Companhia Siderúrgica naci- sindical urbano de onde o saiu o PT”. Assim, o MST, onal - Volta Redonda-RJ] é defender a soberania além de incorporar nesse discurso a posição de vannacional”, a defesa das questões ligadas ao interesse guarda, também acaba por estabelecer uma conexão do trabalhador, em oposição à elite e ao capital inter- primordial entre a luta pela reforma agrária e o intenacional, diz respeito à “defesa da soberania nacio- resse dos trabalhadores em geral. Isso é possível consnal”. tatar de forma clara nos discursos e pronunciamento Segundo Giannotti e Neto (1991: 10), “essa greve do PT e da CUT no uso da unidade “apoiar” que é mostrou para milhões de operários, funcionários públi- bem diferente de “assumir”. Em “apoiar” não há comcos, trabalhadores rurais ou de serviços, a urgência de prometimento ideológico, pode-se conceber que é apeter uma central que unisse suas lutas”. Se, por um lado, nas circunstancial, enquanto que “assumir” implica a mobilização em torno da “greve” é, para o operaria- fazer parte de maneira integrante dos movimentos do, demonstração de força e organização que aponta populares e dos trabalhadores. para a união das “lutas”, por outro lado, para o MST, a Considerando o discurso da ex-tendência interna mobilização, enquanto fator de força, organização que do Partido dos Trabalhadores (Causa Operária, 1988: aponta para a união de “lutas”, está na capacidade de 31), “a ação direta quer dizer que as massas tomam realização de ocupações massivas com o apoio de ou- em suas mãos seus problemas e os do país e os resoltros movimentos populares. vem por sua própria conta, utilizando suas organizaDo discurso religioso (Follmann, 1985: 85): “em ções, sua força e seus recursos próprios”, constata-se tudo a gente deve partir sempre de nosso interesse nesse discurso, “ação direta”, “tomam em suas mãos de povo pobre” e “participar de todas as ferramentas seus problemas e os do país” e “sua força e seus reque vão nos ajudar, associações, partidos e outras que cursos próprios” dizem respeito à posição de vanguarsejam nossas”, assim é possível inferir que o “povo da do MST, pois amplia de forma considerável seu pobre” e “todas as ferramentas” dizem respeito à campo discursivo de atuação, uma vez que o problema unificação das mobilizações populares daqueles que da reforma agrária está vinculado às questões estrutusão os menos favorecidos socialmente ou deixados à rais mais complexas do que apenas divisão de terra e margem da sociedade enquanto as ferramentas são isto também diz respeito ao conjunto dos trabalhadoas greves, ocupações, protestos, mobilizações nesta res, segundo uma mesma ótica e ação política, uma Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001 39 vez que as lutas isoladas não resolRússia, México ou China etc., não A bandeira de reforma vem nem os problemas dos trabafora dada pela deserção da burguelhadores rurais sem terra nem os sia ou dos governos, e sim como agrária deve ser "uma problemas dos movimentos populaparte de um processo revolucionáluta de todos", res. rio em que os movimentos populaconsiderando que todos Analisando o discurso do Partires, operariado e agricultores semos trabalhadores estão do da Causa Operária (1999): “só a terra e a população em geral, pesob o mesmo regime de mobilização popular pode acabar garam em armas como condição governo e, portanto, de com FHC, o arrocho, o desempreprimordial para a mudança radical go e a repressão aos sem-terra”, exploração social. de sistema político. Ainda é possípode-se afirmar que a questão “só vel evidenciar que sem luta armaa mobilização popular” tem sido da não se faz reforma agrária; para o MST condição sine qua non para as ações do questão que foi condição sine qua non para as transmovimento e sua posição de liderança. formações abruptas quando estavam em pauta a muA partir das considerações acima, verifica-se que dança de sistema político, capitalismo e a questão da o MST incorpora alguns elementos com os quais terra. reconfigura o seu discurso, de forma que Reforma Em virtude disso, não é difícil evidenciar a relaAgrária distancia-se e passa a constituir um discurso ção interdiscursiva por