Dissertação

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Dissertação
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INTRODUÇÃO
O nosso trabalho surgiu de pesquisas iniciadas ainda na época da graduação em
História. Nos períodos finais da graduação, houve um seletivo para estudantes que quisessem
ingressar no Arquivo Público do Maranhão, exercendo a atividade de estagiário. Obtivemos
aprovação nesse seletivo. Esta foi a oportunidade sem a qual, provavelmente, teríamos
rumado para outra direção de pesquisa. Foi o estágio no Arquivo que abriu uma série de
possibilidades de pesquisa. A mais atraente, sem dúvida, foi a possibilidade de trabalhar com
os ofícios dos bispos
1
diocesanos do Maranhão ao Presidente da Província. Era realmente
uma possibilidade bem promissora. O volume documental era imenso e as temáticas
discutidas nos ofícios eram das mais interessantes.
Por isso, nossa pesquisa surgiu quase que exatamente conforme um dizer de Júlio
Aróstegui. Ela surgiu de um achado que terminou se harmonizando com as temáticas que
sempre me atraíram.
A pesquisa histórica surge de “achados” – de novas fontes, de novas conexões entre
as coisas, de comparações – ou surge de insatisfações com os acontecimentos
existentes, insatisfações que, por sua vez, são provocadas pelo surgimento de novos
pontos de vista, de novas “teorias”, ou de novas curiosidades sociais 2.
O desenrolar da pesquisa também apresentou certa similitude com o percurso de
Carlo Ginzburg na confecção da sua História Noturna. Sobre o trabalho de pesquisa e análise
das fontes, ele disse assim:
Durante anos, partindo da documentação a respeito dos benandanti, procurei
aproximar – tendo por base afinidades puramente formais – depoimentos sobre
mitos, crenças e ritos, sem ter a preocupação de inseri-los em alguma espécie de
moldura histórica plausível. A natureza das afinidades que eu confusamente andava
procurando só a posteriori se esclareceu para mim 3.
1
Vide o Quadro II anexado ao final da dissertação. Nele consta a sucessão dos bispos do Maranhão no período
de 1826 a 1898.
2
ARÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 470. Aspas do autor.
3
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 26.
9
Muito disso aconteceu em nossa pesquisa. Ora, para uma documentação que surge
como um achado não se vislumbra de início uma forma precisa de abordagem. Foi só com o
avançar da análise dos documentos e o estudo da historiografia que as primeiras
concatenações foram surgindo. Podemos dizer, sem qualquer receio, que foi a historiografia
que tornou aquela documentação inteligível. Este consócio entre documentação e
historiografia foi realmente decisivo na nossa pesquisa. O trabalho acadêmico é sempre
dialogal. Nós todos estamos sempre dialogando com outras pesquisas, com outros autores,
com outros campos do saber e quanto mais este diálogo for intenso, mais profícua será a nossa
pesquisa.
Tendo tido contato com a totalidade dos ofícios dos bispos e após o devido
trabalho de contagem, catalogação, enumeração, organização e descrição, notamos que uma
das temáticas mais recorrentes nos ofícios era aquilo que os bispos chamavam de “declínio do
culto público”. Por isso, a nossa monografia de conclusão do curso de História teve como
tema de abordagem os óbices postos ao culto público católico durante o século XIX.
Mas nem de longe os ofícios dos bispos se encerram na temática do culto público.
Sim, sem dúvida ela é a mais recorrente temática, mas há uma variedade bem grande de
outros assuntos discutidos nos ofícios.
Os ofícios dos bispos diocesanos do Maranhão constituem uma documentação
muito densa e profusa. Trata-se de mais de 1.500 ofícios, sendo que o primeiro data de 1800 e
o último de 1914. Pelo volume da documentação, pode-se dizer que a nossa pesquisa
incorpora uma tendência atual percebida por Ronaldo Vainfas. Ele diz:
A verticalização temática das pesquisas, bem como a preocupação cada vez maior
com o tratamento das fontes e das evidências empíricas, têm conduzido os
historiadores, nos diversos campos, a valorizarem muito mais o diálogo com a
documentação e com a factualidade nela registrada. [...] Não por acaso, há quem
qualifique boa parte da historiografia contemporânea como neo-historicista,
apontando seu demasiado apego à pesquisa arquivística e a metodologias dedicadas
a refinar a análise das fontes 4.
Com efeito, os ofícios constituem uma documentação vastíssima. Nesses escritos
encontramos um amplo panorama da Igreja Católica maranhense durante o século XIX, o que
pode dar ensejo a pesquisas diversas. Neles, muitíssimas temáticas são discutidas. Além da
4
VAINFAS, Ronaldo. “Avanços em xeque, retornos úteis”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 322. Itálico do autor.
10
situação do culto público, os ofícios mostram como eram instáveis e problemáticas as relações
entre o poder episcopal e o poder civil da província do Maranhão. Isso explica o fato de
havermos decidido tratar das controvérsias ou dissidências entre a Igreja e o Estado na
província do Maranhão.
As situações de discórdia entre os dois poderes eram constantes. Da leitura e
análise dos ofícios, percebemos que elas se acirraram e se aprofundaram na segunda metade
do século XIX, sobretudo no recorte que compreende os anos de 1855 a 1875. Foi por isso
que definimos o recorte temporal entre os anos de 1855 a 1875.
Tomando os ofícios dos bispos do Maranhão como objeto de análise, a intenção
neste trabalho é fazer um estudo da Igreja Católica
5
a partir da hierarquia, da ortodoxia, do
cerne do poder eclesiástico provincial. Em linhas gerais, trata-se de um estudo sobre a relação
entre a Igreja Católica e o Estado no Maranhão oitocentista. Dizer isso não significa muita
coisa nem especifica o problema da nossa pesquisa. É assim que, dessa relação entre Igreja e
Estado, selecionamos apenas um aspecto: aquilo que chamamos de discórdias ou dissidências
entre a Igreja e o poder civil na província. Restringindo ainda mais este recorte, podemos
dizer que essas discórdias serão vislumbradas a partir da análise de dois casos, que serão
especificados no momento oportuno.
É claro que quando dizemos “Igreja” ou “Estado” estamos usando de abstrações.
Há como prescindir do uso de abstrações? Pensamos que não. Elas são úteis, sobretudo para
fins didáticos. Onde, fisicamente, está a Igreja Católica? Quem é ela fisicamente? A Igreja
Católica não é somente o papa ou os bispos reunidos. Onde ficariam os leigos nessa hipótese?
Também não se diga que a Igreja está corporalmente no Vaticano. A existência objetiva da
Igreja não se afere por esses parâmetros. A Igreja não é um indivíduo. Como disse Romano
Guardini,
a Igreja possui uma construção diferente da do indivíduo. As manifestações da sua
vida, as épocas durante as quais ela se desenvolve lentamente, as suas lutas e as suas
crises, o centro mesmo do seu ser, tudo isso é diferente nela e nos indivíduos 6.
5
Para evitar a constante repetição da expressão Igreja Católica, grafaremos por vezes apenas o termo Igreja.
GUARDINI, Romano. O senhor: meditações sobre a pessoa e a vida de Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Livraria
Agir Editora, 1964, p. 460.
6
11
Sem dúvida, “Igreja” é um termo genérico usado para se referir a uma
comunidade de pessoas, com uma mentalidade própria, que se representa e representa o
mundo de uma maneira que lhe é própria. Como qualquer comunidade, a Igreja possui
lideranças. O nosso estudo está focado precisamente nisso, no ponto de vista das lideranças da
Igreja. Assim, quando ao longo do nosso trabalho falamos em “Igreja Católica” no Brasil e
mais especificamente no Maranhão, estamos nos referindo às lideranças da Igreja.
Nosso trabalho faz uma análise dos pareceres e posicionamentos daqueles que
estiveram na cúpula da hierarquia eclesiástica provincial: os bispos, e de sua relação (não
raras vezes conflituosa) com a Presidência e demais autoridades civis provinciais. Como
discute, a quem e a que recorrem os bispos diocesanos quando das divergências com o poder
civil provincial? É presumível que os bispos foram em defesa da religião, mas a questão é:
Quais os discursos legitimadores da Igreja que os bispos utilizavam? Ao longo do nosso
trabalho, buscaremos possíveis respostas a esses questionamentos.
Sem dúvida, nosso estudo tem caráter de história política. É também um estudo
que tem como temática de abordagem algo que é clássico da historiografia: conflitos entre
Igreja e Estado. Mas é certo que o trabalho é conduzido por um tipo de estratégia bem
específica para tratar de uma temática já consagrada. Essa estratégia será evidenciada no
primeiro capítulo.
De fato, aconteceu conforme disse Ginzburg: foi só a partir da leitura de certos
trabalhos e de “estudos realizados de maneira independente” é que as coisas “acabavam
convergindo” 7. Foi a leitura de alguns trabalhos de nossos pares que nos inclinou a chamar de
dissidência ou conflito aqueles episódios havidos entre os bispos e os homens do Governo.
Imbuídos de tais leituras e analisando a documentação, notamos que o nosso enfoque é um
dos mais verossímeis. Por isso que em grande medida o nosso trabalho é produto de uma
atividade dialogal entre documentação e historiografia.
Posto isso, gostaríamos de apresentar algumas informações8 importantes acerca
dos ofícios. A primeira delas é que aproximadamente a metade daquele montante de mais de
7
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 26.
Vide o Quadro I anexado no final da dissertação. O quadro traz informações quantitativas acerca da totalidade
dos ofícios dos bispos ao Presidente. A intenção ao fornecer este quadro é apenas informativa. Diga-se que o
propósito não é analisar a totalidade dessa documentação. Já ficou posto que o recorte adotado compreende os
anos de 1855 a 1875. Mesmo os 738 ofícios que foram expedidos ao longo desses vinte anos não serão todos
objetos de estudo porque mais da metade desse total está inserida no rol dos ofícios estritamente burocráticos.
8
12
1.500 documentos é composta de “ofícios estritamente burocráticos”. Os ofícios inclusos
nessa categoria são aqueles em que os bispos:
1. Acusam a recepção de cópias de Avisos Ministeriais;
2. Tratam sobre a programação da Semana Santa;
3. Convidam o Presidente para festividades de santos padroeiros e festejos em geral;
4. Solicitam o comparecimento do Presidente na Igreja Catedral para solenidades
eclesiásticas;
5. Acusam o envio ou o recebimento da informação do falecimento de clérigos;
6. Acusam a recepção da informação de ter sido empossado (e entrado no cargo) um novo
Presidente provincial;
7. Comunicam ao Presidente sobre candidatos em concursos para cargos eclesiásticos;
8. Informam ao Presidente da Província acerca da nomeação de clérigos para diversos cargos;
9. Acusam a recepção de cópias de atas e leis provinciais;
10. Simplesmente enviam, junto ao ofício, outros documentos anexados como, por exemplo:
Cartas Pastorais e dispensa do preceito de abstinência de carnes durante a Quaresma.
Observe-se que neste caso estamos chamando de burocrático o ofício que anuncia e que
acompanha o documento anexo, e não este último.
Certamente os documentos estritamente burocráticos, como esses acima citados,
tiveram uma utilidade limitada para o nosso propósito. Neles, o teor é rigidamente mecânico.
Por outro lado, naqueles ofícios em que junto seguem inclusos relatórios, pareceres, denúncias
e deprecações, pudemos observar as opiniões e os posicionamentos dos bispos sobre
determinado assunto. Sendo assim, foi sobre essa segunda categoria da documentação que
incidiu o nosso trabalho de análise.
Postas essas considerações, podemos dizer que, sob o aspecto estrutural, a
dissertação está subdividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo deve ser entendido
como um prolongamento da Introdução. Nesse capítulo consta a discussão sobre as diretrizes
teóricas e metodológicas que conduziram a pesquisa. Veremos ainda nessa parte, como são
amplas as possibilidades de abordagem dos ofícios dos bispos.
O segundo capítulo apresenta um possível contexto internacional que estaria
funcionando como pano de fundo das dissensões entre a Igreja e o Estado, tanto no âmbito
13
nacional brasileiro como no âmbito provincial maranhense. Esse possível contexto
internacional explica como, ao longo do século XIX, a Igreja Católica e o cristianismo de um
modo geral, foram perdendo credibilidade. Esse contexto internacional pode ser entendido
como o ápice de um longo processo de secularização da sociedade, processo esse que, no
dizer de Nietzsche, culminou na “morte de Deus”.
O terceiro capítulo suscita alguns aspectos que marcaram a relação entre a Igreja e
o Estado no Brasil imperial. Esses aspectos são: o padroado e o beneplácito, ambos
constitucionalizados pela Carta de 1824. Veremos como esses três aspectos foram os
responsáveis por grande parte das divergências havidas entre eclesiásticos e autoridades civis.
O último capítulo da dissertação é o núcleo de toda a pesquisa; nele consta
propriamente a análise das dissidências que existiram entre a Igreja e o Estado na província do
Maranhão. Mas não há só essa discussão no quarto capítulo. Ela é precedida pela exposição
do cenário em que as dissidências foram desencadeadas, e também por algumas considerações
acerca do bispado de D. Luis da Conceição Saraiva, que foi um dos protagonistas das
controvérsias.
Qualquer trabalho acadêmico é sempre incompleto. No fim, sempre apresentamos
a versão que para nós parece mais verossímil. Sempre deslocamos a atenção para certas coisas
em detrimento de outras. Talvez tenha sido por isso que Durval de Albuquerque Junior tenha
dito que o fazer historiográfico é uma arte, a arte de inventar o passado, nas palavras dele.
Uma obra de arte sempre deixa as marcas de seu autor. E o artista sempre exagera em certos
traços, precisamente naqueles em que ele quer chamar mais a atenção do espectador. Pelos
traços e pinceladas do pintor se pode perceber a escola a qual ele pertence e a que linhas de
pensamento ele se filia. Assim mesmo ocorre com historiador, salvo, é claro, as devidas
ponderações.
De forma alguma o historiador é um pintor surrealista. Diríamos que o historiador
se assemelha apropriadamente ao pintor realista, que é descritivo, analítico, que tenta
representar com o máximo possível de fidelidade os personagens e temas que pinta. Com o
propósito de ser o máximo possível fiel ao real, o pintor realista faz estudos de anatomia, de
fisiologia, ele faz estudos sobre luz e perspectiva. Tudo isso faz o pintor realista com uma
única intenção: apresentar, na medida do possível, uma representação condizente e fiel dos
temas sobre os quais pinta. O historiador não muito se diferencia dessa categoria de pintores.
14
A intenção é basicamente a mesma, o que muda é o fato de o pintor usar cores e telas, e o
historiador lidar com a palavra.
Mas sem dúvida, se comparado ao pintor, o historiador está muito limitado. O
pintor muitas vezes está diante daquilo que pinta, e o historiador escreve sobre coisas que não
mais têm existência objetiva. O passado não mais existe. Nisso mesmo reside a complexidade
do ofício historiográfico. “O passado”, disse Walter Benjamin, “só se deixa capturar como
imagem que relampeja irreversivelmente [...]”. Por isso, “articular historicamente o passado
não significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’” 9.
Sabe-se, além disso, que um texto sempre é o reflexo de seu autor. Conosco não
poderia ser diferente. Este trabalho é produto de um momento específico da minha vida, um
momento de redescoberta da fé, de redescoberta da plausibilidade da fé, e isso após um longo
período de ceticismo. Paul Ricoeur costumava dizer que “[...] a filosofia não é simplesmente
crítica, é também da ordem da convicção” 10. O mesmo podemos dizer sobre a historiografia:
ela certamente é o exercício da crítica, mas também é a materialização da convicção. De que
nos adianta tudo destruir sem nada construir?
Postas essas considerações, iniciemos o trabalho.
9
BEJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São
Paulo: Brasiliense, 2012, p. 243. Aspas do autor.
10
RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 191
15
1 DIÁRIO DE PESQUISA: TEORIA E MÉTODO NO LIDAR COM OS OFÍCIOS DO
BISPO DIOCESANO
A intenção neste capítulo é apresentar um panorama geral que explique,
sobretudo, a trajetória percorrida durante a pesquisa documental. É certo que esta etapa não se
processou de forma isolada ou desencarnada; ela foi feita em plena associação à teoria e ao
método. É diante da documentação que surgem as possibilidades de trabalho. É também
diante dela que ficam patentes os óbices que o historiador não pode trespassar. É da leitura e
análise dos documentos que se manifestam uma série de dilemas, tais como aqueles que se
referem à organização da narrativa e à seleção da teoria e do método. Por isso, este capítulo
tem um caráter de “diário de pesquisa”. Pode-se dizer que este é o capítulo mais subjetivo de
toda a dissertação. Não é que os outros não sejam marcados pela subjetividade, mas neste aqui
ela está bem mais evidente. Este capítulo é resultado dos impactos e dos influxos das leituras
feitas ao longo dos últimos dois anos. Ele é o resultado de leituras muito proveitosas, boa
parte delas apresentadas pelos professores durante as disciplinas do Mestrado. Este capítulo é
o resultado de um certo amadurecimento que, felizmente, não foi marcado pelo ceticismo.
O capítulo está organizado da seguinte forma: primeiro será apresentado um
tópico que trata daquilo que denominamos de “percurso de trabalho”. Nele discutimos acerca
dos desafios inerentes à pesquisa historiográfica; discutimos sobre os óbices postos ao
historiador; evidenciamos os limites que lhes são postos, mas também apresentamos as
credenciais que lhes autorizam a falar de uma maneira que nenhum outro pode. As questões
suscitadas neste debate de caráter teórico estiveram presentes ao longo de toda a pesquisa.
Também quisemos expor nesse primeiro tópico as amplas possibilidades de abordagem da
documentação que utilizamos.
No segundo tópico deste primeiro capítulo, a discussão está mais focada na
especificação e exposição da teoria e do método condutores da nossa pesquisa e
argumentação. Se no primeiro tópico suscitamos as amplas possibilidades teóricas e
metodológicas de análise da documentação, no segundo tópico já está definida tanto a teoria
como o método. Cabe nesse segundo momento tratar do suporte teórico-metodológico, bem
como dizer em que sentido, em que medida e como esse suporte se relaciona com a nossa
pesquisa.
16
1.1 O percurso de trabalho
Como organizar a pesquisa? Que parâmetros tomar? Que conceitos adotar? É
possível criar algum ordenamento para as coisas? Todas estas são dúvidas recorrentes em
pesquisas de qualquer natureza. Tudo no início se afigura como um caos. O que se espera é
que esse caos se dissipe à medida que a pesquisa e o estudo avançam. Mas como esse caos é
dissipado? Ora, esta é a pergunta-chave de toda a pesquisa. Isso requer uma estratégia. É
imprescindível definir um problema para, em seguida, definir uma estratégia de ação
pertinente. Essa estratégia geralmente é representada pela teoria e pelo método. É por isso que
as respostas obtidas por um trabalho em muito refletem o aparato teórico-metodológico
adotado pelo pesquisador. Altera-se a teoria, altera-se igualmente a resposta dada ao
problema. Entre outras coisas, é por isso que não só na historiografia, mas também nos
demais campos do saber não há respostas perenes. A resposta que foi dada ontem, hoje é
reavaliada à luz de uma nova teoria ou de uma nova sensibilidade teórica.
Cumulado a isso, a historiografia possui algumas peculiaridades. Uma das mais
importantes delas reside no fato de que o historiador é sempre um narrador. Com isso
queremos enfatizar que “toda narrativa apresenta uma versão, um ponto de vista, sobre
algo”11. Porém, disse Paul Ricoeur, “o historiador não é um mero narrador: [ele] fornece as
razões pelas quais considera um fator e não outro a causa suficiente de determinado curso de
acontecimentos” 12.
Além disso, a sensibilidade historiográfica contemporânea identifica a história
como um caleidoscópio. Dela não temos imagens unívocas. A depender da posição, dos
instrumentos e do ponto de vista, conseguimos notar (a partir desse caleidoscópio) as mais
variadas e multicores imagens. A metáfora do caleidoscópio quer dizer que a história não
apresenta uma imagem única e monocromática, mas sim uma decomposição e uma sucessiva
combinação de imagens com as mais variadas cores. Era para este fenômeno que Durval de
Albuquerque Júnior queria chamar atenção quando disse: “O caráter relacional, contextual e
plural de qualquer acontecimento histórico elimina a possibilidade de uma argumentação que
11
AMADO, Janaína. “O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral”. In: Revista de
História da Universidade Estadual Paulista. vol. 14. São Paulo: UNESP, 1995, p. 133.
12
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: a intriga e a narrativa histórica. vol. 1. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012, p. 307.
17
tome, como ponto de partida, um ponto fixo” 13. Por isso dissemos que, a depender da teoria e
do método, ou seja, a depender do ponto de vista que se tome, altera-se a resposta para o
problema suscitado.
Assim é que, para Durval de Albuquerque Júnior, “a interpretação em História é a
imaginação de uma intriga, de um enredo para os fragmentos de passado que se têm na
mão”14. Os documentos com os quais o historiador se depara são “[...] monumentos
esculpidos pelo próprio historiador, ou seja, o dado não é dado, mas recriado pelo especialista
em História. O que se chama de evidência é fruto de perguntas que se fazem ao documento”15.
É por tudo isso que a historiografia “[...] nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa
e, portanto, guarda uma relação de proximidade com o fazer artístico” 16. É também um fazer
criativo porque os “documentos e outros vestígios do passado são tirados de seus propósitos e
funções originais para ilustrar, por exemplo, um padrão que nem remotamente tinha
significado para seus autores” 17.
Onde está o prejuízo nisso tudo? Ora, isso não é prejuízo algum; apenas liberta e
distingue a historiografia das ciências cartesianas. Assim é a nossa ciência. E não há erro ao
chamar a história de ciência. Só haverá erro se tomarmos como parâmetro o modelo das
ciências naturais. Mas as ciências naturais só se aplicam ao mundo físico e visível. O que se
faz com todo o resto? Como se explica o mundo simbólico e as relações que não se veem?
Quem explica a cultura, a religião e os demais fenômenos sociais e históricos? Há uma série
de problemas e inquietações impassíveis da abordagem das ciências naturais. Elas ficam
mudas quando se fala, por exemplo, em cultura. Assim é que tudo depende do conceito de
ciência que temos em mente. Se nos pautarmos no paradigma cartesiano, certamente a
historiografia não é uma ciência. Marc Bloch dizia: “Cada ciência tem sua estética de
linguagem, que lhe é própria. Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito
delicados, entre os quais muitos escapam à medida matemática” 18. Por conseguinte,
onde calcular é impossível, impõe-se sugerir. Entre a expressão das realidades do
mundo físico e a das realidades do espírito humano, o contraste é, em suma, o
13
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru: EDUSC, 2007, p. 58.
14
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63.
15
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63.
16
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63.
17
JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2001, p. 34.
18
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 54.
18
mesmo que entre a tarefa do operário fresador e a do luthier: ambos trabalham no
milímetro; mas o fresador usa instrumentos mecânicos de precisão; o luthier guia-se,
antes de tudo, pela sensibilidade dos ouvidos e dos dedos. Não seria bom nem que o
fresador se contentasse com o empirismo do luthier, nem que este pretendesse imitar
o fresador 19.
Ademais, se atentarmos para as contribuições de Certeau e de Aróstegui, veremos
que a historiografia constitui um saber sofisticado, que não é inexoravelmente subjetivo, que
requer um rigor, um fazer, uma técnica e uma erudição. É de Certeau, por exemplo, a seguinte
consideração:
Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em
“documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição
cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais
documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos
mundanos ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em
“isolar” um corpo, como se faz em física, e em “desfigurar” as coisas para construílas como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori 20.
Assim como nas demais ciências, usamos de teorias, de hipóteses que estão
passíveis de alteração e superação. Nós, historiadores, construímos nosso conhecimento. Que
prejuízo há nisso? Não se está diante de um conhecimento hermético, e é justamente isso que
possibilita o usufruto das potencialidades criativas e inventivas do historiador. Evidentemente
que isso deverá ser feito com o auxílio de um suporte teórico-metodológico.
O ofício historiográfico é um esforço hermenêutico, sendo que os intérpretes, os
historiadores, “[...] não são ‘ausentes’. Voluntariamente ou não, eles se implicam na sua
pesquisa e se engajam nas suas conclusões” 21. É claro que há uma dimensão artística no fazer
historiográfico. Mas este fazer não se encerra em pura arte ou imaginação. O próprio Durval
de Albuquerque alerta: “A narrativa histórica não pode ter jamais a liberdade de criação de
uma narrativa ficcional”
22
. Ora, há necessidade de uma teoria e de um método para tornar a
pesquisa inteligível. No dizer de Júlio Aróstegui, “sem uma teoria orientadora é possível
19
BLOCH, Marc. op. cit., p 55.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 81. Itálico e
aspas do autor.
21
DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13-18). Bauru, SP: EDUSC,
2003, p. 14-15. Aspas do autor.
22
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63.
20
19
pesquisar a história, mas dificilmente se poderá explicá-la”23. “Cada conceito que
conquistamos”, diz Paul Veyne, “refina e enriquece nossa percepção de mundo; sem
conceitos, nada se vê”
24
. As próprias “[...] fontes não funcionam sem um aparato teórico-
crítico” 25. É por isso que a pesquisa deve se processar “[...] no sentido de um marco teórico;
de concepções globais sobre o social-histórico. Somente nesses marcos, ainda que
implicitamente, é possível formular perguntas, conjeturas, hipóteses enfim” 26.
Daí a dedução é a seguinte: não somos por completo nem artistas nem cientistas
no sentido cartesiano. A nossa subjetividade não é absoluta nem completamente irrestrita. A
nossa invenção não é ex nihilo nem arbitrária; agimos mediados pela documentação. Assim é
que estamos sempre em meio aos dilemas e a uma posição intermediária que parece
intransponível.
É por isso que, segundo Certeau, o historiador deve renunciar a qualquer posição de
superioridade e demonstrar uma humildade de princípios que, ao mesmo tempo em
que prossegue a sua marcha rumo à compreensão do outro, sabe que o enigma
jamais será totalmente reabsorvido por aquilo que lhe resiste [...]. A história é, nesse
sentido, o lugar privilegiado onde o olhar se inquieta 27.
Neste sentido, “a erudição histórica tem por função reduzir a proporção de erro da
fábula, diagnosticar o falso, correr atrás do falsificável, mas com uma incapacidade estrutural
de alcançar uma verdade definitivamente estabelecida do vivido que passou”
28
. Aí está
sucintamente descrito os dilemas que nos afligem, as fronteiras que não podem ser
suplantadas.
É importante que os limites sejam reconhecidos. Foi precisamente isso que fez o
giro linguístico. Essa viragem linguístico-epistemológica considerou que “o problema
essencial de toda crítica do discurso histórico é a necessidade de optar entre conceder à
História um ‘conteúdo de verdade’ ou apenas de ‘verossimilhança’”
29
. É este o problema
sempre atual que o historiador enfrenta. Diz Aróstegui que a resposta pós-modernista para isto
foi que “[...] o historiador deve abandonar toda ingênua e perigosa ilusão de contribuir para
23
ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 476.
VEYNE, Paul. O inventário das diferenças: história e sociologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p. 30.
25
ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 480.
26
ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 476-477.
27
DOSSE, François. História e ciências sociais. Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 212.
28
DOSSE, François. op. cit., p. 204.
29
ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 187-188. Aspas do autor.
24
20
um conhecimento científico, [pois] o explicável na obra histórica é seu caráter estético, onde o
estilo é o mais importante”
30
. Ora, com efeito, o estilo não é o mais importante. Ele é
relevante sim; no entanto, há rigores bem mais essenciais. O historiador não escreve uma
novela, um poema, uma ficção. Peter Gay tem uma consideração importante sobre isso:
“Uma cópia do universo”, disse Rebeca West, “não é o que se requer da arte; basta
uma das insignificâncias”. Exatamente. Mas o que não se requer da arte é o que se
requer da história: descobrir, por chocante que seja a descoberta, como era o velho
universo, ao invés de inventar um novo. A diferença é simplesmente decisiva 31.
Assim, o historiador usa técnicas de retórica, de erudição e de estilo não como fins
em si mesmos, não como forma de contar uma fantasia da imaginação, mas sim como
estratégia de falar sobre algo que teve uma existência objetiva no passado. Como disse Roger
Chartier,
é preciso lembrar que a ambição de conhecimento é construtiva da própria
intencionalidade histórica. Ela funda as operações específicas da disciplina:
construção e tratamento dos dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de
resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto.
Mesmo que escreva de forma “literária”, o historiador não faz literatura, e isto pelo
fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, portanto em
relação ao passado do qual ele é vestígio. [...] Dependência, continuando, em relação
aos critérios de cientificidade e às operações que são o seu “ofício” 32.
Diga-se ainda que existe sim uma pretensão de verdade na historiografia:
“Abandonar essa intenção de verdade seria deixar o campo livre a todas as falsificações, a
todas as falsidades”33. Ora, o passado objetivamente existiu. É desse passado que
objetivamente existiu que o historiador tem a pretensão de falar. Quando nos expressamos
dessa forma estamos considerando, inclusive, aquelas vertentes historiográficas que analisam
o imaginário. Elas não contradizem o que foi dito aqui. Os pesquisadores dessa seara querem,
por exemplo, “[...] compreender como é que funcionava de fato [e] o que é que podia ser a
30
ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 187.
GAY, Peter. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo: Companhia das Letras,
1990, p. 175.
32
CHARTIER, Roger. “A história hoje: dúvidas, desafios, propostas”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 110. Aspas do autor.
33
CHARTIER, Roger. op. cit., p. 111-112.
31
21
cabeça de um camponês” 34 da primeira Idade Média. Este campo riquíssimo e promissor traz
premissas que desagradam aqueles que desejam atribuir a todas as dimensões sociais
unicamente os influxos dos poderes materiais e econômicos. O imaginário constitui uma
perspectiva que desloca o centro das atenções para dimensões invisíveis e que, não obstante,
são reais. Essas dimensões são tão reais que são capazes de dirigir e de coordenar a vida das
pessoas.
Os estudos sobre o imaginário estão atentos à seguinte noção de Jacques Le Goff:
“Há fatos materiais, visíveis como as batalhas, as guerras, os atos oficiais dos governos; [mas]
há fatos morais, ocultos, que nem por isso são menos reais”
35
. Vê-se, portanto, que o estudo
do imaginário não é desencarnado. O imaginário é relevante justamente porque orienta
condutas humanas que têm existência objetiva, sendo de fato “[...] o sentimento real que uniu
socialmente muitos homens comuns, tão sensatos e egoístas como nós” 36.
Assim também ocorre com o passado: ele teve existência objetiva; isso ninguém
pode negar. Parece-nos que foi a isto que Paul Veyne se referiu ao dizer: “Materialmente, a
História é escrita com fatos; formalmente, com uma problemática e conceitos”37. Edward
Palmer Thompson também esteve de acordo com essa visão quando disse que o objetivo do
historiador
[...] é reconstituir, “explicar”, e “compreender” seu objeto: a história real. As teorias
que os historiadores apresentam são dirigidas a esse objetivo, dentro dos termos da
lógica histórica [...]. Nosso objetivo é o conhecimento histórico; nossas hipóteses
são apresentadas para explicar tal formação social particular no passado, tal
sequência particular de causação 38.
O historiador reúne instrumentos e esforços para, de alguma forma e em alguma
medida, acalmar inquietações presentes, problemas atuais, mas que não deixam de se associar
com o passado que objetivamente existiu. Mais que qualquer outra categoria de estudiosos, os
historiadores estão atentos ao que disse Wittgenstein: “Queremos compreender algo que já
34
LARDREAU, Guy. In: DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a nova história. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1989, p. 61.
35
LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 40.
36
CHESTERTON, G. K. O homem eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 147.
37
VEYNE, Paul. op. cit., p. 6.
38
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 67-68.
Aspas do autor.
22
está aberto diante de nossos olhos. Porque, em um certo sentido, é isto que parecemos não
compreender” 39. É o presente, é aquilo que está aí que muitas vezes nos inquieta.
O que ocorre é que os historiadores se deparam com este entrave realmente
intransponível e inevitável: “se é complicado ter conhecimento de algo que existe, então fica
especialmente difícil dizer alguma coisa sobre um tema efetivamente ausente como é o
passado [...]” 40. Acresce-se a isto o fato de que
o sentido de um acontecimento para a sua posteridade está perpetuamente aberto a
revisões. [...] A história é, em suma, inacabada no sentido de que o futuro sempre
utiliza seu passado de novas maneiras. Mas este argumento não afeta em absoluto a
questão de que uma interpretação é uma tentativa de oferecer uma explicação
objetiva de um passado objetivo 41.
Por isso, ousamos dizer que, assim como os filósofos, os historiadores estão à
procura de sentido. O fundamento de toda inquietação é a busca de sentido. Sem desejar
sentido, não há por que procurar nada. A postura mais coerente para quem nega este ponto de
vista é concordar com Albert Camus; é tomar “o absurdo [...] como um ponto de partida” 42.
