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AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI FIORELO PICOLI Fevereiro / 2005 1 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI IMPRESSÃO: Amazônia Gráfica e Editora (66) 531-6991 Av. das Itaúbas, 2062 – Jd. Botânico – Sinop MT CAPA: Sidinei Novais EDITORAÇÃO: Arte Design: (66) 531-6097 / 9985-9722 E-mail: [email protected] ORIENTAÇÃO Prof. Dr. Nildo Domingos Ouriques Departamento de Ciências Econômicas Programa de Pós Graduação em Economia Industrial Universidade Federal de Santa Catarina Prof. Dr. José Luiz Vázquez Burguete Departamento de Direción y Economía de la Empresa Programa de Doutorado em Gestión y Comercialización Internacional de la Empresa Universidad de León, España REVISÃO: Renato Gomes Tapado Josete Mori REVISÃO FINAL: Maria da Paz Sabino PICOLI, Fiorelo Amazônia: a ilusão da terra prometida. 2 ed. Sinop: Editora Fiorelo, 2005. 119 p. 1 – Amazônia. 2 – Expropriação. 3 – Povos originários. 4 – Posseiros. 5 – Garimpeiros. 6 – Devastação. ISBN - 85-904199-2-4 / Prefixo Editorial N° 904199 Todos os Direitos Reservados. É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei n° 5610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. 2 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI O presente livro é dedicado aos indígenas, posseiros, garimpeiros e peões que foram silenciados pelo poder econômico, político e militar na Amazônia. Mudez promovida por meio de armas, pistoleiros e jagunços em nome da grilagem para a concentração da terra. Um silêncio que consegue reprimir e sufocar a liberdade de expressão, culminando no controle das emoções através da força e do poder institucionalizado. Mesmo assim, não consegue esconder as marcas, os rastros e as sombras que transpõem os tempos, para anunciar a chegada da primavera e das flores. 3 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI 4 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI SUMÁRIO PREFÁCIO ................................................................................... 07 APRESENTAÇÃO ........................................................................ 09 O CAPITAL E A EXPROPRIAÇÃO DO HOMEM E SEU AMBIENTE A questão indígena, o genocídio de um povo .................. 13 A expropriação do posseiro e a luta pela terra ................. 27 As formas de exploração da força de trabalho ................. 45 A exploração do trabalho na mineração aurífera .............. 59 A devastação ambiental na expansão capitalista ............. 79 RESUMO ...................................................................................... 95 CONCLUSÃO ............................................................................. 105 LISTA DE ABREVIATURAS ........................................................ 109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................ 111 5 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI 6 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI PREFÁCIO Falar da Amazônia sem cair no modismo de apenas exaltar suas belezas naturais e de sua importância para o mundo não é uma tarefa fácil. Exige pesquisa e análise rigorosa. A obra de Fiorelo Picoli “Amazônia: a ilusão da terra prometida” vem em boa hora. Ultrapassa a superficialidade de dizer que o “homem”, em sua forma genérica, está destruindo o meio ambiente. Picoli, a partir de outros estudos e de sua vivência pessoal na região, demonstra com competência acadêmica que não há uma guerra maniqueísta entre homem x Amazônia. Através de sua obra podemos entender o processo histórico onde as relações de exploração capitalista revelam-se em suas formas mais duras e sangrentas. Demonstra como a relação entre posseiros x índios x garimpeiros e entre si próprios não é uma guerra entre “mocinhos e bandidos”. Nos ajuda a entender que estes sujeitos históricos, num processo dialético, posicionam-se no centro de uma disputa pelas riquezas da Amazônia, envolvendo ainda, o Estado e o grande capital, onde garantir a própria vida muitas vezes já pode ser considerado uma vitória. A obra indica ainda, sem meias palavras, como o Estado brasileiro coloca seus mecanismos a serviço do grande capital, que se alimenta tanto dos bens naturais da Amazônia quanto da batalha cruel instalada entre os povos que vivem nesta região. A riqueza do material oferecido por Fiorelo Picoli está na multidimensionalidade de análise. Podemos entender esta região em seus vários aspectos: geográfico, histórico, econômico, sociológico e psicológico. 7 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Outro aspecto positivo é seu didatismo. O livro pode ser entendido no todo e nas partes. Os capítulos são claros, têm riqueza de dados e análise e complementam-se. Pela atualidade do tema não há dúvida que “Amazônia: a ilusão da terra prometida” é uma obra oportuna e necessária. Sem ser um material definitivo, pois o processo histórico encontra-se em pleno desenvolvimento, podemos considerá-lo importante tanto para quem não tem maiores leituras sobre o tema quanto para quem quer aprofundar-se ainda mais nos estudos sobre a região. É um texto que flui, mas que não superficializa o tema. Uma ótima combinação. Sinop, fevereiro de 2004. Prof. Ms. Almir Arantes Vice-reitor da UNEMAT 8 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI APRESENTAÇÃO Este é o segundo livro de uma série de quatro volumes que tratam da Amazônia Legal brasileira. Algumas precauções foram tomadas no sentido de escrevê-los de maneira independente, para que o leitor não tenha a necessidade de ler o primeiro volume para poder entender o segundo. Porém, quando lidos contribuem no entendimento global do processo de expansão, ocorrido na região através dos tempos. O presente trabalho não tem o objetivo de criar mecanismos que venham solucionar os problemas que envolvem os atores sociais que vivem a Amazônia no seu dia-a-dia. Temos o propósito de apontar a problemática ocorrida através da interferência desses ao longo dos tempos na região e contribuir no processo da aprendizagem através da demonstração da realidade ali imposta pelas metas sistêmicas nacionais e internacionais. Também não temos a pretensão de apresentar soluções prontas, pois entendemos que esta é um tarefa de toda a sociedade no seu conjunto. A estratégia desse trabalho é criar mais desafios e questionamentos, por meio da apresentação da realidade, vista através dos cenários que escancaram e escamoteiam a expropriação do homem e do seu ambiente, em detrimento da expansão capitalista instalada na região para concentração da terra e da riqueza. A realidade é apresentada sem contornos e meias palavras e, quando necessário, apontamos as causas que levam a produzir dois extremos no acesso à terra na região, um de muitos pobres “Sem Terra” e o outro de poucos ricos concentrando a terra. Não temos o objetivo de esgotar a discussão sobre a Amazônia, mas contribuir de maneira humilde, apontando situações que envolvem o reino animal e vegetal num processo avançado de 9 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI destruição da vida. Não pretendemos fechar o diálogo, mas colaborar no entendimento dos conhecimentos já existentes e apontar outras versões para o debate. O nosso propósito é somar, através da organização dos conceitos e teorias da Amazônia, que apontam para um novo espaço de expansão de forma integrada por meio das diretrizes sistêmicas mundiais. No cenário apresentado, o livro tem o objetivo de identificar os atores que fazem a história da Amazônia brasileira – vítimas dessa expansão capitalista – bem como apontar de que forma foi realizada na região a expropriação dos povos originários, dos posseiros, dos garimpeiros e da força de trabalho. Objetiva-se também verificar a destruição dos mais variados ecossistemas regionais, que sustentam uma rede de equilíbrio da vida entre os reinos animal e vegetal. O homem da floresta foi expulso através de verdadeiros genocídios. Episódios estes por muitas oportunidades ignorados pelo Estado, através de suas representações e instâncias. A brutalidade praticada contra esses agentes ao longo dos tempos e a forma mais severa de tortura foram evidenciadas, pois esse cenário desencadeia o complexo mundo das armas. Um espaço complexo onde jorra mel, leite e sangue, que envolve os marginalizados, os despossuídos, os grupos econômicos, os jagunços e os pistoleiros, determinando-se dois mundos distintos. O crime é colocado a serviço das elites com a finalidade de aparelhar o modo capitalista de produção na região, e a violência é o meio. A meta final do projeto ali instalado é a concentração da terra, para a produção de monoculturas que venham servir ao mercado internacional através dos produtos para a exportação. Para atingir essas metas, a intolerância e a brutalidade fazem a ponte entre o capital e o Estado contra as massas. Nesta mesma perspectiva, verificamos o tratamento da força de trabalho que chega à região através do exército industrial de reserva do País, com o objetivo de abrir as áreas para implantar os projetos econômicos na agropecuária, no extrativismo mineral e florestal, bem como para dar suporte às cidades fabricadas pelos projetos de colonização. Identificamos o quadro de trabalhadores na agropecuária, na indústria, na prestação de serviços e em outras funções que estruturam o novo espaço de ocupação. As formas de obtenção de mão-de-obra para a região se caracterizaram pela presença de trabalhadores em estado flutuante: os concentrados nas cidades planejadas ou fabricadas e os importados de outras regiões do Brasil, para servirem de força de trabalho aos empreendimentos. Isso tudo acontece para suprir as 10 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI necessidades locais de força de trabalho, por meio de um processo que serve de máscara da realidade, para camuflar as relações de trabalho na região, identificado através do agenciamento de trabalhadores através do sistema “gato”. Caracterizamos a importância da mineração no processo de colonização, sendo este o ponto alto para penetração das pessoas nas primeiras fases de transferência para a região. Movimento este que voltou à tona no período da pós-ditadura de 1964, pois o homem continua vendo a região por meio do sonho da terra prometida. Na Amazônia passa a ocorrer um deslocamento progressivo de homens, mulheres e crianças em busca do “mel”1 . O encontro com o “mel” passa a ser almejado e planejado através da posse da terra, bem como pelo acesso ao trabalho, para finalmente realizar o sonho dos marginalizados e dos despossuídos do País, que chegam à região com o firme propósito de serem incluídos pelo acesso à terra prometida e sonhada. Argumentamos sobre a estratégia utilizada pelo Estado que entrega os recursos minerais da região aos grupos nacionais e internacionais para exploração destas riquezas nas últimas décadas. Verificamos o projeto garimpeiro ocorrido nos anos 80 do século XX, que é interpretado como uma nova fase da mineração manual dos garimpos auríferos do Brasil. Essa nova fase, volta-se à atração de mão-de-obra para servir aos grupos econômicos ali instalados. Os garimpos servem para atrair os posseiros e os colonos na procura do ouro. Assim acontece a desistência na busca da terra. Enquanto se processava o abandono da terra, em seu lugar se instalaram grandes latifúndios, que receberam parte das áreas parcialmente abertas nos territórios amazônicos. O grande capital, através de seus projetos econômicos, passa a concentrar ainda mais as terras, por meio da expulsão do homem do campo, tornandose a alternativa que se apresentava mais promissora para os marginalizados engrossarem as fileiras dos garimpos auríferos. A expansão capitalista da última fronteira brasileira trouxe 1 A busca do “mel”, bem como o encontro com este doce dourado, é uma metáfora usada ao longo do texto para demonstrar que as pessoas que se deslocam para a Amazônia buscam um sonho. Mesmo aos marginalizados e despossuídos no processo histórico, a região apresenta-se como um novo “eldorado”, e este veio acompanhado de muito brilho e luz intensa. Assim, o “mel” representa o alimento, a riqueza e a esperança de uma nova vida a todos os que chegam com o firme propósito de ver seus sonhos realizados. A metáfora que passamos a utilizar neste livro, também foi muito útil no livro “Amazônia: do mel ao sangue – os extremos da expansão capitalista” (Picoli, 2004: 16). 11 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI prejuízos ao meio ambiente, não respeitou os vários ecossistemas bem definidos na região, principalmente os ligados ao Pantanal, ao Cerrado e à Floresta Amazônica. Estes capitalistas passaram a se reproduzir na região através da lógica do sistema capitalista periférico, causando a depredação do meio ambiente e o adiantado estado de interferência do “homem civilizado” nas terras dos povos da floresta. Esse é o meio para facilitar a concentração da riqueza e promover a produção das monoculturas para servir ao mercado mundial, conforme suas exigências e tendências mercadológicas. Os rios foram poluídos por mercúrio, e as florestas, por agentes químicos utilizados no solo e como desfolhantes, proporcionando sérios problemas ecológicos. As queimadas realizadas na abertura da região criaram uma nova paisagem, fruto da devastação que busca o lucro por meio do aproveitamento dos recursos naturais e a produção de monoculturas através da agropecuária. A concentração da terra também ocorre para especulação de mercado e agregação de valor, observada através das investidas das empresas que buscam lucros fáceis. Ficou caracterizada a vulnerabilidade da imensa floresta tropical com a interferência humana, não sendo respeitada a biomassa ali existente. Do mesmo modo, as riquezas foram sendo aos poucos destruídas pelas estratégias capitalistas nacionais e internacionais, por meio do dinheiro público. A grande quantidade de insetos, plantas, animais e microorganismos pouco estudados estão sendo destruídos e pirateados por grupos organizados que atuam impunemente na região, onde estão presentes grupos farmacêuticos multinacionais, apurando fórmulas do saber popular, praticando a biopirataria do conhecimento e patenteando os novos produtos para o mercado capitalista mundial. É nesta perspectiva que tratamos a região Amazônica. No sentido de identificar a problemática do desenvolvimento econômico regional, bem como as formas de expropriação do homem e do seu ambiente. Nesta amplitude tecemos as relações entre o homem, o trabalho, o capital e o meio ambiente, com o intuito de identificar os atores sociais que fazem parte da Amazônia Legal brasileira. Preocupamo-nos em contribuir com a discussão a fim de promover o debate e a crítica de forma ampla e não em apresentar os conceitos como definitivos, uma vez que não somos os detentores da verdade absoluta. Entendemos que se faz necessário rever teorias e conceitos, tendo em vista que a evolução do homem deve relacionar-se com a produção de novos conhecimentos, sem no entanto, desprezar os já existentes. 12 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI CAPITAL E A EXPROPRIAÇÃO DO HOMEM E SEU AMBIENTE A questão indígena, o genocídio de um povo Faz-se necessário entender o espaço que compõe a Amazônia Legal brasileira, por meio da representação de parte do território que compreende a Amazônia sul-americana. O território brasileiro forma a maior porção da área, 63,4% do total e 59% do território brasileiro. Os Estados que formam a parte do território brasileiro são nove: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Pará, Roraima, Tocantins e a parte Oeste do meridiano 44° W do Estado do Maranhão. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2004, a população que vive na região amazônica está acima de 22 milhões de habitantes. Nesse espaço pode ser encontrado 80% da vida do planeta (Picoli, 2004: 17-18). Através dessa amplitude regional, esse território brasileiro até pouco tempo era pouco habitado e explorado, porém com a tomada de poder do governo, por meio da ditadura militar em 1964, ele passa a ser área de expansão dos projetos econômicos nacionais e internacionais de maneira projetada e organizada. Nesse sentido, na Amazônia o projeto articulado pelo Estado em conjunto com o capital não foi para trazer a felicidade aos povos da floresta. Pelo contrário, foi para expulsá-los de suas terras e promover a expansão dos grupos econômicos na região. O objetivo principal foi instalar grandes complexos agropecuários e de extrativismo, tanto no setor mineral como no 13 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI florestal. Com esta estratégia, grandes empreendimentos nacionais e internacionais se instalaram em terras adquiridas legalmente e griladas, dos posseiros e dos povos originários, através da expropriação e da violência. Os indígenas foram as grandes vítimas da expansão da última fronteira agropecuária do pós-1964. Podemos citar alguns projetos ali instalados como: a Amazônia Mineração: associação de empresa estatal Vale do Rio Doce com a United States Steel; Indústria e Comércio de Minérios: associação da Caemi de Antunes e da Bethlehem Steel; Jari Florestal e Agropecuária: D. Keith Ludwig/ National Bulk Carriers; Volkwagen do Brasil, Fazenda Suiá-Missu, de propriedade da Liquigás; Swift-Armour-King Ranch e outras centenas de empresas com a finalidade de expandir-se nesta região e agregar valor para a especulação imobiliária. No caso específico do Estado de Mato Grosso, muitos dos projetos de colonização foram realizados por empresas privadas, e vários desses ocorreram em terras indígenas. Para OLIVEIRA (2001: 146), o processo de colonização “teve sua base na grilagem das terras e em verdadeiros massacres de nações indígenas”. Citamos como exemplo alguns projetos realizados em terras indígenas, tais como: em Porto dos Gaúchos, em terras dos índios Beiços-de-Pau; em Canarana, em terras dos Xavante; em Água Boa, em terras dos Xavante; em Nova Xavantina, em terras dos Xavante; em Matupá, em terras dos Kreen-Akaroé; em Alta Floresta, em terras dos Apiaká; em Juara e Novo Horizonte do Norte, em terras dos Kayabi; em Juruena e Cotriguaçu, em terras dos Ribeaktsa, e outros. O resultado destes contatos é que boa parte destes povos foi exterminada, vítimas de doenças do contato com a civilização, ou foram assassinados (IANNI, 1986:184-85). Alguns destes projetos, como é sabido, recebem incentivos através dos benefícios fiscais da Sudam e são protegidos pelo Estado brasileiro com toda a infra-estrutura necessária. Por outro lado, o processo de apropriação das terras dos povos originários caminha sempre em conjunto com a burocracia dos órgãos encarregados em lhe dar proteção. A Funai aparece sempre depois das ocorrências, vindo a contribuir na preservação dos interesses econômicos, políticos e culturais do capital, pois o órgão representativo dos povos da floresta se defronta com os fatos já consumados. O Estado foi levado a trabalhar contra as comunidades tribais sem preservar os 14 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI interesses dos povos originários, protegendo suas representações capitalistas. Em muitos casos, os postos da Funai são transformados em instrumentos para promover a expropriação indígena. IANNI (1986: 190) retrata a Amazônia da seguinte forma: esse modo de encarar a situação amazônica, na qual a questão indígena aparece como um problema menor, secundário, ou não antropológico, em face da força de expansão das “fronteiras econômicas”, implica em que toda atuação da Funai aparece como “naturalmente” em segundo lugar, em atraso. Parece como se a “força das coisas” é que estivesse dispondo os problemas desse modo. E as invasões e expropriações das comunidades indígenas aparecem como males necessários do “progresso”, “desenvolvimento”, “modernização” e outros signos da ideologia capitalista dos governantes. Dessa maneira, o Estado e a sua tecnocracia são levados a sempre dar a impressão – à opinião pública nacional e estrangeira – de que a expropriação das comunidades tribais não está sendo realizada pelo capital monopolista e em seu único benefício. Para o Estado e o capital em conjunto, os povos das florestas são vistos como um obstáculo, um estorvo sem direito à existência. Tanto é que órgãos estatais como Sudam, Basa, Pin, Suframa, Polamazônia, Proterra, Incra e a Funai não têm preocupação alguma em preservar os direitos e interesses desses povos, pois são direcionados em suas práticas para proteger os grupos econômicos organizados. Estes órgãos fogem de seu verdadeiro objetivo, que é contribuir na proteção dos povos originários, e assim acabam por promover o desenvolvimento extensivo do capitalismo de forma agressiva, colaborando para facilitar a expropriação dos indígenas e dos posseiros da região. Estes órgãos formam um complexo e burocrático aparelho do Estado, atuando com o objetivo firme de controle, obediência e subordinação. Adotam uma política indigenista que tem começo e fim fundados na privação dos direitos dos índios de suas terras. Contudo, “transformar a propriedade tribal em propriedade ocupada, grilada, latifúndio, fazenda, empresa, é sempre o primeiro e o último passo para transformar o ‘índio’ em ‘nacional” (IANNI, 1986: 215). Esta foi a triste história dos índios brasileiros ao longo do tempo, e esta mesma história volta a repetir-se no final do século XX na Amazônia. 15 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Neste sentido, os povos originários e primeiros habitantes deste país antes da chegada dos colonizadores europeus tinham a natureza como sua maior riqueza. Preservavam seus costumes e viviam em comunidade. Desta maneira, “os índios viviam numa sociedade organizada para produzir gente, o que contrastava com a sociedade dos brancos (europeus), organizada para produzir riqueza” (SANTOS, 1998: 130). A partir da chegada dos colonizadores começa a agressão e a espoliação destes povos. As estatísticas, no processo de colonização pelos europeus, são alarmantes, “dos 5 milhões de indígenas que ocupavam o Brasil à época do descobrimento em 1500, cerca de 220.000 [década de 70] ainda lutam teimosamente para sobreviver. A grande maioria está concentrada na Amazônia” (OLIVEIRA, 1997: 118). Assim, os povos originários “passaram de aproximadamente 100 mil, na década de sessenta, para mais de 200 mil, no final da década seguinte, chegando hoje [2000] a mais de 350 mil” (HECK, 2000: 16). Para a CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (2001: 69-70), “estima-se que a população indígena seja de 550.438 pessoas, pertencentes a 225 povos, falando cerca de 180 línguas diferentes. Desta população, cerca de 358.310 vivem em seus territórios, outros 191.228 migraram para centros urbanos e há uma estimativa de 900 índios que são pertencentes a povos não contatados”. Nas últimas décadas obtivemos um sensível aumento da população, visto que ocorreram a descoberta de novas tribos na Amazônia, assim como a demarcação de algumas áreas, ocorrendo um clima de segurança e novas leis que protegem as comunidades, principalmente na última década, pelo retorno de índios culturalizados em suas terras. Estes fatores contribuíram para que se efetivasse o aumento da população indígena. Mas o processo histórico aponta números preocupantes e se faz necessário entender o movimento geral para entender o momento atual. Através dos dados, podemos observar um sistemático extermínio progressivo dos povos originários ao longo dos tempos. 16 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI QUADRO DEMONSTRATIVO SOBRE O EXTERMÍNIO DOS POVOS ORIGINÁRIOS BRASILEIROS NO PROCESSO HISTÓRICO DE 1500 A 2000 População indígena 6.000.000 600.000 300.000 100.000 350.000 Ano 1500 1822 1889 1967 2000 Fonte: Elaboração própria com base em Heck (2000: 15). Como pode ser observado, existem divergências sobre o número de indígenas no ano de 1500, época do descobrimento do País, mas estudos realizados apontam a existência de mais de cinco milhões de indivíduos. Por outro lado, “o extermínio de mais de 70 milhões de índios no continente [americano] – dos quais mais de cinco milhões no Brasil - parece não comover os promotores e herdeiros do projeto de colonização nestes 500 anos” (HECK, 2000: 15). Para SHIVA (2001: 24), “a população nativa americana declinou de 72 milhões para menos de 4 milhões poucos séculos mais tarde” (SHIVA, 2001: 24). Segundo SANTOS (1998: 44), “no começo do século XVI, a população indígena da América devia estar na casa dos 80 milhões, e em meados do referido século essa população já estava reduzida a 10 milhões”. Os dados apresentados nos levam a deduzir que a partir da colonização, desencadeia-se um sangrento genocídio dos nativos do continente americano. Desta forma, algumas causas relevantes por parte dos colonizadores em destruir os povos originários do Brasil podem ser vistas em PRADO JÚNIOR (1988: 12): Ao contrário do México e dos países andinos, não havia no território brasileiro senão ralas populações de nível cultural muito baixo. Não seria grande, por isso, o serviço que prestariam aos colonos que foram obrigados a se abastecer de mão-de-obra na África. Os indígenas brasileiros não se submeteram com facilidade ao trabalho organizado que deles exigia a colônia; pouco afeitos a ocupações sedentárias (tratava-se de povos semi-nômades, vivendo quase unicamente da caça, pesca e colheita natural), resistiram ou foram dizimados em larga escala pelo desconforto de uma vida tão avessa a seus hábitos. 