SOciAliSMO E DEMOcRAciA

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SOciAliSMO E DEMOcRAciA
Socialismo
e democracia
FUNDAÇÃO
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Roberto Amaral
Socialismo
e democracia
Brasília-DF
2011
FUNDAÇÃO
JOÃO
MANGABEIRA
Ficha Catalográfica
Amaral , Roberto, 2011.
Socialismo e democracia / Roberto Amaral. Brasília: Fundação
João Mangabeira (FJM), 2011.
352 p.
ISBN 978-85-60441-15-0
1.Socialismo. 2. Democracia. I. Fundação João Mangabeira. II. Título. III. Autor.
CDU 320.5
Para Teresa,
como sempre.
Sumário
Introdução...........................................................................................9
I. As vias do socialismo no Brasil (Ou: a conquista da
hegemonia deve preceder a conquista do poder)..........................15
II. A esquerda socialista: impasses e alternativas...........................31
III. Da ditadura do proletariado à democracia participativa.......65
IV. A democracia representativa está morta.
Viva a democracia participativa!.....................................................91
V. Controle das eleições e informação – o papel dos meios
de comunicação de massa: uma contradição da democracia
representativa..................................................................................157
VI. As eleições de 2002...................................................................177
VII. As eleições de 2006 e as massas: uma emergência
frustrada? ........................................................................................181
VIII. Nação, cultura e comunicação..............................................201
IX. Imprensa e controle da opinião pública: uma tragédia
da democracia representativa........................................................209
X. Globalização e neoliberalismo..................................................251
7
XI. Civilização e barbárie...............................................................265
XII. A especificidade de nossa formação e o papel brasileiro
no projeto de autonomia sul-americana.......................................311
XIII. A quem interessa a crise do Poder Legislativo?..................337
XIV. O PSB e o socialismo revolucionário...................................341
Introdução
Completamos a primeira década do novo milênio, e mais
distantes vislumbramos as esperanças de uma sociedade mundial
fundada na igualdade dos homens.
A Humanidade avançou em todos os campos do conhecimento, dominou a Terra e seus recursos e partiu para a conquista espacial; estabeleceu os mais fantásticos progressos sobre a ciência e
as técnicas e foi capaz de avanços tecnológicos antes insuspeitados.
O desenvolvimento da medicina, da genética, da informática, da
nanotecnologia, da robótica, aumentaram a expectativa e a qualidade de vida do ser humano. O milagre da tecnologia – reduzindo
o mundo a uma casca de noz – faz de todo ser humano um vizinho
de seu semelhante mais distante.
O progresso científico e o desenvolvimento econômico, todavia, não foram suficientes para tornar o homem mais feliz. Ao contrário, a civilização que ofereceremos aos nossos sucessores está
manchada pela fome, pela miséria, pela exclusão de milhões de
seres humanos, definitivamente condenados ao atraso e ao subdesenvolvimento. E o desenvolvimento tecnológico mais notável é o
da indústria da guerra e da destruição, e, ainda no III milênio, pelas guerras de conquista e ocupação promovidas continuadamente
pelos países centrais sob a liderança dos Estados Unidos, de mãos
absolutamente livres para o bem e para o mal.
É este o legado do capitalismo, reinando absoluto no mundo.
Pela primeira vez na História, há produção de alimentos suficiente para atender às necessidades de toda a população do Planeta.
No entanto, mais da metade da Humanidade passa fome. Temos recursos econômicos, materiais e tecnológicos que assegurariam aos
Estados, não fosse a concentração econômica, distribuir casa a todos
os seus habitantes, e a todos assegurar trabalho, escola, saúde e lazer.
Mas dois terços da Humanidade não têm casa, ou moram em condições sub-humanas.
Não estou falando apenas dos povos da África, da Ásia e da
América Latina: hoje, contam-se cinquenta milhões de pobres e
19 milhões de desempregados na opulenta União Europeia. Nos
poderosos Estados Unidos, quarenta milhões de pessoas não possuem qualquer sorte de cobertura médica, 45 milhões vivem abaixo do nível da pobreza e 52 milhões são iletrados.1
Por que não planejamos nossa sociedade usando a tecnologia e
a riqueza acumuladas para suprir nossas necessidades?