redirecionamento, também, distinto, o de Reforma Agrária e Movimentos Popula- que o MST mantém com os movimentos revoluciores. Com o distanciamento, ambos passam a ter re- nários quando afirma que “reforma agrária, uma luta presentações diferentes, muito embora o discurso de de todos”. A relação discursiva e pragmática do Reforma Agrária e Movimentos Populares tenha como MST com os demais movimentos populares faz eco pressuposto o anterior. Assim, pode-se considerar que com análise feita pelo historiador Hobsbawm (1995: discurso de Reforma Agrária diz respeito a existência 347): “entre 1945 e 1950, quase metade da raça do MST, enquanto Reforma Agrária e Movimentos humana se viu vivendo em países que passavam por Populares representa a configuração de que os agri- algum tipo de reforma agrária - comunista na Eurocultores sem terra são uma classe distinta das demais pa Oriental e, após 1949, na China”. Ainda, segune por isso participam do universo político dos demais do Hobsbawm, a revolução egípcia de 1952, seguimovimentos populares. da pelo Iraque, Síria e Argélia; a revolução boliviaO enunciado (14), “reforma agrária: uma luta de na de 1952, a mexicana de 1910 e cubana, que totodos”, estabelece relações interdiscursivas por alian- das há muito defenderiam “o agrarismo”, ou seja, ça com os movimentos revolucionários que sugere que a reforma agrária que somente o MST defende nesta sem luta armada não se faz reforma agrária. Por isso, virada de século. a bandeira de reforma agrária deve ser “uma luta de No dizer do autor, “para os modernizadores, a detodos”, considerando que todos os trabalhadores estão fesa da reforma agrária era política (conquistar apoio sob o mesmo regime de governo e, portanto, de explo- camponês para regimes revolucionários ou para os que ração social. queriam adiantar-se à revolução, ou algo parecido), Desse forma, na Revolução Russa, conforme Lenin ideológica (‘devolver a terra a quem nela trabalha’)... ( Apud Gomes,1999: 96): “a ‘chave’ do combate na aos sem-terra ou aos pobres de terra”. revolução russa estava na luta contra os latifundiáriAssim, nesse discurso, Reforma Agrária e Movimenos”; na revolução Cubana, de acordo com Sader (1985: tos Populares, cujo enunciado de base (14), “reforma 33), “a guerra de guerrilhas se apoiaria mais imediata- agrária, uma luta de todos”, podem ser considerados um mente nos camponeses, base social potencialmente mais trabalho amplo de paráfrase, intertexto, interdiscursividade mobilizável para uma luta radical contra o sistema de no âmbito do próprio MST e do operariado, com outros exploração”. discursos e textos na arena do poder, lugar de onde o Pode-se afirmar que a reforma agrária “deseja- MST re-elaborou sua posição enunciativa. da”, bandeira dos que na terra trabalham, em Cuba, 40 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001 Considerações Assim, nesse discurso, Reforma Agrária e Movimentos Populares podem ser considerados um trabalho amplo de paráfrase, intertexto, interdiscursividade no âmbito do próprio MST e do operariado... Os discursos, uma vez recuperados da memória discursiva, no eixo vertical, e inscritos de forma assumida pelo sujeito do MST no eixo horizontal, passam a compor em sua materialidade discursiva um efeito de sentido no cenário das instabilidades na ordem discurso, assim implicando em “rituais ideológicos” (Pêcheux, 1990), nos quais todo “discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-restruturação (...) todo discurso é índice, potencial de uma agitação nas filiações sóciohistóricas e identificação, na medida em que ele constitui, ao mesmo tempo, um efeito dessas filiações em trabalho (...) de deslocamento no seu espaço “ (Pêcheux, 1990: 56). Na virulência da inscrição discursiva do MST na ordem do discurso, quando o agente do discursivo posicionase, impõe o seu discurso e o discurso sendo sempre o mesmo, já é outro, parafraseado, acrescido de algumas unidades na medida em que perde outras. Assim divide alguns espaços na medida em que domina e ao mesmo tempo perde outros. Isso pelo fato de sua existência ser tensa, conflituosa, de “amor e ódio”, na arena onde sujeitos e discursos se