17 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Na Amazônia não foi diferente. Com a abertura mais acelerada da última fronteira brasileira, tendo no comando o governo da ditadura pós-1964, além de expropriados, “são muitos os índios que estão sendo proletarizados, acamponesados, lumpenizados ou pura e simplesmente dizimados” (I ANNI , 1986: 176), houve a transmissão de doenças pelos brancos. Até hoje não temos conhecimento de qualquer moléstia originalmente indígena que fosse transmitida aos civilizados. Os indígenas “não conheciam doenças como varíola, sarampo, difteria, tracoma, coqueluche, catapora, peste bubônica, malária, febre tifóide, cólera, febre amarela, escarlatina, disenteria, amébica, gripe etc.” (SANTOS, 1998: 57). A agressão aos índios acontece de duas maneiras: a primeira, através de pestes e doenças transmitidas pelos brancos; a segunda, pela mentalidade capitalista e a busca do enriquecimento. Através da expansão da última fronteira promovida pelos militares, agravam-se as condições de extermínio, pois “quando acaba o isolamento, inicia-se a dizimação” (SANTOS, 1998: 58). Os dados retratam um verdadeiro genocídio dos povos originários, “algumas tribos perderam nesses poucos anos até dois terços de sua população” (MARTINS, 1997: 86). Como forma de demonstrar a atual situação dos povos originários na Amazônia, LEONELLI (2000: 252) nos diz: cento e sessenta povos indígenas diferentes vivem na Amazônia brasileira hoje, [2000] em 370 terras, a maior parte delas com algum grau de reconhecimento oficial, somando mais de 10,2 milhões de hectares, o equivalente a 20% da extensão da Amazônia legal. Mas os dados não são definitivos. Há 53 referências de povos “isolados”, que têm contato com a Funai, órgão indígena do governo federal, e, assim, ou simplesmente não constam, ou aparecem com denominações e localização provisórias nas listas oficiais. Há outros casos em que, ao contrário, determinados povos oficialmente considerados “extintos” reemergem do anonimato, conquistam seus direitos territoriais e voltam às listagens e aos mapas. Há terras ainda em fase de identificação e outras, já demarcadas, em processo de revisão de limites. Demograficamente, os números também são aproximativos: 180 mil índios – equivalente a 1% da população da Amazônia brasileira hoje – vivem nas terras indígenas conhecidas. Mas isso não é tudo. Não há dados confiáveis sobre índios vivendo nos centros urbanos da região, o que poderia elevar este total para 18 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI algo em torno de 220 mil. Os 98,8% da extensão total das terras indígenas do país estão na Amazônia, enquanto 1,2% restante espalha-se ao longo das regiões. Estes dados nos orientam sobre a importância da Amazônia para os povos originários. Na região encontram-se quase a totalidade das áreas indígenas do Brasil e a maior população sobrevivente. Por outro lado, as áreas reservadas aos indígenas “na Amazônia, em sua maioria não estão demarcadas” (BECKER, 1997: 78-79). No ano de 2001, segundo a CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (2001: 82), apenas 32% das terras indígenas brasileiras encontravam-se demarcadas, e os outros 68% aguardam procedimentos administrativos. Não é objetivo do capital exterminar totalmente os povos originários e os posseiros da região amazônica, mas sujeitar a força de trabalho à sua disposição. Assim, “na história desses quinhentos anos, os povos indígenas do Brasil perderam quase 90% de seus territórios tradicionais” (HECK, 2000: 21). A demarcação das terras dos povos originários representa segurança para o desenvolvimento futuro das comunidades tribais. E a regularização representa também a limitação do território, obstáculo para os capitalistas ao expropriarem as terras e, conseqüentemente, os recursos naturais nelas existentes. O processo de colonização da Amazônia nas últimas décadas foi realizado de forma extensiva, agressiva e repressiva, pois foi promovido pela burguesia nacional e internacional, apoiados pelo Estado brasileiro, dizimando grande quantidade dos povos originários. Os acumuladores, através da expansão, sabem “que o índio se relaciona com a terra de forma mística, ou religiosa, isto é, sem levar em conta a ‘racionalidade’ do empreendimento econômico capitalista” (IANNI, 1986: 177). Mas através da estratégia capitalista implantada na região, fez-se necessário transformar os povos originários em mercadoria, que venha a vender sua força de trabalho aos projetos ali existentes, mesmo que estes projetos se instalem em suas próprias terras. Para conseguir este feito, “primeiro a domesticação da natureza e da cultura. A partir daí ele é transformado em vendedor de sua força de trabalho” (PROCÓPIO, 1992: 159). Na Amazônia, a partir do processo de colonização, houve “a penetração das missões, ou seja, a catequese e conquista espiritual como preparação de bases 19 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI para o desenvolvimento das atividades econômicas” (SANTOS, 1998: 71). Os povos originários se fundamentam na comunhão da terra, na forma de trabalho, nas formas espirituais e materiais da comunidade. Com a presença de estranhos ficam ameaçados na sua religiosidade, na sua vida em comunidade e em seus costumes. Ao contrário, a Funai, criada em 1967 para proteger e defender os interesses dos povos originários, se apresenta “como um órgão da política da ditadura” (IANNI, 1986: 182). Ao invés de protegê-los, passou a ser um instrumento de aculturação agressivo, dentro do projeto de expansão e acumulação. PROCÓPIO (1992: 162) adverte: são indismentíveis as queixas e denúncias dos indígenas, como, por exemplo, a invasão de suas terras por garimpeiros e mineradoras. Mas quase nunca se diz que essas mineradoras são, em sua maioria, ligadas a multinacionais, cujas matrizes estão freqüentemente nos Estados Unidos da América, Europa Ocidental e Japão. Omite-se também da opinião pública internacional o principal destino do ouro e dos metais preciosos roubados das terras indígenas. O pior de tudo é que a imagem positiva e com freqüência meio apologética que se tenta dar do índio, nas escolas brasileiras e nos livros, é substituída pelo do índio vilão e preguiçoso (...). É difícil deixar de lembrar que, até recentemente, a quase única presença do homem dito civilizado nos rincões mais afastados do país foi a dos missionários e soldados. Os padres e soldados, durante longo espaço de tempo, se não os únicos, foram a principal referência do mundo do branco na Amazônia. Em seus internatos e quartéis, além da Ave-Maria e outras orações, se ensina o “Hino Nacional” e aulas de moral e cívica. Os ensinamentos religiosos e as formas pedagógicas a eles impostas, em nada contribuem para a vida dos povos originários. Não se respeitam os conceitos já estabelecidos, tenta-se destruir e impor costumes e modos dentro da moral e do civismo, criando novos conceitos através do medo e da submissão. “Tenta-se incutir no indígena ideais de humildade, obediência e castidade” (PROCÓPIO, 1992: 170). Todo este esforço é para torná-los cristãos e civilizados, porém, no último estágio, se tornam proletários para servirem ao sistema expansionista na região, embora só tenham a necessidade de serem respeitados dentro de seus princípios, costumes e toda sua forma de ser. 20 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Mas o processo de expansão da Amazônia os torna força de trabalho e consumistas, pois passam a comprar produtos até então não conhecidos como refrigerante, cachaça, leite em pó, relógio e aparelho de som, aparelho celular, entre outros. Alguns se encontram visivelmente obesos e a grande maioria dos ditos “civilizados” são alcoólatras. O civilizado que visita as aldeias sente a necessidade de adquirir alguns pertences dessas pessoas – arco, flecha e outros objetos –, para depois exibi-los como troféu. Este comércio representa a perda de sua cultura e alternativa de subsistência, visto terem sido expropriados de sua terra no processo de colonização ou porque passaram a viver em áreas menores. Ao mesmo tempo tornam-se “civilizados”, adquirem novos conceitos de moral, civismo e religiosidade. O modo capitalista de produção objetiva transformá-los em proletários, permanentes ou temporários, explorando-os como castanheiros, seringueiros, peões ou vaqueiros e outras funções. Neste sentido, torná-los civilizados é fazê-los cantar o Hino Nacional brasileiro, bem como torná-los cristãos é rezar a Ave-Maria. Com esta civilização imposta se tornam civilizados, e a perda da “própria identidade pessoal e cultural e a marginalização social vêm sendo as grandes conseqüências do processo de destruição que atinge os índios” (PROCÓPIO, 1992: 204). Assim, atualmente na capital amazonense “chega a 12 mil o número de índios saídos do rio Negro, vivendo agora na periferia de Manaus, nas piores condições possíveis. Mais do que abandonados, eles foram deserdados” (PROCÓPIO, 1992: 204). Os povos originários não estão preparados para competir no mercado, nem mesmo para vender sua força de trabalho, mas servem para compor o exército industrial de reserva em potencial, mesmo “não tendo chance de competir no restrito mercado de trabalho: meninas de 14 anos podem ser encontradas às dezenas nos principais prostíbulos de Manaus”. (PROCÓPIO, 1992: 205). Para o branco isso é um problema, para os povos originários é a conseqüência da expropriação. “Na verdade, à medida que a propriedade invade os territórios indígenas, o índio invade a sociedade que quer dominá-lo” (MARTINS, 1991: 137). IANNI (1986: 221) afirma: mais estrangeiro do que o estrangeiro que está expulsando o índio das terras tribais. Esse, o estrangeiro que aparece na Amazônia 21 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI como grileiro, latifundiário, fazendeiro ou empresário, esse é conacional. Não fala a mesma língua, possui outros trajes, tem outros hábitos, mas tem a mesma noção do que é a terra, a propriedade privada, o trabalho produtivo, a acumulação etc. Está integrado nos mesmos padrões de valores, principalmente no Cristo, na propriedade privada e no dinheiro. E o índio somente passa a ser considerado como “integrado”, nacional ou “brasileiro” quando abandona o seu modo de praticar a propriedade tribal das terras, dos meios de produção e das coisas produzidas pelo trabalho. O índio perfeito, ideal, aquele que se acha perfeitamente integrado – portanto, que negou o seu modo de ser –, índio ideal, pois, é aquele que foi expulso da terra tribal e passou a vender a sua força de trabalho para o grileiro, latifundiário, fazendeiro ou empresário, nacional e estrangeiro. O processo de colonização deixa para trás um rastro de sangue, violência e mortes dos povos originários, acontecendo casos de genocídios de tribos inteiras. Neste sentido, relatamos por meio da pesquisa alguns fatos relevantes encontrados na região nas últimas décadas. Na tribo Xavante, em Conceição de Cima, com mais ou menos quinhentos índios, os homens da Companhia Agropecuária Índia, para afastá-los da gleba, “jogaram, de avião, roupas e brinquedos contaminados com vírus de gripe e sarampo. Noventa por cento da aldeia morreu. A Força Aérea Brasileira retirou os últimos índios doentes” (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 18). Assim, o objetivo proposto pelos capitalistas concretiza-se, os índios mortos não reivindicam terras e os capitalistas realizam a expansão proposta para a região. O Estado fez a limpeza final desta área, muito mais para liberar as terras aos capitalistas do que para preservar a vida dos últimos sobreviventes deste genocídio praticado pelos “ditos civilizados”. Outro fato semelhante ocorreu na construção da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, nas margens do rio Peixoto, norte do Estado de Mato Grosso. Os índios Kareen-Akarore tiveram os primeiros contatos com brancos em 1973, “eram 350 pessoas. Dois anos depois desse episódio e do contato com os bandos, em janeiro de 1975, só restaram vivos setenta e nove deles (quarenta homens e trinta e nove mulheres), todos com sinais visíveis de tuberculose” (MARTINS, 1997: 165). Outro episódio ocorreu com a “tribo dos Ofaiés, das cabeceiras dos Rios Taboco e Negro. Estavam sendo caçados e 22 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI exterminados por um ‘coronel’, porque matavam, para comer, reses da fazenda” (MARTINS, 1971: 78). As rodovias fazem a ponte para a penetração do homem na região, bem como o extermínio dos povos originários. No projeto para construção da rodovia Transamazônica não foi diferente, pois ela cruza terras de mais de vinte nações indígenas (GOMES, 1972: 95). Outro caso brutal foi para eliminar a tribo indígena Beiçosde-Pau, em território mato-grossense, alguns “fazendeiros, com ajuda de funcionários do governo, distribuíram alimentos envenenados com arsênico. Em várias aldeias, aviões lançaram brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola” (SABATINI, 1998: 79). Mas o fato que mais impressiona é o conhecido como massacre do paralelo 11, também no Estado mato-grossense. Um matador de aluguel de índios, não recebeu pelos serviços prestados a um seringalista e denunciou os motivos da perda do emprego: a necessidade urgente de exterminar os indígenas da tribo Cinta-Larga, pois os índios estavam sentados em cima de grandes jazidas de cassiterita, terras de boa qualidade e muito mogno para extração da madeira (SABATINI, 1998: 79-80). O motivo da denúncia foi a falta de recebimento pelo trabalho prestado, pois tinham a necessidade em apressar o processo de desocupação da área e passaram a “bombardear as malocas com dinamite, usando avião” (SABATINI, 1998: 80). Comprovando a dizimação dos povos da floresta ARNT, PINTO e PINTO (1998: 68) nos relatam: foram necessários mais de cinco anos para que os irmãos Villas Bôas finalmente conseguissem se aproximar dos arredios Panará, no dia 4 de fevereiro de 1973, porque os índios montavam as aldeias e fugiam sempre. Mas antes desse encontro histórico, antes da Cuiabá-Santarém passar por cima deles, o contato esporádico com os vírus dos brancos da frente de obras da estrada consumiu os Panará. Em dois anos, morreram tantos, de gripe e diarréia, que o grupo quase desapareceu: “Nós estávamos na aldeia – lembra-se o chefe Aké Panará – e começou a morrer todo mundo. Os outros foram embora pelo mato, e aí morreram mais. Nós estávamos doentes e fracos e, então, não conseguimos enterrar os mortos. Ficaram apodrecendo no chão. Os urubus comeram tudo”. O lema do sertanista Cândido Mariano da Silva Rondon, no Serviço de Proteção ao Índio, fundado no início do século XX, baseava-se no respeito às culturas e terras indígenas (“Morrer se 23 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI preciso for, matar, nunca”). No entanto, estas frases passaram a fazer parte apenas dos escritos e lembranças, pois alguns dos “administradores viram-se implicados em matanças de índios com dinamite, metralhadoras e arsênico misturado no açúcar” (SHOUMATOFF, 1990: 72). A crueldade contra os povos originários faz parte da história brasileira, ela não aconteceu somente nas últimas décadas na Amazônia. Exemplo disso é o ocorrido em 1560, através do governador-geral do Brasil, Mem de Sá, ao relatar as façanhas ao rei de Portugal. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB22 (2001: 60) relata parte da carta ao rei: na noite que entrei em Ilhéus fui a pé em uma aldeia que estava a sete léguas da vila. E a destruí, e matei todos os que quiseram resistir. Na vinda fui queimando e destruindo todas as aldeias que ficaram para trás. Então se ajuntaram e vieram me seguindo ao longo da praia outros gentios. Lhes fiz algumas ciladas e os forcei a jogarem-se no mar...Mandei outros índios reunirem os corpos e colocá-los ao longo da praia, em ordem, de forma que tomaram os corpos (alinhados) perto de uma légua. Este massacre cruel, ordenado pelo governador-geral do Brasil, deixou um saldo de “seis quilômetros de praia cobertos pelos corpos dos índios assassinados em uma única noite” (CNBB, 2001: 60). Poderíamos citar vários outros casos, pois os povos originários se tornam um obstáculo para os interesses capitalistas e o extermínio das tribos fazia parte da estratégia para concentrar a terra. Contudo, poucos dos episódios ficaram conhecidos e a grande maioria das tribos foram exterminadas no anonimato e sem alguém que contasse a sua história de violência e morte. Na Amazônia, uma das condições para se adquirir terras devolutas do Estado, por parte das empresas nacionais e multinacionais, é apresentar um certificado de não-existência de ocupação indígena e de posseiros nas áreas pretendidas. Por este motivo, burla-se a lei através da corrupção dos órgãos do governo, e em muitos casos são apresentados documentos falsos para depois expulsá-los. O extermínio é realizado por meio de pistoleiros, pois estes são contratados pelos grupos econômicos que se utilizam 2 A campanha da fraternidade da CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, no ano de 2002, tem como tema “Fraternidade e Povos Indígenas” e como lema “Por uma terra sem males”. 24 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI de métodos brutais e violentos. Leis que protegem os povos originários existem. O problema é colocá-las em prática, visto que os mesmos grupos que as fazem, beneficiam-se delas praticando a violação. Por outro lado, na Amazônia, a lógica da colonização e expansão se pautou “na depredação da natureza e exploração do homem pelo homem” (SANTOS, 1998: 239). Os povos originários também acreditam pertencerem à terra do “mel”, mas acreditar é só o começo para a grande caminhada realmente efetivar-se. Se a busca não fosse interrompida por forças estranhas, talvez chegassem ao pote sagrado a tempo. Porém, estas forças estranhas muitas vezes ocultam e desviam do rumo certo. São induzidos a acreditar que, para buscar o “mel”, o índio precisa ser proletário, tornar-se cidadão civilizado, saber cantar o Hino Nacional brasileiro e rezar a Ave-Maria. Aos próprios donos da floresta é negada a possibilidade de encontrar o tesouro sagrado, e são reduzidos “a mais extrema miséria” (SANTOS, 1998: 239). O sonho de adoçar a boca com o precioso líquido, mais uma vez foi adiado. Mesmo aos donos da floresta foi negada a possibilidade de estarem em liberdade para encontrar esta felicidade eterna, duradoura e dourada. Os métodos para desviar os caminhos dos simples povos das florestas formam um engenhoso e arquitetado plano para desviar os caminhos da conquista do “mel”. Contudo, a luta continua e novas possibilidades são oferecidas a estes povos, pois existe a oportunidade de acessar as maravilhas douradas através de sua proletarização, e assim a vida segue, os povos da floresta tentam conquistar seu espaço, roubado pelos ditos “civilizados”... ***** 25 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI 26 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI A expropriação do posseiro e a luta pela terra No processo de ocupação da Amazônia brasileira o principal objetivo dos migrantes despossuídos e marginalizados foi a busca da terra. O movimento espontâneo de pessoas acentuou-se na região, a partir do golpe militar de 1964. Entretanto, “os conflitos pela terra ganharam contornos dramáticos, sobretudo ao longo dos eixos rodoviários” (GONÇALVES, 2001: 54). Neste sentido, ocorreram inúmeros confrontos, com envolvimento de soldados, jagunços, pistoleiros, grileiros, colonos, índios, latifundiários e posseiros3 . Nesta região se evidenciou a concentração da propriedade, e assim “a luta pela terra retrata a face selvagem do capitalismo brasileiro” (FERREIRA, 1986: 35). A partir do movimento de expansão dos grandes projetos econômicos na região, iniciaram-se também os horrores da 3 “Posseiros – Os posseiros são agricultores que cultivam pequenas parcelas de terra. Não possuem títulos de propriedade, dispondo apenas da posse da terra. Trabalham geralmente em base familiar, ou às vezes coletiva, com outras famílias de posseiros, produzindo gêneros alimentícios para o próprio consumo e para a venda, que irá abastecer os centros urbanos. Na Amazônia, os posseiros em geral são migrantes oriundos do Nordeste ou de outras regiões. Eles são as grandes vítimas dos grileiros ou empresários que arranjam títulos de propriedade e controlam jagunços para expulsá-los da terra.” (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 15). “Empresários – Também chamados genericamente de ‘paulistas’, os empresários são pessoas ricas ou empresas que adquirem enormes extensões de terra na Amazônia, munidos de títulos de propriedade duvidosos. Eles surgiram a partir dos incentivos fiscais concedidos pela Sudam para implantação de projetos agropecuários. Normalmente os empresários adquirem os títulos de propriedade sem conhecer a área, pois só a vistoriam de avião.” (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 15). “Indígenas – São o elo mais frágil na estrutura de ocupação da Amazônia. Constantemente expulsos das terras que habitam, eles são exterminados ou obrigados a se confinar em ‘reservas’ especiais (como o Parque Nacional do Xingu), que são muito mal protegidas pelo governo. Ou, então, têm de se aculturar e se transformar em ‘peões’ ou trabalhadores de baixa remuneração.” (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 15). “Grileiros – Os grileiros são pessoas que se apoderam ilicitamente de grandes extensões de terras, através da obtenção de títulos falsificados.” (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 15). “Jagunços – Os jagunços são ‘pistoleiros’ ou ‘seguranças’ contratados por grileiros, empreiteiros ou empresários para patrulhar as suas terras e expulsar delas os posseiros.” (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 15). 27 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI acumulação, pois estes fazem parte do modo de concentrar a terra. Neste episódio, as principais “vítimas dos conflitos de terras são indígenas e posseiros, ao passo que os beneficiários são grileiros, latifundiários e empresas” (IANNI, 1986: 143). Para MARTINS (1997: 104), os posseiros não são trabalhadores sem-terra, e desta forma não podemos confundi-los. Estes “são trabalhadores privados do direito legal sobre a terra que ocupam”. O modelo de colonização ali implantado não respeitou o direito à terra, foi propositalmente articulado para beneficiar principalmente a burguesia agrária. Neste espaço grandes projetos de conglomerados econômicos, tanto nacionais como internacionais, defrontaram-se com posseiros vivendo há muito tempo na região e também com os recém-chegados. Estes grupos econômicos, beneficiados pelos incentivos fiscais, e também com apoio em toda a infra-estrutura por parte do Estado, viabilizaram a produção de mercadorias e realizaram seu objetivo maior, a expansão para a acumulação. Dessa forma, os grandes empreendimentos encontraram todo um aparato que interessa à elite dominante do País, sempre amparada por leis protecionistas que contribuem para a expansão capitalista e, conseqüentemente, à expropriação dos posseiros. Os projetos da burguesia efetivaram-se na região sem, no entanto, tomar conhecimento se eram implantados em terras dos povos originários ou dos posseiros, como foi visto no capítulo anterior. Os posseiros são formados entre os povos marginalizados e despossuídos ao longo dos tempos, alguns provenientes de fases anteriores de penetração na região como: extrativismo florestal; garimpagem; agropecuária; e povos originários culturalizados. Também há os recém-chegados, estes vindos de regiões com sérios problemas sociais – principalmente do Nordeste brasileiro –, frutos da colonização espontânea recente. Ambos são formados geralmente por caboclos que cultivam o solo de forma primitiva, produzindo quase na totalidade para a subsistência familiar. Contudo, carregam o sonho de vida melhor e buscam a dignidade para si e seus familiares na utilização da terra. Neste propósito são crentes de poder conquistar, através de suas próprias forças o “mel” prometido, e este pode ser apenas uma promessa, mas a esperança existe. Todo o empenho é direcionado 28 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI no sentido de participar da ceia prometida e o encontro com o pote de “mel” é a meta de todos os posseiros amazônicos. Os principais produtos de suas roças são o arroz, o milho, o feijão e a mandioca; costumam também criar algumas cabeças de gado, principalmente bovino e caprino para a produção de leite para o autoconsumo. Vivem de forma bastante rudimentar, tendo pouco ou quase nenhum acesso à educação e à saúde, sem a menor assistência sanitária, sendo a higiene bastante precária. Além disso, o posseiro, através de sua cultura não sente a necessidade de possuir titulação da terra, pois foi acostumado a sempre ter acesso a ela, entendendo que a floresta pertence à natureza e, sendo da natureza, pertence a ele. Historicamente na região, o deslocamento dos grupos de posseiros foi facilitado pelo acesso através dos rios navegáveis, mas recentemente a penetração foi facilitada pelas rodovias de integração nacional. No entanto, a partir da entrada mais acentuada dos grupos econômicos, impulsionados por órgãos governamentais, a tranqüilidade dos posseiros e dos povos originários deixou de existir. As áreas com posseiros e povos originários são consideradas um problema para os capitalistas e passaram a ser áreas de conflito. O acesso dos grupos econômicos na região é facilitado, sendo comuns “anúncios de jornais relativos à venda de terras na Amazônia, mencionando freqüentemente, como uma das qualidades do imóvel, que justifica o preço pedido, o fato de que a área oferecida à venda ‘não tem posseiros’“ (MARTINS, 1995: 116). Por causa dos conflitos no Estado do Acre4 , muitas centenas de milhares de posseiros não vivem mais no território brasileiro, foram expulsos de sua própria pátria, vivendo agora na fronteira com o Peru e com a Bolívia. São posseiros expropriados de suas terras, por forças capitalistas interessadas em expandir-se nesta região. MARTINS (1981: 88) enfatiza: Quem vive há décadas nessa região – observou um brasileiro que 4 Acre, Estado do Norte brasileiro que compõe a Amazônia Legal, com população de 557.337 habitantes em 2000; sua capital é Rio Branco, com área de 153.149,90 km². Limita-se internacionalmente com o Peru e a Bolívia. Este Estado foi anexado ao território brasileiro no começo do século XX. O interesse do Brasil nesta área foi pela grande quantidade de seringais para produção da borracha. Este produto foi de maior exportação da Amazônia, principalmente entre 1870 e 1912. 29 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI hoje mora na Bolívia – termina aprendendo uma lição, simples e clara: seringueiro e colono não têm pátria. Somos joguetes nas mãos de grupos poderosos. Quando quiseram anexar o Acre ao Brasil recorreram aos nossos pais e avós. Agora, que não precisam mais da gente, utilizam os jagunços5 , que deveriam ser nossos irmãos, e queimam nossas casas, incendiam nossas roças, prendem-nos e a nossos filhos. Onde está a pátria nesta história? Muitos que lutaram por melhores dias para si e para os seus pereceram na longa caminhada, mas permanecem vivos com as histórias de suas lutas sociais6 . Para SILVA (2001: 201), “sem os seringueiros provenientes da região Nordeste, o Acre possivelmente não seria brasileiro (...) em 1899, o Acre produzia mais de 60% da borracha da Amazônia”. As lutas entre posseiros e grupos econômicos acontecem de forma desigual; enquanto a grilagem da terra, promovida por empresários, chega com um aparato político, econômico, jurídico e com os jagunços, os posseiros são completamente desprovidos de qualquer estrutura para possíveis enfrentamentos. O crime organizado atua impunemente na região. “Pouco mais de oitenta milhões de hectares de terras na Amazônia legal foram ‘griladas’ nesta década [70], mas é provável que muito mais do que isso esteja sendo apossado ilegalmente por particulares” (PINTO, 1980: 17). Os empresários têm ao seu dispor advogados, recursos financeiros, jurídicos e transporte rápido, como aviões, e compram áreas de terras com auxílio de mapas. É possível consultar no Diário Oficial de um dos Estados da região amazônica de 5 Na luta pela posse da terra, e para dar continuidade às funções dos pais e avós no extrativismo, muitos seringueiros morrem lutando. É o que aconteceu em Xapuri, no Acre, com o sindicalista Chico Mendes, líder seringueiro morto por jagunços, a mando dos empresários da terra. Foi morto no dia 23 de dezembro de 1988, aos 44 anos, com um tiro de espingarda calibre 12, na porta de sua casa. Mendes era conhecido internacionalmente por ter sido premiado pela luta ecológica. Recebeu o prêmio Global 500 da ONU e o prêmio da Sociedade para um Mundo Melhor, na Inglaterra (MELLO, 1991: 63-64). 6 “Os homens fazem a sua história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas sim nas condições diretamente determinadas ou herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa inexoravelmente no cérebro dos vivos.” (MARX, 1980: 17). 30 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI interesse, e verificar as publicações sobre terras disponíveis para efetuar a compra. Por outro lado, o aparato dos recursos ilegais vai desde a simples alteração de números nos títulos ou sua completa falsificação, até complicadas manobras articuladas por advogados inescrupulosos (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 18; e SODRÉ, 1980: 17). Segundo o relatório sobre a grilagem de terras no Brasil, produzido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, “na Região Norte, os números são preocupantes: da área total do Estado do Amazonas, de 157 milhões de hectares, suspeita-se que nada menos que 55 milhões tenham sido grilados” (JUNGMANN, 2001: 2). RETRATO DA GRILAGEM DE TERRAS NO BRASIL. QUANTIDADE DE ÁREAS QUE ESTÃO COM SEUS CADASTROS CANCELADOS PELO INCRA, MAS CONTINUAM SOB INVESTIGAÇÃO DAS IRREGULARIDADES U nidade de Federação N úm ero de Im óveis M ato G rosso 960 Pará 422 Am azonas 186 O utros Estados 1.497 Totalno Brasil 3.065 Área em hectares 22.779.586 20.817.483 13.905.002 36.118.516 93.620.587 Fonte: Elaboração própria com base no Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário (2001: 6). Este é o retrato da virada do milênio, pois estas práticas são o resultado de um Estado que trata de maneira diferente os posseiros e os grupos econômicos. Não se trata de um Estado omisso, mas conivente e, historicamente, colocado a serviço dos grupos econômicos, que fazem o papel de reprodução da classe burguesa por meio das representações políticas na última fronteira de colonização. Os posseiros, dentro desta luta desigual, enfrentam a falta de recursos financeiros e do conhecimento jurídico. A assistência jurídica encontra-se distante, e para chegarem às instâncias de decisões, os caminhos são longos e complicados, pois geralmente quando chegam aos sindicatos ou órgãos para assisti-los, o prazo de representação na justiça já venceu. É bom lembrar que no período da ditadura, o Estado reprimia toda e qualquer iniciativa dos movimentos sociais, principalmente as representações sindicais. 31 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI A partir da intensificação do processo de ocupação, as áreas de maior tensão passam a ser ao longo das rodovias, em áreas férteis, vales úmidos, florestas ricas em madeiras e regiões com descobertas de minerais. A luta pela posse da terra através dos movimentos sociais da classe desprotegida é desprezada e sufocada pelos capitalistas. SHIVA (2001: 25) diz que: o capital é, dessa forma, definido como uma fonte de liberdade que, ao mesmo tempo, nega a liberdade à terra, às florestas, aos rios e à biodiversidade, que o capital reivindica como seus, e a outros seres humanos cujos direitos se baseiam no seu trabalho. A devolução da propriedade privada ao povo é vista como expropriação da liberdade dos detentores do capital. Assim, camponeses e povos tribais que exigem de volta os seus direitos e acesso a recursos são considerados ladrões. Neste sentido, a luta do MST7 – Movimento “Sem-Terra”, reflete a situação que vive a maioria da população brasileira. Dados deste movimento indicam que “1% da população é dona de 46% das terras brasileiras e apenas 60 milhões de hectares se destinam à lavoura, dos 360 milhões aptos para a agricultura no país” (GOHN, 2000: 116). Nesta perspectiva, “menos de 20% da terra cultivável é plantada, deixando 80% para funções não produtivas” (PETRAS e VELTMEYER, 2001). Por outro lado, os que não têm acesso à terra formam um grande contingente de desprovidos, fruto das desigualdades do processo social, como desempregados, posseiros expropriados, moradores de rua, agricultores, entre outros. Os despossuídos do Brasil estão “formando um coletivo dos excluídos do mundo do trabalho e do mundo da vida” (GOHN, 2000: 132). Assim, GOHN (2000: 114), citando OLIVEIRA, (1997) e GARRETÓN (1998), enfatiza: 7 “MST é um movimento social que atua sobre um problema milenar na sociedade brasileira, advindo de necessidades e direitos sociais básicos elementares, que são o direito à comida, ao abrigo e ao trabalho. Ele atua enquanto um ator político e sua demanda básica é a terra –, além de incidir diretamente sobre aqueles direitos básicos, também com respeito a um dos pilares da sociedade capitalista, que é a questão da propriedade. O MST questiona a apropriação e distribuição desta propriedade ao propor novas formas de acesso à terra. Propõe um ‘igual’ numa sociedade marcada pela clivagem da desigualdade sócio-econômica e político-cultural.” (GOHN, 2000:153-54). 