filosofia da arte - Carlos João Correia
Transcrição
filosofia da arte - Carlos João Correia
filosofia da arte the state of the art 1. A TI [teoria da imitação] é falsa como teoria da arte, mas não só constituiu o modelo dominante na história da arte desde a Renascença (cf. Giorgio Vasari) até ao século XVIII (cf.Charles Batteux), como a ideia hamletiana da arte como espelho metafórico do mundo foi, e é ainda, bem fecunda. 2. A TI é abandonada com o surgimento da fotografia e é substituída pela tese de que a obra de arte é uma “presença real” [o que a música e a arquitectura foram sempre]. Surge, assim, na transição, entre o Impressionismo e o Pósimpressionismo, um novo modelo teórico de interpretação da arte que vê nas obras de arte entidades reais. A este novo modelo de compreensão, Danto designa-o como TR [teoria da realidade]. 3. Mas enquanto os pós-impressionistas sublinharam directamente nas suas obras de arte que não eram ilusões, desde os anos 60 começaram a surgir obras que eram prima facie indiscerníveis dos objectos reais da vida quotidiana. robert rauschenberg. bed. 1995 claes oldenburg. bedroom ensemble. 1963 “(Um testadura) atribui as pinceladas da cama de Rauschenberg ao desmazelo do proprietário e a assimetria da cama de Oldenburg à inépcia do carpinteiro ou talvez à extravagância de quem a encomendou. Seriam erros, mas de uma espécie bastante singular, não muito diferentes dos cometidos pelas aves perplexas que debicaram as uvas falsas de Zeuxis. Tal como este simplório, elas confundiram a arte com a realidade. Todavia, e de acordo com a TR [teoria da realidade], a arte pretendia ser a realidade. Será possível confundir a realidade com a realidade? Como descrever o erro do simplório? Afinal, o que impede a criação de Oldenburg de ser uma cama disforme?” andy warhol, brillo soap pads, 1964–1969 “O Sr. Andy Warhol, o artista pop, expõe fac-símiles de caixas de cera Brillo, em pilhas muito bem arrumadas, como se estivesse num armazém de um supermercado. Por acaso, são de madeira, pintadas para parecerem de cartão, e por que não? Parafraseando o crítico do Times, se podemos fazer um fac-símile de um ser humano em bronze, por que não havemos de fazer um fac-símile de um caixa de cera Brillo em contraplacado? [...] Em todo o caso, por que precisa Warhol de fazer estas coisas? Por que não se limita a rabiscar a sua assinatura numa delas? [...] É este homem uma espécie de Midas, que transforma tudo o que toca no ouro da pura arte? [...] Pouco importa que a caixa de cera Brillo possa não ser arte de boa qualidade, e muito menos uma grande obra de arte. O que impressiona é o facto de ser arte. Mas, se é arte, o que impede as indiscerníveis caixas de cera Brillo que estão no armazém de o serem igualmente? Ou ter-se-á desmoronado por completo a distinção entre arte e realidade? “ “Em última análise, aquilo que distingue uma caixa de cera Brillo de uma obra de arte que consiste numa Caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que eleva ao mundo da arte e a impede de se reduzir ao objecto real que é (...). É claro que, sem a teoria, é improvável que a vejamos como arte e, a fim de a vermos como parte do mundo da arte, temos de dominar uma série de teorias da arte, além de uma parte considerável da história da pintura recente de Nova Iorque. Não podia ter sido arte há cinquenta anos. Mas também não podia haver, por analogia, seguros de voo na Idade Média ou correctores etruscos de máquinas de escrever. O mundo tem de estar preparado para certas coisas, e isto tanto se aplica ao mundo real, como ao mundo de arte. O papel das teorias artísticas, hoje como sempre, é tornar possível o mundo da arte e a arte. Presumo que nunca tenha ocorrido aos pintores de Lascaux que estavam a produzir arte naquelas paredes. A não ser que no neolítico houvesse teóricos de estética.” “As caixas de Brillo entram no mundo da arte com a mesma incongruência tonificante que as personagens da commedia dell’arte introduzem em Ariadne em Naxos. [...] E para regressar às opiniões de Hamlet com que começámos esta discussão, as caixas de cera Brillo têm o mesmo poder que outra coisa qualquer de nos revelar a nós mesmos: como um espelho erguido diante da natureza, elas podem despertar a consciência dos nossos reis.” robert rauschenberg. bed. 1995 “A obra de arte é uma cama. É o «é» que requer clarificação. Há um é que figura proeminentemente em asserções acerca das obras de arte que não é o é da identidade nem o é da predicação; não é o da existência, nem o é da identificação, nem um é especial constituído com um fim filosófico em vista. Todavia, tem um uso comum e é rapidamente dominado pelas crianças. É o sentido de é de acordo com o qual a criança a quem se mostra um círculo e um triângulo e se pergunta qual é ele e qual é a irmã aponta para um triângulo dizendo «Este sou eu»; ou, em resposta a uma pergunta minha, a pessoa que está ao meu lado aponta para o homem vestido de púrpura e diz «Aquele é Lear»; ou, numa galeria de arte, para elucidar quem me acompanha, eu aponto para uma mancha no quadro que temos à nossa frente e digo «Esta mancha é Ícaro». pieter bruegel. paisagem com queda de ícaro. 