camuflam, disfarçam, reconhecem, toleram, assumem, dispersam, identificam, reencontram, transformam etc.. Essa análise desenvolveu algumas considerações relevantes a respeito dos discursos, seus variados tipos, suas paráfrases, o perfil do MST, sua origem histórica, alguns de seus anseios, razões e motivos de sua constituição político-ideológica em uma “época” de grandes avanços científicos e tecnológicos, que sugere, no senso comum, que a humanidade está cada vez mais desenvolvida e esse desenvolvimento é para todos, premissa neoliberal que o discurso do MST constrange. Referências Bibliográficas CARDOSO, Sílvia H. B. Ideologia: um conceito obsoleto? In Gel – Grupo de Estudos Lingüísticos. V. 28, pp. 379-84, 1999. ––––––––. Discurso, ideologia e representação. Três Lagoas, UFMS, 1998. Mimeo. ––––––––. A realidade e os sentidos: de Jeca aos sem-terra. In Abralin, Fortaleza, 2001d. EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986. ––––––––. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio . Campinas: Editora da UNICAMP, 1988. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 35-41, 1999/2001 41 Mostra-se o discurso de Riobaldo, personagem-narrador de “Grande sertão: veredas”, como um modo talking de narrar, semelhante ao de Marcel, em “À la recherche du temps perdu” de Marcel Proust. Como o dele, o discurso é mostrado como algo que se situa entre o showing e o telling, transgredindo os limites entre o mostrar e o narrar. Palavras-chave: oralidade, discurso, conversação Riobaldo is the main character in “Grande sertão: veredas” and his speech is a “talking” way of speaking, in the same way as Marcel’s, in “À la recherche du temps perdu” is. In both cases, the speech is shown as the something situated between the showing and the teling, going beyond the limits displaying and narrating. Keywords: orality, discourse, talking 42 GRANDE SERTÃO: UM MODO "TALKING" DE NARRAR Ana Maria Souza Lima Fargoni* A possibilidade de simbiose da fala e da escrita comprova que essas modalidades se separam por limites muito tênues, de forma que é mais adequado dispô-las em um continuum. O discurso de Riobaldo, personagem narrador de Grande sertão: veredas é, exatamente, uma amostra que comprova tal fato; tem, portanto, uma natureza ambivalente, pois participa, de algum modo, das duas modalidades. Atribuir-lhe caráter anfíbio significa reconhecer-lhe a exuberância. O discurso do ex-jagunço, lembra, assim, o discurso do personagem de Marcel Proust, analisado por Genette (1976), a propósito de estudar a narrativa em À la recherche du temps perdu. Ali se retomam os dois modos diferentes de narrar conceituados por Platão, na República, com as seguintes explicitações: no primeiro, o poeta1 fala em seu próprio nome, sem procurar fazer crer que é um outro, que não ele quem fala. É a narrativa pura, distante e mediata, que Platão chama de diegese. No segundo, o poeta se esforça por dar a ilusão de que não é ele quem fala, mas uma personagem, se se tratar de falas pronunciadas. É a narrativa próxima e imediata que procura “imitar” a realidade tal como o fato se passou e, por isso, é “imitação” ou mimese. Para Genette, na verdade, a oposição apontada resu- me-se à narrativa de falas, pois Platão omite qualquer referência a narrativas de acontecimentos ou ações mudas e, vinculando a narrativa apenas aos discursos direto e indireto, restringe a oposição entre mimese e diegese. Já Aristóteles, segundo Genette (1976:161), via tal oposição de forma mais neutralizada, considerando a narrativa pura e a mimética como duas variedades de mimese. Continuando suas reflexões sobre a narrativa, Genette ainda se reporta a Henry James e seus discípulos que, na Inglaterra e nos Estados Unidos, em fins do século XIX e começo do XX, respectivamente, retomaram Aristóteles, a partir de Platão, para teorizar o romance. Esses estudiosos neo-aristotélicos propõem, para mimese e diegese, os termos ingleses, showing (mostrar) e telling (contar). Para Genette (1976:161), a narrativa romanesca tradicional antes de À la recherche du temps perdu era constituída quase sempre pela alternância entre “cena” e “sumário”. Segundo Reis e Lopes (1988:233), cena é compreendida no domínio da velocidade imprimida ao relato e constitui a tentativa mais aproximada de imitação no discurso, da duração da história. Traduzse nas reproduções das falas das personagens em discurso direto, na seqüência em que ocorreram, fato de * Professora de Língua Portuguesa e Lingüística do Departamento de Letras do Câmpus de Aquidauana da UFMS. Doutora em Letras pela Unesp Araraquara. 