32 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI O MST é um ator político porque atribui qualidade aos atores sociais que compõem suas bases ao inseri-los num plano que vai além da luta pelo acesso à terra, que é a luta pela democracia, pela igualdade, contra a exclusão. Ele se formou ao redor de uma identidade – semterra e luta para alterar a qualidade desta identidade passando a ser um com-terra um “igual”, sem passar pelo funil divisório que é a compra. Quer o acesso à terra pela posse com direitos iguais que detêm a sua propriedade e com isto ele perturba a lógica e a ordem das relações demarcadas na sociedade. Por isto, ele tem uma face inovadora e perturbadora à ordem dominante. O MST é fruto dos movimentos sociais dos trabalhadores sem-terra e dos sem-posse, e tornou-se a organização mais representativa da última década na busca da reforma agrária no Brasil. Através de lutas desiguais com os latifundiários e a presença de jagunços fortemente armados, acompanhados de leis que os beneficiam, favorecimentos políticos e, em muitos casos, proteção pública e corrupção da justiça e dos órgãos do Estado, o capital se estabeleceu na região Amazônica de forma triunfante, sem, no entanto, atender às reivindicações do movimento “sem-terra” do País. Por outro lado, o grileiro tem grande capacidade para a conquista da terra, pois possui tratores, caminhões, aviões e dezenas de jagunços acostumados a “legalizar” glebas noutros lugares (REIS, 1992: 8). Dentro desta perspectiva, “a grilagem de terras é um dos aspectos dessa luta cada vez mais intensa e generalizada, por meio da qual os grileiros e empresários, latifundiários e fazendeiros buscam expulsar índios e posseiros das terras nas quais vivem há 5, 10, 15, 20, 40 ou mais anos” (IANNI, 1986: 165-66). O posseiro, pessoa simples e com costumes nativos, não está preparado para enfrentar mudanças tão radicais dentro de seus conceitos e valores, e ter que lutar para poder permanecer na terra é algo estranho para ele. IANNI (1986: 166) esclarece que: nesse contexto, os posseiros antigos e recentes, e os índios são pressionados ou expulsos das suas terras. Daí as freqüentes fraudes, pendências e lutas que se generalizam em diversas partes da Amazônia. Assim, ao mesmo tempo que a burguesia pressiona, submete ou expulsa posseiros e índios, também se estabelece e aguça a controvérsia entre diferentes grupos da própria burguesia em luta pela apropriação privada da terra. Tanto assim que com 33 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI freqüência o poder público tem sido levado a anular títulos de terras falsificados, ou sem requisitos legais completos. Em 1971, através da indústria da falsificação de documentos de terras no “Estado do Pará restavam como terras devolutas menos de 10% de todo o território, que tem 1,24 milhões de quilômetros quadrados” (PINTO, 1980: 130). Por outro lado, o Estado matogrossense não possuía mais terras devolutas. Ocorre na região amazônica a “reprodução de uma estrutura fundiária cada vez mais concentrada” (OLIVEIRA, 1997: 126). Segundo levantamentos feitos, “técnicos [do governo] acreditam que existam pelo menos dez mil documentos de terras falsos no Pará, mas que em geral conseguem boa comercialização. A indústria dos títulos falsos prosperou bastante entre 1963 e 1967” (PINTO, 1980: 160), no início do governo militar. Segundo OLIVEIRA (1997: 126), “18 proprietários apenas concentram na Amazônia um total de mais de 19 milhões de hectares”. Os grupos econômicos foram estimulados a “procurar grupos de falsificadores que oferecem títulos feitos em quarenta e oito horas” (PINTO, 1980: 160) A astúcia é tão bem montada que “nem sempre é possível distinguir o que é irregular do que é ilícito” (PINTO, 1980:161). Por outro lado, os funcionários dos órgãos competentes, em alguns casos coniventes, contribuíam para efetivar as fraudes. Desta forma, “qual o documento falso que se preza que vai abrir mão de carimbos oficiais?” (MARTINS, 1981: 104). É nesta perspectiva que surgiram grandes nomes da fraude na região. Podemos usar como exemplo “o mais famoso ‘grileiro’ da Amazônia, era um ex-tabelião de um cartório de 1º oficio, João Inácio, chefe de uma quadrilha que atuou em Goiás ‘grilando’ quase todo o município de Ponte Alta do Norte e áreas de mais duas, num total de doze fazendas” (PINTO, 1980: 33). O escândalo e a corrupção são tão grandes na região que frases comuns são ditas por quadrilhas: “se o governo não dá a terra, nós damos” (PINTO, 1980: 42). Porém, o fato mais curioso foi o ocorrido no Estado do Pará. O Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário (JUNGMANN, 2001: 14) denuncia que: ao longo de mais de duas décadas, a partir de 1975, dois portugueses, Manoel Joaquim Pereira e Manoel Fernandes de Souza, hoje falecidos, tiveram centenas de imóveis – em 83 municípios do 34 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Estado, totalizando aproximadamente nove milhões de hectares – inventariados em nome de Carlos Medeiros, a quem teriam sido transmitidos em “cessão onerosa de direitos hereditários”. Estas terras foram em seguida vendidas por Carlos Medeiros a dezenas de terceiros, pessoas físicas e jurídicas. Todas as terras do espólio dos portugueses eram públicas, pertenciam à União ou ao Estado do Pará. Carlos Medeiros jamais foi localizado, nem mesmo pela polícia ou por seus próprios advogados, tendo ficado evidente tratarse de pessoa fictícia. Na Amazônia, a grilagem de grandes áreas não ficou só nas terras da União, quando investiu contra a pequena propriedade proporcionou uma luta desigual, pois “o Estado, através de seus mandatários e instâncias diretas (tribunais, quartéis e polícia) ou através das instâncias indiretas, como os cartórios, não raro se posiciona contra o lavrador e sua causa” (FERREIRA, 1986: 195). O Estado, além de comprometido com as classes mais favorecidas, é conivente ou omisso para proteger os grupos econômicos, pois somente no ano de 1975 “em todo o Estado do Pará há apenas um juiz e seu substituto, para questões agrárias. Só na justiça federal há pelo menos 5 mil processos tramitando nesse momento” (MARTINS, 1981: 104). O Estado poderia designar mais juízes, o problema é que estes precisam apresentar trabalho, o que complicaria os interesses dos grupos constituídos na aplicação de leis fazendo justiça. São grandes as dificuldades para os posseiros e os colonos legalizarem suas terras no território amazônico, pois sofrem pela morosidade do Estado. Enquanto a burguesia da terra recebe seus benefícios rapidamente devido às diferentes condições, sejam elas econômicas, políticas, legais e também ilegais, muitos dos posseiros ficam impossibilitados de reivindicar seus direitos por não saberem ler e escrever e por não possuirem documentos como: carteira de identidade, título de eleitor, Cadastro de Pessoa Física – CPF e certificado de reservista para os homens. Muitos destes não possuem nem sequer registro de nascimento. Neste sentido, “no interior não há justiça gratuita, e esse homem do mato não sabe ir buscar em juízo os seus direitos” (MARTINS, 1981: 113). Neste processo, lhes resta a alternativa de transformaremse em comunidades flutuantes, pois são forçados a abandonar o direito de posse, através de sucessivas mudanças em busca de 35 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI novas terras ou compor o exército industrial de reserva das cidades fabricadas. Assim, os grupos organizados determinam os destinos dos menos favorecidos da floresta e fazem a lei no sertão. As milícias do exército civil, que é formado por jagunços e pistoleiros, praticam atrocidades brutais em nome do capital. As “empresas empurram os pequenos produtores para terras menos férteis ou menos acessíveis através de violento processo de expulsão e expropriação de suas terras. Não só por queima de suas casas ou assassinato pelos jagunços” (B ECKER , 1996; 30), mas por mecanismos impulsionados pela política governamental, que se encarrega da expropriação. Segundo BECKER (1996: 31), “a ocupação do norte matogrossense, por exemplo, teve sua base na grilagem de terras”. Esta região “tem se constituído em um paraíso para o capital, para os especuladores e para os grileiros que têm atuado livremente com o ‘apoio’ do próprio governo” (O LIVEIRA , 2001: 156). Para se apropriarem das terras onde estão os posseiros instalados com sua agricultura e pecuária bastante rudimentares, os latifundiários colocam no cenário verdadeiros quartéis de homens, sempre municiados de estrutura armada, com alto poder de pressão por parte dos que possuem a titulação das áreas, na grande maioria das vezes irregulares, conforme foi apontado. Por outro lado, “se até 1970 a expectativa dos camponeses nas frentes pioneiras era de permanecer por dez a vinte anos na terra antes de o proprietário aparecer e migrar uma ou duas vezes na vida, depois, com a aceleração do ritmo de ocupação, essa expectativa se alterou para dois anos apenas de permanência no lote e quatro a cinco migrações por expulsão” (BECKER, 1996: 39). Atualmente, a grande maioria dos posseiros estão engrossando os cinturões de pobreza nas “cidades fabricadas” pelo capital, e servem de exército industrial de reserva aos grandes projetos de expansão, por ser esta a única alternativa que lhes restou do processo violento praticado contra os posseiros na região. Nos últimos anos tornou-se quase impossível ser posseiro na Amazônia brasileira, dada a brutalidade imposta contra eles por grupos armados. Assim, o “mel” tão esperado, mais uma vez é negado a estas pessoas simples. Não lhes é dado o direito de subsistir em harmonia com a natureza, pois a sanha do capital lhes rouba o direito de sonhar e lhes são sufocadas as perspectivas de vida. Em muitos casos estes heróis da floresta são assassinados 36 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI antes de colocar a mão calejada no pote sagrado que a natureza lhes deixou gratuitamente. Neste vasto espaço da natureza é roubado o sonho dos homens, das mulheres, dos jovens e das crianças de viverem em paz e harmonia com os ecossistemas. Através de práticas violentas, a expropriação dos posseiros é realizada por jagunços e pistoleiros em nome do capital organizado. Assim, através de profissionais fortemente armados que “fazem parte dos quadros de empregados de muitos latifúndios” (MARTINS, 1991:98), faz-se a lei na floresta, mas a lei de interesse da elite da terra. Estes profissionais exercem a função de coronéis do sertão com a finalidade de guardar as propriedades já adquiridas e, quando necessário, são usados para conquistar mais terras. Para atingir os objetivos dos grupos organizados, realizam a expulsão dos posseiros e dos povos originários com métodos não convencionais, fazem ameaças, queimam suas roças e casas, violentam esposas e filhas e praticam os assassinatos. O jagunço faz parte do quadro de marginalizados e despossuídos no processo de acumulação do capital, mas serve de força de trabalho ao poder acumulador. Eles trabalham contra as pessoas de sua própria classe e praticam a violência contra seu próprio grupo em nome do capital. São, na maioria, marginais altamente perigosos, fruto da exclusão social, e a eles tanto faz matar como morrer. Através das armas demarcam limites, asseguram a propriedade privada e fazem a lei na selva, tudo em nome do capital e da expansão dos grandes projetos econômicos ali instalados, principalmente nas últimas décadas. Os conflitos com os posseiros e os povos originários, através da investida capitalista na região, têm como resultado a expropriação de forma violenta, em muitos casos seguida de morte – basta o posseiro não se submeter às regras impostas pelos capitalistas. Nestes episódios “os conflitos envolvem centenas de milhares de camponeses atingidos com extrema violência através de seqüestros, assassinatos, espancamentos, prisões arbitrárias, queimas de roças, de casas e benfeitorias várias, que colocam sob extrema tensão milhares de famílias” (KOWARICK, 1995: 175). Os mecanismos repressivos da ditadura vinham sempre acompanhados de formas estratégicas para camuflar os conflitos sociais do País, bem como dar aparência à população de transparência no processo de ocupação da Amazônia. Para OLIVEIRA 37 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI (2001: 7), “no Brasil das últimas décadas, um grande número de conflitos, em geral sangrentos, têm acontecido no campo”. Neste sentido, “entre 1964 e 1985, quase seiscentos camponeses foram assassinados em conflitos na região amazônica, por ordem de proprietários que disputam com eles o direito à terra” (MARTINS, 1997: 150). Nestes episódios o poder das armas demarca os níveis da violência, e o domínio econômico e político assegura a imunidade. Para FALEIRO (2001: 320), “dos 705 casos de trabalhadores rurais assassinados no estado do Pará de 1964 a 1998, só 113 deram origem a processo, que tramitaram ou estão tramitando na justiça”. Conforme PETRAS e VELTMEYER (2001, 150), “entre 1985 e 1999, dos 1.158 ativistas rurais assassinados, apenas 56 pistoleiros foram julgados e só 10 foram condenados”. Entretanto, “lideranças sindicais de trabalhadores, religiosos, advogados entre outros, têm sido cruelmente assassinados ao arrepio da lei. A justiça continua sendo a única ausente do campo nos dias de hoje” (OLIVEIRA, 2001: 7). Exemplo da violência de nossos dias é o “massacre dos trabalhadores rurais sem terra no sul do Pará, pela Polícia Militar” (MARTINS, 1997: 55). Assim, “no país, a questão agrária tem duas faces combinadas: a expropriação e a exploração” (OLIVEIRA, 2001: 100). Considerando apenas os dados de 1988, após o regime militar, “ocorreram na Amazônia Legal 247 conflitos agrários, envolvendo 18,3 milhões de hectares e 128.503 pessoas, resultando em 63 mortes, centenas de ameaçados de morte, prisões ilegais, torturas agressões etc.” (KOWARICK, 1995: 175). Neste ano também morreram entre as tantas pessoas, o deputado João Carlos Batista, do Pará, e o sindicalista rural de Xapuri, no Acre, Chico Mendes, vítimas dos conflitos de terra. As vítimas dos abusos por parte de empresas com grandes projetos são os índios, os posseiros e os garimpeiros, através de disputas de terras na região. A violência está presente em todas as partes, ela aconteceu principalmente, no regime ditatorial, mas também acontece sem ele. As vítimas são fruto da expansão e da sanha do capital em concentrar riqueza na região e, com o final da ditadura não significou o final da expansão na região, pois o grande projeto de acumulação permanece ali. Os assassinatos dos posseiros, dos indígenas e dos garimpeiros raramente são divulgados na grande imprensa. Acredita-se que milhares de vidas foram ceifadas, fruto da cobiça 38 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI da posse da terra na região. Os dados oficiais revelam apenas uma quantidade insignificante do que ocorreu nas fazendas da Amazônia brasileira, pois as mortes ficaram no anonimato, devido à conivência do Estado com os agressores e do aparato para acobertar os crimes. Aos sobreviventes expulsos da terra restamlhes formar os cinturões aglomerados de pobreza ou somaram-se ao exército industrial de reserva para servir ao capital como proletários. É comum ouvir histórias narradas por empresários de sucesso, considerados como “pessoas de bem” na sociedade em que vivem, que mostram a forma violenta como expulsaram famílias de suas terras e ficaram impunes. Para exemplificar, reproduzimos a história contada por uma pessoa e, mesmo tendo autorizado a citação, preferimos mantê-la no anonimato por uma questão de segurança. A entrevista ao autor foi realizada em 20/7/2000, apresentando a seguinte situação: A história contada é de um rapaz relativamente jovem. Há mais de dez anos ele e sua família vieram conhecer o Norte do Estado de Mato Grosso. Aqui se encantou pela terra, suas riquezas naturais e, sobretudo, por vislumbrar a possibilidade de ser “dono da terra”, de virar fazendeiro, agropecuarista. Adquiriu, juntamente com alguns dos seus irmãos e o pai, imensas áreas. Mas logo percebeu que já havia gente no local. Não desanimou, afinal estava na selva, na terra onde, na época, não havia lei ou não se aplicava a lei. Foi em frente e, armado, determinou a retirada dos posseiros. Ele também era posseiro. Mas um posseiro “diferente”, afinal tinha dinheiro e era de uma família com um certo poder aquisitivo. Os posseiros resistiram. A resistência, no entanto, foi por pouco tempo. À noite, o rapaz voltou à área já ocupada e, juntamente com alguns dos seus irmãos e outros capangas contratados para realizar a expulsão, executou vários homens. No meio da mata, eles enterraram os corpos. O mais impressionante é a forma fria como este empresário, que hoje é madeireiro e agropecuarista, conta a história. Em sua narrativa, o ex-grileiro/empresário, que condena a ação do Movimento dos SemTerra, disse que, para não ter muito trabalho, cortou os corpos em vários pedaços e enterrou todos em uma só cova. Até hoje não foi punido pelo crime. A polícia nem ficou sabendo e, se ficou, ignorou, já que havia uma grande conivência entre eles. Fatos desta natureza ficam fora das estatísticas oficiais, pois 39 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI o processo de colonização da Amazônia mostra um quadro sangrento e dramático. Por este motivo, o modo de acesso à terra “sempre esteve atravessado por grilagens, emissão de títulos duvidosos, falsos, como se fosse uma história de faz-de-conta” (OLIVEIRA, 1997: 67). As estatísticas, como vimos, não demonstram a realidade, tendo em vista que, no período da ditadura, os dados reais da violência ficavam às escondidas, esta era a estratégia adotada pelo Estado para favorecer o capital. Para o capitalista “o posseiro operou como desbravador do território, como amansador da terra” (MARTINS, 1991: 67). Num segundo estágio, basta entrar na área, pois o posseiro e o índio já iniciaram a abertura da floresta para transformá-la em um grande latifúndio capitalista. Para ilustrar os fatos, faz-se necessário conhecer o caso de Santa Terezinha, no Estado de Mato Grosso, entre os vários acontecimentos contra posseiros. Conforme OLIVEIRA (1997: 74-75), no ano de 1966 a indústria da grilagem conseguiu transmitir à Codeara, empresa agropecuária, 200.000 ha de terras, incluindo nesta transação o povoado de Santa Terezinha, fundado em 1922. Neste local, desde 1931, já existiam a igreja e a escola para servir à comunidade. Em 1965, os posseiros também fundaram uma cooperativa. Após comprar esta área, a empresa, aproveitando-se da ditadura, fez pressão sobre os posseiros, exigindo a sua transferência para outras áreas. A área ocupada pelos posseiros era de 10.000 ha, apenas 5% do total. O grupo econômico colocou tratores de esteira para demolir as construções dos posseiros, sempre acompanhados pelo destacamento militar, inclusive prendendo posseiros. No decorrer houve tiroteios, pois os funcionários da empresa estavam armados e os posseiros reagiram ao ataque. Este episódio não foi divulgado na época, pois estávamos em pleno regime militar, momento em que o controle sobre os meios de comunicação era pleno, e só veiculavam as notícias de interesse do capital e do Estado. Neste mesmo sentido, OLIVEIRA (1997: 76-77) afirma que o comando militar foi designado para averigüar o local com um batalhão de 80 homens, e prenderam seis posseiros, dos 40 denunciados. Os seis posseiros presos foram levados para Cuiabá, os demais tiveram que abandonar suas casas fugindo para a mata, vivendo durante 105 dias na clandestinidade, alimentando-se de carne de macacos e frutas silvestres. Depois de muitos anos de conflitos, os posseiros sempre receberam apoio da igreja católica, 40 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI principalmente através do padre Francisco Jentel, este também preso e condenado a dez anos de prisão. Porém, através de recurso no Superior Tribunal Militar em Brasília, desqualificou-se o processo e Francisco Jentel foi preso em 1975, em Fortaleza e expulso do País, por decreto assinado pelo Ministro da Justiça, Armando Falcão. Como acerto com os posseiros, em 1972 foram destinados 2.446 ha para área urbana do distrito. Também 120 posseiros foram titulados com uma área de terras de 100 ha cada um. No final dos anos 70, o distrito foi elevado à categoria de município8 . Hoje é um pequeno município; conforme dados do censo do IBGE (2001), vivem 6.222 habitantes neste local. Apresentamos este episódio pela ousadia dos grupos econômicos, pois neste local, hoje, alguns dos posseiros que ali nasceram estão com mais de 80 anos de idade. Nos acontecimentos que envolvem colonos, posseiros e os povos originários, a igreja católica tem um papel muito importante, pois “os bispos de Marabá, D. Alano Pena, de Conceição do Araguaia, D. Pedro Casaldáliga, são apontados como ‘os prelados vermelhos do vale do Araguaia” (MARTINS, 1981: 106). A igreja católica foi a única instituição com capacidade de enfrentar os militares no período 1964-85. Ela contribuiu para a redução da violência contra os povos oprimidos na implantação dos projetos econômicos, bem como no que tange a assistir posseiros e indígenas. Entretanto, ao invés da ocupação dos chamados “espaços vazios”, aconteceu o esvaziamento da região, através do preenchimento de imensas áreas por poucos beneficiados, proporcionando a concentração da terra. Isto é fruto da estrutura fundiária vigente no País, pois beneficia o grande capital em 8 Assim narramos o desfecho de um caso que teve alguns ganhos por parte dos posseiros, mas o normal é a expropriação e a violência praticadas pelos grupos organizados. Também no decorrer da ocupação da Amazônia a igreja se apresenta na região como protetora dos povos oprimidos pelo capital nacional e internacional, principalmente os posseiros e os povos originários. “A igreja católica tem um papel fundamental na organização dos posseiros. Face à omissão do governo central quanto à violência, por ele aceita como preço necessário a ser pago pelo desenvolvimento, a igreja torna-se talvez a única organização no país com poder e autoridade para enfrentar o poder governamental, particularmente as forças repressivas de segurança.” (BECKER, 1996: 39). 41 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI detrimento aos interesses das massas que buscam a terra. MARTINS (1991: 76) enfatiza: A Amazônia é hoje uma das regiões mais tensas do país, exatamente porque nela estão se acumulando tensões geradas em outras áreas, ao mesmo tempo que a reprodução deliberada e exacerbada da estrutura fundiária concentracionista, que expulsa lavradores e trabalhadores rurais, faz dela uma região de desespero. As formas de violência na região não ficam somente nos assassinatos. Elas ocorrem também pela submissão, pela imposição, pela dominação, pelo controle e todas as formas que tiram a liberdade e as perspectivas das pessoas. Neste sentido, OLIVEIRA (1997: 89) relata: o grande capital do Centro-Sul, nacional e multinacional está abrindo a Amazônia, para a sua reprodução. Não há lugar onde a violência não se faça presente. E os governos, militares ou não, têm ficado ao lado dos grupos capitalistas, na sua defesa intransigente que, gradativamente, faz da Amazônia um território para o capital internacional no Brasil. O relatório da C OMISSÃO P ARLAMENTAR DE I NQUÉRITO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA mato-grossense (1995: 4) detectou que, entre os principais problemas fundiários do Estado, podemos citar os seguintes: “superposição de títulos; títulos sem amarração; títulos expedidos fora da fronteira do Estado; títulos em áreas de reserva legal; fraude no registro de títulos; influência política/econômica na titulação; irregularidades em colonizadoras; permutas de áreas sem critério técnico; invasão de áreas etc.”. Como realmente acontece a apropriação e a legalização das terras na Amazônia no período da ditadura, é mostrado de forma mais clara por OLIVEIRA (1997: 83-84), afirma: naquele período, as empresas, para aplicar os incentivos fiscais, passaram a adquirir títulos de propriedade de terras, que obedeciam a lógica da “grilagem legalizada”. Ou seja, um “procurador” obtinhaos através de procurações passadas por pessoas que, às vezes, nem sabiam o que estavam assinando ou, então, até recebiam uma certa quantia em dinheiro para assinarem; e, mesmo em época de eleição, aproveitava para oferecer títulos de terras para quem votasse 42 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI nos “candidatos do governo”. De posse desta procuração, o “procurador” dava entrada no órgão governamental competente e obtinha em nome de terceiros os títulos de propriedade de terras devolutas. Como se sabe, anexava ao processo duas declarações sabidamente falsas, uma de que nas terras solicitadas não havia índios, e outra de que não havia posseiros. Com os títulos em mãos, diga-se de passagem, com todo o “falso levantamento de divisas” feito por profissionais habilitados (engenheiros civis, arquitetos, agrônomos etc.) passava a oferecê-los aos grupos econômicos do Centro-Sul do país, isto quando não foram estes mesmos grupos que executaram o processo de grilagem sobre essas terras e obtiveram os títulos por esse caminho. Não podemos generalizar a questão das irregularidades da terra na Amazônia. A maioria dos grupos da agropecuária e do extrativismo se reproduzem em terras hoje regularizadas. Todo este processo de fraudes, bem como o aparato de benefícios e leis, foi criado para proteger o grande capital e, assim, a legalização das terras na Amazônia é semelhante a passagem bíblica da multiplicação dos pães. Para SHOUMATOFF (1990: 58), “se você compra 50 hectares, vai ao cartório e registra 500. Mais tarde, mudase o número por 5 mil. Eles continuam adicionando zeros, enquanto 80 por cento dos camponeses não têm nada”. Observa-se que, com o fim do regime da ditadura militar em 1985, o cenário pouco mudou quanto ao desrespeito aos posseiros e aos povos originários na região. O governo continua fortemente comprometido com o capital, seja ele nacional, seja internacional, pois a manutenção política e o poder continuam sendo fruto das forças econômicas. Todavia, não percebemos melhoras significativas que venham minimizar os problemas sociais criados na região, principalmente no que diz respeito a dar oportunidades aos menos favorecidos. Em regime ditatorial ou não, a investida capitalista na região em nada mudou. A Amazônia está sendo totalmente devastada por grupos econômicos que estão usufruindo dos recursos florestais, minerais e hídricos, conseqüentemente poluindo os ecossistemas e destruindo a fauna e a flora. Os lucros produzidos por estas empresas, em sua maioria, são investidos fora da Amazônia, inclusive fora do País. São socializados aos povos amazônicos, por estas empresas, a poluição atmosférica proveniente das queimada, a 43 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI poluição dos rios através do uso indiscriminado de mercúrio por mineradora e o uso de desfolhantes para abertura da mata. Contudo, culpam os brasileiros de serem os destruidores dos recursos naturais e, conseqüentemente, poluírem a região. Assim, o posseiro não encontra o “mel”, mas, segundo a crença, o “mel” prometido pode estar em outro lugar da Amazônia, basta ter paciência e procurá-lo. Talvez ele possa ser visto nas frentes de trabalho, através da abertura da mata. A dificuldade de encontrá-lo pode ser explicada: a Amazônia é imensa e talvez ele esteja mata adentro. Então é bom não desistir de procurá-lo. Nesta lógica, a vida continua... Muitas das áreas regulares de hoje, no passado tiveram a interferência da indústria do crime organizado para legalizá-las e, os atuais proprietários muitas vezes, não têm o conhecimento das manipulações ocorridas. ***** 44 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI As formas de exploração da força de trabalho Nesta parte trataremos da exploração da força de trabalho da Amazônia brasileira de modo geral, com ênfase ao período pósditadura de 1964. A propósito, desenvolveremos o entendimento do processo de exploração do trabalho na região, de forma macro, num processo de superexploração9 da mão-de-obra. Nesta dialética se faz necessária uma análise macro das condições de trabalho, para que possamos tecer o entendimento das partes e fortalecer a compreensão sobre a força de trabalho nos vários segmentos na proletarização do homem. Nesta lógica os vários segmentos da produção regional exercem a função reprodutora de capitais, e assim estão atrelados aos movimentos e às necessidades das mercadorias para servir ao mercado mundial. Na seqüência, enfatizaremos que o modelo de reprodução capitalista só se justifica quando produz mais-valia da força de trabalho para efetivar, na prática, a acumulação de capitais. Assim, os capitalistas dependem da força de trabalho para reproduzir e acumular riqueza, enquanto os trabalhadores dependem da classe burguesa para subsistir e se reproduzir. Este é o elo de dependência de ambos, mas é através do trabalho humano que acontece a acumulação capitalista. Nesta lógica, a lei da acumulação é a relação entre trabalho pago e trabalho não pago, fruto do prolongamento e da intensificação das jornadas de trabalho, bem como da redução dos salários. No entanto, no processo reprodutivo, o capitalista necessita submeter os trabalhadores ao decréscimo salarial, assim como os submete a mais trabalho. Em estágio avançado, a organização da força de trabalho ocorre espontaneamente e através da pressão exercida entre a própria classe pela formação do exército industrial de reserva. A política salarial da ditadura nasceu através desta dialética. O Estado organizava suas ações voltadas ao papel de capitalista coletivo na produção da mais-valia, sempre atrelado ao movimento 9 O conceito de superexploração é amplamente tratado por Ruy Mauro Marini no livro Dialética da dependência. Também por Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Müller, no livro Amazônia: expansão do capitalismo. 