retornar à inocência enigma

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retornar à inocência enigma
O NARRADOR SOB SUSPEITA: UMA LEITURA DO CONTO “MISSA DO
GALO” DE MACHADO DE ASSIS
Jaison Luís Crestani (Mestrando – UNESP/Assis –)
Introdução
“Missa do galo” é um dos contos mais estudados da tradição crítica machadiana,
na qual constitui um lugar-comum a análise da ambigüidade da figura de D. Conceição
– personagem feminina fascinante, polêmica, fadada a ocupar, a exemplo de Capitu, os
bancos dos réus literários pelos tempos afora. Embora tenha se tornado muito mais
famosa, Conceição não é a personagem problema da história, mas sim Nogueira, o
narrador. Na verdade, Conceição não tem vida própria dentro do conto, pois constitui
simplesmente um recorte memorialista criado ou resgatado da memória do narrador.
Desse modo, este trabalho toma por base a perspectiva de que toda a construção
da ambigüidade da personagem feminina nada mais é do que um produto da
manipulação do narrador, apoiada na técnica do “despistamento”. Mais que um narrador
ingênuo, Nogueira é um narrador que “quer se fazer ingênuo”, procurando desviar a
atenção e os juízos críticos para o comportamento de Conceição, afastando-os de si.
Nogueira mantém-se de todo coerente no projeto de “afirmar a sua ingenuidade”, quer
pela sua idade imatura (17 anos), quer pela referência religiosa (seu desejo de ver a
missa na Corte), quer pela sua opção de leitura (o romance romântico Os Três
Mosqueteiros), quer pelo ângulo de visão temporalmente distanciado dos fatos, que
intensifica a atmosfera de dúvida e imprecisão.
Assim, a primeira tarefa do leitor arguto é desconfiar da sinceridade do narrador e
atentar para as pistas falsas semeadas por toda a narrativa. Colocando o narrador sob
suspeita, o leitor perceberá que não é exatamente o comportamento de Conceição que se
transforma ao longo do conto, mas o modo como narrador a vê. Nessa perspectiva,
Nogueira deixa de ser o “seduzido” da história e assume as obscenidades que, com o
apoio da cumplicidade do leitor, tentou atribuir ao caráter de Conceição.
O narrador sob suspeita
Publicado inicialmente no periódico A Semana, no ano de 1894, o conto “Missa
do galo” passou a fazer parte da coletânea Páginas recolhidas (1899). O conto, a
princípio, não traz revelações surpreendentes ao leitor, algo que possa impactá-lo,
porém, como é próprio do autor, está carregado de reflexões da alma e do
comportamento humano. Concentrada na criação de uma atmosfera, de um momento
fugaz da vida ou simplesmente de um mero flagrante do cotidiano, essa forma de relato
indica que as repercussões psicológicas de ações e fatos concretos são muito mais
significativas do que a construção de um enredo bem arquitetado e de um desfecho
imprevisível.
Narrado em primeira pessoa, o conto revela a habilidade de Machado de Assis na
elaboração de seus relatos autobiográficos e de observação psicológica, em que o ponto
de vista do narrador memorialista e suas motivações tornam-se exclusivas. Além disso,
manifesta-se também o seu excelente modo de manipular informações interditas.
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Desse modo, a partir do uso do flashback, o conto apresenta uma extrema
economia de detalhes, marcada pela concisão e unidade de efeito. Essa exigência de
brevidade e concentração é seguida à risca pelo escritor. Nada que não seja fundamental
à criação da atmosfera e do efeito do conto interessa na configuração do texto.
Trata-se da história de Nogueira, que relembra um episódio ocorrido quando tinha
17 anos. Em tal ocasião, estava no Rio de Janeiro para o que chama de estudos
preparatórios. É de Mangaratiba e está hospedado na casa do escrivão Menezes, viúvo
de uma de suas primas e casado em segundas núpcias com Conceição, uma “santa”, que
se resigna com uma relação extraconjugal do marido. Dizendo ir ao teatro, este dorme
fora de casa uma vez por semana. Vivem na casa, ainda, D. Inácia, mãe de Conceição, e
duas escravas.
A história se passa basicamente na véspera do Natal, numa daquelas noites em
que o escrivão se ausenta de casa. Nogueira iria com um vizinho à missa do galo e
combinou acordá-lo à meia-noite. Decide esperar já pronto, na sala da frente, de
maneira a sair sem acordar as pessoas da casa. Está lendo um romance, Os Três
Mosqueteiros, quando ouve um rumor e passos. É Conceição. Começam a conversar,
falam de assuntos variados, o tempo vai passando; a conversa prolonga-se, emendam-se
os assuntos, riem, aproximam-se e falam baixo para não acordarem D. Inácia.
Finalmente, invertendo-se o combinado, o vizinho grita na rua que é hora da missa do
galo e Nogueira sai.
