3. o som do osso: ecologia musical dos pífanos do nordeste

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3. o som do osso: ecologia musical dos pífanos do nordeste
O SOM DO OSSO: ECOLOGIA MUSICAL DOS PÍFANOS DO NORDESTE DO
BRASIL
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Luciano Silva de Menezes, Juracy Marques , André Luis O. P. de Souza , Fátima Cristina da Silva
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Oliveira , Robson Marques dos Santos , Maria Cleonice de Souza Vergne
1. Graduado em História. Mestrando em Ecologia Humana (PPGECOH-UNEB). [email protected]
2. Professor Titular da UNEB e Presidente da Sociedade Brasileira de Ecologia Humana – SABEH. [email protected]
3. Comunicador Social. Mestrando em Ecologia Humana (PPGECOH-UNEB). [email protected]
4. Arqueóloga. Mestranda em Ecologia Humana (PPGECOH-UNEB). [email protected]
5. Educador Físico. Mestrando em Cultura e Sociedade (UFBA). [email protected]
6. Doutora em Arqueologia. Professora da UNEB – Campus VII. [email protected]
RESUMO
Esse trabalho ressalta o papel do Pífano e de uma Ecologia Musical. Suas expressividades que são
afirmadas através das bandas de Pífanos do Nordeste brasileiro. Procuramos, a princípio, constituir
um percurso trilhado pelas flautas. Demonstrando assim, que algumas descobertas arqueológicas,
dessa ordem, confirmam a essência da música em períodos e conjunturas históricas diferenciadas.
Porém, a esse respeito, somente os instrumentos são descobertos, mas, seus sons, são apenas
conjecturas de um passado. Não podemos adentrar nessas representações sonoras de inconscientes
auditivos. Assim, as flautas ancestrais, aqui evidenciadas, configuraram formas de mimetizar o som
dos ventos, o canto dos pássaros e da vida. O Pífano manifesta, intrinsecamente, elementos
simbólicos e ritualísticos, sendo, portanto, embevecido por hibridismos musicais e culturais. Na
atualidade, as práticas culturais que envolvem as bandas de Pífanos têm significados múltiplos. São
afirmações culturais variadas que, de certa forma, consegue desenhar uma Ecologia Musical,
específica e singular.
Palavras-chaves: Flautas. Pífano. Música. Ecologia. Cultura.
ABSTRACT
This work states the Fife role in Musical ecology. They express that they are affirmed through the Fife
bands in the North of Brazil. We search, by starting to build a road the follows the flutes, showing that
same uncovered archaeological discoveries in this order confirm the music essence in periods of
different. Even though only the instruments are discovered but their sounds, conjuncture of the past.
We cannot get in these representations sound of auditory unconscious. But like the ancient flutes,
there is evidenced here, the sets the form the copy the wings sound, the, birds singing, and of life. The
Fife manifested intrinsically, symbol elements, being however enraptured by music and hybridity
cultural. In the real life, the culture practices that involve the flute Fife bands that have significant
multiply. They affirm culture variety that by a certain form are able to design a Musical Ecology specific
and single.
Keywords: Flutes. Fife. Music. Ecology. Culture.
1
Graduado em História. Mestrando em Ecologia Humana (PPGECOH-UNEB). [email protected]
Professor
Titular da UNEB e
Presidente da Sociedade Brasileira de Ecologia Humana
[email protected].
3
Comunicador Social. Mestrando em Ecologia Humana (PPGECOH-UNEB). [email protected]
4
Arqueóloga. Mestranda em Ecologia Humana (PPGECOH-UNEB). [email protected]
5
Educador Físico. Mestrando em Cultura e Sociedade (UFBA). [email protected]
6
Doutora em Arqueologia. Professora da UNEB – Campus VII. [email protected]
2
–
SABEH.
36 1. A PRÉ-HISTÓRIA DO SOM
Figura 1: Esqueletos encontrados com flautas no São Francisco (VERGNE, 2016)
Em todos os períodos de sua trajetória, a humanidade sempre se relacionou com os
sons. Essa interação tem acontecido por meio das vibrações sonoras da natureza ou
pelos sons emitidos por nossa própria espécie. Muitos indícios arqueológicos
ratificam o percurso dessa dinâmica; um exemplo são as descobertas arqueológicas
de Nicholas Conard, em 2008, na caverna de Hohle Fels, localizada no sul da
Alemanha. Essas escavações evidenciaram curiosos artefatos, confeccionados a
partir de ossos de fauna7 e de marfim, com orifícios alinhados. Estudos revelaram se
tratar de flautas datadas de aproximadamente 35.000 AP - período correspondente
ao paleolítico superior. O conjunto caracteriza uma das mais antigas evidências
arqueológicas desta natureza; corrobora a existência de instrumentos musicais
complexos como uma indicação plena de comportamento moderno e comunicação
simbólica avançada8.
Para Conard (2009)9, o aparecimento de uma tradição musical no período
Aurignaciano acompanhou o desenvolvimento da arte figurativa e de inúmeras
inovações, incluindo um amplo conjunto de novas formas de ornamentos pessoais e
tecnologia lítica. Para o autor, a presença da música no período paleolítico não
produziu, diretamente, uma eficaz subsistência econômica ou maior aptidão
7
Antiga de espécie de abutre (Aegypius monachus).
CONARD, N. J.;, MALINA, M.; MUNZEL, S. C. New flutes document the earliest musical tradition in southwestern Germany.
Nature Letters, 2009.
9
CONARD, N. J.;, MALINA, M.; MUNZEL, S. C. New flutes document the earliest musical tradition in southwestern Germany.
Nature Letters, 2009.
8
37 reprodutiva. Entretanto, num contexto comportamental, pode ter contribuído para a
manutenção de socializações amplas e ter ajudado na expansão demográfica
moderna em relação às populações Neandertais. Demonstrou assim, a presença
estabelecida de uma tradição musical durante as primeiras colonizações na Europa.
As flautas identificadas por Conard, na Alemanha, ocupam lugar de destaque na
literatura do gênero, como as mais antigas encontradas no mundo. Na América do
Norte, a flauta mais antiga registrada é datada de cerca de 5580 AP, igualmente
confeccionada a partir de osso de ave, localizada entre 1973 e 1974, em contexto
funerário no sítio arqueológico L’Anse Amour10, ao sul da Península do Labrador, no
Canadá, pela equipe dos arqueólogos Robert McGhee e James Tuck.