45 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI mundial da mais-valia universal. Se, de um lado, incentivava o desenvolvimento econômico para as empresas através da superproteção, dando-lhes toda a estrutura necessária e créditos facilitados, isenções, facilidades fiscais e tarifárias, por outro lado, “a força de trabalho da classe operária é apenas uma mercadoria entre outras” (IANNI, 1981: 62). Uma mercadoria que oxigena os empreendimentos ali instalados, submetendo-se às estratégias do mundo do capital atrelado ao Estado da ditadura. Nesta perspectiva, a “história da ocupação da Amazônia tem sido também a história da escravização do homem que a desbrava” (PINTO, 1980: 99). A ditadura adotou uma política repressiva contra as massas e ofereceu os favores e as oportunidades aos grupos organizados. No período compreendido entre 1964-85, as ações repressivas do Estado passaram a ser a tática na Amazônia, pois principalmente neste período prenderam membros sindicais, trabalhadores foram torturados e ocorreram inúmeras mortes. Ao mesmo tempo em que torturava trabalhadores, adotava estreitas relações com a burguesia, como forma de retribuir ajuda a estes na tomada do poder no golpe de Estado, ocorrido em 1964. Através dos esforços conjuntos entre Estado e burguesia, “na prática, crescia a produção de mais-valia, absoluta e relativa, pela realização da mais-valia ‘potencial’, ou ‘extraordinária’, que a violência ditatorial propiciava” (IANNI, 1991: 64). Neste sentido, “na Amazônia – talvez mais do que em qualquer outra região do país – o conceito de superexploração de trabalho e a extração de maisvalia absoluta constituem parte integrante do grande capital” (CARDOSO e MÜLLER,1977: 8). Isto foi possível através da política de arrocho salarial, previdenciária, sindical e leis antigreve. Na verdade, fazia parte do desenvolvimento e da acumulação capitalista amazônica, a relação estreita do Estado com os capitalistas. Apesar de se burocratizar ao máximo a vida do trabalhador, aplicando sanções e cassando os direitos políticos, crescia a agitação entre os trabalhadores na perspectiva de restabelecer os caminhos democráticos e melhores condições trabalhistas. Os trabalhadores não aceitavam a superexploração de seu trabalho e o rápido ciclo reprodutivo do capital. IANNI (1981: 78) diz: ao longo desses anos, desde 64, cresceu muito a distância entre o Estado e a classe operária. A forma pela qual o poder estatal foi 46 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI posto a serviço do capital monopolista fez com que o operário se sentisse dominado por um Estado que se lhe parecia como totalmente estranho, estranhado, oposto, imposto, dominante, repressivo, opressivo. Um processo que é inerente à sociedade burguesa, no qual o Estado é bastante, ou muito, controlado pelos interesses da burguesia dominante, sob a ditadura adquire um caráter ainda mais acentuado, sem mediações. Através das condições jurídicas e políticas, a burguesia aumentou as taxas de mais-valia. Assim, “criou as condições sob as quais a mais-valia potencial, que o subsistema econômico brasileiro poderia produzir, se realizasse na mais-valia extraordinária, que a burguesia passou a acumular” (IANNI, 1981: 79). À medida que a ditadura reprimia econômica e politicamente a classe operária, também possibilitava o crescimento do País, consolidando a euforia do “milagre econômico” brasileiro dos anos 70. Enquanto a burguesia concentrava altas taxas de mais-valia absoluta e relativa, “também provocava a pauperização absoluta da classe operária, ou de setores dessa classe” (IANNI, 1981: 81). Fica expressa esta desigualdade “na forma como o Estado assume: autoritarismo para as massas, protecionismo para as empresas” (CARDOSO e MÜLLER, 1977: 9). Assim, de um lado, o Estado favoreceu a burguesia, por outro, conseguiu acorrentar os trabalhadores. IANNI (1981: 83) enfatiza e retrata as reais condições entre o Estado, a burguesia e a força de trabalho: para a burguesia, a contrapartida da superexploração da força do trabalho operária foi o “aumento da produtividade”, a transformação da mais-valia potencial em mais-valia extraordinária. Para a classe operária, a contrapartida da superexploração da sua força de trabalho foi a redução do salário real, a militarização da fábrica, a intervenção governamental nos sindicatos, a censura, a pressão policial generalizada. Tudo isso configura o caráter fascista da ditadura burguesa subjacente à ditadura militar. Nessas condições, a classe operária foi forçada a aumentar a produção de mais-valia absoluta e relativa, ou transformar em mais-valia extraordinária as potencialidades. A crescente dinamização, “modernização” ou “racionalização” das relações de produção, sob ampla proteção do poder estatal, favoreceu largamente a acumulação monopolista. Através do planejamento e da violência do Estado, criaram47 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI se as condições ideais para que a burguesia concretizasse seu projeto maior: a concentração e a acumulação capitalistas, através das empresas nacionais e internacionais que optaram por expandir o modo de produção na Amazônia brasileira. A força de trabalho que se deslocou para esta região no projeto de colonização foi caracterizada apenas como componente do processo de acumulação dos grupos econômicos. Todavia, as questões salariais no período da ditadura, eram decididas pelos governantes através dos seus técnicos, vindo garantir os interesses da elite dominante do País. A política repressiva do Estado não ficou somente nas fábricas. Ela aconteceu também através da proletarização no campo. Muitos colonos arrendatários e parceiros transformaram-se em assalariados de forma exclusiva ou temporários, alguns residindo dentro das áreas onde se desenvolveram os projetos econômicos através da agricultura e da pecuária, outros sendo trabalhadores temporários em forma de exército industrial de reserva latente, trabalhando como peões, bóia-frias e trabalhadores flutuantes. No caso específico da Amazônia, com o desenvolvimento extensivo e cumulativo, os capitalistas usaram vastas áreas de terras, utilizando também a tática da expropriação dos posseiros e dos povos originários, como vimos anteriormente. Muitos destes expropriados formaram a força de trabalho nos projetos econômicos da região. Foi o que aconteceu com os seringueiros do Estado do Acre, pois houve uma grande quantidade de extrativistas expropriados das suas terras de posse e, como castigo, alguns dos trabalhadores se tornaram mão-de-obra dos próprios grileiros, para, com auxílio das motosserras, devastaram os seringais que sempre lhes deram o sustento e a vida em comunidade. Por outro lado historicamente, o Estado negou aos marginalizados o acesso aos meios de produção, mas facilitou aos capitalistas esse acesso com formas protecionistas. A ação do Estado ensejou os “favores fiscais e creditícios pelo poder público, no sentido de impulsionar a formação e a expansão de latifúndios e empresas agropecuárias, aí também desenvolveu a proletarização do trabalhador rural” (IANNI, 1981: 95). Nesta região a proletarização se desenvolveu de forma muito mais agressiva e brutal que em outras partes do Brasil. Entretanto, uma nova perspectiva de busca movimentou a classe trabalhadora marginalizada no País. Na Amazônia procuraram terra e trabalho, 48 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI aliados com à esperança de poder alcançar o “mel” prometido. CARDOSO e MÜLLER (1977: 69) indicam que: os movimentos migratórios aqui examinados, com ênfase na magnitude dos fluxos, expressam, no fundo, a redistribuição da massa de trabalho demandada segundo os interesses econômicos e políticos em jogo – governos federal e estaduais, empresas industriais e de serviços, empresas agropecuárias e mineradoras, autônomas urbanas e rurais, latifúndios extrativos e pecuários e sítios – na organização regional e nacional. A maioria desses trabalhadores, vindos do Nordeste ou de outras regiões do Brasil, acabam se tornando força de trabalho permanente ou temporária na Amazônia. Neste sentido, para a mãode-obra ali existente ou recém-chegada que busca oportunidades, o “mel” pode ser conseguido tornando-se proletário no desmatamento da floresta, na queima da mata, na formação de pastagem, no plantio de soja, na indústria madeireira, no garimpo e na abertura de estradas. Estes novos trabalhadores da abertura da nova fronteira são também os sulistas que se juntam aos nordestinos para drenar e oxigenar os grandes empreendimentos da região. A modalidade de contratação é realizada através do sistema “gato” que, “como é conhecido em amplas regiões, opera como um agenciador de trabalhadores” (MARTINS, 1991: 49). Assim, a maioria dos “peões10 são contratados, administrados, aviados e pagos por um empreiteiro de mão-de-obra que, por sua vez, já estabeleceu um contrato com os proprietários das terras” (IANNI, 1981: 96). Grande parte destes trabalhadores são de empregos sazonais ou eventuais11 . Assim, quanto maior for a mobilidade dos trabalhadores, mais se agravam a instabilidade e os métodos de mais exploração. Este trabalho itinerante e de empregos latentes também decorre da não-organização política e sindical da força de trabalho. 10 “Peões – Trabalhadores de projetos agropecuários. Eles realizam atividades como derrubar a mata, plantar capim etc. São contratados ou agenciados pelo ‘gato’ ou empreiteiro por baixos salários e sem registro em carteira de trabalho. Os peões dispõem de um único local para comprar suprimentos – as cantinas [geralmente dos próprios proprietários do empreendimento]. Lá, os alimentos e bebidas são vendidos a preços caríssimos e por isso os trabalhadores ficam permanentemente endividados.” (PORTELA e OLIVEIRA, 1991: 15). 49 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI A maioria dos postos de trabalho, ocupados na abertura da Amazônia por grupos econômicos, são preenchidos por “peões do trecho”, que geralmente vivem sem família e se aventuram em trabalhos distantes, em alguns casos até 300 km ou mais da cidade mais próxima. Este é um dos motivos que contribuem para agravar ainda mais “as condições de exploração do trabalho espoliativas em quase toda a parte” (C ARDOSO e M ÜLLER , 1977: 183). Os trabalhadores, para chegarem às frentes de trabalho, são conduzidos pelos grupos econômicos através de caminhonetes possantes, tratores, caminhões-toureiros e em alguns casos, de avião. Nesta estratégia, a força de trabalho tem três procedências: a primeira é oferecida nas próprias cidades planejadas, ou que está na agricultura e pronta para formar o exército industrial de reserva, que Marx chama de latente; a segunda, de “peões rodados”, é formada por trabalhadores que já estão na região ou chegam para trabalhar, não possuem vínculo local, e são também chamados de “flutuantes”; a terceira é importada de outras regiões do Brasil pelo capital organizado na produção; contratada para suprir as eventuais deficiências de força de trabalho, principalmente em determinadas épocas e locais específicos com falta de mão-deobra. No processo de trabalho amazônico existe uma certa hierarquia que limita posições para servir de controle desta força de trabalho. BECKER (1996: 49) descreve: para o desmatamento, circuito das empresas e fazendas, o contrato é feito diretamente com o “gatão”, indivíduo que possui informações sobre as bacias de mão-de-obra, sua localização e preço, poupando esforços do fazendeiro e do administrador para recrutarem e gerenciarem o trabalho. O “gatão” pode delegar o recrutamento da mão-de-obra aos “gateiros”, que possuem informações mais localizadas e específicas, e estas por sua vez encarregam os 11 “A pecuária extensiva emprega uma pessoa para cada 29 hectares explorados, sendo 89% referentes à mão-de-obra temporária e 11% à mão-de-obra fixa. Apesar de a produção aumentar quando os pastos abandonados são reformados, a geração de emprego continua a mesma, uma vez que o processo de intensificação é alcançado através do uso de máquinas. A agricultura extensiva tradicional emprega uma pessoa para cada 1,33 ha/ano. Assim, são necessários 16 hectares explorados para gerar um emprego (1,33 x 12). A agricultura de cultivo perene, por sua vez, é a atividade que gera maior número de empregos por hectare, empregando uma pessoa para cada 1,4 hectare explorado.” (ALMEIDA e UHL, 1998: 21). 50 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI “gatinhos” ou fiscais de turma de reunirem no local um grupo de quatro a cinco peões que trabalham diretamente sob suas ordens. As formas possíveis de contratação neste circuito são a empreitada e a diária. Quanto maior o desmate, maior o número de intermediários. QUADRO DEMONSTRATIVO DA CADEIA HIERÁRQUICA DE TRABALHO NA AMAZÔNIA, BEM COMO AS FORMAS DE PAGAMENTO ATRAVÉS DA CONTRATAÇÃO DE TRABALHADORES NO SISTEMA “GATO” Posição hierárquica no trabalho “G ato” “G ateiro” “G atinho”ou fiscal “Peões” Pagam ento em % 20% 20% 10% 50% Fonte: Elaboração própria com base em Becker (1996: 50). Para BECKER (1996: 50), os trabalhadores são contratados de forma clandestina, pois na maioria das vezes não têm qualquer vínculo de emprego. Os valores pagos dentro desta hierarquia variam conforme a posição da cadeia hierárquica, cabendo divisões diferenciadas. Através desta estrutura arquitetada pelos grupos econômicos na utilização da força de trabalho, observa-se que o proprietário do capital não se envolve diretamente nas intermediações e mediações com a mão-de-obra. Estes podem ser chamados de “gatos velhos”, visto que na hierarquia eles se apresentam ocultamente primeiro. No maior projeto florestal do planeta, de propriedade do milionário norte-americano Ludwig, a então quarta maior fortuna individual do mundo, evidencia-se a problemática exposta anteriormente, onde, “dos 5.000 empregados do Jari, 1.200 trabalhavam diretamente para a firma e 3.800 eram subcontratados por ‘empreiteiros de mão-de-obra’, chamados gatos” (CARDOSO e MÜLLER, 1977: 183). O caso Ludwig também é citado por PINTO (1980: 99-00). Para melhor entender como é feito o recrutamento da força de trabalho para os trabalhos nas regiões da Amazônia, precisamos entender como funcionam as estratégias no agenciamento do sistema “gatos”. Os peões são recrutados em suas próprias casas, em muitos casos deixam a família para trás. Nos grandes empreendimentos 51 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI “mulher e família são concessões que só os ‘bons patrões’ permitem na selva” (CARDOSO e MÜLLER, 1977: 186). O peão parte em busca de alternativa para sustentar sua família. O “gato” geralmente deixa uma estrutura em dinheiro para confortar, tanto a família que fica quanto o peão que sai para trabalhar. Com esta atitude, cria um vínculo de homem bom, protetor, mas o deixa em completa submissão e dependência na nova empreitada (IANNI, 1981: 96). CARDOSO e MÜLLER (1977: 187) confirmam sobre o ciclo do trabalho: depois de 30 a 40 dias de trabalho o “peão” volta “à civilização” para 2 ou 3 dias de descanso. Vai para as vilas de “for-west”, no caso, do “norte longínquo” onde, entre bares noturnos, bebidas, mulheres e doenças venéreas, curte a tragédia de existir. Este breve intervalo, seguido de cura sumária das moléstias mais evidentes, é o interregno entre um e outro ciclo de trabalho na selva, do qual o peão só escapará se voltar à miséria do lugar de origem ou se, com certa audácia e sorte, puder embrenhar-se nalgum desvão da mata como posseiro, até que o Incra se apiede dele e lhe dê um título legal. Para facilitar o agenciamento do trabalhador no sistema “gato”, nestas cidades existem hotéis e pensões que recolhem os chamados “peões rodados”, aqueles recém-chegados na cidade à procura de trabalho. Ao chegarem nas cidades, eles não precisam de dinheiro para receber a estrutura mínima, que é cama e alimento. O hoteleiro e o pensionista vão contabilizando até a chegada de alguém da família dos “gatos” para comprar sua força de trabalho. Assim o “gateiro” providencia o pagamento de hotel, refeições, até mesmo dinheiro para comprar cigarros e bebidas. Também é uma forma de endividar o trabalhador e torná-lo submisso e obediente, bem como fazê-lo aceitar qualquer trabalho que aparecer pela frente. Estes locais para concentração de mão-de-obra eram muito comuns em Sinop e região, área de nossa pesquisa, e ainda podem ser localizados em 2004. A negociação é semelhante a um objeto qualquer, porém uma mercadoria muito valiosa, e o peão fica depositado à espera de um agenciador de trabalho, alguém que esteja disposto a explorá-lo. Ele se transforma em uma mercadoria na prateleira à espera de algum subordinado dos capitalistas, para levá-lo a algum projeto econômico e tirar vantagens com seu trabalho. Nesta estratégia, alguns dias depois de ser depositado à espera do 52 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI agenciador de trabalho, “o dono da pensão que o aloja e o alimenta no povoado o venderá na primeira oportunidade, ao primeiro ‘gato’ que compre a dívida” (MARTINS, 1995: 122). Esta forma escrava da modernidade é o tratamento de regra e não de exceção dos que fazem a abertura das matas na Amazônia. O processo de trabalho na abertura da floresta pode ser comparado ao ocorrido nos canaviais brasileiros no período colonial, diferenciando-se em um ponto fundamental; deve o trabalhador “livre de hoje”, encontrar um capitalista disposto a consumi-lo no trabalho, em troca de sua subsistência. O peão contratado paga todas as despesas efetuadas por ele, como parte do adiantamento da empreitada, tendo que aceitar qualquer trabalho, pois já está na dependência de recursos financeiros para saldar sua dívida perante o hoteleiro ou pensionista (MARTINS, 1981:61). Assim, é obrigado a aceitar qualquer tipo de trabalho que aparecer, pois, se isto não acontece, passa a ser visto como malandro e preguiçoso, e pode vir a ser enquadrado como inadimplente na forma da lei, devido ao poder dos grupos organizados na região. No interior destas estruturas, “num grande empreendimento operam vários ‘gatos’, responsáveis por grupos de 5, 10 ou mais trabalhadores. Às vezes existem ‘gatos’ que controlam exércitos de 100 ou mais homens” (C ARDOSO e M ÜLLER , 1977: 186). Após recrutados, partem para o trabalho ou são negociados em frentes de trabalho em algum empreendimento mata adentro, e muitas vezes o peão não sabe para onde está sendo transportado. Sabe apenas que vai trabalhar. Aos que não têm família, existe um local de uso coletivo nas fazendas, que serve de dormitório e local para alimentação, sendo sua nova moradia. Geralmente é acertado com o contratante um certo tempo sem voltar à cidade, exatamente para poder saldar os débitos referentes ao adiantamento dos gastos já pagos. Como visto, quando voltam à cidade, geralmente é para passar o final de semana. Aproveitam para ir à bailes, bordéis, envolver-se em cachaçadas12 e fazer compras. Enfim, gastar o 12 Cachaça, bebida alcoólica proveniente da fermentação e destilação do caldo da canade-açúcar. Esta é a bebida alcoólica mais popular do Brasil, sendo muito consumida por trabalhadores, por ser muito acessível e barata. Os peões, ao voltarem para as cidades, se envolvem em cachaçadas em bares e bordéis, até consumirem todo o dinheiro ganho dentro do ciclo de idas e vindas para o trabalho. 53 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI pouco dinheiro adquirido neste período de trabalho. Para MARTINS (1997: 43), “nem sempre entendemos por que a extrema violência que sofre o peão não lhe talha a alegria da farra na bebedeira com uma prostituta de ocasião num cabaré de povoado”. O capitalista, através deste processo de endividamento, torna o peão dependente. Quando este retorna, tem dívidas novas com o hoteleiro e se encontra novamente sem dinheiro, assim o ciclo se repete. Esta dependência financeira se torna necessária aos capitalistas, pois assim a força de trabalho continua também submissa e dependente. Para manter esta força de trabalho sempre produtiva, faz-se necessário o máximo de redução nos seus salários e envolvê-los com débitos. Assim, quando o trabalhador consegue poupar parte do rendimento de seu trabalho, o sistema de agenciamento de mãode-obra deve arquitetar formas para efetivar o consumo desta poupança e proporcionar novas opções de endividamento. Nesta nova investida capitalista da região, são os chamados “peões rodados” que mais contribuem para oxigenar a indústria da peonagem. São indivíduos sem procedência fixa na maioria das vezes, além de serem simples e rudes. A sua presença na região é determinante, devido a sua utilidade no processo produtivo em questão e sua brutalidade é tolerada pela necessidade de trabalhadores. A partir da negociação com o “gato”, o peão sofre toda a violência possível, inclusive se transformando em escravo e tornando-se dependente. Neste sentido, MARTINS (1995: 121-22) acrescenta, denunciando: a primeira violência é contra o posseiro. E a segunda é contra o peão. Os peões são trabalhadores braçais recrutados no Nordeste, em Goiás, e até em São Paulo, nas áreas de divisa com o Mato Grosso. São levados pelo “gato”, que combina antes o pagamento que vai fazer às “boas” condições de trabalho e de vida que vai oferecer. Depois põem todo mundo em cima de um caminhão e vão embora no rumo do sertão, dos povoados e da mata. Lá longe, quando não há mais retorno, vendem os peões para o dono de uma pensão, que os reserva depois, ou para a própria fazenda, para algum empreiteiro que precise de trabalhadores. O peão virou escravo. Ele está preso ao “gato” por dívidas, pelas despesas que fez no caminho para comer, dormir, fumar, beber, pelo transporte. Só fica livre quando pagar todo o trabalho. Na mata, alojado em barracas, paga o alimento que o “gato” fornece, pelo preço que este quiser e impuser. Esse preço é calculado de tal modo, que o peão está sempre devendo ao 54 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI “gato” enquanto este quiser, até que a empreitada chegue ao fim. Antes disto só é possível sair fugindo; na prática, porém nem isso: os acampamentos e os locais de passagem são fiscalizados por jagunços armados. Peão fugido é peão morto: ele é o capital de seu patrão – a fuga é interpretada como roubo. Embora a escravidão negra esteja extinta no Brasil desde 1888, em algumas fazendas ela continua. Em pleno final do século XX, aplicam-se os mesmos mecanismos já extintos há mais de 100 anos na utilização da força de trabalho. Esta forma de escravizar trabalhadores no Brasil é conhecida como escravidão branca13. Para MARTINS (1997: 89), o cativeiro no capitalismo de fronteira apresenta um quadro preocupante, pois das 431 fazendas das quais se têm notícias da presença de trabalho escravo no Brasil, entre 1970 a 1993, 308 estão localizadas na Amazônia. Nestes episódios, 85 mil trabalhadores foram escravizados. O número foi obtido com base de depoimento de peões que conseguiram fugir e fizeram denúncias às autoridades. Estes números são possíveis graças às denúncias feitas junto à Polícia Federal, a agentes locais ou regionais do Ministério do Trabalho e à igreja católica (Comissão Pastoral da Terra). Os números denunciam a exploração; neste período foram “nove mil os trabalhadores que conseguiram fugir do cativeiro, na imensa maioria fugas de fazendas amazônicas” (MARTINS, 1981: 91). Neste sentido, é difícil conseguir dados precisos, pois a maioria dos trabalhadores que se envolve neste trabalho são pessoas simples que não sabem de seus direitos, submetendo-se sempre à regra dos “gatos”, sem denunciar os abusos no trabalho, por medo de represálias dos grupos organizados. Esta prática ainda se faz presente em nossos dias. Entre os dias 7 e 13 de agosto de 2002, o Ministério do Trabalho libertou 152 trabalhadores mantidos em cativeiro em fazendas do Estado paraense (O LIBERAL de 19/7/ 2002). 13 Escravidão branca – Refere-se à escravidão dos tempos atuais, que engloba pessoas brancas e negras. Os trabalhadores se encontram na maioria das vezes em condições subumanas e de dependência. São violados os direitos humanos, ficam presos em cativeiros nas fazendas agropecuárias, sendo obrigados a efetuar trabalhos forçados, não tendo a liberdade de ir e vir. Em muitos casos, os trabalhadores são agredidos, torturados e mortos. A escravidão branca acontece em grandes propriedades, através do sistema “gato”, com ajuda de jagunços e pistoleiros fortemente armados que prestam trabalho a grupos econômicos nacionais e internacionais na Amazônia brasileira. 55 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI O sistema “gato” confunde a responsabilidade e o vínculo empregatício, e quando algo de errado acontecer, o “gato” se omite e o peão fica sem saída. Neste caso, não se encontra o responsável, pois o capitalista formalmente não contratou peão algum. Assim, “os donos das fazendas alegam que não têm nada a ver com os homens que derrubam as matas e fazem plantações” (PINTO, 1980: 101). Nos projetos com incentivos fiscais, a fiscalização dos órgãos governamentais é feita, na maioria das vezes, por aviões dos proprietários, inclusive com acerto do dia que vão inspecionar, não tocando no item exploração do trabalho, tornando-se difícil de acreditar em alguma coisa séria na região (PINTO, 1980: 102). Desta maneira, “esse quadro certamente não sugere, a quem quer que seja, que estamos diante do que os teóricos definem como trabalho livre. Certamente estamos diante, ao mesmo tempo, do que os mesmos teóricos definem como capitalismo” (MARTINS, 1997: 91). Em 1985, com o fim da intervenção militar no País, o trabalho na Amazônia representa 72,7% dos peões empregados no desmatamento da floresta virgem para posterior formação de pastagens para a formação da agropecuária (MARTINS, 1997: 94). Este e outros fatos apresentam as condições favoráveis para que se viabilize a exploração da força de trabalho além do normal, quando comparado com outras regiões do País. Faz-se necessária aos grupos econômicos “a fundação de fazendas (ou de indústrias) na Amazônia era é o meio de obter os recursos dos incentivos fiscais” (MARTINS, 1997: 99). Na nova fronteira de expansão do capital, “a impunidade corre solta e até hoje não se tem notícias das prisões dos proprietários e/ou responsáveis pelas usinas ou fazendas onde era praticado o cativeiro” (PIAIA, 1999: 65). O que prova que o capital e o Estado andam juntos. O Estado, no caso amazônico, é conivente e serve para acobertar todas as formas de exploração e a violência praticada contra os trabalhadores, como também garantir às empresas formas legais de exaustão dos recursos naturais da região. Por outro lado, há a necessidade de projetos econômicos para obter os recursos financeiros da União na formação de capitais através dos incentivos fiscais, bem como produzir formas para 56 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI proteger os grandes conglomerados nacionais e internacionais ali instalados. A violência é visível em todo o processo produtivo da Amazônia. Nestas cidades é comum nos cemitérios, um espaço reservado aos mortos não identificados. São centenas de cruzes com os dizeres “não identificado”. Os cemitérios, inclusive, são planejados com espaços reservados a estes “indigentes” – pessoas que morreram e que “não têm família”. Isto acontece na maioria das cidades mato-grossenses, inclusive em Sinop. São os chamados “peões rodados”, que não possuem nome que os identifiquem e muito menos famílias que os reconheçam, quando mortos se transformam em peso para a sociedade. Após a morte destes trabalhadores, ter um local junto da “sociedade organizada”, mesmo que este seja separado, é visto como um favor, ao mesmo tempo convencionado como digno, visto o descaso do poder constituído. Este episódio tem maiores proporções em áreas garimpeiras, mas em geral esta prática na região faz com que se acobertem não só as mortes naturais, mas os acidentes de trabalho, que são muito freqüentes nas derrubadas da mata e a violência contra os posseiros. Também se esconde toda a violência peculiar da região, que em muitos casos acaba em assassinatos, fazendo com que fiquem acobertados e impunes os seus autores, os mandantes e o Estado pela conivência e omissão. É necessário que se diga que muitos dos que morrem vítimas da violência no trabalho ou por conflitos da terra distante não são notificados e registrados, muito menos recebem local em cemitério depois de mortos. Este tratamento usado nas últimas décadas na região, identifica formas de superexploração da força de trabalho. São métodos usados que denunciam práticas que vão além da exploração, pois os mecanismos para produzir mais mais-valia ficam evidentes em todas as etapas de trabalho bem como as formas de tratamento impostas à classe trabalhadora na região. Atualmente na Amazônia, no início do novo milênio, formouse um exército de reserva bastante acentuado. Assim, o capital instalado na região consegue realizar a superexploração da classe trabalhadora de forma mais tranqüila. É também comum encontrar peões errantes, andando de um lado para o outro, sem conseguirem 57 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI trabalho, muitos em estado de marginalização extrema, sem perspectivas de trabalho e de vida. Desta maneira se submetem a qualquer função dentro da escala de trabalho do sistema “gato”. A eles restam a exploração através de baixos salários, a intensificação das jornadas e condições subumanas cada vez maiores. Para Marx, a partir da criação do exército industrial de reserva, a exploração da força de trabalho se acentua14 . ***** 14 “Quanto maior a riqueza social, o capital em função, a dimensão e energia de seu crescimento e, conseqüentemente, a magnitude absoluta do proletariado e da força de trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível é ampliada pelas mesmas causas que aumentam a força expansiva do capital. A magnitude relativa do exército industrial de reserva cresce, portanto, com as potências da riqueza, mas quanto maior esse exército de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do suplício de seu trabalho. E, ainda, quanto maiores essa camada de lázaros da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior, usando-se a terminologia oficial, o pauperismo. Esta é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista (...). Quanto maior a produtividade do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre os meios de emprego, tanto mais precária, portanto, sua condição de existência, a saber, a vida da própria força para aumentar a riqueza alheia ou a expansão do capital.” (MARX, 1998:748). 