Por absurdo ele entende o vazio, a completa ausência de sentido que muitas vezes culmina no
suicídio. E culmina no suicídio porque
matar-se, em certo sentido, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou
que não a entendemos. [...] Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu,
mesmo que instintivamente, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o
caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento 43.
Assim é que Camus chega ao ponto em questão:
Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo
familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo
contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, por que está
privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra
39
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 64-65.
JENKINS, Keith. op. cit., p. 30.
41
GAY, Peter. op. cit., p. 191.
42
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Best Bolso, 2012, p. 18.
43
CAMUS, Albert. op. cit., p. 21.
40
23
prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é
propriamente o sentimento do absurdo 44.
O nosso ponto de vista é outro. Preferimos acreditar, como Paulo de Tarso, que as
coisas se nos afiguram como absurdas porque “o nosso conhecimento é limitado”
isso que “jamais compreendemos o bastante”
46
45
. É por
. Vejamos as coisas como Kierkegaard que,
mesmo diante do absurdo e do desespero, dizia: “A superioridade do homem sobre o animal
está em ser suscetível de se desesperar”
47
. Não é que não haja sentido. No nosso caso, na
historiografia, o sentido parece não ser unívoco nem dogmático. Trata-se um sentido em
permanente reestruturação e sempre aberto a novos enxertos. Na historiografia, “o sentido não
é algo estável, que poderia ser relacionado a uma posição absoluta” 48.
É por esses e outros motivos que, como Pascal, temos a impressão de que “por
mais que expandamos as nossas concepções para além dos espaços imagináveis, não geramos
senão átomos em comparação com a realidade das coisas” 49.
É evidente que o discurso historiográfico possui limites. Mas a consciência acerca
dessas limitações não pode ser suicida a ponto de calar o historiador ou de equiparar a sua voz
a voz dos demais. A voz do historiador é peculiar, tem um som próprio. O historiador não é
um qualquer. Ele é alguém com formação acadêmica e com um nível de erudição que o
diferencia dos outros. Esse é o ponto principal a ser reconhecido. Diz Aróstegui que “o
trabalho historiográfico deve manter antes de tudo suas especificidades e resolver no seu
próprio interior os problemas dos conceitos gerais, da representação, da linguagem”
50
. Ora,
isso não poderá ser feito se estivermos morbidamente ciosos das limitações do discurso
historiográfico e descurados dos domínios onde temos credenciais para exercer nosso ofício.
Se há fronteiras que marcam os limites do discurso historiográfico, daí mesmo se deduz que
há um território envolvido por essas fronteiras. Se é assim, se há um território que nos
compete, então estamos lidimamente autorizados a falar sobre ele. Não é que os outros não
possam falar sobre esse território. O que ocorre é que a historiografia tem, pelo menos, dois
44
CAMUS, Albert. op. cit., p. 21.
“Primeira epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios”. Capítulo 13, 9. In: Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão.
São Paulo: Paulus, 2008, p. 2010.
46
BLOCH, Marc. op. cit., p. 128.
47
KIERKEGAARD, Sören. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 21.
48
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes/
UNICAMP, 1993, p. 120.
49
PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 79.
50
ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 238.
45
24
mil anos de existência. Os saberes e as técnicas acumuladas durante esses séculos certamente
deu aos historiadores credenciais que, no mínimo, os colocam num patamar distinto dos
demais.
É preciso estar atento para o fato de que essa discussão de caráter mais
epistemológico acerca da historiografia foi inserida justamente porque ela esteve presente
durante a pesquisa documental, durante a definição da forma de abordagem do problema e
durante a produção da dissertação de um modo geral. Ora, trata-se de uma reflexão
epistemológica; e uma reflexão dessa natureza nunca é sem sentido ou inoportuna.
Passado este primeiro momento, gostaríamos de fazer uma exposição mais
aprofundada da documentação, do problema que constitui o cerne da nossa pesquisa e das
amplas possibilidades de abordagem deste problema.
Já sabe o leitor que a documentação que utilizamos foi a correspondência oficial
dos bispos do Maranhão ao Presidente da Província ao longo do século XIX. É claro que os
ofícios dos bispos de forma alguma se encerram em mera correspondência burocrática, inócua
ou desinteressada. Na análise desses escritos, levamos em consideração algo dito por Carlo
Ginzburg:
Naturalmente esses documentos não são neutros; a informação que nos fornecem
não é nada “objetiva”. Eles devem ser lidos como produtos de uma relação
específica, profundamente desigual. Para decifrá-los, devemos aprender a captar por
trás da superfície lisa do texto um sutil jogo de ameaças e medos, de ataques e
retiradas. Devemos aprender a desembaraçar os fios multicores que constituíam o
emaranhado desses diálogos 51.
É justamente porque a informação contida nesses documentos não é objetiva que
eles são úteis. Importa aqui o ponto de vista dos bispos diocesanos, a sua versão sobre os
fatos, e a forma como eles estruturaram seu discurso. Podemos dizer que neste trabalho
“importa a versão, não o fato” 52. O problema central a ser analisado reside no seguinte: como
a Igreja Católica, manifestada pelos seus expoentes máximos na província (os bispos), reagiu
diante daquelas vicissitudes postas pela autoridade civil? Que fatores e discursos os bispos
utilizaram a seu favor e a favor da Igreja?
51
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa/ Rio de Janeiro: DIFEL/ Editora Bertrand
Brasil, 1989, p. 209. Aspas do autor.
52
AMADO, Janaína. op. cit., p. 133.
25
No percurso de análise dos ofícios, algumas noções de Pierre Bourdieu foram bem
relevantes. Elas nos ajudaram a descobrir uma dimensão importante dessa documentação.
Vejamos, por exemplo, o que está mencionado a seguir:
A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de
conhecimento, mas sim um instrumento de poder. Não procuramos somente ser
compreendidos mas também obedecidos, acreditados, respeitados, conhecidos 53.
Partindo dessa noção, podemos dizer que as técnicas de retórica, de organização
da escrita e de articulação das palavras foram utilizadas pelos bispos no sentido de persuadir,
de ser obedecido e de evocar a sua autoridade como príncipe da Igreja. “Existe todo um
aspecto da linguagem de autoridade que não tem senão a função de relembrar essa autoridade
e de remeter à crença que ela exige”
54
. Ora, é isto mesmo que fazem os bispos ao longo de
seus ofícios. D. Luis da Conceição Saraiva, ao desentender-se com o Inspetor da Tesouraria
da Fazenda, diz assim: “Além da minha jurisdição de Diocesano, acresce-me a [...] de
Delegado da Santa Sé Apostólica, em cujo exercício tenho atribuições para ingerir-me em
todos os negócios da mesma Ordem [das Mercês]” 55.
Em seus ofícios, os bispos insistem constantemente na observância da
Constituição Imperial pelas autoridades civis, na proteção jurada à Igreja, nos postulados do
Concílio de Trento e na moralidade. Mas o que se percebe na leitura desses ofícios é que a
sensibilidade das autoridades civis acerca desses pontos muitas vezes destoava daquela que
tinha os eclesiásticos. Ora, é justamente nesse desencontro de sensibilidades que repousa a
causa dos embates entre a Igreja e o Estado. Quando diante desses impasses, os bispos
suscitaram argumentos bem específicos. Eles colocaram o cristianismo católico como um
elemento unificador e identitário da nação. Eles aduziram que o cristianismo esteve presente
desde os primórdios do Brasil e que, portanto, constituía um elemento do que chamaríamos de
memória nacional, a qual caberia ao Estado zelar. Era também por isso que, para os bispos, o
alicerce e a estabilidade do Estado estavam na religião católica.
53
BOURDIEU, Pierre. “A economia das trocas linguísticas”. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. 2. ed.
São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 160-161.
54
BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 162.
55
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
26
Nos ofícios, notamos ainda que os bispos analisaram os casos postos à sua
apreciação com o auxílio de uma interpretação do passado. Nesse sentido, é plenamente
possível dizer que em seus ofícios os bispos evocaram uma memória específica diretamente
associada ao catolicismo, de forma a fortalecer a causa da Igreja e a convencer o Governo
Civil de que naquelas controvérsias quem tinha razão eram eles, os bispos. Vejamos o
seguinte trecho:
Desde a paz da Igreja, e Século de Constantino Magno o Sacerdócio Cristão tem
sido honrado, e socorrido pela beneficência, e liberalidade dos principais, dos
governos [...] porque do mesmo sacerdócio a humanidade em desgraça tem
participado os mais importantes benefícios 56.
Como disse Michael Pollak, “a referência ao passado serve para manter a coesão
dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo,
sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis”
57
. Disse ainda o autor que,
ao lado dos acontecimentos vividos pessoalmente pelos indivíduos, há uma segunda categoria
de acontecimentos: os “vividos por tabela”. Isso quer dizer que
[...] a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que
não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização
histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado
passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada 58.
Diante disso, é possível inferir duas considerações: a primeira delas é que os
bispos fizeram uma reapropriação do passado. Eles se identificaram com um passado bem
distante do seu espaço-tempo. A segunda é que essa reapropriação do passado tem em vista a
discussão de eventos que ocorrem no presente. Os bispos relacionam passado e presente no
sentido de legitimar a causa da Igreja. É neste âmbito que se pode tomar outra noção de
Pollak: a de enquadramento de memória. Para o autor,
56
Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Capitão de Mar e Guerra e Presidente da Província do
Maranhão Francisco Bibiano de Castro, 23/06/1837, Setor de Avulsos, APEM.
57
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
2, nº 3, 1989, p. 9.
58
POLLAK, Michael. op. cit., p. 2.
27
o trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela
história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um semnúmero de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as
fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta
incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro. [...]
Toda organização política [...] veicula seu próprio passado e a imagem que ela
forjou para si mesma [...] 59.
Neste exercício, os bispos recriaram o passado trazendo-o até o presente,
conferindo-lhe significados. Ademais, fizeram eles uma projeção do futuro graças à faculdade
da memória de transitar autonomamente entre as temporalidades 60.
É possível considerar ainda o seguinte: muitas vezes ocorre que os homens
deixem de ter uma ideia exata do lugar que ocupam no pensamento dos outros 61. Em grande
medida este fenômeno parece ser experimentado pelos bispos quando eles falam, por
exemplo, de “indiferença religiosa” e de “declínio do culto público”.
Até agora temos falado dos ofícios sem dizer no que consiste esses documentos.
Por ofício, deve-se entender a forma de correspondência oficial entre as autoridades do
império. É preciso compreender que não se trata de um simplório ou desinteressado trâmite de
papeis. Para entendermos melhor sua funcionalidade, basta termos em mente que o ofício é a
forma de comunicação oficial entre as diversas autoridades intra e/ou extra provinciais. Por
ser a forma de correspondência oficial, os ofícios obedecem a uma linguagem que lhe é
própria, com termos e textos padronizados. Mas neste trabalho, veremos que os ofícios
possuem não somente uma dimensão oficial, mas, sobretudo, oficiosa, ou seja, informal.
Essas duas dimensões são plenamente perceptíveis quando da leitura dos ofícios dos bispos.
Eles certamente utilizaram os ofícios com a finalidade oficial, mas não apenas com esta.
Vejamos o favor que D. Marcos solicitou ao Presidente Luis Alves de Lima em benefício da
viúva D. Rosa Álvares,
[...] moradora na Vila do Rosário, [que] lamenta a sorte de um único filho Aprígio
Antonio da Silva, que lhe servia de abrigo [...], e fazia ofícios de pai a cinco irmãos
de menoridade, e em desamparo. Suas lágrimas enterneceram o coração do Bispo,
que é o pai espiritual dos seus Diocesanos. A sobredita viúva nas amarguras da sua
59
POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
2, nº 3, 1989, p. 10.
60
AMADO, Janaína. op. cit., p. 132.
61
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006, p. 35.
28
dor se persuadiu, que eu poderia advogar por seu filho preso a bordo da Charrua de
guerra para ir para o Rio Grande 62.
Leiamos ainda o pedido de D. Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré, bispo de
Coimbra e conde de Arganil,
[...] que tendo sido repetidas vezes convidado por diferentes Senhores desta Cidade
do Maranhão, entre eles o Excelentíssimo Senhor Bispo Diocesano, para vir
refugiar-se aqui da perseguição, que o Governo de Portugal lhe tem suscitado há
mais de cinco anos, a fim de o obrigar a não cuidar mais do Rebanho, que a Divina
Providência lhe confiara, forçado ultimamente a sair daquele Reino, para evitar
ulteriores vexações [...] 63.
Diante disso, são inegáveis os favores informais e também o peso político dos
ofícios no que concerne ao relacionamento entre as autoridades. Vê-se que certamente há um
percurso oficial e oficioso dessa correspondência.
A intenção neste tópico inicial foi mostrar o máximo possível da caminhada
percorrida ao longo da pesquisa que culminou neste trabalho. Este percurso envolveu teoria
da história, envolveu metodologia e envolveu epistemologia. Cada um desses pontos, ainda
que sucintamente, foi tratado neste tópico. Dizíamos no início que este capítulo seria, talvez, o
mais subjetivo de toda a dissertação. Mas até aqui não se viu pura subjetividade. Houve sim
um exercício de diálogo entre a nossa pesquisa e a pesquisa de outros que vieram antes e têm
muito a dizer. É nesse caráter dialogal mesmo que, segundo Paul Ricoeur, reside a
objetividade na historiografia. Disse ele:
A esse anseio de conexão do lado do fato histórico corresponde a esperança de que
os resultados obtidos por diferentes pesquisadores possam se acumular, por um
efeito de complementaridade e de retificação mútuas. O credo da objetividade nada
mais é senão essa dupla convicção de que os fatos relatados por histórias diferentes
podem se conectar e de que os resultados dessas histórias podem se completar 64.
62
Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Coronel Luis Alves
de Lima, 03/03/1841, Setor de Avulsos, APEM.
63
Ofício do Bispo de Coimbra e Conde de Arganil Dom Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré ao Presidente
da Província do Maranhão, Baía de São Marcos a bordo do Navio Wilberforce, 22/06/1864, Setor de Avulsos,
APEM.
64
RICOEUR, Paul. op. cit., p. 292.
29
Sendo assim, o ofício do historiador não se constitui de puro subjetivismo ou
arbitrariedade volitiva. Nós utilizamos dos rigores científicos até onde é possível utilizá-los.
Chega um ponto, porém, em que simplesmente a ciência se cala porque ela não tem nada a
dizer em certos assuntos. São essas lacunas não preenchidas pela ciência que a erudição
historiográfica tenta cobrir, ainda que modestamente.
Também em nossa seara não há aquela situação de separação peremptória entre
sujeito e objeto de pesquisa. Nós somos feitos da mesma substância daqueles que estudamos.
Se notarmos isso, veremos que não há como escapar da subjetividade. Isso não pode ser visto
como puro entrave, posto que este atributo é da natureza mesma do saber historiográfico.
Sobre isso, disse G. K. Chesterton:
Enquanto ignorarmos esse lado subjetivo da história, que mais simplesmente pode
ser chamado de lado interior da história, sempre haverá limitação nessa ciência.
Enquanto os historiadores não conseguirem fazer isso, a ficção será mais verdadeira
que o fato. Haverá mais realidade num romance; isso mesmo, até num romance
histórico 65.
Além dessas reflexões de caráter epistemológico, quisemos, em continuidade da
Introdução, apresentar considerações importantes sobre a documentação pesquisada. Com
efeito, ela é bem rica e profusa. Apresentamos ainda os enfoques e as formas de abordagem
que serão utilizadas de maneira associativa ao eixo teórico principal adotado neste trabalho.
Agora é o momento de dizer precisamente qual é esse eixo teórico e de definir o método de
análise dos ofícios.
1.2 Os ofícios: palco de representações
Do título mesmo deste tópico já se presume qual a corrente teórica a qual filiamos
o nosso trabalho. Trata-se da História Cultural. O nosso trabalho faz uma história política
pautada no cultural. Neste sentido, uma das principais noções aqui utilizadas é a de
representação. Os ofícios constituem um palco de representação justamente porque neles os
bispos representam a posição que ocupam na Igreja e na sociedade. Estes escritos evidenciam
as concepções de mundo dos seus autores. É justamente na medida em que os ofícios
65
CHESTERTON, G. K. op. cit., p. 147-148.
30
apresentam uma cosmovisão, que eles servem ao nosso propósito. A nossa análise se
concentra nas representações que os bispos do Maranhão atribuíram a si enquanto autoridades
religiosas e à Igreja Católica. Assim, pode-se dizer que os embates e controvérsias entre os
bispos e as autoridades civis constituem, antes de tudo, “[...] lutas de representação, cujo
objetivo é a ordenação da própria estrutura social” 66.
Ademais, as dissensões entre Igreja e Estado envolvem diretamente o que Pierre
Bourdieu chamou de capital simbólico. Este “não é outra coisa senão o capital econômico ou
cultural quando conhecido e reconhecido, quando conhecido segundo as categorias de
percepção que ele impõe”
67
. Adotando esta premissa, pode-se dizer que as dissensões entre
os bispos e as autoridades civis ocorreram num plano simbólico, e que foram lutas simbólicas.
Diz Bourdieu que essas disputas têm lugar porque
[...] na luta pela produção e imposição da visão legítima do mundo social, os
detentores de uma autoridade burocrática nunca obtêm o monopólio absoluto [...].
De fato, sempre existem, numa sociedade, conflitos entre poderes simbólicos que
visam impor a visão das visões legítimas 68.
O interessante é que os dois poderes conflitantes (Igreja e Estado) estavam formal
e juridicamente unidos no século XIX. O próprio padroado, mantido na Constituição de 1824,
foi objeto de controvérsias. Se isto mesmo era motivo de desentendimentos, como não supor
que houve embates entre autoridades religiosas e homens do Governo? Nós nos centraremos,
sobretudo, na dimensão simbólica desses embates. Aqui, “os enfrentamentos fundados na
violência bruta, na força pura, se transformam em lutas simbólicas”
69
. Estes conflitos têm
lugar numa esfera invisível e intangível, só acessível ao discurso. É neste sentido que o nosso
estudo tomou como fundamental uma assertiva de Chesterton. Disse ele: “Está sempre
teimosa e estupidamente repetindo que os homens lutam por fins materiais, sem refletir por
um instante que os fins materiais quase nunca são materiais para os homens em luta” 70. Dessa
forma, pode-se dizer que o nosso trabalho “é antes de tudo uma história das relações de forças
66
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/ UFRGS, 2002, p. 73.
67
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p. 163.
68
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p. 165.
69
CHARTIER, Roger. “Defesa e ilustração da noção de representação”. In: Fronteiras, Doutorados, MS, v. 13,
n. 24, julho/dezembro, 2011, p. 20.
70
CHESTERTON, G. K. op. cit., p. 148.
31
simbólicas, uma história da aceitação ou da rejeição pelos dominados dos princípios
inculcados, das identidades impostas [...]” 71.
O conceito de representação aqui adotado é aquele proposto por Roger Chartier.
Diz ele que as representações,
[...] aspirando à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses de grupos que as forjam [e] não são de forma alguma
discursos neutros; produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma
autoridade [...] a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios
indivíduos, as suas escolhas e condutas 72.
Entender os ofícios dos bispos diocesanos enquanto palco de representações,
sendo que estas estão alicerçadas em estratégias simbólicas, implica a avaliação de um ponto
importante: a aceitação concedida (ou não) às representações, isso porque
é do crédito concedido à representação que depende a autoridade do grupo ou do
poder que a propõe. Assim, existem modalidades do fazer crer, procedimentos e
dispositivos, discursivos ou formais, que objetivam coagir o leitor, sujeitá-lo,
convencê-lo; por outro lado, existem formas de crença, variações possíveis diante
dos mecanismos persuasivos, contrassensos, rebeldias, táticas 73.
Dessa forma, assim D. Marcos, bispo do Maranhão, representa a Igreja:
A Igreja sendo uma sociedade perfeita, recebeu do seu Divino Fundador todos os
poderes necessários para seu governo espiritual. Ela pois só tem direito de
estabelecer suas Leis, de variar, e regular sua disciplina sem ingerência de algum
poder humano. Ela o exercitou efetivamente sob os imperadores idólatras, e o fato
de se converterem estes, e abraçar a religião Cristã não lhes deu, nem lhes podia dar
outro direito que o de protegerem, e manterem em seus estados 74.
Nota-se, portanto, que analisar os ofícios com o auxílio da noção de representação
e sob o prisma da História Cultural é um enfoque plenamente justificável. A pertinência desse
71
CHARTIER, Roger. op. cit., p. 108.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1998, p. 17.
73
CARVALHO, Francimar Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier.
Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, nº 01, 2005, p. 154.
74
Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Luis Alvares de
Lima, 07/03/1840, Setor de Avulsos, APEM.
72
32
enfoque é corroborada ainda se notarmos o que disse o mesmo D. Marcos ao solicitar o
aumento da côngrua concedida aos bispos do Maranhão por Lei do Orçamento de 22 de
outubro de 1836:
Todas as nações civilizadas em que se conserva amor à ordem, e à justiça, há
respeito aos costumes, e às leis, jamais têm tolerado que a Mão Sagrada que
abençoa, e distribui as graças espirituais, se estenda para mendigar o necessário
alimento 75.
Geralmente quando se fala de representações, subentende-se que há a imposição
delas por estratégias linguísticas e discursivas. Mas no caso e no contexto que estamos
analisando não se trata tanto da imposição, posto que no século XIX a Igreja Católica e o
Estado brasileiro estavam associados juridicamente através da Constituição de 1824. Vejamos
bem: é claro que ainda que indiretamente trata-se da imposição de uma representação. Mas
não é tanto a imposição na acepção literal da palavra. Ora, é presumível que se o Estado
reconhece uma religião oficial, ele deve acatar os ditames doutrinais e dogmáticos dessa
religião. Muitas vezes, o que se percebe da leitura dos ofícios é que a argumentação dos
bispos esteve orientada no sentido de relembrar as autoridades civis da relação jurídica de
concórdia que unia a Igreja e o Estado.
Redigindo os seus ofícios, os bispos supuseram que as autoridades civis
partilhavam das mesmas crenças que eles, sobretudo porque o catolicismo era a religião
oficial do Império. Mas é esta configuração mesma que possibilita a existência da polêmica e
da controvérsia. Nesse sentido, disse Dominique Maingueneau que
o exercício da polêmica presume a partilha do mesmo campo discursivo e das leis
que lhe são associadas; [...] a polêmica supõe um contrato entre os adversários e,
com ele, a ideia de que existe um código transcendente, reconhecidos pelos
membros do campo 76.
Até aqui ficou posto o direcionamento teórico do trabalho. É preciso agora
apresentar o método utilizado na análise dos ofícios. Um método que está efetivamente atento
aos influxos da História Cultural é a análise do discurso. Ora, é no discurso que se
75
Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Capitão de Mar e Guerra e Presidente da Província do
Maranhão Francisco Bibiano de Castro, 23/06/1837, Setor de Avulsos, APEM.
76
MAINGUENEAU, Dominique. op. cit., p. 125.
33
consubstancia a representação. Analisar o texto, o documento escrito, sob a perspectiva do
discurso é, no dizer de Eni Orlandi, “olhar o texto como fato, e não como um dado, é observar
como ele, enquanto objeto simbólico funciona”
77
. Dessa forma, segundo a autora, o analista
do discurso tem por objetivo averiguar a historicidade do texto, ou seja, a maneira que ele
produz sentidos. Atento ao fato de que o discurso é estrutura e acontecimento, o propósito da
análise do discurso “[...] é compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos,
sendo ele concebido enquanto objeto linguístico-histórico” 78.
A análise do discurso revelou-se uma estratégia importante no lidar com os ofícios
dos bispos diocesanos sobretudo porque ela
[...] está interessada no texto não como objeto final de sua explicação, mas como
unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. O trabalho do analista é percorrer a
via pela qual a ordem do discurso se materializa na estruturação do texto. [Assim,]
feita a análise, não é sobre o texto que falará o analista, mas sobre o discurso 79.
Ora, é precisamente por isso que o instrumental metodológico fornecido pela
análise do discurso se harmoniza com o enfoque dado aos ofícios dos bispos. Esses
documentos, como dissemos, serão tomados como palco do discurso e da representação, e não
como escritos isolados. É precisamente neste sentido que a análise do discurso é uma
estratégia metodológica útil ao nosso propósito. Dela vem a seguinte premissa, plenamente
em consonância com o nosso enfoque: “Um texto é uma peça de linguagem de um processo
discursivo muito mais abrangente” 80.
Além dessas premissas gerais propostas pelo método da análise do discurso,
gostaríamos de suscitar algumas considerações importantes enunciadas por Paul Ricoeur. Ele
entende que o discurso escrito possui uma série de peculiaridades se comparado ao discurso
falado.
A escrita suscita um problema específico, já que não é apenas a fixação de um
discurso oral prévio, a inscrição da linguagem falada, mas é pensamento humano
diretamente trazido à escrita sem o estágio intermediário da linguagem falada. A
escrita toma o lugar da fala. [...] No discurso falado, [...] a intenção subjetiva do
77
ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1996, p. 58.
78
ORLANDI, Eni Puccinelli. op. cit., p. 56.
79
ORLANDI, Eni Puccinelli. op. cit., p. 60-61.
80
ORLANDI, Eni Puccinelli. op. cit., p. 61.
34
locutor sobrepõe-se de tal modo que é a mesma coisa entender o que o locutor
pretende dizer e o que o seu discurso significa. [...] Contudo, com o discurso escrito,
a intenção do autor e o significado do texto deixam de coincidir. [Assim] a carreira
do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo seu autor. O que o texto significa
interessa agora mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu 81.
Na escrita, “o discurso está [...] ligado a um suporte material, torna-se mais
espiritual, no sentido de que é libertado da estreiteza da situação face a face” 82. É por isso que
“faz parte da significação de um texto estar aberto a um número indefinido de leitores e, por
conseguinte, de interpretações”
83
. Com a escrita, rompe-se a barreira imposta pela situação
dialógica e é justamente por isso que “o texto liberta a sua significação da tutela da intenção
mental do autor” 84.
Wittgenstein já havia se referido aos problemas inerentes à linguagem quando
disse:
A dificuldade é, em rigor, a seguinte: ao queremos expressar um sentido totalmente
determinado, subsiste a possibilidade de errar o alvo. Parece, pois, que, por assim
dizer, não temos nenhuma garantia de que a nossa proposição seja realmente uma
imagem da realidade 85.
Ele aduziu ainda que:
As convenções da nossa linguagem são extraordinariamente complicadas. A cada
proposição acrescenta-se em pensamento muitíssimo que não é dito. [...] É claro: sei
aquilo que com a proposição vaga quero dizer. Mas alguém não compreende e diz
«sim, mas se tu queres dizer isso, terias de acrescentar – isto e isto»; então outrem
não compreenderá e exigirá que a proposição seja ainda mais pormenorizada.
Responderei então: sim, mas ISSO compreende-se por SI 86.
Realmente Wittgenstein tinha razão: “A cada proposição acrescenta-se em
pensamento muitíssimo que não é dito”. Trata-se de algo até involuntário. Assim, o autor
supõe que o leitor conhece aquilo que está em discussão e simplesmente deixa de pronunciar
81
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 45-47.
RICOEUR, Paul. op. cit., p. 48.
83
RICOEUR, Paul. op. cit., p. 49.
84
RICOEUR, Paul. op. cit., p. 55.
85
WITTGENSTEIN, Ludwig. Cadernos (1914-1916). Lisboa: Edições 70, 1998, p. 100. Itálico do autor.
86
WITTGENSTEIN, Ludwig. op. cit., p. 104. Itálico do autor.
82
35
uma série de elementos ou conexões. O autor muitas vezes supõe que o leitor fará as mesmas
concatenações mentais que ele (autor) e que, portanto, não haverá óbices à compreensão. Ora,
é isso mesmo que acontece ao longo dos nossos trabalhos. Por certo, isso também ocorre nos
ofícios dos bispos. Parece-nos que estes problemas inerentes à linguagem são intransponíveis.
Essas considerações de Wittgenstein dialogam muito bem com aquilo que disse Ricoeur e
Orlandi. Com efeito, é porque “as convenções da nossa linguagem são extraordinariamente
complicadas” que o texto está aberto a um número indeterminado de interpretações e sentidos.
Posta essa reflexão acerca das peculiaridades inerentes à linguagem, gostaríamos
agora de dizer em que sentido a noção de representação se relaciona ao nosso trabalho. Isso, é
claro, exige uma discussão.
Disse Roger Chartier: “É do crédito concedido (ou recusado) às representações
que depende a autoridade de um poder ou força de um grupo”
87
. Ora, é este mesmo o cerne
do problema. Todo o século XIX é perpassado por um verdadeiro descrédito ou por uma
relutância em aceitar aquilo que a Igreja Católica atribuía a si. O século XIX é quase um
período de ocaso para o cristianismo católico. “No século XIX”, disse John Henry Newman,
“a Igreja Romana não goza de grande popularidade, nem de riquezas, de glória ou de grandes
esperanças para o futuro” 88.
E não foi só o catolicismo; o cristianismo por inteiro sofreu sérios abalos no
século XIX. Pode-se dizer, parafraseando Michel de Certeau, que este é um período em que
“esgota-se o crer”, em que “a capacidade de crer parece estar em recessão”
89
. Segundo
Certeau, na contemporaneidade ocorre uma alteração nos paradigmas do saber: a
invisibilidade do real, premissa antiga, cedeu o seu lugar à visibilidade. “O simulacro
contemporâneo é, em suma, a localização derradeira do crer no ver, é o visto identificado com
aquilo que se deve crer”. E é assim que “a crença não repousa mais em uma alteridade
invisível, escondida por trás de signos”
90
. Podemos dizer que é bem esse um dos cernes do
problema enfrentados pela Igreja Católica durante o século XIX. É um problema no crer. É
uma descrença não só na Igreja enquanto instituição, mas também no Deus propugnado pelo
cristianismo. Talvez essa seja a causa mais profunda do problema. Se é assim, não se trata só
87
CHARTIER, Roger. op. cit., p. 108.
NEWMAN, John Henry. Apologia pro vita sua: ou história das minhas opiniões religiosas. Rio de Janeiro:
Edições Paulinas, 1963, p. 185.
89
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 278 e 280.
90
CERTEAU, Michel de. op. cit., p. 288-289. Itálico do autor.
88
36
de um entrave posto ao catolicismo, mas ao cristianismo de um modo geral. Nesse contexto,
vemos o próprio Schleiermacher dizer:
Sei que vós venerais tão pouco a Divindade no sagrado recolhimento como quando
visitais os templos abandonados; sei que em vossas refinadas moradas não há outros
deuses domésticos que as sentenças dos sábios e os cânticos dos poetas, e que a
humanidade e a pátria, a arte e a ciência se têm apoderado por completo de vosso
âmago que, para o Ser eterno e sagrado que reside segundo vós para além do mundo,
não se deixa margem alguma e que não sentis nada a respeito dele nem com ele.
Haveis conseguido fazer tão rica e polifacetada a vida terrena que já não necessitais
da eternidade, e depois de vós haverdes criado um universo, vos sentis dispensados
de pensar nele como vosso criador 91.
Ora, “a localização do crer no ver” está em pleno desacordo com tudo aquilo que
a Igreja Católica tem acreditado e proposto desde a sua fundação. O próprio apóstolo Paulo
disse: “Não olhamos para as coisas que se veem, mas para as que não se veem; pois o que se
vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” 92. Assim, a Igreja fala de realidades eternas e
invisíveis, inacessíveis aos sentidos. Fala também de um Deus escondido e desconhecido que
está impassível de objetivação. Os escritos dos Padres e Doutores da Igreja Católica
evidenciam isso. Ireneu de Lião93, por exemplo, dizia o seguinte:
São verdadeiramente grandes os depósitos dos tesouros celestes; incomensurável
para o coração, ininteligível para a mente é o Deus que encerra em seu punho a terra.
Quem saberá somente qual é a medida do dedo da sua mão direita? Quem poderá
compreender tamanho de sua mão que mede o incomensurável e fixa a medida dos
céus e encerra em seu punho a terra com seus abismos, que contém em si a largura,
o comprimento, a profundidade e a altura de toda a criação visível, sensível,
inteligível e invisível? 94.
No mesmo sentido, São João Crisóstomo95 afirmava que “é o cúmulo da loucura
tentar conhecer a essência de Deus”, pois “Deus é inexprimível, inconcebível, invisível e
91
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião: discursos a seus menosprezadores eruditos. São Paulo:
Novo Século, 2000, p. 7.
92
“Segunda epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios”. Capítulo 4, 18. In: Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão.
São Paulo: Paulus, 2008, p. 2021.
93
Santo Ireneu de Lião viveu do ano de 130 a 202.
94
IRENEU DE LIÃO, Santo. Contra as heresias. 4ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2012, p. 425-426.
95
São João Crisóstomo viveu do ano de 347 a 407.
