Propor a beleza do Evangelho da Famí lia Pistas para uma reflexa o

Transcrição

Propor a beleza do Evangelho da Famí lia Pistas para uma reflexa o
Propor a beleza do Evangelho da
Família
Pistas para uma reflexao
1. A família no centro das atenções
Não é preciso estar muito atentos para percebermos que estamos a viver tempos
de profundas mudanças, algumas das quais podemos mesmo apelidar de
paradigmáticas.
Apesar desta constatação, não devemos, de modo nenhum, deixar-nos
aprisionar por uma sensação negativa. Em muitos outros momentos da história
da humanidade já passámos por situações de mudança e, apesar das
dificuldades e dos erros cometidos, fomos sendo capazes de encontrar o rumo
a trilhar. Agora, não pode ser também de outra maneira e todos somos
chamados a assumir responsabilidades.
Em certo sentido, este chamar-nos à responsabilidade, individualmente e
enquanto comunidade, certamente pode constituir um aspeto positivo do
momento histórico que estamos a viver, se soubermos ler as interpelações que
nos lança e tivermos a coragem de encontrar as respostas necessárias.
Na linha da leitura do momento histórico parece-me que tem toda a razão o Papa
Francisco no diagnóstico que faz da situação:
" O grande risco do mundo atual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de
consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e
mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência
isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver
espaços para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus,
já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer
o bem. Este é um risco certo e permanente, que correm também os crentes.."
(Evangelii gaudium 2).
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As palavras são duras, mas creio que reconheceremos com facilidade que são
certeiras, mesmo quando elas também são dirigidas aos cristãos. De facto, um
dos grandes riscos e problemas do nosso mundo é o egoísmo que encerra cada
pessoa em si mesma, tornando cada vez mais difícil o compromisso com o bem
e o cuidado dos outros.
Esta coragem de acertar no diagnóstico é acompanhada pela ousadia de uma
proposta concreta. Mais a frente, no nº 10 da Exortação, o Papa diz:
"A proposta é viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: «na
doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento.
De facto, os que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da
margem e se apaixonam pela missão de comunicar a vida aos demais.»"
O texto aponta com toda a clareza que o caminho a seguir passa pela
experiência do dom e do compromisso com o gerar vida. Ao percebermos esta
proposta ficam muito mais claras as constantes chamadas de atenção do Papa
Francisco para ao perigo da 'autorefencialidade' da Igreja e das comunidades
crentes, bem como os inúmeros convites à saída em direção de todas as
periferias geográficas e existenciais.
Se bem que os números anteriormente citados da Exortação Apostólica
Evangelii Gaudium não se refiram explicitamente à família julgo que não falto à
verdade, nem forço o pensamento do Papa, ao afirmar que, a partir do
diagnóstico feito e da proposta apresentada, se pode depreender com toda a
clareza a importância vital da família.
Na verdade, onde pode o ser humano fazer a primeira experiência da gratuidade
do dom que se dá ao serviço da vida? Não é na família que a vida se alcança e
amadurece como dom de outros? Não é no seu seio que fazemos a experiência
de ser cuidados e amados gratuitamente? Não é a família o 'lugar', a 'experiência'
e a 'realidade' mais adequada para aprender a linguagem do dom e da dádiva?
Se a resposta ao desafio do egoísmo, apela à dinâmica do dom, não parece,
então, possível outro caminho que não passe pela defesa, dignificação e
promoção da família.
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2. Um itinerário de trabalho em duas etapas
A convocação, pelo Papa Francisco, de um Sínodo dos Bispos para refletir
acerca dos «Desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização»
parece-me comprovar totalmente esta ideia. E se a temática escolhida para este
encontro já é por si só relevante, o itinerário e método de trabalho propostos
ainda reforçam mais a centralidade dada à família, uma vez que se trata de um
acontecimento a realizar em duas etapas. A primeira, uma Assembleia Geral
Extraordinária (a realizar entre 5 e 19 de outubro de 2014 em Roma), destinada
a especificar o 'estado da situação' e a recolher testemunhos e propostas para
anunciar de maneira fidedigna o Evangelho para a família; a segunda, uma
Assembleia Geral Ordinária (em 2015), em ordem a procurar linhas de ação
pastoral (cf. Documento preparatório, Cidade do Vaticano 2013).