58 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI A exploração do trabalho na mineração aurífera Historicamente, a partir dos princípios do século XVIII, com as primeiras descobertas das jazidas auríferas, “a mineração do ouro no Brasil ocupará durante três quartos do século o centro das atenções de Portugal” (PRADO JÚNIOR, 1988: 56). Assim, “de 1700 a 1800, 1 milhão de quilos de ouro foram oficialmente registrados e talvez outro milhão tenha escapado do fisco real. Cerca de 2,4 milhões de quilates de diamantes foram extraídos” (DEAN, 2000: 108). O açúcar, que “durante século e meio representa o nervo econômico da colonização e sua própria razão de ser, é desprezado” (PRADO JÚNIOR, 1988: 56) pelos colonizadores portugueses para concentrar a busca econômica no ouro. No Brasil, ao contrário do México e do Peru, as descobertas ocorreram só mais tarde. Um dos motivos é que os povos originários brasileiros, por serem compostos de nível cultural muito baixo, não tinham se interessado pelo minério (PRADO JÚNIOR, 1988: 56). No território brasileiro, o ouro se encontra na sua maior parte em aluvião15 , sobretudo nos leitos dos rios. Através do impulso promovido pelas descobertas do minério no Brasil, desloca-se a ocupação para o centro do País de forma mais acentuada. Na época, as melhores minas concentravam-se em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. As descobertas auríferas foram muito importantes para a coroa portugesa, pois desenvolveram de forma mais acentuada a introdução do homem na região amazônica. OLIVEIRA (1983:19596) afirma que: várias incursões à procura de metais e pedras preciosas tiveram lugar na Amazônia durante o século XVIII, o ouro começou a ser desvendado nessa região, em Cuiabá (Mato Grosso), onde saía pelo rio Madeira, e no Norte de Goiás, onde era escoado por intermédio do rio Tocantins. A ocorrência desse metal foi o que impulsionou o povoamento e a expansão de brasileiros e portugueses naquela área, colaborando na ampliação e posse dos domínios de Portugal na América do Sul. 15 Aluvião – Depósito de cascalho, areia e argila que se forma junto às margens ou na foz dos rios, proveniente do trabalho da erosão (AURÉLIO, 1999: 110). 59 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI As viagens para a região aconteciam de forma bastante peculiar, visto que, na época, não havia vias de acesso definidas. OLIVEIRA (1983: 198) nos orienta: os caminhos de acesso a Mato Grosso, por onde penetram os sertanistas e os exploradores de minas, eram: a) roteiro fluvial do Tietê – iniciando-se a viagem neste rio, em Porto Feliz (São Paulo), atingia-se o Paraná e depois passava-se para a bacia do Paraguai, até poder alcançar-se o destino almejado; b) rio Madeira Tapajós; c) rota terrestre que, a partir da capital de Goiás, Vila Boa, seguia-se em direção a oeste, passando pelo arraial de Pilões e alcançando Cuiabá, podia comunicar-se com Minas, Rio e São Paulo. A capital do Estado de Mato Grosso teve sua origem no garimpo de ouro. O garimpo e a mineração representaram nesta época, para a região aurífera da Amazônia, sinal de poderio, ambição por parte dos capitalistas e uma forte base econômica. Também representou sinônimo de destruição da natureza e degradação humana. Contudo, “chega-se ao fim do séc. XVIII a um momento em que já se tinha esgotado praticamente todos os depósitos auríferos superficiais em toda a vasta área em que ocorreram” (PRADO JÚNIOR, 1988: 62). Tanto o ouro como o diamante ainda eram explorados no final do século XVIII, embora o segundo com menor intensidade. Mesmo tornado-se escasso, permaneceu sendo produzido continuamente, mas em menor quantidade. Com o esgotamento das minas no Estado de “Mato Grosso, embora ainda fosse a mineração a única fonte de produção e riqueza da capitania, muito pouco sobrava do passado” (PRADO JÚNIOR, 1973: 172). A extração nunca tinha cessado, tanto em Mato Groso como em Goiás, mas “é somente em Minas Gerais que a extração de ouro conserva alguma importância” (PRADO JÚNIOR, 1973: 173). Mesmo que o garimpo de ouro e diamantes não tenha deixado de existir nos séculos XIX e XX, tornou-se de menor importância econômica. A região Amazônica rica em recursos minerais, voltou-se à outras espécies de extrativismo. Segundo PASSOS (1998: 55), na década de 1940, o governo federal concedeu por cinqüenta anos à ICOMI – Indústria e Comércio de Minérios S. A. – empresa nacional 60 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI associada à Bethlehem Steel Corporation, dos EUA, o direito de explorar as reservas de manganês do Amapá, na Serra do Navio, calculadas em 30 milhões de toneladas. A ICOMI construiu 194 km de ferrovia entre a Serra do Navio e o Porto de Santana, em Macapá, eletrificou-a por meio de uma usina termoelétrica e exporta até hoje, 1,5 milhões de toneladas de minério em média por ano, especialmente para os EUA. A garimpagem aurífera volta a representar importância para a região amazônica, somente nas últimas três décadas do século XX, mas não representa muito em termos econômicos para o País, visto que a nação se encontra em crescente industrialização e com a agricultura e a pecuária em franco desenvolvimento capitalista. Por outro lado, é exatamente no território amazônico que se desencadeia uma nova alternativa econômica para região, a garimpagem aurífera nas últimas décadas. As descobertas ocorreram pelo fluxo migratório no período militar de 1964, acentuando assim a expansão capitalista na região também através da exploração mineral. Nesta nova era, a garimpagem aurífera desempenhou três papéis importantes: o primeiro, serviu de incentivo ao deslocamento de pessoas de áreas onde a marginalização social se agravara, como no Nordeste e no Sul do País, e estas vieram para a região para servir de força de trabalho aos projetos econômicos que chegaram para se expandir também na mineração; o segundo, serviu de alternativa à população na Amazônia, pela grande quantidade do exército industrial de reserva ali transferido, e também impulsionado pelo fácil acesso à garimpagem manual. O terceiro, representa uma nova alternativa aos posseiros para abandonarem os conflitos pela posse da terra. Nesta nova fase do garimpo, os “peões rodados” não foram somente desprovidos de procedência ou de identidade, como é o caso de alguns “peões” da agropecuária, das usinas de álcool e indústrias de transformação de madeiras. Este ser humano não tem direito de usar seu próprio nome, pois em muitos casos tem que viver na clandestinidade. É chamado de Baiano, Paraíba, Mineiro, Catarina, Gaúcho, Zé, Ruivo, Jacaré, Macaco, Tucunaré, Metralha, Carabina, entre outros. Contudo, para qualquer “Zé” da vida, existe mais uma vez a possibilidade de ter acesso ao “mel”. A meta é provar o gosto doce deste produto e o brilho intenso do ouro que o fixa em busca da colméia. É nela que pode ser 61 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI encontrado o “mel”. Este precioso produto mais uma vez atrai os despossuídos e marginalizados. O uso de nomes falsos ocorre para que não sejam reconhecidos ou identificados. O anonimato e a clandestinidade são para efetivar-se a superexploração com táticas mais apuradas, pois o conjunto violento que envolve a garimpagem apresenta métodos mais arrojados para produção de mais mais-valia. É considerado ato de desconfiança querer saber o nome e a procedência de alguém, visto que nestas áreas existem também muitas mortes por encomenda e gente com problemas na justiça. A estrutura e a formação da força de trabalho são semelhantes às da peonagem da abertura das matas da última fronteira, sendo um pouco superior a quantidade de “peões rodados”. São perfeitos para os interesses do capital e tolerados por todas as suas deficiências e brutalidade. Muitos destes trabalhadores surgem com as crises, o desemprego no País, e avolumam o exército industrial de reserva concentrado na região amazônica nas últimas décadas. Através desta nova alternativa, principalmente nos anos 70 e 80, “o garimpo caracteriza-se como paliativo, uma alternativa provisória num mundo de desemprego” (PROCÓPIO, 1992: 72). Em busca do eldorado, a força de trabalho “chega a ser alugada, passando a não ser dona do seu próprio destino” (PROCÓPIO, 1992: 73). Vistos como uma mercadoria, os garimpeiros ficam flutuando na região e se instalam onde existir a possibilidade de venda de sua força de trabalho. Contudo, muita gente passou a depender do garimpo: “a Amazônia detém hoje [metade dos anos 80] a maioria das áreas garimpeiras do país, e elas são sobretudo de ouro e diamante. A população garimpeira do Brasil é estimada em 305.000, sendo que na Amazônia fica mais de 80% deste total” (OLIVEIRA, 1976: 63), embora a quantidade seja motivo de controvérsia. Para PROCÓPIO (1992: 257), “cerca de um milhão de homens estão diretamente trabalhando junto aos garimpos de ouro” (PROCÓPIO, 1992: 257). Torna-se difícil precisar a quantidade de garimpeiros, pois muitos nem documentos possuem e transitam nos locais de trabalho clandestinamente. Para o Estado e o capital, o garimpo passou a ser estratégia para consolidar uma contra-reforma agrária na Amazônia, tornando a população nômade, enquanto se estabelecem os grandes grupos econômicos, inclusive legalizando a concentração da terra. O pequeno agricultor que ainda resta, seja 62 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI ele em terras próprias, seja em posse, neste estágio da investida capitalista, vai servir de exército industrial latente e em potencial. O garimpo deste novo período funcionou como válvula de escape aos problemas sociais criados na região amazônica e fora dela. Nos processos de colonização espontânea, particular e promovida pelo governo, o Estado não esperava um fluxo tão grande de pessoas em busca de novas alternativas de vida, embora tivesse conhecimento da marginalização das massas. Formou-se na região um grande contingente de exército industrial de reserva, acarretando sérios problemas sociais. Para os migrantes, a alternativa imediata foi a busca da terra e do trabalho, mas o projeto capitalista proposto para a região não contemplava os colonos, os posseiros e os “sem-terra”. O “mel” não estava ao alcance de todos, mas sempre tinha uma alternativa nova de finalmente conseguir chegar até ele. O garimpo de ouro era uma forma de chegar ao “mel”, pois o brilho do mineral precioso passou a fazer parte do sonho dos que chegaram à região. Se a garimpagem pode ser a alternativa para as massas despossuídas, também é vista com bons olhos por alguns setores do capital e o Estado dominador. Além de absorver a força de trabalho excedente e sem alternativa de vida, retira os posseiros das terras que se encontram em processo jurídico sobre a posse. Neste sentido, os litígios sobre a propriedade da terra são processos longos, e de repente aparece uma nova alternativa para a força de trabalho, eles se sentem atraídos, abandonam a luta pela posse de terra e vão em busca do minério. Assim, a grande maioria dos conflitos de posse da terra na região tiveram seu fim com a abertura dos garimpos auríferos. A mineração de “ouro ‘atrai qualquer um’ e, ‘voluntariamente’, o posseiro que se transforma em garimpeiro entrega ‘de mãos beijadas’ suas terras ao latifundiário” (PROCÓPIO, 1992: 86). Também ocorrem desistências da terra nos assentamentos, pois a corrida em busca do ouro faz com que as pessoas abandonem a posse da terra e também os projetos de colonização. As causas do abandono da terra nos assentamentos não se fundamentam apenas na alternativa aurífera, mas são fruto das péssimas condições estruturais desses projetos de colonização, visto o descaso por parte do Estado em detrimento dos grupos organizados. A não permanência na terra é uma forma de fracasso, e esta desistência é a vitória do poder econômico, militar e político 63 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI do País, pois o projeto amazônico não visa a proteger os marginalizados que ali se fixaram, mas a favorecer o capital constituído para a expansão e acumulação. Em regra geral, a única alternativa oferecida à classe trabalhadora é a proletarização para servir aos grandes conglomerados econômicos ali instalados, bem como dar estrutura ao capital nas cidades planejadas. Os posseiros e os colonos prestam um grande benefício aos capitalistas, facilitam a acumulação através da expansão, pois servem de amansadores das terras. Neste caso, tanto os colonos como os posseiros fazem a ponte para a entrada dos grupos econômicos. Depois de passarem por dificuldades para abertura das matas nativas, desistem da área e o latifúndio entra. Esta é a meta dos grupos ali estabelecidos ou querendo estabelecer-se na região, pois desejam aproveitar a abertura já realizada pelos colonos e posseiros. Por outro lado, a garimpagem, tanto no passado como no presente, em pouco contribui para o desenvolvimento da região, pois foram “contrabandeados em sua totalidade, ontem como hoje, o ouro e o diamante trazem principalmente a miséria” (PROCÓPIO, 1992: 80). O desvio da produção não ficou somente no ouro, “95% do produto brasileiro de diamantes foi contrabandeado” (SABATINI, 1998: 65). Para demonstrar a real situação, “na segunda década dos anos 80 o Uruguai se tornou um grande exportador, apesar de não haver em seu território uma única mina” (PROCÓPIO, 1992: 118). Neste sentido, B EZERRA , V ERÍSSIMO e U HL (1998: 22) denunciam que “muito do ouro produzido na região de estudo [em 1993] – aproximadamente 80% – foi vendido no mercado negro, portanto livre de impostos”. A Amazônia tornou-se rota das drogas, contrabando de ouro e lavagem de dinheiro, contribuindo com as estruturas de produção16 e consumo da droga para indústria do crime. Para RIBEIRO (2000: 38), o narcotráfico e o capitalismo andam juntos com a ilegalidade, pois através do crime os lucros não são 16 “A geografia do Narco. Os maiores produtores de maconha são: Colômbia, Belize, Costa Rica, Jamaica, Líbano, Marrocos, México, Panamá, Paraguai, Brasil e Estados Unidos. Na produção de cocaína, os destaques são: Colômbia, Bolívia, Equador e Peru. (Brasil entra como potencial produtor). Na produção de ópio, destacam-se: Afeganistão, Birmânia, Egito, Guatemala, Laos, Líbano, México, Paquistão e Tailândia. Os países periféricos produzem as substâncias tóxicas, e o primeiro mundo consome a maior parte da produção.” (RIBEIRO, 2000: 34). 64 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI controlados pelo sistema oficial, muito menos pelo mercado internacional, vindo a atuar sem limites morais e reproduzindo a exclusão social em larga escala. Segundo ROCCO (2000: 125), as Nações Unidas estimam que o tráfico de drogas ilícitas movimenta anualmente algo entre US$ 500 a US$ 800 bilhões, além de financiar outras atividades ilícitas, como tráfico de armas, guerrilhas, golpes de estado, seqüestros, eleições em todos os níveis etc. A cocaína e o ouro fazem a lavagem de dinheiro da indústria do crime na Amazônia. PROCÓPIO (1992: 119) certifica: muitos aviões que trazem a pasta da coca, ou pronta e embalada para o consumo, chegam igualmente com mercúrio proveniente da Alemanha Ocidental e do México, entre outros países. No Brasil é proibido por lei o uso do mercúrio nos garimpos. Tais aeronaves não voltam vazias. Além do ouro, transportam a cocaína, a pasta ou então o éter, acetona e ácido clorídrico, em boa parte produzidos por firmas norte-americanas que dominam a indústria química. Como é sabido, tanto o ouro quanto a cocaína existem fortemente na Amazônia, em áreas do Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Venezuela e Colômbia. A ilusão de riqueza ao garimpeiro é um engano, pois se esconde por trás uma complexa máquina de intermediação: “depois de expropriado das mãos dos garimpeiros por compradores acobertados pelas preeminências capitalistas locais, com considerável margem de lucro, o ouro é revendido fora do país” (PROCÓPIO, 1992: 87). O garimpo de ouro na região é um grande negócio para os detentores do poder político e econômico, bem como para manter o controle e usufruir os recursos naturais com a finalidade de concentrar riqueza. Provando esta realidade, “no Encontro Anual da SBPC realizado em 1983, na cidade de Belém do Pará, foi mostrado que apenas 5% dos ‘garimpeiros’ acumulavam aproximadamente 80% do ouro retirado até junho de 1983 em Serra Pelada” (PROCÓPIO, 1992: 87). Para o garimpeiro que fornece a força de trabalho, os resultados são o aprofundamento da sua marginalização e a exclusão social. Nos locais das minas, após de exaurido o minério resta “uma profunda desestruturação da paisagem social e ecológica local” (PROCÓPIO, 1992: 87). A maior parte do ouro é contrabandeada e serve na lavagem 65 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI de dinheiro, e “sob vistas grossas de autoridades, diariamente saem, pelos campos de aviação locais [clandestinos], quilos e mais quilos do precioso metal para tomar rumos ignorados” (PROCÓPIO, 1992: 87). Na Amazônia, os únicos produtos que não precisam de estradas são a cocaína e o ouro; devido ao seu alto valor, o transporte pode ser feito via aérea. A exploração do homem e a degradação dos ecossistemas, aliados à concentração capitalista, se retratam na triste situação dos garimpos auríferos. PROCÓPIO (1992: 90-91) define: Na mineração do ouro, impera é a “lei da selva” onde “tudo é permitido” para alcançar a fortuna. A estabilidade do sistema capitalista se relaciona, ali, ao vale tudo. Nestes lugares, a importância da vida é o que menos importa. No garimpo, conforme se ouviu, “ninguém chora por ninguém”. Houvesse respeito à vida, há tempo, por exemplo, a Garimpagem de Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso, teria sido interditada. Lá, centenas de garimpeiros mergulhadores desaparecem e continuam a morrer no rio Peixoto. Se, por um lado, é o ouro que atrai, e tantas vidas são desperdiçadas em sua busca – este metal que no mundo das representações é o meio que satisfaz as necessidades e traz recompensas através de uma vida de riqueza - por outro lado, é a extração da mais-valia que motiva o sistema a permitir o verdadeiro holocausto nos garimpos espalhados pela Amazônia17 . 17 A cidade de Peixoto de Azevedo está situada nas margens da BR-163 em Mato Grosso, próxima da divisa com o Estado de Pará. Nos anos 80 tivemos a oportunidade de ir várias vezes à cidade. Quando Procópio se refere ao garimpo desta região, ele está falando realmente da violência e da prostituição que ali se realizavam. Na época, à noite, eram comuns tiroteios seguidos de mortes. As boates com prostituição e bebidas movimentavam o ambiente local. Nos finais de semana era comum vários a assassinatos. Os corpos eram vistos estirados nas ruas, resultado da festa na boate, pois eram sempre acompanhadas de muita bebida alcoólica, maconha e cocaína. Em um domingo pela manhã fomos ao cemitério local para verificar o resultado da violência. Para nossa surpresa lá estavam alguns corpos, resultado da noite do sábado. Os mortos não tinham ninguém para chorar por eles, alguns não tinham documentos e muito menos alguém que soubesse de onde vinham. Neste local, as pessoas viviam em estado de guerra, e para muitos desses, tanto fazia matar como morrer. As mortes, na maioria das vezes, era pela disputa de mulheres nas boates. Neste local quem faz a lei são as armas e a coragem das pessoas que ali vivem é fruto de sua brutalidade e bestialização. Outro fato que leva muitos trabalhadores do garimpo à morte são as doenças venéreas e a malária, doenças muito comuns na região. Hoje a cidade vive em estado harmonia, se comparado com o período do auge da produção aurífera. Praticamente o ouro quase se exauriu e a região sobrevive do extrativismo, da agropecuária, do comércio e da indústria. 66 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Como outra atividade qualquer, a atividade garimpeira, além de concentrar renda nas mãos de poucos, é retirada através da mais-valia absoluta e relativa da classe trabalhadora, além de prestar grande serviço “aos latifundiários, contribuindo para uma maior concentração de terras em mãos de poucos” (PROCÓPIO, 1992: 91). A procura de ouro na região serve apenas para minimizar os problemas sociais, “enquanto se está a sua procura se esquece o resto” (PROCÓPIO, 1992: 92) dos problemas latentes na sociedade brasileira produzidos pelas diferenças sociais. Enquanto isso, as áreas de garimpos vivem uma verdadeira degradação humana, com mortes e prostituição, onde impera a lei do silêncio promovida por jagunços e pistoleiros. A ocupação da Amazônia é o retrato de tragédias para os povos marginalizados e despossuídos no processo histórico brasileiro, que buscam novas formas de subsistência. Os desempregados, os sem-terra e os semteto, que chegam de outras regiões do País passam a viver em clima de agressão física/moral. Neste sentido, o local onde ocorreu a maior violência contra garimpeiros de que temos conhecimento foi em Paranaíta, no norte mato-grossense, na gleba Iindeco. KOWARICK (1995: 235), citando JOSÉ RENATO (1985), comprova: talvez o caso de maior violência contra garimpeiros tenha ocorrido no garimpo de Paranaíta, no Norte do Mato Grosso, região dominada pelos garimpos da bacia do rio Teles Pires, formador do rio Tapajós (PA). Calcula-se em 300 o número de garimpeiros assassinados por jagunços e policiais (...). Sofreram também sevícias e torturas (...). A tortura de 3.500 garimpeiros inclui mulheres à frente de seus maridos, pisoteio, surras e, por fim o assassinato. Após as servícias muitos foram despejados na beira do rio Teles Pires; foram encontrados ainda vários cadáveres na área. Para OLIVEIRA (2001: 155), “a violência passou a fazer parte do cotidiano do projeto, e a tentativa de ‘enriquecimento fácil’ tomou conta das cidades de Paranaíta e Alta Floresta. Estima-se que mais de 300 garimpeiros já foram mortos nessa disputa pelo ouro”. O sinistro acorreu no dia 11 de setembro de 1979, mas “no mês de novembro um grupo de garimpeiros encontrou 18 cadáveres amontoados, mortos recentemente. Isto significa que a matança naquela região ainda não chegou ao fim” (SCHAEFER, 1985: 151). Fatos desta natureza fazem questionar sobre o modelo de 67 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Colonização da região, bem como da atitude da polícia sobre o abuso18 de poder e da justiça do Mato Grosso (SCHAEFER, 1985: 151). A violência no garimpo de Paranaíta também foi citada por PIAIA (1999: 105-106). É bom lembrar que nesta época o País era governado pela ditadura, as informações e a violência repressivas faziam parte do cotidiano brasileiro. Nesta lógica, “o norte de Mato Grosso é uma das regiões garimpeiras que ‘escondeu’ esses massacres de garimpeiros” (OLIVEIRA, 1997: 65). Para BECKER (1997: 77), os garimpeiros descobrem os minérios, desbravam as áreas e depois são expulsos, foi o que aconteceu em Rondônia, com a exploração da cassiterita e em Paranaíta (Alta Floresta, MT) com a exploração de ouro. Estas atitudes representam atos do capitalismo concentrador e retratam as formas de expansão da Amazônia de modo selvagem e brutal. Este é apenas mais um dos casos de violência com os despossuídos e marginalizados, retratando a brutalidade ocorrida nas frentes de trabalho e na ocupação da Amazônia. Além de toda a violência praticada com a população que ali chega, vivem sem qualquer condição de higiene sanitária. São vítimas de doenças tais como: tuberculose, leishmaniose, verminose, malária, doenças venéreas, acompanhadas de muitos assassinatos, além de prostituição infantil, devido a grande quantidade de indústrias do lazer e por tornar-se esse negócio muito lucrativo. Neste sentido, nas regiões de garimpo existem muitas casas de prostituição, sendo um dos comércios mais importantes das áreas garimpeiras. No ano de 1987 tivemos a oportunidade de verificar in loco a região garimpeira, para entender como funcionam os garimpos na região amazônica. Além de visitar a cidade de Peixoto de Azevedo, visitamos também a área garimpeira, local de extração do minério. Acompanhamos a garimpagem aquática, no rio Peixoto, na altura em que recebe como afluente o rio Braço do Norte, e o garimpo terrestre por vários dias nesta região. Constatamos que há duas modalidades de extração de ouro: a terrestre e a aquática. Tanto a 18 SCHAEFER JOSÉ RENATO. As migrações rurais e implicações pastorais. Um estudo das migrações campo – campo do sul do País em direção ao norte do Mato Grosso. São Paulo: Edições Loyola, 1985. Neste livro, o autor relata os assassinatos dos garimpeiros e das prostitutas e os requintes de crueldade aplicados na tortura e morte pela polícia em Paranaíta, no Estado de Mato Grosso. 