37
incompreensível. Ele ultrapassa a força da linguagem humana e escapa ao alcance da
inteligência de qualquer mortal” 96. Diz ainda:
Eu conheço muitas coisas cuja explicação ignoro. Por exemplo, sei que Deus está
em toda parte e todo inteiro em toda parte; como está? Ignoro. Ele não tem começo
nem fim, eu sei; mas de que modo? Não sei. Realmente a razão não alcança ser
possível a uma essência existir sem receber o ser de si mesma ou de outro princípio.
Sei que ele gerou um Filho, porém como? Ignoro. Sei que o Espírito procede dele,
todavia como procede? Não sei 97.
Isso não feria ou insultava o intelecto de São João Crisóstomo. Ele não se
incomodava com o fato de crer em algo que o seu entendimento não decifrava por inteiro.
Assim, dizer que Deus é incompreensível não significava para ele um entrave ou um óbice à
razão. Significava tão somente, como ele próprio diz em referência ao apóstolo Paulo, que “‘o
nosso conhecimento é limitado’, ou seja, aprendemos a parte de uma parte” 98.
Pode-se inserir também o entendimento de Santo Atanásio99, que dizia: “negar a
Deus, o autor e o criador da inteligência, é não ter inteligência” 100. A isto acrescentava:
Já que não é a desordem que se vê no universo, mas a ordem, não a desmedida, mas
a moderação, não a desarmonia, e sim a ordem, não é a desmedida, mas a medida,
não a desarmonia, mas o cosmos, e a reunião harmoniosa do cosmos, é necessário
refletir e ter uma ideia deste Senhor que reuniu e estreitou todos estes elementos e
produziu entre eles harmonia. Ainda que seja invisível aos olhos, é possível, a partir
da ordem e da harmonia dos elementos contrários, conceber o senhor, o ordenador e
o rei de todas as coisas [...] porque a desordem é sinal da ausência da autoridade,
mas a ordem faz conhecer o chefe 101.
Também Santo Anselmo102, com aflição, se questionava sobre Deus: “Em que
sinais e em que manifestações Te procurarei? Nunca Te vi. Não conheço a Tua face, Senhor
96
JOÃO CRISÓSTOMO, São. “Da incompreensibilidade de Deus”. In: JOÃO CRISÓSTOMO, São. Da
incompreensibilidade de Deus; Da providência de Deus; Cartas a Olímpia. São Paulo: Paulus, 2007, p. 23 e
52.
97
JOÃO CRISÓSTOMO, São. op. cit., p. 22.
98
JOÃO CRISÓSTOMO, São. op. cit., p. 20.
99
Santo Atanásio viveu do ano de 296 a 373.
100
ATANÁSIO, Santo. “Contra os pagãos”. In: ATANÁSIO, Santo. Contra os pagãos; A encarnação do
verbo; Apologia ao imperador Constâncio; Apologia de sua fuga; Vida e conduta de S. Antão. 2. ed. São
Paulo: Paulus, 2010, p. 90.
101
ATANÁSIO, Santo. op. cit., p. 101.
102
Santo Anselmo viveu do ano de 1033 a 1109.
38
meu Deus”. Dizia ainda: “Nem procuro entender para crer, mas creio para entender. Pois, até
isto eu creio: que, se não acreditar, não entenderei” 103.
Deve-se entender qual o propósito da inserção desses trechos de ordem teológica
neste trabalho. A intenção é mostrar que foi construída uma teologia, uma forma de pensar
sobre Deus e um discurso a seu respeito. O cristianismo construiu, enfim, uma forma de crer.
Antes de adentrarmos na temática dos abalos sofridos pelo cristianismo durante o século XIX,
é essencial tratarmos, ainda que perfunctoriamente, do modelo de crença proposto por ele.
Nicolas Berdiaeff tinha razão quando disse que “no es posible comprender la estructura
antirreligiosa sin haber comprendido antes la estructura religiosa”
104
. Isso explica a inserção
dos fragmentos de ordem teológica.
O cristianismo católico erigiu uma forma de ordenar a sociedade, a política e as
relações de poder. Essa configuração tinha como premissa o seguinte:
O poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e
soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente serlhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de
governar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos 105.
Disso resultou o regime de consócio entre poder civil e poder religioso. Assim
sendo, disse Gregório XVI106 que os príncipes devem considerar a autoridade a eles conferida
“[...] não somente para o governo das coisas terrenas, mas de modo especial, para sustentar a
Igreja. [Assim] é feito em favor de seu império e para a sua tranquilidade, o que se faz para a
salvação da religião” 107. D. Luis da Conceição, bispo do Maranhão, se pronunciou no mesmo
sentido quando disse: “Não desejo para o próprio interesse do Estado que os muros do
Catolicismo, a cuja sombra verseja a árvore da virtude e da religião, sejam arruinados,
103
ANSELMO, Santo. “Proslogion”. In: ANSELMO, Santo. Proslogion, seguido do livro em favor de um
insensato, de Gaunilo, e do livro apologético. Porto: Porto Editora, 1996, p. 21 e 23.
104
BERDIAEFF, Nicolas. El cristianismo y el problema del comunismo. 2. ed. Madrid: ESPASA-CALPE,
1936, p. 141. “Não é possível compreender a estrutura antirreligiosa sem haver compreendido antes a estrutura
religiosa”. (tradução livre)
105
LEÃO XIII. Immortale Dei. “A constituição cristã dos estados”. In: Documentos de Leão XIII (1878-1903).
São Paulo: Paulus, 2005, p. 239.
106
Gregório XVI foi papa de 1831 a 1846.
107
GREGÓRIO XVI. “Mirari vos”. Condenação do indiferentismo religioso e da liberdade de consciência, de
imprensa e de pensamento. In: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX (1831-1878). São Paulo: Paulus,
1999, p. 41.
39
privando-se assim de sua sombra salutar que a ela se abrigam com fé”
108
. Desse contexto
também se depreende que a autoridade política e civil não se constitui somente por leis
humanas, mas, sobretudo, por leis eternas, emanadas do próprio Deus. De acordo com essa
concepção, é porque o Governo está assentado sobre princípios divinos, que a autoridade civil
deve atuar observando um parâmetro moral.
Ora, toda essa configuração erguida pelo cristianismo católico foi duramente
questionada ao longo de todo o século XIX. O arcabouço teológico cristão e a própria ideia de
Deus foram objetos de críticas. Pode-se dizer que essa foi uma época de recusa da
transcendência e da metafísica. O objeto do crer deve ser visível, tangível e plenamente
acessível aos sentidos humanos. É, enfim, como disse Certeau: “a localização do crer no ver”.
Havia mesmo um Deus, com existência objetiva e pessoal, ou ele constituía
apenas uma fuga imaginativa, uma ilusão, um delírio dos homens? Essa foi uma inquietação
de muitos pensadores do século XIX. Alguns deles propuseram uma reformulação no conceito
de Deus. Outros ainda propuseram a completa abolição de Deus. Este assunto é o tema da
reflexão do capítulo seguinte.
108
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Chefe de Polícia da Província do Maranhão, o
Conselheiro Antonio Manoel de Campos Mello, 14/08/1862, Setor de Avulsos, APEM.
40
2 UM CONTEXTO INTERNACIONAL: A “MORTE DE DEUS”
Desde já, gostaríamos de explicar o motivo da inserção da discussão acerca da
“morte de Deus”, esta que talvez seja a mais famosa máxima de Nietzsche. Não há como
fazer caber um século inteiro em poucas páginas. No máximo, o que fazemos é selecionar
estrategicamente alguns elementos-chave, alguns conceitos, algumas conjunturas que
funcionam como diretrizes na abordagem de determinado tema. É fora de dúvida que esse
percurso muda a depender do historiador, do estilo da pesquisa e da sensibilidade do
pesquisador. Em qualquer trabalho acadêmico o que nós fazemos é tentar montar uma espécie
de esquema, devidamente fundamentado, que convença os nossos pares da plausibilidade do
nosso ponto de vista. É claro que não se pode dizer que a construção desse esquema obedece a
parâmetros fixos. Assim, o que é essencial para um determinado pesquisador pode não ser
para o outro. Tudo termina dependendo de uma boa fundamentação e argumentação.
Ao intitularmos essa parte do texto com a frase “um contexto internacional”
queremos dizer o seguinte: não há o contexto internacional, mas sim um contexto possível e
verossímil dentre vários outros. Sendo assim, o que faremos nas linhas a seguir é argumentar
no sentido de justificar a plausibilidade desse contexto internacional que selecionamos, qual
seja, o contexto da “morte de Deus”. O século XIX chegou ao fim com essa asserção de
Nietzsche. É claro que foi no século XX que o peso dela foi sentido; mas foi no século XIX
que a “morte de Deus” foi “constatada”. Pode isso não ser relevante para a nossa abordagem?
Podemos ignorar que o XIX foi o século em que se disse: “Deus está morto”? Neste século se
completou o processo que desligou a filosofia da ideia de Deus. Como pano de fundo para as
dissensões entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro na segunda metade do século XIX,
tínhamos um contexto mais amplo no qual se proclamou a “morte de Deus”.
Mas em que medida as ideias de filósofos como Nietzsche chegaram ao Brasil
ainda no Oitocentos? Não sabemos responder. Provavelmente elas não chegaram nesse
momento109. Mas não é este o ponto para o qual queremos chamar a atenção. Interessa aqui
que a filosofia declarou a “morte de Deus” ainda no século XIX e que isso, sem dúvida, é algo
que diretamente se relaciona não só com a Igreja Católica, mas com o cristianismo por inteiro.
109
Nietzsche “era um escritor cujas obras não tinham despertado muito eco entre os contemporâneos, mas que,
cinquenta anos depois, iria aparecer à humanidade como o profeta dos seus abismos”. In: DANIEL-ROPS,
Henri. A igreja das revoluções: um combate por Deus. São Paulo: Quadrante, 2006, p. 9.
41
O processo de rompimento com a Igreja já estava consumado. “Esse movimento
de ruptura havia de vir a precipitar-se no decurso dos séculos XVIII e XIX”
110
com a
decretação da “morte de Deus”. A “morte de Deus” foi a declaração formal da concretização
de um longo processo de secularização.
A “morte de Deus” significa a morte de uma forma de inteligibilidade que os
homens tinham de si mesmos e do mundo. É a morte de uma forma de compreender os
homens e as relações que os envolvem. Isso com certeza deitou influxos na política. Se Deus
está morto, não faz sentido o Estado ter ou professar uma religião. O Estado, então, deixa de
conversar com a religião. Se Deus está morto, outra será a justificativa para o poder. Não foi
sem razão que o Estado se separou da religião ainda no século XIX. Certamente, para que isso
ocorresse concorreram vários outros fatores.
É visível, portanto, que essa parte do nosso texto é continuidade da reflexão
acerca da “recessão do crer”, iniciada no capítulo anterior. Tal recessão, como dissemos, não
atingiu exclusivamente a Igreja Católica. Aqui não se trata de dissidências doutrinais ou
dogmáticas entre uma e outra denominação cristã. Com o ateísmo, o cristianismo em si, o
núcleo mesmo da fé (Deus), que é comum a todas as denominações cristãs é alvo de ataque. E
não é apenas ateísmo; é, sobretudo, antiteísmo.
Para compreendermos a situação, vejamos uma metáfora. Pode haver diálogo e
reconciliação quando, por exemplo, duas pessoas dizem ter sido testemunhas de um
homicídio. Elas podem divergir acerca de como o crime ocorreu, mas, sempre estão de acordo
que houve o assassinato, pois presenciaram as evidências disso. Elas dizem que, vindo do
outro quarto, ouviram as discussões, os xingamentos, a luta e, no fim, um disparo. Ao abrirem
a porta, elas se depararam com um homem morto, sem qualquer arma por perto. Para as duas
testemunhas, a existência daquele homicídio é fato inegável, restando apenas esclarecer as
circunstâncias e os detalhes, que só ajudam a comprovar a existência do crime.
Coisa totalmente diversa disso acontece com aquele que, sem nada ter presenciado
e ao ouvir essa versão, pensa que as testemunhas imaginaram coisas ou deliraram e que nada
daquilo relatado por elas é digno de crédito. Este ouvinte renegará terminantemente a versão
oferecida pelas testemunhas e buscará outra explicação para o que ocorreu naquele quarto.
Esta metáfora, com as devidas ponderações, auxilia na compreensão daquilo que
pretendemos discutir nesta parte do trabalho. As testemunhas representam os cristãos. As
110
LUBAC, Henri de. O drama do humanismo ateu. Porto: Porto Editora, 1944, p. 20.
42
diversas denominações cristãs podem divergir no que tange aos aspectos dogmáticos e
doutrinais. Pode, por exemplo, uma corrente cristã defender a doutrina dos santos, ou a
virgindade perpétua de Maria, ou a eternidade das penas do inferno. Pode outra discordar
disso tudo e postular a salvação pela fé, ou a abolição do celibato ou a predestinação. Todas as
denominações cristãs podem em tudo discordar, mas num ponto elas estão em pleno acordo,
qual seja: existe um Deus e este Deus foi revelado por Jesus Cristo. E Jesus, para os cristãos,
é Deus mesmo. Esta doutrina culminou na ideia da Trindade de Deus que, nas palavras de
Santo Agostinho, pode ser entendida da seguinte forma: “O Pai, o Filho e o Espírito Santo são
um só Deus, criador e governador de toda a criação”
111
. Neste mesmo sentido, consta no
Símbolo “Clemens Trinitas” 112:
A Trindade clemente é uma só divindade. Por isso, Pai e Filho e Espírito Santo é
uma só fonte, uma só substância, uma só força, um só poder. Dizemos que o Pai é
Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, não três deuses, mas professamos
com toda piedade um só Deus 113.
Independentemente da denominação a qual pertençam, os cristãos são assim
chamados porque acreditam em Deus da maneira como ele foi descrito por Cristo. O mesmo
se passa com o entendimento dos cristãos acerca da instituição da Igreja. “Están
perfectamente de acuerdo los cristianos entre sí sobre este punto: que la Iglesia ha sido
instituída por Cristo” 114.
Retornando à explicação da metáfora, pode-se dizer que o ouvinte da versão das
testemunhas percorre uma trajetória diferente. Por considerar o depoimento das testemunhas
uma versão incrível, o ouvinte buscará uma explicação mais plausível ao seu entendimento. O
ouvinte não vê nenhum sentido ou lógica no relato das testemunhas, e ignora completamente a
versão por elas apresentada. É por isso que ele foi à procura de outra explicação, totalmente
desligada daquilo que foi relatado pelas testemunhas. Algo parecido com isso sucedeu com
111
AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 286.
“Esta fórmula foi chamada também ‘Fides catholica Sancti Augustini episcopi’ e teve origem no século V/VI
na França meridional”. In: DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e
moral. 2. ed. São Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2013, p. 39.
113
DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 2. ed. São
Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2013, p. 39-40.
114
SOLOVIEF, Vladimiro. Rusia y la iglesia universal. Buenos Aires: Libreria Santa Catalina, 1936, p. 149.
“Estão perfeitamente concordes os cristãos entre si sobre este ponto: que a Igreja foi instituída por Cristo”.
(tradução livre)
112
43
alguns pensadores do século XIX. Vendo no teísmo uma explicação fantasiosa, insuficiente,
ilusória e irracional dos fenômenos, tais pensadores romperam com Deus.
Os esforços diferentes, mas na verdade convergentes, de todos esses espíritos,
levavam a recusar qualquer fé num ser transcendente, era propriamente “o conflito
entre crer e não crer”. O Deus revelado da religião cristã passava a ser discutido;
segundo alguns, radicalmente suprimidos 115.
Nietzsche, por exemplo, dirá o seguinte: “Eu próprio não creio que jamais alguém
tenha olhado para o mundo com uma suspeita tão profunda, e não apenas como ocasional
advogado do diabo, mas também, para falar em termos teológicos, como inimigo e
provocador de Deus” 116.
Parece que Nietzsche tinha razão. É claro que antes dele e antes mesmo do século
XIX existiram pensadores ateus. Cite-se, por exemplo, o barão d’Holbach117, iluminista
francês. No entanto, não se pode dizer que a totalidade dos filósofos iluministas afastou-se da
ideia de Deus. Alguns deles se mantiveram deístas118. Foi esse o caso de Voltaire. Disse ele:
As nações ditas civilizadas [...] não encontraram antídoto mais poderoso contra os
venenos que devoravam a maioria dos corações do que o recurso a um Deus
recompensador e vingador. [...] Que outro freio podia, pois, ser posto à cupidez, às
transgressões secretas e impunes, além da ideia de um senhor eterno que nos vê e
que julgará até mesmo nossos pensamentos íntimos 119.
“Voltaire, em suma, tinha sempre o cuidado de salientar a necessidade social de
uma divindade”
115
120
. A sua divindade era, antes de tudo, um recurso útil, pragmático, uma
DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 21.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 19.
117
“O barão d’Holbach (1723-1789) esforçou-se por desenvolver em ‘sistema’ coerente – e especificamente em
sentido ateu – as ‘leis do mundo físico e do mundo moral’. [...]. O ateísmo do barão é circunstancial. Seu ateísmo
declarado é bastante fatual e conjuntural: depende de situações e acontecimentos precisos”. In: LACOMPTE,
Denis. Do ateísmo ao retorno da religião: sempre Deus? São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 113-126.
118
Para Kant, “é mais correto e mais justo dizer que o deísta acredita em Deus, enquanto o teísta acredita num
Deus vivo”. In: KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 3. ed. São Paulo: Ícone, 2011, p. 409. Nesse sentido,
“o deísta seria aquele que pouco ou nada poderia dizer dobre Deus, a não ser que ele existe e que é a causa do
mundo; enquanto o teísta pensava que a razão era capaz de dizer muito mais, nomeadamente que Deus foi o
‘Autor do mundo’ (não apenas a causa primeira abstrata), o princípio e a fonte de toda a ordem natural e moral –
portanto, num sentido, um Deus pessoal”. In: BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: séculos
XVII e XVIII. vol. 1. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 218-219.
119
VOLTAIRE. op. cit., p. 5.
120
JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 426.
116
44
ideia necessária para a manutenção da estabilidade social. Ele “[...] tenta salvar a moral: faz
questão de um Deus garantia e fundamento, assim como remunerador” 121.
Dessa forma, Voltaire recusa o ateísmo, justificando-se da seguinte forma:
“Sempre considerei o ateísmo como o maior desvario da razão, porque é tão ridículo dizer que
o arranjo do mundo não prova um artífice supremo, como seria impertinente dizer que um
relógio não prova um relojoeiro” 122. Parece difícil, então, duvidar do sentimento religioso que
animou Voltaire em sua concepção deísta do Deus-relojoeiro.
Mas o filósofo negava toda a credibilidade ao Evangelho, ao cristianismo123 e ao
conjunto da Revelação cristã, pois, para ele, a razão poderia intuir a existência de um Ser
supremo.
A mesma força de nosso entendimento que nos fez conhecer a aritmética, a
geometria, a astronomia, que nos fez inventar as leis, também nos fez, portanto,
conhecer Deus. [Por isso] não é necessária nenhuma revelação para saber [...] que o
homem não se fez a si mesmo e que dependemos de um Ser superior, qualquer que
seja 124.
Ele ainda se justificava assim: “Se Deus é o pai de todos os homens, por que sua
criação e suas primeiras ações foram ignoradas por todos os homens? Por que Moisés foi o
único a conhecê-las ao cabo de dois mil e quinhentos anos antes num deserto?” 125. Apesar de
negar o conjunto da Revelação, parece que Voltaire manteve a opinião de que Jesus foi um
homem “por quem devemos ter profundo respeito”, foi uma espécie de “Sócrates rústico”
126
.
Neste sentido, afirmou:
O cristianismo, tal como foi desde os tempos de Constantino, está mais distante de
Jesus do que de Zoroastro ou de Brama. Jesus tornou-se o pretexto de nossas
doutrinas fantásticas, de nossas perseguições, de nossos crimes religiosos; mas não
foi seu autor. [...] Apraz-me demonstrar que Jesus não era cristão, que, ao contrário,
ele teria condenado com horror nosso cristianismo, tal como Roma o estabeleceu,
cristianismo absurdo e bárbaro 127.
121
LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 107.
VOLTAIRE apud LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 107.
123
LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 106.
124
VOLTAIRE. op. cit., p. 9.
125
VOLTAIRE. op. cit., p. 95.
126
VOLTAIRE. op. cit., p. 112-131.
127
VOLTAIRE. op. cit., p. 123.
122
45
Mesmo sendo partidário desse entendimento, pode-se dizer, em certo sentido, que
Voltaire continuou dialogando com algumas noções cristãs. É dele a seguinte sentença:
Falo sempre humanamente, ponho-me sempre no lugar de um homem que, nunca
tendo ouvido falar nem dos judeus, nem dos cristãos, leria esses livros128 pela
primeira vez e, não estando iluminado pela graça, teria a infelicidade de só acreditar
na sua frágil razão, enquanto não fosse iluminado de cima 129.
Pode-se dizer, então, que ele continua enxergando certo sentido em expressões
como “iluminado pela graça” ou “iluminado de cima”. A filosofia de Voltaire ainda dialoga
com a metafísica e supõe a existência de um Ser supremo. Voltaire era “anticristão,
anticlerical, mas deísta”
130
. Nele havia algum sentimento religioso. Já Nietzsche, além de
anticristão e anticlerical, seria ateísta, antiteísta e talvez niilista.
O que sucedeu com a filosofia no século seguinte ao de Voltaire foi uma viragem
completa e definitiva. O processo que desligou a filosofia da teologia e da metafísica foi
concluído no século XIX. O Iluminismo, sobretudo o francês, foi o prelúdio, a antessala do
caminho que conduziria ao rompimento com Deus. Disse Paul Johnson que “o Iluminismo
francês foi o primeiro movimento intelectual europeu, desde o século IV, a se desenvolver
fora dos parâmetros da crença cristã”
131
. O ateísmo que o sucedera não deve ser entendido
como simples pensamento que postula a inexistência de Deus. Mais que ateísmo, era
antiteísmo. É importante precisar o sentido do termo antiteísmo. Ele se relaciona com aquilo
que Jacques Maritain chamou de ateísmo positivo.
Por ateísmo positivo entiendo un combate activo contra todo lo que nos recuerda a
Dios – por tanto, antiteísmo más que ateísmo – y al mismo tiempo un esfuerzo
desesperado para reorganizar y reconstruir en conformidad con este estado do guerra
contra Dios todo el universo humano de pensamiento y toda la escala humana de los
valores. Es este ateísmo positivo el que encontramos en el ateísmo trágico de
Nietzsche 132.
128
Trata-se dos livros que compõem a Bíblia.
VOLTAIRE. op. cit., p. 51.
130
LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 107.
131
JOHNSON, Paul. op. cit., p. 424.
132
MARITAIN, Jacques. La significación del ateísmo contemporáneo. Madrid: Ediciones Encuentro, 2012, p.
14. Itálico do autor. “Por ateísmo positivo entendo um combate ativo contra tudo o que nos faz lembrar de Deus
– portanto, antiteísmo mais que ateísmo – e ao mesmo tempo um esforço desesperado para reorganizar e
reconstruir de acordo com este estado de guerra contra Deus todo o universo humano de pensamento e toda a
escala humana de valores. É este ateísmo positivo que encontramos no ateísmo trágico de Nietzsche”. (tradução
livre)
129
46
Além disso, trata-se, parafraseando Gadamer, de um “ateísmo da indiferença”
133
no qual Deus e as questões religiosas tornaram-se assuntos irrelevantes. Comte, Feuerbach,
Marx e Nietzsche certamente são os pensadores que expressam essa linha de pensamento.
Seria uma pretensão absurda tentar apresentar aqui considerações sobre cada um
desses autores. Por isso, selecionamos apenas dois: Feuerbach e Nietzsche. Mesmo assim, é
claro que não se pode esperar que um trabalho como o nosso ofereça uma análise aprofundada
sobre cada um deles. As considerações desses autores serão aqui apresentadas apenas na
medida em que dialogam com a temática geral do estudo. Isso ficará claro à medida que nossa
análise for avançando. Iniciemos com Feuerbach tomando-o como precursor da “morte de
Deus”, decretada por Nietzsche.
Sim, Feuerbach foi ateu no sentido de que recusou um Deus transcendente e
exterior à intimidade e ao sentimento dos homens. Não é que o filósofo tenha postulado a
inexistência de Deus. O que ele propôs foi uma reestruturação do conceito de Deus: “Deus é o
sentimento puro, ilimitado e livre. Qualquer outro Deus que estabeleceres aqui é um Deus que
chega empurrado, vindo de fora do teu sentimento” 134.
Dois são os corolários dessa asserção: 1) a sacralidade da religião não reside em
um Ser superior e onipotente, mas no puro sentimento. “O sentimento é pois sacralizado
meramente por ser sentimento; o motivo da sua religiosidade é a sua natureza, é inerente a ele
próprio” 135; 2) a negação de um Deus que seja objetivo e externo ao sentimento. Sendo Deus
“o pronunciamento do Eu do homem”, “como poderia eu duvidar do Deus que é a minha
essência? Duvidar do meu Deus significa duvidar de mim mesmo”
136
. Parece então que o
ateísmo de Feuerbach não pode ser entendido numa acepção literal da palavra. Com efeito,
trata-se de alteração, de uma reestruturação semântica no conceito de Deus. Para Feuerbach,
Deus não é uma alteridade, é a interioridade humana radicada no sentimento. “Assim”, disse
ele, “tudo que a teologia e a filosofia consideraram até agora como Deus, absoluto, essencial,
não é Deus; mas tudo que não consideraram como Deus é exatamente Deus” 137.
Nota-se daí que ele foi um crítico do cristianismo, pois, segundo sua opinião, da
forma como foi posta, a religião cristã “nega o bem como uma qualidade da essência humana:
133
GADAMER, Hans-Georg. “Dois mil anos sem um novo Deus: diálogos em Capri”. In: DERRIDA, Jacques;
VATTIMO, Gianni (orgs.). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 223.
134
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 43.
135
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 42.
136
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 50.
137
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 51.
47
o homem é perverso, corrompido, incapaz do bem, mas em compensação somente Deus é
bom, o bom ser” 138. Assim, disse ele, que para enriquecer Deus, o homem se tornou pobre, e
para que Deus fosse tudo, o homem se transformou em nada
139
. Feuerbach se insurgiu ainda
contra a concepção cristã acerca Deus. Ele criticou, sobretudo, o fosso que existe entre Deus e
o homem no cristianismo, antítese esta que Feuerbach explica da seguinte forma:
Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o
homem o finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem
transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem é
pecador. Deus e homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de
todas as realidades, o homem é o unicamente negativo, o cerne de todas as
nulidades140.
Isso não fazia sentido para Feuerbach. Ele era da opinião segundo a qual tudo
“[...] o que o homem diz de Deus diz ele em verdade de si mesmo”
segredo da religião”
142
141
. “O homem: este é o
. Por isso, não faz sentido a religião estar assentada na ideia de um
Absoluto exterior ao homem. Se o que chamamos Deus é a própria essência humana, a
religião deve ser um canal de acesso a tal essência, e não a algo dela desligado. Por isso, em
Feuerbach, o fundamento da religião não pode ser teológico, mas sim antropológico.
A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus
conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a
mesma coisa. [...] Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do
homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a
confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus
segredos de amor 143.
Dessa forma, o saber que sustenta a religião não é a teologia, é a antropologia. E
antropologia significa aqui algo bem específico: “fé no homem”
144
. De acordo com essa
visão, os homens devem se convencer de que o único Deus do homem é o próprio homem145.
138
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 57.
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 55.
140
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 63.
141
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 58.
142
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 58.
143
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 44.
144
BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: séculos XIX e XX. vol. 2. Lisboa: Edições 70,
2002, p. 72.
145
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 27.
139
48
No ponto de vista de Feuerbach, a religião enquanto consciência de Deus não faz referência a
uma Alteridade suprema; trata-se sim da consciência que o homem tem de si próprio. A
religião, portanto, deveria ser remodelada com a humanidade ocupando o posto de Deus.
Embora recusando o “sujeito Deus”, Feuerbach esteve longe de negar os
“predicados divinos”, isto é, os atributos e qualidades divinas
146
. O que ele fez foi um
redirecionamento desses predicados. Com Feuerbach, os predicados de Deus foram atribuídos
a outro sujeito: o homem. O filósofo eliminou o “sujeito Deus” para atribuir suas qualidades
aos próprios homens.
Para Feuerbach, no homem mesmo se realiza a trindade divina: a razão, o amor e
a vontade147. É por isso que tudo “[...] o que foi considerado e adorado como Deus é agora
conhecido como algo humano”
148
. E também já não há mais oposição ou antítese entre o
divino e o humano. Em Feuerbach, o divino e o humano não são extremos inconciliáveis.
A oposição entre o divino e o humano é apenas ilusória [...]. A essência divina não é
nada mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do homem abstraída das
limitações do homem individual, real, corporal, objetivada, contemplada e adorada
como uma outra essência própria, diversa da dele – por isso todas as qualidades da
essência divina são qualidades da essência humana 149.
Se todo o divino está encerrado no homem, desaparece aqui aquela noção segundo
a qual “tudo o que é religioso é sobrenatural”
150
. Não há sobrenaturalidade porque “todo ser
basta a si mesmo. Nenhum ser pode se negar, negar a sua essência; nenhum ser é limitado
para si mesmo. Todo ser é ao contrário em si e por si infinito, tem o seu Deus, a sua mais
elevada essência em si mesmo” 151. Em Feuerbach, o objeto do religioso é o próprio homem e
sua essência interior. Assim sendo, não há por que buscar a explicação da religião fora ou
além do homem. Além disso,
a razão só pode crer em um Deus que seja coerente com a sua essência, em um Deus
que não seja inferior à sua própria dignidade e que antes represente a sua própria
146
LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 168.
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 36.
148
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 45.
149
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 45-46.
150
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo:
Martins Fontes, 1996, p. 5.
151
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 40. Itálico do autor.
147
49
essência; a razão só crê em si, na realidade e na verdade da sua própria essência. A
razão não se faz dependente de Deus, mas Deus depende dela. Deus é tudo e tudo
pode, era dito então, através da sua infinita plenipotência; no entanto, ele não é nada
e não pode fazer nada em que se contradiga a razão 152.
Vê-se, portanto, que não há como falar em sobrenaturalidade nesse contexto.
Tudo – o religioso e o divino – estava no homem. Por isso, segundo Feuerbach, não era
preciso que os homens fossem buscar as explicações de sua essência fora de si. Parece que, no
fundo, os questionamentos de Feuerbach terminam sendo estes: “Para que buscar fora aquilo
que já lhe é interior?” e “Se Deus é o próprio sentimento humano, se Deus é o homem
mesmo, por que buscar fora aquilo que já é interior ao homem?”. Foi por isso mesmo que,
para Feuerbach, seria uma alienação o fato de os homens buscarem explicações sobre si fora
de si. Sendo assim, ao buscarem explicações transcendentais, radicadas num Deus exterior, os
homens estariam se espoliando, se expropriando e se privando de sua própria essência. O
cristianismo que era, nessa visão, o agente responsável por inculcar essa mentalidade
alienante.
Consequentemente, quanto mais depressa o homem tomasse consciência de que o
cristianismo era ilusão ou mito, que era o resultado de sua própria alienação, melhor
seria para o homem, e mais depressa ele poderia desenvolver uma religião, ou
filosofia, mais elevada. A religião mais elevada era a humanidade 153.
Pode-se dizer que em Feuerbach a ideia de Deus é usada como metáfora: “O
homem é Deus”. É claro que este Deus perde a sua pessoalidade, sendo que os homens entram
na posse dos atributos divinos. Por isso se diz que Feuerbach foi o difusor de uma “teologia
humanista”, isso porque com ele “a humanidade coletiva tornou-se o novo deus” 154.
Em Feuerbach, Deus é uma metáfora porque ele não tem uma existência objetiva,
independente do homem. Nessa visão, a ideia de Deus funciona apenas como uma grande
abstração usada para representar o puro sentimento. Deus, da forma como havia sido
entendido pelo cristianismo, foi para Feuerbach sinônimo de alienação e engano. Para o
filósofo, na ideia de Deus os homens nada mais encontram do que uma referência a si
próprios. Feuerbach “[...] não consegue suportar um Deus que não esteja em nossa
152
FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 66-67.
BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 74.
154
BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 74.
153
50
subjetividade, que não seja apenas um ‘valor mais elevado’” 155. Toda a noção contrária a isso
seria alienadora e mentirosa
O que Nietzsche fez foi decretar a “morte” do Deus que havia sido recusado e
anatematizado por Feuerbach. O Deus que desde o tempo dos iluministas franceses vinha
sendo atacado e criticado, era agora declarado morto. Essa declaração pode ter sido tudo,
menos repentina. Para que Nietzsche pudesse decretar a “morte de Deus”, os seus
antecessores haviam preparado o caminho. Um longo processo havia sido percorrido para
que, em fins do século XIX, o filósofo dissesse: “Deus está morto”.
A “morte de Deus” foi, segundo Nietzsche, o resultado de uma escolha, de uma
atitude, de uma conduta perpetrada pelos próprios homens. A expressão “morte de Deus”
constituía a mais tradicional teologia, que designava o drama do Calvário. Certamente
Nietzsche ouvira cantar ou cantara ele próprio, o coral de Lutero: “O próprio Deus morreu”.