A importância dada a esta reflexão fica, igualmente, bem atestada pela consulta
alargada que foi dirigida de uma maneira geral a todos os cristãos. É sabido que
na preparação dos Sínodos existe sempre um processo de consulta dirigido em
primeiro lugar aos episcopados, uma vez que se trata do Sínodo dos Bispos,
mas também a outros grupos de cristãos que estejam implicados na temática a
refletir. Desta vez o convite teve mesmo a dimensão da Igreja, e todos os cristãos
foram convidados a participar.
A partir do amplo material enviado à secretaria do Sínodo dos Bispos foi
elaborado um documento de trabalho (Instrumentum Laboris, 26 de junho de
2014) que servirá para favorecer o confronto e aprofundamento de ideias a
desenvolver durante os trabalhos da III Assembleia Geral Extraordinária.Tratase de um documento extenso e rico no qual se pode entrever, como
explicitamente se afirma na conclusão, as alegrias e as esperanças, bem como
as incertezas e os sofrimentos presentes nas observações recebidas.
Não vou fazer aqui uma apresentação do documento, partilhando algumas
reflexões sobre os conteúdos mais importantes. Apesar desse caminho ser
importante, prefiro trilhar um outro. Como já foi dito o papa propõe-nos um
itinerário em duas etapas, pelo que há um trabalho a desenvolver entre as duas
Assembleias Sinodais. Pois bem, sem querer tirar qualquer importância aos
trabalhos a decorrer nas Assembleias Sinodais, gostaria no entanto de sublinhar
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a igual importância do tempo que medeia entre as mesmas, onde todos os
cristãos, cada um ao nível das suas responsabilidades e capacidades, são
chamados a assumir o protagonismo. Nesse sentido atrevo-me a sugerir, a modo
de pistas, alguns critérios a ter em conta.
3. Assumir o protagonismo. Alguns critérios a ter em conta.
Testemunhar a misericórdia como centro do Evangelho - Se tivéssemos que
escolher uma chave para fazer a leitura de todo o Evangelho e de toda a
existência cristã, para muitos, entre os quais me incluo, essa chave seria a
misericórdia1. E quando me refiro à misericórdia não estou simplesmente a
sublinhar aquele sentimento de compaixão e de perdão. A misericórdia de Deus
certamente tem essa nota importantíssima, que jamais pode ser ignorada se
quisermos compreender o que é. Contudo, podemos ir ainda mais longe,
afirmando que a misericórdia divina é, em primeiro lugar, o amor e a ternura que
Deus gratuitamente nos tem por sermos seus filhos.
“Deus é acima de tudo Deus de ternura e por sê-lo é Deus de piedade,
compaixão e misericórdia. Ele olha em primeiro lugar o nosso ser de filhos
saídos das suas entranhas e fruto do seu amor; em segundo lugar compadecese da nossa pobreza e tem misericórdia da nossa debilidade; em terceiro lugar
oferece-nos o perdão dos nossos pecados. Esta é a ordem a partir da qual
devemos pensar Deus: Ternura, misericórdia e compaixão, perdão. Essas são
as suas entranhas […].”2
É a partir destas 'entranhas' que devemos falar e agir como cristãos. A
misericórdia é, então, aquela categoria a partir da qual todas as outras devem
ser pensadas e refletidas Quando falamos, por exemplo, da justiça divina,
devemos afirmar que a misericórdia é a maneira como se concretiza essa justiça,
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Entre as várias obras nas quais podemos encontrar esta reflexão destaco aqui duas, nas
quais me suporto para fazer as afirmações que se seguem. Walter Kasper, La misericordia.
Clave del Evangelio y de la vida cristiana = Presencia teológica 193, Sal Terrae, Santander
20132; Olegario González de Cardedal, La entraña del cristianismo, Secretariado Trinitário,
Salamanca 1997.
2 Olegario González de Cardedal, La entraña del cristianismo, 47-48.
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ou seja, a justiça de Deus é a sua misericórdia. Por aqui passa, em primeiro
lugar, o anúncio do Evangelho da Família.