68 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI extração aquática quanto a terrestre utilizam de quatro a seis pessoas por equipe de trabalho. A exploração aquática necessita dos seguintes equipamentos: uma balsa que flutua na superfície do rio, se deslocando quando necessário; uma motobomba, com mangueiras para sugar o lodo no fundo do rio; uma caixa concentradora, em cima da balsa; equipe de mergulhadores equipados com roupas de mergulho. O mergulhador fica no fundo do rio controlando a mangueira para sugar o lodo em uma profundidade de 10 a 15 metros ou mais, através da força sugadora da motobomba. Neste processo, muitas vidas são ceifadas, pois ocorrem muitos desmoronamentos nas crateras, soterrando os garimpeiros ou porque são arrastados por troncos de árvores pela força das águas. Além de usarem equipamentos e roupas não adequadas nesta prática, também há o uso indiscriminado de drogas como: cocaína, bebidas alcoólicas e outras (PROCÓPIO, 1992:95). Nesta modalidade, de duas em duas horas é feito o revezamento com a equipe, o trabalho não pára dia e noite, na maioria dos casos. O garimpeiro trabalha de forma precária na região. No garimpo de balsa, os “acidentes de trabalho foram uma constante no rio Madeira, onde a profundidade média varia entre dez e quinze metros” (PROCÓPIO, 2000: 140). Sempre usam roupas emborrachadas, não permeáveis, uma chupeta na boca para respirar, se jogando na água com alguns pesos de chumbo, geralmente amarrados na cintura e nas pernas para mantê-los no fundo do rio. Este procedimento abre verdadeiras crateras, removendo o fundo do rio, sendo todo o material jogado em uma caixa com uma banca em declive forrada com carpete ou pano, pois, na passagem do material, o ouro, por ser mais pesado, fica retido neste carpete. A cada três ou quatro dias é feita a limpeza destes carpetes, retirando o ouro com auxílio de mercúrio e, no final, parte deste mercúrio é jogado nas águas, e outra, na atmosfera. O mergulhador, nesta técnica, fica em constante perigo de vida. O proprietário das balsas constrói uma casa flutuante onde administra todo o trabalho. Também é o local onde os garimpeiros fazem suas refeições, descansam e dormem. A alimentação é feita por um peão conhecido por “Cuca19 “. Deste local o proprietário das balsas pode administrar várias equipes de trabalho, tendo às vezes a tarefa de coletar o ouro. O proprietário necessita inicialmente de 69 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI certa quantidade de capital disponível, para poder bancar toda a infra-estrutura como: máquinas, equipamentos, alimentação, transporte e combustível. Na outra modalidade, a extração de ouro terrestre, usamse duas motobombas, com duas mangueiras. Uma caixa nos mesmos moldes da aquática, pois o processo é o mesmo. As motobombas têm funções distintas. A primeira serve para lançar água sobre pressão, desintegrando os sedimentos. A segunda tem a função de sugar aquele lodo removido, fazendo a mesma operação da mangueira aquática. As mangueiras têm duas funções: uma de jogar jatos de água para desintegrar os sedimentos, a outra para sugar os sedimentos removidos até a caixa concentradora. O processo de apuração é o mesmo das operações aquáticas, usando sempre o mercúrio para facilitar a separação de outras misturas e também para diminuir as perdas. Em qualquer das modalidades de extração de ouro não existe vínculo empregatício entre o proprietário das balsas que faz a ponte entre o capital e os peões do garimpo. A violência está presente em toda parte. Para melhor esclarecer, KOWARICK (1995: 133) retrata as reais condições: a garimpagem é um capítulo à parte da história da Amazônia e espelha a luta pela sobrevivência, assim como a violência praticada pela polícia militar, jagunços e as “quadrilhas organizadas”. São vítimas peões (trabalhadores rurais sem-terra) e os índios, o meio ambiente contaminado pelo mercúrio e a degradação. Na verdade, a produção de ouro é muito maior do que a registrada oficialmente e com certeza é exportado pelas “quadrilhas organizadas”, as “máfias” que atuam impunemente no Brasil e em especial na Amazônia legal. Isso pode ser ilustrado através do estudo realizado pela equipe do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia – Imazon, no que diz respeito à garimpagem de ouro na região. Através de estudo de caso, avaliam a questão trabalho, finanças e impacto ambiental. Este foi realizado no Sudoeste do Estado do Pará, 19 Cuca é um trabalhador muito comum na área garimpeira, na extração de árvores e nos projetos agropecuários, exerce a função de cozinheiro. Também organiza os horários para refeições, visto que a rotatividade de trabalhadores é constante. Deve sempre obedecer os intervalos necessários entre o espaço de tempo para o mergulho, isto quando a garimpagem for aquática. 70 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI servindo de referência para outras regiões. Os pesquisadores fizeram entrevistas e acompanhamento de todo o processo de garimpagem neste local. A equipe entrevistou 55 proprietários de garimpos, 155 trabalhadores, 15 comerciantes e 12 transportadores. Os pesquisadores B EZERRA , V ERÍSSIMO e U HL (1996: 10) nos demonstram, através de seus estudos, os resultados das características da garimpagem: em 1993, havia 245 garimpos na região de estudo. Deste total 60% tinham acesso por via aérea, 35% podiam ser alcançados por via fluvial e 5% por via aérea, fluvial e rodoviária. A maioria dos garimpos (216 de 245) eram do tipo “fechado” e empregavam 15.120 pessoas. Os 29 garimpos restantes eram “abertos” e envolviam 14.500 pessoas. A população dos 18 garimpos que visitamos (10 “abertos” e 8 “fechados”) era dividida em empregados de mineração (75%), prostitutas (9%), proprietários (6%), comerciantes (4,8%) e transportadores (1,2%). Grande parte dos garimpeiros, proprietários e comerciantes na região de estudos veio do Estado do Maranhão. A maioria teve pouca educação e uma pequena experiência de agricultura de corte e queima. Os trabalhadores da mineração distinguem-se dos proprietários e comerciantes em dois aspectos: 1) eram jovens (idade média 23 anos vs. 40-42 dos donos e comerciantes); e 2) geralmente solteiros (70% solteiros vs. 0-10 de solteiros entre proprietários e comerciantes). QUADRO DEMONSTRATIVO SOBRE A PRODUÇÃO AURÍFERA COM MÁQUINAS COM POTÊNCIA BAIXA, MÉDIA E ALTA REALIZADO NA REGIÃO DE TAPAJÓS, NO ESTADO DO PARÁ (1996). Potência Prod.Kg/ano R enda U S$ C usto em U S$ Lucro em U S$ Baixa 2,6 30.000 27.400 2.600 M édia 3,7 43.000 35.400 7.600 Alta 7,20 84.000 55.000 29.000 Fonte: Elaboração própria com base em Bezerra, Veríssimo e Uhl (1996: 12). No estudo, observa-se uma lucratividade crescente, conforme a potencialidade das máquinas, a produção aumenta, enquanto os custos permanecem baixos. Sendo assim, a margem de lucro é de 9% para baixa potência, 17% para média potência e 34% para alta potência (BEZERRA, VERÍSSIMO e UHL, 1996: 12). Estes resultados demonstram uma cadeia de explorados, em que o 71 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI pequeno proprietário das máquinas, a princípio, suga sua força de trabalho, depois a entrega às mãos de grupos organizados, demonstrando, assim, a existência de cadeia na exploração da maisvalia. A força de trabalho, quando tem dinheiro, quase sempre gasta o que tem, “os garimpeiros alugam carros, fecham bares, restaurantes, casas noturnas e se sentiam um pouco donos do mundo” (MARTINS, 1991: 68). Dentro da indústria dos garimpos existe também a indústria do divertimento. Neste cenário, em média, uma típica boate “que emprega 8 prostitutas, teve um lucro superior a US$ 100.000/ano, aproximadamente 8 vezes mais do que o lucro de uma equipe que opera um par-de-máquinas de alta potência” (BEZERRA, VERÍSSIMO e UHL, 1998: 15). Já os comerciantes ficam com lucro médio que varia de US$ 5.000 a US$ 30.000/ano. Cada trabalhador do garimpo “ganha de US$ 2.000 a US$ 6.000 por ano. Em geral, estes ganhos são gastos nos povoados dos garimpos: dois terços gastos em boates com bebidas alcóolicas e prostitutas, 10% com transporte, 7% com saúde, 13% eram enviados para as famílias em outras cidades ou estados e outros 7% correspondiam a gastos com necessidades básicas” (BEZERRA, VERÍSSIMO e U HL , 1998: 17). O processo de trabalho garimpeiro é semelhante ao que ocorre nas fazendas da agropecuária e da indústria do extrativismo florestal. Nestes locais se faz necessário manter os trabalhadores endividados e possibilitar que gastem o que ganham, enquanto os proprietários dos garimpos e comerciantes investem em fazendas de gado, agricultura, mercado financeiro e outros. A grande fatia dos lucros não fica para o pequeno proprietário das máquinas e o garimpeiro, mas com os atravessadores deste mercado e os grandes mineradores, e principalmente com a lavagem de dinheiro através do comércio clandestino. Alguns barões da droga e do ouro, através do tráfico e do contrabando, conseguem acumular grandes fortunas. O mesmo que acontece com o monopólio da terra, também acontece na mineração, pois são grandes complexos capitalistas que objetivam a concentração da renda através da exploração do trabalho. Este fato coloca “a exploração dos recursos minerais em grande escala e configura uma nova fase na expansão da fronteira. Ao lado da busca de ouro nos garimpos, já antiga na região, grandes projetos minerais, controlados por join ventures, empresas estatais e/ou 72 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI estrangeiras, iniciam a nova fase industrial da fronteira nos anos 80” (BECKER, 1996: 62). Assim é com o desenvolvimento da região e a criação do Programa Grande Carajás – PGC. BECKER (1996: 67) destaca que: no final dos anos 70, (...) se configura a estratégia do Estado para a nova fase da fronteira e da indústria da exportação mineral em grande escala. Proposto pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) – a maior exportadora mundial de ferro – e endossado pelo Estado, o ‘Carajazão’ propõe-se a ser o maior projeto de desenvolvimento integrado do mundo. Com a finalidade de demonstrar o poderio mineral desta região, CARUSO e CARUSO (2000: 242) avaliam que: a Amazônia não é apenas um monte de árvores. Para o estrangeiro representa mais do que tudo, um imenso depósito de recursos naturais. Apenas na província metalífera de Carajás, numa área de 600 por 300 quilômetros, encontram-se 18 bilhões de toneladas de ferro, 84 milhões de toneladas de manganês, aproximadamente 164 toneladas de ouro, um bilhão e duzentos e cinqüenta milhões de toneladas de estanho, 87 milhões de toneladas de níquel, oito milhões e meio de toneladas de zinco, um milhão de toneladas de tungstênio. O ferro, mineral típico dos terrenos mais antigos, encontrase com relativa facilidade em todo o mundo e por isso é mais barato. Agora, esse de Carajás, no sul do Pará, possui um teor altíssimo, de mais de 60% de ferro. A Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, a maior concentração mundial de ferro, está localizada no Estado do Pará, na grande Amazônia (BECKER, 1997: 67). Até o final da década de 90 era uma empresa estatal, depois passou às mãos da iniciativa privada. No entanto, a Vale do Rio Doce, “antes mesmo de sua privatização, era a maior exportadora de minério de ferro do mundo” (BIONDI, 1999: 22). Mesmo não se sabendo em profundidade a quantidade de recursos minerais na área, “às vésperas do leilão, foi confirmada a descoberta de imensas jazidas, inclusive de ouro, ainda não devidamente estudadas (‘medidas’) pela empresa e que ficaram fora do preço fixado” (BIONDI, 1999: 28). A empresa foi vendida no processo de privatizações20 do País por 3,13 bilhões de dólares no final da década de 90 do século 73 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI XX, e ficaram 0,7 bilhões de reais em caixa. O grupo comprador obteve “um lucro de 1,25 bilhões de reais em 1999, para um faturamento de 4,4 bilhões de reais” (BIONDI, 2000: 16). No entanto, neste mesmo ano, enquanto a classe média do País pagou 27,5% de Imposto de Renda, o mesmo grupo pagou 0,5%, ou seja, 5 milhões de reais (BIONDI, 2000: 16). Fatos desta natureza denunciam o comprometimento entre o Estado e os grupos organizados na Amazônia brasileira, pois neste local acontece a destruição da natureza acompanhada do roubo e da fraude legalizada. Além do descaso com os brasileiros e de entregar o patrimônio público aos grandes conglomerados nacionais e internacionais, as pesquisas mais apuradas para a descoberta dos minerais estão sendo feitas por satélite e com tecnologia dos países dos centros do capitalismo, ou seja, Estados Unidos, Japão e alguns países da Comunidade Européia. As descobertas e o controle da Amazônia vêm de longas datas. Neste sentido, “entre 1966 e 1970, cerca de 22% das descobertas foram feitas unicamente pelas empresas internacionais ou pelos seus testas-de-ferro. Isto evidencia, de forma clara, a relação entre a integração da Amazônia e a entrega dos recursos aos grandes grupos multinacionais/nacionais/estatais” (OLIVEIRA, 1997: 35). Na Bacia Amazônica “são 12.967 quilômetros de fronteira, ou quase 80% do total de nossa fronteira terrestre, se incluirmos toda a linha divisória com a Bolívia que, na sua parte sul, é platina” (MATTOS, 1980: 123). Assim, para controle, nos últimos anos foi instalada em Sinop, área de nossa pesquisa, uma das bases da Nasa e outra do Sivam, além de outras em vários lugares estratégicos da região. O Sistema de Vigilância da Amazônia foi idealizado pelo governo do presidente Sarney e criado oficialmente no governo do 20 Segundo Gonçalves e Pomar (2000: 26), “de 1991 a 1998 o país teria arrecadado 85 bilhões de reais com privatizações. Cálculos mostram que – mesmo desconsiderando os preços subavaliados e o impacto social negativo – o governo perdeu pelo menos 87 bilhões de reais nas privatizações. Embora tenha produzido um abatimento contábil na dívida interna, a privatização aumentou a dívida externa e o passivo do país. Por exemplo, com empréstimos contraídos no exterior por empresas privadas que compraram estatais. É o caso da Vale do Rio Doce, uma das maiores estatais brasileiras, que depois de privatizada contraiu um empréstimo bilionário nos Estados Unidos para participar da compra da Light, estatal de energia elétrica”. 74 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI presidente Collor. São previstas “18 estações-radar fixas e 6 estações-radar transportáveis e custo total de US$ 1,385 bilhão” (BRIGAGÃO, 1996: 64). No processo de licitação para fiscalizar a região, concorreram as seguintes empresas: a Thomsom da França e a Raytheon dos Estados Unidos. O processo de licitação deixa muitas dúvidas, pois foi considerado obscuro, vindo a motivar protestos e acusações políticas no cenário nacional e internacional. As acusações foram no sentido de apontar fraudes na licitação, que favoreceu a empresa Raytheon, que ganhou a concorrência. O interesse dos Estados Unidos era de conhecimento das autoridades brasileiras, pois “o Presidente Bill Clinton chegou a enviar uma carta a Itamar Franco [Presidente da República] recomendando a escolha da empresa norte-americana. Em julho de 1994, a Raytheon foi declarada vencedora” (BORTONI e MOURA, 2002: 15). Neste sentido “o Le Monde publicou um dossiê, garantindo que a Raytheon venceu a licitação com ajuda dos espiões da CIA” (BRIGAGÃO, 1996: 67). Por outro lado, “o New York Times estampou em manchete em fevereiro de 1995 que a Casa Branca havia pressionado o governo brasileiro a fechar com a Raytheon, após descobrir que concorrente francesa havia pago propina à autoridades brasileiras” (BORTONI e MOURA, 2002: 15). Assim “o contrato assinado com a empresa norte-americana Raytheon para tocar o projeto previa um serviço de 1,4 bilhão de dólares” (BORTONI e MOURA, 2002: 69). Possivelmente, os interesses hegemônicos do centro do capital mundial objetivam o controle da região para si. Assim, a já internacionalizada Amazônia brasileira passa estrategicamente a servir sob o domínio dos estadunidenses, bem como aos interesses do capital mundial. O Sivam21 e a Nasa presentes na região vêm para consolidar o domínio e a submissão do Brasil e de toda a América Latina. 21 Sivam – Sistema de Vigilância da Amazônia (resumo). “1994 – A Raytheon é escolhida, sem licitação, para executar o projeto Sivam. 1995 – A imprensa denuncia, em novembro, a existência de um grampo no telefone do ex-chefe de Cerimonial do Palácio do Planalto, embaixador Júlio César Gomes dos Santos. As conversas que vazaram indicavam uma estreita relação entre o funcionário de confiança da Presidência da República e o representante da Raytheon no Brasil. 1977 – O governo federal assina, em 7 de março, o contrato com a Raytheon para implantação do Sivam. 2001 – A câmara dos Deputados instala em agosto uma CPI para apurar se houve irregularidades no projeto Sivam.” (BORTONI e MOURA, 2002: 70). 75 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Com esta estratégia, o centro do capital mundial passa a determinar de forma técnica os encaminhamentos futuros e as condições da vida dos brasileiros, porém os custos do empreendimento saem dos cofres do Brasil. O projeto Sivam “contará com a mais alta tecnologia, utilizando o sensoriamento remoto de última geração, com imagens fornecidas por satélites e dados por radares, além de um completo sistema integrado de telecomunicações” (BRIGAGÃO, 1996: 45). A história de ocupação da Amazônia denuncia a entrega do patrimônio nacional aos grupos estrangeiros e agora o controle das informações, principalmente sobre descobertas minerais. O fato da dominação pode ser visto nas diferentes fases da produção e da influência dos capitalistas na região, através dos diferentes produtos para servir ao comércio mundial. Os estudos sobre a região, coordenados pelos estadunidenses, nos transmitem a sensação de embrulho, de controle e principalmente de seqüestro das riquezas naturais ali abundantes. Possivelmente, tudo isto pode vir acompanhado da perda da soberania nacional da Amazônia e da concretização da entrega total da região ao capital concentrador. Estes grupos objetivam o lucro de qualquer forma, mesmo que este proporcione a miséria para os demais povos e a destruição dos ecossistemas, vindo a agravar-se em proporções cada vez maiores. Além disso, a região está sendo monitorada por altas tecnologias e satélites para o controle do espaço amazônico, realizando as estratégias militares econômicas e políticas do centro do capital mundial, bem como a submissão e a obediência aos países dependentes para efetivar a dominação. Para atingir estes objetivos, a lógica sistêmica não respeita o meio ambiente, a soberania nacional e muito menos os homens da floresta, além de facilitar a interferência na soberania dos demais países da América Latina. A expropriação dos recursos minerais da região amazônica continua sendo grande meta do capital mundial. A região amazônica é considerada rica em produtos minerais, como: ferro, manganês, cassiterita, ouro, cromo, níquel, cobalto, urânio, cobre, chumbo, titânio, prata, diamante, sal-gema, calcário, caulim, carvão, tório, bauxita, alumínio, gás e outros. Além destes minerais, foi encontrada na foz do rio Amazonas uma promissora região petrolífera (FERREIRA, 1980: 157). O controle das pesquisas está nas mãos dos países 76 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI exploradores de nossas riquezas naturais. Além disso, o Ministério das Minas e Energia não possui técnicas, muito menos pessoal preparado, que consiga acompanhar as descobertas estrangeiras na região. Enquanto isso, acontece uma verdadeira destruição da natureza, também deixando profundas conseqüências sociais na região, tudo em nome do lucro e da expansão do capital nacional e internacional. Neste sentido, a presença dos grupos estrangeiros na Amazônia é real, pois “o maior grupo estrangeiro instalado na região amazônica, a British Petroleum, detém, em concessões, área equivalente a Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina, 13% do subsolo da Amazônia” (VASCONCELLOS e VIDAL, 2001: 20-21). Na virada do milênio, o garimpo artesanal praticamente deixou de existir. Os trabalhadores das áreas auríferas tiveram que se deslocar para outras regiões de frentes de trabalho, ou formaram o exército industrial de reserva nas cidades planejadas da região. Assim, “após a corrida pelo ouro e a falência das minas, parte dessa mão-de-obra ficou desempregada e hoje encontra-se disponível em qualquer cidade da Amazônia” (PROCÓPIO, 1999: 159). Exemplos desta natureza na região, podem ser vistos em Sinop, “o bairro Jardim Boa Esperança (fusão de outros três bairros) é um verdadeiro ‘peixotinho’, formado por pessoas que fugiram da crise do ouro no extremo norte de Mato Grosso e vieram em busca de melhores condições de vida para suas famílias” (SOUZA, 2001: 172). “Nestes bairros periféricos de Sinop vivem o nordestino e o sulista ‘fracassado’, que são prestadores de serviços, única alternativa para manter-se no sistema social e econômico” (SOUZA, 2001: 224). Estes não encontrando trabalho, passam a ingressar nas fileiras do MST, por meio da organização em busca da terra. Fato que vem se verificando com muita freqüência e intensidade em Sinop e região. Mais uma vez não foi possível alcançar o “mel”, mas o cobiçado produto está sendo visto em todas as partes da Amazônia. Quem não o encontra em um lugar, pode procurá-lo em outro, basta persistir na busca e não desanimar nesta procura. Este produto sagrado, é possível que seja disponibilizado a todos, e nesta lógica pode estar à disposição também dos despossuídos e marginalizados. Aqueles que insistirem na sua procura podem 77 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI encontrá-lo. Hoje, as alternativas da busca se esvaziam, que outra possibilidade restou aos excluídos além de engrossarem as fileiras do MST? Assim a luta continua e a vida tenta seguir... ***** 78 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI A devastação ambiental na expansão capitalista Na Amazônia brasileira existe uma relação muito grande entre os seres vivos e o meio ambiente. Com a chegada dos “civilizados” na região, “devastam as terras, matam os animais, envenenam os rios e os mares, e os homens caminham para o fim destruindo tudo na natureza, em pleno século XX, à luz da ciência” (ESPÍRITO SANTO, 1956: 195). A partir da interferência na região, o homem passa a alterá-la através dos movimentos naturais ali existentes, modificando os ecossistemas. Segundo SACHS (2002: 32), “conservação e aproveitamento racional da natureza devem andar juntos”. Para THOMAS-HOPE (2001:87), o papel dos fatores ambientais no comportamento humano deve brindar as causas do desenvolvimento, bem como as estratégias de subsistência dos homens. Por outro lado, as mudanças nos últimos anos são rápidas e muitas vezes irreversíveis ao meio ambiente. Isto se torna possível pelo fato de o homem interferir de modo predatório nos diferentes ecossistemas da região. Neste sentido, em nome da segurança nacional, principalmente na década de 70 do último século, os projetos desenvolvidos pelos militares na Amazônia, tornaram-se mais velozes e agressivos à biosfera. Através do “binômio Segurança e Desenvolvimento, como projeção de Poder Nacional no mundo e a necessidade de integração nacional” (S ABATINI , 1998: 56), a Amazônia foi sendo devastada e internacionalizada. Assim, a ditadura “não resultou apenas em crise econômica, mas também em uma tempestade conjunta de desastres ambientais” (DEAN, 2000: 307). Por outro lado, podemos contribuir para o desenvolvimento do ambiente ecológico, através da “consciência de que não existe separação entre mente e corpo, o homem e a natureza” (SHIVA, 2001: 90). Dessa forma, “o desaparecimento de uma espécie está relacionado com a extinção de inúmeras outras, as quais ela se liga ecologicamente nas teias e cadeias alimentares” (SHIVA, 2001: 92). A biodiversidade é “um recurso e propriedade comunitária quando existem sistemas sociais que o utilizam segundo princípios de justiça e sustentabilidade” (SHIVA, 2001: 92). 79 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Nesta perspectiva, a natureza “deve ser vista em seu conjunto como a ‘herança da humanidade’ que precisa ser mantida e manejada para garantir a qualidade de vida para hoje e para o futuro” (GONÇALVES e POMAR, 2000: 30). Através da modernização do sistema produtivo da grande região amazônica, “o Brasil e outros países tropicais têm todas as condições de se tornarem exportadores da sustentabilidade, transformando o desafio ambiental em uma oportunidade” (SACHS, 2002: 42). Com esta nova forma de compreensão da natureza, “a conservação da biodiversidade deve estar em harmonia com as necessidades dos povos do ecossistema” (SACHS, 2002: 53). A humanidade deve voltarse de forma sistemática ao “aproveitamento racional e ecologicamente sustentável da natureza em benefício das populações locais” (SACHS, 2002: 53). Não é o que aconteceu na Amazônia até hoje, pois em todo o processo de colonização da região entre o Estado e o capital, em nenhum momento preocuparam-se em utilizar os recursos naturais de forma sustentável. Esta também é a difícil situação dos países do Terceiro Mundo, mas principalmente das comunidades mais afastadas, que estão sendo agredidas e exterminadas juntamente com os ecossistemas que orientam e determinam suas vidas. Para S TIGLITZ (2002: 273), “a pobreza pode levar à degradação ambiental, e a degradação ambiental pode contribuir com a pobreza”. Isto pode ser visto através dos nativos; além de preservarem o meio ambiente onde vivem, são detentores de vasto conhecimento popular. Conhecimento este que está sendo pirateado pelos interesses de grupos econômicos farmacêuticos. Em nome da expansão capitalista na região, acontece não só a destruição do meio ambiente onde está o homem inserido, mas do conhecimento agregado de centenas de anos. SHIVA (2001: 101) adverte que: dos 120 princípios ativos atualmente isolados de plantas superiores, e largamente utilizadas na medicina moderna, 75% têm utilidades que foram identificadas pelos sistemas tradicionais. Menos de doze são sintetizados por modificações químicas simples; o resto é extraído diretamente de plantas e depois purificado. Diz-se que o uso do conhecimento tradicional aumenta a eficiência de reconhecer as propriedades medicinais de plantas em mais de 400%. 80 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI O imediatismo e a falta de respeito com o homem e a natureza passam a destruir as possibilidades de avanços na descoberta de remédios, pois estamos perdendo a oportunidade de novas invenções no tratamento de doenças. Por outro lado, os grupos econômicos que atuam no ramo de medicamentos se aproveitam do conhecimento já adquirido ao longo dos tempos. Para eles, “o conceito de agregar valor por meio da bioprospecção esconde a remoção e destruição do valor de plantas e conhecimento dos nativos” (SHIVA, 2001: 100). Utilizando-se do poder capitalista, que é inerente a todo o processo de acumulação de capitais, os grupos organizados se beneficiam da natureza, bem como do conhecimento sobre ela, na Amazônia. Além de destruir o conhecimento existente ou detê-lo para si, têm à disposição leis protecionistas. Assim, “as patentes, em última análise, são sistemas de proteção para o investimento de capital sem habilidade de controlar o capital. Como tal, não protegem nem povos nem sistemas de conhecimento” (SHIVA, 2001: 106). Podemos identificar alguns dos produtos amazônicos já patenteados no exterior. É o caso da erva espinheira-santa, pelo laboratório Mektron japonês, com indicações antiinflamatórias; a erva quebra-pedra, pela Fax-Chase Cancer Center, Filadélfia, nos Estados Unidos, indicada contra a hepatite B; a erva mirapuama, como afrodisíaco, pela Taisho Pharmaceutical, do Japão; o guaraná, pelos Estados Unidos, cujo o extrato das sementes é usado em coágulos, pela empresa Ciencinnati University; a erva sangue-depedra, pelos Estados Unidos, com indicações antivirais e contra diarréias em doentes aidéticos, pela empresa Shaman Pharmaceuticals, e outros produtos da região (HOMMA, 1999: 95). Para SHOUMATOFF (1990: 21-22), “75 por cento dos remédios nas prateleiras das farmácias contêm produtos da floresta tropical, mas apenas 1 por cento das plantas nas florestas tropicais foi analisada para obter o potencial medicinal”. Neste sentido, “a questão da patenteabilidade da vida não se relaciona apenas com o comércio: é, principalmente, uma questão ética e ecológica intimamente ligada à injustiça social da biopirataria” (SHIVA, 2001: 112). Entendemos que a diversidade amazônica se apóia na sustentabilidade, mas esta deve estar a serviço dos povos da floresta. Hoje, “a engenharia genética, ao mesmo tempo que age predatoriamente sobre a diversidade biológica do mundo, 81 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI ameaça agravar a crise ecológica pela expansão das monoculturas e dos monopólios” (SHIVA, 2001: 113). Assim, os impactos ambientais e sociais nos países de Terceiro Mundo são mais acentuados, pois a população das regiões mais pobres é culturalmente mais dependente da diversidade biológica. A pirataria na região é histórica e a saída de material genético do Brasil acontece há muito tempo. Segundo HOMMA (1999: 97), em 1746, o primeiro recurso genético importante transferido foi o cacau, mas o mais importante produto da Amazônia pirateado foram as sementes de seringueiras em 1876, o que muda o eixo da história da região, além de outros produtos com menor importância econômica. Além disso, os países do Primeiro Mundo usam os territórios dos países pobres para colocar em prática experimentos, tais como: uso de pesticidas, fungicidas, inseticidas, produtos transgênicos e armas de guerra, além de praticar a pirataria generalizada, vindo a comprometer os povos nativos e os ecossistemas. A expansão capitalista se sustenta na exploração da força de trabalho, e via de regra se apóia em práticas de monoculturas e destruição do meio ambiente. SHIVA (2001: 127-28) nos diz: as monoculturas estão sempre associadas à violência política – o uso da coerção, do controle e da centralização. Sem controle centralizado e forças coercitivas, este mundo tão rico em diversidade não pode ser transformado em estruturas homogêneas e as monoculturas não podem ser mantidas. As comunidades e os ecossistemas organizados e descentralizados geram diversidade. A globalização gera monoculturas controladas pela coerção. As monoculturas também estão associadas à violência ecológica – uma declaração de guerra contra as diversas espécies em extinção, mas também controla e mantém as próprias monoculturas. Monoculturas não sustentáveis são vulneráveis ao colapso ecológico. As populações do Terceiro Mundo, “da Ásia, África, e da América Latina são os últimos ‘steps’ (degraus) dos testes para liberação de agrotóxicos nos países desenvolvidos” (PINHEIRO et al., 1998: 129). Além de servir de cobaia para experimentos científicos, para o estudo de herbicidas, fungicidas e todo o tipo de produtos tóxicos, a Amazônia é também vítima da sua utilização. Na região, no período pós-guerra do Vietnã, o Tordon, como agente branco e laranja, foi amplamente utilizado. 