No entanto, o sentido dado por Nietzsche a esta expressão é completamente novo. Nele, não
se trata de uma simples verificação. Não é tampouco uma lamentação ou um sarcasmo.
Enfatiza, no fundo, uma opção, pois, diz Nietzsche: “Se Deus morreu, fomos nós que o
matamos”. Em Nietzsche, somos nós os assassinos de Deus 156. E se Deus está morto,
você nunca mais rezará, nunca mais adorará, nunca mais repousará numa confiança
infinita – você se proíbe estacar ante uma sabedoria última, uma bondade última, um
último poder, desarmando seus pensamentos- não há um constante guardião e amigo
para as suas sete solidões – não existe, para você, mais nenhum retaliador, nenhum
aperfeiçoador final – não há mais razão no que acontece, nem amor no que lhe
acontecer – para o seu coração já não há pousada aberta, onde ele só tenha de
encontrar e não mais procurar, você resiste a qualquer paz derradeira [...] 157.
O próprio Schopenhauer, tantas vezes citado por Nietzsche, já dizia que
[...] jamais se chega à essência das coisas. Por mais que se investigue, obtêm-se tão
somente imagens e nomes. Assemelhamo-nos a alguém girando em torno de um
castelo, debalde procurando sua entrada, e que de vez em quando desenha as
fachadas 158.
155
BUBER, Martin. Eclipse de Deus: considerações sobre a relação entre religião e filosofia. Campinas, SP:
Verus Editora, 2007, p. 24. Aspas do autor.
156
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 42-45.
157
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 171.
158
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora UNESP,
2005, p. 156.
51
Assim foi que o “assassinato” de Deus não foi repentino. Ele demandou, como
dissemos, um processo que consumiu centenas de anos. Foi “depois de quatro séculos de
grandes combates contra a divindade cristã”
159
que o filósofo pôde constatar que “Deus está
morto”.
“Matar Deus” para quê? Para afirmar o homem. “Talvez o homem suba cada vez
mais, já não tendo um deus no qual desaguar”
160
. “Desde que acabou a crença de que um
Deus dirigiria os destinos do mundo em seu conjunto, [...] são os próprios homens que devem
propor-se fins ecumênicos que abrangem toda a terra”
161
. Eis aí, em poucas palavras a ideia
do super-homem. Nietzsche pretende propor a cada homem, em vez de facilidades covardes
que, segundo ele, a religião nos dá, a aventura prodigiosa da “conquista penosa e cheia de
riscos” do homem autêntico
162
. Nesse contexto, então, a fé aparece como uma luz ilusória,
que impedia os homens de cultivar a ousadia do saber. O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo
disso, Nietzsche desenvolveu a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da
existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura163.
Corolário da morte é a putrefação do corpo. “Não sentimos o cheiro da putrefação
divina? – também os deuses apodrecem!”
164
. Para Nietzsche, o cadáver de Deus, que se
decompõe, é um sinal de gigantesca mudança 165, e isso porque
o mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os
nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos
lavar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós
mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato
maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história
mais elevada que toda a história até então 166.
159
ARMANI, Carlos Henrique. “A morte de Deus e a contemporaneidade”. In: Teocomunicação, Porto Alegre,
v. 37, n. 156, jun. 2007, p. 175.
160
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 171. Itálico do autor.
161
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 47.
162
DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 33.
163
FRANCISCO. Lumen fidei: sobre a fé. Carta encíclica do sumo pontífice Francisco aos bispos, aos
presbíteros, aos diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fieis leigos. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 4-5.
164
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138.
165
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 51.
166
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138.
52
“Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos haverá cavernas
em que sua sombra será mostrada” 167. O homem moderno havia perpetrado a morte de Deus,
mas teria sido envolvido pela sombra do Deus morto. Era preciso, portanto, livrar-se dessa
sombra168: “Quanto a nós, nós teremos que vencer também a sua sombra!” 169. Para Nietzsche,
esse processo de livrar-se das sombras do Deus morto estava ainda se iniciando no século
XIX. As consequências oriundas da “morte de Deus” ainda estavam por vir.
Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos
ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas
precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem
vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua
constelação – e no entanto eles o cometeram 170.
Uma consequência direta da “morte de Deus” foi o pessimismo, já em Nietzsche
evidente: “[...] a humanidade em geral não tem objetivo e, por conseguinte, o homem não
pode, ao examinar o processo inteiro dela, encontrar nela consolo e amparo, mas sim sua
desesperança”
171
. Do pessimismo decorre uma sensação de desorientação do mundo; uma
sensação de não saber exatamente onde estava a certeza, ou mesmo se haveria uma certeza
para além da própria mudança. Na metáfora de Nietzsche, os europeus tinham-se
desorganizado, destruindo as pontes atrás deles e lançando-se ao mar. Diante deles estendia-se
o mar aberto, misterioso, infinito, perigoso172. Mas, para Nietzsche, esse estado de
“leviandade ou melancolia são melhores que [...] uma reaproximação com o cristianismo, pois
com ele não se pode, no estado atual do conhecimento, mais decididamente se entender sem
manchar a consciência intelectual” 173. Ademais, disse ele:
Uma religião que vê na última hora de um homem a hora mais importante de toda a
sua existência, que prevê o fim de toda a vida sobre a terra e que condena todos os
seres vivos a viver no quinto ato da tragédia, uma tal religião desperta certamente as
forças mais profundas e mais nobres, porém, ela é hostil a qualquer nova semeadura,
167
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 126.
ARMANI, Carlos Henrique. op. cit., p. 176.
169
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 126.
170
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138. Itálico do autor.
171
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 53. Itálico do
autor.
172
BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 132.
173
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 96-97. Itálico
do autor.
168
53
a qualquer tentativa ousada, a qualquer livre aspiração; ela impede qualquer voo
para um desconhecido do qual não gosta e do qual não espera nada; ela não se
entrega senão a contragosto ao fluxo do devir, para, no devido tempo, se livrar dele e
sacrificá-lo, como uma força muito sedutora que atrai para a vida, como um engano
sobre o valor da existência 174.
A aversão de Nietzsche pelo cristianismo e por toda a espécie de fé em Deus se
manifestou desde muito cedo e nada mais foi do que um sentimento espontâneo,
completamente instintivo, como ele próprio explicou no Ecce Homo: “Para mim, o ateísmo
não é o resultado seja do que for e ainda menos um acontecimento da minha vida; é coisa
evidente; é coisa instintiva” 175.
O ateísmo de Nietzsche não é tanto aquele que nega a existência de Deus,
sustentando a sua não existência, mas sim aquele ateísmo caracterizado pelo esquecimento de
Deus, que implicaria a sua morte. Tal ateísmo reside, portanto, no esquecimento, na
indiferença, e não no postulado da não existência de Deus 176. Nietzsche, portanto, não está
preocupado em falar que Deus não existe. Não é essa a questão. Os verbos por ele usados não
denotam negação, mas desaparecimento177.
O Deus cuja morte Nietzsche anunciou não foi somente o Deus da metafísica; foi,
mais precisamente, o Deus cristão. “Essa mitologia”, disse ele referindo-se ao cristianismo,
“que nem o próprio Kant abandonou por completo, que Platão havia preparado para a Europa,
para infelicidade sua, esse mitologia fez já a sua época”. E n’O Anticristo disse: “Chamo ao
cristianismo o maior de todos os flagelos [...]. Chamo ao cristianismo a nódoa vergonhosa e
inapagável entre todas as da humanidade” 178.
“Os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e
ouvidos”
179
. Sim, Nietzsche tinha razão. Essa frase explica muitas coisas. Ela, inclusive,
ajuda a esclarecer o motivo da inserção dessa discussão acerca da “morte de Deus” em nosso
estudo. Disse Nietzsche que o ato, a “morte de Deus”, já em sua época estava consumado.
Ora, é isso que interessa, a princípio. É evidente que a partir daí um desafio foi posto ao
174
NIETZSCHE, Friedrich. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para
a vida”. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre história. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo:
Loyola, 2005, p. 140-141.
175
LUBAC, Henri de. O drama do humanismo ateu. Porto: Porto Editora, 1944, p. 41.
ARMANI, Carlos Henrique. op. cit., p. 175.
177
ARMANI, Carlos Henrique. op. cit., p. 177.
178
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 115-116.
179
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138.
176
54
cristianismo. Em sua época mesmo, na segunda metade do século XIX, Nietzsche notou a
negligência, o desprezo e a ojeriza em relação ao cristianismo. Ele mesmo agiu dessa forma:
“Que são ainda essas igrejas, senão os mausoléus e túmulos de Deus?”
180
. Em outro
momento escreveu:
Quando, numa manhã de domingo, ouvimos tocar os velhos sinos, nos perguntamos:
Como é possível? Isso diz respeito a um judeu, crucificado há dois mil anos, que se
dizia filho de Deus! Faltava a prova para semelhante afirmação. Certamente a
religião cristã é, em nossa época, uma antiguidade, um vestígio de um distante
passado, e o fato de que se possa acreditar nessa afirmação talvez seja a peça mais
antiga dessa herança. Um Deus que gera filhos com uma mulher mortal; um sábio
que recomenda não trabalhar mais, não julgar mais, mas estar atento aos sinais do
iminente fim do mundo; uma injustiça que aceita o inocente como vítima substituta;
alguém que ordena a seus discípulos beber seu sangue; orações para pedir milagres;
pecados praticados contra um Deus e expiados por um Deus; medo de um além, do
qual a morte é a porta; a figura da cruz como símbolo, numa época em que já não se
conhece o destino nem a ignomínia da cruz – que vento horripilante nos vem de tudo
isso, como que saído do túmulo de um passado antiquíssimo! Quem haveria de crer
que ainda se acredita em semelhante coisa? 181
Aqui nós temos um cenário de completa descrença, de completo descrédito do
cristianismo. Em Nietzsche há um ateísmo marcado pela frieza da indiferença religiosa, pela
hostilidade à Igreja. E não é somente isso. Em Nietzsche, “[...] há bem mais do que o banal
anticlericalismo, e até o ódio à Igreja como instituição. Na raiz do movimento o que há é um
pensamento, uma concepção do homem essencialmente oposta àquela que o cristianismo
oferece”
182
. Trata-se de um “humanismo ateu”, como disse Henri de Lubac. E esse ateísmo
não está preocupado em provar que Deus não existe; está preocupado tão somente em “[...]
empurrar Deus para o meio dos fantasmas vãos ou dos cadáveres em decomposição”
183
.É
como se Deus fosse um suporte descartável que, para Nietzsche, havia se tornado decrépito e
inútil. “Qual o ser pensante que ainda precisa da hipótese de um Deus?”
184
. Nietzsche
simplesmente ignorou Deus e recusou qualquer transcendência. A situação de Nietzsche foi “a
situação do homem que não experimenta o divino, que não mais o experimenta como seu
180
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 104.
182
DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 20.
183
DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 10.
184
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 49.
181
55
parceiro e interlocutor, que não ousa ou não consegue experimentá-lo”
185
. Talvez tenha sido
por isso que ele disse: “Deus está morto”.
Martin Buber preferiu usar outra metáfora, que, a nosso ver, é bem mais perspicaz
e explicativa. Buber, já no século XX, preferiu utilizar a expressão “eclipse de Deus”. Quando
ocorre o eclipse do sol, parece que ele não existe se não se sabe que, de fato, está encoberto.
Assim, “o eclipsar da luz de Deus não é um apagar-se; amanhã, o que se interpôs já poderá ter
ido embora” 186.
Franz Rosenzweig foi mais além. Ele respondeu à metáfora de Nietzsche da
seguinte forma: “Dios no es vida: Dios es luz. Es señor de la vida, pero tan no está vivo como
no está muerto. [...]. Dios ni vive ni está muerto, sino que infunde vida a lo muerto y ama. Es
el Dios tanto de vivos como de muertos precisamente porque El ni vive ni está muerto” 187.
E Bruno Forte, já em nossos dias, disse que “[...] el hombre tiene siempre una
necesidad absoluta de salir de la cárcel del proprio yo para abrirse a la alteridad [...]” 188.
Em diversos sentidos, o século XIX foi catastrófico para o cristianismo. A “morte
Deus” foi apenas o grito final que arrematou uma série de abalos. A Igreja Católica, por
exemplo, esteve diante de grandes desafios, tais como: a Revolução Francesa, Napoleão, a
unificação italiana e, por fim, o rompimento dos laços jurídicos que uniam a Igreja ao Estado
em muitos países. O movimento de unificação italiana terminou por extinguir os Estados
Pontifícios juntamente com o poder temporal do papa. As perdas patrimoniais foram sem
precedentes.
Mas nunca os processos e conjunturas históricas são massas unívocas ou
monolíticas. No mesmo século XIX, tão avesso ao catolicismo, Paul Johnson conseguiu notar
aquilo que ele chamou de “ressurgência da autoridade papal” a partir do pontificado de Pio
VII. O papa restabeleceu a Companhia de Jesus em todo o mundo e, juntamente com os
185
BUBER, Martin. op. cit., p. 30.
BUBER, Martin. op. cit., p. 119.
187
ROSENZWEIG, Franz. La estrella de la redención. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2006, p. 447-448.
“Deus não é vida: Deus é luz. É senhor da vida, mas não está vivo nem está morto. [...]. Deus nem vive nem está
morto, mas sim infunde vida ao morto e ama. É o Deus tanto de vivos como de mortos justamente porque Ele
nem vive nem está morto”. (tradução livre)
188
FORTE, Bruno. La eternidad en el tiempo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2000, p. 244. “[...] o homem
tem sempre uma necessidade absoluta de sair do cárcere do próprio eu para abrir-se à alteridade [...]”. (tradução
livre)
186
56
esforços do cardeal Consalvi, reintroduziu, o papado na arena da diplomacia europeia após
uma ausência de quase dois séculos189.
Também foi dó século XIX o Movimento de Oxford190. Esse movimento foi o
responsável pela conversão de vários anglicanos ao catolicismo. A conversão de mais famosa
nesse sentido foi a de John Henry Newman (1801-1890)191, que apresentou como um dos
motivos de sua conversão o seguinte:
É fora de dúvida que a Igreja nacional 192 tem sido até aqui um dique útil [...]. Dizer
por quanto tempo ainda resistirá o dique nos anos que temos diante de nós, é
impossível, porque a Nação arrasta a Igreja e pouco a pouco a rebaixa ao seu nível.
Entretanto, a Igreja nacional tem ainda sobre a Nação a mesma influência que o
jornal sobre o partido que representa [...]. Reconheço, pois, na Igreja anglicana, uma
instituição venerável [...]. Mas que ela seja algo sagrado, que ela seja o oráculo da
doutrina revelada, que possa reclamar Santo Inácio ou São Cipriano como seus
antepassados [...] é o que se me tornou impossível reconhecer após a minha
conversão 193.
O percurso que levou Newman à conversão foi, na opinião de Paul Johnson,
representativo de uma tendência seguida por determinados intelectuais não só na Inglaterra. A
figura de Roma como um depósito de certezas medievais, de homogeneidade e de visão
unitária exercia uma clara atração sobre tais intelectuais. Newman era defensor daquilo que
ele próprio chamava de “princípio do dogma”, que era diametralmente oposto ao “princípio
antidogmático”, isto é, o liberalismo194. “Minha luta era contra o liberalismo”, dizia ele, e “a
questão vital era saber como impediríamos a invasão do liberalismo na Igreja”
195
. Newman
foi ainda um apologeta da infalibilidade papal. Sobre este tema, ele expôs suas razões
tomando um trecho do Evangelho.
189
JOHNSON, Paul. op. cit., p. 443.
Foi “um amplo movimento cultural que, a partir de 9 de setembro de 1833, iniciou a publicação de uma série
de opúsculos – os Tracts of the Times. Os Tracts, partindo de uma crítica ao anglicanismo, procuravam delinear
uma espécie de via média entre catolicismo e anglicanismo”. In: ZAGHENI, Guido. A idade contemporânea:
curso de história da igreja IV. São Paulo: Paulus, 1999, p. 98. “O Movimento [...] desenvolveu-se; cada ano
tornava-se mais forte até que veio a colidir com a nação e com a Igreja da nação que de início propusera
defender”. In: NEWMAN, John Henry. Apologia pro vita sua: ou história das minhas opiniões religiosas. Rio
de Janeiro: Edições Paulinas, 1963, p. 122.
191
Foi uma das lideranças do Movimento de Oxford. “Newman começara a se afastar do Anglicanismo ao
trabalhar em seu livro sobre o arianismo no século IV”. In: JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de
Janeiro: Imago, 2001, p. 460.
192
Trata-se da Igreja Anglicana.
193
NEWMAN, John Henry. Apologia pro vita sua: ou história das minhas opiniões religiosas. Rio de Janeiro:
Edições Paulinas, 1963, p. 409-412.
194
NEWMAN, John Henry. op. cit., p. 91.
195
NEWMAN, John Henry. op. citp. 70-91.
190
57
Consta no Evangelho de Mateus uma passagem em que Jesus, antes da ascensão,
ordenou aos apóstolos a difusão e o ensino universal de sua doutrina. Disse Jesus: “Ide,
portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que estou
convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”
196
. Newman explicou essa passagem
da seguinte forma:
Assim pois, mandou-lhes Jesus, em primeiro lugar, “ensinar” Sua Verdade
Revelada; depois, “até a consumação dos séculos”; terceiro, para dar-lhes ânimo,
Jesus assegurou que estaria com eles “todos os dias”, sempre, passasse o que
passasse, até o final. A eles foi imposto o dever de ensinar as palavras de seu
Mestre, um dever que não poderiam cumprir com fidelidade a não ser com o auxílio
do mesmo Cristo; daí a promessa de estar com eles para que pudessem levar a cabo
tal missão. [...]. Essa promessa de ajuda sobrenatural não caducou com o
desaparecimento dos Apóstolos, posto que Cristo acrescenta: “até a consumação dos
séculos”, evidenciando assim que os Apóstolos teriam sucessores e comprometendose a estar junto a esses sucessores da mesma forma que com os Apóstolos. [...]. Se a
Igreja, iniciada pelos Apóstolos e continuada por seus sucessores, foi fundada com o
propósito explícito de conservar, proteger e proclamar a Revelação sob o amoroso
cuidado de seu fundador divino, estamos dizendo em outras palavras que, no que se
refere à Mensagem que lhe foi confiada, a Igreja é infalível. O que significa
Infalibilidade do Magistério senão o fato de que o Mestre está livre de erro no que
ensina? E como pode um homem estar livre de erro senão graças a um guia
sobrenatural infalível? Para que essas palavras “eu estarei convosco até a
consumação dos séculos”, senão como resposta antecipada ao medo e à aflição de
um mísero grupo de pescadores e homens do campo que se sentiam esmagados pelo
peso e responsabilidade de uma missão sobre-humana? 197
Newman conclui seu raciocínio afirmando que a infalibilidade do papa está
associada à infalibilidade do magistério da Igreja: “De igual manera, el papa debe presentarse
ante nosotros de una forma o con un gesto especial para que entendamos que está ejerciendo
su poder y oficio de enseñar. Esa forma se llama ex cathedra” 198.
Assim é que, no dizer de Paul Johnson, no cenário da crença declinante do século
XIX a Igreja de Roma emergia como uma fortaleza. As imagens de algo seguro, de um
refúgio para a segurança são numeráveis nos escritos de conversos como Newman. Numa
época em que os avanços intelectuais empurravam alguns para o agnosticismo ou para
descrença completa, “[...] o catolicismo e, acima de tudo, o papismo desenvolveram um novo
196
“Evangelho segundo São Mateus”. Capítulo 28; 19-20. In: Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão. São Paulo:
Paulus, 2008, p. 1758.
197
NEWMAN, John Henry. Carta al duque de Norfolk. Madrid: RIALP, 2005, p. 105-106. (tradução livre)
198
NEWMAN, John Henry. op. cit., p. 106. “Da mesma forma, o papa deve se apresentar diante de nós de uma
forma ou com um gesto especial para entendermos que ele está exercendo seu poder e ofício de ensinar. Esta
forma se chama ex cathedra”. (tradução livre)
58
poder de atração, graças a características que outrora haviam feito com que parecesse
repulsivo” 199. Isso, segundo Johnson, “[...] nos oferece o indício fundamental da revigoração
da Igreja Romana do século XIX e da reafirmação do poder papal”
200
. Esse movimento de
reafirmação da autoridade papal, como sabemos, teve seu ápice no Concílio Vaticano I, que
definiu o dogma da infalibilidade do papa em assuntos de fé e moral.
Do século XIX datam ainda os escritos de François-René de Chateaubriand. No
período que sucedeu a Revolução Francesa, em 1802, Chateaubriand escrevia:
Se Roma compreender bem a sua posição, nunca ela teve ante si maiores esperanças
e mais brilhantes destinos. Esperanças, dizemos, porque contamos as tribulações
entre os desejos da Igreja de Jesus Cristo. A sociedade degenerada reclama uma
segunda pregação do Evangelho: o cristianismo restabelece-se e sai ovante do mais
terrível dos assaltos que ainda lhe deu o inferno. Quem sabe se o que nos parece a
queda da Igreja não é antes a sua reedificação? Na riqueza e no repouso parecia ela
esquecida da cruz; agora será salva, porque a cruz reaparece 201.
São também relevantes as obras de Vladimir Soloviov, filósofo e teólogo
ortodoxo russo. O que podemos destacar aqui acerca dos escritos de Soloviov é o tom dialogal
que ele quis firmar com catolicismo romano. Soloviov tentou estabelecer um diálogo e uma
aproximação com Roma. Ele enxergava na Igreja Católica uma unidade e independência que
não conseguia ver nas igrejas protestantes nem na própria Igreja Ortodoxa Russa. Num trecho
dizia ele:
Ningún razonamiento puede anular la evidencia del hecho siguiente: fuera de Roma
no hay más que Iglesias nacionales (como la Iglesia armenia, la griega), Iglesias de
Estado (como la Iglesia rusa, la anglicana), o sectas fundadas por particulares (como
los luteranos, calvinistas, etc.). Sólo la Iglesia Católica romana no es ni Iglesia
nacional, ni Iglesia de Estado, ni secta fundada por un hombre. Es la única Iglesia
del mundo que conserva y afirma el principio de la unidad social universal contra el
egoísmo de los individuos y el particularismo de las naciones; es la única que
conserva y afirma la libertad del poder espiritual contra el absolutismo del Estado;
es, en una palabra, la única contra la cual no han prevalecido las puertas del
infierno 202.
199
JOHNSON, Paul. op. cit., p. 462.
JOHNSON, Paul. op. cit., p. 463.
201
CHATEAUBRIAND, François-René de. O gênio do cristianismo. vol. 2. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto
Alegre: W. M. Jackson Inc. Editores, 1949, p. 285.
202
SOLOVIEF, Vladimiro. Rusia y la iglesia universal. Buenos Aires: Libreria Santa Catalina, 1936, p. 215216. Itálico do autor. “Nenhum raciocínio pode anular a evidência do fato seguinte: fora de Roma não há mais
do que igrejas nacionais (como a Igreja armênia, a grega), Igrejas de Estado (como a Igreja russa, a anglicana),
ou seitas fundadas por particulares (como os luteranos, calvinistas, etc.). Apenas a Igreja Católica romana não é
200
59
No século XIX, nove homens foram proclamados Doutores203 da Igreja Católica.
No Oitocentos viveram ainda Kierkegaard e Schleiermacher, importantes nomes do
pensamento cristão protestante. Certamente Kierkegaard é o grande marco da filosofia e
teologia protestantes no século XIX. Opôs-se ao hegelianismo e considerou que a natureza da
fé não está atrelada à especulação ou à abstração. Para Kierkegaard, crer não é saber nem
compreender. Para ele, a fé não constitui um sistema racional. A fé não é um simples
momento do pensamento, e é por isso que o crente não é um especulante. Na fé, o indivíduo
real encontra-se na presença de um Deus real204. Enfim, a fé alça voos que a razão não
consegue acompanhar.
Ó cálice amargo, se a ignomínia da morte é mais amarga que o absinto para os
mortais, o que não será, então, para o imortal! Ó ácida beberagem – mais ácida que o
vinagre – não se ter para se reconfortar senão a incompreensão da pessoa amada! Ó
consolo na aflição, o de sofrer como culpado, mas o que não será o de sofrer sendo
inocente! 205
Isso dialoga muito bem com aquilo que, no século XX, João Paulo II viria a dizer
na Fides et Ratio: “A razão não pode esgotar o mistério de amor que a Cruz representa”
206
.
Sendo assim, é inconcebível pretender conter o Absoluto em esquemas especulativos. Não se
pode “[...] caer en la tentación de confundir el saber con la fe” 207.
No mesmo século em que a Crítica Bíblica quis racionalizar a fé a partir de uma
investigação científica das Escrituras, Kierkegaard se insurgiu contra a pretensão de
nem Igreja nacional, nem Igreja de Estado, nem seita fundada por um homem. É a única Igreja do mundo que
conserva e afirma o princípio da unidade social universal contra o egoísmo dos indivíduos e particularismo das
nações; é a única que conserva e afirma a liberdade do poder espiritual contra o absolutismo do Estado; é, em
uma palavra, a única contra a qual não têm prevalecido as portas do inferno”. (tradução livre)
203
São eles: São Pedro Damião (proclamado Doutor em 1828); São Bernardo de Claraval (proclamado Doutor
em 1830); Santo Hilário de Poitiers (proclamado Doutor em 1851); Santo Afonso de Ligório (proclamado
Doutor em 1871); São Francisco de Sales (proclamado Doutor em 1871); São Cirilo de Alexandria (proclamado
Doutor em 1882); São Cirilo de Jerusalém (proclamado Doutor em 1882); São João Damasceno (proclamado
Doutor em 1890) e São Beda, o Venerável (proclamado Doutor em 1899). In: Los 33 Doctores de la Iglesia por
orden
cronológico.
Disponível
em:
˂http://www.conferenciaepiscopal.es/index.php/materiales-deinteres/materiales/2192-los-33-doctores-de-la-iglesia-por-orden-cronologico.html˃. Acesso em: 20 nov. 2013.
204
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 101-102.
205
KIERKEGAARD, Sören. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 3. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 55.
206
JOÃO PAULO II. Fides et ratio: sobre as relações entre fé e razão. Carta encíclica do sumo pontífice João
Paulo II aos bispos da igreja católica. 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 35-36.
207
KIERKEGAARD, Sören. Post scriptum no científico y definitivo a migajas filosóficas. Salamanca:
Ediciones Sígueme, 2010, p. 41. “[...] cair na tentação de confundir o saber com a fé”. (tradução livre)
60
racionalização da fé. Para ele a fé não precisa de provas; essas são, aliás, suas inimigas.
Quando a fé começa a se envergonhar de si mesma; quando não se contenta com o amar e se
envergonha maliciosamente do amado, aí sim a fé sente necessidade de constatar. Quando a fé
começa a perder a paixão, quando começa a deixar de ser fé, é aí que necessita da prova para
gozar do respeito do incrédulo208. Assim, para Kierkegaard, as provas se tornam necessárias
quando a fé desaparece. Disse ele que a forma de compreensão surgida no âmbito da fé é, no
mínimo, espantosa.
E a relação da compreensão, como é espantosa! Pois é menos espantoso cair com o
rosto no chão quando as montanhas tremem à voz do deus do que estar sentado junto
dele como ao lado de um igual, e no entanto esta é afinal de contas a preocupação do
deus, sentar-se justamente desta maneira! 209
Sendo essa a relação de compreensão, à medida que a interioridade do indivíduo
vai crescendo, a verossimilhança vai diminuindo em vez de aumentar. Aliás, a fé não sente o
mínimo gosto por essa verossimilhança. O inverossímil não é adversário da fé, é o seu
alimento210.
Mientras que hasta ahora la fe había tenido en la incertidumbre un provechoso tutor
y maestro, en la certidumbre encontrará a su más peligroso enemigo. Es decir, si se
prescinde de la pasión, la fe deja de existir, pues la certidumbre y la pasión no
concuerdan. Vamos a aclararlo mediante un paralelismo. Para quien cree en la
existencia de Dios y de la Providencia es más fácil (preservar la fe), es más fácil
alcanzar definitivamente la fe (y no una imagen fantástica) en un mundo imperfecto
donde la pasión se mantiene en vela, que un mundo absolutamente perfecto. En un
mundo así la fe es de hecho impensable 211.
É possível dizer, então, que em seus escritos, Kierkegaard pretendeu desligar a fé
de uma sistematização lógica. A fé não é um arcabouço especulativo. Dessa forma, pelo que
208
KIERKEGAARD, Sören. Post scriptum no científico y definitivo a migajas filosóficas. Salamanca:
Ediciones Sígueme, 2010, p. 42.
209
KIERKEGAARD, Sören. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 3. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 56.
210
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 103-104.
211
KIERKEGAARD, Sören. Post scriptum no científico y definitivo a migajas filosóficas. Salamanca:
Ediciones Sígueme, 2010, p. 41. “Enquanto que até agora a fé teve na incerteza um proveitoso tutor e professor,
na certeza encontrará o seu mais perigoso inimigo. Ou seja, se se prescinde da paixão, a fé deixa de existir, pois a
certeza e a paixão não concordam. Vamos esclarecer mediante um paralelismo. Para quem acredita na existência
de Deus e da Providência é mais fácil (preservar a fé), é mais fácil de alcançar definitivamente a fé (e não uma
imagem fantástica) em um mundo imperfeito onde a paixão se mantém acordada, do que num mundo
absolutamente perfeito. Em tal mundo a fé é de fato impensável”. (tradução livre)
61
foi exposto, pode-se dizer que Kierkegaard intentou salvaguardar o elemento de “escândalo”
essencial ao cristianismo212.
Da discussão que consumiu as seis páginas anteriores, podemos concluir o
seguinte: se “por um lado [no século XIX] a cultura europeia estava num processo de
secularização ao ponto de ignorar, ou lamentar, as questões religiosas”, por outro, o
pensamento religioso não havia se estagnado, e “estava a ser alvo de um renascimento”
213
.
Daí pode-se dizer que “o universo religioso sempre tende a ressurgir” 214.
Notemos ainda que na mesma época em que Nietzsche enxergava como promissor
o destino dos homens desligado da ideia de Deus, Dostoiévski nos apresentava o suicídio
como sendo o pináculo de um mundo sem Deus. “Onde Nietzsche pressente um apogeu, não
vê Dostoiévski senão uma falência” 215. Em Nietzsche, mata-se Deus para poder fazer viver o
homem, ao passo que “a ideia principal de Dostoiévski é a de que, ao matar-se Deus no
homem, é o próprio homem que acaba por se matar”
216
. Foi ainda o literato russo que
percebeu algo bem relevante. Para ele, “[...] o socialismo russo era um problema religioso,
relativo a Deus e à imortalidade, à transformação completa, radical, da vida humana, e não um
problema político” 217.
Até o momento de sua prisão, em 1849, Dostoiévski não parece muito preocupado
com a busca de Deus. Foi na prisão que Dostoiévski reencontrou Cristo. Este é o episódio sem
o qual sua obra não pode explicar-se 218. Numa carta escrita após sua libertação, disse:
E, todavia, envia-me Deus momentos de completa serenidade. Foi em momentos tais
que realizei em mim próprio uma profissão de fé, onde tudo é claro e sagrado. Essa
profissão de fé é simplíssima. Ei-la: acreditar que nada de mais belo, de mais
profundo, de mais simpático, de mais razoável, de mais corajoso ou de mais perfeito
existe do que Cristo. E não somente nada existe como ainda – confesso a mim
próprio cheio de amor ciumento – nada poderá existir. Mais ainda: se alguém me
houvesse provado que Cristo estava fora da verdade, e se, na realidade, se
encontrasse estabelecido que a verdade está fora de Cristo, eu teria preferido ficarme com Cristo a voltar-me para a Verdade 219.
212
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 104-105.
BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 212.
214
LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 126.
215
GIDE apud LUBAC, Henri de. op. cit., p. 299-300.
216
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 335.
217
BERDIAEFF, Nicolas. op. cit., p. 147-148. (tradução livre)
218
LUBAC, Henri de. op. cit., p. 308-309.
219
DOSTOIÉVSKI apud LUBAC, Henri de. op. cit., p. 310.
213
62
Em outro momento diz Dostoiévski, pela boca de Chátov:
A razão e a ciência, hoje e desde o início dos séculos, sempre desempenharam
apenas uma função secundária e auxiliar; e assim será até a consumação dos séculos.
Os povos se constituem e são movidos por outra força que impele e domina, mas
cuja origem é desconhecida e inexplicável. Essa força é a força da confirmação
constante e incansável do seu ser e da negação da morte. O espírito da vida, como
dizem as Escrituras, são “rios de água viva” com cujo esgotamento o Apocalipse
tanto ameaça. [...] É a “procura de Deus”, como eu chamo tudo o mais. O objetivo
de todo o movimento do povo, de qualquer povo e em qualquer período da sua
existência, é apenas e unicamente a procura de Deus 220.