Se podemos gastar bilhões de dólares na pesquisa e fabricação
de mecanismos e aparelhos de guerra, sofisticados e caríssimos e
terrivelmente mortíferos, se podemos empregar milhões de pessoas
para matar em nome da guerra, por que não gastar os mesmos bilhões e empregar tanta gente na pesquisa de saúde, na construção
de casas, no ensino, na proteção do meio-ambiente, na defesa da
vida, da igualdade, da liberdade, do conforto?
A Humanidade não soube construir a paz, e está jungida pela
guerra. Não soube conter a violência, e hoje as nações se dilaceram,
os povos temem os povos e o homem teme o homem.
A civilização não conseguiu espancar a barbárie.
É a vitória do capitalismo.
Hoje, no mundo, a diferença entre ricos e pobres é maior do
que nunca. Vencida a Guerra Fria, o imperialismo voltou com toda
a força num mundo globalizado e sob o controle e a onipotência de
uma única nação, senhora de baraço e cutelo de toda a Humanidade, exercendo seu poder sobre os Estados e as nações, sobre seus
povos e seu direito, sobre suas mentes e seus corações, sobre sua
1 Números anteriores à crise de 2008.
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Roberto Amaral
cultura e sua ideologia, sobre seus gostos e seus prazeres, sobre seus
ideais, seus valores, seus costumes, seus hábitos. Sobre seu destino.
Vencida a Guerra Fria, o imperialismo arquivou as concessões
keynesianas ao planejamento e ao intervencionismo estatal visando à proteção dos mais fracos em face das regras cegas do mercado cego. Retornamos a um laissez-faire/laissez-passer anacrônico:
o neoliberalismo desregulamentador e sem fronteiras, a serviço do
polo desenvolvido, está na raiz de uma crescente exclusão social.
A ‘livre’-concorrência entre desiguais é a fonte da violência capitalista. A estagnação econômica, quando não a recessão, o desemprego crescente, a precarização da proteção trabalhista, a destruição
dos sistemas previdenciários públicos, o isolamento social, a guetização das zonas urbanas mais pobres – as periferias nas quais os
mais pobres são depositados – a violência incontrolada, a destruição da qualidade de vida de milhões e milhões de trabalhadores
engrossando os contingentes de excluídos.
As cidades viraram colmeias das classes médias cercadas de
pobreza e miséria, sitiadas pelo crime organizado; as famílias se
refugiam em verdadeiros bunkers; encurralado, em casa ou na rua,
o cidadão não se sente seguro. O cidadão é um sequestrado em sua
própria cidade, em sua casa, em seu trabalho.
O exército industrial de reserva, fruto da acumulação de capital, que o cria e o reabastece automaticamente e que o alimenta
com as migrações de trabalhadores desempregados (Marx, O capital, 1. Cap. XXIII) tende a transformar-se, na modernidade capitalista, num exército de lúmpens.
A Humanidade está submetida à religião do mercado globalizado, com as desigualdades que produz, com o desemprego que
produz, com a poluição que produz, com a centralização de renda,
de riqueza e de poder que produz, numa perspectiva produtivista
que ignora a capacidade de absorção do mercado. Daí a concentração das fontes produtoras em um número crescentemente menor
de países, impondo o alargamento permanente do mercado consumidor, separando o mundo entre países produtores e exportadores, centrais, poucos, e países importadores de manufaturados,
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periféricos, muitos, os subdesenvolvidos, em desenvolvimento ou
emergentes, o antigo Terceiro Mundo.