82 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI É o que aconteceu na construção da barragem de Tucuruí no Pará, pela então empresa estatal Eletronorte. Depois de várias denúncias, as equipes responsáveis pela investigação “haviam concluído seu trabalho, completando o levantamento da área. Pareciam os números de uma guerra: 48 mortes; 50 abortos; mais de 300 cães mortos; mais de 12 mil aves de terreiro mortas. Por toda parte encontrava-se efeitos fitotóxicos dos desfolhantes” (PINHEIRO et al., 1998: 72). Como é sabido, no período da ditadura as informações somente eram veiculadas quando de interesse do Estado. Os experimentos e a utilização dos produtos agrotóxicos faziam parte dos projetos internacionais para a região, conseqüentemente, o governo da ditadura os apoiava. No caso brasileiro, “as estruturas de governo foram transformadas em cartórios para proteger graciosamente os interesses das indústrias multinacionais” (PINHEIRO et al., 1998: 140). No entanto, passava-se à nação que a aplicação de agrotóxicos trazia benefícios aos habitantes. Eram comuns frases como as citadas na revista Senhor (semanal) de 29/5/85, citado por PINHEIRO (1998: 146). “Defensivo. Uma ajuda no combate à fome”. Era preciso condicionar a população através da mídia a serviço do capital internacional e a mentira era dita com tom de verdade. Hoje, os agrotóxicos continuam amplamente utilizados em todo o Brasil e em países que compõem a Amazônia Legal. Recentemente, “na Bolívia, no Peru e na Colômbia, aviões militares dos Estados Unidos da América invadiram o espaço territorial desses países para despejar nas plantações de coca o ‘spike’, um químico semelhante ao agente laranja empregado na guerra contra o Vietnã” (PROCÓPIO, 1999: 93). A preocupação agora é criar plantas e produtos transgênicos para suportar a ação dos herbicidas, assim os organismos geneticamente alterados suportam sua ação. Na engenharia genética e no uso do “transgênico não se observa ganhos de produtividade; o que existe é uma economia de mão-de-obra e um maior controle de pragas” (C ÂNDIDO et al., 1999: 10), e como conseqüência, maior lucratividade. Se os produtos geneticamente modificados fazem mal à saúde ou não, pouco muda, o que importa é que as indústrias multinacionais consigam produzir um pacote completo para a agricultura. Este deve conter a semente geneticamente modificada de forma híbrida, acompanhado de herbicidas, fungicidas e outros 83 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI componentes que sejam de interesse dos grupos multinacionais, tornando o produtor dependente destes produtos de forma casada. Neste sentido, os grupos organizados “querem fazer de nós, brasileiros, cobaias desses experimentos” (CÂNDIDO et al., 1999: 22). Porém, faz-se necessário questionar como estão se desenvolvendo as experiências com a soja na Amazônia, pois o Brasil é o segundo maior produtor do mundo. Também questiona-se como é possível abater de forma extensiva o gado bovino em idade precoce nesta região. A Amazônia é um laboratório vivo e torna-se mais interessante quando os experimentos podem acontecer sem limites. É desta forma que a região foi e é muito importante para o modelo capitalista mundial, pois não se faz necessário respeitar o homem e o meio ambiente. Este é um território livre, podendo ir da acumulação de capitais aos experimentos científicos, inclusive para serem utilizados em guerras. Esta estratégia faz parte do poder militar e capitalista mundial, colocado a serviço da concentração econômica do mundo e da região. A transgenia na agricultura aprofunda o modelo de concentração de renda, “concentra o controle tecnológico, concentra o poder, maximiza o uso da química ao mesmo tempo que maximiza os riscos ao meio ambiente e à saúde de agricultores e consumidores” (GÖRGEM, 2000: 35). Nesta perspectiva, a expansão originária na última fronteira é motivada a degradar a região, modifica os ecossistemas, polui e envenena os rios, vindo a modificar toda formação integrada do meio ambiente. O modelo capitalista imposto ao mundo moderno, que está fundado no “lucro e na produção de mercadorias, tem sido responsável pela maioria dos problemas sócio-ambientais” (PIAIA, 1999: 198). Na Amazônia, o modelo expansionista dos tempos modernos fundamenta-se na destruição da natureza e na finalidade de obter lucro sem limitações. No que diz respeito às queimadas, só no Estado de Mato Grosso, a Fundação Nacional do Meio Ambiente – Fema, “identificou em 1995, a presença de 46.851 focos; em 1997, foram 23.594 focos e, em 1998, foram registrados 32.812 focos de incêndios” (PIAIA, 1999: 201). As queimadas acontecem no período da seca, principalmente nos meses de julho a setembro. O órgão responsável para controlar os abusos das queimadas indiscriminadas no Estado mato-grossense “conta atualmente [1999] com 141 funcionários lotados na 84 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Superintendência em 18 escritórios no interior do Estado” (PIAIA, 1999: 204). O número de funcionários disponíveis não reflete a necessidade, pois somente o Estado do Mato Grosso possui uma área de 906.806,90 km². O Estado não coloca mais pessoal técnico para fiscalizar, por ser conivente com o processo destrutivo, protegendo os grupos econômicos. O Ibama “tem hoje [2000] menos de 200 homens nessa função na Amazônia” (SCHWARTZ, 2000: 71). Além de serem poucos os funcionários, muitos destes são vulneráveis à corrupção, e se alguém quiser ser 100% correto em favor da aplicabilidade das leis, corre o risco de ser impossibilitado de atuar ou ser retirado da função. Através do Estado, seus órgãos com o ofício de orientar e coibir abusos ambientais e humanos na região, nos deixam dúvidas na aplicabilidade desses objetivos. Eles nos passam a sensação de impotentes e incapazes pelos resultados obtidos, bem como nos transmitem insegurança e comprometimento pelas formas de degradação do homem e do meio ambiente produzidos na Amazônia. Em regra geral, o Estado e seus órgãos, mesmo atuando de forma pouco convincente, se sustentam em dois princípios básicos. O primeiro, uma atuação medíocre e com poucos resultados pela impotência e amarras na sua atuação, vindo a sustentar-se na omissão e na conivência, atuando com resultados que revelam a impunidade e os favorecimentos de forma generalizada. O segundo concretiza a tese dita por Marx e Engels: o Estado só existe em função da propriedade privada e, assim, os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses através dos órgãos estatais comprometidos com eles. O que nos faz chegar a esta conclusão são as formas de atuação dos órgãos encarregados em orientar e frear os abusos ali existentes, tanto no processo produtivo, como com o tratamento dado ao meio ambiente. Assim, os grupos econômicos, representados por grandes latifúndios, através dos projetos agropecuários, madeireiros e mineradores, têm um papel fundamental no desequilíbrio ecológico e as táticas de exploração da força de trabalho na região. A maioria desses grandes projetos está usufruindo do dinheiro público através dos incentivos fiscais, e alguns deles atuam de forma fraudulenta, devastando a natureza apenas para receber os benefícios. Contudo, “os desmatamentos e as queimadas já demonstram reflexos diretos no clima, na vegetação, na fauna 85 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI restante, nos solos, no ar e na conseqüente piora da qualidade de vida da população” (KOWARICK, 1995: 210). Através das queimadas, que retiram a cobertura vegetal, se deixa o solo exposto a altas temperaturas, ao impacto das chuvas, e se desagrega a estrutura do solo, levando à erosão (KOWARICK, 1995: 215). Neste sentido, “muitas das causas de destruição são amplamente conhecidas, tais como: incentivos falhos a investidores ou também uma política de colonização anti-social”. (HAGEMANN, 1996: 173). Por outro lado, “grandes empresas poluidoras não hesitam, inclusive, em contratar financiamentos com ONGs preservacionistas para acobertarem os desastres ecológicos por sua insustentável maneira de agir” (LEONELLI, 2000: 45). Segundo HOMMA (1999: 106), na Amazônia legal, cerca de 55 milhões de hectares já foram desmatados, equivalente à soma dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A proteção desse patrimônio genético inclui o desenvolvimento de políticas apropriadas para frear esse desmatamento, voltando para a fronteira interna já conquistada. Apesar dessa imensa área desmatada, com grandes custos ambientais e destruição da biodiversidade, há o contraste da ampliação do apartheid urbano e rural, sem alternativa de emprego e renda. A Amazônia representa uma riqueza sem igual, no que diz respeito aos recursos naturais. É fantástica. Riquíssima em recursos hídricos, flora, fauna e minerais, mas “só 3,63% dos solos têm alta fertilidade (...) 69,51% são considerados solos de baixa fertilidade e ácidos (...) 16,06% são solos chamados Hidromórficos (...) 6,94% são solos chamados Halomórficos” (KOWARICK, 1995: 80). Segundo dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, “83% de suas áreas são imprestáveis para a agricultura e pecuária” (SCHWARTZ, 2000: 70). Mesmo assim, com sua fragilidade “e pobreza de praticamente todos os solos tem sido recentemente tratada como se fosse tão estável quanto a ‘terra roxa’ do sudeste” (DEAN, 2000: 380) e do Sul brasileiros. A floresta nativa da Amazônia, com interferência do homem, não consegue se restabelecer, pois ela perde a capacidade de sustentar-se. Segundo SIOLI (1991: 60), 86 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI uma conclusão que se impõe é que a floresta cresce, de fato, apenas sobre o solo, e não do solo, utilizando-se deste apenas para sua fixação mecânica e não como fonte de nutrientes. A floresta se protege das perdas de nutrientes por meio de verdadeiros estratagemas, que possibilitam ao seu ecossistema, extremamente diversificado em espécies e, por isso, multiestratificado, uma utilização ótima e máxima das quantidades limitadas de nutrientes em circulação através da cadeia de organismos que compõem este ecossistema florestal. Estas quantidades de nutrientes não têm possibilidade de ser renovadas ou complementadas por eventuais reservas no solo. Concordamos com os dados sobre a fertilidade do solo, mas isto não quer dizer que não é conveniente à colonização e aos projetos capitalistas implantados na região. Estas terras, quando feita a correção do solo através de insumos agrícolas, produzem até mais que em outras áreas produtoras do País, devido à abundância de chuvas no período do plantio e crescimento e do clima quente o ano inteiro. A terra, mesmo não sendo muito fértil, também se torna lucrativa para criação de gado extensivo. Além disso, o capital pode usufruir de três benefícios extras: incentivos fiscais oferecidos pelo Estado; grandes áreas a preços baixos e força de trabalho à sua disposição para extrair mais-valia de forma absoluta e relativa, tendo inclusive, o exército industrial de reserva à disposição, de forma latente e em potencial. Dentro desta perspectiva, o capital consegue ter lucro até mesmo criando gado de forma extensiva, mas principalmente plantando soja para os cavalos dos Estados Unidos e da Inglaterra. No caso do setor de transformação de madeira, é contemplado com “florestas que ocupam quase 68% da área, um total de 60.870.000 ha compõem cerca de 14 formações diferentes, que variam em densidade, altura e espécies vegetais” (KOWARICK, 1995: 83). As matas mais exuberantes “podem atingir mais de 50 metros e são densas e formadas por árvores grossas, representam cerca de 30% do total. As demais formações florestais, com árvores de menor porte, variam entre 15 a 20 metros e representam 38%” (KOWARICK, 1995: 83). Neste processo, as madeireiras vão na frente, e os agropecuaristas chegam depois. A grande destruição das florestas pelas madeireiras é pelo aproveitamento econômico das árvores, pois os grandes projetos para a região são os agropecuários. 87 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Estes grupos, através da utilização da força de trabalho e motosserras, cortam todos os dias grandes quantidades de madeiras como: cedro, mogno, sucupira, maçaranduba, castanheira, seringueira etc. Após a retirada das árvores nobres, passam as motosserras no restante e queimam para facilitar o uso do espaço para a agropecuária. Os capitalistas nacionais e internacionais que exploram a região, apresentam-se com o firme propósito de extrair da natureza a maior quantidade de lucro, mesmo que seja necessário degradar o meio ambiente, pois o objetivo maior é a expansão para a acumulação. PROCÓPIO (1981: 152) nos revela como é efetuada a degradação na retirada da cobertura natural, antes das queimadas: os tratores contribuem para a mudança de fisionomia. Nas matas de médio porte, os peões utilizam uma grossa corrente presa a dois tratores, que rodam paralelamente e põem abaixo árvores, arbustos e toda a forma vegetal. A motosserra é a mais recente invenção da técnica de derrubar árvores; no Projeto Jari, entre o Pará e o Amapá, os peões manobram quase exclusivamente essa máquina perigosa, que tem provocado muitos acidentes fatais. Já os herbicidas e os desfolhantes são de uso mais simples, lança-se essa arma bioquímica na área desejada e, em pouco tempo, as folhas caem das copas, os caules perdem o viço e os velhos lenhos nobres passam a lembrar aquelas árvores esgalhadas e secas que serviram de moldura às cenas de retaliação na guerra do Vietnã, onde esses desfolhantes foram empregados para revelar os esconderijos dos guerrilheiros vietcongs. Os desfolhantes são lançados de avião e em pouco tempo a árvore perde seu viço, suas folhas e morre. Com toda esta infra-estrutura à disposição dos capitalistas, é consumida uma boa quantidade de áreas da Amazônia a cada ano. Para as populações nativas que se alimentam de peixes, de aves, de animais, de frutos silvestres, do extrativismo e dos produtos da agricultura de subsistência, isso poderá, em futuro próximo, ser uma tragédia irreparável. Com o adiantado processo das queimadas, do envenenamento das águas dos rios e a poluição do ar, ocorre prejuízo também na reprodução das espécies. Os rios sofrem agressão pelos garimpos, com o uso indiscriminado de mercúrio, bem como pelas empresas agropecuárias com o uso de pesticidas, fungicidas, desfolhantes e outras formas que poluem os mananciais d’água. Desta maneira, 88 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI prejudicam o período da desova dos peixes na piracema22 e a reprodução dos animais silvestres. O ciclo da vida é proporcionado pela abundância das águas, também pela floresta amazônica extensa, cujas árvores exuberantes permanecem verdes em todas as estações do ano, abrangendo assim um número significativo de ecossistemas, tanto no que se refere aos aquáticos como aos terrestres, vindo a tornar-se vulnerável como potencial23 . A floresta tropical faz parte da solução dos problemas com o meio ambiente, é uma alternativa econômica e pode ser usada para minimizar os problemas sociais do Brasil. Além disso, proporcionado pelo clima favorável, com capacidade sem igual no mundo, “o sol batendo no solo do Brasil equivale por dia à energia gerada em 24 horas por 320.000 usinas hidroelétricas de Itaipu24 , a maior do mundo” (VASCONCELOS e VIDAL, 1998: 20). Neste sentido, a floresta pode ser a alternativa energética para a humanidade. O petróleo, recurso mineral não renovável, está se exaurindo, e a biomassa amazônica pode ser a solução dos problemas energéticos. O problema é que “a superestrutura 22 “Durante o período da piracema, entre novembro e janeiro, os cardumes dirigem-se às cabeceiras dos rios para a reprodução. Os peixes desovam em águas calmas. Seus ovos, fecundados, desenvolvem-se nos alagados marginais, onde se transformarão em dezenas de milhares de alevinos, que, por sua vez, vão se alimentar de microorganismos e da vegetação aquática. Quando as águas começam a baixar, os alevinos já são peixes que voltam aos rios, reiniciando seu ciclo vital. O problema são os rios envenenados, assoreados e com níveis reduzidos de oxigênio que impossibilitam ou diminuem as chances de que esse ciclo seja cumprido satisfatoriamente. Na prática cardumes inteiros morrem antes de conseguir atingir as cabeceiras dos rios. As aves aquáticas também sofrem, obviamente, com a morte ou a doença dos rios. Seu ciclo reprodutivo começa no final de setembro, coincidindo com o início da primavera, e depende da existência de alimentos nos alagados que se formam com a baixa das águas.” (ABREX JR. e OLIC,1996: 58). 23 “A floresta domina, mas tem feições diversas, distinguindo-se dois grandes grupos de cobertura vegetal: (a) vegetação de terras inundáveis (5 a 10% da Amazônia), compreendendo as matas de várzea, de igapó e das áreas litorâneas, e os campos de várzea; (b) vegetação de terra firme, predominando a mata alta que com as matas de cipó, bambu e mata seca formam 80% da área total da região amazônica, além de incluir campos e cerrados, enclaves dentro da floresta densa ou áreas de transição em seu entorno, mais expressivos em Roraima e Marajó. A hiléia se estende sobre uma área de pelo menos 4.500.000 km² e abriga cerca de 1.500.000 a 2.000.000 de espécies vegetais e minerais, das quais foram até agora classificadas no máximo 500.000, o que traduz sua enorme riqueza e potencial em recursos genéticos. Para uns, metade das espécies animais do planeta estariam na Amazônia; para outros, as plantas medicinais são estimadas em 4.000, mas o seu número pode ser muito maior.” (BECKER, 1987: 84). 89 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI cultural da gasolina, movida a dólar, não admite a não ser petróleo como fonte de energia” (VASCONCELLOS e V IDAL , 1998: 48). No entanto, a “biomassa afigura-se como uma alternativa energética, uma opção tecnológica e um modelo econômico e político de desenvolvimento” (VASCONCELLOS e VIDAL, 1998: 53). Esta alternativa tem origem nos recursos naturais renováveis, porém o petróleo assegura o não desmoronamento do dólar. Para assegurar a hegemonia capitalista através do petróleo, é necessária a ocupação de 70% das regiões produtoras do planeta por forças militares norte-americanas, mesmo o sonho do petróleo estando próximo ao seu fim, (VASCONCELLOS e VIDAL, 1998: 54). Nesta tática, “os Estados Unidos arvoram-se nos papéis de promotor público, juiz e júri” (STIGLITZ, 2002: 95). Assim, “é difícil entender as guerras contemporâneas sem ligá-las à questão do petróleo” (VASCONCELOS e VIDAL: 2001: 17). Com a biomassa25 como alternativa, podemos “solucionar os problemas contemporâneos: o energético e o ecológico. A única maneira de preservar a floresta em pé, renovando-a, é dar-lhe valor econômico [e socializar em forma de benefícios à população]. Sem isso, queimam a floresta, até para criar gado extensivo, de baixíssima rentabilidade”. (VASCONCELLOS e VIDAL, 1998: 290). Dentro desta perspectiva “1 metro cúbico de madeira com 20% de umidade equivale a um barril de petróleo” (VASCONCELOS e VIDAL, 1998: 290). Não concordamos com esta tese em sua plenitude, pois, se for para concentrar os recursos da biomassa amazônica nas mãos 24 A Usina Binacional de Itaipu faz parte do projeto entre o Brasil e o Paraguai, criado em 26 de abril de 1973. Esta usina se sustenta através dos recursos hídricos do rio Paraná. Fica a aproximadamente 14 quilômetros da ponte da Amizade na divisa dos dois países. Seu reservatório inundou uma área de 1.400 quilômetros quadrados, sendo 800 no lado brasileiro e 600 no paraguaio, e os custos foram divididos entre os dois países parceiros. É considerada a maior usina hidrelétrica do mundo, com 14 unidades de força, cada uma gerando 765 megawatts. A inauguração desta hidrelétrica ocorreu em 1983 (SANDRONI, 1994: 178). 25 Biomassa – “Total de matéria orgânica contida em determinado espaço, incluindo todos os animais e vegetais. Para a economia, interessa a biomassa que possa ser utilizada como matéria-prima, especialmente na produção de energia. Com a crise do petróleo em 1973, intensificou-se a pesquisa de novas fontes energéticas de exploração imediata. Do estudo da biomassa surgiram, por exemplo, projetos para a produção de combustível como etanol, o metanol (a partir da cana-de-açúcar, mandioca, madeira etc.) e gás metano (por industrialização de detritos orgânicos). No Brasil destaca-se o plano Pro-álcool, de produção de combustíveis para veículos.” (SANDRONI, 1994: 28). 90 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI da sociedade capitalista, o problema social dos marginalizados e despossuídos continuará da mesma forma. Esta preocupação se fundamenta no fato de que na região, as terras já se concentram com os grupos capitalistas. No entanto, da forma como está a questão da terra podemos obter algumas melhorias ambientais, e assim atribuir valor econômico à floresta, mas isso continuará excluindo o posseiro, o colono e os povos originários, como também continuará sem ganhos para a população, para minimizar as diferenças sociais. Neste sentido, na Amazônia as minorias sempre privilegiadas ficam com os benefícios, e as maiorias despossuídas e marginalizadas ficam sem participar deles. Nesta perspectiva, os grandes grupos nacionais, e principalmente, os internacionais, se estabelecem na Amazônia brasileira para expandir seus negócios e acumular propriedades, devastam grandes áreas florestais de forma irreversível ao meio ambiente. Por outro lado, os países centrais asseguram a hegemonia mundial do petróleo, às custas de forças militares, como forma de assegurar a ditadura financeira que propaga ao mundo e concentra o poder das comunicações, para desviar a opinião pública do planeta. Além de dominar o mundo com poder militar e destruir o meio ambiente, fazem dos países pobres a extensão de seus negócios para acumular capitais. VASCONCELLOS e VIDAL (1998: 303) nos dizem: o jogo geopolítico estabelecido por potências hegemônicas e ONGs mantidas por poderosos grupos de financistas e especuladores internacionais está transformando a questão ecológica em novo instrumento colonial de dominação. Jogam com a opinião pública internacional com o objetivo de criar um clima que justifique a intervenção militar externa, com o apoio dessa mesma opinião manipulada, como correu nos massacres “cirúrgicos” sobre o povo do Iraque, na última Guerra do Golfo. A relação entre a devastação da Amazônia e a entrada do capital internacional na região pode ser vista pelo alto grau de devastação, visto principalmente após o início da ditadura em 1964, dado o alto grau de interferência dos grupos econômicos na região. Neste sentido, de 1500 “até o final da década de 70 [do século XX], apenas 4% de toda a Amazônia havia sido devastada” (SCHWARTZ, 2000: 66). Em nossos dias, a área devastada atinge entre 12 a 91 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI 20% da Amazônia. Aproximando os dados, “cerca de 14% da cobertura original da floresta Amazônica perdeu-se para virar pasto” (VEJA, 2000: 69). Segundo o GREENPEACE, (2001: 1), “nos últimos 30 anos 15% da Amazônia brasileira foi completamente destruída”. O tamanho da Amazônia é superior ao da área da Europa Ocidental, mas pode num futuro próximo ser destruída. Os dados apresentados nos fazem deduzir que aproximadamente 14 ou 15% da cobertura florestal foi destruída até 2002, e este é um índice pequeno de devastação pelo tamanho da região. Por outro lado, fazendo uma projeção futura, o pesquisador William Laurance, do Smithsonian Tropical Research Institute, citado por VIANA (2001: 287) diz que: “até 42% da floresta Amazônica brasileira pode estar dizimada por volta de 2020, restando apenas 28% intocados; no pior cenário restariam menos de 5% da floresta intocados”. Em um levantamento, o Fundo Mundial para a Natureza, “uma das maiores organizações ecológicas do mundo, concluiu que dos quase 600.000 quilômetros quadrados já desmatados na Amazônia, 180.000 quilômetros quadrados estão abandonados” (VEJA, 2000: 69). Isto comprova que muitos projetos econômicos realizados nos últimos anos nasceram com o objetivo de desviar recursos da nação através dos incentivos recebidos. Uma das condições para conseguir as parcelas de recursos por parte do governo está condicionada com a apresentação das áreas abertas e os projetos em pleno desenvolvimento. O problema hoje tem outras proporções e conseqüências. Segundo WALLERSTEIN (2000: 247), enquanto existiam outras florestas, ou zonas ainda não utilizadas, e portanto não poluídas, o mundo e os capitalistas podiam ignorar as conseqüências. Mas hoje estas atingem os limites da exteriorização dos custos. Não restam muitas florestas. Os efeitos negativos da poluição excessivamente acelerada na terra implicam impactos graves e múltiplos, dos quais temos conhecimento através de cientistas esclarecidos. Por isso surgiram movimentos “verdes”. Do ponto de vista global, há apenas duas soluções: fazer com que os capitalistas paguem os custos e/ou aumentar os impostos. Mas a última é pouco provável, dada a tendência a reduzir o papel dos Estados. E a primeira implica uma considerável redução nos lucros dos capitalistas. 92 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Da forma como se efetiva a degradação ambiental na região, não podemos nos iludir que algum capitalista venha a fazer algo para evitar uma catástrofe ambiental na Amazônia, ou seguir as orientações da Constituição Federal do Brasil no artigo 22526 , que orienta sobre o equilíbrio do meio ambiente. Quando entram em jogo os ecossistemas e as várias formas de apurar lucros, o poder econômico sempre opta pela conivência do momento, acumular e reproduzir-se dentro dos princípios capitalistas, mesmo que a destruição da natureza seja a conseqüência imediata. Desta forma, as leis ambientais não passam de palavras mortas que enfeitam papéis. Em muitos casos servem para legalizar a destruição ou para serem burladas e agredidas, sempre com a certeza de que nada aconteça aos infratores, visto o controle político, econômico e militar dos grandes grupos ali estabelecidos. Contudo, no início do século XXI os povos dos países periféricos não conseguem “romper a muralha do trinômio petróleo – dólar – mídia” (VASCONCELLOS e VIDAL, 2001: 24). Nesta dinâmica, o projeto capitalista mundial objetiva a concentração da renda e a subordinação da humanidade, mesmo que para isso seja necessário reproduzir maior desigualdade social e destruir a natureza em nome do lucro fácil. Para PORTER e KRAMER (2003: 9), conservando o meio ambiente estaremos protegendo a sociedade de forma geral. Podemos concluir com o pensamento do índio Hamawt’a, citado por BERNA (1994: 39), para quem: “o dia em que vocês envenenarem o último rio, abaterem a última árvore, assassinarem o último animal, (...) quando não existirem nem flores, nem pássaros, se darão conta de que dinheiro não se come”. Assim, o “mel” pode ser destruído junto com a floresta tropical, pois acabar com as florestas e com os ecossistemas também significa acabar com as alternativas de encontrar o pote de “mel” tão sonhado e desejado pelos marginalizados e despossuídos. Se as flores são destruídas, as abelhas não podem processar a doce relíquia cobiçada por todos, bem como carregar o “mel” até a colméia e, conseqüentemente, findam as 26 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencialmente à qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, 1988: 96). 