No sítio arqueológico de Caral, no Vale do Supe11, no Peru, foram descobertas 32
flautas de ossos de asas (úmero, ulna e rádio) de pelicanos (Pelecanus), datadas de
cerca de 2170 AP12. Escavadas em um anfiteatro, com capacidade para centenas de
pessoas, permitindo assim, afirmar a música como um componente essencial nesta
sociedade.
Na Ásia, igualmente, ocorrência de flautas milenares, como as identificadas no sítio
arqueológico Jiahu, na província de Henan – oeste da China. Descoberto em 1962,
por Zhu Zhi, então diretor do Wuyang County Museum, mas escavado apenas a
partir de 1980. Jiahu possui datações de até 9.000 AP; nele foram encontradas
flautas de cinco a oito orifícios, confeccionadas com ossos longos da ave Grou da
Manchúria (Grus japonensis)13.
No Brasil, achados arqueológicos dessa ordem, foram localizados durante
escavações nos cemitérios pré-históricos, Sítio do Justino - SE14 e Furna do Estrago
- PE15.
10
MCGHEE, R.; TUCK, J. A. An archaic sequence from the Strait of Belle Isle, Labrador. National Museums of Canada,
Quebec, 1975.
11
Norte de Lima, Peru.
12
SOLIS, R. S.; PRADO, M.; LEYVA, C.; MORENO, J.; JIMENEZ, C. ; LLIMPE, C. Las Flautas de Caral-Supe: Aproximaciones
al Estudio Acústico-Arqueológico del Conjunto de Flautas más Antiguo de América. Boletín del Museo de Arqueología y
Antropología de la UNMSM, Volume 3, Number 11, Lima, Peru, 2000.
13
https://www.bnl.gov/bnlweb/pubaf/pr/1999/bnlpr092299.html
14
Situado em terraço fluvial às margens do rio São Francisco, no município de Canindé do São Francisco, estado do Sergipe.
15
Abrigo sob rocha localizado no município do Brejo da Madre de Deus, estado de Pernambuco.
38 Durante as Escavações Arqueológicas realizadas no Sítio Justino, no período que
compreendeu de 1988 a 1994, na área onde seria construída a Barragem da
Hidroelétrica de Xingó, foram evidenciados dois Sítios com contexto de
enterramento: o Sítio São José, com dois Cemitérios, formando um conjunto de vinte
oito sepultamentos e o Sítio Justino, com cinco Cemitérios, composto por duzentos e
dois esqueletos.
Destacamos os esqueletos números 118 e 142, localizado no Cemitério B, cuja
datação reporta-se aos seguintes períodos 2650 ± 150 B.P. e 3270 ± 135 B.P.,
ambos do sexo masculino, com 35 anos, que entre os objetos que compunha o seu
ritual funerário foi encontrada uma flauta em osso, depositada sobre as suas
costelas, além de outros objetos que compuseram o seu enxoval mobiliário.
No Sítio Furna do Estrago, 87 indivíduos foram exumados. Também se identificou 03
flautas ósseas bastante fragmentadas, além de 01 provável apito. A única flauta
preservada está associada ao sepultamento de um indivíduo adulto do sexo
masculino, que ficou conhecido como “o flautista”.
Figura 2: O Flautista (Museu de Arqueologia da UNICAP. Foto: Viviane Castro, 2009).
Gabriela Martin16 descreve o sepultamento do “flautista” em “Pré-história do
Nordeste do Brasil”:
Especial registro merece a sepulturas chamadas do “flautista”, um adulto de
sexo masculino em posição fetal com as mãos perto da face e que levava
entre os braços uma flauta feita de uma tíbia humana com um único orifício,
além de um delicado cinto de fibras vegetais como adorno. O esqueleto
levava também um colar de 31 contas de osso de ave (MARTIN, p. 311).
16
MARTIN, G. Pré-história do Nordeste do Brasil. Editora Universitária da UFPE, Recife, 1996.
39 As evidências supracitadas traduzem a significativa relação de antepassados com
tais instrumentos. Para Morley17 (2003), o desenvolvimento dessas capacidades
musicais se encaixa em vários modelos de evoluções cognitivas, propostas para os
hominídeos. Estas propostas seriam focadas no surgimento da linguagem e do
comportamento simbólico, como características definidoras dos humanos modernos.
Com o advento da Arqueomusicologia,18 e da Nova Arqueologia, observa-se outra
modalidade acerca da sistematização dos estudos voltados para interpretação do
valor simbólico e sociocultural da música entre as comunidades do passado. Para
Piqueras19 (2003), não havia congregações de análises acústicas aos dados
arqueológicos até 1975, quando o arqueólogo e historiador, Sergei Nikolaevich
Bibikov publicou o artigo “Una orquesta de la Edad de Piedra”, sobre um
assentamento de cerca de 20.000 AP, na Ucrânia, conhecido como Orquestra de
Mezín:
Los artefactos sonoros estaban concentrados en una misma zona,
dispuestos en semicírculo (...) Todos los trazos demuestran que formaban
parte de un conjunto instrumental y coreográfico, compuesto de
instrumentos de tipo estacionario (fémur, omóplato, maxilares, pelvis), de
útiles móviles (mazo, brazalete sonoro) y de una serie de accesorios (aguja
de hueso, ocre rojo y amarillo, conjuntos de conchas). Además, la posición
de cada uno de ellos refuerza su calidad sonora, lo que demuestra que se
han colocado intencionadamente en esa posición. La relación con el resto
de elementos que se recogieron en la cabaña (adornos, figuritas de marfil...)
no hace sino reforzar la relación y la interdependencia entre danza, música
y ritual. (PIQUERAS, 2003, p. 55)
Piqueras (2003) afirma que Bibikov despertou interesse sobre os instrumentos
musicais, num contexto arqueológico, e a necessidade de uniformizar estudos nesse
campo. Mais tarde, em 1982 foi fundada a ONG International Council for Traditional
Music20, um grupo especializado no trabalho de Arqueologia Musical.
Algumas flautas encontradas remetem, provavelmente, instrumentos ritualísticos e
simbólicos envolvendo a música, em períodos históricos distintos. Alguns teóricos
enfatizam valores específicos e apontam para características voltadas para rituais
religiosos, místicos, simbólicos ou cosmológicos.
