Questões urbanas e direito à cidade no Brasil

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Questões urbanas e direito à cidade no Brasil
QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE NO BRASIL CONTRIBUIÇÃO PARA REFLEXÃO E DIÁLOGO SOBRE OPORTUNIDADES E DESAFIOS 1
DO DESENVOLVIMENTO URBANO NO BRASIL LUIZ KOHARA • SÃO PAULO • NOVEMBRO DE 2012 © Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
INTRODUÇÃO: ELEMENTOS DO CONTEXTO URBANO BRASILEIRO 1. ACESSO À MORADIA DIGNA 2. SUPERAÇÃO DAS SEGREGAÇÕES SOCIOTERRITORIAIS 3. LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA URBANA 4. JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL URBANA 5. FORTALECIMENTO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DOZE PRINCIPAIS DESAFIOS DO DIREITO À CIDADE NO BRASIL 1
Texto elaborado por Luiz Kohara com colaboração de Patrick Bodart e de contribuições dos parceiros da Misereor presentes ao encontro “Questões Urbanas e Direito à Cidade”. INTRODUÇÃO: ELEMENTOS DO CONTEXTO URBANO BRASILEIRO O processo de urbanização ocorrido no Brasil, a partir de meados do século XX, é um dos mais expressivos da história mundial. Nesse processo, foram determinantes, a crescente modernização do campo que concentrou a propriedade e expulsou posseiros e o abandono das famílias camponesas destituídas de política agrícola pública. Esse modelo de desenvolvimento, intencional, conjugou concentração da terra, atração do camponês para as cidades e suprimento de força de trabalho no processo de industrialização, sobretudo, no Sudeste. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1940, a população urbana representava 31,3% dos 41,2 milhões de brasileiros. Em 2010, dos 191,1 milhões de habitantes, 84,4% viviam nas cidades. Em números absolutos, pode-­‐se perceber a dimensão dessa acelerada urbanização. Em 1940, a população urbana era de 12,9 milhões de pessoas, enquanto que, em 2010, era de 160,9 milhões, representando incremento populacional de 148 milhões de pessoas. O gráfico 1 mostra a evolução da população urbana e rural de 1900 a 2010. Gráfico 1 QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 2 DE 42 Esse gigantesco crescimento populacional urbano provoca uma nova dinâmica na sociedade com o surgimento de milhares de novas cidades. Em 1940, o Brasil contabilizava 1.574 municípios e, em 2010, 5.565 municípios. Nesse processo, houve a transformação de cidades pequenas e médias em grandes conglomerados urbanos. Ainda que haja desaceleração do crescimento populacional das grandes cidades, registrada pelo IBGE no Censo 2010, as 15 maiores metrópoles brasileiras, conforme Tabela 1, concentravam mais de 70 milhões de habitantes, representando 43% da população urbana. Tabela 1 – População das 15 maiores metrópoles brasileiras Região Metropolitana População (IBGE 2010) 1 São Paulo – SP 19.683.975 2 Rio de Janeiro – RJ 11.835.708 3 Belo Horizonte – MG 5.414.701 4 Porto Alegre – RS 3.958.985 5 Recife – PE 3.690.547 6 Fortaleza – CE 3.615.767 7 Salvador – BA 3.573.973 8 Curitiba – PR 3.174.201 9 Campinas – SP 2.797.137 2
10 Distrito Federal 3.717.728 11 Goiânia – GO 2.173.141 12 Manaus – AM 2.106.322 13 Belém – PA 2.101.883 14 Grande Vitória – ES 1.687.704 15 Baixada Santista – SP 1.664.136 Total 71.195.908 Os milhões de novos moradores chegam às cidades com a necessidade de um local para morar – um pedaço de terra. Assim, a terra urbana passa a ser cada vez mais disputada, agregando maior valor conforme a qualidade de sua localização, tornando-­‐se uma mercadoria caríssima. Na medida em que se transforma em um insumo para obtenção do lucro, o espaço urbano pauta sua ocupação em interesses econômicos desvinculados de questões sociais e ambientais e de qualquer planejamento público. 2
O IBGE denomina como Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 3 DE 42 O crescimento populacional e a construção das cidades ampliam as demandas de serviços públicos, como moradia adequada; trabalho; transporte; saneamento; energia elétrica; água potável; saúde; educação; creche e segurança. No início do processo de urbanização, as instituições públicas, em todas as esferas de poder, além de não estarem preparadas para atender às demandas sociais que se acumulavam não as reconheciam como um direito social e como de responsabilidade do Estado. Essa situação tornou-­‐se mais grave pelo modo patrimonialista e clientelista de funcionamento do Estado brasileiro. Exemplos, disso, são as formas de direcionamento dos investimentos públicos, subordinadas aos interesses do setor privado, em especial, o imobiliário. Os direitos sociais são atendidos como favores políticos assistenciais, demonstrando a falta de democracia na gestão pública. Retomando, a urbanização da sociedade brasileira se deu com o deslocamento massivo dos pobres das zonas rurais para as cidades sem estrutura para acolhê-­‐los e prepará-­‐los para o mercado de trabalho. Essa expansão urbana ocorreu com a exploração da mão de obra dos trabalhadores que recebiam baixos salários e com a excessiva valorização da terra urbana não controlada pelo Estado. A combinação desses processos contribuiu, de forma decisiva, para concentração da riqueza, desigualdade econômica e segregação socioterritorial. A dissociação entre desenvolvimento econômico, urbano e social que marcou a história do Brasil fez com que o País apresentasse um dos maiores índices de desigualdade social do planeta. Apesar de o Brasil possuir o 6º maior Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, conforme o relatório do Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do País, em 2011, situava-­‐se no 84º lugar. Essa discrepância também está expressa nas desigualdades socioterritoriais das cidades e regiões brasileiras. É notável que a expressiva modernização da sociedade brasileira refletida nas suas cidades seja acompanhada por uma também expressiva realidade de precarização urbana e situações de pobreza já existentes no início do século XX. As contradições sociais e o caos urbano sempre foram motivos de indignação e de insatisfação de diversos setores da sociedade que se ocupavam da questão, como os sem-­‐
teto; favelados; moradores de cortiços; pesquisadores de universidades; militantes políticos; membros de ONGs e agentes públicos, entre outros. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 4 DE 42 A partir da década de 1970, setores populares retomaram as mobilizações sociais urbanas com o objetivo de alterar esse quadro social e se expandiram por todo o País. As mobilizações e reivindicações iniciaram-­‐se, a partir de problemas pontuais, como asfaltamento de ruas; construção de postos de saúde nos bairros; creches para as crianças; linhas de ônibus até os bairros das periferias; regularização da posse da terra em loteamentos clandestinos e instalação de redes de água, esgoto e luz para as favelas. Essas lutas começaram a explicitar a contradição existente nas cidades. De um lado, a cidade “formal” ou “legal” que sempre concentrou os investimentos privados e públicos disponíveis e, do outro, a cidade “informal” ou “ilegal”, que se expandiu à margem da legalidade, como por exemplo, favelas e loteamentos irregulares. Muitas vezes, essas moradias populares situadas em áreas de proteção ambiental ou de riscos apontavam que, para além das melhorias pontuais, eram necessárias mudanças estruturais na forma de uso e ocupação do solo urbano. Nessa direção, as lutas urbanas passaram a incorporar as várias demandas relacionadas ao desenvolvimento urbano com a perspectiva de que todos os cidadãos independentemente de suas condições sociais, deveriam ter acesso aos benefícios produzidos e existentes na cidade. Com essa agenda, a luta pelo direito à cidade e pela reforma urbana tornou-­‐se referência para movimentos e entidades comprometidas com uma cidade mais justa e sustentável no Brasil. Nas últimas décadas, o País conquistou muitos avanços nas áreas sociais que podem ser observados por seus indicadores3, entre os quais se destacam: •
A queda da mortalidade infantil de bebês de até 1 ano da idade que, em 1970, era de 120,7 para cada 1.000 nascimentos, em 2010, este número recuou para 15,6; •
A expectativa de vida que, em 1970, era de 57,6 anos, em 2010, foi para 73,4 anos; •
O analfabetismo de pessoas acima de 15 anos, em 1970, era de 33,6, em 2010, diminuiu para 9,6%; •
O aumento real no valor do salário-­‐mínimo de 65,95%, no período de 2002 a 2012. Conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada4 (IPEA), entre 1995 e 2008, 13,1 milhões de pessoas saíram da condição de pobreza extrema (rendimento médio domiciliar per capita de até um quarto de salário-­‐mínimo por mês) e 12,8 milhões de 3