Evitar o perigo dos reducionismos - Dos vários reducionismos a que aqui poderia
fazer referência destaco três: O primeiro já foi aludido e leva-nos a sublinhar as
duas etapas de que consta este percurso sinodal. A assembleia Sinodal que
agora vai ter lugar é umas das etapas e não a única, nem última, pelo que a
reflexão deve continuar. Além disso, o que agora principalmente se pretende é
perceber o ponto da situação e não já apresentar respostas definitivas, como se
tudo já estivesse decidido, ou fosse obrigatório mudar tudo. O segundo tem a
ver com as chamadas questões fraturantes, que, apesar de não poderem de
modo nenhum ser ignoradas, também não podem esgotar toda a reflexão.
Finalmente, o terceiro tem a ver com o próprio horizonte da reflexão, uma vez
que este não pode ficar reduzido ao interior da comunidade cristã. Não se trata
de impor aos que não são cristãos os nossos pontos de vista, nem assumir como
cristãos aqueles pontos de vistas que não são os nossos. Trata-se, isso sim, de
temos a consciência de que a família é uma realidade transversal a toda a
humanidade e que a proposta do Evangelho quer ser uma boa notícia para todos.
Propor a beleza do Evangelho - A proposta que fizermos, no âmbito do
Evangelho da família, deve sobretudo ser feita a partir da sua beleza e grandeza
e não principalmente a partir de considerações legalistas, por mais importantes
que elas sejam. Não nos podemos nunca esquecer, como afirma o Papa
Francisco, que os cristãos devem anunciar o Evangelho "não como quem impõe
uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte
maravilhoso, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por
proselitismo, mas «por atração»." (Evangelii gaudium 14)
Escutar o «sensus fidei», ler os «sinais dos tempos» - Se acreditamos no dom
do Espírito, que é dado aos cristãos pessoalmente e enquanto membros da
comunidade, e se acreditamos verdadeiramente na presença de Deus na história
das pessoas e do mundo, não podemos deixar de escutar e levar a sério, apesar
das fragilidades e da realidade do pecado, o sentido da fé que as suas
experiências de vida testemunham e as interpelações que nos são feitas através
da história.
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Primeirear, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar (Cf Evangelii gaudium
24) - Já certamente todos ouvimos falar nesta proposta de itinerário para uma
Igreja em saída. Ela também é válida para tudo o que se relaciona com a família.
Também neste âmbito, sobretudo naquelas situações e naquelas periferias mais
difíceis, somos chamados a tomar a iniciativa de ir ao encontro das pessoas,
envolvendo-as com a nossa ternura, testemunho e concretização da misericórdia
de Deus, acompanhando-as no meio das dificuldades, de modo que, a partir da
beleza do Evangelho da família, possamos todos encontrar os caminhos que
possibilitem frutificar e festejar.
Invocar o Espírito Santo - Numa carta dirigida às famílias (2 de fevereiro de 2014,
na festa da Apresentação do Senhor) o Para Francisco pede a todas as famílias
o apoio da sua oração, que apelida de tesouro precioso, para o bom desenrolar
dos trabalhos do Sínodo. Esta é certamente uma missão que todos os cristãos
podem e devem assumir neste momento.
4. A modo de conclusão
Quando olhamos para a própria palavra sínodo descobrimos na sua raiz os
elementos que nos podem ajudar a compreender melhor o seu significado (syn
juntos + hodos caminho). O Sínodo tem, pois, a ver com um caminho que é feito
em conjunto. Mas não se trata só de caminhar em conjunto, trata-se igualmente,
e está é também outra das acessões possíveis, de passar um limiar em conjunto.
O itinerário que nos é proposto em duas etapas, constitui certamente esta
possibilidade de fazermos a experiência de caminharmos em conjunto, e de em
conjunto passarmos este limiar da história, sem que ninguém seja excluído. Se
formos capazes de responder a este desafio, certamente seremos capazes de
amadurecer na fé e de levar a todos a beleza e a alegria do Evangelho.
Juan Francisco Ambrosio
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