17
MORLEY, I. The Evolutionary Origins and Archaeology of Music. Darwin College Research Report, UK, 2003.
Disciplina inicialmente desenvolvida na Europa, na segunda metade do século XX.
19
PIQUERAS, L. H. Arqueomusicología: bases para el estudio de los artefactos sonoros pré-históricos. Universitat de Valencia,
Itália, 2003.
20
Conselho Internacional de Música Tradicional, http://www.ictmusic.org/
18
40 Os ossos de animais ou humanos foram muito utilizados, com intenções
mágicas, como instrumentos de sopro; o sopro adquiria valor de
manifestação da alma imortal. Trombetas feitas de ossos humanos são
conhecidas no Tibete, e as flautas e os oboés feitos de ossos de grous
(tíbias) eram utilizados entre os antigos romanos e eram sinônimos da
inspiração poética (COTTE, 1995, p. 60).
Segundo Cotte (1995), existiam trinta e três espécies de aulos21 diferentes para
utilizações distintas. Usados em ocasiões festivas, fúnebres, tragédias, ou mesmo,
para rituais com bebidas em honra aos deuses. Essa ligação do homem com a
música refletirá, posteriormente, na mitologia. Sendo também notável, a presença
dos elementos de percussão em muitas épocas distintas da antiguidade. Porém,
tudo se inicia nas relações do homem com os sons. Sobretudo, os sons produzidos
pela natureza como ente emissor de percepções sensoriais humana: os sons do
vento, das águas, dos pássaros, dos animais, além da própria ressonância da voz
humana.
Não podemos desprezar, em relação à música, os diálogos com a divindade e com o
campo mitológico. Nesse sentido, observamos a origem mítica da flauta de Pã22, que
acontece com a transformação da ninfa Syrinx23 em vários caniços, que vieram a se
unir a cera e emitir o doce, místico e melancólico som da flauta. Assim, fazendo com
que o deus Pã viesse a batizá-la de Syrinx, em homenagem a sua amada ninfa e,
posteriormente, passou a ser chamada flauta de Pã.
No contexto mitológico, a pujança de Orfeu, como exímio músico, considerado o
inventor da cítara,24 encantava os pássaros e os animais mais selvagens. Até
mesmo, os corações humanos mais rudes se abrandavam diante de sua
musicalidade. Seu canto e sua música sobrepujava o cantar persuasivo e fascinante
das sereias.
Tanto a ênfase mitológica dada à música, quanto o levantamento de questões a
partir das flautas encontradas, deixam claro uma construção cultural gradativa e uma
influência difusa da música na vida do homem.
21
Instrumento de sopro com palheta, conhecido em latim, por tíbia.
Divindade pelágica antiga, filho de Mercúrio (Hermes) e de Driopeia. Possui chifres e pernas de bode, metade homem,
metade animal. Possui um torso humano, com pelos negros e cabeça e pés de bode. Assustava os homens em suas aparições
bruscas. Ele deu origem ao termo Pânico.
23
Ninfa arcadiana da mitologia grega, seguidora de Artemis e perseguida pelo deus grego Pã.
24
Instrumento de cordas.
22
41 Bastian (2009) afirma que não houve no passado, e não existe no presente, uma
cultura sem música. Podemos pensar o homem num diálogo constante com os sons,
muito embora, às vezes isso ocorra de forma imperceptível.
2. A MAGIA DAS FLAUTAS E O FEITIÇO DOS PÍFANOS
Nessa classe de instrumentos observamos uma grande variedade: as denominadas
“família das madeiras” ou flauta de Pã, que são as flautas doces, com tamanhos
diferenciados e peculiaridades de oito orifícios: a douçaine
rauchpfeite
30
27
e as também renascentistas cromorno
28
25
, a sordun
; as bombardas
29
26
, a
, a rackett
, a charamela 31, dentre outras.
Essa diversidade de flautas significa, principalmente, uma grande variedade de
timbres, conceituada como polifonia. De acordo com Moraes (2008), a polifonia foi o
elemento de base para direcionar a música a sua área peculiar. Ou seja,
possibilidades de expressar sonoridades dicotômicas: jocosas ou lúgubres, agudas
como o flautim ou graves, como as flautas cromornos.
Dentre tantos instrumentos, praticamente permaneceria a preponderância da flauta
doce, ultrapassando o século XVI. Todavia, as demais, foram desaparecendo
paulatinamente, dando lugar a novos instrumentos. Foi o que também ocorreu com o
flautim, que, por possuir maior versatilidade, praticamente suprimiu o pífano.
Na construção desses instrumentos, o uso da madeira, como matéria - prima, seria
substituído pelo metal e, com isso, ocorreu um aprimoramento tecnológico
considerável, em meados século XIX. Toda evolução possibilitava, sobretudo, um
melhor desempenho dos músicos. Johann Christoph Denner
(1655-1707)
provocaria inovações, a partir da invenção da clarineta, instrumento ao qual Mozart
(1756-1791) e Brahms (1833-1897) destinaram muitas de suas composições.
25
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Instrumento de sopro e de palheta dupla.
Instrumento de sopro, renascentista e de palheta dupla.
Instrumento de sopro, do período renascentista.
Instrumento de sopro, de madeira e de palheta dupla, de sonoridade suave e aguda.
Instrumento de sopro da família das madeiras, com palheta dupla.
instrumento de sopro, de madeira e cilíndrico.
Instrumento de sopro medievo, de palheta dupla, antecessor ao oboé.
42 O pífano é também uma flauta transversal que persiste, resistindo ao tempo e
lutando contra tantas inovações do mundo da música. A sua matéria-prima varia
entre o cano PVC – Policloreto de polivinila, o caniço – Phragmites, a taboca –
Guadua weberbaueri, a taquara – Bambusa vulgaris, a mamoneira – Ricinus
communis e até mesmo, ossos. Madeiras mais nobre raramente são usadas nas
suas confecções.
É importante destacar, ao longo do tempo, toda utilidade do caniço, no tocante as
flautas. “O caniço foi utilizado diferentemente no curso das idades para a fabricação
de instrumentos, em geral de sopro, mas também, entre os povos exóticos de
cordas” (BENNET, 1986, p. 59).