1 Tem o sentido de criador do texto, ou seja, aquele que opta por uma ou outra maneira de narrar. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 42-45, 1999/2001 43 que resulta uma narrativa isocrônica consistir, quase exclusivamente, de ... o narrador e dramatizada, que se caracteriza pelo cenas (singulativas ou iterativas) que de "Grande sertão" apagamento parcial ou total do compõem uma narrativa, ao mesmo é singular pois com narrador. Já, por sumário, entendem tempo rica de informação e com os autores, (1988:293) que designa sua fala, rompe forte presença do narrador, que é toda forma de resumo da história, de fonte mantenedora e organizadora o convencional, modo que o tempo no discurso fica da narrativa, seja analisando, seja core-criando reduzido a um espaço bem menor em mentando o fato narrado. Assim, a literariamente a relação ao volume das informações À la Recherche du temps perdu, conversação, no modo ali trazidas. A figura do narrador é segundo Genette (1976:165), colocarelevada, sugerindo-lhe um papel de "talking" de contar. se no extremo do showing e do censor que hierarquiza as informatelling “e mesmo um pouco mais ções, atribuindo-lhes diferentes valolonge, nesse discurso tão liberto, por res. Implica uma certa desvalorização da matéria nar- vezes, de qualquer preocupação de uma história a contar, rada, que pode vincular-se tanto à economia da história, que talvez conviesse nomeá-lo na mesma língua, talking.” como aos vetores semânticos que a regem. Não se pode dizer que a história se conta sozinha, como A alternância entre cena e sumário de que fala Genette propõe Booth (1961), apud Genette (1976:162) e, muito acaba por opor conteúdos “dramáticos” e “não-dramáti- menos que o narrador se apague perante ela. “Não é cos” que coincidem, respectivamente, com os tempos for- dela (história ) que se trata, mas da sua imagem, do seu tes da ação – momentos mais intensos – e tempos fra- “rastro” na memória.” cos, resumidos em traços longos – momentos menos inO mesmo se pode dizer de Grande sertão: veretensos. A inovação de Proust consiste, conforme Genette, das, em que Riobaldo, personagem principal, na longa em constituir-se quase sempre de cena, do princípio ao conversação de que já se falou, “mostra” o seu percurfim – no sentido temporal – com a abstração do sentido so de jagunço, conferindo ao relato as minúcias da iterativo de algumas. A ausência da alternância cena / mimese (showing) e, ao mesmo tempo, presente de sumário faz de a À la Recherche du temps perdu quase forma intensa e contínua, enquanto narrador (telling). que uma única e grande cena. O showing, de que se Nesse sentido, o narrador de Grande sertão é singular, falou há pouco, é a narrativa pormenorizada que se ca- pois com sua fala, rompe o convencional, re-criando liracteriza pelo predomínio da cena. Trata-se de uma nar- terariamente a conversação, no modo talking de conrativa mimética e, portanto, bastante informativa. Como tar. Seu interlocutor, forasteiro ocasional, é o ouvinte a narrativa mimética é a que contém o máximo de infor- interessado na sua vida de jagunço; ele, enquanto locumação e um mínimo de informador, a presença da entida- tor, a narra, “rastreando a memória” para decifrá-la. É de narrativa nela se esfumaça, dando a impressão de que isso que o tipifica e faz de Grande sertão uma “grande a história se conta a si mesma. Já, no telling, ao contrá- conversação” em processo. rio, informação e informador apresentam-se de modo inEssa intersecção de extremidades que se cruzam, versamente proporcional. Esses diferentes modos de con- vincula-se, muito provavelmente, àquilo a que tar, conforme explica Genette (1976:165-6), ajuntam o Maingueneau (1993:113) denominou de perilíngua por binômio informação / narrador que projeta dois fatores tangenciar as duas modalidades: no limite