É a religião do mercado, do mercado onisciente e onipotente,
açambarcador e totalizador, reducionista e autoritário, que ameaça a
democracia e quer extirpar a política, porque a política é a única forma
de os excluídos lutarem pelos seus direitos em face do Estado de classe,
dominado pelos interesses dos poderosos, os grandes empresários, os
grandes bancos, o capital financeiro internacional, o capital volátil dos
megainvestidores, o capital predador da especulação financeira. A desastrada religião do mercado, no que agrava as desigualdades sociais,
também reduz os espaços democráticos. A autonomia dos Estadosnação é transferida para organismos internacionais, a soberania popular é usurpada pelo poder de decisão de empresários e funcionários
sem mandato coletivo. Os cidadãos perdem o poder de intervir em
questões decisivas que dizem respeito aos seus interesses, os interesses
de sua coletividade e os interesses de seu país.
A cidadania se reduz ao pagamento de impostos, ao consumo
de bens e ao usufruto de alguns serviços.
A política é substituída pelo mercado.
Um mundo dominado pelas empresas multinacionais, pela filosofia do mercado, que controla os meios de comunicação, que
controla a informação, que controla as emoções. Que constrói o
discurso único da modernidade e da globalização.
Por fim, com a destruição da cidadania, a democracia é imobilizada. O poder, que seria do povo, de governar-se, é exercido sobre
o povo, em Olimpos indevassáveis, nos quais o indivíduo não tem
assento nem voz. As decisões que dizem respeito a toda a coletividade são tomadas por agentes sem soberania.
É o mundo do capitalismo vitorioso que os socialistas revolucionários querem subverter.
Porque o processo de evolução histórica de modo algum está
concluído, porque a sociedade capitalista de hoje não é a meta
final da História.
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Roberto Amaral
Nesse contexto, aos socialistas cabem duas tarefas históricas
fundamentais: (i) a crítica do capitalismo, denunciando sua reiterada incapacidade de resolver os problemas da Humanidade, e (ii) a
retomada do projeto socialista. A denúncia da desigualdade – e a
esquerda jamais lutou contra outra coisa senão contra a desigualdade e a injustiça sociais – e a retomada do conceito de revolução
socialista, no seu sentido o mais coperniciano possível.
Os ensaios aqui reunidos tratam dessas duas questões: a crítica
ao capitalismo e a defesa do projeto socialista e, por isso mesmo,
são ensaios recorrentemente voltados para a questão democrática. E tratam reiteradamente da crise da democracia representativa.
Foram escritos durante período que percorre mais de uma década2,
muitos antes de 2002 e da vitória da coalizão de centro-esquerda
que levou Lula à Presidência e à reeleição em 2006. Muitos acompanham este período riquíssimo de nossa história e do movimento
popular que assistiu, nesta findante primeira década do III Milênio,
à emergência das massas, a qual, parecendo ter seu epicentro em
nosso país, deita seus efeitos por toda a América do Sul. Este é,
também, um dos nossos temas.
A propósito, é preciso que os socialistas – em muito responsáveis por esse processo – tenham consciência de suas limitações,
para que possam sustentá-lo e, nosso sonho, aprofundá-lo na próxima década. O apoio das grandes massas ao presidente Lula –
o maior fenômeno político-eleitoral de nossa geração –, sem dúvida
tão relevante quanto a saga varguista, não significa, necessariamente, apoio às nossas teses nem a consagração de nossas políticas, embora represente sempre uma vitória das esquerdas brasileiras. Esse
apoio consagra o governo lulista e o messianismo do líder carismático, sem necessariamente chancelar nossas teses, as quais, aliás,
não foram oferecidas ao debate. Se esta emergência é a grande vitória da primeira década do III Milênio, tanto quanto as conquistas
do governo Lula, a incapacidade de institucioná-la e concertá-la
2 Os artigos aqui reunidos sofreram breve revisão puramente formal, mas que possibilitou
expungir alguns erros. Pelo menos os que saltavam à vista. O leitor, porém, ainda encontrará algumas poucas repetições, que terão conseguido escapar à minha vigilância.
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em um corpus teórico – foi o nosso grande fracasso, o fracasso da
esquerda socialista. Não sei mesmo se chegamos a tentar essa concertação – a difusão de nossas teses ensejada pelo encontro do líder
com as grandes massas – e sua ausência, amanhã, poderá cobrar o
recuo do movimento social, pois seu avanço não pode ficar exclusivamente na dependência de um só líder, ainda que ele seja Luiz
Inácio Lula da Silva. Faltam-nos a teoria e a prática.