Dostoiévski dirá, enfim, “[...] que nenhuma ciência poderá realizar jamais o ideal
humano e que a paz para o homem, fonte da vida, salvação e condição indispensável da
existência de todo o mundo, se encontra encerrada nestas palavras: “O Verbo fez-se carne” e
na fé que nelas se tenha” 221. Vemos, assim, que em Dostoiévski, Deus continua vivo.
Claro que existe afinidade de pensamento entre Dostoiévski e Nietzsche. E não só
entre eles dois. Há uma similaridade evidente entre Dostoiévski, Nietzsche e Kierkegaard.
Quem sobre ela escreveu muito bem foi Romano Guardini. Disse ele que
durante o século XIX decorrem os períodos criadores de três homens que
exteriormente quase não tiveram relações [...] e que no entanto dão provas de uma
extrema afinidade de estrutura de pensamento e experiências. São eles os três
grandes românticos: Sören Aabye Kierkegaard, Fiodor Mikailovitch Dostoiévski e
Friedrich Wilhelm Nietzsche. Neles a situação existencial do homem da Idade
Moderna – do homem, portanto, a partir do século XV – atinge as últimas
consequências. Eles liquidam a Idade Contemporânea e ao mesmo tempo existem
neles elementos da época posterior, que ainda não tem nome 222.
No cenário apresentado por Nietzsche, a Igreja e a teologia não tinham nada a
dizer, posto que Deus estava morto. Vejamos uma metáfora que muito bem pode explicar
nosso raciocínio. Tomemos o pensamento filosófico europeu do século XIX como uma
orquestra a tocar uma sinfonia. Geralmente uma sinfonia começa com uma melodia suave,
com notas quase imperceptíveis. À medida que está sendo executada, a sinfonia vai
adquirindo notas e tons mais graves até que chega o momento final, o clímax, o grand finale
do processo sinfônico. Esta sinfonia representa o pensamento filosófico europeu oitocentista.
220
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 250-251.
DOSTOIÉVSKI apud LUBAC, Henri de. op. cit., p. 312.
222
GUARDINI, Romano. O mundo religioso de Dostoiévski. Lisboa: Editorial Verbo, 1964, p. 206.
221
63
Já vinha dos filósofos iluministas a tendência anticristã e antieclesial. O século XIX apenas
consumou o gradual processo de esvaziamento da autoridade religiosa e da religião na
Europa. O processo se iniciou com a crítica da Igreja (seja ela católica ou protestante),
passando pela recusa da metafísica e chegando ao clímax: a “morte de Deus”. Esse decreto de
Nietzsche marcou o fim de uma época. A “morte de Deus” nada mais foi do que a recusa
definitiva da transcendência, da metafísica, dos valores morais absolutos e das certezas
ontológicas acerca do homem. A “morte de Deus” é ainda a formalização, a oficialização do
divórcio entre fé e filosofia, entre a teologia e a filosofia, entre a Igreja e a filosofia. Tanto foi
assim, que em fins do século XIX se dizia no Brasil: “Outro inimigo da Igreja é a filosofia,
como o século de hoje a entende, [...] porque, declarando-se em plena independência, não
admite autoridade alguma superior; e ousa julgar tudo, explicar tudo” 223. Assim,
o dilema em que a fé cristã se encontra tem diversos motivos. Mas um dos mais
importantes consiste no fato de a fé se ver abandonada pela filosofia e, por via disso,
se achar de repente colocada, por assim dizer, no vácuo. Na Antiguidade e na Idade
Média, a fé era veiculada aos homens na medida em que a filosofia lhes oferecia
uma imagem do mundo na qual essa fé poderia assumir o seu lugar com sentido.
[...]. Desde Kant que esta unidade do pensamento filosófico se acha cada vez mais
em ruptura e, acima de tudo, que desapareceu quase completamente a certeza
confiante de que o homem pode, convincente e justificadamente, sondar, para lá do
âmbito da física, a essência das coisas e o seu fundamento. [A partir de então] a fé
não pode encontrar nenhum ponto de ligação firme e seguro no espaço do
pensamento humano e, quando faz essa tentativa, não encontra senão um vazio a que
se agarrar 224.
Enxerguemos, portanto, em Nietzsche o clímax sinfônico ao qual nos referimos na
metáfora. Mas nem sempre as sinfonias terminam de forma majestosa e apoteótica. Há
sinfonias que terminam de forma bem melancólica, quase no puro silêncio. Foi assim que
terminou a sinfonia que, na metáfora usamos, representa o pensamento filosófico europeu do
século XIX. Essa sinfonia chegou ao fim com a “morte de Deus”. Nada mais trágico do que
isso. A sinfonia termina com os homens tentando se livrar do cadáver divino em
decomposição. Foi o pessimismo que ditou o tom no final da sinfonia. Sem dúvida, essa
questão da “morte de Deus” é relevante. Toda a filosofia e teologia posteriores
necessariamente tiveram que lidar com a expressão deicida de Nietzsche. Evidentemente que
um desafio foi posto à manutenção do cristianismo. E este desafio foi encarado por alguns
223
CAMPOS, Joaquim Pinto de. A igreja e o estado: o catolicismo e o cidadão. Rio de Janeiro: Typographia do
Globo, 1875, p. 22.
224
RATZINGER, Joseph. Fé e futuro. Estoril: Princípia, 2008, p. 57-58.
64
teóricos cristãos sob a forma do seguinte questionamento: “Em que se há de transformar a
humanidade se ela não tiver mais a Deus, ou se ela tiver quantos deuses queira forjar?”
225
.
Na visão de Veuillot, o grande ponto em discussão era este:
A questão – a verdadeira questão – é saber de onde vem a humanidade, o que ela
quer e para onde ela vai. O homem é criatura de Deus? O Deus Criador daria à
criatura uma legislação imutável em meio às transformações permitidas à liberdade?
Será que durante mil e oitocentos anos a humanidade cometeu o equívoco de
acreditar que Jesus Cristo é o Deus vivo e eterno? 226
Eis o desafio posto ao cristianismo pela “morte de Deus”.
Ao fim da primeira parte deste capítulo voltamos a perguntar: em que medida a
discussão sobre a “morte de Deus” dialoga com a temática geral do nosso estudo? Se, como
dissemos no início, as ideias de Nietzsche só viriam ter repercussão algum tempo depois de
sua morte, é pertinente falar na “morte de Deus” como um possível contexto internacional
oitocentista? Sim, enxergamos essa discussão como pertinente. No ponto de vista de Martin
Buber, “[...] o mais importante na história do homem são as mudanças que ocorrem com as
forças que não foram vistas ou percebidas em seus respectivos momentos”
227
. Nietzsche foi
como uma síntese ou cume do pensamento de uma época. Foi com o desafio por ele lançado
que o cristianismo como um todo teve de lidar desde fins do século XIX até nossa época.
Seria exagero dizer que ainda no século XIX certos pensadores e lideranças
católicos estavam já “antevendo” um mundo sem Deus e sem as representações religiosas?
Vejamos o que dizia monsenhor Joaquim Pinto de Campos no Brasil, em 1875:
O que sucederá no dia em que se inocular, e impregnar bem nas turbas a ideia de que
a religião é uma peia pueril; de que a morte acaba todos os gozos, todas as dores,
todas as responsabilidades? Erguer-se-ão triunfantes os ruins instintos, e o descrente
se converterá logicamente no mais abominável malvado. “Visto que nada há depois
da morte (dirá ele), nem prêmio do bem obrar, nem punição de malefícios; de que
serve praticar virtude, quando ela me prejudicar?” [...]. Ainda sob o aspecto humano,
ai de nós, no dia em que descrermos na vida futura! Nesse dia, que significará
virtude? Uma convenção egoísta da sociedade [...]. Que significará decência? Pura
comédia [...]. Que significará amor da pátria aos olhos de quem não tem porvir? Que
importa ela? Que valem família, filhos? Para que felicitar todas essas coisas
perecedoras e vãs, a custa da própria felicidade? Morram elas e viva o eu. E o eu, o
terrível eu, dominará todas as minhas ações. Serei todo matéria, e apetites, e carne, e
225
VEUILLOT, Louis. A ilusão liberal. Niterói, RJ: Editora Permanência, 2010, p. 88.
VEUILLOT, Louis. op. cit., p. 87.
227
BUBER, Martin. op. cit., p. 119.
226
65
sangue, e animal! A sublime lei do Gólgota proscreveu o que nossas leis
proscrevem, exaltou o que elas exaltam: tanto cuidou do homem eternal como do
caduco; tanto legislou para o céu como para a terra. [...]. Mas que vemos em torno?
Uma moral de convenção, de conveniência, discutível, discutida porque é sem
religião; uma metafísica sem crença; ideias lisonjeiras de pueril vanglória do
espírito, mas que não elevam a alma [...]. Respiramos uma atmosfera mefítica de
indiferença! Gerações sobre gerações vão rolando como ondas que se quebram nas
praias; e cada geração vai achando diminuído o patrimônio humano da fé, do culto,
da moral cristã. Tremo só de o pensar, mas o progressivo caimento em que vamos,
levar-nos-à, em meio século mais, à ruína das práticas, como dos sentimentos
religiosos! Tristonho futuro se me antolha! 228
Parece então que a discussão sobre Nietzsche e o ateísmo da indiferença longe de
ser descabida, é bem pertinente. Não foi diferente o pessimismo da parte das lideranças
católicas. Foi dessa maneira que Gregório XVI se expressou também.
Triunfa soberba a improbidade, insolente a ciência, licencioso o descaramento. A
santidade das coisas sacras é desprezada, e a augusta majestade do culto divino, que
possui grande força e influxo sobre o coração humano, indignamente é rejeitada,
contaminada e tornada objeto de escárnio por homens tratantes. Então se distorce e
perverte a sã doutrina e se disseminam de modo audaz erros de todo gênero. Não há
leis sagradas, nem direitos, nem instituições, e nem disciplinas por santas que sejam
que se encontrem protegidas do ardil deles, que expelem apenas malvadezas de sua
boca imunda 229.
Neste mesmo sentido, o papa Pio IX230 se posicionou. Talvez o tom dele seja bem
mais trágico, uma vez que a abolição dos Estados Pontifícios ocorreu em seu pontificado.
Quisessem os céus que nós pudéssemos anunciar-vos o fim dessa grande
calamidade! Mas a corrupção dos costumes que se propaga por toda parte,
continuamente alimentada por escritos ímpios, infames, obscenos, representações
teatrais, casas de meretrício abertas por toda parte e outros perversos artifícios, os
erros mais monstruosos e horrendos disseminados por toda parte; a crescente e
abominável mistura de todos os vícios e maldades; o mortífero veneno da
incredulidade e do indiferentismo largamente difundidos; o descuido e o desprezo
para com a autoridade eclesiástica, as coisas e as leis sagradas; o injusto e violento
saque dos bens da Igreja; a ferocíssima e contínua perseguição contra os ministros
sagrados; o ódio diabólico contra Cristo, contra sua Igreja e doutrina e contra esta Sé
Apostólica; e, com esses, também outros inumeráveis excessos que foram
perpetrados pelos obstinadíssimos inimigos da catolicidade [...] parecem prorrogar e
adiar o tão desejado momento no qual será dado presenciar o pleno triunfo da nossa
santíssima religião, da justiça e da verdade 231.
228
CAMPOS, Joaquim Pinto de. (Prólogo). op. cit., p. VIII-X. Itálico do autor.
GREGÓRIO XVI. op. cit., p. 27.
230
Pio IX foi papa de 1846 a 1878.
231
PIO IX. “Quanto conficiamur moerore”. Sobre os erros doutrinais do tempo presente. In: Documentos de
Gregório XVI e de Pio IX (1831-1878). São Paulo: Paulus, 1999, p. 232-233.
229
66
Por que não dizer que na província do Maranhão os bispos também se
expressavam lastimosos e com pessimismo? O que se percebe na leitura dos ofícios dos
bispos diocesanos do Maranhão expedidos ao longo do século XIX é que os clérigos se
encontravam diante da negligência e do indiferentismo religioso da parte das autoridades
civis. Ora, durante todo o século XIX os bispos do Maranhão lamentaram o que eles chamam
de “decadência do culto público”, atribuindo como uma das causas dessa situação a completa
negligência ou desinteresse dos poderes provinciais. Agindo assim, será que as autoridades
civis já não estavam a enxergar a religião com certas ressalvas ou com certo desprezo?
Durante todo o século XIX, os bispos do Maranhão escreveram seus ofícios em tom
pessimista, isto em razão dos “[...] males velhos, que lançaram raízes profundas” 232.
Com efeito, aquelas considerações de Certeau acerca da “capacidade de crer”
foram bem importantes para este trabalho. Elas ensejaram uma reflexão que constitui um dos
cernes da nossa análise. O teor dessa reflexão ficou posto nas páginas anteriores. Toda uma
estrutura de crença estava sendo desacreditada durante o século XIX. Neste momento, quando
fala em leis eternas e divinas, em origens divinas do poder e num Deus invisível e
inescrutável, parece que a Igreja Católica discursava a um público absolutamente indiferente e
até cético. É isso mesmo que se percebe na leitura dos ofícios que os bispos do Maranhão
enviaram aos presidentes da província ao longo do século XIX. Os presidentes parecem
indiferentes aos apelos e ameaças espirituais dos bispos.
Cedo ou tarde, Excelentíssimo Senhor, comparecemos no Tribunal do Juiz Supremo
dos vivos, e dos mortos, onde dando estrita conta dos muitos encargos da minha
administração responderei também pelo zelo de solicitar perante as Autoridades
temporais os interesses desta Igreja, e Vossa Excelência respondendo pelo
cumprimento da Constituição, e das Leis, que nos regem, será também responsável
pelos deveres de filho obediente da Igreja, a qual Vossa Excelência promete toda a
proteção em qualidade de Delegado do Poder Executivo 233.
Durante todo o século XIX os bispos solicitaram o auxílio pecuniário dos
presidentes no sentido de suprir o culto público com aquilo que era estritamente básico. As
igrejas matrizes, quando existiam, careciam de paramentos, alfaias, vasos e livros sagrados.
232
Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Eduardo Olímpio
Machado, 03/04/1855, Setor de Avulsos, APEM.
233
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de
Araujo Vianna, 12/07/1831, Setor de Avulsos, APEM.
67
Acresce-se a isto o fato de que “há paróquias onde os atos religiosos são celebrados em
pardieiros sem forma alguma de templo”
234
. Notemos que esta informação data já do fim do
século. O apelo dos bispos maranhenses por melhoria no aparelhamento do culto público
atravessou o século; e este apelo simplesmente parecia não ser ouvido pelos presidentes da
província. Essa incúria dos presidentes pode denotar certo indiferentismo.
Acostumado como estou, a ouvir queixas de quase todos os Párocos relativamente à
falta de meios de que dispõem, para a decência do culto, confesso a Vossa
Excelência, que já me acho sem forças para atendê-las, por me faltarem todos os
recursos, ainda os naturais, pela má vontade, ou não sei como me exprima, dos
sentimentos do século, que tanto entorpecem o bem andamento dos princípios
católicos 235.
Quando D. Luis da Conceição, em 1870, alienou os bens do patrimônio de São
Bento de Bacurituba para suavizar as carências do culto público nessa localidade, ele foi
rechaçado e denunciado pelo Inspetor da Tesouraria da Fazenda. Essa desavença mostra
claramente o intervencionismo do poder civil nos negócios eclesiásticos. Mostra ainda como
eram confusas, tênues e imprecisas as linhas que separavam o que era de jurisdição temporal e
o que era de jurisdição espiritual. Mas antes de adentrar nesse estudo das dissidências entre o
poder espiritual e o poder temporal no Maranhão oitocentista, é necessária uma discussão
sobre certos aspectos essenciais no relacionamento entre a Igreja e o Estado no contexto
imperial.
234
Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João
Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM.
235
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Ambrosio
Leitão da Cunha, 21/04/1865, Setor de Avulsos, APEM.
68
3 DISSIDÊNCIAS ENTRE A IGREJA CATÓLICA E O PODER CIVIL NA
PROVÍNCIA DO MARANHÃO
Este capítulo final é propriamente o cerne de toda discussão. De forma alguma ele
pode ser lido de forma desvinculada do que foi dito antes. A leitura deste capítulo deve ser
feita de maneira compartilhada e dialogal com os demais capítulos da dissertação. Os aspectos
essenciais que norteavam o relacionamento entre a Igreja e o Estado no Império foram postos
no capítulo anterior. Eles se referem quase que inteiramente ao direito de padroado e
beneplácito. Mas, e a Igreja? Qual a sua “porção” nesse sistema? Não se oferecia à Igreja uma
compensação pelo fato da existência do padroado e do beneplácito? Bastava somente a solene
declaração contida no art. 5º da Constituição de 1824? Não. A Constituição incumbia as
autoridades civis de um dever maior em relação à Igreja e ao catolicismo. Esse dever consistia
no juramento de proteção e manutenção da religião católica, previsto nos artigos 103, 127 e
141 da Constituição. O imperador, antes de ser aclamado, era obrigado a jurar que manteria a
religião. Se o imperador, por força da Constituição, era obrigado a fazer esse juramento, é
claro que tacitamente isso se esparge às demais autoridades civis do Império.
“Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana”. Aí está o juramento que o
art. 103 ordenava o imperador a prestar. “Manter” a religião em que sentido? O que significa
aqui “manter” a religião? O verbo manter pode ser entendido no sentido de suprir, de dar
suporte. O juramento era a declaração formal de que o Estado se comprometeria em garantir a
manutenção da religião oficial do Império. Competia então ao Estado manter, suprir e dar o
necessário suporte à religião que ele adotou como oficial. Não se trata aqui de algo abstrato ou
de uma simples formalidade. “Manter a religião” foi a tarefa atribuída ao Estado de agir
concretamente no sentido de garantir a permanência e perpetuidade do catolicismo. No
momento oportuno veremos através de que maneira o Estado poderia “agir concretamente”.
Neste capítulo veremos, por intermédio dos ofícios dos bispos diocesanos do
Maranhão, se essa regra que incumbia as autoridades civis de manter o culto público foi
cumprida ao longo do século XIX na província. Essa discussão serve como contexto para uma
das dissidências havidas entre D. Luis da Conceição e o Inspetor da Tesouraria de Fazenda. A
segunda controvérsia, mais relacionada com a questão do padroado, se refere a uma decisão
da Câmara Municipal de São Luís que modificou um antigo costume da Igreja.
69
3.1 Contexto geral das dissidências
As dissidências entre a Igreja e as autoridades civis na província do Maranhão
tiveram como pano de fundo aquilo que os bispos chamaram de “declínio do culto público”.
Mas não podemos nos enganar com essa expressão. Declínio faz supor que houve um período
de ascensão e isso, na província do Maranhão, jamais parece ter ocorrido. O século XIX
inteiro foi um longo período de agonia e decadência do culto público. Desde o alvorecer dos
Oitocentos até o seu ocaso os bispos do Maranhão clamaram por melhorias na estruturação do
culto público.
“Todo direito encerra uma contrapartida, uma prestação. A todo direito
corresponde um dever. O direito de padroado, além de conferir privilégios, encerra o dever
correlato de defender e proteger a Religião Católica” 236. Através de diversas atitudes o Estado
poderia promover a defesa e a proteção da religião, sendo que uma delas consistia no subsídio
que o Estado deveria oferecer para a instrumentalização e manutenção do culto público e dos
seus ministros. O padroado incumbe “ao Estado incumbe [...] o dever de subsidiar o culto
divino, mantendo ministros, templos e alfaias, bem como os seminários eclesiásticos” 237. Foi
neste sentido que D. Marcos de Sousa se expressou ao dizer: “Espero que em tempo
conveniente sejam dadas as providências requeridas em favor das paróquias, as quais o
Governo é obrigado a edificar, reparar, e dotar por dever do Padroado” 238.
Ora, é sabido que as religiões possuem cultos exteriores e que a existência desses
cultos está associada à própria manutenção da religião. Para que possamos entender a
importância e a centralidade do culto público no caso do catolicismo, vejamos um trecho de
monsenhor Pinto de Campos:
Se há um Deus, e uma revelação, há, certamente, um culto determinado e positivo; e
será sempre este o direito comum, a lei divina, e positiva do gênero humano. A
Igreja negaria a revelação; negaria a si mesma, no dia em que obliterasse esta fé, ou
renunciaria à sua missão, se não a proclamasse 239.
236
SCAMPINI, José. “A liberdade religiosa nas constituições brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado”.
Primeira parte – A liberdade religiosa no Brasil império. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 11,
nº 41, jan./mar. 1974, p. 114-115.
237
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 140.
238
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Luis Alvares de
Lima, 07/03/1840, Setor de Avulsos, APEM.
239
CAMPOS, Joaquim Pinto de. A igreja e o estado: o catolicismo e o cidadão. Rio de Janeiro: Typographia do
Globo, 1875, p. 107.
70
Nota-as daí que o culto é elemento essencial do catolicismo. O culto é a forma
pública de louvor a Deus, é a forma de exteriorização, de proclamação da mensagem a qual a
Igreja se sente depositária. Isto é assim porque é “[...] evidente que Deus não revelou a fé sem
o culto, que é a sua forma, e que, por conseguinte, é dever da mesma Igreja propagar a fé, e a
forma” 240.
O cerne, a razão mesma de ser do culto católico é a Eucaristia, o mais importante
dos sacramentos da Igreja. O culto é o ritual que busca não só recordar, mas também percorrer
a trajetória da vida Jesus, que culminou em sua imolação. Por isso que o culto católico
recebeu o nome de Santo Sacrifício da Missa. Na linguagem das Constituições Sinodais da
Bahia, a missa é um sacrifício porque o
[...] sagrado Mistério da Eucaristia, e celebração da Missa consiste o verdadeiro,
real, e único sacrifício, que tem a Igreja Católica: porque o mesmo Cristo, que
instituiu como Sacramento o Mistério do seu Corpo, e Sangue sacramentado, quis
que o mesmo Mistério fosse verdadeiro sacrifício. E este sacrifício o mesmo, quanto
à substância, que Cristo Senhor nosso, como Sumo Sacerdote ofereceu ao Eterno Pai
pela redenção do mundo na Ara da Cruz; mas difere quanto ao modo: porque o da
Cruz foi sacrifício cruento com derramamento de sangue, e real, e verdadeira morte
de Cristo; porém este da Eucaristia é incruento sem derramamento de sangue, e só
morte mística do mesmo Cristo, ambos porém quanto à substância são o mesmo;
porque Cristo é o principal Sacerdote em um, e outro sacrifício; e a mesma vítima do
seu Corpo, e Sangue, que na Cruz ofereceu ao Pai é a que oferece por seus Ministros
no Sacrifício da Missa 241.
Assim, manter a religião católica é, entre outras coisas, manter o culto a ela
associado. Portanto, o suporte vindo do Estado deveria se materializar na forma de auxílios
pecuniários e de subvenções destinadas à manutenção do culto público da religião adotada
como oficial. Mas o que se percebe através da leitura dos ofícios dos bispos do Maranhão é
que este dever do Estado, a contrapartida do privilégio do padroado, foi simplesmente
negligenciado pelas autoridades civis. Durante todo o século XIX as igrejas matrizes da
província, quando existiam, eram carentes dos mais essenciais aparatos para o culto.
240
CAMPOS, Joaquim Pinto de. A igreja e o estado: o catolicismo e o cidadão. Rio de Janeiro: Typographia do
Globo, 1875, p. 108.
241
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2011, p. 133. (Livro Segundo, Título I das Constituições).
71
Para realizar-se o culto, é necessário uma série de instrumentos, utensílios,
ornamentos e o local apropriado para tanto. E, neste sentido, as mesmas Constituições
Sinodais da Bahia ordenavam o seguinte:
E porque é mais conveniente não celebrar, do que dizer Missa em lugar não sagrado,
e destinado pela Igreja para este Santo Sacrifício, e o direito, e Sagrado Concilio
proíbe o celebrar-se fora das Igrejas, Capelas, Oratórios, e Ermidas aprovadas, e
visitadas pelos Ordinários, conformando-nos com sua disposição ordenamos, e
mandamos, que nenhum Sacerdote secular, ou Regular diga Missa em casas
particulares, e fora da Igreja, no campo, ou outro qualquer lugar, posto que aí seja
convocado o povo, nem em Igreja interdita, violada, ou poluta, nem em Ermida,
Capela ou Oratório particular, não sendo por Nós visitado, e aprovado 242.
Pelos ofícios dos bispos nota-se que na província do Maranhão se instaurou, em
relação ao culto, um cenário que foi uma verdadeira antítese das disposições das
Constituições Sinodais da Bahia. Tais Constituições, versando sobre normas e ditames
eclesiásticos, foram a expressão nacional dos preceitos do Concílio tridentino. Pode-se dizer
as disposições de Trento chegaram ao Brasil por intermédio das ditas Constituições. Este
documento engloba um compêndio vastíssimo que, em tese, deveria orientar o clero a
respeito, entre outras coisas, dos dogmas, dos sacramentos, das heresias e como tratá-las, e
das obrigações do clero. Em se tratando da diocese do Maranhão, as Constituições foram de
fundamental importância tendo em vista que foi por meio da “[...] Constituição Sinodal
Baiense, se rege esta Diocese Sufragânea” 243. A diocese do Maranhão, por ser sufragânea em
relação ao Arcebispado da Bahia, deveria acatar as normas eclesiásticas daí oriundas. No
entanto, do começo ao fim do século XIX, a maioria das igrejas matrizes maranhenses
apresentaram-se diametralmente opostas às determinações das referidas Constituições. Notase dos ofícios que a missa no Maranhão provincial era sim celebrada em palhoças, pardieiros
e em casas particulares.
Dissemos que uma das nossas intenções neste trabalho é apresentar e analisar os
discursos e representações que os bispos usaram em favor de si próprios e da Igreja quando
diante de demandas com o poder civil. Vejamos que argumentos os bispos usavam quando
solicitavam melhorias no aparato do culto. Possuía o culto, a missa uma relevância social?
242
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2011, p. 137-138. (Livro Segundo, Título IV das Constituições).
243
Ofício do Bispo Dom Frei Carlos de São José ao Presidente da Província do Maranhão Joaquim Franco de Sá,
01/06/1847, Setor de Avulsos, APEM.
72
Na visão dos bispos do Maranhão, o culto era o meio mais exímio de erguer,
promover e manter a civilização. Para D. Luis da Conceição Saraiva, o culto é “(...) o mais
edificante objeto, o elemento mais forte para moralizar a sociedade, porque mesmo constitui o
primordial objeto do Catolicismo” 244. Era ainda o culto entendido como uma das bases sobre
a qual se estruturava a firmeza do Império, como o suporte seguro do Estado: “[...] a Religião,
é a mais sólida coluna, em que se firma a estabilidade dos Impérios, e segurança dos
povos”245. Se Estado e Igreja estão unidos por meio do padroado, então a ruína da Igreja
Católica corresponderia igualmente à ruína do Estado brasileiro.
Sem dúvida, foram dois os grandes suportes das argumentações dos bispos em
seus ofícios. Os bispos sempre recorreram aos artigos 5º e 103 da Constituição de 1824, e às
determinações do Concílio de Trento, bem como das Constituições Sinodais da Bahia. Eles se
reportaram à Constituição no sentido de enfatizar a “proteção jurada” ao catolicismo. D.
Marcos Antônio de Sousa parece ter se expressado nesse sentido quando disse:
[...] tendo a Constituição do Império estabelecido que a Religião Católica Apostólica
Romana continuaria a ser a religião do Estado, tendo garantido o seu dogma, Moral,
disciplina, seus templos, e edifícios Eclesiásticos, e ainda a subsistência de seus
ministros, [...] espero tão bem em abono da Religião Santa, e da Igreja naquela parte
que ela descansa na proteção das Autoridades temporais que V. Exª. praticará em
seu favor tudo que mandar as Leis Canônicas, e Civis, tendo em respeito os objetos
destinados ao culto do Senhor, e sustentação dos seus ministros 246.
Já com relação ao Concílio tridentino e às Constituições do Arcebispado da Bahia,
pode-se dizer que eles foram abordados pelos prelados como as diretrizes doutrinais e
disciplinares a serem seguidas. Isso pode ser vislumbrado num ofício em que D. Marcos de
Sousa reclama em favor da conservação dos registros de batismo em um arquivo sob sua
direta vigilância, e não em “[...] habitações de alguns párocos em lugares esmos, e solitários”.
Nesse contexto, D. Marcos disse o seguinte:
O Registro dos batismos decretado pelo Sacrossanto Concílio Tridentino [...] é uma
lei disciplinar observada em todo o Catolicismo, e por isso da competência do Poder
244
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão
Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM.
245
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de
Araujo Vianna, 13/02/1832, Setor de Avulsos, APEM.
246
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de
Araujo Vianna, 05/07/1831, Setor de Avulsos, APEM.
73
Eclesiástico fazer os regulamentos convenientes à observância da mencionada lei
canônica. É ato conexo, e intimamente ligado com a administração do Sacramento, e
por isso em toda a Igreja Católica este objeto tem sido regulado pela autoridade dos
Prelados Diocesanos. [...]. É um objeto disciplinar e relativo à administração dos
Sacramentos e que não pode ser alterado sem o concurso do Poder espiritual
segundo o Concílio Tridentino Sessão 21 Cap. 2º de Reformatione. E declarando
muito positivamente o Art. 5º da Lei fundamental deste Império, que a Religião
Católica, Apostólica, Romana continuará a ser a Religião do mesmo Império, é
consequente que não só compreenda o dogma, como também a Moral, culto,
hierarquia, e parte disciplinar tão necessária a manutenção do mesmo culto 247.
Por isso, para D. Marcos, os registros “serão guardados com mais recato, e
segurança em um arquivo debaixo das vistas da primeira Autoridade Eclesiástica da Diocese”.
Ora, o que nós estamos discutindo desde o capítulo anterior é justamente essa divergência de
opiniões entre a hierarquia da Igreja e o Governo civil acerca da oficialização do catolicismo.
Para D. Marcos, o art. 5º da Constituição era autoevidente: “E declarando muito
positivamente o Art. 5º da Lei fundamental deste Império, que a Religião Católica,
Apostólica, Romana continuará a ser a Religião do mesmo Império, é consequente que não só
compreenda o dogma, como também a Moral, culto, hierarquia, e parte disciplinar [...]”. A
“lógica” do beneplácito simplesmente inverte esse raciocínio de D. Marcos de Sousa. Só
atravessa o crivo do beneplácito aquilo que não fere a Constituição de demais leis civis.
Regressemos à temática do culto público. Pode-se dizer que, basicamente, eram
três as carências maiores relacionadas ao culto: 1) ausência total de templos ou ruína das
igrejas matrizes existentes; 2) falta de sacerdotes para ministrarem o culto e 3) falta de
paramentos e alfaias
248
. Sobre essa temática, Lyndon de Araújo Santos se pronuncia de
forma aproximada à nossa percepção. Tomando como fonte o relatório do Presidente Augusto
Olímpio Gomes de Castro, reproduzido n’O Publicador Maranhense de 3 de maio de 1871,
disse:
Três eram “as causas mais salientes da decadência do culto público”, que
demonstravam a ineficiência do Estado, mas também as críticas da época à própria
Igreja e aos seus seguidores, já não tão fiéis assim: a falta de recursos por parte da
província, a indiferença religiosa da população e o pouco zelo dos sacerdotes. As
247
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Capitão de Mar e Guerra e Presidente da Província do
Maranhão Francisco Bibiano de Castro, 23/06/1837, Setor de Avulsos, APEM.
248
Em geral, correspondem ao conjunto de objetos litúrgicos, indispensáveis à celebração do culto religioso. São
eles, por exemplo: cálice, toalhas para o altar, vasos sagrados, crucifixo, castiçal, patena, velas, ostensório,
incenso, indumentárias litúrgicas, entre outros.
74
provas estavam no estado de ruína dos poucos templos e na falta de alfaias e
paramentos para os ofícios 249.
Lyndon de Araújo teve como fonte a fala do Presidente da Província. Já o nosso
estudo teve como fonte os ofícios dos bispos. Não é de se estranhar que o Presidente e os
bispos, o primeiro associado ao Estado e os outros à Igreja, tenham exposto pareceres
divergentes ou conflitantes.
A falta de sacerdotes parece ter sido intensa na primeira metade do século XIX. O
primeiro seminário da diocese do Maranhão surgiu apenas ao final da década de 1830, após
um longo período de insistência por parte de D. Marcos Antônio de Sousa. Notamos nos
ofícios que eram numerosas as solicitações das freguesias do interior da província por
ministros do altar. D. Marcos, quando diante de uma demanda da Vila da Tutoia, disse o
seguinte:
É muito atendível o que representa o corpo Municipal sobre a falta de Sacerdotes
para administração dos Sacramentos naquela freguesia, mas quando os habitantes
daquele município auxiliarem a vocação de seus filhos para o estado Sacerdotal,
quando as Municipalidades da Província requererem às Autoridades constituídas o
estabelecimento de colégios Eclesiásticos para abrigo, e educação da mocidade, os
quais Seminários os Poderes Nacionais se prestarão a manter em respeito as Leis
existentes, e cumprimento da proteção jurada a Religião Católica, Apostólica
Romana, não haverá tão sensível carência de obreiros Evangélicos [...]. Sem
sacerdócio não pode haver Religião, nem conservar-se a Moral, principio da ordem
social, e tranquilidade Pública 250.