inferior, “a inversamente proporcionais, com o seguinte desdobra- hipolíngua que, ambivalente, aproxima corpo e emomento: de um lado, a questão temporal, vinculada à velo- ção, inocência e caos; no superior, a hiperlíngua que, cidade, pois quanto mais informação a narrativa apresen- ao contrário, espelha a perfeição luminosa de uma rete, mais tempo demora para processar-se e, portanto, é presentação ideal do pensamento.” O escritor, segunmais lenta; de outro, a questão da voz, vinculada ao do ele, não pode se fixar em nenhum dos extremos, narrador, cujo grau de presença afeta a narrativa pelo mas deve indiciar seu texto com o fascínio de ambas. fato de informar mais quanto menos presente estiver. Tais Este pode ser o “segredo” do fascinante talking de conceitos, apresentados como regra geral, encontram, no Riobaldo que faz de Grande sertão, não um corpus entanto, uma exceção, um desmentido, pois a obra de escrito, mas algo como que dotado de voz. Da Proust é inteiramente rebelde à “norma” mimética por hipolíngua, traz o caos das desarticulações, hesitações, 44 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 42-45, 1999/2001 repetições, etc.; da hiperlíngua, a beleza, a originalidade, a perfeição. Dessa forma, assim, anfíbia, aproxima as duas modalidades de linguagem, num discurso instigante, envolvente, inovador... Riobaldo é, portanto, um narrador-talking e, como o personagem de Proust, situa-se também no limite do showing e do telling. Assim, realiza o modo talking de contar, explicitado no seu longo discurso que, prolixo, transgride os limites entre mostrar e narrar – com alto grau de presença do narrador e o máximo de informação – e, transcrito, subverte os limites entre o escrever e o falar – com uma escrita que produz um efeito de sentido de fala. Referências Bibliográficas FARGONI, A. M. S. L. A magia da fala magicamente escrita: veredas do Grande sertão. Tese de doutorado. Unesp, 2000. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. (Figures-III) Lisboa: Vega, 1972. MAINGUENEAU, D. Le context de l’ouvre littéraire: énonciation, écrivain, societé. Paris: Dunod, 1993. PROUST, M. No caminho de Swann. Trad. de Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982. REIS, C. e LOPES, A. C. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. Unicamp, 1997. ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. 18ª. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 42-45, 1999/2001 45 Resenha CLARICE LISPECTOR NAS ENTRELINHAS DA ESCRITURA, de Edgar Cézar Nolasco Márcio Antonio de Souza Maciel* * Professor Especialista. Departamento de Comunicação. Câmpus de Dourados, UFMS. 46 Clarice Lispector (1920-1977) tem despertado interesse/curiosidade desde a sua estréia no mundo ficcional em 1943, quando da primeira publicação de Perto do Coração Selvagem, na ocasião ainda uma jovem aspirante à escritora. Apesar de estreante, a autora fora apontada pelo crítico Antonio Candido como um dos grandes talentos daquele período. “A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência (grifo meu) já é uma nobre realização” (CANDIDO,1970:131). Sábio estudioso. Talvez residam já, nesse momento, nas oportunas e contemporâneas (uma vez que as escreveu no mesmo ano de publicação do romance, ou seja, 1943; não se sabendo mais de Clarice além daquilo que ela apenas rascunhava nas letras brasileiras) palavras de Candido duas verdades claricianas: uma de cunho amplo e, hoje em dia, inquestionável; outra, de campo mais específico, porém não menos verdadeira que, estudada e aceita pelos críticos, somente mais tarde pudemos comprovar. A primeira diz respeito à genialidade e permanênPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 46-48, 1999/2001 cia da escritora; a segunda, ao seu por si mesmos, servindo-lhe para Não poderíamos rejeitar processo de criação que hora estuquaisquer propósitos, uma vez que ainda, e por último, a damos. o processo clariciano dá-se no níidéia de duplicidade, de Desde seu ingresso no universo vel da experiência, como muito bem simultaneidade, de mão literário de então, adjetivos como nos observou Antonio Candido, já dupla, de que Clarice “hermética”, “escritora subjetiva”, citado