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Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Comunicado nº 58, de julho de 2010 – Dimensões, evolução e projeção por região e estados do Brasil. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 5 DE 42 pessoas saíram da condição de pobreza absoluta (rendimento médio domiciliar per capita de até meio salário-­‐mínimo mensal). Em termos percentuais, nesse período, a taxa da pobreza extrema caiu de 20,9% para 10,5% da população, enquanto a de pobreza absoluta passou de 43,4% para 28,8%. Nesses parâmetros, em 2008, 19,9 milhões de pessoas encontravam-­‐se na pobreza extrema e 53,9 milhões na pobreza absoluta. Vale ressaltar que esses indicadores representam médias, portanto, não apontam as grandes diferenças entre as regiões, segmentos sociais e nem de raça e gênero. Para exemplificar, em 2008, o índice de pobreza extrema no estado de Alagoas era de 32,3% e o estado de Santa Catarina de 2,8%. A melhoria na renda tem sido pouco significativa em relação aos índices de desigualdade de renda no Brasil, que se mantêm elevados. Na questão urbana, existem muitos avanços acumulados, tanto no marco legal, como na democracia participativa e na efetivação de direitos. Na Constituição Federal de 1988, há vários artigos que reconhecem direitos sociais e estabelecem a função social da propriedade e a gestão das políticas públicas com a participação da sociedade. O Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, concebeu a cidade como lugar para o desenvolvimento social e definiu a necessidade de planos diretores para as cidades com mais de 20 mil habitantes. Em 2003, foi criado o Ministério das Cidades, que vem implementando programas urbanos. Nos estados e municípios foram aprovadas diversas leis de desenvolvimento urbano e vários programas foram implementados na área de habitação, saneamento, meio ambiente e mobilidade urbana. As inúmeras administrações públicas populares comprometidas com as questões sociais, além de terem realizado diversas experiências de inclusão social, trouxeram novas formas de gestão pública, como o Orçamento Participativo, conselhos e audiências públicas. Apesar dos avanços conquistados em várias áreas sociais, as populações pobres urbanas das cidades brasileiras convivem, ainda, com muitos problemas que se mantiveram ao longo dos anos ou até mesmo aumentaram. Fazem parte do cotidiano das cidades brasileiras, problemas de incêndios nas favelas; despejos de comunidades; pessoas vivendo nas ruas; mortes devido às enchentes e desmoronamentos; famílias sobrevivendo do lixo; crescimento dos índices da violência e dos homicídios de jovens pobres; controle de territórios pelo tráfico ou por milícias; caos nos transportes públicos e QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 6 DE 42 pessoas abandonadas sem atendimento de saúde. Os problemas elencados, entre tantos outros, não acontecem de forma isolada, muitos deles se sobrepõem. A grande concentração fundiária, a falta de controle sobre o uso do solo e a especulação imobiliária são aspectos estruturais que agravam os problemas urbanos. Mesmo com o aumento de renda, os mais pobres não têm conseguido acessar moradia adequada devido à valorização imobiliária urbana que tem acumulado índices muito superiores aos obtidos pelos salários. Isso mostra que enfrentar os problemas urbanos, necessariamente, conduz à luta pela distribuição justa da terra urbanizada. Outro problema grave existente nas grandes cidades brasileiras refere-­‐se aos megaprojetos de infraestrutura, justificados por serem obras de melhorias urbanas. No entanto, a forma pela qual elas estão sendo implementadas tem provocado remoção parcial ou total de assentamentos populares. Exemplos dessas situações são as obras do Rodoanel em São Paulo, realizadas com recursos do Governo do Estado de São Paulo, do Programa de Aceleramento do Desenvolvimento (PAC) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), planejadas para contribuir na melhoria do trânsito urbano. No entanto, os traçados atingiram diversas comunidades populares que vêm sendo removidas para regiões distantes, sem falar dos impactos ambientais danosos. Isso tem ocorrido em várias cidades brasileiras. A realização dos megaeventos no Brasil, como a Copa do Mundo FIFA de 2014 em doze cidades e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, tem exigido reconfigurações das cidades-­‐sedes conforme padrões estabelecidos pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) e pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Essas organizações buscam atender interesses de lucros das empresas associadas a elas. Os megaeventos têm sido utilizados pelos governos e pelo capital imobiliário para desalojar a população de baixa renda e para se apropriarem de áreas valorizadas. Um dos exemplos são as ampliações dos viários ou construções de Veículos Leves sobre Trilhos (VLT) para locomoção dos visitantes entre os aeroportos e estádios. Em função dos megaeventos, foram definidas prioridades emergenciais que além de não contribuírem para a mobilidade urbana dessas cidades e provocarem remoções dos assentamentos populares, os moradores ficam sem atendimento habitacional adequado. Isso ocorre em todas as cidades-­‐sedes, como se vê pelas denúncias do Comitê Popular Atingidos pela Copa 2014; da Relatoria do Direito á Moradia da ONU; da Relatoria QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 7 DE 42 do Direito à Cidade; do Fórum Nacional da Reforma Urbana e da publicação “Na Sombra dos Megaeventos – exceção e apropriação privada” 5. Nesta reflexão, consideramos que as questões urbanas mais importantes se concentravam na noção de direito à cidade, no sentido de garantir um melhor acesso às cidades para todos os cidadãos de maneira mais equitativa, o que nos levou a aprofundar cinco linhas essenciais: •
Acesso à moradia digna. •
Superação das segregações socioterritoriais. •
Luta contra a violência urbana. •
Justiça socioambiental. •
Fortalecimento da gestão democrática das políticas públicas. Para cada um desses aspectos, serão destacados a seguir, elementos de diagnostico, avanços, experiências de referência e principais desafios. 5
Produzida pela Justiça Global e Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS). QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 8 DE 42 A exclusão social da juventude e o desenvolvimento urbano Dentre os vários segmentos sociais que sofrem violações do direito à cidade, destaca-­‐se a juventude, porque quando verificados os avanços ocorridos no Brasil, os resultados com relação aos jovens são inferiores ao conjunto da sociedade. Por ser entendida como fase em transição, há poucas políticas públicas específicas para juventude. O relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) intitulado “O Direito de Ser Adolescente”, apresentado em 2011, relata que os adolescentes são mais vulneráveis que outros segmentos da população. Este relatório aponta o agravamento de problemas ligados ao trabalho precário, à dependência química, ao abuso sexual e aos homicídios. Os dados demonstram que, em relação aos adolescentes, a situação de miséria cresceu mesmo em períodos em que houve decréscimo da miséria na população geral. Se, de um lado, a universalização das crianças matriculadas na primeira série é bastante satisfatória, por outro, é grave o processo da evasão escolar, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Com base de dados de 2008, a pesquisa aponta que 44% dos adolescentes entre 15 e 17 anos não concluíram o ensino fundamental, que é obrigatório pela Constituição Federal. Esse percentual é mais grave quando referente a famílias de menor renda e por região do Brasil. Conforme o Mapa da Violência 2012 “Crianças e Adolescentes do Brasil”, divulgado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-­‐americanos (Cebela), desde 1980, o homicídio de jovens até 19 anos cresceu 376%. Como a problemática da juventude reflete as contradições dos processos de desenvolvimento urbano brasileiro e perpassa outras temáticas da exclusão social urbana, esta é uma dura realidade a ser enfrentada. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 9 DE 42 1. ACESSO À MORADIA DIGNA Moradia digna não é a realidade de milhões de pessoas que ainda vivem em habitações inadequadas, apesar de ser um elemento fundamental para o desenvolvimento humano, expresso no artigo 6º da Constituição Federal como um direito social, e o Brasil ser signatário de acordos internacionais que reconhecem o direito à moradia. A moradia para ser digna é muito mais que um bom abrigo. É necessário que seja segura física e socialmente e possua infraestrutura adequada como, por exemplo, água, luz, esgoto e coleta de lixo. É fundamental que ela seja bem localizada com acesso aos serviços públicos e às oportunidades para o desenvolvimento de todas as dimensões da vida. Quando se fala em problema da moradia, é necessário considerar, inicialmente, duas dimensões 6 : os déficits quantitativo e qualitativo referentes a favelas, cortiços, moradias em áreas de risco, loteamentos irregulares e clandestinos e outras situações de moradia precária. O déficit quantitativo representa quantas novas moradias precisam ser construídas. Ele é calculado, considerando famílias que coabitam por impossibilidades de terem moradias independentes; famílias que gastam parcela excessiva da renda familiar com aluguéis; famílias que residem em moradias precárias sem condições de adequação e novas famílias que se formam. O déficit qualitativo é calculado pela inadequação da moradia e significa a quantidade de moradias que precisam ser readequadas. Este é calculado considerando as habitações que apresentam, pelo menos, uma das seguintes condições: infraestrutura insuficiente, adensamento excessivo, falta de banheiro no domicílio, irregularidade fundiária e posse insegura. Em termos da dimensão do problema, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 2007, o déficit da habitação era de 6.273 milhões e a inadequação das moradias atingia cerca de 6
Os conceitos de déficit quantitativo e déficit qualitativo utilizados neste trabalho foram desenvolvidos pela Fundação João Pinheiro e são os mesmos adotados pelo Ministério das Cidades. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 10 DE 42 15 milhões de domicílios. Das famílias que compõem o déficit habitacional, 84% delas ganhavam até três salários-­‐mínimos. Dados do Censo do IBGE 2010 revelaram que, entre 2000 e 2010, a população favelada cresceu 75%, enquanto que a população brasileira aumentou apenas 12,3%. Conforme dados da Prefeitura de São Paulo, o número da população em situação de rua na cidade que, em 2000, era de 8.706 pessoas7, foi para 14.478 pessoas8, em 2011. A princípio, esse aumento parece contraditório, considerando que, nesse período, o País acumulou índices de crescimento da economia. No entanto, essa informação contribuiu para o entendimento de que a valorização imobiliária superou o crescimento da renda da população de baixa renda, agravando a questão habitacional. Outro aspecto, também contraditório frente ao déficit habitacional existente, é o número de domicílios vazios no País que superava seis milhões de unidades em 2010. De forma simplificada, poder-­‐se-­‐ia dizer que não há falta de moradia, mas distribuição desigual das moradias. É reconhecido por pesquisadores e militantes da área que a problemática da moradia está intrinsecamente ligada à valorização e à especulação da terra urbana. Isso aponta que apenas o aumento do rendimento não é condição suficiente para que a população de baixa renda tenha acesso à moradia digna no mercado. Em relação à atuação do Estado, somente a partir de 1938, o Brasil passou a ter programas nacionais por meio de corporações e sindicatos de trabalhadores para intervenção na problemática habitacional. Por meio de financiamento de habitação para a camada com baixa renda, entre 1938 e 1964, foram produzidas 120 mil unidades habitacionais, número muito aquém das necessidades da época. No período de 1964 a 1982, havia o Plano Nacional de Habitação, desenvolvido pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo que tinham o objetivo de financiar a aquisição da casa própria, especialmente para a população de menor renda. Os recursos do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) eram 7