A acuidade sonora do pífano soa com versatilidade, após sofrer aculturações ao
longo dos anos. Um modelo similar de flauta foi usado na Idade Média, na Europa,
contudo, posteriormente, as adaptações feitas pelos indígenas e caboclos no sertão
nordestino, seriam percebidas. Ocorreram algumas mudanças, principalmente, em
relação às medidas do pífano. As alterações, em relação ao tamanho, variaram
entre 50, 65 e 70 centímetros, refletindo direto na sua sonoridade. Além disso,
existem as variações no tocante aos orifícios, ou seja, alteram entre seis, sete ou
oito orifícios, embora, sempre sem o uso de chaves. Na execução, o polegar da mão
esquerda é usado no buraco inferior do pífano, enquanto que os dedos da mão
direita são usados nos orifícios superiores da flauta. Do pífano se arrancam os sons
com a alma e as hábeis mãos de pessoas simples de onde o saber sobre a música
nasce do coração.
Figura 3: Praiás do Povo Pankararé, com flautas (PEDRO, 2010).
43 Considerado rústico por alguns e escasso, por outros, o pífano é totalmente
impossibilitado de produzir escalas cromáticas e de obter afinações mais precisas,
por isso, facilmente, é preterido pelos músicos mais conservadores. Harmonizá-lo a
outros instrumentos ou inseri-lo em determinados ambientes musicais tem sido uma
tarefa insólita. Realidade que parece destinar o pífano a um ostracismo ou mesmo,
um desaparecimento.
Não obstante, ainda os apreciamos em diferentes locais do Nordeste do Brasil, a
exemplos de Jaguarari e Juazeiro, na Bahia. São grupos humanos que
experimentam modos tradicionais específicos de educação musical, caracterizados
como (pifeiros). A observação desses grupos, permite-nos inferir que o pífano
caracteriza uma linha que liga os pifeiros a um sentido muito particular e profundo de
existência, a saber, uma vida marcada pela estética musical popular.
3. ECOLOGIA SONORA
Podemos nos referir a uma epistemologia para estudos sonoros em Ecologia
Humana, partindo de referências que surgem de enfoques relacionados à música, à
tecnologia, à sociedade e às questões ambientais. Antes tocada pelo som da
natureza, a espécie humana, gradativamente, inventa a natureza do som. É no
intervalo dessas duas escalas que analisamos a Ecologia Sonora.
O uso de tecnologias de gravação e reprodução dotou o ouvido humano de um novo
sensorium, que no século XX, nos inseriu num ambiente sónico – sonosfera,
diferenciando com a omnipresença de tecnologias como alto-falantes, rádios,
smartphones, mp3 players, dentre outros. Evidentemente, esses sons dizem algo
sobre a natureza; quer seja, nos distanciando ou nos aproximando de práticas
ambientais sustentáveis. Salientamos assim, a própria indiferença em torno das
questões da poluição sonora, que têm afetado nocivamente a nossa existência. O
ouvido antes em contato com os sons naturais, experimenta novas sensações
sonoras com as maquinarias da vida humana.
44 Schaffer
32
pesquisou e sistematizou o tema do ambiente sonoro, através do Projeto
Paisagem Sonora Mundial - The World Soundscape Project/WSP. Unindo os
pesquisadores da Simon Frase University, do Canadá - Bruce Davis, Peter Huse,
Barry Truax e Howard Broomfield, fez um estudo comparativo de paisagens sonoras
mundiais, com investigações que envolvem a percepção auditiva, o simbolismo
sonoro e a poluição sonora. Reunindo assim, às ciências do som, proteção do
patrimônio imaterial do entorno acústico/sonoro, promovendo o que se chama de
escuta consciente.
Para Schaffer, o reconhecimento do ambiente, pelo seu referencial acústico,
demandaria uma escuta atenta dos sons no ambiente. “Os sons fundamentais de
uma paisagem são os sons criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies,
pássaros, insetos e animais” (SCHAFFER, [1977], 2011, p. 26). Sinal sonoro, que
corresponde aos sons destacados pelos ouvidos conscientemente.
Os estudos de música popular e a etnomusicologia - ou antropologia da música, se
desenvolveu a partir da musicologia comparada. Alan Merian33 a define como estudo
da música na cultura. A disciplina, historicamente, deu importância à música
executada ao vivo, mas, passou a oferecer um recorte limitado, a partir da ruptura
dos postulados clássicos da musicologia e da omnipresença das mídias sonoras e a
invasão de sons estrangeiros – globais, em contextos locais, que Murray Schaffer
chama de esquizofonia.
Pedelty (2012), em “Ecomusicologia: Rock, Folk e o Ambiente”, relaciona a crise
ambiental com as atividades musicais. Questiona em que medida a música poderia
influenciar a humanidade a adotar práticas sustentáveis, tal como Schaffer, ao
afirmar que “o ambiente acústico geral de uma sociedade pode ser lido como um
indicador das condições sociais que o produzem e nos conta muita coisa a respeito
das tendências e da evolução dessa sociedade” (SCHAFFER, [1977] 2011, p. 23).
Na cultura visual, os registros históricos são de uma materialidade tangível,
enquanto, a materialidade do som é distinta, sua reprodutibilidade técnica é um
fenômeno do século XX. Das culturas dos sons da antiguidade, como no caso dos
32
Musicólogo, pedagogo e compositor canadense Raymond Murray. Cf. A Afinação do Mundo, 1977 e O Ouvido Pensante,
1986.
33
Etnomusicologo norteamericano. Cf. Merian, A. Ethnomusicology: Discussion and definition of the field, 1960.
45 flautistas descritos acima, somente os instrumentos são “achados”, mas, seus sons,
jamais serão encontrados. Portanto, não podemos adentrar nessas representações
sonoras de inconscientes auditivos.
Algumas flautas ancestrais são evidenciadas como tentativas de mimetizar o som
dos ventos ou o canto dos pássaros. Trata-se de um instrumento que traduz esse
desejo humano de estar em permanente ligação com a natureza, como identificamos
na teoria hermenêutica de Jacob Von Uexkull,34, que concebia a natureza como
música regida e orquestrada através de processos de transcodificações:
Isto revela – se - nos ainda com mais clareza numa orquestra natural, como
um prado no - la apresenta. Basta que pensemos na flor integrada nos
quatro mundos-próprios. Essa relação revela – se - nos ainda mais
flagrantemente entre a estrutura da flor e a da abelha, e dela se pode dizer:
Se na flor não houvesse qualquer coisa de abelha […] E na abelha não
houvesse qualquer coisa de flor, nunca o acorde seria possível (UEXKULL,
1982 p.203).