anteriormente. Parece tudo “filosófica”, “difícil” e outros que um texto só, mas não o é. A escrinão escreve os seus circulam pelo mesmo campo semântora se parafraseia, se plagia, taltextos, mas sim que tico do impenetrável ser-lhe-iam vez até faça sua perfeita cópia esses se escrevem por conferidos à sua revelia, ao que quanto ao conteúdo, porém a forsi mesmos... Clarice, amiúde, rebatia argumenma é nova, é outra porque Clarice tando que “na verdade eu escrevo já é outra e nós, igualmente, somos muito simples”. Adjetivos que duo Outro - outros. plamente pecavam, ora pelo reducionismo óbvio que Assim como a escritora em relevo, também eu, à parecia não dar conta da grandeza artística da escrito- minha maneira, me copio, me plagio, me parafraseio, ra, ora porque a limitavam; antes, tentavam enquadrá- guardadas as devidas proporções. Algo dessas apaila em alguma espécie de gênero ou cárcere inventivo. xonadas palavras se refere a um estudo, em nível de Entretanto, uma vez mais, eram refutados por ela mes- graduação, intitulado de “O germe literário em Clarice ma: “gêneros não me interessam mais. Interessa-me o Lispector ou o ante-texto” no qual me propunha a comistério”(apud.GOTLIB, 1995:79) . tejar os livros Felicidade Clandestina(1971) e Onde Além de romancista (A maçã no escuro, 1961), Estivestes de Noite(1974) com o livro de crônicas, já contista (Laços de família, 1960), tradutora (O Re- mencionado, A Descoberta do Mundo (1984) quanto trato de Dorian Gray, de Oscar Wilde) e jornalista ao seu processo de (re) e criação literária, quando ain(colaborou durante alguns para várias publicações, da contava um pretenso-quartanista-suposto-possívelcomo a revista Manchete); Clarice manteve, como estudioso-clariciano. Passados alguns anos, já não cronista, por sete anos, uma página semanal no Jornal quartanista, mas ainda –e sempre e mais e tanto- apaido Brasil, no Rio de Janeiro. O resultado de parte des- xonadamente clariciano, encontro-me com o e/ou ensas crônicas foi compilado em um livro-póstumo, contro-me em o admirável Clarice Lispector: nas intitulado A Descoberta do Mundo (1984). entrelinhas da escritura. Ed. Annablume (2001), de Concomitantemente a essa nova função de cronista Edgar Cézar Nolasco. Em o presente trabalho acerca que vez por outra rejeitava ou mesmo questionava como da mais notável escritora em língua portuguesa, apreem: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica sentado primeiramente como dissertação de mestrado, coisa nenhuma. Isto é apenas”; (apud. GOTLIB, encontro o livro que quisera ter escrito tal qual imagi1995:373) a escritora seguia na criação e feitura de nei há alguns anos, mas não o fiz. Se por imaturidade seus livros, fossem eles romances, contos, livros in- intelectual, se pela diferença do corpus, se pela disfantis, apontamentos ou até mesmo “fundos de gave- tância de tempo leitural e/outros inúmeros motivos o tas”. Não raras vezes, percebemos um diálogo cons- livro não saiu àquela época, diferentemente do que ocortante entre ambas e múltiplas atividades: a idéia- bási- re aqui, isso já não nos importa. O que realmente conca-origem aparece primeiramente em uma crônica ta, primeiramente, é a grata surpresa e o prazer que para, mais tarde, a vermos diluída em um trecho de me proporcionaram as palavras de Nolasco sobre um romance ou mesmo em um conto com um outro título tema que, segundo muitos, naquela passagem, era “poue outra paragrafação. Ou ainda, como em se tratando co estudável” e/ou algo “pouco resultável” no que faço de Clarice ser o mais provável, o seu reverso: a idéia- coro com o epílogo do autor em que “só mais recenteembrião aparece por primeira vez em um conto, sendo mente e de forma muito iniciatória, a crítica tem se aproveitada em parte ou no todo em um romance, para voltado para o projeto de criação literária da só mais tarde ser lida como crônica. Não poderíamos autora”(NOLASCO, 2001:261); e, secundariamente, rejeitar ainda, e por último, a idéia de duplicidade, de o interesse, a sensibilidade e a sintonia em preocuparsimultaneidade, de mão dupla, de que Clarice não es- se por um mesmo aspecto definido de uma autora tão creve os seus textos, mas sim que esses se