Neste fragmento, diretamente D. Marcos associa a carência de sacerdotes à
ausência de um seminário que os forme: “Não há sacerdotes, por que apesar de todas as
minhas diligencias não tenho podido organizar um Seminário tão recomendado pelo Concílio
de Trento [...]” 251. Assim, o problema da falta de sacerdotes deve-se à falta de um seminário
que lhes dê instrução e educação para tal finalidade. Além do mais, segundo o parecer do
mesmo bispo, é importante que o pretendente a sacerdote seja nascido na província ou na
localidade na qual exercerá seu ofício “[...] porque estes seriam os mais próprios ministros, e
249
SANTOS, Lyndon de Araújo. As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura na primeira república
brasileira. São Luís: EDUFMA; São Paulo: Editora ABHR, 2006, p. 99.
250
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Joaquim Vieira da
Silva e Souza, 04/03/1833, Setor de Avulsos, APEM.
251
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de
Araujo Vianna, 23/02/1832, Setor de Avulsos, APEM.
75
mais bem quistos do povo na opinião de S. Thomas de Aquino”
252
. Essa é a tendência geral
que observamos nos ofícios de D. Marcos quando responde às municipalidades que solicitam
párocos e sacerdotes. Entre as referidas municipalidades estão, entre outras: a Vila de São
Bernardo “queixando-se da falta de socorros espirituais por não haverem sacerdotes que os
administrem”
253
; a Povoação de São José “[...] privada dos socorros do Sacramento”
254
; os
habitantes da Vila do Buriti (ofício de 16/10/1833) e a Vila do Brejo (ofício de 06/05/1837).
Foi somente “na tarde de 17 de abril de 1838, [que] inaugurou o Pastor o seu
Seminário, no Convento de Santo Antônio, diante do Presidente Vicente Thomaz Pires de
Figueiredo Camargo, do Clero e de numerosas autoridades”
255
. Dessa forma, pode-se dizer
que D. Marcos de Sousa procurou orientar-se pelas determinações tridentinas “que impõem
aos Bispos Diocesanos a obrigação de criar seminários, onde possam ser formados, na prática
dos bons costumes e no estudo das ciências e das artes, os aspirantes do sacerdócio” 256.
Mas a fundação de um seminário, por si só, era algo que nada poderia garantir
sem a necessária estruturação. O seminário de Santo Antônio subsistiria com numerosas
dificuldades e minguados recursos. Nesse sentido, disse Felipe Condurú Pacheco que “só D.
Marcos, com sacrifícios e um parco auxílio da Assembleia Provincial, [pôde] fundar o
Seminário de Santo Antônio em um dormitório do mesmo Convento, cedido para esse fim, e
que não comporta mais de 25 a 30 alunos internos” 257. O problema apenas parcialmente havia
sido resolvido: no convento de Santo Antônio funcionaria o Seminário Diocesano. Mas a
modicidade de recursos disponibilizados pelo Governo, acrescida à insuficiência de
candidatos ao estado eclesiástico terminou por figurar, em parte, como outro óbice ao culto
público.
D. Antônio Cândido de Alvarenga acresceu mais um agravante a esse contexto.
Disse ele que:
252
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de
Araujo Vianna, 23/02/1832, Setor de Avulsos, APEM.
253
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de
Araujo Vianna, 23/02/1832, Setor de Avulsos, APEM.
254
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Joaquim Vieira da
Silva e Sousa, 07/03/1833, Setor de Avulsos, APEM.
255
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 147-148.
256
RODRIGUEZ, Angel Veiga. Crítica ao positivismo na imprensa católica maranhense. São Luís: SECMA,
1982, p. 32.
257
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 288.
76
Não havendo verdadeiros sentimentos religiosos nas famílias que dispõem de
recursos para educar seus filhos, preferem os pais destiná-los a outras carreiras e
profissões civis, sem consagrarem um deles ao serviço de Deus, não sendo raros os
casos dos próprios pais afastarem seus filhos da carreira eclesiástica, quando
percebem neles alguma inclinação e vocação para ela 258.
Se na década de 1830 acreditava-se que a escassez de sacerdotes se devia à falta
de um seminário que os formasse e os instruísse, com o correr dos anos e com a persistência
da carência, percebeu D. Antônio de Alvarenga que o reduzido número de padres era um dos
corolários dos “sentimentos do século”.
A falta de sacerdotes, que muito se faz sentir nesta diocese, é a razão de estarem
vagas 16 paróquias [...]. Diversas são as causas que concorrem para a diminuição do
clero nesta diocese, das quais a principal é a indiferença religiosa que se observa nos
tempos atuais 259.
Observamos, portanto, que aquela discussão feita no segundo capítulo acerca do
indiferentismo religioso é bem pertinente.
É claro que a escassez de sacerdotes figurou no rol das carências enfrentadas pelo
culto católico no Maranhão oitocentista. Essa foi uma das mais relevantes carências
enfrentadas pela Igreja, mas não parece ter sido a principal, isso tomando por base os ofícios.
O estado de ruína dos templos da província, bem como a falta de paramentos e alfaias
constituíram como que o cerne de todos os impasses postos à realização do culto
260
. Na
província do Maranhão, “os Templos em quase sua totalidade ou não existem, ou pedem
urgentes providências” 261. Foi neste sentido que D. Luis da Conceição se posicionou.
Bem decadente vai o culto público entre nós prendendo-se as suas causas a tempos
mais ou menos distantes e circunstâncias diversas, a todas sobressaindo a qual falta
de Igrejas matrizes pelo interior da Diocese, onde raríssimas existem com a devida
258
Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João
Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM.
259
Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João
Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM.
260
Vide o Quadro III anexado ao final da dissertação. Esse quadro apresenta as freguesias cujas igrejas matrizes
estavam desestruturadas ou necessitadas de sacerdotes para os serviços espirituais. As respectivas informações
adicionais acerca de cada matriz, vila ou freguesia são oriundas dos ofícios.
261
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão
Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM.
77
decência ao respeito reclamado pelo culto católico, muitas a desmoronarem-se, e não
poucas freguesias sem elas! 262
A Constituição do Arcebispado da Bahia ordenava a ereção das igrejas paroquiais
em lugares decentes, de forma a se compatibilizarem com o seu alto valor de casa de oração.
Determinava a Constituição Sinodal da Bania que as mesmas igrejas não fossem motivo de
“[...] escândalo pela pouca decência, e ornato delas”
263
. Mandava ainda “[...] que em cada
uma das Igrejas haja precisamente ornamentos, e móveis para se celebrar com decência, e
limpeza [a missa]”
264
. Para que a missa se realize é necessário minimamente que haja
templos, devidamente aparelhados para tal finalidade. Mas no Maranhão havia se tornado
comum “[...] o estado de completa ruína da maioria dos Templos da Província, a ponto de
muitos Párocos exercerem as funções de seu ministério e celebrarem os Mistérios
Sacrossantos da Religião Católica, até em choupanas de palha” 265.
Para D. Luis da Conceição, o Estado tinha grande parcela de culpa no que se
referia a desestrutura do culto público. Em seu relatório, datado de 10 de outubro de 1863 e
acompanhado de um “Mapa das Necessidades urgentes das Matrizes da Província do
Maranhão”, ele disse que
os Poderes do Estado têm de alguma sorte concorrido para a atual decadência,
porque os meios de que dispõem o Bispo e os párocos não bastam para as
palpitantes necessidades (completa ruína de muitas paróquias, o desconcerto de
quase todas e a falta de alfaias, e paramentos, ainda os mais estritamente precisos
para a decência do cultos) 266.
Em 21/04/1865 D. Luis da Conceição enviou ao Presidente da Província um
ofício com o seguinte teor: “Não desconheço, Excelentíssimo Senhor, o estado decadente do
Catolicismo não só nesta diocese, mas nas de todas do Império”. Isso, segundo o bispo,
262
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Alves
de Sousa Carvalho, 29/03/1867, Setor de Avulsos, APEM.
263
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2011, p. 254 (Livro Quarto, Título XIX das Constituições).
264
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2011, p. 258. (Livro Quarto, Título XXII das Constituições).
265
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Lafayette
Rodrigues Pereira, 23/06/1865, Setor de Avulsos, APEM.
266
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 302.
78
[...] demonstra o abandono, em que está o culto público, e a impossibilidade de se
exercer como exige a honra a Deus ou pelas ruínas e desconsertos das Paróquias, ou
pela falta de alfaias, e paramentos ainda os mais estritamente precisos. E sendo o
culto público o mais edificante objeto, o elemento mais forte para moralizar a
sociedade, porque mesmo constitui o primordial objeto do Catolicismo, não é
possível que [o culto público] continue a ser tratado num País Católico e civilizado,
como principal objeto de indiferença política e religiosa! 267
Já o Marquês de Olinda, ministro do Império, se posicionava sobre isso dizendo:
“tudo se espera do Estado, que não tem meios de acudir a tudo”
268
. Sobre esse assunto,
considerou Lyndon Santos que “o governo tinha dificuldades no sustento do culto oficial,
principalmente quanto aos recursos financeiros para o pagamento do clero, construção e
reforma dos templos” 269.
A própria Catedral do Maranhão, primeira das igrejas da província, seguia o
compasso das carências:
[...] a [Catedral] experimenta necessidades, que, pela diminuta renda, que o Governo
Imperial dá a sua Fábrica, não posso remedia. Grande parte de suas alfaias estão
dilaceradas e indecentes para servirem à majestade do Culto. Sua Sacristia, que foi
acometida pelos cupins, em virtude das madeiras velhas do antigo Paço Episcopal,
que foram amontoadas a seu lado, precisa de sérios reparos. A mitra, já
sobrecarregada com as muitas necessidades, e sustentação das festividades, que se
fazem na mesma Catedral, não pode provê-las por suas pequenas rendas [...] 270.
Necessitada de constantes reparos durante praticamente todo o século XIX, só
com D. Antônio Cândido de Alvarenga, em 1886, será empreendida uma reforma estrutural
com a verba de 30:000$000 a qual o Governo havia dotado a obra. Em relatório de 10 de
março de 1886, descreveu D. Alvarenga que de 1º de julho de 1853 até 5 de março de 1886
dera-se a empreitada sendo concluída “durante 2 anos e 7 meses com algumas
interrupções”271.
E também o prédio do Paço Episcopal, abalado estruturalmente, fora
definitivamente demolido em 1859 por ordem do Governo, o qual “votou dez contos de réis
267
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Ambrosio
Leitão da Cunha, 21/04/1865, Setor de Avulsos, APEM.
268
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 302.
269
SANTOS, Lyndon de Araújo. As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura na primeira república
brasileira. São Luís: EDUFMA; São Paulo: Editora ABHR, 2006, p. 99.
270
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão
Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM.
271
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 381-382.
79
anuais para a construção do novo prédio” 272. A nova construção, no entanto, não logrou êxito
e, assim, os bispos passaram a residir em casa alugada, não mais funcionando o Episcopado
em edifício próprio. “Quase meio século lutaram os Pastores da Igreja do Maranhão, para
terem sua residência própria” 273. O novo Paço Episcopal só foi inaugurado em 1905, findado
o Império e separado o Estado da Igreja Católica.
O que podemos considerar então é que o assunto do culto público modicamente
chamava a atenção do poder civil provincial. As solicitações dos bispos por melhorias foram
frustradas e improfícuas até a década de 1850. No entanto, mesmo consciente “da pouca
proteção que este objeto tem merecido dos poderes da província” e que tal displicência “[...]
tem poderosamente agravado o mal, em que atualmente permanece”
274
, D. Frei Luis da
Conceição considerava que a religião não poderia dispensar o auxílio do Estado, sobretudo
porque
pobre, como é, nosso País, e não podendo agenciar meios entre os Fiéis, que na
maior parte das freguesias precisam de fortuna, como prescindir da proteção sincera
dos poderes públicos, para a construção dos Templos que em quase sua totalidade ou
não existem, ou pedem urgentes providências? 275
O auxílio pecuniário do governo provincial para a finalidade de reparo das igrejas
matrizes é mais nitidamente observado apenas na segunda metade do século XIX. Alguns
valores foram disponibilizados pelos cofres provinciais para o referido fim, entre eles:
8:000$000 “[...] consignados na Lei vigente do Orçamento Provincial Nº 404 de 21 de Julho
de 1855 Art. 10 § 2 para paramentos das Igrejas Matrizes, e Capelas”
276
; 16:000$000
previstos “[...] na Lei Provincial nº 404 de 21 de Julho de 1855, [...] para construção, e reparo
das Matrizes mais necessitadas”
272
277
; 14:000$000 “posta a minha disposição por Ofício da
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 303.
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 320.
274
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão
Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM.
275
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão
Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM.
276
Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Cândido
da Cruz Machado, 04/08/1856, Setor de Avulsos, APEM.
277
Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Cândido
da Cruz Machado, 04/08/1856, Setor de Avulsos, APEM.
273
80
Presidência de 14 de Agosto de 1858” 278 e 12:000$000 destinados pela Lei Provincial nº 687
de 25 de junho de 1864 para construção das matrizes do interior da província.
Mesmos estes auxílios se mostraram insuficientes. Nesse sentido, disse D. Luis da
Conceição “[...] que é certo e bem lamentável que ache-se gasta uma verba bem importante
[12:000$000] e nenhum fruto haja auferido à população da província [...] e nem à Igreja
Maranhense, que continua a lamentar a falta de Igrejas Matrizes”. E ele continua:
É forçoso confessar que não pequenas quantias têm sido despendidas pelos cofres
provinciais para construir novas Igrejas Matrizes e reparar as arruinadas, as quais,
tendo sido entregues às Comissões parciais, de nenhuma utilidade têm servido,
porque à exceção da Igreja Matriz da vila do Rosário e de mais duas ou três [o bispo
não as especifica], jaz a província ainda sem templos, e os povos em constantes
reclamações por uma casa de oração, onde possam reunir-se orar em comum 279.
Da forma como D. Luis se explica em outro momento, percebe-se que o Governo,
na administração daquelas quantias, não confiava inteiramente no bispo. E isso tanto é dessa
forma que “[...] na aplicação das diferentes verbas à construção e reparo das Igrejas Matrizes,
elas [foram] entregues por ordem do governo da província às Comissões, por cuja conta corre
toda fiscalização de tais quantias, não tendo o Bispo a menor ingerência a respeito”
280
.
Acresce-se a isso que aquela quantia de doze contos de réis, “[...] à minha disposição posta
para distribuí-la nos reparos das Matrizes e aplicá-la como melhor entendesse”, efetivamente
não foi administrada pelo Bispo uma vez que
[...] as Instruções que V. Exª. fez baixar em data de 22 de Junho findo, cujo fim era
assegurar a aplicação real dos dinheiros da província proporcionaram a ocasião de
declinar de mim toda e qualquer responsabilidade na aplicação desses dinheiros, e
aquela confiança [...] 281.
278
Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão João Lustosa da
Cunha Paranaguá, 29/03/1859, Setor de Avulsos, APEM.
279
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Braz
Florentino Henriques de Sousa, 10/07/1869, Setor de Avulsos, APEM.
280
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Braz
Florentino Henriques de Sousa, 10/07/1869, Setor de Avulsos, APEM.
281
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Lafayete
Rodrigues Pereira, 23/11/1865, Setor de Avulsos, APEM.
81
Os dinheiros das verbas destinadas ao reparo e construção das matrizes foram
postos à disposição de comissões que organizaram a aplicação efetiva das somas. Mas em
seus ofícios, D. Luis demonstra que não confiava na idoneidade das comissões.
A direção que se tem dado às obras das matrizes, tem sido pelo juízo de pessoas não
suspeitas declarada má. [...] Falta um centro de unidade administrativa, principal
objeto da crítica de todas as pessoas sensatas, que comigo têm falado a semelhante
respeito. Estejam, pois, os dinheiros, neste sistema, em qualquer depósito e nas mãos
de quem quer que seja, e nada se remediará. [...] Desde que tomei posse da diocese
que ouvi comentar e censurar-se os desvios, que tiveram certos dinheiros dados para
as obras das matrizes 282.
Vê-se, desse modo, que há sinais de corrupção dentro das comissões destinadas ao
reparo e construção das igrejas. Sem dúvida, podemos supor que os desvios das verbas
minoraram a possível eficácia das quantias no sentido de remediar as carências que incidiam
sobre culto público.
À possível corrupção no trato das somas destinadas ao provimento da
aparelhagem do culto, associava-se a insuficiência das mesmas quantias para solucionar
igualmente os problemas de todas as freguesias da capital e do interior da província. Isso é
observável, por exemplo, na quantia de duzentos mil réis destinada às obras de reparo na
Matriz de São Francisco Xavier de Monção a qual “[...] o Vigário respondeu que aquela
quantia aplicada era insuficiente para a dita obra” 283. Há ainda o caso da igreja matriz de São
Sebastião da Manga do Iguará, “[...] que havendo-se esgotado a pequena subvenção de
500//000 réis concedida para as ditas obras, estavam elas paradas sem haver meios de
continuar [...]” 284.
Mesmo após a disponibilização das quantias para o reparo, notou D. Manuel
Joaquim da Silveira que
[...] no que respeita ao material dos Templos, se não estão as coisas em pior estado,
como não tenho o menor escrúpulo de asseverar, [é] porque as tenho apalpado por
282
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão
Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 19/05/1864, Setor de Avulsos, APEM.
283
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Francisco de Paula
Pereira Duarte, 23/04/1842, Setor de Avulsos, APEM.
284
Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Cândido
da Cruz Machado, 12/06/1856, Setor de Avulsos, APEM.
82
assim dizer com as minhas próprias mãos, com toda a certeza melhora alguma se
tem dado 285.
Se antes o problema estava na falta de recursos que auxiliassem na construção ou
reconstrução das matrizes e no provimento de paramentos e alfaias, agora, com a subvenção
provincial, tem-se o indício de que as quantias ou foram insuficientes para as obras, ou foram
desviadas pelas Comissões delas encarregadas, ou as duas coisas juntas.
Em nosso ponto de vista, os problemas enfrentados pelo culto na diocese do
Maranhão expressam o próprio relacionamento entre Igreja Católica e Estado, repleto de
desentendimentos, de rupturas, de dissensões. Trata-se, portanto, não de algo próprio do
Maranhão, mas, próximo àquilo que disse D. Luis da Conceição: “Não desconheço, Exmo.
Senhor, o estado decadente do Catolicismo não só nesta diocese, mas nas de todas do
Império”
286
. Assim é que também no Maranhão oitocentista houve um tipo de tratamento
destinado à Igreja Católica que se assemelhava de modo mais geral ao contexto nacional e
internacional, qual seja: o paulatino abandono por parte do poder civil. Citemos outra vez
outra vez um trecho de D. Luis da Conceição que, sem dúvida, resume esse contexto: “A falta
de alfaias, e paramentos, ainda os mais estritamente precisos para a decência do culto,
indicam sensível indiferença, e imenso abandono pelas coisas de Deus” 287.
Agora podemos compreender com maior precisão aquele dever previsto na
Constituição de “manter a religião católica”. Prover as paróquias de sacerdotes, templos,
paramentos e alfaias é o essencial, o vital para a viabilização do culto e, portanto, para a
manutenção da religião. Assim é que D. Marcos de Sousa se dizia “[...] convencido que não
pode existir religião sem ministros, e templos [...]” 288. Ocorre que na província do Maranhão,
o culto público coexistiu e se adaptou ao desaparelhamento, fez-se com ele. As mazelas, o
problema da desestrutura física e material das igrejas matrizes atravessou o século XIX. Em
1886, dizia D. Antônio Cândido de Alvarenga:
285
Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Eduardo Olímpio
Machado, 03/04/1855, Setor de Avulsos, APEM.
286
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Ambrosio
Leitão da Cunha, 21/04/1865, Setor de Avulsos, APEM
287
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 303.
288
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente e Comandante das Armas da Província do
Maranhão, o Coronel Luis Alvares de Lima, 27/11/1840, Setor de Avulsos, APEM.
83
Em geral o que aqui chama-se igreja paroquial ou igreja matriz são pequenas capelas
que só admitem no seu recinto um limitado número de pessoas; sem os
compartimentos e acomodações necessárias a uma igreja paroquial propriamente
dita, quase sempre de uma construção fraca, sem o asseio preciso, e desprovidas de
paramentos, alfaias, vasos sagrados e outros objetos necessários ao culto (...). Há
paróquias onde os atos religiosos são celebrados em pardieiros sem forma alguma de
templo [...] 289.
Mas o interessante a se notar é que mesmo diante da falta do indispensável o culto
não deixa de acontecer. Seja em igrejas arruinadas e desabadas, seja em casas particulares,
choupanas, pardieiros, em casas de palha ou sem “[...] Igreja alguma, [onde] o altar se achava
colocado em um edifício que então servia de cadeia” 290, aí mesmo o culto acontecia.
Como dissemos num momento anterior da dissertação, mesmo diante da possível
displicência da parte do Governo, não há qualquer sinal nos ofícios dos bispos do Maranhão
que nos faça concluir que eles almejassem a separação entre a Igreja e o Estado. Conscientes
da pobreza material da diocese maranhense, os bispos enxergavam nas subvenções do Estado
um módico, mas útil recurso.
Da discussão que foi feita aqui e no capítulo anterior, podemos vislumbrar a
existência de duas cosmovisões, uma da Igreja e a outra do Estado. A Igreja via-se como
braço útil à estabilidade do Império e, por isso, deveria o Estado salvaguardá-la mantendo,
entre outras coisas, o culto oficial. Já o Estado, pelo que foi visto nos ofícios, comportou-se
com aparente negligência no que concerne ao culto oficial.
Desse modo, parece que na província do Maranhão a manutenção da Igreja
Católica esteve atrelada à sua capacidade adaptativa, à capacidade de contornar empecilhos e
a sobreviver mediante entraves e até em consonância com eles. No século XIX, a Igreja se
depara com a falta do que é básico ao culto. É por isso que falar em ascensão e decadência do
culto público na província do Maranhão é, no mínimo, uma imprudência. Ora, se no século
XIX o grande problema dizia respeito à falta daquilo que é estritamente básico para a
existência do culto, como não terá sido antes disso?
Será possível dizer que os bispos do Maranhão estiveram imbuídos de um desejo
de reforma ou de um espírito ultramontano? Teriam os prelados maranhenses das últimas
décadas do século XIX recebido influxos do ultramontanismo? Sim, evidentemente isso pode
289
Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João
Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM.
290
Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Francisco Bibiano
de Castro, 26/08/1837, Setor de Avulsos, APEM.
84
ter sido possível. Mas quando se está diante da falta daquilo que é indispensável, é bem difícil
ter outras preocupações que não sejam aquelas mais imediatas.
Na parte inicial deste capítulo discutimos acerca daquilo que chamamos de
“contexto geral das dissidências”. As dissidências se deram num cenário em que se pode
vislumbrar um certo abandono do culto público por parte do poder civil da província. O que
foi dito nesta primeira parte serve como que uma “chave de compreensão” para as
dissidências que serão abordadas mais a seguir. Antes disso, trataremos sobre um dos
protagonistas das dissidências.
3.2 Um pouco sobre D. Frei Luis da Conceição Saraiva, 18º bispo do Maranhão
Digamos que esta parte do nosso trabalho funciona como uma grande nota
explicativa que não foi colocada no rodapé por ser relativamente longa. Pelo fato de D.
Saraiva ter sido protagonista nas duas dissidências a serem discutidas, pensamos ser
conveniente apresentar algumas informações sobre ele. É claro que está fora de propósito
fazer aqui um pormenorizado estudo biográfico de D. Saraiva. As breves linhas que serão
aqui escritas sobre ele servem apenas como contextualização, isso justamente pelo fato de ter
sido ele o bispo que protagonizou os dois episódios de conflito com o poder civil da
província. O texto inteiro sobre D. Saraiva está baseado nas considerações de D. Francisco de
Paula e Silva, D. Felipe Condurú Pacheco e de Mário Meireles.
D. Luis nasceu na diocese da Bahia, em dezembro de 1824. Aos 17 anos entrou
para o Mosteiro de São Bento, na Bahia, onde cursou Humanidades e Teologia. Recebeu as
ordens sacras de D. Romualdo Seixas, passando para o Rio de Janeiro com o propósito de
aprofundar seus estudos em Teologia. Mais tarde foi ordenado presbítero e obteve o grau de
mestre em Teologia Sacra 291. Por duas vezes foi eleito abade do Mosteiro do Rio de Janeiro,
a primeira em 1857 292.
Em 14 de janeiro de 1861, um decreto imperial o nomeou bispo do Maranhão. O
consistório pontifício de 24 de julho do mesmo ano corroborou essa escolha, sendo expedida
291
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 287.
292
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 283-284.
85
a bula confirmativa em 10 de agosto. D. Luis foi sagrado bispo em 20 de outubro de 1861, na
igreja de São Bento, no Rio de Janeiro
293
. Em 21 de março de 1862, fez D. Luis sua entrada
solene e tomou posse de sua diocese 294.
Acima de tudo, foi na parte material que D. Saraiva dedicou maior atenção e
desenvolveu suas atividades
295
. “Aos 37 anos completos assumira o governo do Bispado e
dedicara-se desde logo a reconstruir prédios e neles instalar colégios masculinos e
femininos”296. Em maio de 1863, almejou ele fundar uma biblioteca católica: “Convindo que
haja nesta Diocese uma Biblioteca Católica, donde todos os Fiéis, especialmente o Clero,
possam receber os sãos princípios, e as doutrinas isentas de erro”. E, ainda em 1863, fundou a
Sociedade Eclesiástica de Socorro ás Famílias dos Militares que partiram para a guerra do
Paraguai 297, “[...] que, até 1869 quando foi extinta, prestou relevantes serviços assistenciais as
vítimas indiretas da luta” 298. Assim, diz D. Pacheco sobre D. Saraiva:
Mais promissoras credenciais não traria para o seu sólio outro Pastor de almas. Nem
mais auspicioso início se poderia desejar para uma administração episcopal. –
Criado em meio rural e religioso, com sólida formação monástica, todo dedicado a
estudos e ao ensino da juventude, veio o novo Prelado guiar o Rebanho Maranhense,
dotado de ótimas características, [entre elas] inteligência lúcida e culta [...] 299.
D. Saraiva também se voltou para a educação da mocidade, e intentou fundar um
colégio. Para isso, eram necessários recursos e um prédio para abrigar o colégio. Como prédio
encontrou as ruínas do Convento das Mercês, onde, com grandes custos, preparou o
estabelecimento que recebeu o nome de Seminário de Nossa Senhora das Mercês, que
começou a funcionar em fevereiro de 1863 300.
Mário Meireles destacou outros feitos de D. Saraiva. O prelado, por meio de
ofício de 20 de fevereiro de 1863, protestou junto ao Governo Imperial contra a decisão de
293
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 284.
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 288.
295
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 288.
296
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 361.
297
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 295.
298
MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da
diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 242.
299
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 361.
300
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 289.
294
86
ficar na alçada do Presidente da Província o licenciamento dos párocos, isto feito sem o
concurso do poder espiritual
301
. Sobre essa questão do licenciamento dos párocos, existe um
ofício de D. Luis muito esclarecedor de seu ponto de vista. Veremos seu teor a seguir.
Em 09 de dezembro de 1870 o presidente Augusto Olímpio Gomes de Castro
enviou a D. Luis um ofício no qual pedia explicações acerca da portaria episcopal que
concedia licença de dois meses, com vencimentos, ao vigário da freguesia de São Vicente de
Ferrer de Cajapió, o padre Fabrício Alexandrino da Costa Leite. A resposta de D. Saraiva foi
bem clara: “[...] os Bispos [são] competentes para conceder licença aos Párocos como além da
legislação canônica o dizem com clareza diversas decisões do Governo Imperial, sem
dependência da Autoridade civil” 302. Neste mesmo ofício, ainda que indiretamente, adentrava
na “assaz e debatida questão” sobre “se os Párocos podem ou devem ser contemplados na
classe de empregados públicos e até de empregados civis”. D. Luis é de opinião que os
párocos
[...] não são empregados públicos, posto que algumas vezes tal denominação se lhes
haja dado, sem reparar-se na impropriedade da expressão [...] cuja discordância bem
mostra a gravidade desta questão e a variação de opiniões na classificação imprópria
de empregados públicos civis que se pretende dar a tais funcionários da Igreja, com
o mais evidente desvirtuamento das especiais funções que lhes incumbe
desempenhar em virtude do múnus paroquial e coadjuvação que prestam ao Bispo
na distribuição do pasto espiritual 303.
Disse ainda D. Saraiva nesse mesmo ofício que os padres, diante desse contexto
[...] mais parecem exercer cargos e empregos civis do que eclesiásticos, com a mais
patente inversão dos princípios da legislação canônica e terminantes disposições da
Igreja; sobrevindo por tais motivos o bem visível enfraquecimento da disciplina
eclesiástica, e não poucas vezes vê-se o Bispo privado de ocorrer de pronto às
necessidades espirituais pelo estorvo que tais disposições causam ao livre exercício
de Direitos que têm sua derivação da instituição divina e da ordem hierárquica da
Igreja, que lhe são peculiares.
301
MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da
diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 241.
302
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 14/12/1870, Setor de Avulsos, APEM.
303
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 14/12/1870, Setor de Avulsos, APEM.
87
Dentre os esforços de D. Saraiva, destaca-se também a fundação do periódico A
Fé, que surgiu após o desaparecimento de O Eclesiástico e de O Cristianismo. O primeiro
número de A Fé circulou a 05 de junho de 1864, e teve como redator-chefe o próprio Vigário
Geral. Por fim, já em 1865, deu D. Saraiva nova organização ao Recolhimento de Nossa
Senhora da Anunciação e Remédios, transformando-o num colégio, e incorporando a ele o
Asilo de Santa Teresa 304.
Apesar disso, tanto D. Francisco de Paula como D. Felipe e Mário Meireles foram
unânimes em afirmar que o bispado de D. Saraiva foi um malogro. Disse D. Francisco sobre
D. Saraiva que “a sua atividade, o seu prestígio, a sua dedicação, o seu zelo averiguavam o
mal, sem poder, todavia, impedir-lhe os efeitos” 305.
“E se tanto fez, por que fracassou?”. Para Mário Meireles a razão do insucesso do
bispado de D. Luis pode ser vislumbrada
[...] dentro do ambiente da indisciplina reinante do clero, circunstância de, sendo ele
filho de família importante e abastada, politicamente influente, ter levado para o
convento o orgulho e a vaidade de sua origem e de seu nome e esquecido, ao
retornar ao século como bispo, de deixar no claustro esses sentimentos que, com a
grandeza do status emprestado pela mitra, voltaram a assaltá-lo e vieram a prejudicálo [...] 306.
Para D. Francisco de Paula e Silva, a debilidade de D. Saraiva esteve associada
principalmente à sua grande tolerância no lidar com o clero, especialmente com o cabido
diocesano.
O Cabido, que é o senado do Bispo e que deve ser o espelho onde se mire o clero
paroquial, andava empanado em muitos de seus membros, que faziam parte de
sociedades secretas, condenadas pela Igreja; em outros, pela sua vida menos regular;
em quase todos, pelo arrefecimento do zelo sacerdotal, suplantado pelo comodismo
utilitário e egoísta, fruto podre das épocas de decadência 307.
304
MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da
diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 242.
305
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 281.
306
MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da
diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 243.
307
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 382.
88
Caberia à D. Saraiva ter pulso firme nesse contexto, uma vez que ele sabia o
estado do seu cabido. Tanto é assim que “[...] o próprio Bispo diz ser esse estado a fonte de
onde nascem todos os males da Diocese”
308
. A mansidão e a tolerância são características
apreciáveis nas pessoas em geral; mas quando é essa pessoa a primeira autoridade eclesiástica
da província, tais características podem facilmente culminar em fraqueza e trazer graves
consequências. Pode-se ocasionar com isso uma conveniência culpada, que não arranca o mal
pela raiz. “A autoridade é sempre mão de ferro, calçada com luva de pelica, mas sempre de
ferro” 309.
D. Saraiva também não visitou a diocese; confiou este dever a auxiliares seus que,
no ponto de vista de D. Francisco, ou não foram bem escolhidos ou não estava à altura de tal
missão. Em qualquer dos dois casos, foram desastrosos os resultados. Por vezes, até parece
que D. Luis da Conceição descuidou-se completamente do seu rebanho, confiando-o a
prepostos que podiam até ser talentosos e hábeis, mas que eram carentes de virtudes
sacerdotais, isso para não dizer que lhes faltavam sentimentos cristãos, posto que dois deles,
mais íntimos de D. Luis, pertenciam à maçonaria, onde ocupavam cargos importantes
310
. Um
deles era o arcediago Manuel Tavares da Silva, que fora Vigário Capitular do Bispado e
Cavaleiro da Ordem Maçônica da Rosa-Cruz 311.