O ritmo e suas expressividades sonoras também criam os territórios humanos, mas,
o território, para Deleuze e Guattari (1980), não é somente o da extensão de terra,
do estado, da cidade, terreno geográfico. O território caracteriza um produto de uma
territorialização dos meios e dos ritmos. Assim, um dos conceitos chave para
entender o território é o do Ritornelo.35 Os filósofos se apropriam de um termo
aplicado à música; porém, o ritornelo não está vinculado apenas ao fenômeno
sonoro, pode ser visual, gestual, ele é expressividade. “sublinhou-se muitas vezes o
papel do ritornelo: ele é territorial, é um agenciamento territorial. O canto de
pássaros: o pássaro que canta marca assim seu território” (DELEUZE, [1980] 2012,
p.124).
O som dos pífanos é uma inegável marca sonora; expressividade estética carregada
de potências e afetos. Inserem-se na ordem do imaginário; ancora-nos no universo
simbólico e cultural de um território. O pífano constitui uma síntese das paisagens
sonoras que habitam nosso lugar de vivência; coabita na paisagem sonora
esquizofônica do mundo globalizado. Evoca os sons da biodiversidade brasileira, do
canto dos pássaros, da linguagem das águas e da ancestralidade tupi-guarani.
34
Biólogo e filósofo estoniano, de origem alemã. Cf. Uexkull, J. V. Dos Animais e dos Homens: Digressões pelos seus
mundos próprios. Doutrina do Significado, 1934.
35
Podemos sintetiza-lo como três movimentos dinâmicos: - o lugar seguro que nos abriga do caos, - o habitar o território, para
mitigar os resquícios do caos; e o terceiro movimento seria o lançar-se para fora do território – desterritorializar, num sentido
distinto do caos.
46 Sintetiza a cosmovisão de Tupã, como flautista representando o sopro divino e de
Tupi, significando “Flauta em Pé”. O pífano é um dos tesouros sonoros da alma
humana guardado por pessoas simples.
Rechaçado por uns e bem aceito por outros, o pífano ainda resiste ao tempo, sendo
encontrado em algumas regiões do Brasil, sobretudo, em pequenos e inovadores
grupos de pifeiros, no interior da Bahia e de Pernambuco. “As inovações culturais
são muitas vezes obras de pequenos grupos, mais do que indivíduos” (BURKE,
2008, p. 23).
O pífano é um instrumento peculiar aos pequenos grupos, inicialmente, de nativos
autóctones do Nordeste e, posteriormente, dos caboclos dessa região. Com alguns
nativos, a música do pífano ganha sentido místico, simbólico e ritualístico, enquanto
que, com os caboclos, nasce uma dicotomia: o sacro e o profano.
De um lado, no sagrado, temos as bandas de pífanos nas representações de festas
e rituais religiosos; do outro, o caráter profano, que canaliza canções populares da
região. Segundo Eliade (2010), esses aspectos canalizadores determinam uma
conservação de traços que valorizam experiências religiosas, de maneira única.
No mundo helênico o uso de determinadas escalas musicais eram relevantes para
atitudes e comportamentos dos homens. Era possível exercer, através das escalas,
um caráter bélico, subversivo ou pacífico, voluptuoso, salutar ou nefasto. Nesse
caso, atribuía-se à harmonia das escalas a determinadas dimensões, no campo
concreto ou nas abstrações. A própria flauta de Pã revela essas dimensões, pois, ao
emitir seu som provava a virgindade das moças e, nas mãos de Hermes,36 encantou
Argos, a temível criatura de cem olhos.
4. O PÍFANO: DE INSTRUMENTO A REPRESENTAÇÃO MUSICAL
Na atualidade, as flautas são inúmeras. Destacam-se, principalmente, a flauta
contralto, o flautim, o oboé, o corne – inglês, o fagote, a clarineta, a clarineta baixa e
o contrafagote. Com essa grande variedade de instrumentos e recursos tecnológicos
aprimorados,
parece
inevitável
o
advento
do
“novo”
e
das
inovações,
36
Filho de Zeus e de Maia. Hermes é o deus mensageiro, dos pastores e das estradas.
47 consequentemente, das substituições. Assim, o pífano e outros instrumentos
considerados rústicos, podem cair facilmente no esquecimento, tal como o que
ocorreu com o Aulos, antecedente do oboé.
Entretanto, apesar das substituições e surgimentos de outros instrumentos, quase
sempre, é possível perceber a permanência de/ou algumas semelhanças entre os
“novos” e os “velhos” instrumentos. Alguns pífanos fabricados a partir do bambu bambuseae, com seis orifícios, são similares à flauta mais antiga da Iugoslávia, a
Czakan. Com as mesmas características, encontra-se a flauta egípcia Nay, de
aproximadamente dois mil anos a. C.
Além dessas variações observadas nos próprios instrumentos, identificamos
discrepâncias em relação às bandas de Pífano. Para alguns estudiosos, às bandas
de couro, têm sua origem na Europa, com seu aparecimento remontado no século
XVI, chegando ao Brasil através dos colonizadores ibéricos (CARIRY, 1982, p. 123).
Hoje, há muitas variações quanto à nomenclatura. Cada região define uma banda de
Pífano a sua maneira, como descreve Cariry:
O nome desse mais antigo e importante conjunto instrumental popular sofrer
variações de região para região. Em Alagoas toma o nome de esquenta
mulher, que se originou, segundo Manoel Diegues Júnior, da alegria do
dengo e da agitação que as músicas provocam nas mulheres. Na Paraíba,
encontramos a versão mameluca dos caboclinhos, em outros Estados do
nordeste, encontramo-la com o nome de banda de couro ou cabaçal
(CARIRY, 1982, p. 121).
As bandas de Pífanos dialogam com festividades religiosas em povoados e em
pequenas cidades, como ratifica Gaspar Leão, fundador da Banda de pífano de
Mirandiba, em Pernambuco. “Minha tia contratava aqueles tocadores de pife que
vinham de muito longe, do interior. Eu tinha uns nove anos e via os caras tocando.
Eu gostava! Achei aquilo muito bonito” (GASPAR, 2012).37 Gaspar recorda as
dificuldades encontradas em 1967, ano em que foi influenciado por uma Banda de
Pífano que tocou na Serra Umã,38 região que o próprio Gaspar descreve como um
reduto do Pífano.