1558 quetzalcoatl colunas de hércules “Não queremos dizer, nestes exemplos, que seja o que for que apontemos está por, ou representa, aquilo que se diz que é; porque a palavra «Ícaro» está por, ou representa, Ícaro, mas eu não apontaria para a palavra dizendo, no mesmo sentido de é, «isto é Ícaro». [...] [...] À falta de melhor termo, designá-lo-ei por é de identificação artística; [...] Já agora, este é tem parentes próximos em declarações [...] míticas. (Por exemplo, aquele é Quetzalcoatl; aquelas são as Colunas de Hércules.)” “Consideremos um quadro certa vez descrito pelo espirituoso dinamarquês, Sören Kierkegaard [Diapsalmata (58)]. Trata-se de uma pintura dos hebreus atravessando o mar Vermelho. Olhando o quadro, víamos algo bem diferente do que se poderia esperar se fosse pintada, suponhamos, por um artista como Poussin ou Altdorfer: agrupamentos de pessoas em diversas posturas de pânico, carregando os fardos de suas vidas transtornadas, e ao longe, perseguindo-a, soldados da cavalaria egípcia. Mas o que tínhamos diante de nós, ao contrário, era um quadrado de tinta vermelha, que o artista explicou dizendo que “os hebreus já haviam cruzado o mar Vermelho e os egípcios se afogaram”. Kierkegaard comenta que, no balanço final, sua vida se parecia com aquela pintura. Toda a sua inquietação espiritual, o pai amaldiçoando Deus no alto de uma colina, o rompimento com Regina Olsen, a busca interior do significado do Cristianismo, o permanente conflito de uma alma atormentada, tudo acabou se fundindo, como nos ecos das cavernas de Marabar, “num estado de alma, numa cor única”.” Danto. The Transfiguration of a common-place. A Philosophy of Art. Cambridge/Mass.-London: Harvard University Press. 1981, 1. Kasimir Malevich: “Red Square” 1913 “Danto inicia o seu livro, The Transfiguration of the Commonplace, com uma experiência mental que caberia perfeitamente numa história de Jorge Luis Borges. É-nos dito para imaginarmos uma exposição de pinturas visualmente indiscerníveis, cada uma das quais consistindo num quadrado de tinta vermelha. Apesar de serem visualmente indiscerníveis, diferentes pinturas versam sobre temas diferentes. Assim, uma é «Os Israelitas a Atravessar o Mar Vermelho», a outra é «Quadrado Vermelho» («Praça Vermelha») (Red Square), outra ainda, pintada por um amargurado discípulo de Matisse, é a «Toalha de Mesa Vermelha», e assim por diante. Como Danto observa, o catálogo desta exposição seria monótono (em vários sentidos), «uma vez que tudo se parece com tudo o resto, apesar de as reproduções serem de pinturas que pertencem a géneros tão diversos como pinturas históricas, retratos psicológicos, paisagens, abstracção geométrica, arte religiosa e natureza morta». E Danto tem certamente razão quando afirma que objectos visualmente indiscerníveis podem, todavia, possuir diferentes propriedades artísticas.” Nigel Warburton 2007: 105-106; 2003:93-94 A B biblioteca da ciência 1ª - 3ª lei de newton 1ª Todo o corpo continua em repouso ou em movimento uniforme numa linha recta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças aplicadas sobre ele 3ª A toda acção há sempre uma reacção oposta e de igual intensidade pares visualmente indiscerníveis “Há, com certeza, identificações sem sentido: julgo que nenhuma pessoa sensata leria a horizontal como Love’s Labour’s Lost ou como The Ascendency of St. Erasmus. Por último, notemos como a aceitação de uma identificação em vez de outra significa, na realidade, trocar um mundo por outro. Com efeito, podíamos entrar num mundo muito poético, identificando a área superior com um céu limpo, sem nuvens, reflectido na superfície das águas, que seria a área de baixo, uma brancura separada de outra brancura apenas pela fronteira irreal do horizonte. “ “Nesta altura, o nosso Testadura, que seguiu a discussão com alguma dificuldade, protesta, afirmando que apenas vê tinta: um rectângulo pintado de branco, atravessado por uma linha preta. E tem toda a razão: ele apenas vê isto, ele e qualquer pessoa, incluindo nós, os teóricos da estética. Portanto, se ele nos pedir para lhe mostramos