No dia seguinte, Conceição estava como sempre, natural e benigna, sem que nada
fizesse lembrar a Nogueira a conversação da véspera. No Ano Novo, Nogueira vai para
Mangaratiba. Ao retornar, em março, para o Rio de Janeiro, o escrivão havia morrido.
Nunca mais encontrou Conceição, sabendo depois que ela havia se casado com o
escrevente juramentado do marido.
O conto se inicia de forma significativa: “Nunca pude entender a conversação que
tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta” (ASSIS, 1998,
p. 386). Já nessa primeira frase do conto, o narrador denuncia a atmosfera que permeará
toda a estrutura do texto: a dúvida e a incerteza. Essa imprecisão em relação ao que
realmente aconteceu na noite da missa do galo é reforçada diversas vezes no decorrer do
conto: “Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas.
Contradigo-me, atrapalho-me” (ASSIS, 1998, p. 391). Assim, nesse clima de dúvida, o
narrador aciona a cumplicidade do leitor, convidando-o a olhar para as situações do
mesmo ângulo de visão que ele e fazendo-o compartilhar dessa mesma incerteza.
Dessa forma, o conto se abre a diversos níveis de significação e de compreensão.
Uma possibilidade de interpretação do conto, comumente encontrada dentre os
inventários da crítica, seria a das leituras que consideraram, como foco central da
narrativa, a ambigüidade que se formula em torno da figura de D. Conceição. Sob este
ângulo, o leitor percorre por um caminho em que é muito tênue o limite entre o que
parece ser e o que acontece realmente.
Nesse nível de leitura, somos levados a formular pelo menos duas hipóteses
básicas: primeiro a de que D. Conceição tentara seduzir o rapaz que, em virtude da sua
ingenuidade, não conseguiu distinguir definidamente as suas reais intenções; e, em
segundo lugar, a hipótese de que ela simplesmente queria conversar para passar o tempo
e amenizar a sua solidão e angústia devido às ausências do marido. Partindo-se dessas
duas suposições, é possível encontrarmos indícios que apontam tanto para um quanto
para outro caminho.
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Desse modo, no plano dessas leituras, D. Conceição torna-se tão famosa e
polêmica quanto Capitu. De maneira semelhante às controvérsias geradas em torno da
culpabilidade ou inocência de Capitu, os críticos deixam-se levar, em “Missa do galo”,
pelas insinuações do narrador, estendendo-se em amplos debates a respeito da corrupção
ou ingenuidade de D. Conceição.
Partindo da hipótese que consideraria a ingenuidade de D. Conceição, não
devemos esquecer o sentimento do narrador que, naquele momento, estava
“completamente ébrio de Dumas”. Durante o período de espera pela hora da missa do
galo, Nogueira lia a obra romântica Os Três Mosqueteiros, o que o deixava, naquele
momento, mais sensível e suscetível a aventuras do coração. A presença de D.
Conceição espertara-o “ainda mais que o livro”, de modo que ela lhe transmitia “um ar
de visão romântica”. Tais fatos e situações afastam a idéia do jogo de sedução
executado por D. Conceição, sugerindo que Nogueira, tocado pelo romantismo da obra
que lia e pela ingenuidade dos seus dezessete anos, foi conduzido a suspeitar das suas
reais intenções.
Além disso, há também o fato de que D. Conceição era uma mulher religiosa, a
começar pelo nome. Preferia, em lugar dos dois quadros vulgares fixados pelo marido
na parede da sala, “duas imagens, duas santas”; possuía uma imagem de Nossa Senhora
da Conceição num oratório; “falava de suas devoções de menina e moça”. Era uma
mulher honesta e séria, descrita como uma “santa”, pelo fato de viver sem reclamar, não
falar mal de ninguém e por aceitar calada as traições do marido. A partir dessa
perspectiva, D. Conceição se apresenta como uma mulher marcada pela resignação e
sofrimento, e, a despeito das suspeitas do narrador, poderia muito bem estar ali na sala
acordada em sua companhia simplesmente para conversar e amenizar as suas angústias.
Acresce-se a isso, o fato de, no dia seguinte, Nogueira não ter encontrado nenhum
indício no comportamento de D. Conceição que lhe lembrasse as suspeitas da noite
anterior.
Por outro lado, uma outra possibilidade de leitura consideraria o caráter
pervertido de D. Conceição como o centro da questão. Nesse plano, tende-se geralmente
a caracterizar o narrador como um rapaz ingênuo, que não consegue enxergar de modo
convicto a malícia existente por detrás da presença desinteressada de D. Conceição
durante o tempo de espera pela hora da missa do galo.
Nesse caso, devemos lembrar, em primeiro lugar, que Conceição era traída
semanalmente pelo marido, o que justificaria uma intenção de vingança da sua parte. Na
noite de Natal, D. Conceição acordara “por acordar”, embora parecesse nem ter
dormido. Dessa forma, é lícito pensar que ela poderia ter premeditado o encontro com
Nogueira.