Esta década demonstrou, de um lado, as limitações insuperáveis da farsa neoliberal e, de outro, a possibilidade, demonstrada
pelas eleições de Lula e pelo seu governo, de avanços sociais nos
países periféricos, mesmo nos quadros da desfavorável correlação
de forças internacional. Mas é igualmente um fato político, neste
caso lamentável, que as forças da esquerda socialista não tenham
sabido capitalizar esses avanços, ao renunciar ao debate ideológico
ensejado pela aliança com Lula.
Discutimos nesses ensaios, escritos como tarefa de militante,
algumas das questões centrais do socialismo e da democracia no
Brasil. A partir da crítica à democracia representativa – ponto de
partida –, defendemos a democracia participativa, na qual enxergamos um dos pressupostos para a realização da democracia socialista: a soberania nas mãos do povo, por ele legitimada, por ele
regida. Por isto dedicamos este volume a Jamil Haddad, exemplo
de uma luta da vida inteira pelo socialismo democrático, e a Paulo
Bonavides, aquele que entre nós melhor desenvolveu o arcabouço
político-constitucional da democracia participativa.
O agradecimento dirige-se ao dr. Carlos Siqueira, diretor-geral
da Fundação João Mangabeira, do Partido Socialista Brasileiro, a
quem devo a presente edição.
Rio/Brasília, segundo semestre de 2010
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Roberto Amaral
I
As vias do socialismo no Brasil
(Ou: a conquista da hegemonia deve
preceder a conquista do poder)*
Dentro do envoltório do modo de produção capitalista, avançaram, a passos velozes, a centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho, que Marx definiu como
premissas materiais do socialismo. A terceira revolução tecnológica viabilizou enormemente as tarefas de planejamento e controle, imprescindíveis a uma economia socialista.
A globalização, que hoje é capitalista, pode servir amanhã
à formação de um sistema socialista mundial. Ao invés de
desistir do projeto marxista, seria o caso de insistir nele tanto
ou ainda mais do que antes. Só que, sem nenhuma dúvida,
passado pelo filtro da História, desprendido dos tecidos irreparavelmente mortos e rejuvenescido, precisamente, pela
conservação do que permanece e é historicamente viável.
Jacob Gorender1
Ao contrário do que havia previsto a teoria marxista clássica,2
as primeiras experiências de socialismo não se implantaram quer
em sociedades democráticas, quer em sociedades industrializadas.
* Conferência pronunciada no ‘Encontro Internacional Socialista’. Rio de Janeiro,
2 a 4/8/2001.
1 GORENDER, Jacob. Marxismo sem utopia. São Paulo: Editora Ática, 1999.
2 Considere-se, porém, a carta de Marx a Vera Sazulich na qual o autor de O Capital admite que o processo revolucionário poderia começar pela Rússia.
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Vicejaram, muitas vezes a ferro e fogo, em sociedades autoritárias
e atrasadas, social, política e economicamente. Países agrários, sua
força de trabalho era predominantemente camponesa e o proletariado, principalmente o proletariado industrial, rarefeito, de nenhuma ou quase nenhuma influência econômica ou política, sem
força organizativa ou capacidade revolucionária.
Referimo-nos especialmente à Rússia e à China, onde 80%
da população eram formados por camponeses. Mas o comentário
também se aplica às demais formações asiáticas, e a Cuba. Nesses
países, a rigor, não se fez revolução socialista, mas, como observa
Gorender,3 revolução agrária e de libertação nacional. E como revolução, episódio único e não repetível. Tão intempestivo que encheu
de entusiasmo o marxismo juvenil e voluntarista de Gramsci. Para
o futuro revolucionário italiano, os bolcheviques, tornando viável a
revolução impossível, teriam revelado a força da vontade humana
superando a ciência, aquele cientificismo de que se deixara impregnar Marx, contaminado por incrustações positivistas e naturalistas.