que mais há para ver, para lhe demonstramos, apontando que isto é uma obra de arte (Mar e Céu), não podemos aquiescer, porque ele não ignorou nenhum elemento (e seria absurdo supor que tinha ignorado, que haveria uma coisa minúscula para que pudéssemos apontar, e que, examinando-a de perto, lhe permitisse dizer: “Ah, então é isso! Afinal sempre é uma obra de arte!”). Não podemos ajudá-lo, enquanto ele não dominar o é da identificação artística, que lhe permite constituir o rectângulo como obra de arte. Se não for capaz de o fazer, nunca será capaz de olhar para as obras de arte” Hamlet: “Não estás vendo nada aí?” Gertrude: “Absolutamente nada, mas tudo o que há eu vejo” Hamlet: “Do you see nothing there?” Gertrude: “Nothing at all, yet all that is I see” Acto 3, Cena 4 “A sugestão de que pode não estar visível o que transforma algo numa obra de arte foi feita num artigo importante, «O Mundo da Arte», do filósofo Arthur Danto, um artigo que influenciou Dickie. Movido em particular pelas Caixas de Brillo, de Andy Warhol (basicamente, cópias das caixas de cartão de Brillo feitas de contraplacado pintado), Danto colocou a questão de saber o que têm estes objectos que os torna obras de arte, quando se parecem em tudo com os objectos reais: «Confundir uma obra de arte com um objecto real não é um grande feito, quando a obra de arte é o objecto real com o qual a confundimos. O problema é saber como evitar tais erros ou corrigi-los, depois de cometidos.» Danto sugeriu que é a teoria que faz de algo uma obra de arte e não um elemento visível desta: «Ver uma coisa como arte requer algo que o olhar não pode divisar — uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte.»” Nigel Warburton 2007: 99-100; 2003:83-84 “A Arte como a Filosofia são acerca da realidade do mesmo modo que a linguagem o é, quando é empregue descritivamente. Deste modo, a arte é sempre representativa (representational) – não apenas (se é que foi alguma vez) no sentido de que se refere a alguma coisa, mas no sentido de que expressa (conveys) a visão e o entendimento do artista, exigindo interpretação da nossa parte. [...] Interpretação, argumenta Danto, é essencial à existência da obra de arte, e a interpretação é sempre constituída por ‘uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história de arte’. Obras de arte, na visão de Danto, são representações que requerem interpretação. Diferem, contudo, das notícias de um jornal (que são também representações que requerem interpretação), na medida em que a obra de arte é, no essencial, auto-referencial (self-referential) no sentido de que expressa algo sobre o seu conteúdo” David Novitz. “Danto” in A Companion to Aesthetics. Oxford: Blackwell. 1992, 105. “Na faixa central de seis quadros exibidos na parede norte da capela da Arena de Pádua, Giotto narrou em seis episódios a fase missionária da vida de Cristo. Em cada painel, a figura dominante de Cristo aparece com um braço levantado. Apesar da posição invariante do braço, cada cena mostra com esse gesto um tipo diferente de acção, e devemos interpretar cada acção a partir do contexto em que se realiza. Na discussão com os anciãos, o braço levantado é admoestatório, para não dizer dogmático; no banquete do casamento em Canaã, é o braço levantado do prestidigitador que transforma a água em vinho; no baptismo, o braço é erguido em sinal de aceitação; o braço dá uma ordem a Lázaro; abençoa o povo no portão de Jerusalém; expulsa os vendilhões do templo. Como o braço levantado está invariavelmente presente, essas diferentes acções têm de ser explicadas pelas variações no contexto” Danto. Analytical Philosophy of Action. Cambridge: Cambridge University Press. 1973, IX. “Disraeli, ao final de um jantar onde tudo o que foi servido estava frio, disse, quando trouxeram o champanhe: “Enfim, algo quente” — uma frase de efeito demolidor na situação, embora as palavras “enfim, algo quente” não sejam por si mesmas modelos de espirituosidade. O contexto possibilita a transformação de simples palavras em frases cheias de ironia.” Danto. The Transfiguration of the Commonplace. A Philosophy of Art. Cambridge/Mass.London: Harvard University Press. 