“Primeiro Censo dos Moradores de Rua da cidade de São Paulo” foi realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Socioeconômicas (FIPE) mediante contrato estabelecido com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (2000). 8
“Censo e caracterização socioeconômica da população em situação de rua na municipalidade de São Paulo” foi realizado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) mediante contrato estabelecido com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (2011). QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 11 DE 42 provenientes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE -­‐ cadernetas de poupança). O BNH, que chegou a ser o segundo maior banco do País, tinha como proposta inicial a produção de moradias para segmentos da sociedade com renda entre 1 e 5 salários-­‐mínimos. Até 1980, o BNH produziu 360 mil unidades para essa faixa de renda, isto é, 8% do total de 4,5 milhões de unidades financiadas por esse banco no período de quase 20 anos de funcionamento. Na prática, o SFH acabou privilegiando a indústria da construção civil, que produziu obras de infraestrutura e moradias para estratos médios e altos, em prejuízo das camadas mais vulneráveis. Após o período do BNH, não houve política nacional de habitação, mas programas pontuais realizados de forma desarticulada pelo governo federal, estados e municípios, ampliando ainda mais o problema de moradia no Brasil. Os setores populares atingidos pela problemática da moradia passaram a se expressar, com destaque nacional, a partir do final da década de 1970. Foram importantes as mobilizações dos mutuários do BNH que não conseguiam pagar os altos custos das prestações, dos moradores em áreas de loteamentos irregulares que não conseguiam a regularização de suas moradias e dos moradores de favelas que reivindicavam o direito ao acesso à terra, à água e à luz. Com a ampliação e o agravamento dos problemas habitacionais, a falta de política habitacional, a crise econômica da década de 1980 e o fim da ditadura militar, cresceram as organizações dos sem-­‐teto que não conseguiam pagar os aluguéis. Em decorrência surgiram ocupações massivas e organizadas com a finalidade de conquistar acesso à terra por meio de presença importante dos movimentos urbanos que passaram a reivindicar coletivamente o direito à moradia digna. Em 2003, foi criado o Ministério das Cidades com o objetivo de enfrentar a problemática urbana, de forma articulada e integrada entre os setores da habitação, do saneamento e dos transportes em parceria com os governos estaduais e municipais. Como a sua criação, setores organizados da sociedade civil que lutavam pela reforma urbana e pelo direito à cidade participaram da elaboração de propostas no âmbito desse ministério. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 12 DE 42 Na cidade de São Paulo, em 2003, a Prefeitura iniciou experiência de Programa de Locação Social que atende atualmente cerca de 700 famílias em cinco empreendimentos. Em 2005, foi criado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) pela Lei 11.124/05. Em 2009, o governo federal lançou o Programa Minha Casa Minha Vida 1 (PMCMV 1) para produção de um milhão de moradias e, no ano seguinte, lançou o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV 2), para a produção de dois milhões de moradias até 2014. Esse programa respondeu aos interesses do setor imobiliário com grandes subsídios para facilitar o acesso de seu público beneficiário. No Brasil, diferentemente das experiências de muitos países, em particular, as europeias, as políticas de habitação de interesse social sempre tiveram como forma de acesso, a propriedade da moradia. A aquisição da moradia serve de garantia para a velhice devido aos baixos valores da aposentadoria. Além disso, a ideologia da casa própria foi reforçada pelo BNH no período do regime militar. ALGUNS AVANÇOS Os movimentos de moradia tornaram-­‐se um dos atores sociais mais importantes na luta urbana, realizando denúncias, manifestações públicas, ocupações de imóveis vazios e ações no Ministério Público e na Defensoria Pública. Com apoio de ONGs, de técnicos e de pesquisadores, eles pressionavam todas as esferas e instâncias de governo para o comprometimento com a questão da moradia. Esses movimentos passaram a se articular nacionalmente e em suas cidades para fortalecer a luta pelo direito à moradia digna e à reforma urbana. A participação dos movimentos e de outros segmentos da sociedade civil nos espaços institucionais, como conferências, fóruns e conselhos tem sido um fator importante para muitos avanços. Apesar dos limites desses espaços, é preciso articular ações com os setores populares organizados que possuem maior capacidade de pressão social. É uma luta que tem sido árdua, agravada pela criminalização de muitas lideranças, inclusive, pela grande mídia, cuja atitude preconceituosa nem sempre é reconhecida pela sociedade em geral. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 13 DE 42 Nas duas últimas décadas, ocorreram muitos avanços significativos na questão da moradia e no direito à cidade para todos. Destaca-­‐se a campanha nacional para assinatura da proposta de emenda popular para a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Depois de 14 anos de tramitação no Congresso Nacional, este fundo foi aprovado, em 2005, após a criação do Ministério das Cidades (2003), a elaboração do Estatuto da Cidade (2001) e a constituição de muitos programas e legislação no âmbito federal, estadual e municipal. São expressivos os avanços em questões que, anteriormente, não eram reconhecidas e nem mesmo pautadas pelos governos. Hoje já são realidades concretas em muitas cidades, como os subsídios para a habitação popular; a urbanização de favelas; a concessão real de uso de áreas públicas para moradia; a regularização fundiária; a moradia nas áreas centrais; a produção de moradias por autogestão; os conselhos de habitação em várias instâncias governamentais e as conferências nacionais de habitação. Apesar desses avanços na questão da moradia, a forma de encaminhamento pouco participativa dos programas habitacionais não tem atendido ao conjunto das reivindicações populares. Enquanto, se construía o Sistema Nacional de Habitação com a participação popular e os movimentos reivindicavam recursos para o Fundo Nacional de Habitação Interesse Social (FNHIS), o Governo Federal, em 2009, lançava o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Essa iniciativa procurou enfrentar a crise econômica internacional e atender aos interesses do setor imobiliário, disponibilizando recursos para produção de um milhão de moradias9. Nesse momento, já estava em andamento a campanha nacional para que a função social da propriedade fosse aplicada pelos municípios e para a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC/285/08), tendo em vista garantir de recursos permanentes para a moradia. DESAFIOS 9
Ver texto “Uma visão crítica do programa Minha Casa Minha Vida: oportunidades, dificuldades, riscos e propostas” elaborado pelo Patrick Bodart que aprofunda questões sobre o PMCMV. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 14 DE 42 O problema da moradia no Brasil é muito grave e apresenta inúmeros desafios ainda a serem superados, tais como: Em relação às políticas públicas de habitação •
Implementação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) para o enfrentamento da problemática habitacional no aspecto quantitativo e qualitativo a curto, médio e longo prazo, assegurando o controle social com a participação dos movimentos populares em todas as instâncias governamentais. •
Aportes de recursos do PAC e do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) ao SNHIS. •
Medidas de adequação de programas existentes, como a ampliação do PMCMV para o atendimento de famílias com renda de até três salários-­‐mínimos com moradias bem localizadas e com infraestrutura adequada. •
Regulamentação e implementação, em todas as esferas de governos, dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, como ZEIS10, direito de preempção11, parcelamento compulsório, dentre outros. o Medidas para assegurar Habitação de Interesse Social (HIS) nas áreas centrais, que possuem infraestrutura consolidada e maior disponibilidade de serviços públicos e de empregos. o Estoque de terras públicas nas áreas centrais das cidades destinadas à produção de HIS. o Demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) nas áreas centrais; o Aumento de subsídio para a construção de HIS em áreas centrais; o Utilização de terras ou prédios vazios públicos ou privados, por meio de indicador de “retenção especulativa”. •
Aquisição de terras ou de edifícios sem função social para produção de HIS pelos municípios, conforme estabelece a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade. 10
ZEIS é um instrumento previsto no Estatuto da Cidade, que estabelece a obrigatoriedade de construção de HIS. São áreas demarcadas no território de uma cidade para assentamentos habitacionais de população de baixa renda. As ZEIS devem estar previstas no Plano Diretor e na Lei de Zoneamento e podem ser áreas já ocupadas por assentamentos precários e em terrenos vazios. 11
Se o município tiver especial interesse em adquirir imóveis em determinada região, poderá delimitá-­‐la em lei específica e, nos cinco anos seguintes, terá direito de preempção, ou seja, preferência na compra de .