Assim, através dessa perspectiva, a narrativa prossegue no decurso da noite,
cingida por uma atmosfera sedutora e enigmática que envolve as duas personagens. Há
todo um jogo de sedução que se irrompe a partir do momento em que Conceição
aparece na sala vestida em trajes íntimos, permitindo a Nogueira perceber seu corpo:
pés, joelhos, mãos, braços, pernas, cintura. O conto, portanto, é permeado por um
erotismo que adquire uma intensidade ainda maior justamente por não se manifestar de
modo explícito e por não se concretizar efetivamente, sendo apenas sugerido e
insinuado.
Nesse sentido, os gestos, olhares e movimentos de D. Conceição parecem
medidos para envolver, atrair e seduzir Nogueira, e não são raras as situações em que
isso ocorre. São olhares que se fixam (“... perto ficavam nossas caras” / “...sem desviar
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de mim os grandes olhos espertos gestos”); é a aproximação do outro, são as partes do
corpo que se mostram sutilmente (“...e eu vi-lhe metade dos braços muito claros, e
menos magros...”); é o toque (“... pôs as mãos no meu ombro...”); são os movimentos
que adquirem uma tonalidade sensual (“...enfiando os olhos por entre as pálpebras
meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços,
para umedecê-los”); são as sensações e percepções que se fazem sentir (“...como se
tivesse um arrepio de frio...”); são as atitudes e gestos duvidosos (“Fitei-a um pouco e
duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam
não ter ainda pegado no sono”).
A partir desse ponto de vista, D. Conceição parece esconder-se atrás da máscara
do abandono e da indiferença do marido, fazendo uso de todas as qualidades que lhe são
atribuídas para ocultar a sua verdadeira personalidade: a de cínica e impudente,
empenhada em seduzir um garotão de 17 anos durante a ausência do marido.
Por fim, como uma forma de insinuar uma comprovação das suas suspeitas, o
narrador menciona sugestivamente o caso de, anos depois, com a morte do marido, D.
Conceição ter se casado com o escrevente juramentado do marido.
Enfim, tudo é sugerido, mas nada é revelado concretamente. Os vazios vão se
formando e mais uma vez o leitor é induzido a cooptar com o narrador, tornando-se seu
cúmplice e partilhando do mesmo ponto de vista do narrador, o qual é marcado pela
imprecisão, incerteza e ambigüidade.
Essa possibilidade de interpretação do conto, com base em duas hipóteses básicas,
a da inocência e a da impudência de D. Conceição, são dois modos intercalados de ver a
personagem, são duas faces da mesma moeda, nenhuma das quais inteiramente falsa,
nem inteiramente verdadeira.
A verdade é que Machado de Assis, através da acertada escolha do foco narrativo,
conduz a narrativa de maneira ambígua, deixando o leitor em cima do muro ou
propenso no ar em meio a dificuldade de se tirar conclusões precisas. A exemplo do
célebre romance Dom Casmurro, nada pode ser afirmado nem negado categoricamente.
A história se abre para diversas perspectivas de leitura, tornando a obra mais instigante
e desafiadora.
Dessa forma, uma leitura mais desafiadora e em nível mais profundo do que as
apresentadas acima, não tomaria como foco central da narrativa a figura de D.
Conceição. A despeito de toda a polêmica que gira em torno dela, esquece-se que, de
fato, ela não é a personagem problema da história, assim como não o é Capitu. Na
verdade, ambas não têm vida própria dentro das narrativas, elas nem sequer podem ser
consideradas como personagens, pois, verdadeiramente, elas constituem recortes
memorialistas criados ou resgatados da memória do narrador.
De fato, há apenas uma única personagem no conto: Nogueira que, muitos anos
após o ocorrido na noite da missa do galo, decide recolher, sob forma de narrativa, as
impressões que se conservaram em sua memória. Desse modo, embora Conceição tenha
se tornado muito mais famosa, devido a sua postura polêmica e ambígua, ela não é a
personagem problema da história. Conceição é apenas um recorte ou fragmento de um
retrato de mulher criado ou resgatado da memória do narrador. Ela nem sequer é
apresentada, em vez disso, é simplesmente denunciada. Toda a ambigüidade que gira
em torno dela, depende da maneira como o narrador Nogueira a vê.
Assim, por se tratar de um retrato moral, o narrador procura intensificar a
imprecisão e a suspeita sobre ela, mas sem se atrever a lhe estabelecer um julgamento
moral. Em vez disso, ele apenas faz sugestões: “Ouvi mais tarde que casara com o
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escrevente juramentado do marido” (ASSIS, 1998, p. 393), deixando que o leitor faça a
sua própria apreciação sobre a situação relatada.
Tendo em vista os desdobramentos do narrador como o foco central da
problematização da narrativa, a primeira tarefa que um leitor mais arguto do texto
machadiano deverá executar será a de duvidar da sinceridade das afirmações desse
narrador. Muito mais do que um narrador ingênuo, Nogueira é um narrador que “quer se
fazer ingênuo”. Sua intenção é justamente a de relevar a sua ingenuidade perante os
olhos do leitor. As suas insinuações e sugestões desviam a atenção e os juízos críticos
para o comportamento de D. Conceição, afastando-os de si.