Estamos lendo seu célebre artigo “A revolução contra O Capital”
em que se antecipava ao conceito de ‘força determinante’, utilizado
por Mao para definir o papel dos militantes comunistas na revolução
chinesa. Já havia ocorrido, porém, o fracasso das tentativas revolucionárias da França, da Alemanha e da Hungria. Como se os operários
do mundo desenvolvido tivessem preferido o reformismo burguês da
social-democracia bernsteiniana4 à aventura da revolução proletária
leninista. Daí, talvez, o capitalismo de Estado, a via prussiana, a política pelo alto, o recesso democrático e a crise que culminaria na dêbácle
do que se passou a chamar de ‘socialismo real’.
A esta forma de conquista do poder, oriental, Gramsci, muitos anos depois, chamaria de ‘guerra de movimento’, em oposição
à ‘guerra de posições’, modelo que lhe parecerá mais adequado às
formações ocidentais, sociedades mais complexas e desenvolvidas.
Mas a democracia, que se consolida como modelo tipicamente
3 Idem, ibidem, p. 227.
4 BERNSTEIN, Eduard. Os fundamentos do socialismo e as finalidades da social-democracia.
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Roberto Amaral
ocidental e intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo, jamais significaria espaço aberto à transição pacífica do
capitalismo ao socialismo.
Se a História contemporânea, observamos, registra tantos exemplos de regimes socialistas implantados de forma revolucionária
transformando-se em regimes capitalistas e democráticos (o exemplo é sempre o das antigas repúblicas socialistas do Leste Europeu),
não conhece um só sistema capitalista que se tenha transformado
em socialista democraticamente, isto é, através do “uso de todos os
expedientes de participação, de controle e de liberdade de dissenso,
que as regras do jogo democrático permitem”5 ou dizem permitir. Ao
contrário, o capitalismo tem sido implacável na derruição dos projetos democráticos e pacíficos de implantação gradual do socialismo.
Em quantos Estados da democracia ocidental as forças socialistas
foram ou são reprimidas e impedidas mesmo de simples vida legal?
Se, sob o autoritarismo oriental – na Rússia czarista e rural, por exemplo –, a conquista do poder fôra relativamente fácil,
sendo em troca impossível a construção do socialismo, como demonstrou a História, nas democracias ocidentais, desenvolvidas,
industrializadas e complexas, ocorreria exatamente o inverso: se
nelas a construção do socialismo pode ser considerada teoricamente fácil, como previa Marx, a conquista do poder, de novo a
lição da História, está se revelando muito mais difícil, demandando um processo mais longo e mais complexo.6 O fato histórico é
que a direita, em todo o mundo, em todos os tempos, não tem hesitado em golpear o processo democrático tout court e o processo
democrático representativo toda vez que se coloca a possibilidade,
remota ou real, de simples emergência das massas; nem muito
menos tem hesitado em fraturar a ordem constitucional em face
da mera possibilidade de uma transição democrática e pacífica
rumo ao socialismo. Ou nem isso, como exemplifica o golpe militar que derrubou o governo Jango, mero experimento de governo
popular e nacionalista.
5 BOBBIO, Norberto. Qual democracia? Rio de Janeiro: Ed. Paz. e Terra, 1987. 3. ed., p. 33.
6 Gramsci, “Un esame della situazione italiana”, idem, p. 99.
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A legalidade democrática não é um valor burguês, e a burguesia
que defende a democracia para conquistar o poder é a mesma que
não titubeia em golpeá-la para nele conservar-se; a liberdade de pensamento, a livre circulação de ideias fundamentais para o desempenho de seu papel revolucionário histórico, são facilmente reprimidos
quando se trata da difusão de ideias que ameacem sua hegemonia.
Clamando por liberdade na oposição, a direita sabe escorraçá-la no
poder, reprimindo-a, ou impondo, pelos mecanismos de controle do
Estado e da opinião, o discurso único, unilateral, o monopólio da
palavra, do pensamento e da ideologia, tornando ainda mais difícil o
caminho pacífico para o socialismo.