qualquer imóvel que venha a ser vendido naquela área. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 15 DE 42 •
Garantia da participação de famílias na elaboração e implementação de projetos de urbanização de favela. •
Implementação da lei que garante o direito de assessoria técnica pública gratuita para as associações de moradores. •
Criação de mecanismos para que famílias “beneficiadas” com HIS tenham condições econômicas para arcar com os custos de manutenção na pós-­‐ocupação, como tarifas de água, luz e outros serviços, viabilizando assim a permanência nessas moradias. Em relação à sociedade civil •
Fortalecimento de entidades e de atores sociais que lutam por moradia digna para aumentar a capacidade de intervenção. •
Fortalecimento e mobilização para aprovação da PEC 28512, que assegura percentual dos recursos públicos orçamentários em todos os níveis de governos. •
Aprofundamento do entendimento e das perspectivas em relação a: o Propriedade coletiva da terra; o Política de regularização fundiária com alternativas diversas, além da propriedade privada particular; o Propostas de cidade que queremos; o Conceito de moradia digna; o Acesso à moradia digna por meio da propriedade coletiva e pública. •
Formação política para a autogestão. Experiências de alternativas a serem ampliadas e incentivadas •
Produção habitacional por autogestão. •
Garantia do acesso à terra e fortalecimento dos processos de regularização fundiária. •
A propriedade coletiva como uma das alternativas nos programas habitacionais de autogestão. •
Acesso aos imóveis públicos para produção habitacional. 12
PEC 285 – Projeto de Emenda Constitucional que estabelece percentual fixo dos orçamentos federal, estaduais e municipais, que deverão ser destinados para habitação de interesse social. Há um movimento de diversos setores da sociedade apoiando essa proposta. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 16 DE 42 •
Defesa de famílias e comunidades ameaçadas por reintegração de posse e deslocamentos forçados. •
Implementação da Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos. •
Defesa de moradia e proteção de inquilinos de áreas centrais ou de áreas com infraestrutura urbana consolidada. •
Implementação e consolidação de programas de aluguel social. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 17 DE 42 2. SUPERAÇÃO DAS SEGREGAÇÕES SOCIOTERRITORIAIS A segregação de pobres e de grupos mais vulneráveis é uma realidade bastante arraigada na formação cultural e social do Brasil. Ela vem se fazendo, desde o início da colonização, na forma de apropriação da terra, na utilização legal do trabalho escravo e na exploração da mão de obra dos trabalhadores. Baixos salários e trabalho precário perpassaram todo o processo da urbanização brasileira. Para a manutenção dos privilégios da classe dominante, foi imposta à sociedade brasileira uma ideologia na qual o direito dos cidadãos está relacionado ao maior ou menor poder aquisitivo. Essa perspectiva introduz a ideia de que a realidade da pobreza faz parte natural dos processos de desenvolvimento do País. Dessa forma, injustiças de qualquer natureza contra os pobres, políticas clientelistas e desigualdade nas condições das moradias são justificáveis. Esses processos que se intensificam concomitantemente geram valores que fragilizam as resistências populares e fragmentam as lutas por mudanças sociais. A cidade como espaço de mercado, poder e urbanidade nunca foi lugar dos pobres, da mesma forma que a terra também não era destinada a eles. Vale retomar, que a acelerada urbanização brasileira se deu, nesse contexto, fazendo com que as cidades brasileiras reproduzissem as terríveis desigualdades em seus territórios. A segregação socioterritorial é uma característica existente em praticamente todas as cidades brasileiras e se apresenta em diferentes dimensões. É mais visível nas cidades médias e metrópoles pela intensidade dos conflitos aí gerados. A estruturação urbana tem sido orientada por interesses do capital imobiliário, inseridos no Estado brasileiro. Esses interesses têm o poder de controlar as melhores localizações, interferir nas mudanças do uso e ocupação do solo, especular áreas vazias e lucrar com as valorizações do entorno dessas áreas. Os processos de expulsão da população de baixa renda de áreas valorizadas são, portanto, constantes e se fazem por meio de despejos ou pela valorização imobiliária que dificulta sua permanência no local. Cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador possuem muitas experiências de expulsão de população moradora de cortiços e de favelas localizados nas QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 18 DE 42 áreas centrais para outras regiões onde o mercado imobiliário não possui interesse. Essas ações são comuns na efetivação de planos de revalorização dos espaços urbanos centrais. A valorização das terras urbanizadas impede o acesso das pessoas de baixa renda, restando a esses segmentos vulneráveis assentarem suas moradias em áreas que não possuem serviços públicos de saúde, educação, transporte, lazer, segurança; quando existentes esses serviços são de baixa qualidade. Os custos e as deficiências dos transportes públicos têm contribuído para agravar a segregação socioterritorial, limitar a mobilidade urbana das pessoas que possuem baixa renda e dificultar o acesso aos empregos. Nas metrópoles, grande parcela dos trabalhadores de baixa renda gasta diariamente mais de três horas na locomoção entre moradia e trabalho. Em São Paulo, por exemplo, cerca de 3,8 milhões de pessoas circulam diariamente pelo centro da cidade, em razão da concentração de postos de trabalho e de serviços nessa região; essa situação se repete em outras cidades brasileiras. As pessoas que residem em áreas segregadas socialmente vivem com maior risco de sofrerem homicídios, especialmente, os jovens. Para exemplificar, o levantamento realizado pelo Programa de Aprimoramento das Informações da Mortalidade do Município de São Paulo (PRÓ-­‐AIM) da Secretaria Municipal de Saúde, divulgado em dezembro de 2007, mostrou que os bairros onde há maior concentração de pobreza e menor presença do Estado são aqueles que apresentam os maiores índices de homicídios. Comparando situações extremas de dois distritos localizados na Zona Sul de São Paulo, tem-­‐se que, no período de 2003 a 2007, enquanto o distrito de Grajaú, segregado do ponto de vista socioterritorial registrou 914 assassinatos, no distrito de Moema, onde vivem famílias de classe média alta foram registrados sete assassinatos. Nessa comparação “ilustrativa” numérica, entre os distritos de Grajaú e Moema, em São Paulo, verifica-­‐se que, conforme a localização da moradia, uma pessoa pode ter o risco de ser assassinada aumentado até 130 vezes. Nos últimos recenseamentos do IBGE, os resultados têm revelado que o incremento populacional é muito superior nos distritos das periferias ou cidades-­‐
dormitórios com pouca infraestrutura, comparado ao dos distritos que possuem infraestrutura consolidada. Isso aponta que a segregação socioterritorial vem crescendo. A ausência do Estado nos territórios e a falta de perspectivas deixam os jovens vulneráveis a processos sociais de maior violência e exclusão social. Muitos são QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 19 DE 42 facilmente recrutados para a criminalidade, principalmente, pelo tráfico de droga e pelas milícias. Os jovens pobres de áreas segregadas têm sido as principais vítimas da “Segurança Pública”, tornando-­‐se a maior parte da população carcerária. Apesar de a infraestrutura urbana e de serviços públicos terem sido ampliados para os bairros periféricos, a partir de lutas sociais, a superação da segregação socioterritorial tem avançado pouco. Os investimentos públicos estão muito aquém das necessidades dos serviços implementados, tanto nos aspectos quantitativos como qualitativos. Diversas pesquisas públicas e privadas apontam que os serviços de saúde localizados nas periferias apresentam baixa qualidade, bem como seus usuários denunciam cotidianamente na mídia a falta de médicos, de equipamentos e de remédios em postos de saúde e em hospitais. Em relação à educação, esta situação se repete porque os piores resultados são das escolas localizadas na periferia, de acordo com avaliações do Ministério da Educação e dos governos locais. O enfrentamento da problemática da pobreza urbana, exclusão e desigualdade social passa pela superação da segregação socioterritorial. ALGUNS AVANÇOS Há pouca intervenção de políticas públicas com dimensão territorial, sendo que ações existentes são enfrentadas de forma pontual e desarticulada. As experiências mais exitosas são aquelas realizadas em áreas, nas quais houve intervenção do Estado de forma conjunta e articulada, incluindo segurança pública; melhoria da infraestrutura de luz, água, asfaltamento, iluminação; ampliação das ruas; produção das moradias; construção de áreas de lazer e cultura com a participação da comunidade local. O essencial é o envolvimento da comunidade de forma organizada em todas as ações. A atuação multidisciplinar de ONGs também tem contribuído para a superação da segregação socioterritorial, como ocorreu na Favela de Heliópolis em São Paulo. Há vários trabalhos em bairros segregados direcionados para inserção social da juventude nos quais foram obtidos resultados bastante significativos. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 20 DE 42 DESAFIOS Na busca da superação da segregação socioterritorial, há muitos desafios do ponto de vista de objetivos a atingir, tais como: Sensibilizar o tema das segregações socioterritoriais e fortalecer atores sociais •
Articulação dos trabalhos para superação da segregação socioterritorial para troca de aprendizado, estratégias e metodologias. •
Proteção de Zonas de Interesse Social (ZEIS). •
Fortalecimento de iniciativas populares relacionadas à identidade cultural de grupos fragilizados e marginalizados. •
Fortalecimento das lutas dentro dos territórios, em especial, as ocupações dos movimentos organizados. •
Enfrentamento das políticas higienistas que expulsam a população pobre de áreas centrais ou valorizadas. Incentivar a gestão territorial integral por meio de diálogo e ações conjuntas entre atores distintos de um mesmo território •
Fortalecimento dos trabalhos de gestão territorial e inclusão social no território, por meio de políticas específicas para crianças, adolescentes e jovens adultos. •
Ampliação dos trabalhos de “território da cidadania”, com ações intersetoriais, como por exemplo, rádio comunitária, atividades para jovens, creches, serviços de saúde e cultura. Desenvolver projetos de melhoria de bairros •