1981, 47. “E o que dizer das abstracções puras, de uma coisa que é exactamente como A, mas tem como título nº 7. O pintor abstraccionista insiste terminantemente em que aqui há apenas tinta branca e preta, e afirma que as nossas identificações literárias não têm de se aplicar. O que o distingue, pois, de Testadura, cujas afirmações são indiscerníveis das suas? E como pode aquilo ser uma obra de arte para ele, e não para Testadura, se ambos concordam em afirmar que não há nada além daquilo que se vê? A resposta, provavelmente impura para os puristas de todo o tipo, reside no facto de este artista ter regressado ao carácter físico da pintura passando por uma atmosfera composta pelas teorias artísticas e pela história da pintura recente e antiga, elementos de que está a tentar purificar a sua própria obra; como consequência deste processo, a sua obra pertence a esta atmosfera e faz parte desta história.” Danto. “The Artworld” ykb “Ele atingiu a abstracção mediante a rejeição das identificações artísticas, regressando ao mundo real de que tais identificações nos afastam (pensa ele), um pouco ao modo de Ch’ing Yüan*, que escrevia: Antes de ter estudado o Zen durante trinta anos, via as montanhas como montanhas e as águas como águas. Quando atingi um conhecimento mais profundo, cheguei a um ponto em que não via as montanhas como montanhas nem as águas como águas. Mas, agora, que atingi a substância mesma, estou em paz. Muito simplesmente, voltei a ver as montanhas como montanhas e as águas como águas.” *Ch’ing-yüan Hsing-ssü / Qīngyuán Xíngsī /Seigen Gyōshi / 660?-740 jakusho kwong form is emptiness and emptiness is form things become one no form and no emptiness nothing can be said at this point, no words can be said, no words can describe it, just quiet form is form and emptiness is emptiness sky is blue and grass is green “A diferença entre a sua afirmação e a de Testadura «Isto é tinta preta e tinta branca e nada mais» reside no facto de ele estar a usar o é da identificação artística, pelo que o seu uso «Aquela tinta preta é tinta preta» não é tautológico. Testadura não está nesse estádio. Ver uma coisa como arte requer algo que o olhar não pode desprezar - uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte.” Arte e Estética “Os estetas pensaram ter encontrado uma utilidade no conceito de distanciamento psicológico, uma separação especial entre nós e o objecto de nossa atenção provocada por uma transformação de atitudes, a fim de contrastá-lo com o que chamam de atitude prática. O fundamento da distinção está na Crítica do Juízo, onde Kant parece sugerir (...) que é possível assumir duas atitudes distintas em relação a qualquer objecto, de modo que, em última análise, a diferença entre arte e realidade seria menos uma questão das coisas em si do que das atitudes e, deste modo, não dependeria das coisas com que nos relacionamos, mas do modo como nos relacionamos com elas. Essa ideia é geralmente defensável quando os objectos em questão não são obras de arte, mas tão-somente coisas que desempenham funções na rede de utilidades que definem o mundo prático. É sempre possível suspender a atitude prática, recuar e assumir uma visão distanciada do objecto, ver as suas formas e cores, apreciá-lo e admirá-lo pelo que é, afastando toda consideração de utilidade. Mas como essa atitude de desligamento contemplativo pode ser adotada para qualquer coisa, até a mais inverosímil [...]é possível ver o mundo todo com uma atitude de distanciamento estético, como um espectáculo, uma comédia ou o que for.” Danto. The Transfiguration of the Commonplace. A Philosophy of Art. Cambridge/Mass.-London: Harvard University Press. 1981,21-22. Arte e Moral “Mas exactamente por isso não se pode analisar a relação entre as obras de arte e a realidade com base nessa distinção, que se situa numa dimensão diferente. A este propósito sou de opinião que, em certos casos, é errado ou mesmo desumano assumir uma atitude estética, olhar com distanciamento psicológico determinadas realidades — por exemplo, ver uma manifestação de rua em que a polícia espanca os participantes como um ballet ou ver as bombas lançadas de um avião como se fossem misteriosos crisântemos. A questão é saber o que devemos fazer. Por razões análogas, parece-me que há coisas que seria quase imoral representar na arte justamente, porque aí elas são apresentadas com uma distância que é exactamente incorrecta do ponto de vista moral. Tom Stoppard disse certa vez que se você vê uma injustiça acontecendo do lado de fora de sua janela, a coisa mais inútil que poderia fazer seria escrever uma peça de teatro a respeito. Eu iria ainda mais longe, sugerindo que há algo errado em escrever peças de teatro sobre uma injustiça ante a qual temos a obrigação de intervir, já que elas põem a plateia exactamente naquela espécie de afastamento que o conceito de distanciamento psicológico pretende descrever” Danto. The Transfiguration of the Commonplace. A Philosophy of Art. Cambridge/Mass.-London: Harvard University Press. 1981,22.
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