O mesmo esforço dos grupos burgueses por restringir, manipular e controlar seus mercados, se aplica no campo da política e
da ideologia, tudo isso acompanhado de hinos em louvor do livre
comércio e da liberdade, o livre trânsito das ideias e das coisas.7
Na medida, em que o capitalismo se apropria da democracia
como instituição política, a serviço da guerra ideológica, cabe aos socialistas sua recuperação como objetivo tanto tático quanto estratégico, espancando a experiência estalinista, lembrando que mesmo as
principais conquistas da democracia formal, como o direito de voto
e o sufrágio universal, derivaram da luta do movimento socialista.
A questão crucial das vias do socialismo, portanto, não depende do voluntarismo revolucionário ou reformista das forças
socialistas. A escolha das vias deriva da interpretação da realidade
objetiva, ou seja, da correlação de forças. Em outras palavras: é preciso também conhecer a opção da direita. Muitas vezes, ao escolher
o seu caminho, ela determina o nosso.
Abandonando o determinismo geográfico do modelo gramsciano de desenvolvimento oriental e ocidental, digamos que, nas circunstâncias dadas, e em nosso país, a via para o socialismo aponta
o caminho da hegemonia, isto é, a construção do consenso. Retomando Gramsci e seu conceito de ‘guerra de posições’, diremos que
7 Nesse sentido são interessantes os comentários de BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido
desmancha no ar. São Paulo: Cia. das Letras, 16, reimpressão, p. 109-111.
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Roberto Amaral
a batalha revolucionária pelo socialismo, entre nós, considerados
os dados do presente e mantidas as condições atuais, deve desenvolver-se prioritária e predominantemente na sociedade civil, no
plano político e ideológico, “visando à conquista de posições e de
espaços da direção político-ideológica e do consenso dos setores
majoritários da população, como condição para o acesso ao poder de Estado e para sua posterior conservação”.8 A explicação está
também em Gramsci: “A verdade é que não se pode escolher a forma de guerra que se quer, a menos que se tenha imediatamente
uma superioridade esmagadora sobre o inimigo”.9
Resgatando a dialética entre vontade humana e circunstância
histórica, diremos, assim, que não nos cabe escolher – como fruto
de nossa pura vontade, ou de nosso idealismo –, esta ou aquela via
de implantação do socialismo, mas simplesmente optar por uma, a
mais favorável, dentre as vias fornecidas pelas circunstâncias.
O que caracteriza o Estado burguês é seu controle pela classe
dominante, e dominante porque, perdido o consenso, não é mais
dirigente e governa graças à coerção, mediante a qual os interesses
privados de uma classe particular se transformam em interesse geral da sociedade, imposto pelo Estado privatizado e pelo monopólio
da violência. Contrariamente, na transição socialista o Estado – em
sua sobrevida – será administrado pela classe dirigente, dirigente e
não dominante, porque alçada pelo consenso. A partir da realização do consenso, como ponto de partida, tudo será invenção. Não
existe Estado socialista completo, nem sociedade socialista completa, realizada, simplesmente porque todo desenvolvimento cria
novas necessidades, novas funções, novas demandas.
A socialização da produção, nela implícita a diminuição do
tempo de trabalho socialmente necessário, implica a ampliação da
atuação da liberdade humana. Assim, radicalizando a democracia
tout court e superando a democracia representativa, esta sempre a
serviço da exclusão das massas, o governo da transição socialista
8 COUTINHO, Carlos Nelson. Op. cit., p. 147-148.
9 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000,
v. 3, p. 72.
Socialismo e Democracia
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poderá construir formas inovadoras de democracia participativa,
reavivando os conselhos de trabalhadores, os conselhos sociais, fortalecendo os organismos de massas como os sindicatos e os partidos,
construindo as bases da autogestão e da democracia econômica direta, assegurando a passagem do autogoverno para a autogestão.
Já nos anos 20, Gramsci assinalava a permanência, para a democracia socialista, do desafio de construção de um aparelho estatal garantidor a todas as tendências anticapitalistas, da liberdade e
da possibilidade de se tornarem partidos do governo proletário.10
Estavam implícitas tanto a negação do partido único, quanto de sua
ditadura sobre a sociedade.