Incentivo a programas e ações para o desenvolvimento local com geração de trabalho e renda. •
Fortalecimento das lutas para levar os serviços públicos de qualidade para áreas sem serviços. •
Criação de planos de bairros com participação popular, inserindo questões como espaços públicos, lazer, esportes, emprego e serviços sociais. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 21 DE 42 •
Em relação ao transporte público o Inclusão da questão dos transportes públicos nas pautas dos movimentos sociais, com elaboração de propostas, monitoramento e controle social para assegurar maior disponibilidade, diversidade e conexões de transporte; o Melhoria da quantidade e qualidade de transportes para pessoas portadoras de deficiência; o Criação de tarifa de transporte público a custo zero; o Criação de bilhete único. Lutar contra a segregação socioterritorial enfrentando a questão da terra e da ocupação dos espaços urbanos •
Criar, aprovar e implementar legislações que permitam o controle dos valores de aluguéis habitacionais. •
Estabelecer mecanismos urbanos para regulação na valorização da terra e uso do solo nos planos diretores e outros, como por exemplo, as ZEIS e a lei de parcelamento do solo. •
Fortalecer as articulações contra os despejos em função de megaeventos, megaprojetos, agroecologia e questão ambiental. •
Exigir a organização de informações e de dados sobre as irregularidades fundiárias das instituições públicas. •
Lutar para impedir a privatização dos espaços nos condomínios fechados. •
Articular políticas sociais e habitacionais no sentido de garantir tarifas sociais de água e luz para famílias beneficiárias de HIS. •
Implementar os instrumentos do Estatuto da Cidade. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 22 DE 42 3. LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA URBANA A temática da violência urbana está totalmente inserida no cotidiano da sociedade brasileira, principalmente, nos grandes centros urbanos, com força para determinar novos comportamentos sociais, interferir nas pautas das gestões públicas, definir o redesenho urbano e movimentar parte significativa da economia. É bastante complexo tratar da problemática da violência urbana no Brasil, que possui expressivas desigualdades sociais e territoriais e diferenças entre os grupos sociais quanto ao acesso à defesa no Judiciário e à proteção da vida pela segurança pública. Essa complexidade se deve também porque a violência urbana tem apresentado mudanças contínuas nas formas de manifestação, repercutindo em diferentes percepções na sociedade. Vale destacar que a estrutura do Estado está preparada para enfrentar essa questão apenas por meio da repressão. Nos últimos anos, com a visão mais holística da problemática, o entendimento da violência tem ampliado a sua concepção, agregando novas conceituações e situações. Estas incluem ações antes não reconhecidas ou enfrentadas, como assédios, violência doméstica contra crianças e mulheres e as de caráter discriminatório contra determinados grupos sociais. As diferentes formas de violência que ocorrem nas cidades, como homicídios, assaltos, roubos, sequestros, violência sexual, agressões, por preconceitos e abusos contra crianças e idosos, têm tido grande visibilidade, com apelo social dado pela grande mídia. Esses fatos, no entanto, repercutem de forma sensacionalista e discriminatória e reforçam a repressão policial como forma de enfrentamento. As expressões da violência que se expandiram nas cidades, somadas à força da “indústria do medo” construída pelos meios de comunicação, transformaram a segurança em produto a ser consumido pela sociedade. Para ampliar esse mercado, propaga-­‐se a insegurança e a cidade como lugar do risco, estimula-­‐se a culpabilização dos setores mais vulneráveis pelo crescimento da violência, orienta-­‐se substituir as relações comunitárias pelo isolamento e transforma-­‐se o desconhecido em ameaça. A culpabilização dos pobres e a criminalização da pobreza fazem parte de um processo histórico e ideológico, no qual se desqualifica o valor da dignidade humana dos QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 23 DE 42 trabalhadores de baixa renda, dando base à segregação, à violação de direitos, desviando o foco central da problemática. Até mesmo extermínios são praticados com envolvimento de alguns representantes do Estado, responsáveis pela segurança pública ou por agentes ligados à segurança nos territórios. Assassinatos de pessoas em situação de rua e de jovens pobres principalmente afrodescendentes são exemplos cotidianos dessas práticas. Por outro lado, o crime no Brasil, cada vez mais, tem se sofisticado e estruturado com conexões dentro de todas as esferas do Estado, principalmente, na área da segurança pública. É um instrumento também de sustentação de mercado econômico ilícito, altamente lucrativo, como se vê pelo tráfico de drogas, de armas e de pessoas e pelas milícias. Logicamente, isso vem fortalecer a cultura da violência que penetra nas relações sociais e amplia a vulnerabilidade das populações em situação de pobreza. Assim, progressivamente, a cidade vai perdendo o sentido de urbanidade, transformando-­‐se em lugar do perigo. A segurança passa a ser agregada ao valor do solo urbano, construindo-­‐se, no mesmo meio urbano, “a cidade segura” e “a cidade insegura”. Conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), "Análise dos Custos e Consequências da Violência no Brasil", apresentado em 2007, com base de dados de 2004, o custo da violência é estimado em 5,1% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil; desse total, 1,65% do PIB é o custo do setor público e 3,43% são custos do setor privado. Para compreensão da dimensão da violência urbana, é fundamental um olhar sobre os homicídios – expressão mais grave da violência urbana –, no sentido de identificar quem são, prioritariamente, as vitimas e os locais. Esse aprofundamento pode apontar as relações existentes entre a violência e o padrão de desenvolvimento urbano. Outros estudos demonstram que há relação direta entre violência e exclusão socioterritorial e que os jovens são os principais atingidos. A pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA) 13 , em 2006, “Moradia precária e violência na cidade de São Paulo”, revela que mais do que a renda familiar, há forte correlação espacial entre violência e moradias precárias, como favelas, bairros populares, conjuntos habitacionais precários e áreas de concentração de cortiços. 13
Coordenado por Rute Imanishi Rodrigues. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 24 DE 42 Os homicídios se intensificam nesses locais por falta de políticas públicas e precariedade dos serviços de segurança pública. Essa situação favorece a atuação de grupos ligados ao tráfico de drogas, a grupos de extermínio e a justiceiros que procuram “proteger” as comunidades populares com serviços de segurança. Nesses locais, são estabelecidas novas normas sociais, como as execuções e a lei do silêncio, que são mantidas por medo. Na realidade, essa situação perdura e não é enfrentada porque, muitas vezes, os criminosos representam os únicos que oferecem segurança e apoio social à comunidade. O estudo “Mapa da Violência 2011 – Os jovens do Brasil”, do Ministério da Justiça14, baseado em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, indicou que, em 1998, ocorreram no Brasil, 41.950 homicídios de jovens e, em 2008, 50.113. Nesse período, entre 1998 e 2008, houve aumento de 17,8% nos homicídios, enquanto o populacional foi de 17,2%. Essa pesquisa mostra a gravidade tanto pelo crescimento dos homicídios, como pelos índices especificamente de jovens. Em 2008, pessoas entre 15 e 24 anos representavam 18,3% da população brasileira, mas enquanto vítimas de homicídios, essa proporção era de 36,6%. De acordo com esse levantamento, entre 1998 e 2008, o homicídio foi a causa de morte de 39,7% dos jovens entre 15 e 24 anos no Brasil. Esse tipo de óbito foi responsável por apenas 1,8% das mortes na população adulta durante o mesmo período. Em 2008, o Brasil, com 52,9 mortes violentas para cada 100 mil habitantes ocupava o sexto lugar no ranking de homicídios de jovens na América Latina. O primeiro colocado foi El Salvador, com 105,6 mortes violentas para cada 100 mil jovens. Em seguida, vieram as Ilhas Virgens (86,2), a Venezuela (80,4), Colômbia (66,1) e Guatemala (60,6). Vale ressaltar que a média dos homicídios pode apresentar decréscimo, em muitas cidades, mas há diferenças de índices, dependendo dos locais onde essas mortes ocorrem. Entre 1998 e 2008, houve queda dos índices de homicídios de jovens em algumas cidades brasileiras, como por exemplo, em São Paulo, o decréscimo foi de 73% e no Rio de Janeiro, de 36,7%. Outras cidades apresentaram índices altíssimos, como Maceió, 251,4; Recife, 211,3 e Vitória, 181,9 vítimas em 100 mil jovens. Outras cinco 14
Realizado em parceria com o Instituto Sangari. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 25 DE 42 capitais possuíam taxa acima de 100 mortes, como em Salvador, Curitiba, João Pessoa, Belo Horizonte e Belém. Apesar de os estudos exigirem aprofundamento, pode-­‐se afirmar que as diferenças de índices aqui apontadas dizem respeito a fatores, como: investimentos dirigidos à segurança e às questões sociais em algumas metrópoles; migração do crime organizado; melhoria das formas de captação de informações e da metodologia e acirramento de conflitos agrários e ambientais em algumas regiões brasileiras. Grande parte desses números representa assassinatos realizados pela polícia, sendo que, quase na totalidade, não se consegue identificar os assassinos. O envolvimento da polícia com o crime organizado associado à prática de ações violentas e à impunidade são fatores que têm dificultado o enfrentamento da violência. Além disso, a falta de credibilidade nas instituições públicas responsáveis tem favorecido a reprodução de problemas de segurança, como a conhecida “justiça feita com as próprias mãos”. O Sistema de Segurança Pública está esgotado pela manutenção dos velhos paradigmas embasados na repressão, na perseguição aos “inimigos”, na proteção do patrimônio público e privado e no fechamento à participação popular. Para a consolidação da democracia brasileira é fundamental que a sociedade brasileira se aproprie da temática da segurança pública como parte das políticas públicas sociais e da defesa da vida e do bem-­‐estar da população. A dissociação da problemática da violência e da segurança urbana do desenvolvimento econômico, social e urbano conduz a uma compreensão parcial, ingênua e distorcida dessa realidade. ALGUNS AVANÇOS A Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã, avançou em muitos aspectos. Apesar de reconhecer a segurança pública como direito social, ela não conseguiu avançar suficientemente na elaboração de uma nova política, filosofia e estrutura adequada para o funcionamento do Estado Democrático de Direito. Em seu artigo nº 144, que trata da segurança pública, a Constituição preserva tanto as instituições policiais, como os mecanismos focados na repressão. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 26 DE 42 Atualmente, na sociedade brasileira, observa-­‐se a tendência de determinadas instituições e grupos sociais, apoiados pela grande mídia, de se utilizarem de fórmulas culpabilizadoras da população no enfrentamento da violência urbana, como por exemplo, quando reivindicam que a polícia seja mais violenta, além da defesa da prisão perpétua, pena de morte aos criminosos e rebaixamento da responsabilidade penal para 16 anos. No entanto, tendo em vista a conjuntura desses novos tempos com o crescimento da violência e criminalidade e os avanços do crime organizado, o Estado brasileiro está desafiado a dar respostas, que não sejam simplistas e desvinculadas do contexto social. Em agosto de 2009, após as pré-­‐conferências realizadas em todo o Brasil, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, que contou com a participação de vários setores organizados da sociedade civil e representantes do Estado. Nesse evento, a política de segurança pública foi discutida não apenas nos aspectos de denúncias e resistências, mas na necessidade de elaboração de políticas de enfrentamento das estruturas de violação de direitos. O resultado demonstrou como é difícil elaborar uma nova doutrina de segurança, entretanto, ficou evidente a importância da sociedade nesse debate. No segundo mandato do governo Lula (2007-­‐2010), foi retomado o debate sobre o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e se consolidou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), considerado carro-­‐chefe da Política Nacional de Segurança Pública. O Pronasci, mesmo considerado uma boa proposta para os municípios e estados, não rompe com os paradigmas anteriores do ponto de vista da estrutura de segurança pública. Para o desenvolvimento do Programa, o governo federal previa investir cerca de R$ 7 bilhões até o fim de 2012. A inserção do tema da Segurança Pública na Campanha da Fraternidade de 2009 da Igreja Católica foi importante para que as dioceses, paróquias e comunidades contribuíssem com um novo conceito de segurança pública. Apesar de ser uma reflexão que deve envolver toda a sociedade, a campanha de 2009 trouxe reflexões sobre atuação da polícia, mecanismos do Judiciário, implementação de programas de justiça comunitária e importância da participação da sociedade em conselhos de segurança. Em 2010, no seminário realizado entre os parceiros brasileiros da Misereor, foram apresentadas e debatidas experiências que apontaram que é possível diminuir a violência QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 27 DE 42 urbana de forma significativa com ações conjuntas entre Estado e sociedade, como ocorreu em Diadema e nos bairros da Zona Sul de São Paulo. Em 1999, a cidade de Diadema15, situada na região metropolitana de São Paulo, com 400 mil habitantes, estava entre as cidades mais violentas do Brasil com índice de 111,6 homicídios para cada 100 mil habitantes. No entanto, em 2010, esse índice baixou para 14,7 homicídios. Os trabalhos desenvolvidos no município foram coordenados pela prefeitura local, que fez um grande investimento na área social, na infraestrutura urbana, na urbanização das favelas e na participação popular. Além disso, adotou estratégias baseadas no mapeamento das diferentes formas de violência que ocorriam na cidade. Entre essas medidas, destacam-­‐se como significativas para o decréscimo dos homicídios: Projeto Adolescente Aprendiz; fechamento de bares às 23 horas; fiscalização constante dos estabelecimentos comerciais de venda de bebidas alcoólicas; campanha de desarmamento, incluindo o infantil; clubinho da Guarda Municipal; central de vídeo para monitoramento; formação de mediadores de conflito, particularmente, de mulheres da paz para mediação de conflitos e multiplicadoras sociais. Outra experiência exemplar de diminuição da violência urbana diz respeito aos distritos de Jardim Ângela e Capão Redondo, localizados na Zona Sul da cidade de São Paulo. Estes bairros, com grande concentração de moradias precárias, encontravam-­‐se entre as áreas mais violentas do Brasil. Em 2003, o Ministério Público registrou que na região do Jardim Ângela e Capão Redondo, aproximadamente, 75% de homicídios eram de origem desconhecida; apenas alguns casos chegavam a julgamento. Primeiramente, foi necessário que os promotores públicos deixassem os paradigmas tradicionais de atuação e se colocassem como parceiros de outros agentes ligados às polícias, fóruns de entidades, Judiciário, subprefeituras, escolas, igrejas, ONGs e comunidades locais. Era preciso mudar o foco no enfrentamento da violência, passando da prática de apenas atuar na repressão para a da prevenção e buscar melhoria da qualidade de vida da população. Dentre as ações desenvolvidas pela rede de parceiros locais de luta contra a violência e Promotoria Comunitária, destacam-­‐se: Operação Bares – Campanha “Pacto com a Vida e com a Paz“, na qual os proprietários se comprometeram a fechar seus 15
Possui grande concentração de favelas e loteamentos populares. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 28 DE 42 estabelecimentos às 22 horas; criação do Grupo Organizado para Valorização da Vida (GOVV) e do Comitê para Construção da Rede de Serviços de Cuidados à Pessoa em Situação de Violência Doméstica e Sexual; formação de lideranças comunitárias; criação do tribunal popular e formação de mediadores de conflitos. Avalia-­‐se que o bom andamento dos trabalhos da Promotoria Comunitária foi resultado dos seguintes fatores: participantes com legitimidade nas comunidades e assíduos nos trabalhos; protagonismo das lideranças; trabalhos realizados em rede; alinhamentos com base nas expectativas do coletivo e avaliações e reavaliações constantes. Essas duas experiências, como outras realizadas em diversas cidades brasileiras demonstram que é fundamental que todos os setores do Estado e da sociedade civil organizada se envolvam diretamente nessa problemática e que as lideranças locais das áreas de maiores índices de violência sejam atores valorizados. As melhorias urbanas em todos os aspectos representam o ponto de partida para que outras ações sejam exitosas. DESAFIOS Em termos de mudanças de atitude em relação à questão da violência •
Aumentar medidas e ações voltadas para a prevenção. •
Segurança pública compreendida como um direito humano. •
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Rompimento dos estigmas estabelecidos na sociedade, aprofundados pela mídia, como “pobre igual a perigoso”, “pobreza igual à violência”, preconceitos contra os jovens negros e naturalização em relação à morte de pobres. Aprofundamento da reflexão para mostrar que a violência urbana não se enfrenta somente com política de segurança pública, mas também com integração entre políticas sociais e urbanas. Enfrentamento das várias dimensões da violência: doméstica, na escola, no trânsito e intolerância sexual, religiosa e étnica. Compreensão da dimensão econômica da questão da segurança pública e das milícias. Em termos legais •
Inserção da temática da violência e da segurança pública na luta pelo direito à cidade. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 29 DE 42 •
Fortalecimento da participação da sociedade e dos movimentos populares nos conselhos de segurança pública. •
Enfrentamento da criminalização dos movimentos populares e sociais. •
Desmilitarização da polícia e das intervenções sociais militarizadas. •
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Enfrentamento da violência praticada pelo Estado: polícia, Judiciário, política pública e despejos. Implementação da Política Nacional de Mediação e Prevenção de Conflitos Fundiários Urbanos. Em termos de projetos territorializados •
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Reprodução de experiências territoriais exitosas na questão do enfrentamento da violência. Gestão territorial com participação popular, por meio de diálogo e ações conjuntas entre atores distintos de um mesmo território. Urbanização e melhoria dos serviços públicos sociais e culturais nas áreas com maior vulnerabilidade social. Ampliação ou criação de espaços de diálogo nas comunidades e em outros setores da sociedade sobre as experiências exitosas no combate à violência e as potencialidades da prevenção em situações de violência grave. Avaliação e monitoramento dos programas públicos para mensurar os impactos da implementação de ações do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), intervenção territorial (UPP) e assentamentos habitacionais (PMCMV). QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 30 DE 42 4. JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL URBANA Os desastres ambientais que ocorrem em diversos lugares do mundo reforçam inúmeros estudos que indicam que o processo de degradação ambiental, o desequilíbrio do ecossistema e o aquecimento global tornarão insustentável o desenvolvimento da vida no planeta. O problema ambiental representa riscos para todos os cidadãos do mundo independentemente da classe social. Assim, essa temática está inserida em diferentes setores da sociedade, que vêm realizando campanhas de conscientização e ações específicas. Hoje, a temática ambiental integra as agendas das instituições públicas dos países e da Organização das Nações Unidas (ONU). A implementação de muitas propostas que, efetivamente, poderiam mitigar a degradação ambiental encontra resistências de setores governamentais e empresariais, basicamente, por interferirem nas despesas públicas e na diminuição dos lucros de setores privados. Essas medidas apontam para diminuição de emissão de gases poluentes que produzem efeito estufa; mudança do padrão de consumo; tratamento adequado dos lixos urbanos; controle contra a degradação dos rios, solos, ar e oceanos e reconhecimento do ambiente adequado como direito humano de todos. O exemplo disso é o resultado da Conferência Rio +20, realizada pelas Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, em junho de 2012. Nesse evento, os chefes dos governos dos países que mais contribuem para a degradação ambiental não participaram, propositalmente, demonstrando descompromisso com a superação dessa problemática. O documento oficial desse evento reproduziu as conhecidas orientações para o desenvolvimento sustentável, mas não apontou como seriam realizadas as ações, a procedência dos recursos e a forma de controle para assegurar a implementação das propostas enunciadas. Em paralelo, como forma de resistência à Conferência, ocorreu a Cúpula dos Povos, que por sua vez, fortaleceu a ideia de que é preciso um mutirão mundial na construção de um novo paradigma de desenvolvimento pautado no respeito ao planeta e na justiça social. Vale destacar que a questão urbana ambiental praticamente não fez parte da agenda oficial da ONU. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 31 DE 42 A luta pelo direito à cidade deve perpassar todas as dimensões da vida, portanto, o desenvolvimento urbano deve contemplar a perspectiva de justiça socioambiental, que significa agregar o direito à qualidade de vida e à preservação de bens comuns. Nas cidades brasileiras, como o valor da terra cresce conforme aumenta a qualidade ambiental de sua localização e como não existe controle público para frear a especulação imobiliária, sobram áreas inadequadas para o mercado imobiliário. Este não tem interesse de utilizá-­‐las para empreendimentos habitacionais e comerciais pelo fato de elas serem protegidas por legislação ambiental, como são as áreas de proteção de mananciais às margens de córregos e nas encostas de matas. Consequentemente, essas áreas são ocupadas por populações pobres, cujos assentamentos populares, apesar de ilegais, sempre contaram com “certa conivência” dos órgãos do Estado, como forma de atenuar as crescentes demandas de habitação popular não supridas por programas públicos. Enquanto os debates dos ambientalistas focam atenção na preservação da biodiversidade e na manutenção de ambientes qualificados para as gerações futuras, as populações pobres já sofrem as consequências da falta de arborização em seus bairros, da destruição das casas pelas inundações e pelos desmoronamentos e das doenças produzidas por lixões, solos contaminados e poluição do ar. A insalubridade das moradias advinda de utilização de materiais inadequados, falta de espaços, alta densidade, falta de iluminação e aeração vem prejudicando a qualidade de vida das pessoas. Certamente, o ambiente de qualquer cortiço ou moradia insalubre possui temperatura com índices superiores a dois graus centígrados quando comparados aos de seu entorno. O tratamento da questão ambiental urbana dissociado das questões socieconômicas tem promovido falsos conflitos, em que defensores do meio ambiente creditam a degradação ambiental aos pobres. É muito comum, populações socialmente mais vulneráveis saírem da condição de vitimas e serem transformadas em rés, como também a legislação de proteção ambiental ser utilizada como instrumentos de criminalização da pobreza. Para exemplificar, basta ver a justificativa de decisão judicial de despejo de um assentamento de favela. O agravo de instrumento nº 0124889-­‐46.2011.8.26.0000, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a partir da ação civil pública movida pela QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 32 DE 42 Promotoria do Meio Ambiente do Ministério Público, decide o despejo da Associação Independente Vila Nova Esperança. Nessa favela, localizada na região do Butantã, vivem 480 famílias, sendo que algumas delas residem no local desde 1962. Para isso, sob o argumento de proteção às gerações futuras, o Tribunal acusa que o uso habitacional dessas famílias é potencialmente degradador do meio ambiente, além de destruir a Mata Atlântica e contribuir para mudanças climáticas. Em momento algum em sua extensa decisão, referiu-­‐se às necessidades das famílias que ali residiam e dos empreendimentos de alto luxo que estão sendo construídos próximos à comunidade. Na verdade, os argumentos ambientais serviram para atender a interesses imobiliários. Como esse, há muitos outros exemplos que vêm ocorrendo em diversas cidades brasileiras. A falta de transporte público de qualidade tem restringido a mobilidade urbana e, assim a exclusão socioterritorial se aprofunda e atinge a questão ambiental. Conforme estudo de Eduardo Vasconcelos 16 , da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), em 2010, nas cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes, o transporte individual foi responsável por 87% das emissões de poluentes que afetam a saúde e por 64% das emissões de dióxido de carbono (CO2), principal poluente para o efeito estufa. O estudo demonstra que o transporte individual recebeu, por meio de isenções e subsídios, valor de oito vezes mais que o transporte coletivo, sendo R$ 16 bilhões contra R$ 2 bilhões. A falta de investimento público para o transporte coletivo de massa e o apoio ao transporte individual contribuíram para maior degradação das cidades. Conforme Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), realizada pelo IBGE, em 2008, as cidades brasileiras vêm ampliando o abastecimento de água potável, a coleta de lixo, os programas de coletas de materiais recicláveis, as redes de esgotos e a drenagem urbana das águas pluviais. Há algumas áreas em que o atendimento aproxima-­‐
se da universalização e outras em que, mesmo tendo ampliado de forma significativa, o atendimento ainda é limitado. Vale ressaltar que esses serviços apresentam percentuais antagônicos quando comparados entre as regiões mais ricas e as mais pobres. 16
Apresentado no artigo do Le Monde Diplomatique, nº 59, junho de 2012. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 33 DE 42 ALGUNS AVANÇOS Do ponto de vista das preocupações ambientais e sociais, há avanços importantes nos marcos regulatórios, como a Lei 11.445/07 que estabeleceu diretrizes nacionais para o saneamento básico e a Lei 12.305/10 que criou a Política Nacional de Resíduos Sólidos, nas quais foram inseridas preocupações ambientais e sociais. No entanto, ressalta-­‐se que essas leis, ao mesmo tempo em que reconhecem a importância dos catadores, como atores sociais importantes no processo de reciclagem, estimulam a incineração inclusive de materiais recicláveis, acarretando prejuízos ambientais. Quando avaliados com a participação de setores organizados da sociedade em gestões democráticas, os planos diretores 17 têm se transformado em instrumentos importantes para o desenvolvimento urbano das cidades, principalmente, nas áreas da habitação, saneamento básico, transporte urbano, uso e ocupação do solo e preservação da qualidade ambiental. DESAFIOS O sentido da justiça socioambiental urbana ainda é pouco apropriado pelas populações mais vulneráveis e pelos movimentos sociais urbanos. Apesar de exigir aprofundamento, essa questão apresenta muitos desafios, tais como: Em termos de mudanças legais e de atitude em relação à questão socioambiental Inserir a dimensão social nas questões ambientais para que a população pobre não •
sofra as consequências dessas mudanças. Apropriar-­‐se da dimensão ambiental pela população para reivindicar direitos •
igualitários. Contribuir para que os planos diretores dos municípios contemplem a dimensão da •
justiça ambiental e que ela seja implementada. Impedir mudanças nas legislações ambientais para favorecer a realização da Copa do •
Mundo FIFA de 2014. 17
Obrigatório para todas as cidades com mais de 20 mil habitantes. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 34 DE 42 •
Intervir para que a Defensoria Pública amplie e enfrente a questão da justiça socioambiental. •
Articular ações para impedir a incineração prevista na lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Em termos de ações concretas •
Relacionadas aos assentamentos humanos: o Assegurar assentamentos em locais com qualidade ambiental; o Articular movimentos sociais para impedir grilagem de terras e criminalização de lideranças; o Denunciar e enfrentar despejos da população pobre de áreas consolidadas com base em leis ambientais; o Estabelecer debate entre movimentos ambientalistas e de moradia; o Inserir a questão socioambiental nos debates dos movimentos urbanos e nos empreendimentos de HIS e realizar capacitação de lideranças nessa área. •
Relacionadas aos serviços públicos: o Lutar pela ampliação do transporte público coletivo; o Fortalecer ações de reaproveitamento de águas pluviais e produção de energia alternativa. •
Relacionadas ao consumo: o Ampliar ações da reciclagem de materiais reaproveitáveis com inclusão social de catadores e populações vulneráveis; o Ampliar campanhas do consumo consciente; o Fortalecer tema da agricultura urbana. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 35 DE 42 5. FORTALECIMENTO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS A expansão urbana das cidades brasileiras reflete o tipo de desenvolvimento econômico imposto pelos grandes agentes capitalistas nacionais e internacionais, que apresenta investimentos privados reduzidos e lucros retornados em curto tempo. Para assegurar esses interesses privados, a gestão do Estado brasileiro sempre esteve presente nesse processo de disputa com papel de mediação entre os diversos setores interessados. Não é por acaso, a existência de grandes aportes de recursos financeiros de setores empresariais nas eleições legislativas e do executivo e a indicação de empresários para cargos públicos. Em consequência disso, além dos baixos salários dos trabalhadores urbanos, verifica-­‐se que os direitos sociais, como moradia, saúde, educação, segurança, meio ambiente não são acessados pela grande parcela da população urbana brasileira. A estrutura e a cultura da gestão pública foram influenciadas pela lógica do patrimonialismo e do clientelismo, substitutivos do tradicional coronelismo. Com a gravidade dos problemas sociais urbanos e o acúmulo de demandas, gestores públicos pela pressa de respostas à violação dos direitos, passam a atendê-­‐los em troca de apoios nas futuras eleições. Nessa lógica clientelista, os direitos foram transformados em favores e o uso dos recursos públicos direcionados, conforme interesses dos gestores de plantão. Se, de um lado, as forças econômicas sempre foram hegemônicas nas decisões do País, por outro, a história brasileira foi construída por muitas lutas em defesa da dignidade humana e dos direitos sociais. As lutas sociais desenvolvidas no Brasil demonstraram que a participação da sociedade foi essencial para assegurar avanços expressivos, como independência do País; fim da escravidão; voto como direito universal; fim da ditadura militar; democratização do Estado; melhoria dos salários; infraestrutura urbana, legislação mais justa e tantas outras iniciativas. A Constituição Federal de 1988, construída pós-­‐ditadura militar e com contribuição da sociedade, definiu o Brasil como um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, ele é responsável pelo cumprimento dos