37
GASPAR, Pifeiro. Depoimento [2015]. Entrevistador: Luciano Menezes. Petrolina-­‐PE: Gravação eletrônica (Pen drive) (71 min.), estéreo. Entrevista concedida para elaboração da pesquisa intitulada: O SOM DO OSSO: ECOLOGIA MUSICAL DOS PÍFANOS DO NORDESTE DO BRASIL. 38
Serra localizada entre as cidades de Mirandiba e Carnaubeira da Penha, em Pernambuco.
48 Alguns anos depois, com a banda formada em Mirandiba, Gaspar percorreria várias
cidades, vilas e povoados daquela região. “Eu tocava em Cachoerinha, Mirandiba,
Santa Maria, Tupanaci, Barra do Silva, Olho d’água do Padre. Ali, na região toda eu
toquei muitos anos. Já passei por Petrolina e fui tocar em Irecê, na Bahia.”
(GASPAR, 2012,).
As participações das Bandas de Pífano em festas de santos, em novenários e
festejos profanos, mostram uma indefinição, no tocante a dimensão ou delimitação
de tempo e espaço de atuação. De acordo com Eliade (2010), uma saída da
duração temporal ordinária, porém, reintegrando-se no tempo mítico. A participação
em festas religiosas e profanas é uma característica pertinente às bandas Cabaçais,
da região do Cariri cearense, como destaca Assumpção:
Sempre chamados para animar festas de padroeiros no Crato, Barbalha e
Juazeiro do Norte, os Irmãos Aniceto deleitavam-se com a mistura de gente
em louvação de seus santos. Novenários (nove noites de novena) são
constantes, quase todos os meses. Os músicos são chamados para ir até a
casa. Onde está sendo rezada a novena. Da mesma forma é a renovação,
tido por eles como o mais importante ritual religioso dentro de casa.
(ASSUMPÇÃO, 2000, p. 59).
Em Jaguarari, os grupos de Pífanos são chamados de “pipoca”. No período de
novenas e durante todo o período de festejos juninos, vários grupos de Pífanos
tocam nas ruas; entram nas casas, caminham pelas vias da cidade e povoados. Os
pífanos compõem a paisagem, a memória e a identidade conhecida desses lugares.
Harmômides,39 como um exímio flautista, busca um público especial e restrito para
se tornar rapidamente conhecido em todo reino. Portanto, em sentido oposto, as
bandas de Pífanos, no Nordeste, percorram uma via que vai ao encontro das
massas populares mais simples.
Na Suíça, o Pífano e os tambores têm espaços privilegiados. Essas prerrogativas
acontecem por meio de uma associação centenária, no qual o pífano e os Tambores
são instrumentos bem valorizados, além de serem extremamente divulgados por
39
O lendário tocador de flauta, descrito pelo filósofo Luciano de Samósata, que desejou uma forma de se tornar rapidamente
conhecido em todo reino. O caminho aconselhado foi à busca de um auditório representativo e qualificado, desprezando enfim
as multidões. Entretanto, percebemos que as bandas de pífanos percorram um caminho contrário ao da crítica exercida por
Samósata. O pífano, no Nordeste, foi ao encontro das massas populares mais simples.
49 todo país. O próprio carnaval da Basiléia tem o pífano como um instrumento
protagonista.
Os trabalhos artesanais de fabricações dos Pífanos sofrem variações de acordo com
as regiões e as possibilidades diversas de matérias-primas. Para Assumpção (2000),
os Pífanos são com elementos essenciais das bandas, são constituídos com a
“Taboca Boi” – Guadua weberbaueri, encontrada em abundância nas matas
touceiras e bocas de grotas do Araripe.
Quanto aos mecanismos que formam os orifícios: aberturas responsáveis pela
emissão das sonoridades, ele afirma: “Furam-se sete orifícios, sendo que cada um,
quatro vezes. Um por um. Começa com um ferro bem pequeno, depois um de maior
circunferência, depois um maior ainda e assim por diante, até está na largura certa
para que o som saia na escala” (ASSUMPÇÃO, 2000. p. 49).
Os sete orifícios são feitos no pífano através de ferros esquentados na brasa e,
posteriormente, faz-se a utilização da cera de abelha como elemento para obstrução
de uma das extremidades do instrumento. Talvez, essas sejam as características
simétricas, independentemente da região.
Gaspar Leão, em Mirandiba, a princípio, fez uso da mamoneira como matéria prima
e, tempo depois, passou a utilizar o bambu - bambuseae. “Eu via os instrumentos
dos camaradas. O pife, por exemplo, um negócio bem detalhado: um pedaço de
cano. E eu improvisei. Não tinha outra coisa! Eu fui lá, na roça e peguei. Não foi nem
bambu, aquele pé de mamoneira” (GASPAR, 2012).
Para Gaspar Leão, o Bambu – Bambuseae, como matéria-prima, surgiria alguns
anos depois. Por outro lado, segundo Assumpção (2000), na região do Cariri, o uso
da taquara ou da taboca - Guadua weberbaueri, como matéria-prima seria,
gradativamente, substituído pelo metal, sendo que, com o reforço de três anéis, nas
partes superior, média e inferior.
50 Figura 3: pífano do PVC e pífano de bambu. (MENEZES, 2012)
O caráter artesanal era comum nessa conjuntura, não somente em relação ao
pífano, mas também, no tocante a Caixa e a Zabumba. Assim, esses instrumentos
que integram uma banda de Pífano, passavam pelos mesmos processos. Segundo
Gaspar, “sempre foi artesanal. Não tinha nada! você tinha que fazer. Eu peguei
aquele couro de bode, raspei e montei” (GASPAR, 2012)
Pablo Assumpção descreve as madeiras ideais para as fabricações da Zabumba e
da caixa: “É preciso que se escolha pelos pés de serras um bom tronco de
Timbaúba ou cedro – Cedrus, pois, que a madeira deve ser a mais mole possível.
[...] Zabumba e caixa tem o mesmo procedimento de construção, mudando apenas a
grossura do tronco escolhido” (ASSUMPÇÃO, 2012, p. 51).