Mantendo-se de todo coerente no seu propósito de efetivar a sua ingenuidade e
desviar a atenção do leitor para a postura de D. Conceição, o primeiro procedimento
adotado pelo narrador é a escolha do ângulo de visão. Situando-se numa posição
distanciada temporalmente dos fatos narrados, o narrador compõe o seu relato a partir
das impressões que se lhe conversaram na memória. Dessa maneira, esse
distanciamento temporal dos fatos narrados contribui para intensificar a atmosfera de
dúvida e imprecisão que permeia o conto, como podemos notar na seguinte passagem:
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos,
contava eu dezessete, ela trinta” (ASSIS, 1998, p. 386). O reflexo desse afastamento
temporal é precisamente a dubiedade da narração, como ocorre mais adiante: “Há
impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me,
atrapalho-me” (ASSIS, 1998, p. 391).
Um segundo procedimento que se faz presente é o exercício de contrastar a sua
idade, 17 anos, com a maturidade dos 30 anos de Conceição. Novamente, sua
ingenuidade é realçada, desviando-se a atenção do leitor para a suposta personalidade
impudente de D. Conceição.
Somando-se a isso, há o seu desconhecimento do adultério de Meneses.
Determinado a reforçar sua ingenuidade, Nogueira procura mostrar que apenas ele não
sabia das relações extraconjugais de Meneses.
Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que
ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia
uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e
só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um
eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do
marido, e dormia fora de casa uma vez por semana (ASSIS, 1998, p. 386).
Prosseguindo nesse firme propósito de se fazer ingênuo perante os olhos do leitor,
a própria opção do narrador pela leitura – enquanto espera a hora da missa do galo – do
livro Os Três Mosqueteiros – declarando o seu gosto por tal tipo de literatura romântica
– objetiva enfatizar a sua ingenuidade.
Além disso, o narrador justifica a sua permanência na Corte pelo simples
interesse (forjadamente desprovido de qualquer outra intenção) em ver a missa do galo:
“Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias, mas fiquei até o Natal para ver a missa do
galo na Corte” (ASSIS, 1998, p. 387). Mais adiante, Conceição retruca esse seu
interesse em ver a missa na Corte: “É a mesma missa da roça; todas as missas se
parecem”. E Nogueira reforça o seu ingênuo interesse: “Acredito; mas aqui há de haver
mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na
roça. S. João não digo, nem Santo Antônio...” (ASSIS, 1998, p. 389).
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Ver a missa do galo na Corte? Seria apenas e exatamente este o interesse de
Nogueira? São interrogações que certamente se formulam no pensamento de leitores
mais argutos do texto machadiano que não se deixam levar pelas circunstâncias
aparentes. A referência religiosa parece forjada e enganosa, sendo possivelmente outro
o interesse de Nogueira em permanecer na Corte, como talvez o de querer aproximar-se
de Conceição. Mas essa possibilidade é rigorosamente dissimulada e só uma leitura
mais acurada do conto poderia identificá-la.
Semeando pistas falsas por toda a narrativa, o narrador procura apontar a sua
preferência por permanecer acordado, só para acordar o vizinho, como um ato
voluntário e desinteressado, sem qualquer outra intenção oculta por detrás. Contudo, um
leitor atento certamente suspeitará da real ingenuidade desse narrador e da naturalidade
com que expõe as suas próprias ações e intenções. Nogueira não teria nenhuma outra
expectativa ao manter-se acordado na sala da frente justamente na noite em que o
marido passaria fora de casa?
Dessa forma, empenhado na dissimulação das suas possíveis segundas intenções,
o narrador situa-se num plano temporal distanciado dos fatos narrados. Isso quer dizer
que Nogueira terá tido tempo de dispor razões e sentimentos e de introduzir artifícios
destinados a cooptar o leitor, enquanto narra ou se prepara para narrar. Serão artifícios
capazes de criar aquela atmosfera de “ilusão” que envolverá e prenderá o leitor como
uma teia, de modo que ninguém garante que Nogueira não se excedeu e forjou algumas
situações.
Um desses artifícios se faz presente no exercício dialético de afirmar, ou pelo
menos sugerir e insinuar, para logo em seguida negar ou ocultar. Segundo Bosi, uma
expressão que traduz adequadamente a idéia desse procedimento é a “atenuação das
negativas”, o que não significa dizer uma anulação dessas negativas. Adotando essa
perspectiva, o narrador tende, primeiro, “a dizer o que vê (vocação de descobrir),
desdizer depois (vocação de encobrir), para, num último movimento, deixar sobreposto
o rosto e venda” (BOSI, 2000, p. 131).