escrevem estudada. Pois sim, é, como diria Lacan, o tal do “inPapéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 46-48, 1999/2001 47 consciente coletivo” de que somos piladas, posteriormente, em A DesNessa derradeira produtos. coberta do Mundo (1984). Nesse (des)composição de Na primeira parte do livro o aumomento de (re)descoberta quanto significantes, Nolasco tor nos esclarece a diferença entre ao modo particular de escrever, o tece e destece os os vários conceitos de texto para, autor pontua duas singulares distinfragmentos do livro na seqüência, valendo-se da teoria ções na escrita de Clarice e, por conmais próxima da escrita clariciana, seguinte, entre a feitura dos citados presentes tanto nas adotar uma vertente –mais moderlivros: a superposição e a justaposicrônicas, como nos na- que vislumbra no texto nem o ção e nos esclarece tais matizes que contos e outros fim, tampouco o começo; nem o anparecem sem importância. De acorescritos claricianos... tes, tampouco o depois do impresdo com o autor o processo por so, mas o “quase”; o “espaço de superposição(um sobre/sob o oucriação inacabado eterno”, consotro), um pouco mais trabalhado, tenante os dizeres de Leyla Perrone-Moisés e Barthes ta diluir o texto primário de tal modo que esse se encon(apud.NOLASCO, 2001: 150). tre por completo na segunda escritura, que fique um Mais adiante, na segunda parte (cabendo aqui o “chapado” ao outro, segundo suas próprias palavras. E devido esclarecimento de que essas divisões diferem segue discorrendo, comentando, analisando várias pasum pouco das encontradas no sumário do livro e estão, sagens exemplares de tal fenômeno presentes em Uma por assim dizer, de modo simplificado, mais para a se- Aprendizagem e nas crônicas. Já o processo por ara do conteúdo que para a da forma) encontramos o justaposição(um ao lado do outro), por seu turno, se texto, agora o do autor-Nolasco, mais voltado para a distingue sobremaneira da primeira ocorrência, uma vez problemática do tempo em que se dá a escritura que se dá às claras, sem escamoteamento, sem muito clariciana. Segundo o estudioso, o tempo de leitura do cuidado; antes, com total escândalo de descuido propotexto de Clarice e ainda fazendo menção ao que fora sital, querido e regozijado. É o que percebemos na leitudito na primeira parte do trabalho, “está no momento ra-escritura, seja tanto tomando o autor-escritor quanto em que dura a leitura do leitor”. Esse tempo abstrato, o receptor-leitor ou vice-versa: autor-leitor e receptorporém virtualmente real, assemelha-se, na linguagem escritor, de Água Viva que, segundo muitos estudiosos, da escritora, ao it: “It é cada instante. It é vivo”. Ain- talvez seja sua maior façanha ante-anti-literária. Nessa da para corroborar, “o ato de leitura se estrutura atra- derradeira (des)composição de significantes, Nolasco vés de um processo que se volta sobre quem o prati- tece e destece os fragmentos do livro presentes tanto ca” (NOLASCO, 2001:91). nas crônicas, como nos contos e outros escritos Na terceira e última parte temática do estudo, Edgar claricianos, tal qual – para citar o próprio estudioso – a Cézar Nolasco nos brinda com uma espécie de “guia- clássica Penélope à espera de um Outro. Quiçá Clarice? para-ler-Clarice Lispector ou um manual- pós-moder- Isso é matéria para uma outra pesquisa. Concluo parano-para-leituras-afins”, no qual, pela feliz denominação fraseando o próprio autor, onde a aprendizagem não está de “Desconstrução escritural”, desentranha o processo em descobrir o novo; senão antes, em descobrir de novo (re) criativo de Clarice em as feituras das obras Uma o novo ou o que se soube que era novo ou ainda o que Aprendizagem ou livro dos prazeres (1969) e Água se pensou que se soubesse. O axioma é eterno: Viva (1973) comparando-as com e/ou encontrando- as descubramo-nos de novo em O Novo, em Clarice nas crônicas de então que escrevia para o jornal, com- Lispector. Ita est. Bibliografia GOTLIB, Nádia Batella. Clarice - Uma vida que se conta. São Paulo. Ed. Ática. 3.ed., 1995. NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. São Paulo. Annablume, 2001. 48 Papéis : rev. Letras, Campo Grande, MS, 3/4 (5/10): 46-48, 1999/2001