Quanto ao uso do couro de bode, cabra ou de veado, como matéria prima para
construção de instrumentos, ele enfatiza:
O couro de cabra fica molhado por alguns dias, até ser costurado em dois
cipós que envolvem aquela ‘casca’ de tronco nas extremidades. Aliás,
depois de trabalhado o tronco, fica como uma longa tira de madeira, a ser
enrolada e posta num buraco cavado na terra, até que molde ou acostume
na forma de um bumbo. (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 51).
O agrupamento dos instrumentos de sopro e de percussão caracteriza uma
coletividade que constrói a ideia conceitual de uma banda de Pífano. Essa
agregação passa a ter uma relação inquietante com dimensões religiosas e seus
51 ritos; uma forma de hierofania, onde o sagrado se pronuncia.40 Sulamita Vieira
menciona, além das inserções nas romarias e procissões, uma dimensão cultural e
histórica, no que diz respeito a Zabumba:
Do acompanhamento de procissões e romarias religiosas, a um lugar na
percussão, ajudando animar os sambas (festas, chamadas hoje de forrós), a
zabumba não se perde nos passeios que tem feito pela Serra do Pereiro,
em Ocara, nos Inhamus, em Tacaratu ou em Alagoa Grande e, no Rio de
Janeiro, Recife ou Porto. (VIEIRA, 2006, p. 60).
A perspectiva da construção “rústica” de instrumentos se mostram divergentes aos
padrões e modelos modernos. Algumas vezes, esses instrumentos são suprimidos,
parcialmente ou totalmente, por modelos que se expandem, ditos modernos. Muito
embora, não deixaram de estabelecer seus espaços por um determinado período,
assim como, seus parâmetros de afinações, dentro de suas peculiaridades. “É um
cano especial. Aquele cano de PVC é improvisado. pífano tem escala. Tudo na
medida. Se não tiver, ele não presta! É igual a um violão, um cavaquinho, um
instrumento qualquer” (GASPAR, 2012).
No que diz respeito às Zabumbas, Caixas e suas afinações, Assumpção afirma:
Os cipós que envolvem a larga tira de Timbaúba a impede de abrir.
Pequenos orifícios acima dos cipós permite que a corda seja entrelaçada
por volta de toda zabumba, em nós e trancelins próprios, criando a tensão,
ou melhor, a afinação do instrumento. Caso a zabumba ou a caixa esteja
desafinada, basta arrochar essa corda, aumentando a tensão entre os lados
do instrumento. E o tom volta a soar como antes, barulhento e eficiente,
acompanhando a melodia mágica do pífano (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 52).
O ato do fazer artesanal em relação aos instrumentos de uma banda de pífano é a
expressão de um determinado grupo ou de um indivíduo. Essa manifestação se
mostra essencial, tanto para o homem como para a arte. Portanto, o Pífano é um
componente das culturas e dos costumes. Próximo ao que Geertz (1989) determinou
como ethos: criações do próprio homem.
40
Segundo Eliade (2010), quando o sagrado se manifesta mediante uma hierofania qualquer, ocorre uma revelação de uma
realidade absoluta e a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo.
52 Figura 4: Pifeiros Florêncio e Zé Leotério. (MENEZES, 2012)
As bandas de pífanos estabelecem íntimos diálogos com elementos religiosos,
dentre eles, os cultos e os ritos. As bandas são essenciais nos cultos e louvações
religiosas que envolvem adorações ritualísticas. De acordo com Angelim e Braga
(2012), a formação de uma banda de pífano pode sofrer alterações de acordo com a
região. Por isso, pode ter ou não a inclusão de Pratos, Triângulos, ou até mesmo
Sanfona. Sobre essas formações Cariry afirma:
Uma banda cabaçal se compõe, comumente, de dois pífanos (terno de
pifes) de taboca, com sete orifícios abertos com ferro em brasa, com
impressionante afinação; uma zabumba rústica feito de casca de árvores
com pele de bode, arrochado de cordas de caroá; uma caixa construída
pelo mesmo processo primitivo que faz às vezes de Tarol e um triângulo ou
dois pratos pequenos forjados em cobre de latão (CARIRY, 1982, p. 121).
Existe uma relação histórica e cultural complexa entre as bandas Cabaçais e os
índios cariri, nela, todo hibridismo cultural perpassa o próprio campo de conceitos ou
mesmo, os traços e costumes culturais herdados. Quanto ao termo “Cabaçal,”
Assumpção
(2000)
destaca
sua
origem
etimológica
e
aponta
algumas
particularidades em relação à construção das zabumbas.
O nome cabaçal vem mesmo dos rituais e festas indígenas: os índios cariris
não construíam zabumbas com madeira, mas sim com moringas, espécie
vegetal da mesma família. Provavelmente os tambores usados em rituais
eram confeccionados ao cobrir com couro de bode essas cabaças de
grande porte. (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 21).
Em relação aos grupos de Pífano no Brasil, pensamos numa perspectiva
discrepante da folclorização europeia.41 Ortiz (2006) menciona que, no Brasil, a
necessidade da burguesia é mínima em relação ao folclore, uma vez que, ele está
41
Segundo Ortiz, Florestan Fernandes aponta esse caráter conservador, ao considerar o folclore como uma necessidade
histórica da burguesia europeia. (ORTIZ, 2006, p. 70).
53 associado às simples camadas tradicionais de origem agrárias. Entretanto, um
fenômeno cada vez mais recorrente é a assimilação das manifestações culturais
populares em produtos da indústria criativa consumida pelas elites. No Nordeste do
Brasil, vemos que as bandas de Pífanos ainda são fontes de resistências e se
enraíza às diferentes tradições do povo do Nordeste.
Prestígios ou auxílios financeiros, como receberam os Irmãos Anicetos, no Crato,
são casos inusitados entre as bandas de pífano. “No Crato receberam carteira de
músicos da prefeitura; papel que lhes dava direito a receber mensalmente um salário
mínimo, muito estimado por todos, já que a vida na roça era cada vez mais difícil.”
(ASSUMPÇÃO, 2000, p. 37). Prêmios em dinheiro, viagens para o sul do país,
troféus e gratificações, como as passagens aéreas para Paris; viagem que foi
descartada pelos integrantes. Além disso, uma presença constante na mídia deram
notoriedade e sobrepujança aos Irmãos.