Uma passagem em que há uma ocorrência evidente dessa interação dialética entre
dizer e desdizer é quando Nogueira pergunta a D. Conceição se ela acordara por algum
barulho que ele havia feito. Ela responde que não, que acordara por acordar. Em
seguida, o narrador comenta: “Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não
eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono”
(ASSIS, 1998, P. 388).
Nessa passagem, o narrador expõe declaradamente a sua dúvida em relação à
afirmação feita por D. Conceição. Entretanto, logo em seguida, ele desconsidera a sua
suspeita, negando a importância da sua observação: “Essa observação, porém, que
valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez
não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer”
(ASSIS, 1998, p. 388).
Por fim, o narrador tenta justificar a possível mentira de D. Conceição,
declarando que “talvez” mentisse para não lhe afligir ou aborrecer. Assim, num jogo
entre denúncia e atenuação, o narrador sugere a possibilidade de D. Conceição ter
premeditado um encontro com ele, mas, em seguida, desconsidera a importância dessa
observação.
Segundo Bosi, o efeito dessa interação entre dizer e desdizer, sobrepondo ambas
as atitudes ao final, “é sempre o da dupla possibilidade: a salvação do positivo, apesar
do negativo, a persistência deste apesar daquele” (BOSI, 2000, p. 131). Desse modo,
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embora Nogueira desconsidere a importância da sua observação, esta permanecerá
atuando sobre a opinião do leitor a respeito da caracterização de D. Conceição.
Enfim, Nogueira encerra o caso com uma afirmação impaciente: “Já disse que ela
era boa, muito boa” (ASSIS, 1998, p. 388), como se ele próprio quisesse reprimir a si
mesmo e dispersar as malícias que começavam a se formular em sua própria
imaginação.
Assim, apesar de toda a dissimulação do narrador, há momentos em que ele deixa
entrever o aspecto forjado das situações. Um exemplo disso encontra-se na passagem
em que D. Conceição redargüiu sobre a razão da sua permanência na Corte, com o
simples propósito de ver a missa do galo. Nesse caso, vemos que, se o narrador – com
toda a sua onipotência, tendo o poder de decidir quais informações serão fornecidas ao
leitor – opta por inserir essa contestação de Conceição, é porque ele deseja deixar
transparecer, ao menos pelas entrelinhas do texto, o aspecto forjado da sua própria
ingenuidade.
Desse modo, tendo todo o poder sobre a narrativa, o narrador poderia muito bem
ludibriar todas essas passagens que denunciam a sua personalidade dissimulada.
Entretanto, se ele opta por deixar que todas essas marcas do seu caráter forjado
transpareçam por detrás da aparência do texto, significa que a sua intenção é justamente
a de conduzir o leitor audaz ao descrédito de tudo o que ele próprio afirma ou insinua.
Partindo dessa perspectiva, o leitor passará a desconfiar da sinceridade do
narrador e começará a vê-lo com outros olhos. Possivelmente, ele perceberá que não é
exatamente o comportamento de Conceição que se transforma ao longo do conto, mas o
modo o narrador a vê.
Desse modo, podemos notar que D. Conceição vai se transfigurando aos olhos do
narrador, de modo que passa da mulher séria e honesta – descrita como uma “santa”,
com um rosto mediano, nem feia nem bonita, uma mulher que não sabia odiar e talvez
nem soubesse amar – para uma mulher linda, “lindíssima”, cuja visão enchia Nogueira
de gozo e satisfação.
Nesse sentido, a beleza de Conceição parece não fluir da personagem em si, mas
dos próprios olhos do narrador: “em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou
linda, ficou lindíssima” (ASSIS, 1998, p. 391). Nogueira é o responsável por essa súbita
revelação da beleza de D. Conceição. É ele que a vê, que a descobre, que, através do seu
olhar, embevecido com tudo o que Conceição lhe traz de novo, de diferente, alimenta
esse jogo de sedução e revelação.
Portanto, Nogueira vai deixando de ser o “seduzido” da história e passa da
posição de garotão ingênuo para a de impudente, assumindo em parte as perversões e
obscenidades que, com o apoio da cumplicidade do leitor, tentou atribuir ao caráter de
D. Conceição.
Há em Nogueira um encantamento em relação à figura de Conceição, como ele
próprio expressa em dados momentos: “Uma dessas vezes creio que deu por mim
embebido na sua pessoa, e lembra-me que tornou a fechar [os olhos], não sei se
apressada ou vagarosamente” (ASSIS, 1998, p. 391).
Podemos notar que Nogueira apresenta um constante interesse em ver as suas
suspeitas se confirmarem: “E não saía daquela posição que me enchia de gosto, tão
perto ficavam as nossas caras” (ASSIS, 1998, p. 390). Diante disso, talvez possamos
dizer que não é propriamente Conceição que se insinua para Nogueira, mas este que vê
malícias em todos os seus gestos, olhares e movimentos, por mais singelos e inocentes
que sejam.
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Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente e eu vi-lhe metade
dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista
não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento,
porém, a impressão que tive foi grande (ASSIS, 1998, p. 390).