No socialismo, a democracia é muito mais necessária do que no
capitalismo. Ela se apoia no consenso que admite o pluralismo e o
dissenso. Retomando o marxismo clássico, diríamos que a via preferencial dos socialistas brasileiros é o aprofundamento do processo
democrático, golpeando a democracia representativa, excludente, e
alargando e aprofundando o caminho que nos leva à sociedade civil
e à democracia participativa. Nem o mercado, nem o partido-Estado, mas mecanismos e práticas de democracia participativa complementados, por algum tempo, embora em processo de superação, por
um mercado de representação de base universal e proporcional.11
No longo prazo, a democracia participativa, graças ao mecanismo contínuo e crescente de ampliação, se transformará no eixo
estruturado do Estado, de um novo Estado, o qual, acompanhando
a transição rumo ao socialismo, também acompanhará as transformações subsequentes que se operarão no âmbito da sociedade.
Referimo-nos à sua crescente despolitização, cedendo espaço e vez
à sociedade civil, fundada em uma nova cidadania, a qual, apartando-se da propriedade privada e do individualismo, tornar-se-á
dominantemente social. Ao contrário do que lecionou o socialismo
real, o Estado deve ser desconcertado, até sua final pulverização
10 GRAMSCI. Il problema del potere in: COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, um estudo
sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 35.
11 FERNANDES, Luís. O enigma do socialismo real. Rio de Janeiro: Mauad Editora. 2000, p.
207-209.
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Roberto Amaral
na sociedade civil, uma sociedade civil forte e articulada tendendo
para a autonomia, uma recuperação do civil absorvendo o político,
a sociedade reabsorvendo o Estado, diminuindo progressivamente
a distância entre governantes e governados, fosso que a democracia
representativa propicia e estimula.
A democracia representativa, de índole ocidental, mais e mais
se configura como uma farsa, defraudando a soberania popular, em
face do crescente deslocamento dos centros do poder (e obviamente de decisão) do Estado, e nele do Executivo e dos parlamentos,
para a grande empresa, nacional e multinacional. Assim, retomamos a superação do Estado pela superação crescente de seu papel
político. A progressiva eliminação dos antagonismos e diferenças
de classes substituindo a representação de classe pela participação
da sociedade. Ou seja, e agora simplesmente recupero o Marx da
Crítica ao programa de Gotha, o Estado, de órgão que está por cima
da sociedade, será convertido em órgão completamente subordinado à sociedade. Mas o novo Estado terá novas funções, que não
serão mais a da ditadura revolucionária do proletariado, equívoco
leninista, mas da democracia direta.
Por muito tempo, portanto, na transição ao socialismo e no
socialismo, sobreviverá o Estado. Primeiro, sob controle público,
desprivatizado, exercendo o papel de defesa das grandes massas;
em segundo momento, superados os conflitos, atendendo a funções sociais necessárias e outras que o grau de desenvolvimento
social venha a cobrar, até o ideal, ou a utopia “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades.” Mas,
evidentemente, no Estado socialista não pode sobreviver o Estado
burguês, tal qual o conhecemos; este será destruído (O 18 Brumário) para que, em seu lugar, seja erguida uma nova instituição política, dedicada a funções administrativas e técnicas que persistirão
em qualquer sociedade, como o monopólio da violência.
Assim como não existe a sociedade e o Estado, mas esta ou
aquela sociedade determinada, em transformação, tendente à expansão, e, por exemplo, este Estado brasileiro concreto, que deseja contê-la, não existe uma via determinada e exclusiva, mas uma
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multiplicidade de vias. Esta avaliação nos impõe a segunda das
opções: a via do socialismo revolucionário.
É quase um truísmo a formulação de um socialismo revolucionário, pois o socialismo é a “conquista de um novo modo
de produção, oposto ao modo de produção capitalista. Num
sentido mais amplo, é a conquista de uma nova forma de organização da sociedade humana, livre da exploração do trabalho
assalariado, fundada na autogestão social, e na qual as organizações populares assumem o controle e as decisões em suas respectivas áreas de atuação”.12 Aliás, é exatamente nesta medida
que o socialismo se distingue da social-democracia. Enquanto
esta pretende a reforma do capitalismo, corrigindo-o por dentro, amansando-o, adestrando-o, o socialismo pretende pura e
simplesmente sua derrogação.