93 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI oportunidades de o homem simples, do colono, dos desempregados e dos sem-terra encontrarem o líquido doce para adoçar a si e aos seus. Assim, a vida segue, e os rumos da humanidade ainda são incertos, pois a cada dia que passa a Amazônia sangra e agoniza mais, sem que nada seja feito para reverter este triste quadro de destruição da natureza. Neste sentido, cada dia que passa deixa mais distante do homem a conquista do “mel”, e assim a vida destes homens, mulheres e crianças tenta seguir... ***** 94 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI RESUMO No processo de ocupação da Amazônia brasileira, o principal objetivo entre Estado e capital foi instalar os projetos econômicos para concentrar capitais. Mesmo que estes projetos ofereçam aos marginalizados e aos despossuídos do País, apenas a alternativa de servirem de força de trabalho aos empreendimentos, o homem pobre também busca a terra. Enquanto o Estado organiza a distribuição de terras em conjunto com as empresas de especulação imobiliária, os sem teto, os sem terra e os sem emprego chegam à região ou já se encontram lá há muito tempo, na forma de posseiros. Os posseiros são pequenos agricultores que cultivam a terra em pequenas proporções que servem apenas para a subsistência de seu grupo. Não possuem titulação de propriedade das terras, e desta maneira viveram de gerações em gerações. Muitos são migrantes do período mais acentuado do extrativismo da borracha ou são povos originários, civilizados ao longo dos tempos. Podemos afirmar que na Amazônia, a partir de 1964, se formaram três modalidades de colonização: as promovidas pelo Estado, as promovidas por empresas de especulação imobiliária e as promovidas pelos marginalizados e despossuídos do País, que chegavam e tomavam posse da terra. Esta última é também chamada de colonização espontânea e estava fora do controle do Estado brasileiro, pois a grande maioria dos migrantes eram analfabetos e não possuíam registro de nascimento e outros documentos necessários para reivindicar a terra. Neste período da ditadura, as áreas de terras eram vendidas nas capitais dos Estados através da demonstração em mapas. O empresário que desejasse adquirir grandes áreas de terras fazia sua compra através dos mapas ou de terceiros que já tinham adquirido do Estado, ou através da grilagem. Assim, este comprava 95 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI a área muitas vezes em terras dos posseiros e das tribos indígenas. Na aquisição das terras, o empreendimento tinha como requisito básico comprovar que na área não existiam posseiros e muito menos povos indígenas. Através da indústria do crime, da corrupção dos funcionários do Estado, do poder econômico e político, eram produzidos laudos e relatórios fraudulentos e legalizavam-se as áreas irregulares. Outra forma de adquirir terras é através da grilagem. Os grileiros se apoderam ilicitamente de grandes extensões de terras, através da obtenção de títulos falsificados. Segundo levantamento feito pelo Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário, em 2001, existiam 3.065 imóveis no Brasil fruto da grilagem de terras, com uma área de 93.620.587 hectares. Estes dados nos fazem deduzir a quantidade de processos tramitando na justiça e também o descaso em que vivem os povos simples da floresta. A região passou por sérias transformações, e começaram a surgir lutas sangrentas em torno da propriedade da terra. De um lado, os índios, os pequenos proprietários e os posseiros, do outro lado, os grandes empreendimentos que desejavam fazer as instalações dos projetos. Neste estágio, os grupos organizados com o apoio do Estado, realizaram a expropriação dos povos da floresta através da contratação de jagunços, para fazer a “limpeza” da área adquirida. Os jagunços são pistoleiros fortemente armados e contratados por grileiros e empresários para patrulhar as áreas e expulsar os posseiros e os indígenas. Quando necessário, também são usados para adquirir mais terras e assim efetivar a concentração da terra em mãos de poucos proprietários. Entre 1950 e 1960, podemos observar que 84,6% das áreas eram ocupadas por estabelecimentos agrícolas, com no máximo 100 hectares. No ano de 1975, em plena ditadura, a concentração da terra atinge seu ponto mais alto na Amazônia: neste ano 99,8% das terras foram para estabelecimentos com mais de 100 hectares, e destes, cerca de 75% foram para estabelecimentos com mais de 1000 hectares. Na região da Amazônia brasileira não se realizou a distribuição das terras, aconteceu a concentração dela nas mãos dos grupos econômicos organizados. Os conflitos de terras raramente chegam a uma solução, pois os posseiros são obrigados a abandonar a propriedade através da violência imposta a eles. Quando suas reivindicações chegam 96 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI aos tribunais, os posseiros não possuem condições financeiras para contratar advogados, não possuem a documentação necessária e, muitas vezes, quando recebem a notificação para se apresentarem em juízo, o prazo já passou. Por outro lado, somente na região, aproximadamente 600 camponeses foram assassinados por pistoleiros. Entre 1985 e 1999, no período pós-ditadura, dos 1.158 assassinatos, apenas 56 pistoleiros foram julgados e só 10 foram condenados. Estes dados não representam a realidade da Amazônia, pois principalmente no período da ditadura, as mortes ficavam acobertadas pelos interesses conjuntos entre o capital e o Estado. Além disso, quase a totalidade das mortes ficaram no anonimato, e assim, possivelmente podemos multiplicar as mortes por dez ou por vinte, pois os dados oficiais são falhos e não refletem a realidade da Amazônia, bem como a forma de ocupação, principalmente nas últimas décadas. A estes posseiros resta a alternativa de transformarem-se em força de trabalho aos empreendimentos da região. A força de trabalho é contratada de três maneiras: na primeira, ela se encontra fixa nas cidades fabricadas pelo capital; na segunda, fica flutuando e não tem procedência, pois trabalha onde encontra trabalho; e na terceira, os empresários importam os trabalhadores de outras regiões do País, para suprir as necessidades de mão-de-obra local. O quadro de trabalhadores dos empreendimentos é composto de pessoas simples, com baixo nível educacional e pouco conhecedores de seus direitos e obrigações. Os peões dos projetos da pecuária realizam atividades como derrubar a mata, a queima, o plantio de capim, a construção de cercas e o manejo do gado. Na agricultura, o procedimento é bastante semelhante, além da derrubada da mata e da queima, necessitam fazer a limpeza para o plantio das sementes. As fazendas estão localizadas em locais distantes, muitas vezes de 300 a 400 km da primeira cidade e os trabalhadores são transportados por caminhões, caminhonetes possantes e também em tratores. A contratação da força de trabalho raramente é realizada pelos grupos econômicos. Esta estratégia tem como finalidade não assumir as obrigações trabalhistas com a mão-de-obra contratada, que realiza os trabalhos de derrubada da floresta. Entra em cena um agenciador de trabalhadores, conhecido na região como “gato”, que tem a responsabilidade de comandar e organizar o trabalho 97 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI nos empreendimentos. Nesta modalidade de contratação, os agenciadores de trabalho assumem posições hierárquicas diferenciadas e ficam com 50% do pagamento recebido na empreitada. A contratação é realizada nas cidades, na própria casa do trabalhador, em que o agenciador deixa para a família um adiantamento de seu trabalho, assim conforta a família e compromete o trabalhador. Para contratar a força de trabalho flutuante, a forma é um pouco diferente: ela é encontrada nas pensões e pequenos hotéis, onde o trabalhador já está empenhado com dívidas, pois a ele são fornecidos cama, comida, cigarros e bebidas, mesmo não tendo dinheiro. Com a chegada do agenciador de trabalhadores, ele compra a dívida como parte do pagamento de seu futuro trabalho e o peão, parte muitas vezes sem saber para onde está indo. Nesta forma de trabalho, a tática é manter a força de trabalho com dívidas. A cada 20 ou 30 dias são levados até a cidade mais próxima para terem um final de semana de alegria. Podem envolverse em bebedeiras, bares e casas de prostituição. Na volta, sem dinheiro e novamente endividados, o ciclo se repete, e assim o sistema “gato” consegue com sucesso desempenhar o papel de trabalho irregular, pois os peões não possuem registro em carteira e benefício social algum para protegê-los. Quando ocorrer algum acidente de trabalho, o trabalhador fica desamparado, pois o agenciador de mão-de-obra some e, como é sabido, ele não é possuidor de firma legalizada e o proprietário da fazenda nega que contratou o empregado. Esta forma de exploração de trabalhadores na Amazônia é uma das condições impostas pelas estratégias do mundo do capital, com a finalidade de obter mais lucro às custas da classe trabalhadora. Os peões são submetidos a trabalhos forçados, através do controle, pois entre 1970 a 1993 foram confirmadas 431 fazendas que realizaram formas de trabalho escravo, destas, 308 na Amazônia, e assim 85.000 trabalhadores foram escravizados. Recentemente, entre os dias 7 e 13 de agosto de 2002, o Ministério do Trabalho libertou 152 trabalhadores mantidos em cativeiro no Estado paraense, na Amazônia brasileira. Estes dados são obtidos através das denúncias dos próprios trabalhadores que conseguem fugir, mas a realidade é muito diferente, muitos não formalizam as denúncias com medo de represálias. Além disso, muitos 98 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI trabalhadores perdem suas vidas na clandestinidade, sem serem conhecidos os fatos e suas histórias. A exploração do trabalho na mineração aurífera é também muito degradante. Nos anos 1980 se formaram na Amazônia vários núcleos de mineração, principalmente aurífera, que serviram para diminuir os conflitos da posse da terra. O posseiro sabe da luta desigual quando questiona o direito à terra com os grupos organizados. Assim, a procura do ouro e do diamante na Amazônia fez com que ele desistisse da terra e, novamente, se efetiva na prática a concentração da terra em mãos de poucos proprietários. O garimpo é uma modalidade de exploração da força de trabalho. No garimpo manual existem duas formas de conseguir o ouro, através dos rios ou em terra firme. No rio, o garimpeiro mergulha e suga o lodo que fica depositado no fundo, este é levado para caixas concentradoras onde é feito o processo de separação através do mercúrio. Na forma terrestre, uma mangueira com água desintegra a terra e a outra transporta os sedimentos para a caixa concentradora, cuja separação também é realizada com mercúrio. Os garimpeiros realizam trabalhos para os donos das máquinas e o ouro vai parar nas mãos dos grupos organizados. Nestes locais existe muita violência no trabalho, acompanhando o dia-a-dia de todos os que vivem na área de garimparia. O mergulhador não usa equipamentos adequados para proteger-se e fica muitas horas no fundo dos rios. Na Amazônia, os rios são de grande volume de água e o mergulhador fica, muitas vezes, a uma profundidade de 10 a 15 metros, correndo o risco de ser atingido pelos desmoronamentos das escavações no fundo do rio, ficando daí impossibilitado de subir, morrendo soterrado. Também existe a possibilidade dos troncos das árvores se enroscarem nos equipamentos através das correntes dos rios e se chocarem com seu corpo. Neste caso, o acidente pode ser fatal. Podemos afirmar que os garimpos são uma terra sem lei. Nestes locais a violência anda por todas as partes e o poder maior é o das armas, dos pistoleiros, dos matadores de aluguel e dos grupos organizados. As pessoas passam a conviver com outras cuja vida não têm valor: tanto faz matar como morrer. A vida nestes locais fica entre o trabalho, os bares e mulheres, pois os levantamentos apontam que 10% da população garimpeira é composta de prostitutas na fase inicial de atividade. Neste sentido, na região garimpeira, a indústria do lazer é uma forma muito lucrativa 99 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI ao empreendimento. O que pode ser observado é que a maioria das pessoas são viciadas em drogas, tais como: cigarros, álcool, maconha, cocaína, entre outras. Outro fato que chama atenção é o destino do ouro e do diamante. Os dados apontam que em torno de 95% do diamante é contrabandeado e aproximadamente 80% do ouro também. A Amazônia é rota de drogas e o ouro e o diamante servem para lavagem de dinheiro ao crime organizado. Para esta região, está ficando uma enorme degradação ambiental e social, a riqueza está sendo contrabandeada de forma irregular para outros países. A Amazônia é considerada rica em produtos minerais como, ferro, manganês cassiterita, ouro, cromo, níquel, cobalto, urânio, cobre, chumbo, titânio, prata, diamante, sal-gema, calcário, tório, bauxita, alumínio, gás, petróleo e outros. Muitos desses minerais ainda são pouco explorados e muitos destes pouco estudados quanto à sua capacidade. Somente na área da Mineradora Vale do Rio Doce, numa área de 600 por 300 quilômetros, encontram-se 18 bilhões de toneladas de ferro, 84 milhões de toneladas de manganês, 164 toneladas de ouro entre outros minérios 1,25 bilhões de toneladas de estanho, 87 milhões de toneladas de níquel, 8,5 milhões de toneladas de zinco, 1,25 bilhões de toneladas de tungstênio, entre outros. O ferro desta mineradora possui um teor altíssimo, acima de 60%. Os grandes capitais investem na região, proporcionados pelas riquezas naturais ainda pouco estudadas, e também pelas grandes áreas de terras à disposição por preços baixos. Assim, os indígenas também se tornam vítimas do processo de ocupação, pois em suas terras também existem muitos minérios e madeiras nobres que são objeto da cobiça dos grupos organizados. Hoje 10,2 milhões de hectares, o equivalente a 20% da Amazônia, pertence aos povos indígenas, mas apenas 32% das terras encontram-se demarcadas. Segundo dados do governo brasileiro, a população indígena brasileira não passa de 350.000 habitantes, e a maioria está concentrada na Amazônia. É difícil precisar os dados, pois muitos grupos ainda não tiveram contato com o homem civilizado. Além disso, muitos vivem nas cidades e não fazem parte das estatísticas oficiais. Calcula-se que no ano de 1500, por ocasião do descobrimento do Brasil pelos europeus, a população era de 6.000.000 de habitantes. Ao longo da história, os povos originários 100 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI se tornaram empecilho aos interesses dos ditos “civilizados”, e assim foram sendo exterminados. Foi o que aconteceu a partir de 1964 na Amazônia, quando os grupos organizados contratavam jagunços para fazer a limpeza de suas áreas, passando a eliminar indígenas e posseiros de forma brutal e sangüinária. Os métodos para exterminar as tribos foram os mais violentos, tais como: envenenamentos, introdução de doenças, pois o índio não tem imunidade a gripe, sarampo, tuberculose entre outras, a violência física, a queima de suas moradias e os assassinatos. Como temos apontado, os militares no poder, em relação à Amazônia, objetivavam distribuir terras aos grandes conglomerados nacionais e internacionais e não respeitavam as populações da floresta. As formas como foram e estão sendo eliminados ocorrem com requintes de crueldade. É necessário conhecer um pouco da história da Amazônia. Só assim podemos entender o processo espoliativo das populações nativas. O interesse pela expansão de grandes capitais com a finalidade de concentrar e centralizar riqueza, faz da região um local de submissão, de obediência, de controle e de violência por parte dos detentores do poder econômico e político, sendo eles nacionais ou internacionais. Os povos originários e os posseiros são as principais vítimas do processo de ocupação. Os beneficiados são os grupos econômicos que têm à sua disposição grandes áreas a preços baixos, uma grande quantidade de recursos florestais e minerais e mão-de-obra barata. Assim, o meio ambiente, local de extrativismo dos povos das florestas, aos poucos está sendo atacado pelo poder econômico e político. A devastação já atinge índices de proporções alarmantes pela fúria da acumulação dos grandes conglomerados. Neste sentido, os estudos apontam que aproximadamente 14 a 20% da região já foi devastada, porém até a década de 1970, apenas 4% havia sido devastada. O futuro é incerto. Segundo projeções do pesquisador William Laurance, do Smilhsonian Tropical Institute, até 42% da floresta amazônica brasileira pode estar dizimada em 2020, restando apenas 28% intocados. No pior cenário, restariam menos de 5% da floresta intocados. Estes dados preocupam, uma vez que a região contém de 20 a 25% de toda a água doce do mundo, 1/3 das reservas florestais e 80% das variedades de vida do planeta. 101 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Outro fato importante de ser mencionado é a biopirataria na região. Muitas ervas do conhecimento popular já foram patenteadas por grandes laboratórios multinacionais. Podemos usar alguns exemplos: espinheira-santa, pelo laboratório Mektron Japonês; a erva quebra-pedra, pela Fas-Chase Cancer Center, Filadélfia, nos Estados Unidos; a erva mirapuana, pela Taisho Pharmaceutical do Japão; o guaraná, pelos Estados Unidos; a erva sangue-de-pedra, pela Shaman Pharmaceuticals dos Estados Unidos. Os estudos apontam que 75% dos remédios encontrados nas prateleiras das farmácias contém produtos da floresta tropical, mas apenas 1% das plantas foram estudadas. Os recursos naturais devem fazer parte da segurança da humanidade, devendo ser utilizados com sensibilidade e respeito aos povos de forma geral, pois o desaparecimento de algumas espécies está relacionado com a extinção de inúmeras outras. Os grupos farmacêuticos têm como alvo os povos que detêm o conhecimento popular, pois, segundo estudos, o conhecimento tradicional aumenta em mais de 400% a eficácia de reconhecer as propriedades medicinais de plantas. A grande preocupação da região é devastar a floresta para a formação de pasto para o gado bovino e extensas plantações, principalmente de soja, ambas para servir ao mercado internacional. Entretanto, faz-se necessário dar valor econômico às árvores. Só assim acontece a preservação através da coleta seletiva e planejada. Temos estudos sobre a biomassa Amazônica que a apontam como alternativa energética, tecnológica e, principalmente, um modelo econômico e político de desenvolvimento. Neste sentido, a Amazônia pode solucionar os problemas contemporâneos: o ecológico e o energético. Um metro cúbico de madeira com 20% de umidade, eqüivale a um barril de petróleo, porém, isso deve ser feito de maneira seletiva e planejada. Se a lógica de utilizar as terras para criar gado bovino de forma extensiva prosseguir, poderemos acabar com a floresta. É preciso dar valor econômico às árvores, só assim a Amazônia poderá ter vida no futuro, pois do contrário, teremos um enorme deserto. Dos solos desta região, 69,51% são considerados de baixa fertilidade, porém são muito lucrativos, existindo muitas áreas a preço baixo, incentivos fiscais e uma grande capacidade de mãode-obra disponível. As áreas são utilizadas para produzir monoculturas, como: soja, algodão, milho e criação de gado bovino para o corte. 102 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI Qual a explicação para a existência de exuberantes árvores na Amazônia, com solos pouco férteis? A floresta tropical tem a capacidade de se auto-sustentar através de seus resíduos – as folhas, os galhos e os frutos. Retirando-se as árvores, serão necessários muitos anos para que o solo se restabeleça novamente. Este é um dos motivos mais importantes para preservar a floresta tropical. A interferência na região deve ser de forma seletiva e planejada, pois da maneira como está sendo ocupada, as conseqüências da interferência se tornam irreversíveis ao ecossistema local. O “mel” é visto e localizado todos os dias na região, mas na atual conjuntura o proletário não pode ter acesso ao brilho que representa a luz, a paz e a esperança de sua libertação. Porém, a esperança de um dia chegar até ele deve permanecer viva. Assim, o trabalhador pode vislumbrar a possibilidade do encontro. Para a lógica do capital é necessário mantê-lo empobrecido e empenhado, mas não miserável. Pobre, ele mantém acesa a chama da produção, motivado pela possibilidade de um dia ter acesso ao pote de “mel”, objeto de sua constante busca. Se for reduzido à miséria, deixa de lutar e perde qualquer interesse na busca do valioso produto e, desta maneira, não reproduz as formas capitalistas de produção. Assim, mais uma etapa de procura é vencida e não foi possível chegar ao pote de “mel”, mas resta a certeza de que ele existe e poucos podem acessá-lo. Realmente o “mel” existe, mas o projeto arquitetado pelo mundo do capital na região, definitivamente, impossibilita os homens simples das florestas e das cidades de alcançá-lo. As reprovações sucessivas ao longo da história fazem mais uma vez a lógica da concentração, pois a centralização econômica é um fruto enigmático que vai parar em mãos de poucos privilegiados, e a expansão regional brasileira acaba nos limites geográficos da Amazônia. Os marginalizados e despossuídos chegam ao final do espaço territorial e o “mel” da tão sonhada Amazônia já tem dono, pertence aos grandes conglomerados econômicos nacionais e internacionais. A sanha desvairada do mundo concentrador se repete e mais uma vez roubam-lhes a esperança de encontrar o “mel” na Amazônia, a última fronteira das esperanças destes marginalizados e despossuídos. Enquanto isso, a vida deve prosseguir... 103 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI 104 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI CONCLUSÃO DO ESTUDO REALIZADO No processo de ocupação da Amazônia brasileira, grande parte das terras dos povos originários e dos posseiros foi expropriada através da violência praticada pelos grupos econômicos, com auxílio do Estado por meio de práticas repressivas. Nesta lógica, estes povos foram esquecidos pelo poder público, sendo a indiferença refletida através da conivência com as atitudes do capital organizado na região, que os retirou da terra de forma violenta. Nestes episódios, milhares de posseiros e povos originários perderam suas terras e também suas vidas. Aqueles que escaparam da morte ficaram confinados nos limites da terra, ou tiveram que se adaptar à vida urbana e servir de força de trabalho ao capital organizado. Das poucas terras que ainda restam com estes povos, muitas estão sem demarcação, visto o interesse de retirar riquezas destas áreas através da grilagem e do crime organizado. Estes fatos contribuem para que não se limitem estas áreas, ficando os povos indígenas vulneráveis aos interesses dos grupos econômicos, e não sendo protegidos os povos das florestas pelo Estado que age de forma omissa e conivente com os interesses da burguesia nacional e internacional. Por outro lado, para a maioria dos povos marginalizados do País que buscam a terra, restam duas alternativas para encontrar o “mel”: transformarem-se em proletários nos vários projetos econômicos ali instalados; ou tornarem-se urbanos, para dar estrutura às cidades fabricadas. Estas cidades fazem o papel de centro do capital na região. Para este fim, muitas delas nasceram e tornaram-se importantes na lógica do sistema expansionista, implantado na região, principalmente nas últimas décadas do século XX. E para os marginalizados de outras regiões do Brasil, que migram 105 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI para a Amazônia, não restam outras opções a não ser se tornarem vítimas da exploração do trabalho nos grandes projetos ali instalados. Neste processo organizado por empresas nacionais e internacionais, a força de trabalho da abertura das matas na região, passa a receber tratamento escravocrata. Os fatos ali ocorridos nos apontam para um processo de superexploração e o aniquilamento da classe trabalhadora. Podemos identificar formas de se tratar a mão-de-obra de modo diferenciado com os centros mundiais do capital. Na Amazônia brasileira se processa a expansão do capital através da lógica sistêmica periférica, por meio de mecanismos que vão além da exploração já concebida no processo de acumulação mundial. O trabalhador e sua família passam a subsistir e a se reproduzir com valor abaixo do convencionado. Esse fato pode ser visto através do não acesso aos produtos básicos: alimentação, vestuário, moradia, ensino e remédios. Além de não ser atendido em seus direitos básicos de saúde, de educação e de segurança, os direitos sociais são privados aos trabalhadores, por meio de vida social não digna e integrada. O seu estado de pobreza passa a ser de marginalizado. Não conseguindo manter seu modo de reprodução enquanto espécie, passam a fazer parte de suas relações, a ausência de perspectivas de vida digna. Nas regiões de extrativismo aurífero, podemos observar a exploração e a violência andando juntas. O desenvolvimento humano nesta região anda na contramão da evolução e das formas de se tratar a humanidade. Os homens passam a ser tratados como coisas, mas por outro lado existe a personalização da produção da riqueza. Nesta relação de poder e de dominação do homem pelo próprio homem, a meta principal é a busca do lucro a qualquer preço, mesmo que esse venha a aniquilar a força de trabalho e destruir o seu ambiente. Além da não valorização do ser humano, a violência se faz presente em todo o processo produtivo, através das formas de se tratar a produção e o trabalho. O tratamento não digno passa a ser acompanhado de mecanismos que levam os indivíduos a se aniquilarem enquanto espécie. A mais-valia consegue ser identificada com mecanismos de superexploração, por meio do aperfeiçoamento da relação de trabalho ali praticada. Por outro lado, os mais variados ecossistemas da região, aos poucos assumem características degradantes. A poluição dos rios e a devastação da floresta, do cerrado e do pantanal deixam 106 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI um rastro de destruição, que está sempre acompanhado da eliminação das espécies animais e vegetais. A biomassa e os microorganismos da região lentamente vão sendo eliminados e em seus lugares se forma uma paisagem diferente que contrasta com áreas ainda não devastadas. O grande projeto da Amazônia pode ser visto como vitorioso para os interesses das classes dominantes. A vegetação dá lugar às monoculturas de soja e do gado bovino, produtos que vão servir ao mercado mundial com a finalidade de atender aos interesses dos países dominantes. Aos povos amazônicos estão sendo socializados os rios poluídos por mercúrio e por outros produtos usados nas monoculturas extensivas. Também a vegetação é destruída e queimada, para dar lugar às plantações de grãos de soja e aos pastos. Nesta lógica, o homem passa a ser um objeto sem muita importância, se coisificando neste projeto de expansão, para dar lugar à produção que objetiva a exportação personalizada e mais importante nesta relação. Podemos concluir que o “mel” não pertence a quem realmente produz a riqueza da região. Foi parar nas mãos dos grupos organizados através da violência e da destruição do meio ambiente. Aos despossuídos e marginalizados ao longo dos tempos, restam-lhes duas alternativas para a conquista do brilho dourado do doce “mel” por tantos almejado. A primeira é ficar flutuando de cidade em cidade na busca de trabalho e oportunidades, visto que as possibilidades de ser posseiro, garimpeiro, trabalhador da agropecuária e do extrativismo florestal aos poucos, vai eliminando o homem. A segunda forma, embora poucos queiram entender e aceitar, é juntar-se ao Movimento Sem Terra – MST, que constituise hoje em uma opção dos povos da Amazônia. Nesta nova ordem estabelecida nos limites da vida e da expansão, a esperança ainda não morreu, e assim, a vida segue mais uma vez. Concretiza-se a triste sina de homens, mulheres e crianças no encontro dos limites estabelecidos pelo capital. O projeto da região foi arquitetado para não beneficiar os sofridos e marginalizados ao longo dos tempos, mas para servir de acumulação aos grupos econômicos nacionais e internacionais organizados. Mesmo nesta perspectiva excludente, a vida segue – os homens, as mulheres e as crianças ainda ousam sonhar com a primavera e as flores e poder chegar à terra prometida... 107 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI 108 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI LISTA DE ABREVIATURAS ADA ---------------- Agência de Desenvolvimento da Amazônia. BASA --------------- Banco de Crédito da Amazônia S. A. CLT ----------------- Consolidação das Leis Trabalhistas. CNBB -------------- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. CPI ----------------- Comissão Parlamentar de Inquérito. CPT ---------------- Comissão Pastoral da Terra. CVRD -------------- Companhia Vale do Rio Doce. DIEESE ------------ Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. GEBAM ------------ Grupo Executivo para a Região do Baixo Amazonas. FEMA -------------- Fundação Nacional do Meio Ambiente. FGV ---------------- Fundação Getúlio Vargas. FUNAI -------------- Fundação Nacional do Índio. GETAT ------------- Grupo Executivo de Terras do Araguaia. IBAMA ------------- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. IBDF ---------------- Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. IBGE --------------- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. ICMS --------------- Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. ICOMI -------------- Indústria e Comércio de Minérios S.A. INCRA ------------- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. INSS ---------------- Instituto Nacional de Seguridade Social. MST ---------------- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. MIRAD ------------- Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário. NASA -------------- National Aeronautics And Space Administration. PGC ---------------- Programa Grande Carajás. 109 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI PCN ---------------- Projeto Calha Norte. PIN ------------------ Programa de Integração Nacional. PND ---------------- Plano Nacional de Desenvolvimento. PROÁLCOOL ---- Programa Nacional do Álcool. PROTERRA ------ Programa de Redistribuição de Terras. POLAMAZÔNIA - Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia. SBPC -------------- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. SPVEA ------------- Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia. SUDAM ------------ Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia. SUDECO ---------- Superintendência do Desenvolvimento do CentroOeste. SUDENE ---------- Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. SUFRAMA -------- Superintendência da Zona Franca de Manaus. SIVAM -------------- Sistema de Vigilância da Amazônia. 110 AMAZÔNIA: A ILUSÃO DA TERRA PROMETIDA FIORELO PICOLI BIBLIOGRAFIA ANTUNES, R. 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