direitos sociais dos diversos QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 36 DE 42 segmentos da sociedade por meio de políticas públicas. Além disso, no modelo de gestão pública, foram estabelecidas a participação popular e a responsabilidade de todos os entes federativos na democratização do poder público. A política de desenvolvimento urbano definida na Constituição e regulamentada pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) estabelece o plano diretor municipal como instrumento básico para assegurar a função social da cidade e da propriedade urbana, como forma de garantir acesso à moradia, infraestrutura, saneamento básico de maneira justa e igualitária. Na elaboração de planos diretores, deve-­‐se contar formalmente com a participação popular. As políticas públicas são a concretização dos direitos previstos nos marcos legais e os gestores públicos as efetivam por meio de diretrizes, programas e recursos. Historicamente, são decididas quase sempre nos gabinetes ou por especialistas, de cima para baixo, sem ouvir o público beneficiário dessas políticas. Essa forma tem se mostrado bastante ineficiente e não contribui para a superação dos problemas existentes. Além do que, muitas vezes, as políticas públicas são utilizadas como instrumentos para a corrupção. A participação popular, portanto, é essencial para o desenvolvimento social, democratização das gestões públicas, uso dos recursos orçamentários priorizado conforme o interesse público e para que as políticas públicas realmente atendam às necessidades da população. No Estado brasileiro, espaços de disputa acirrada de interesses, os mecanismos de participação popular nas políticas públicas sofrem contínuos enfrentamentos, tendo em vista seu enfraquecimento e destituição de sua função na democratização das instituições públicas. Assim, a participação popular nas políticas públicas tem que ser entendida como ação política e técnica, iniciada desde a elaboração do diagnóstico dos problemas a serem enfrentado, a formulação das prioridades e planos de enfrentamento, a implementação dos programas, o monitoramento do funcionamento e a avaliação dos resultados. No Brasil, há várias formas de participação popular estabelecidas pela Constituição de 1988 em todos os níveis e esferas do Estado. Elas estão ligadas às diferentes áreas sociais e de desenvolvimento urbano, mas, evidentemente, não significam que funcionem adequadamente. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 37 DE 42 Há inúmeras experiências participativas já desenvolvidas no Brasil, que utilizam diferentes metodologias de trabalho, como o Orçamento Participativo em várias cidades; inúmeros conselhos e fóruns em setores do governo federal, estados e municípios e conferências locais e nacionais de várias temáticas sociais. No final da década de 1980, algumas administrações municipais com gestões democráticas, como as de Porto Alegre, Vila Velha, Diadema entre outras, instituíram os orçamentos participativos que se tornaram referências nacionais também para os que buscavam a transparência no uso e gestão dos recursos públicos. Os conselhos de âmbito nacional em geral frutos de processos locais, como os da assistência social, educação básica, desenvolvimento nacional, segurança pública e da cidade tornaram-­‐se atores importantes na definição de diretrizes de muitas políticas públicas. As conferências e fóruns, além de serem espaços amplos de debate, deliberação de políticas e eleição dos conselheiros, têm sido oportunidades importantes para que a sociedade particularmente os movimentos sociais façam proposições. Inegavelmente, a participação popular nas políticas públicas trouxe avanços importantes para aperfeiçoamento da democracia brasileira, fortalecimento das gestões públicas e conquistas de direitos. Entretanto, a participação popular apresenta muitos limites e riscos que precisam ser superados para cumprir o que foi previsto na Constituição Brasileira. De um lado, espaços de participação social estão quase na totalidade ligados às políticas sociais, que representam setores secundários dentro das instituições públicas, facilmente verificáveis nas dotações orçamentárias. Por outro lado, as áreas que enfrentam as questões estruturais, como as de política econômica, de grandes obras e de uso e ocupação do solo – determinantes dos rumos da sociedade –, são decididas nos gabinetes, conforme interesses políticos e econômicos e sem a participação social. Com a realização dos megaprojetos e megaeventos, essa contradição explicita-­‐se ainda mais quando orçamentos sociais são redirecionados a outros setores. Um exemplo foi a aprovação pela Câmara Municipal de São Paulo (PL/288/11) de incentivo de R$ 420 milhões de reais para o Clube Corinthians investir no seu estádio, onde será a abertura da Copa do Mundo FIFA de 2014. No entanto, em outubro de 2011, segundo dados da QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 38 DE 42 execução orçamentária18, apenas 8,3%, ou seja, R$ 57,1 milhões tinham sido aplicados, de um total de R$ 683 milhões previstos para o combate às enchentes na cidade. Mesmo com reconhecida contribuição às políticas públicas sociais, a participação popular não é um mecanismo decisório nos processos de definição dos orçamentos e das políticas públicas, por ser pouco reconhecida e apropriada pela sociedade. Por motivos diversos, há limites da participação popular no sentido da intervenção nas políticas públicas: poucos conselhos são deliberativos e decidem sobre orçamentos muito restritos; a estrutura do Estado não está preparada para atender um tipo de funcionamento aberto e democrático; há falta de informações e de estrutura para a atuação dos conselheiros da sociedade, que são voluntários; a burocratização dos mecanismos de participação tornam-­‐se, muitas vezes, espaços formais de legitimação das decisões dos gestores públicos; há conselheiros da sociedade comprometidos com interesses dos gestores públicos e frequentemente a sociedade fica subordinada à agenda do setor público. ALGUNS AVANÇOS As experiências de Orçamento Participativo implementadas em várias cidades brasileiras contribuíram para que munícipes tivessem conhecimento dos recursos disponíveis para as cidades, da forma de aplicação e da transparência da gestão pública. A partir dessas experiências ocorreram outras iniciativas de âmbito local (incluídas ou não nos marcos legais) para controle social sobre os recursos púbicos, como a divulgação do plano de metas dos prefeitos e dos valores das obras em locais públicos. É inegável, mesmo com todas as contradições, ainda existentes, que a compreensão de democracia foi ampliada na sociedade, como mostrou a Campanha Nacional pela Ficha Limpa e a criação de novos conselhos. Instâncias participativas como o Conselho das Cidades e as Conferências das Cidades são experiências inovadoras, porque trazem, pela primeira vez, na história, os setores populares para debater a questão urbana de moradia, saneamento, mobilidade e políticas articuladas entre si. Vê-­‐se que, a participação em espaços institucionais 18
Jornal O Estado de S. Paulo, 13/10/2011, de Felipe Frazão e Rodrigo Burgarelli. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 39 DE 42 apresenta mais efetividade, quando há mobilização popular com capacidade de pressão social junto aos gestores públicos. As ações no Judiciário por meio do Ministério Público e da Defensoria Pública têm sido uma forma de atuar, assegurando algumas vezes políticas públicas importantes, ou mesmo, impedindo que outras inadequadas sejam implementadas. DESAFIOS Muitos desafios precisam ser superados para fortalecimento das gestões das políticas públicas, tais como: Em termos de capacidade da sociedade civil •
Continuar a sensibilização sobre a existência e necessidade de utilizar os espaços de gestão democrática. •
Em relação aos conselhos: o Qualificar os conselheiros e melhorar a estrutura para participação nos espaços de intervenção em políticas públicas; o Lutar para que os papéis dos conselhos superem as pautas trazidas pelos gestores, mas que eles participem da definição das políticas públicas; o Mudar e ampliar as formas de acesso aos conselhos, cujos membros deveriam ser eleitos; o Repensar a formação dos conselheiros no sentido de capacitá-­‐los para intervir no campo da política e da política pública; o Acompanhar os trabalhos para que as decisões dos conselhos sejam implementadas por meio de monitoramento e controle social dos orçamentos; o Organizar feedback entre conselheiros e bases, desenvolvendo capacidade do conselheiro para ser porta-­‐voz da luta do movimento; o Pensar a articulação entre os conselhos ou fórum de conselhos para evitar fragmentação das ações e realizar objetivos comuns e monitoramento. •
Para além dos conselhos: o Não apostar somente nos conselhos, mas também atuar na pressão social; QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 40 DE 42 o Questionar o conselho como instrumento exclusivo da democracia representativa; o Atuar em redes, articulações e fóruns regionais e nacionais; o Radicalizar ações no sentido da crítica ao modelo da democracia direta. Em termos de visão de cidade •
Superar a fragmentação e pulverização dos conselhos. •
Evitar o debate fragmentado, por meio da reflexão intersetorial sobre a cidade. QUESTÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE – NOVEMBRO DE 2012 – PÁGINA 41 DE 42 Os 12 principais desafios para o direito à cidade no Brasil priorizados pelos parceiros da Misereor no encontro de São Paulo Fortalecer a sociedade civil 1. Repensar modelos de gestão democrática. 2. Desenvolver capacitação de lideranças. 3. Promover a autogestão e avançar na alternativa da propriedade coletiva da terra. 4. Democratizar o acesso à justiça. Garantir acesso à terra 5. Garantir acesso à terra bem localizada, considerando os regulamentos existentes e a mobilidade urbana. 6. Resolver conflitos fundiários, levando em conta as questões de justiça socioambiental. 7. Garantir inclusão e permanência da população de baixa renda nos centros urbanos, sempre que houver políticas de revitalização nessas áreas. Desenvolver política urbana 8. Assegurar política de habitação e desenvolvimento urbano com programas diversificados que respeitem as diversidades regionais. 9. Aprovar a PEC 285. Lutar contra a violência urbana 10. Repensar a política de segurança versus violência na perspectiva dos direitos humanos. 11. Lutar contra a criminalização da pobreza, das lideranças e dos movimentos. 12. Lutar contra violências por motivos de raça, etnia, juventude e gênero. (Garantir recursos para as políticas públicas e para formação)
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