Em verdade, nada de incomum parece haver no ato de Conceição. Como o
próprio narrador afirma, “a vista não era nova”, mas ele parece estar sempre a querer
ver ou insinuar algo mais nas atitudes de Conceição.
Fato semelhante ocorre logo em seguida: “Deu volta à mesa e veio sentar-se do
meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o
tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo” (ASSIS,
1998, p. 390). Podemos observar que o ocorrido não indica necessariamente que
Conceição desejou revelar suas chinelas ou, como na situação anterior, partes de seu
corpo; mas, em vez disso, há mais propriamente um interesse do narrador em quer
desvendar as suas intimidades a todo o instante.
Uma vez provocado, por aquele encontro, o encantamento de Nogueira, a figura
de Conceição não mais lhe sairá da cabeça, interpondo-se, inclusive, entre ele e o padre
durante a missa do galo. D. Conceição, por sua vez, parece não demonstrar a mesma
fascinação, de modo que, no dia seguinte, ela estava como “sempre, natural, benigna,
sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera” (ASSIS, 1998, p. 393).
Por outro lado, o interesse de Nogueira permanecerá ativo, como podemos notar
pela sua preocupação em saber notícias de D. Conceição: “Quando tornei ao Rio de
Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no
Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o
escrevente juramentado do marido” (ASSIS, 1998, p. 393).
Desse modo, podemos observar que o final do conto se abre para inúmeras
possibilidades de interpretação, conduzindo o leitor para mais um enigma do texto. Isso
nos remete para o começo do conto, o enigma com que o narrador inicia o relato.
Escreve-se o conto com a intenção de se dissolver esse enigma, mas o problema é que
ele não é resolvido. Há, portanto, a presença de dois discursos no conto. Paralelamente
ao que “acontece”, há sempre o que “parece estar acontecendo”. E disto nunca temos
certeza – afirma Nádia Gotlib, em Teoria do Conto (GOTLIB, 2003, p. 78).
Dessa forma, a história se desdobra em dois discursos que se entrechocam e que
se contrapõem. Há sempre, por detrás do que está sendo dito, o discurso do não dito,
constituído pelas insinuações e sugestões das entrelinhas. Esse discurso que se
desenvolve nas entrelinhas do texto oficial é composto a partir dos gestos, movimentos,
olhares, cochichos e inúmeros outros pequenos detalhes que, embora sejam pequenos,
adquirem uma enorme significância dentro do conjunto do texto.
Além disso, o discurso do não dito parece estar constantemente contradizendo o
discurso oficial, criando-se uma atmosfera enigmática e de tensão, que se abre para as
ambigüidades, em que vários discursos dialogam entre si. Portanto, muito além de um
traço gratuito, essas entrelinhas adquirirem a dimensão de um recurso formal de efeito,
que se empenha na construção de um enunciado contrastante e ambivalente.
A partir disso, o conto “Missa do galo” se estrutura de forma a deixar ao leitor a
decisão sobre a ingenuidade ou impudência de Conceição. Os indicativos coligidos pelo
narrador são circunstanciais: gestos, olhares, movimentos sensuais de aproximação e
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desnudamento. Entretanto, tais apontamentos não chegariam a configurar um caso de
assédio; seriam, quando muito, suspeitas — mas a crítica, embalada pelo discurso
emotivo de Nogueira, que se destina a cooptar o leitor, e pela deliberada ambigüidade
do texto machadiano, aceitou-as como provas conclusivas.
Desse modo, o relato de Nogueira constitui uma versão pessoal de
acontecimentos dramáticos, sujeita, portanto, a omissões voluntárias ou casuais, e a
deformações por ventura preconcebidas, muito provavelmente, no interesse de uma
autodefesa, perante sua própria consciência.
Assim, a postura de Nogueira se assemelha a de Bentinho, narrador de Dom
Casmurro, que, segundo Ivan Teixeira, decide escrever um livro para exorcizar os
demônios do passado e demonstrar que não errou ao expulsar a mulher de casa e negar a
paternidade do filho (TEIXEIRA, 1988, p. 121). De modo semelhante, Nogueira decide
escrever o conto procurando mostrar que não errou ao sentir-se seduzido e ao alimentar,
em sua imaginação, pensamentos maliciosos para com a santa e boa Conceição.
Quanto a Conceição, assim como ocorre com Capitu, até hoje, a maioria dos
escritores só tem se preocupado em ressaltar a sua ambigüidade e dissimulação. “Missa
do galo”, porém, é um retrato de mulher feito sob a ótica masculina. A ambigüidade
depende da maneira como Nogueira a vê e, sendo um retrato moral, o delineamento da
personagem jamais seria preciso.