Disse D. Francisco que “os últimos anos da vida do sr. D. Luis foram
amaríssimos”
312
. O próprio papa Pio IX enviou-lhe uma carta anatematizando sua conduta.
Vejamos um trecho dela, que consta no livro de D. Felipe Condurú:
Desde muito tempo chegam até Nós a teu respeito queixas que dificilmente podem
ser acreditadas de um Bispo. Como, porém, cada dia sejam elas confirmadas pela
autoridade de novas testemunhas, não queremos por mais tempo faltar ao nosso
dever em defesa da Igreja e da salvação das almas confiadas ao teu zelo. Devo
repreender muito severamente o Bispo que, há doze anos já à frente do Rebanho,
nunca o visitou e cuidou das suas necessidades. [...]. Há, porém, coisas mais graves.
Confiaste o teu Seminário a mestres corrompidos que pervertem o clero novo desde
sua formação com doutrinas ímpias e abomináveis. Entregaste o governo da tua
Diocese a um clérigo filiado – seita maçônica, na qual dizem ocupar o grau de
“Rosa-Cruz”. Assim, por meio desse cônego e dos educadores do teu clero,
308
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 297. Itálico do autor.
309
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 293.
310
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 297-299.
311
MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da
diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 247.
312
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306.
89
trabalhas com a maçonaria para a destruição da Igreja. [...]. Ignoras que haverá um
julgamento severíssimo para quem governa? – Se ainda conservas a fé católica, por
que amontoas a ira divina contra ti no dia das contas? – Não sabeis que serás
julgado, não só pelos teus crimes, mas também por todos aqueles que se cometem
por tua negligência, por teu escândalo ou por tua cooperação 313.
Segundo D. Francisco, as acusações contra D. Saraiva contidas na carta “[...]
acharam fundamento, menos na realidade dos fatos, do que na sua nímia bondade, quase
fraqueza, que tudo deixou fazer, sem arcar nunca com a corrente que o avassalava e
submergia” 314. E D. Francisco prossegue dizendo que aqueles que cercavam D. Luis mais de
perto e ocupavam os cargos de maior confiança eram os culpados dos vícios e ele atribuídos:
eram “[...] consciências esquecidas de seus sacrossantos deveres, unindo, num hibridismo
monstruoso, o caráter sacerdotal [...] ao procedimento condenado num simples cristão”
315
.
Para D. Francisco,
era impossível que o Prelado não visse tamanha irregularidade, a não ser que se lhe
suponha uma imbecilidade que estaria em inteira contradição com a inteligência que
sempre mostrou. E, sabendo do escândalo e não agindo contra ele, tolerando-o, mais
do que isto, coonestando-o com a decidida proteção e confiança prestada aos
causadores, não há dúvida de que ele cavava para si a própria ruína e abria porta
larga a todas as maquinações da calúnia, que não se fez esperar e veio suja, infame,
coleante como serpe, morder-lhe o nome e envenenar-lhe a existência 316.
Conclui D. Francisco dizendo que a caridade de D. Saraiva “foi horrivelmente
explorada” e que ele foi “abusado na grandeza de seu coração”. “A bondade excessiva do
Pastor era conhecida e [...] o bom Prelado não sabia recusar” 317.
Foi assim que D. Saraiva,
[...] desgostoso, traumatizado, desmoralizado, embarcou, no dia 7/2/1876, de volta a
sua terra natal, onde se recolheria humildemente ao claustro de seu Mosteiro de São
313
PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 363-364.
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306.
315
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306.
316
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306-307.
317
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 299-310.
314
90
Bento, em Salvador, até que a morte, no dia 26 de abril desse mesmo ano, o viesse
buscar para o julgamento eterno 318.
Como dissemos, nossa intenção nesta parte do trabalho não foi fazer um estudo
biográfico de D. Luis. Foi somente porque ele foi um dos protagonistas das duas dissidências
a serem discutidas que julgamos oportuno oferecer algumas considerações sobre o referido
prelado. Isso posto, podemos passar ao momento final do nosso estudo.
3.3 A dissidência entre D. Luis da Conceição e o Inspetor da Tesouraria da Fazenda
O que será exposto a partir daqui é a parte central da nossa pesquisa. Novamente
reafirmamos que esta parte deve ser lida em diálogo com as demais. Na verdade, nós até
poderíamos construir o último capítulo da dissertação como um texto só, sem subtópicos. Mas
achamos mais prudente e didático separar o texto em compartimentos, sendo que todos eles
estão mutuamente associados. Tudo neste capítulo poderia ter sido abordado de forma
contínua, em texto corrido e sem subitens, mas uma opção didática inclinou-nos a organizar o
capítulo da forma como ele está.
Com isso queremos dizer que esta parte central da dissertação é o corolário das
considerações anteriormente feitas, isso seja no que se refere ao padroado, ao beneplácito e à
Constituição de 1824 de um modo geral. No Maranhão provincial, como dissemos, aliava-se a
esse contexto geral aquilo que os bispos chamaram de “decadência do culto público”. A
questão do culto público foi como que o pano de fundo em frente ao qual ocorreram vários
desentendimentos entre a Igreja e o Estado no Maranhão. É tomando as considerações feitas
sobre o padroado, o beneplácito, a Constituição de 1824 e a “decadência do culto público”
que poderemos entender a controvérsia havida entre D. Luis e o Inspetor da Tesouraria da
Fazenda.
A abordagem das dissidências constitui o cerne da nossa pesquisa. Isso não
significa prolixidade na discussão, pelo contrário. Todos os elementos essenciais à
compreensão das dissidências estão distribuídos ao longo de todo o trabalho. Assim sendo, a
318
MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da
diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 247.
91
abordagem aqui será bem objetiva. Aqui podemos inserir mais uma metáfora que explica
nossa intenção. Imaginemos um fruto. Existem frutos que são envoltos por uma polpa dentro
da qual existe um caroço, um núcleo compacto. Entre essa polpa e o caroço existe uma série
de liames e de fibras que os mantêm associados. A polpa é muitas vezes a parte maior do
fruto, a parte mais avantajada e de maior extensão. O caroço termina sendo aquele âmago
compacto mais reduzido em relação à polpa, porém essencial ao fruto. Mantidas as devidas
ponderações, essa metáfora explica nossa intenção nessa parte final do trabalho. A “polpa” da
nossa dissertação é tudo aquilo que foi discutido até aqui e que, sem dúvida, é a porção mais
extensa do trabalho. Já o “caroço” é esta última parte do nosso texto, parte essencial, porém,
bem mais objetiva em relação à “polpa”.
A dissensão havida entre D. Saraiva e o Inspetor da Tesouraria da Fazenda
fundamentou-se em atos do bispo voltados à administração de bens tanto da Igreja em si como
de estabelecimentos religiosos. Trata-se, em linhas gerais, da
[...] denúncia injuriosa [...] que dirigiu contra mim o probidoso Inspetor da
Tesouraria da Fazenda desta província acerca da venda autorizada por mim dos bens
do patrimônio de São Bento de Bacurituba, dos que pertencem ao Recolhimento de
N. Senhora d’Anunciação e Remédios e dos fatos relativos ao convento de N. S. das
Mercês 319.
Analisemos essa dissensão por partes, isso feito, é claro, com o auxílio das
próprias palavras de D. Saraiva em seus ofícios.
Disse D. Luis que Francisco José Gomes Pereira, o Inspetor da Tesouraria da
Fazenda, dirigiu contra ele uma denúncia motivada na alienação, feita pelo bispo, de bens
pertencentes ao patrimônio de São Bento de Bacurituba e ao Recolhimento de Nossa Senhora
da Anunciação e Remédios. Acresceu-se a isso alguns “fatos relativos ao convento de N. S.
das Mercês” que explicaremos mais adiante. Discordando das atitudes de D. Saraiva, enviou o
Inspetor Francisco José um ofício ao Presidente da Província onde dizia que:
[...] entendi de meu dever [...] opor à essas alienações a ação do Fisco; e, por isso,
me dirijo a V. Exª., para que se digne de colher, donde convier, os esclarecimentos
precisos quanto aos fatos mencionados, e transmitir-nos, afim de que possa ordenar
319
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
92
ao Procurador Fiscal que, intervindo nessas questões, trate de salvaguardar ou de
reivindicar os direitos e interesses da Fazenda Nacional 320.
O primeiro fato de que se ocupou o Inspetor em sua denúncia foi
[...] que o Exmo. Bispo Diocesano, em data de 2 de Junho do corrente ano,
autorizara o Reverendo Pároco da Freguesia de São Bento de Bacurituba, Padre
Satyro Celestino da Costa Leite, a vender dez reses da Fazenda de gado vaccum
pertencente ao patrimônio do mesmo Santo, a fim de aplicar a importância do
produto à compra de alfaias e paramentos necessários à Matriz da referida
Freguesia321.
Daí se nota que a venda dos gados do patrimônio de São Bento de Bacurituba foi
motivada por necessidades relativas ao suprimento de materiais do culto público da referida
freguesia. A capela de São Bento de Bacurituba foi criada pela Lei provincial nº 843 de 10 de
Julho de 1868, e até o ano de 1870 estava ela desprovida de paramentos e alfaias. Nota-se,
portanto, que essa igreja matriz seguia a tendência geral das carências relacionadas ao culto
público. Foi por isso, isto é, por não ter “[...] sido ministrado para a nova Matriz as alfaias,
paramentos e vasos sagrados necessários para o serviço do Culto divino” que aprouve a D.
Saraiva “[...] prestar-se a venda de dez rezes ao suprimento das mais urgentes necessidades do
Culto divino”. Disse ainda D. Luis que “[...] achei conveniente e que estava nas minhas
atribuições autorizar semelhante venda” 322.
O segundo fato em que se fundou a denúncia do Inspetor da Tesouraria foi o
posicionamento de D. Saraiva
[...] em data de 3 daquele mesmo mês [junho], oficiara ao Reverendo Administrador
da Fazenda de gado do Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios
sita nos campos de Pirapendiba, termo de São Vicente Férrer de Cajapió,
comunicando-lhe haver autorizado o Reverendo Cônego Magistral Manoel Tavareo
da Silva a contratar com o Dr. Pompeu Ascenso de Sá, não só a venda de todo o
gado pertencente a dita fazenda ao preço de dezoito mil réis por cabeça, sendo
incluídas nesse número todas as crias de seis meses para cima, mas também a venda
dos escravos vaqueiros de nomes Agostinho e Raymundo 323.
320
Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
321
Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
322
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
323
Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
93
Mas novamente D. Luis, ao contrário do Inspetor, entendeu que estava na órbita
de suas atribuições proceder à alienação dos gados pertencentes ao Recolhimento. Para tanto,
justificou-se o bispo no documento fundador do Recolhimento, através do qual o dito
estabelecimento “[...] ficou sujeito à jurisdição do Ordinário”. E D. Luis suscitou mais um
argumento:
Há nove anos tenho lutado com a administração desta fazenda de gado vaccum do
Recolhimento de N. S. d’Anunciação e Remédios, sem que ele haja auferido lucros,
apesar dos mais reiterados esforços, sendo este fato público e notório,
principalmente no termo de São Vicente de Férrer. Impotente para lutar com os
ladrões de gado tanto de fora da cidade como de dentro dela e para salvaguardar as
relíquias desse pequeno patrimônio, contratei a venda do respectivo gado na forma
citada pelo referido Inspetor por ser a oferta mais vantajosa que pôde se obter sobre
outras 324.
Diante desse contexto, disse D. Saraiva: “me parece que o Inspetor da Tesouraria
da Fazenda deseja que destes pequenos bens todos sejam donos, menos o próprio dono, por
ser como já disse de pública notoriedade os furtos de gado desta fazendinha”. E não ficou o
bispo com a quantia oriunda da venda:
Quando as Câmaras Legislativas autorizam aos Prelados Regulares pela lei nº 1764
de 28 de Junho último a converter grandes propriedades e imóveis e semoventes em
apólices da dívida pública interna; me parece que não exorbitei mandando proceder
a semelhante venda com o intuito de converter o seu produto naqueles títulos, para o
que já se acha depositado no Banco do Maranhão a juros de 7% a quantia de
6:566:230 réis [...] 325.
“Quanto aos dois escravos Agostinho e Raymundo”, explicou-se D. Saraiva no
mesmo ofício dizendo que “proferi a sua liberdade à venda deles e nem podia ser outro o meu
procedimento”.
324
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
325
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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O terceiro fato que sustentou a dissensão entre o Inspetor e D. Luis foi “[...] o que
me consta a respeito do Convento de Nossa Senhora das Mercês desta Cidade” 326. O Inspetor
era partidário da opinião de que todos os bens da referida Ordem deveriam passar para o
domínio do Estado, e isso porque
[...] existindo hoje em dia unicamente um frade da Ordem Mercenária, Frei Manoel
Rufino de Sant’Anna Freitas, o qual entretanto acha-se, por determinação do
Ordinário, fora da administração e gerência desses bens, nenhum mais resta que
toma conta dos mesmos bens, os quais, por tal motivo, se devam considerar bens de
Ordem extinta, ou senão, vagos, para passarem ao Estado 327.
Para Francisco Pereira, era interessante que os bens da Ordem fossem todos
incorporados pelo Estado: “Esse convento que é muito rico em bens de raiz e de outra
natureza, pois que, além de datas de terras do interior, possui para mais de cento e cinquenta
escravos, deveria – com tudo o que lhe pertence – ser incorporado aos Próprios Nacionais”328.
Além disso, o Inspetor disse em seu ofício que “[...] o Exmo. Prelado, segundo
estou informado, chamando a si a posse e usufruto desses bens, estabeleceu no Convento uma
Casa de educação com a denominação de Pequeno Seminário das Mercês, não sei se com a
precisa licença do Governo” 329.
Como sabemos, D. Saraiva havia mandado erguer sobre a ruína do Convento das
Mercês o Seminário de Nossa Senhora das Mercês, isso ainda em 1863. É estranho que só em
1870 a Tesouraria da Fazenda tenha se apercebido do fato de que D. Luis havia estabelecido
um seminário no local do antigo convento. O próprio D. Saraiva disse que “admira, que só
depois de 8 anos, fosse despertado o zelo do Inspetor da Tesouraria da Fazenda para dirigir a
V. Exª. a denúncia a que respondo” 330. Esse silêncio da Tesouraria durante oito anos é ainda
mais estranho tendo em vista que desde a fundação do referido Seminário “[...] levei tudo ao
conhecimento do Governo Imperial ao qual enviei os respectivos estatutos, solicitando ao
326
Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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mesmo tempo sua proteção a favor do mesmo estabelecimento”. Foi por isso que disse D.
Luis que era evidente “[...] que os escravos e o rico patrimônio da Ordem de N. Senhora das
Mercês não está no meu usufruto e nem podia está” 331.
Da forma como D. Saraiva se expressou no ofício de 15 de novembro de 1870,
percebe-se a dificuldade da administração e manutenção dos bens da Ordem das Mercês.
Talvez tenha sido por isso que o bispo resolveu erguer no local do convento o Seminário de
N. S. das Mercês.
Continuando no mesmo terreno, tenho lutado até hoje. Em 10 de Outubro de 1863 e
depois por diversas vezes tenho levado ao conhecimento do Governo Imperial e da
Nunciatura Apostólica o estado em que se acha esta Ordem, as providências que
achei prudente tomar para amparar da voragem dos especuladores os bens do
patrimônio dela, que apostados se assoberbavam para devorá-los, revelando o
desassossego que me traz semelhante administração [...].
A denúncia do Inspetor da Tesouraria era para D. Saraiva descabida e infundada,
entre outras coisas, porque
V. Exª. perfeitamente sabe, por que a província não ignora, qual o estado lamentável
em que se achava o edifício, hoje pequeno Seminário; geralmente arruinado e quase
inabitável, ameaçava próximo desmoronamento pelo abandono, em que o tinham
deixado cair. Há 8 anos, luto sem ser pesado aos Cofres públicos, para reerguer
essas ruínas; tendo-o conseguido, pude aplicá-lo ao fim, a que está destinado, sendo
obra que não pode deixar de ser louvada pelos homens que pensam retamente e que
tenho certeza de ser apreciada pelo governo Imperial, que desejando o alargamento
da instrução, ardentemente deseja a regeneração da educação do clero [...] 332.
Essa controvérsia com o Inspetor parece ter sido muito desgastante para D. Luis:
“Excelentíssimo Senhor, a denúncia do Inspetor da Tesouraria da Fazenda [...] me contristou
sobremaneira. Ela me colocou em um estado muito doloroso porque me obrigou a descer onde
o mesmo Inspetor subiu”
331
333
. A denúncia foi recebida pelo bispo como um atentado à sua
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
332
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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honra e moral: “[...] um tal juízo feriu muito de perto aos meus brios de homem e a minha
honra de Bispo” 334. Tanto foi assim que D. Saraiva quis mesmo levar o assunto aos tribunais:
[...] suponha V. Exª. que um homem quer oficialmente quer não asseverasse que V.
Exª. tinha chamado a si a posse e usufruto das rendas do Tesouro ou de quaisquer
bens ou próprios nacionais e que até remetia escravos para fora da província, dandolhes o destino que, como no caso sujeito, o Inspetor não declarou! Pergunto: V. Exª.
tão injustamente ferido na sua bem justificada altivez e provada probidade o que
faria ou qualquer homem honesto vendo-se por tal maneira infamado? Estou
persuadido que V. Exª. não se limitaria a chamar tal provocação uma denúncia
injuriosa e muito menos se satisfaria a pedir mansa e pacificamente uma justificação
da queixa só por motivo poderoso de honra; faria com certeza mais; usaria de todos
os recursos legais que mostrando em toda pureza a sua probidade, confundiria
aquele que de um modo tão descomunal se arrojara fazer semelhante acusação;
encontraria disposições na legislação do País, especialmente no Código Criminal,
para arrastar esse homem às barras dos Tribunais e levaria aos poderes competentes,
quando esse homem fosse empregado público, uma queixa repassada de dor acerba e
indignação profunda, para ser na forma da lei punido por ter atentatoriamente ferido
a reputação e violado as garantias do cidadão 335.
Pelo que consta no ofício do Inspetor, a denúncia instaurada por ele esteve
baseada nas declarações de informantes acerca da forma como D. Luis procedeu na
administração dos bens pertencentes ao patrimônio de São Bento de Bacurituba, ao
Recolhimento de N. S. da Anunciação e Remédios e ao Convento das Mercês. Mas em
nenhum momento, e mesmo após expressa ordem de especificação dos informantes, não disse
o Inspetor quem eram seus informantes.
Para que o Inspetor da Tesouraria da Fazenda pudesse observar a V. Exª., era mister
que pessoa ou pessoas lhe prestassem os precisos dados de semelhantes abusos
praticados por mim; pelo que vou instantemente rogar a V. Exª. em nome dos
interesses sociais, no interesse da minha honra, da de V. Exª e da do Inspetor da
Tesouraria da Fazenda, que V. Exª. se digne ouvir o mesmo Inspetor, a fim de que
ele declare, quais os informantes que o habilitaram a formar um tal juízo que feriu
muito de perto aos meus brios de homem e a minha honra de Bispo [...] 336.
Assim sendo, disse D. Saraiva que não tinha “[...] a Tesouraria de Fazenda dados
que a autorizassem a aventar semelhante acusação, toda ela inexata, e não sendo lícito àquela
334
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 21/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olímpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Olímpio Gomes de Castro, 21/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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repartição ir além dos limites da Ordem do Tesouro Nacional nº 81 de 15 de Março de
1853”337. Para D. Luis, portanto, “é fora de dúvida que a questão foi deslocada”, pois “todos
os anos dou ao Governo Imperial relatórios e informações diretas de tudo quanto ocorre na
administração desta diocese [...]” 338. Disse ainda que
[...] nem foram remetidos escravos da mesma para fora da província, com exceção
dos que marcharam para a guerra do Paraguai. Assim, pois, não sei o que possa
justificar o ardente zelo do Inspetor da Tesouraria movendo uma questão que tanto
tem de desagradável quanto é ela balda de fundamento e causa de escândalo 339.
Procedendo à alienação daqueles bens, estava D. Luis convicto de que agia dentro
da esfera religiosa e, por isso, “quanto ao ter eu obrado na esfera da lei ou fora dela, me
parece que sendo independente dos Poderes Provinciais quando obro dentro da esfera
religiosa só à Sé Apostólica e ao Governo Imperial tenho como competentes para exigirem as
razões dos meus atos” 340.
Ao referido ofício episcopal de 23 de novembro de 1870, respondeu o presidente
Augusto Olímpio Gomes de Castro em 26 do mesmo mês dizendo que D. Saraiva expendeu
opiniões que “[...] são elas filhas de considerações pessoais e estranhas à matéria”
341
. Essas
“considerações pessoais e estranhas à matéria” as quais o presidente da província se refere são
precisamente aquelas em que D. Luis dizia que era independente dos Poderes Provinciais em
assuntos da órbita religiosa.
Notamos, assim, que a divergência estava ganhando maiores proporções. O ponto
de vista de D. Saraiva começou a conflitar com o do presidente Augusto Olímpio. Vejamos as
palavras de D. Luis sobre isso:
A esta resposta dignou-se V. Exª. declarar-me que não aceitava, por contrária à lei, a
doutrina por mim expendida, a qual envolvia completa e absoluta independência, em
que pretende colocar o Bispo, do que eu chamo poderes provinciais, deduzindo V.
Exª. que com esta doutrina intento contrariar o preceito do art. 1º da lei de 3 de
337
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Olímpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Olimpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Olímpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
341
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente
Olímpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
da Província do Maranhão Augusto
da Província do Maranhão Augusto
da Província do Maranhão Augusto
da Província do Maranhão Augusto
da Província do Maranhão Augusto
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Outubro de 1834 que soa assim: “A primeira autoridade é o Presidente da província,
a quem são subordinados todos os que nela se acharem”. Não pretendo alimentar
esta questão no terreno em que V. Exª. colocou; porquanto em primeiro lugar eu não
recusei e nem era lícito recusar quaisquer esclarecimentos, que V. Exª. me pedisse
na órbita dos seus poderes; e em segundo não tenho a menor intenção de disputar
jerarquia de autoridade acerca do citado art. 1º da lei de 3 de Outubro de 1834 342.
Observamos então que, para o presidente Gomes de Castro, era infundado o ponto
de vista de D. Saraiva, isso porque a própria lei determinava que o Presidente era a principal
autoridade da província, devendo a ele se subordinar todas as demais autoridades, sejam elas
civis ou eclesiásticas. Mais clara expressão de regalismo não se pode ter.
Prosseguindo na exposição de suas justificativas, teceu D. Saraiva algumas linhas
sobre o Recolhimento de N. S. da Anunciação e Remédios. Disse ele que o Recolhimento,
pelo próprio documento constitutivo, era um estabelecimento sob a jurisdição do Bispo
Diocesano.
Além de que, havendo o fundador do recolhimento Padre Missionário Gabriel
Malagrida, por termo assinado em 21 de Fevereiro de 1752, perante um dos meus
Antecessores, Dom frei Francisco de Santiago, sujeitado em tudo e por tudo à
jurisdição diocesana o mesmo Recolhimento, com a cláusula de que [se] a mesma
obra [...] não conseguisse o desejado fim e complemento, ou depois de concluída
pelo decurso do tempo a mesma instituição deixasse de existir por qualquer
circunstância, passarem à Mitra, podendo o Diocesano dispor do solo, materiais,
mais bens e direitos a ele pertencentes, como for mais do agrado de Deus [...] 343.
Foi por isso que, para D. Luis, pareceu acertada a decisão de vender os “gados que
estão na fazendinha Pirapendiba”
344
, pois “[...] julguei que deviam ser vendidos não só
porque me era impossível administrar e fazer auferir lucros em benefício do dito
estabelecimento; senão também porque não tenho e nem podia ter [como fazer] progredir
esses poucos bens” 345.
342
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
344
Gados esses que pertenciam ao Recolhimento da Anunciação e Remédios.
345
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
99
Pensava o Inspetor da Tesouraria que o Recolhimento “deve ser considerado
como Corporação de mão-morta”
346
. D. Saraiva discordava desse entendimento. Disse o
bispo que “[...] o Recolhimento de N. Senhora da Anunciação e Remédios não pertence à
classe das Ordens Regulares; porquanto a sua instituição e fins são muito diferentes; [...] [e] o
mesmo Recolhimento não pode também ser considerado Corporação de mão-morta”
347
.E
isto, na visão de D. Luis, se justificava pelo seguinte:
Para reconhecer que o Recolhimento de N. Senhora da Anunciação e Remédios não
é Ordem Regular basta ponderar que “sendo o estado religioso a promessa que
alguém faz de tender à perfeição cristã, emitindo para isto os votos solenes de
obediência, castidade e pobreza, e vivendo comum e estavelmente sob uma regra
aprovada pela Igreja”, é este o único adotado pelas Ordens propriamente Regulares e
que como tais as caracteriza; estado que se não encontra nas Recolhidas de N.
Senhora da Anunciação e Remédios, que nem mesmo tem a este respeito nenhuma
das qualidades de um instituto quase regular. A natureza do Recolhimento de N.
Senhora da Anunciação e Remédios está perfeitamente definida pelo meu muito
ilustrado e digno Antecessor, o Senhor Dom Marcos Antônio de Sousa na sua
exposição de motivos que precede os Estatutos daquele estabelecimento, [...] assim
se exprime: “a suma deste Regulamento dirigirá a cultura de mimosas plantas neste
precioso jardim, do qual, ao depois transplantadas a outros terrenos produzirão
frutos deliciosos de virtudes cristãs: deste abrigo de educandas sairão mães de
famílias que darão cidadãos úteis ao Estado, defensores da Pátria, ministros zelosos
e edificantes do Altíssimo e farão a felicidade das gerações futuras” 348.
“Na classe de Ordem Regular não pode seguramente o Recolhimento ser
considerado”, dizia D. Luis. Por isso, afirmava o prelado:
[...] não posso deixar de tornar sensível o desacordo que me parece haver entre o
modo como V. Exª. considera a natureza da mesma instituição, entendendo ser ela
pertencente à classe das ordens Regulares, ao passo que o Inspetor da Tesouraria de
Fazenda em um tópico do seu ofício de 10 do corrente mês dirigido a V. Exª.
propende a considerar o Recolhimento como Corporação de mão-morta [...] 349.
346
Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olympio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
348
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
349
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
100
Foi com base nesses argumentos, e por conta da dificuldade em manter
salvaguardados os gados alocados na fazenda Pirapendiba, que D. Saraiva procedeu à
alienação dos animais.
Reconhecendo, como já disse a V. Exª., que os gados da fazenda Pirapendiba não
produziam o fruto desejado, entendi que o devia reduzir todo a dinheiro, aplicando o
produto à compra de apólices da dívida pública, sem me apropriar de tal produto,
nem usufruí-lo, achando-se ele, como se acha, depositado no Banco do Maranhão
[...] 350.
Sobre a questão relativa aos bens do Convento de Nossa Senhora das Mercês, era
de interesse do Inspetor da Tesouraria que estes “[...] se devam considerar bens de Ordem
extinta, ou senão, vagos, para passarem ao Estado”
351
. Mas, D. Saraiva fundamento em
“algumas Constituições Apostólicas referidas por Morelli nos seus Fasti novi orbis”, disse
que “[...] o maior ou menor número de Religiosos em nada influi para conservação ou
extinção da Ordem”. E, além disso, “é certo que existem ainda dois representantes da
sobredita Ordem de N. Senhora das Mercês e não um só como declara a Tesouraria de
Fazenda” 352.
Para se proceder à extinção da Ordem das Mercês, era necessário o concurso do
Bispo Diocesano, bem como a observância dos meios previstos no documento fundador da
Ordem. Não competia à Tesouraria de Fazenda realizar tal extinção; cabia-lhe apenas verificar
se o meio de extinção fora idôneo. Foi assim que se expressou D. Luis ao dizer que:
[...] para a extinção da Ordem Mercenária é necessário que seja a medida tomada
pela competência de meios da sua criação, a que por certo permanece
completamente estranha à Tesouraria de Fazenda, que só pode intervir depois de
regularmente decretada a extinção da Ordem para observar o meio, que lhe foi
indicado [...] 353.
350
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Maranhão Augusto Olympio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
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Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
101
Diante desse contexto, é certo que D. Saraiva corroborou seu entendimento no
princípio da autoridade. Disse ele que todos os seus atos estiveram fundamentados em sua
autoridade de Bispo Diocesano e de Delegado da Santa Sé. Como não poderia deixar de ser,
D. Saraiva representou a si mesmo e a sua posição dentro da Igreja.
Nem é para estranhar que eu interviesse na administração dos bens da referida
Ordem a fim de os conservar nomeando uma Comissão administrativa para o
desempenho de semelhante encargo, por isso que, além da minha jurisdição de
Diocesano, acresce-me a tal respeito a de Delegado da Santa Sé Apostólica, em cujo
exercício tenho atribuições para ingerir-me em todos os negócios da mesma Ordem
[...] 354.
Não sabemos qual foi o desfecho da dissidência entre D. Saraiva e o Inspetor da
Tesouraria da Fazenda. Após este ofício de 30 de novembro de 1870, nenhum outro tratou do
assunto. Ao que nos parece, isso não prejudicou nossa análise. Notamos ao longo da
abordagem pontos que eram característicos das relações entre o Estado e Igreja no Brasil
imperial. Vimos como as fronteiras entre a jurisdição temporal e espiritual eram fluidas no
regime de associação entre a Igreja e o Estado. Vimos na dissensão entre D. Saraiva e
Francisco J. G. Pereira um dos muitos casos em que as autoridades da Igreja estiveram numa
situação de fragilidade. Vimos, enfim, as proporções da ingerência do Estado nos negócios da
Igreja.
Através da dissidência havida entre D. Luis e o Inspetor da Tesouraria podemos
vislumbrar um pouco da situação jurídica dos bens eclesiásticos no contexto imperial. A
legislação imperial impôs aos institutos religiosos a proibição de adquirir, possuir a qualquer
título e alienar bens de raiz sem a devida licença do Governo, estabelecendo a devolução ao
Estado caso fosse verificada a infração de tal disposição. De acordo com a lei de 4 de julho de
1768 e de 9 de setembro de 1796, essa determinação se fundamentava no fato de que “tendo
afluído às igrejas e aos mosteiros imensa abundância de bens de raiz, mostrou a experiência a
necessidade de pôr limite a esta exorbitante riqueza e ao consequente poder dos eclesiásticos,
que lhes dava uma preponderância nociva à ordem pública”
355
. Foi talvez imbuído desse
entendimento que o Inspetor procedeu daquela forma.
354
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
355
SCAMPINI, José. “A liberdade religiosa nas constituições brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado”.
Primeira parte – A liberdade religiosa no Brasil império. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 11,
nº 41, jan./mar. 1974, p. 91.
102
Uma frase do Inspetor naquele contexto nos permite ainda vislumbrar a forma
como as autoridades civis entendiam o poder do Estado em fins do século XIX. Disse o
Inspetor que “[...] a esta Tesouraria cumpre tomar conhecimento de tudo”
356
. Ao Estado,
portanto, cabe tomar às contas de tudo. Em certo sentido, isso expressa algo que Lacerda de
Almeida percebeu no início do século XX. Trata-se de “[...] uma religião nova e muito em
moda, a autolatria do Estado; o Estado é a sua própria divindade, cultua a sua onipotência” 357.
Por sua vez, D. Saraiva disse algo que, em certo sentido, certifica o malogro e o
desgaste que era o regime de associação entre Igreja e Estado. Para D. Luis, a denúncia
impetrada pelo Inspetor da Tesouraria “[...] colocou em um estado muito doloroso porque me
obrigou a descer onde o mesmo Inspetor subiu”. Num regime onde o Estado, na pessoa do
Imperador, era titular do direito de padroado e beneplácito, a Igreja muitas vezes teve que
descer onde o Estado subiu.
3.4 A controvérsia acerca do artigo de postura da Câmara Municipal de São Luís que
modificou a disciplina dos dobres de sino
Este foi mais um caso de conflito de jurisdição entre o poder civil da província e a
autoridade episcopal, representada por D. Luis da Conceição. Logo no início do ano de 1872,
a Câmara Municipal de São Luís expendeu uma medida legislativa que pretendera abolir um
antigo costume da Igreja. A controvérsia teve sua origem no “[...] artigo de Postura da Câmara
Municipal da capital, proibindo os dobres de sino para finados em todas as Igrejas, com
exceção do dia de finados”. Tal artigo determinava “[...] que só dobrem os sinos pelos mortos
uma vez durante o ano, no dia da Comemoração dos fiéis defuntos” 358.
Ao receber o ofício do Presidente da Província de 10 de fevereiro de 1872, no
qual veio anexada a cópia do artigo de postura da Câmara, a resposta de D. Saraiva não foi
outra:
356
Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do
Maranhão Augusto Olympio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM.
357
ALMEIDA, Lacerda de. op. cit., p. 181.