Hoje reconhecidos como patrimônio cultural do Ceará, os Anicetos e outras
bandas do Cariri nem sempre foram bem vistas, revendo a história,
descobre-se que a trajetória das bandas cabaçais do Crato é historicamente
marcada por altos e baixos. No começo desse século só nessa cidade
foram juntas mais de trinta, para receber o bispo do Ceará, D. Manoel. Era o
período áureo da cabaçal. Com o passar dos anos, elas foram reduzindo-se
e refugiando-se unicamente nos sítios. Uma verdadeira luta que se travou
contra as zabumbas – outro apelido da ‘esquenta muié’ – consideradas
como verdadeiras inimigas do progresso (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 14).
A falta de incentivo cultural, as dificuldades financeiras têm sido uma árdua realidade
para a maioria das bandas de Pífano no Brasil. Alternativas como a própria
divulgação do pífano, a fabricação e a venda, por Antônio, integrante dos Anicetos,
foi à forma encontrada para obtenção de recursos. Uma via para se buscar algum
dinheiro e não ter que abandonar seu lugar de origem, como destacou Assumpção
(2000). O êxodo compulsório de músicos nordestinos repete, muitas vezes, o
itinerário de fuga dos trabalhadores em busca de melhores oportunidades. Deixando
o seu lugar de origem, rumo aos grandes centros urbanos. Sobre essas migrações
das artes, Cariry desabafa:
É lamentável, vergonhoso, que esses artistas tenham que abandonar sua
gleba onde nasceram e irem terminar seus dias, esfacelados e
impossibilitados de continuar sua arte (transmitida e aperfeiçoada através
54 de muitas gerações) nos sangradouros das grandes metrópoles. Alguma
coisa tem que ser feita para evitar essa sangria. (CARIRY, 1982, p. 127).
As instituições que os usam querem mostrar algo de ‘exótico’, e diferente. Elas, nada
fazem, pois não percebem a bela genialidade das bandas Cabaçais e não querem
fazer nada em favor do povo, assim, enfatiza Cariry (1982), ao mencionar a banda
de pífanos dos Aniceto, no Ceará.
As culturas que envolvem as bandas de pífanos são moldadas pelas novas
interações num mundo moderno e globalizado. Entretanto, mesmo com as aberturas
e mudanças constantes, as bandas Cabaçais se mantêm como parte do
conhecimento tradicional e das ideias que emergem nas relações do homem com as
culturas.
5. BANDAS DE PÍFANO: UMA ARTE INIMIGA DO PROGRESSO
Quando a ideia de progresso chegou ao sertão do Cariri, ela trouxe consigo a
intolerância em relação às bandas de pífano. Os costumes e os hábitos daqueles
homens eram um incômodo ao modelo social que precisa ser afirmado. A arte do
Pífano perdera todo o sentido, toda amplitude. Perdera também todo o valor, toda
essência. Toda possiblidade de se apresentar foi extinta, e nas vezes que foi
possível tocar, essa arte foi vendida a preços insignificantes. Em suma, todos os
instrumentos rústicos precisavam ser varridos das nobres calçadas culturais.
Em nome da civilização que penetrava no vale, contra as velharias que
prendiam a cidade ao passado, a música de couro precisa desaparecer. O
forasteiro litorâneo não podia surpreender-se, a tocar em instrumento tão
bisonhos e primitivos, em pleno centro citadino do Crato, a cidade que a
essa altura já tinha eletricidade, cinemas e colégios. Foi então que o prefeito
– na época, José Alves de Figueiredo – proibiu a exibição das bandas
cabaçais em dias comuns, nas feiras, e a desfilar pelas ruas. Essa foi à
época de decadência da zabumba, quando a tradição apresentava-se como
grande inimiga do progresso (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 14).
Moldando e copiando características de urbanização litorânea, no Crato, o prefeito
não hesitou em restringir as bandas de pífanos em determinados ambientes, como
feiras e praças públicas. A proibição das bandas Cabaçais, pode ter sido um fator
responsável por uma redução considerável das bandas de pífano naquela região.
Porém, Assumpção (2000) hesita a esse respeito.
55 Não se sabe as consequências dessa proibição para a tradição das
cabaçais, embora, seja provável que isso pode muito bem ter significado a
extinção de um bom número delas. Mas, o fato é que não significou o
desaparecimento dessa arte, tendo ela perdurado até os dias de hoje,
quando as vésperas do século XXI, ainda se tem oportunidade de assistir
representações da mais pura dissipação estética e popular. Esse é bem o
caso da banda de couro e performance da cabaçal dos Irmãos Aniceto,
grupo musical que melhor representa a permanência de elementos
ancestrais cariris na cultura cearense (ASSUMPÇÃO, 2000, p. 14).
Fenômeno idêntico ocorre em Jaguarari, na Bahia; encontra-se menos de uma
dezena dessas bandas. Sem apoio, sustentam-se como um agrupamento familiar ou
de amigos que cumprem promessas ou fazem “bicos” para os festejos.
Evidentemente, diante da indústria cultural, são práticas que não gozam de bons
pagamentos. Mesmo diante do desfavorável reconhecimento, os pífanos se mantêm
vivos com seus encantamentos próprios.
Segundo Geertz (1989), o artista negligenciado suportaria melhor uma situação
aviltante invocando os cânones clássicos de sua arte, embora, esse processo deixa
uma lacuna entre as possibilidades reais e a exigência de sua visão, podendo
dramatiza-lo e levá-lo a desistência.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos, a princípio, destacar o sentido da música, no tocante a importância das
flautas, no geral, e das bandas de Pífanos, no particular. Desse modo, foi possível
perceber ações relevantes de homens simples, em suas características e
comportamentos próprios, expressados nas mais variadas comunidades pifeiras do
Nordeste, que, para nós, configura-se como uma ecologia específica que se faz pela
música, pelos sons.
As práticas culturais que envolvem as bandas de Pífanos têm significados múltiplos,
com possiblidades reais de esboços do indivíduo, no singular e no aspecto coletivo.
O Pífano, um instrumento considerado rústico; uma espécie de flauta-solo
proeminente, que se insere em âmbitos culturais diversos; adentra nos ritos
56 religiosos e profanos, demonstrando sentimentos próprios e características
singulares.
Mediante sua música, os grupos de Pífanos do Nordeste, muitas vezes,
considerados folclorizações musicais, estão vivos e, quiçá são, verdadeiramente, o
DNA da musicalidade dos povos originários do Brasil que se mantêm na genética
musical, antes, uma biodiversidade sonora que com seus matizes simples, marca o
mar revolto das estruturas musicais do Brasil.
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