Além da incerteza quanto ao assédio de D. Conceição, o conto aponta para a
dúvida entre o que conhecemos das pessoas e aquilo que elas realmente são. Daí decorre
o seu poder de sugestão, que é conseqüência de um pormenor estrutural: a escolha do
foco narrativo. Ao inventar o narrador problemático, Machado descobriu a chave para a
densidade psicológica do conto e para o seu efeito estético. Nogueira é duplamente
problemático: enquanto entidade psicológica e enquanto ponto de vista narrativo. Com
essa problematização, ampliou-se o nível de significação da obra, sendo ele a
personagem realmente complexa e não Conceição. Esta se tornou mais famosa, porque
o conto decorre dos efeitos que ela provocou no narrador, mas a personagem rica da
narrativa, enquanto portadora de problemas, é Nogueira.
Há, assim como em Dom Casmurro, a presença da tendência machadiana de
indagar os recessos ocultos e inconfessáveis do indivíduo. Partículas diminutas da
narrativa que requerem uma leitura atenta – características estas que, na concepção de
Ivan Teixeira (1988), são típicas do microrrealismo psicológico. Isso também indica a
dificuldade de se enquadrar a alma humana nos esquemas racionais da moral.
Machado de Assis, com a sua ambigüidade e ambivalência, com o seu poder de
insinuar e sugerir, revela a sua maestria na arte de armar disfarçadamente tabuleiros e de
propor jogos. E não há quem resista a uma proposta lúdica. Por essa razão, o suposto
assédio de Conceição ainda incomoda. De todo modo, não precisaríamos dissolver o
enigma que gira em torno dela e em torno da própria postura do narrador. A sua
permanência, a despeito dos exercícios críticos e acadêmicos de desmontagem do conto,
responde pela imortalidade dessa célebre obra prima de Machado de Assis.
Além de todo o efeito estético do conto condensado na acertada escolha do foco
narrativo, podemos observar alguns outros procedimentos que atuam de modo marcante
para a ampliação da expressividade da obra. Um deles se faz presente no modo de
marcar a passagem temporal. Inicialmente, as ações são pontuais: “A família recolheuse à hora de costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto” (ASSIS, 1998, p.
387). Em seguida, Nogueira, enquanto espera pela hora da missa do galo, distrai-se com
a leitura de um romance de aventuras: Os Três Mosqueteiros. A partir de então, começa
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a ocorrer uma transformação no eixo temporal, marcada por uma aceleração que
dificulta a percepção de Nogueira em relação à passagem do tempo: “Os minutos
voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze
horas, mas quase sem dar por elas, um acaso” (ASSIS, 1998, p. 387). Desse modo, essa
mudança é deflagrada pela leitura que Nogueira faz do romance romântico, o que
aponta a literatura como um catalisador dessa transformação ocorrida na marcação da
passagem temporal.
Uma nova transformação na duração temporal será instaurada no conto a partir do
momento em que Conceição aparece na sala onde Nogueira espera pela hora da missa
do galo. Passa a atuar um ritmo marcado pela lentidão, que faz esquecer a preocupação
com a hora e com os compromissos. “A conversa reatou-se assim lentamente,
longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa” (ASSIS, 1998, p. 391).
São profusas as expressões adverbiais de tempo, as quais são assinaladas pela
imprecisão: “Parava algumas vezes examinando” (p. 389); “Pouco a pouco, tinha-se
inclinado” (ASSIS, 1998, p. 389); “De quando em quando reprimia-me” (p.391). A
conversa, portanto, toma a cena principal ocorrendo uma espécie de paralisia que
impede as ações:
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e
quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir
o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia
preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja (ASSIS, 1998,
p.392).
O discurso das personagens abandona o encadeamento lógico e linear
característico das narrativas com predominância da ação, aproximando-se do estilo livre
e ziguezagueante das Memórias Póstumas de Brás Cubas, próprio ao tratamento
psicanalítico: “Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade e de outras
cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que,
variando deles ou tornando aos primeiros” (ASSIS, 1998, p. 390).
Essa lentidão parece associar-se também ao estado de sonolência e devaneio das
personagens, criando um clima propício ao desejo de atração entre elas. Isso revela a
consciência que Machado de Assis detinha das formas literárias modernas, empenhadose com rigor na coerente adequação entre forma e tema.
Além disso, nessa mudança ocorrida no ritmo da narrativa – passando da
aceleração, que marca o tempo de leitura do romance Os Três Mosqueteiros, para um
ritmo mais frouxo, arrastado e lento, instaurado após a aparição de Conceição na sala –
há ainda toda uma preocupação com hábitos de leitura da época, que, de certo modo,
ainda estavam pautados nos clichês românticos. Assim, assumindo uma função
metalingüística, esse refreamento temporal tem o intuito de mostrar ao leitor que,
diferentemente do que ocorre com as narrativas românticas, a narrativa anda devagar.
De certo modo, o conto exprime implicitamente aquilo que Brás Cubas, nas Memórias
Póstumas, afirma declaradamente: “o maior defeito deste livro és tu, leitor” (Cap.
LXXI).