358
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
103
Em resposta, cabe-me ponderar a V. Exª. que pretendendo a Câmara Municipal da
capital extinguir, por uma vez, com a dita Postura, o antigo e louvável costume
autorizado pelas leis da Igreja e sancionado pela piedade dos Fiéis de darem os sinos
sinais ou dobres pelos defuntos “assim para que os Fiéis se lembrem de encomendar
suas almas a Deus Nosso Senhor, como para que se incite e avive neles a memória
da morte, com a qual nos reprimimos e nos abstemos dos pecados”, parece-me que
uma tão importante medida deveria achar-se acompanhada de uma exposição de
motivos, que [...] legitimassem a pretendida proibição de tão velhas e boas práticas
religiosas 359.
Ao “[...] formular um artigo de Postura tão restritivo”, acreditava D. Saraiva que a
Câmara Municipal estava exorbitando no limite de suas atribuições, pois que “[...] este
assunto, julgo da competência do Poder eclesiástico” Não pode, na visão de D. Luis, um
objeto disciplinar da religião e inerente ao culto público ser modificado pela legislação
temporal, isto porque “[...] desde que a Igreja começou a usar do sino, o que remonta pelo
menos ao 4º século, para convocar os Fiéis no Templo e marcar as horas dos Ofícios Divinos,
logo apartou este instrumento do serviço e uso profano” 360.
Os sinos, disse D. Saraiva, constituem objetos inerentes ao múnus da religião, e
por isso, a disciplina que os comanda não pode ser alterada ou abolida sem o concurso da
autoridade religiosa. Disse ele que “a Câmara Municipal da capital, formulando o artigo de
Postura aludido, ultrapassa as suas atribuições, que se acham definidas pela Lei de 1º de
Outubro de 1828 e fere ainda leis gerais do país que estão em pleno vigor”. E também
suscitou o bispo diocesano um argumento destacando o fato de ser o catolicismo a religião
oficial do Império: deveria a Câmara Municipal, ao editar o dito artigo de postura, “[...] acatar
as [leis] disciplinares da Igreja cuja religião é a do Estado, pelo que goza de plena liberdade
em tudo quanto é relativo ao seu culto público e às suas sagradas cerimônias e ritos”.
Amparando-se na Constituição de 1824, disse D. Saraiva que
[...] sendo certo [...] que a Religião Católica goza no Império de toda a proteção, que
firmando-se no nosso Pacto Político, a resguarda de ser tolhida no livre exercício de
seu culto público e solene; devo afirmar a V. Exª. que me parece não caber nas
atribuições das Câmaras Municipais a imposição de medidas, como a contida no
artigo de Postura de que me ocupo 361.
359
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
360
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
361
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
104
Por isso, questionou-se D. Saraiva: “não ficará assim bem visível a interferência
que com o referido artigo de Postura quer ter a Câmara Municipal naquilo que é inerente à
administração das coisas da Igreja?”
362
. Vemos daí que as considerações feitas no capítulo
anterior e na primeira parte deste capítulo estão em consonância com o que está sendo dito
nessa última parte da dissertação. Isso se observa na questão de os bispos do Maranhão, seja
D. Luis sejam seus predecessores e sucessores, sempre terem evocado a Constituição de 1824
quando se viram diante de uma controvérsia com o poder civil da província. E não foi apenas
a Constituição de 1824. As Constituições Sinodais da Bahia foram invocadas muitas vezes
pelos bispos no sentido de reforçar seus argumentos. Ocorreu assim quando D. Saraiva
mostrou sua discordância em relação ao artigo de postura da Câmara que proibia os dobres de
sino. Disse ele que “[...] há uma lei expressa que, reservando à autoridade eclesiástica o meio
de regular os dobres pelos defuntos, não pode ser considerada como não existente. Esta Lei é
a Constituição do Arcebispado da Bahia nos números 828 a 830 [...]” 363.
Por tudo isso, era irretorquível para D. Luis o fato de ser o sino um objeto
disciplinar da órbita religiosa; de ser o sino um dos tópicos intrínsecos ao culto público.
Os sinos são [...] instrumentos essencialmente religiosos, os quais, ora simbolizando
a voz de Deus e ora as trombetas da Igreja militante, devem deixar vibrar os seus
misteriosos sons em todas as peripécias da vida do homem, desde que aos seus
festivos repiques, abrem-se-lhe os olhos à fé pelas águas do batismo, até que
prostrado no leito da dor e da agonia, com suas badaladas acentuadas e graves o
convida ao arrependimento e à reconciliação, excitando ao mesmo tempo a caridade
para com os que sofrem 364.
Este foi o apelo que fez D. Saraiva aos sentimentos religiosos do presidente
Augusto Olímpio Gomes de Castro. Disse o bispo que os sinos são como que uma exortação à
lembrança de Deus e das coisas eternas, isso porque “[...] os misteriosos efeitos produzidos
pelos sons dos sinos, que vibrando no espaço, têm sua linguagem poética e religiosa, que sabe
falar ao coração”. Os sons que deles retumbam constituem um convite ao arrependimento e
um conforto para os que sentem as dores da agonia da morte. É como se fosse a voz de Deus
que, diante das “peripécias da vida do homem”, nos recorda de sua existência e da existência
362
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
363
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
364
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
105
de uma vida vindoura. Assim é que ao sino se relaciona um importante exercício: o lembrar, o
recordar. Tomemos aqui uma importante consideração de Jacques Le Goff nesse sentido:
Pode-se descrever o judaísmo e o cristianismo, religiões radicadas histórica e
teologicamente na história, como “religiões da recordação” [...]. E isto em diferentes
aspectos: porque atos divinos de salvação situados no passado formam o conteúdo
da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por um lado, a
tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade
da lembrança como tarefa religiosa fundamental 365.
Pode-se dizer que os sinos funcionam como um desses “aspectos essenciais” que
insistem “na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental”.
Para D. Saraiva, os repiques dos sinos são como um convite à recordação dos
preceitos cristãos, como um convite ao encontro com Deus, como um convite à
espiritualidade cristã.
Quem há que possa negar as sensações, um não sei que inexprimível que excita no
coração do Cristão os sons vibrados por este misterioso instrumento? Quem não
desperta-se e reflete ao tríplice toque das Ave Marias e não fica com o coração
saturado da saudade, que deixa impressa na alma esses melancólicos sons que nos
anunciam o termo do dia? Que coração não se converterá cheio de caridade para
com o moribundo, cujos últimos instantes de vida são denunciados pelo gemido
compassado do sino da paróquia, que convida aos Fiéis a orarem pelo agonizante?
Quem ouvindo os sons plangentes do sino deixará de elevar o pensamento ao Trono
de Deus e com o coração ungido de amor do próximo não enviará ao Supremo Juiz
as doces preces da caridade pelo irmão que se finou e desapareceu da vida
presente?366
Nesse trecho de D. Luis fica mais evidente o aspecto dos dobres de sino como
uma forma de lembrar os mortos e de oferecer-lhes sufrágios. O parecer dado pelo bispo nesse
ofício manifesta uma sensibilidade, a sensibilidade cristã no lidar com a morte e com os
mortos. Esta sensibilidade foi consagrada por um dispositivo específico das Constituições
Sinodais da Bahia. Trata-se do número 828, referido por D. Saraiva em seu ofício. Nesse
dispositivo, consta o seguinte:
365
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 1990, p. 438. Aspas do autor.
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
366
106
Justamente se introduziu na Igreja Católica o uso, e sinais pelos defuntos; assim para
que os fiéis se lembrem de encomendar suas almas a Deus nosso Senhor, como para
que se incite, e avive neles a memória da morte, com a qual nos reprimimos, e
abstemos dos pecados 367.
Ao proibir os dobres de sino diários pelos defuntos, parece que a Câmara de São
Luís esteve imbuída de uma outra sensibilidade, de uma outra forma de lidar e de pensar sobre
a morte e sobre os mortos.
O artigo de postura da Câmara Municipal de São Luís conteve um posicionamento
que divergiu do entendimento de D. Saraiva acerca dos dobres de sino. O artigo de postura
proibiu os dobres de sino sob o argumento “[...] de promover e manter a tranquilidade e
segurança, saúde e comodidade dos habitantes” e sob o “[...] pretexto de comodidade e
segurança pública” 368.
Pensando assim os membros da Câmara Municipal, podemos supor que eles
seguiram uma tendência que muito bem foi discutida por João José Reis. De modo geral, essa
tendência quis afastar os mortos e a lembrança dos mortos do quotidiano dos vivos. “Mortos e
vivos deviam ficar separados. A novidade vinha da Europa, e foi divulgada no Brasil por meio
de uma campanha que fazia da opinião dos higienistas o testemunho da civilização” 369. O que
se quis com essa campanha foi romper qualquer “[...] relação de proximidade entre vivos e
mortos”, uma vez que estava ocorrendo uma mudança no comportamento dos homens em
relação à morte e também diante dos mortos 370.
“Durante o século XVIII desenvolveu-se uma atitude hostil à proximidade com o
moribundo e o morto, que os médicos recomendavam fossem evitados por motivos de saúde
pública”
367
371
. Foi por conta dessa forma de pensar que surgiu um verdadeiro processo de
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo
ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2011, p. 291. (Livro Quarto, Título XLVIII das Constituições).
368
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
369
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 24.
370
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 73-74.
371
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 75.
107
descristianização da morte. A partir daí os mortos passaram a ser encarados como um tabu
público 372, sobretudo porque
os mortos representavam um sério problema de saúde pública. Os velórios, os
cortejos fúnebres e outros usos funerários seriam focos de doença, só mantidos pela
resistência de uma mentalidade atrasada e supersticiosa, que não combinava com os
ideais civilizatórios da nação que se formava. Uma organização civilizada do espaço
urbano requeria que a morte fosse higienizada, sobretudo que os mortos fossem
expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios extramuros 373.
Em linhas gerais, isto foi o que João José Reis chamou de um cenário de
“medicalização da morte”. No dizer do autor, foi a medicalização da morte uma das principais
responsáveis pela revolta da Cemiterada, ocorrida em Salvador no ano de 1836. Por certo que
foram os médicos que capitanearam o movimento que procurou “medicalizar” a morte. Eles
“[...] propunham tirar os mortos do meio da agitação dos vivos, pregavam uma destinação
moderna para eles: cemitérios espacialmente equilibrados e a boa distância da vida social”. O
primeiro passo nesse sentido foi “dessacralizar a morte” 374.
Os médicos conseguiram vencer a batalha pela credibilidade em alguns meios
importantes. Eles chegaram a se tornar vereadores, deputados provinciais, representantes na
Assembleia Geral, conselheiros e ministros de Estado
375
. Sendo assim, é bem possível que
muitos membros da Câmara Municipal de São Luís fossem partidários das teses higienistas.
A vigilância auditiva se tornou um dos lemas da campanha médica. Os médicos se
opuseram aos funerais ruidosos, especialmente contra o mais típico de seus sons: o dobre de
sinos. A morte postulada pelos médicos devia ser inodora e silenciosa. Já em 1830 um
relatório da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro mostrava-se contra o dobre excessivo
de sinos por considerá-lo perturbador do repouso público, e como prejudicial aos doentes. Em
1833 surgiu um estudo mais detalhado sobre assunto, cujo autor era o dr. Cláudio Luís da
Costa. Para ele, os sinos eram prejudiciais justamente porque deles promanavam os sons que
372
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 74.
373
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 247.
374
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 262.
375
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 251.
108
anunciavam a morte aos vivos. E ainda na visão de dr. Costa, os dobres de sino pelos defuntos
eram um tormento para os vivos 376. Neste contexto,
a morte não devia ser lembrada [...]. Os médicos contrariavam o tradicional dever de
lembrança da morte do próximo como ato de preparação para a própria morte. Para
eles, o fim da vida devia apresentar-se como surpresa – porque a medicina prometia
a possibilidade de adiá-lo –, o que implicava abolir a necessidade do indivíduo de
prevê-lo e de prevenir-se 377.
É bem provável que a Câmara de São Luís, ao proibir os dobres de sino diários
pelos defuntos, estivesse imbuída desse entendimento que propugnava a medicalização da
morte. Ora, vimos pelo ofício de D. Luis que a Câmara justificou sua decisão sob a alegação
“[...] de promover e manter a tranquilidade e segurança, saúde e comodidade dos habitantes”.
D. Luis em tom sarcástico responde a essa decisão dizendo:
E mesmo não sei por que há de ser tão prejudicial à salubridade e comodidade
pública os dobres de sino, sem que ao mesmo tempo sejam: os toques musicais, o
rebombo do canhão em dias de funerais, o toque das cornetas e o rufo dos
tambores?! 378
Da forma como se expressou em seu ofício, D. Saraiva parece não compreender a
associação, alegada pelos membros da Câmara, entre os dobres de sino e a saúde e
comodidade dos habitantes de São Luís. “Os sinos em todos os tempos têm sido amigos e
inimigos, como diz o sábio Alexandre Herculano; mas não podem sofrer a pena de coisas
inúteis e prejudiciais, porque a liturgia da Igreja justifica a sua utilidade [...]” 379. Para D. Luis,
longe de serem os sinos prejudiciais, são eles revestidos de um salutar caráter simbólico:
[...] os seus sons ou toques têm uma significação simbólica e harmônica com as
cerimônias e ritos da Igreja e são um dos modos, por que a mesma Igreja desenvolve
o seu culto público e desperta nos corações dos Fiéis práticas de piedade, já fazendolhes renascer na alma as alegrias de que estão privados pelo abatimento dos
376
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 264-265.
377
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 266.
378
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
379
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
109
corações, e já fazendo reaparecer neles a doce esperança e já acordando-lhes o temor
religioso adormecido pela voragem das paixões 380.
O simbolismo proveniente dos sons dos sinos remete-nos, segundo D. Saraiva, a
memórias e lembranças específicas. Os sinos nos remetem a Deus, à morte, ao temor
religioso, à prática da piedade e das demais virtudes cristãs. Sendo assim, por que então não
dizer que os sinos e seus sons funcionam como uma espécie de lugar de memória? Os lugares
de memória, no dizer de Pierre Nora, têm uma finalidade pragmática: “a razão fundamental de
ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um
estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial [...]”
381
. Parece-nos que foi
basicamente guiado por essas premissas que D. Luis redigiu o referido ofício.
Em 10 de setembro de 1887, a Câmara Municipal de São Luís, talvez motivada
pela inobservância do artigo de postura de 1872, editou uma outra postura
[...] proibindo os dobres de sinos pelos defuntos em todas as igrejas por ocasião de
Missas e enterros, exceto na Igreja de São José da Misericórdia (São Pantaleão) em
que só poderá haver um dobre por ocasião de passar cada enterro, isso mesmo de
duração não maior de um minuto, e impondo aos contraventores a multa de 50//000
réis e o dobro nas reincidências 382.
Nessa época já havia D. Saraiva falecido, e o bispo Maranhão era D. Antônio
Cândido de Alvarenga. D. Alvarenga basicamente reafirmou a postura de sua predecessor:
[...] penso que a postura ora organizada pela Câmara Municipal é ilegal por falta de
competência da Câmara para decretar tal proibição, porque o rito da Bênção dos
sinos, o seu número em cada igreja, quando e como se poderá usar deles são coisas
que pertencem ao culto divino, estão determinadas no direito canônico e nos livros
litúrgicos, e portanto às autoridades eclesiásticas exclusivamente pertence regular o
uso dos sinos das igrejas 383.
380
Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto
Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM.
381
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: Projeto História: Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, nº 10, dezembro
de 1993, p. 22.
382
Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão José Bento de
Araujo, 06/10/1887, Setor de Avulsos, APEM.
383
Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão José Bento de
Araujo, 06/10/1887, Setor de Avulsos, APEM.
110
E, além disso, para D. Cândido de Alvarenga, “[...] o ato da Câmara Municipal,
votando a postura de que se trata, por ser uma violência senão um atentado contra as crenças,
as consciências e os direitos dos habitantes católicos do Município da capital” 384.
A divergência dos bispos com relação ao artigo de postura da Câmara foi mais
um daqueles casos exemplares da ingerência excessiva do poder civil sobre assuntos
exclusivamente inerentes à esfera religiosa. Dizemos “ingerência excessiva” porque o
padroado e o beneplácito por si mesmos já configuravam uma ingerência. Esse caso do artigo
de postura da Câmara Municipal de São Luís proibindo os dobres de sino evidencia que as
autoridades civis foram bem além da “ingerência constitucionalizada” (padroado e
beneplácito) ao pretenderem legislar sobre assuntos e objetos estritamente religiosos. O que
parece é que os membros da Câmara de São Luís, ao editarem o ato de postura proibitivo dos
dobres de sino, consideraram a Igreja como uma repartição do Estado. Nessa ótica, sendo a
Igreja uma repartição estatal, deveria ela assentir com as determinações estatais, ainda que o
assunto em questão seja essencialmente religioso.
As duas dissidências que estudamos são como que exemplos da turbulenta e
conflitosa relação entre a Igreja e o Estado no período imperial brasileiro. À medida que se
aproximava o fim do século XIX mais se acirravam os desentendimentos. Com a eclosão da
Questão Religiosa, ficou evidente que o “casamento” entre os dois poderes estava próximo do
fim. O divórcio chegou provisoriamente por meio de decreto, e se consolidou
terminantemente em 1891 com a primeira Constituição da República.
384
Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão José Bento de
Araujo, 06/10/1887, Setor de Avulsos, APEM.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partimos da noção de que os ofícios dos bispos diocesanos do Maranhão
constituem uma espécie de palco de representações. Em suas correspondências oficiais ao
Presidente da Província, os bispos delinearam uma cosmovisão; eles fizeram uma apologia da
Igreja, eles representaram a si próprios e a sociedade sob a ótica do catolicismo.
Não houve confusão ou indecisão teórico-metodológica em nosso trabalho. Ficou
evidente ao longo da dissertação que fizemos um estudo de representações pautado na análise
do discurso. Mas isto não impediu que estabelecêssemos similitudes e paralelos com outras
correntes teóricas e metodológicas. Os direcionamentos teórico-metodológicos do nosso
estudo ficaram postos no primeiro capítulo da dissertação.
Fizemos, em seguida, uma discussão que mostrou como foi avesso ao cristianismo
o século XIX. Não só o catolicismo, mas o cristianismo por inteiro foi abalado. A estrutura de
crença e de sociedade proposta pelo cristianismo foi incisivamente questionada e
desacreditada durante esse período. As críticas mais ácidas provieram da filosofia. Ela
desligou-se definitivamente da teologia no século XIX e abandonou a hipótese de Deus, por
considerá-la infundada e incoerente com os saberes da época. Vimos os posicionamentos de
Feuerbach e de Nietzsche neste sentido. Este último deu um novo sentido e uma nova
roupagem à expressão “morte de Deus”.
O cristianismo, a autoridade religiosa e a Igreja foram seriamente criticados e
desacreditados durante todo o século XIX. Neste século chegou a termo um processo de
secularização iniciado desde a época dos iluministas. Este processo esvaziou paulatinamente a
autoridade religiosa. Com isso, o Estado foi se assenhoreando das atribuições outrora
pertencentes à religião. Quem nega que algo parecido com isso tenha ocorrido no Brasil
imperial? O terceiro capítulo da dissertação esteve orientado no sentido de estabelecer uma
ponte com o segundo capítulo e, assim, responder a esse questionamento.
Sublinhamos quão contraditória fora a Constituição Imperial de 1824. O Estado
elaborou esse documento no qual tomava para si todos os poderes civis. Foi o Estado mais
além disso e deu ao Imperador os direitos de padroado e beneplácito sobre a Igreja. O
catolicismo era, pelos ditames constitucionais, a religião oficial do Império. Vimos que essa
posição advinda da oficialidade não foi confortável para a Igreja Católica no Brasil. O art. 5º
112
da Constituição de 1824 foi como um aguilhão de ouro que manteve a Igreja sob a ingerência
do Estado.
Após essa discussão, adentramos na parte final da dissertação. Apresentamos as
carências do culto público católico na província como o cenário em frente ao qual foram
desencadeadas as dissidências entre D. Luis da Conceição e as mencionadas autoridades civis.
Na província do Maranhão, pode-se dizer que o problema mais sensível enfrentado pela Igreja
Católica durante o século XIX esteve relacionado ao aparelhamento e estrutura do culto
público. Em seus ofícios, todos os bispos do Maranhão durante o século XIX traçaram para
Igreja Católica maranhense um cenário que lhe foi desfavorável. Longe de gozar das possíveis
prerrogativas oriundas do fato de ser a religião oficial do império, o catolicismo no Maranhão
em muitos casos figura como refém da própria condição, quase sempre sujeito à mercê dos
chamados poderes provinciais. “Era”, conforme disse D. Francisco de Paula, “um mal
semelhante ao impaludismo, que mina longamente o organismo, degenerando-lhe o sangue,
até chegar a uma crise aguda da qual a pessoa sai vitoriosa e convalesce ou então morre” 385.
Prosseguindo, notamos através da análise das duas dissidências os exemplos de
como o regime de associação entre Igreja e Estado culminava inevitavelmente na confusão de
competências. O caso do artigo de postura da Câmara Municipal de São Luís evidencia, além
disso, uma espécie de choque de mentalidades entre a autoridade episcopal e os membros da
Câmara. O que sabemos hoje é que venceu o entendimento da Câmara. Os dobres de sino são
raros atualmente. Lacerda de Almeida disse algo interessante nesse sentido:
O agnosticismo de nossas instituições, acompanhando-nos além da morte, suprimiu
todos os emblemas que despertam a piedade e a crença numa outra vida, suprimiu
até a cruz; a simples cruz dos desgraçados desapareceu dos caixões mortuários da
classe pobre, e o carro que lhes conduz os cadáveres confunde-se com as carroças
que levam mantimentos aos batalhões nos quartéis 386.
As autoridades civis muitas vezes invadiram o domínio da religião. Quando isso
ocorria, iam os bispos corroborar seus pontos de vista na Constituição de 1824, no Concílio
de Trento e nas Constituições do Arcebispado da Bahia.
385
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922, p. 268-269.
386
ALMEIDA, Lacerda de. op. cit., p. 179-180.
113
Nas divergências havidas entre a autoridade episcopal e o poder civil da província
do Maranhão, D. Saraiva pôde reagir somente com o auxílio do apelo aos sentimentos
religiosos das autoridades civis. Não dispunha o bispo de outros meios de reação. Com razão
disse Delumeau que “[...] as Igrejas oficiais foram na maior parte das vezes tímidas em
relação ao Estado” 387.
O recurso que a Igreja Católica encontrou para contornar essa situação de
fragilidade frente aos poderes do Estado e frente aos demais desafios do século XIX, foi a
reafirmação da ortodoxia eclesiástica a partir de um amplo projeto reformador que teve no
ultramontanismo uma de suas principais diretrizes. A Igreja do final do século XIX se
pretende enquanto um “[...] recinto fechado onde o mundo não entra” 388.
À medida que avançava o século XIX, “a mútua concórdia do império com o
sacerdócio”
389
tornava-se algo irremediavelmente obsoleto e inviável. Gradualmente se
aproximava o fim de uma cultura política e de um sistema político; se aproximava o fim de
uma forma de pensar e de representar o poder.
387
DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da reforma. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989, p.
354.
388
GUARDINI, Romano. Os sinais sagrados. 2. ed. São Paulo: Quadrante, 1995, p. 57.
389
GREGÓRIO XVI. “Mirari vos”. Condenação do indiferentismo religioso e da liberdade de consciência, de
imprensa e de pensamento. In: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX (1831-1878). São Paulo: Paulus,
1999, p. 39.
114
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123
ANEXOS
124
ANEXO A
QUADRO I - Ofícios do Bispo Diocesano do Maranhão - 1800 a 1914
ANO
QUANTIDADE
DE OFÍCIOS
ANO
QUANTIDADE
DE OFÍCIOS
ANO
QUANTIDADE
DE OFÍCIOS
1800
02 ofícios
1848
02 ofícios
1875
27 ofícios
1805
02 ofícios
1853
30 ofícios
1876
23 ofícios
1830
11 ofícios
1854
78 ofícios
1878
10 ofícios
1831
37 ofícios
1855
103 ofícios
1879
13 ofícios
1832
48 ofícios
1856
50 ofícios
1881
14 ofícios
1833
22 ofícios
1857
74 ofícios
1882
07 ofícios
1834
26 ofícios
1858
50 ofícios
1883
05 ofícios
1835
15 ofícios
1859
60 ofícios
1884
09 ofícios
1836
12 ofícios
1861
19 ofícios
1885
11 ofícios
1837
43 ofícios
1862
24 ofícios
1887
07 ofícios
1838
22 ofícios
1863
26 ofícios
1888
12 ofícios
1839
42 ofícios
1864
35 ofícios
1889
14 ofícios
1840
75 ofícios
1865
23 ofícios
1890
04 ofícios
1841
84 ofícios
1866
02 ofícios
1891
08 ofícios
1842
57 ofícios
1867
59 ofícios
1895
04 ofícios
1844
17 ofícios
1868
26 ofícios
1897
02 ofícios
1845
22 ofícios
1869
44 ofícios
1901
01 ofício
1846
18 ofícios
1870
69 ofícios
1904
03 ofícios
1847
15 ofícios
1872
47 ofícios
1905* e
1914**
01* e 02** ofícios
TOTAL DE OFÍCIOS: 1.568
Fonte: Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Quadro elaborado pelo autor, São Luís, 2011.
125
ANEXO B
QUADRO II - Sucessão dos bispos do Maranhão – 1826 a 1898
BISPO
Dom Luis de Brito
Homem, 13º Bispo do
Maranhão
Dom Frei Joaquim de
Nossa Senhora de
Nazareth, 14º Bispo do
Maranhão
PERÍODO
1802-1813
1820-1823
Dom Marcos Antônio
de Sousa, 15º Bispo do
Maranhão
1826-1842
Dom Frei Carlos de
São José e Souza, 16º
Bispo do Maranhão
1844-1850
Dom Manoel Joaquim
da Silveira, 17º Bispo
do Maranhão
1851-1861
Dom Frei Luis da
Conceição Saraiva, 18º
Bispo do Maranhão
Dom Antônio Candido
de Alvarenga, 19º
Bispo do Maranhão
1861-1876
1878-1898
NOTAS
Desde 1º de maio de 1791 Bispo de Angola. Natural de Fundão, no
Bispado da Guarda, clérigo secular e formado em Cânones pela
Universidade de Coimbra. Muito doente, concentrado e tímido, fez o
governo de um enfermo, sem cor, sem agitação, sem medida alguma,
além do despacho de papeis.
Nascera em Nazareth, termo da vila de Pederneiras, comarca de Leiria,
em Portugal. Aos 15 anos entrou para a Ordem Franciscana de Santa
Maria da Arrábida, estudando em Mafra, em cujo convento veio a ser
professor de teologia.
“Nascido na Capital da Bahia, a 10 de fevereiro de 1771. Sacerdote aos
23 anos, pouco depois pároco colado da Vitória, onde nascera, e
examinador sinodal, seus talentos e virtudes o fizeram Secretário do
Governo da Província [da Bahia] e o elegeram deputados às Cortes de
Lisboa, em 1820. Gênio dedicado às letras, conhecia profundamente o
grego, o inglês, o francês e o italiano. Consagrou-se à oratória sagrada,
exercendo-a sempre com aplauso e subida reputação.
Nascido em Recife a 4 de novembro de 1777, professou na Ordem
Carmelita a 4 de dezembro de 1797. Sacerdote, ocupou diversos cargos,
entre os quais o de professor de filosofia e teologia em seu convento
[Carmelita], mestre de noviços, examinador sinodal, Visitador Geral da
Ordem e Governador da Diocese de Olinda. O Governo o nomeou
Diretor do Colégio dos Órfãos de Olinda, após Professor de Filosofia,
Diretor e Reformador do Liceu de Recife, sendo muito estimado pela
juventude pernambucana.
Nascido de pais modestos, no Rio de Janeiro, a 11 de abril de 1807, fez
seus estudos superiores no Seminário de São José, da mesma Cidade.
Sacerdote, a 2 de maio de 1830, preterido por motivos políticos em
concursos para vigário da Candelária e de Santa Rita, foi nomeado
professor de teologia e, em 1838, Reitor do mesmo Seminário que
reparou e ampliou; restaurou-lhe as finanças e lhe reformou os estudos.
Nasceu, a 25 de dezembro de 1824, na Paróquia de Rio Fundo, da
Província da Bahia. Estudou as primeiras letras na cidade de Santo
Amaro. Órfão de pai, aos dez anos, a 5 de março de 1841 foi recebido
no Mosteiro de São Bento, em Salvador, onde fez todos os estudos
secundários e superiores, professou em 1842 e recebeu as ordens sacras.
Nasceu em São Paulo, a 22 de abril de 1836. Dado o seu notável pendor,
colocaram-no como menino do coro na Catedral, onde provou ótimo
comportamento e boas qualidades de cantor. Matriculou-se entre os
primeiros alunos do Seminário de São Paulo, frequentando já as aulas de
Dogma e de Moral. A 25 de março de 1860 foi-lhe conferido o
presbiterato. Continuou no Seminário como professor de português,
latim e canto gregoriano até 1865, sendo então nomeado coadjutor de
Taubaté e, após, da Serra Branca. Em fevereiro de 1870 provisionado
Vigário de Mogi das Cruzes, aí ficou até 4 de julho de 1876.
Quadro elaborado pelo autor, São Luís, 2013. Baseado no livro de Felipe Condurú Pacheco. História eclesiástica do
Maranhão. São Luís: SENEC, 1969.
126
ANEXO C
QUADRO III - Igrejas matrizes arruinadas e necessitadas de sacerdotes
(1831-1868)
Matriz de Monção
Vila de São Bernardo
“Povoação de São José
e suas imediações”
Vila da Tutoia
Curato do Buriti
Freguesia de São João
Baptista de Vinhais
Freguesia de São
Joaquim da Bacanga
Matriz de São Bento
de Pastos Bons
Vila da Chapada na
margem do Grajaú
Vila do Brejo
São José da Vila de
Guimarães
São João de Cortes
Vila do Paço do
Lumiar
São José do Lugar dos
Índios e São Joaquim
do Bacanga
Cururupu e ItapecuruMirim
Vila do Rosário
Igreja Catedral
“[...] [seu] lamentável estado prova a necessidade de um Pároco, que vigie
sobre a conservação, decência, e ornato da casa do Senhor”. (Ofício de
11/06/1831)
“[...] falta socorros espirituais por não haverem sacerdotes que os
administrem, havendo somente um vice-pároco, que adoecendo, como
tinha acontecido, ou achando-se fora [...] careciam os povos da consolação
do Santo Sacrifício da Missa, e ainda do Sacramento da enfermidade”.
(Ofício de 23/02/1832)
“[...] estão privados dos socorros do Sacramento, porque o seu R. Pároco,
que é o da Vila de Caxias, não vai, nem manda outro Sacerdote em seu
lugar para lhes administrar o pasto espiritual, e [...] ficando a cargo dos
representantes pagar ao Sacerdote [...]”. (Ofício de 07/03/1833)
“[...] falta Sacerdote para a administração dos Sacramentos naquela
freguesia”. (Ofício de 04/03/1833)
“[...] a casa é grande, e os operários poucos”. (Ofício de 16/10/1833)
“[...] achei em um estado lamentável, porque não tendo Igreja alguma, o
altar se achava colocado em um edifício muito arruinado, que então servia
de cadeia”. (Ofício de 26/08/1837)
“[...] somente tem uma Igreja de palha, e por isso indecente para a
celebração do Santo Sacrifício da Missa”. (Ofício de 26/08/1837)
“[...] precisa de um sino”. (Ofício de 26/08/1837)
“[...] precisa de alguns ornamentos”. (Ofício de 26/08/1837)
“[...] falta sacerdotes”. (Ofício de 06/05/1837)
“[...] [precisa] ser edificada a Matriz [cujo] edifício ameaça grandes
ruínas”. (Ofício de 27/11/1840)
“A Matriz [é] [...] coberta de palha, e indecente para os ofícios Divinos”.
(Ofício de 27/11/1840)
“[...] ameaça ruína; além disso acha-se tão imunda que não devia
consentir, que nela se celebrasse os tremendos Mistérios da nossa Santa
Religião”. (Ofício de 03/04/1855)
“[...] não têm Igrejas; os Ofícios Divinos são celebrados em casas de
palha”. (Ofício de 03/04/1855)
“[...] os Vigários reformaram as Igrejas Matrizes de suas Freguesias, que
se achavam em completo estado de ruína, por meio de esmolas, e zelo, que
empregaram [...]”. (Ofício de 10/09/1862)
“[...] o estado de ruína da Igreja Matriz se acha a ponto de não poder de
forma alguma continuar a prestar-se ao alto fim, a que é destinada, sem
comprometimento da veneração e respeito, que todos devemos à Casa do
Senhor [...]”. (Ofício de 21/04/1865)
“[...] [seu] estado precário reclama melhoramentos”. (Ofício de
08/06/1868)
Fonte: Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Quadro elaborado pelo autor, São Luís, 2012.

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