Outro procedimento de notável importância no conto, e que diz respeito mais
especificamente à condição feminina, é a denúncia social. De modo sutil, Machado
conduz, pelos arredores do conto, a sua crítica ao código social com sua distribuição
imprópria de poderes e papéis, que vai se evidenciando no confinamento a que D.
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Conceição é submetida. Nesse caso, torna-se significativa a observação do modo como
são distribuídas as chaves da casa: “Tinha três chaves a porta; uma estava com o
escrivão, eu levaria a outra, a terceira ficava em casa” (ASSIS, 1998, p. 387).
No conto, a chave da casa adquire a dimensão de símbolo social, compreendendo
o poder de dominar a passagem da casa para a rua, para o mundo dos incidentes, dos
encontros nos teatros, que favorecem a incidência das grandes paixões. A primeira
chave pertence a Meneses, o dono da casa, aquele que possui o domínio da rua. A
segunda chave está provisoriamente com Nogueira e a terceira chave ficava na porta,
conforme relata o narrador. Esta, pois, não pertence a ninguém, simplesmente é da casa.
Como uma chave imóvel, permanentemente na porta, ela é usada para deixar alguém
entrar, não para sair. Delimita, assim, uma área de trânsito possível para a mulher,
definindo-se, dessa maneira, seu lugar e função – no caso, a permanência em casa e a
dedicação aos cuidados do lar.
Desse modo, o conto denuncia a função tácita da mulher de cuidar da porta da
casa. Os filhos e/ou o marido podem sair sem a chave porque contam com o fato de que
a mulher está em casa para que possam entrar. E, dessa maneira, a casa acaba se
tornando, para a mulher, o lugar do silêncio, do controle, da passividade e da
obediência.
Assim, a situação de reclusão determina que o mundo fora de casa seja para a
mulher burguesa um mundo pouco conhecido, ao qual ela quase não tem acesso. Uma
forma possível de acesso se dá através da fantasia. É o que se observa num fragmento
de diálogo entre Nogueira e Conceição. Ele diz: “– [então] a senhora nunca foi à casa de
barbeiro...”. Em resposta, ela comenta: “Mas imagino que os fregueses, enquanto
esperam, falam de moças e namoros” (ASSIS, 1998, p. 392).
Uma outra forma de contato com o mundo exterior se dá através da literatura.
Fora isso, resta a Conceição a reclusão aos aposentos da casa. Dentro da casa, há o
quarto, onde o silêncio se transforma em insônia. O sofrimento pela relação
extraconjugal do marido foi seguido pela resignação: “Menezes trazia amores com uma
senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição
padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se” (ASSIS,
1998, p. 386). Sofrimento, silêncio, resignação, insônia e mortificação. São aspectos que
denunciam a condição quase que de escrava a que eram submetidas as mulheres da
época.
Confinada aos limites da casa e às regras de comportamento próprias a uma
senhora casada, Conceição adota a resignação, a conduta austera, a abolição da
sensualidade. O contato com o estudante, forasteiro, em uma situação intermediária
criou um mundo especial onde o racional foi posto em suspensão, de maneira a permitir
a emergência do erótico. Assim, a suposta sedução de D. Conceição adquire a condição
de “mal necessário”, ocorrendo uma vez mais uma atenuação dos juízos de valor que
regem a moral e os padrões de comportamento da sociedade.
Por fim, considerando o caráter enigmático do conto “Missa do Galo” e a sua
abertura para diversas possibilidades de interpretação e de combinação de sentido,
podemos dizer que ele se configura de modo idêntico ao que Umberto Eco denomina de
obra aberta. Segundo ele, “a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua,
uma pluralidade de significados que convivem num só significante” (ECO, 2001, p. 22).
Em seguida, o autor ainda acrescenta que a ambigüidade se torna – nas poéticas
contemporâneas – uma das figuras explícitas da obra. Desse modo, os enigmas e as
falsas pistas que vão sendo apresentados e parcialmente desvelados, no decurso do
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conto, implicam uma participação do leitor na construção do texto. A leitura torna-se
um processo potencialmente infinito, de modo que o número de leituras possíveis pode
variar de acordo com o número de leitores, constituindo assim uma corrente narrativa.
Isso fica bastante claro na experiência lúdico-literária realizada por um grupo de autores
brasileiros do século XX ao reescreverem o conto de Machado de Assis tomando, cada
um deles, o ponto de vista de um dos personagens, recriando o texto e revelando novas e
talvez insuspeitadas facetas .
Referências bibliográficas
ASSIS, J. M. M. de. Contos: uma antologia / Machado de Assis. Seleção, introdução e
notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol. 2.
BOSI, A. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2000.
CALLADO, A. et al. Missa do galo: variações sobre o mesmo tema. São Paulo:
Summus, 1977.
ECO, U. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 8. ed.
Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2001.
GOTLIB, N. B. Teoria do Conto. 10. ed. São Paulo: Ática, 2003.
TEIXEIRA, I. Apresentação de Machado de Assis. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes,
1988.
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