Revolucionário, na expressão, diz respeito aos fins, e não aos
meios, pois estes são ditados pela realidade objetiva.
O socialismo é um humanismo que tem como fundamento
uma ética e uma teoria de valores. O conflito ético que nos separa
do capitalismo não se reduz à luta (consciência) de classes gerada
por esse modo de produção, porquanto resulta da consciência revolucionária de que a acumulação capitalista (a riqueza que produz, o desenvolvimento que promove), nela imanente a mais-valia,
tem como base – essa é sua essência inarredável – a exploração do
homem pelo homem. E isto, nós os socialistas, rejeitamos.
Esta a primeira contradição insolúvel.
Rejeitamos a riqueza que depende da pobreza, a fartura que depende da fome, o desenvolvimento que depende do atraso, a democracia que depende da exclusão das massas. Por isso, nosso divórcio
com o capitalismo ser radical, incurável, insanável, inafastável e inegociável, e não se supera com a reforma social-democrata.
A crítica marxista ao capitalismo, ofuscada pelo cientificismopositivista da ortodoxia, é também uma crítica que se fundamenta
12 Resoluções do I Congresso Nacional do Partido Socialista Brasileiro. Brasília,
10 a 12/10/1987.
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Roberto Amaral
em valores éticos, o que se revela na mais simples leitura d’O capital ou do Manifesto Comunista, onde se encontrará a denúncia da
exploração do homem pelo homem, do fetiche da mercadoria, da
reificação das relações entre os homens como relações entre ‘coisas’.
A base fundamental da moral marxista é a recuperação do homem como autor e sujeito da História, isto é, podendo, mas acima de
tudo devendo intervir no processo histórico, acelerar a luta de classes,
‘abreviar as dores do parto da nova sociedade’, ou seja, lutando para a
criação de condições de emancipação do ser humano, de realização de
sua dignidade, a criação de condições mais favoráveis ao desenvolvimento da natureza humana e mais dignas dessa natureza (O Capital).13
O socialismo é uma teoria de valores que, denunciando a injustiça social, e rejeitando a base aética do capitalismo – a exploração do
homem pelo homem – propõe uma teoria de Estado humanista, posto
que suas bases, antes de econômicas, são éticas, e visam a recolocar o
homem no centro do mundo. Assim, torna-se irrelevante se o socialismo é mais ou menos eficiente do que o capitalismo como regime
econômico. Por isso, os socialistas opõem a cultura da transformação revolucionária, copernicana, à cultura da gestão do que (aí) está.
Opomos o movimento à conservação.
Para que os espaços da revolução estivessem bloqueados, seria
preciso que a história estivesse finda. Nessa hipótese, realmente,
nada mais teríamos por fazer, senão administrar o espólio capitalista. Mas aos que falam no fim da história afirmamos sua revivescência. À morte opomos o processo histórico e afirmamos: a
história se faz com a revolução.
À estagnação opomos o processo histórico e afirmamos: Os
socialistas vão fazer a História, e a História se faz com a transformação da sociedade. Não se diz que o capitalismo já esgotou
seu processo histórico. Ao contrário, reconhecemos sua presença
13 Relativamente à questão ética, atrevo-me a sugerir a leitura de HOUAISS, Antônio e
AMARAL, Roberto. Socialismo: vida, morte, ressurreição. Vozes. 2. ed. revista, 1993,
especialmente os capítulos ‘Variações em torno de uma esquecida questão de valores’,
‘Segundas considerações éticas (ou: Cada História tem o Ricardo que merece)’ e ‘Últimas
considerações éticas’.
Socialismo e Democracia
23
objetiva e sua vitalidade. Por isso mesmo somos revolucionários,
conclamando os militantes à ação transformadora. O socialismo
é o pós-capitalismo que no entanto persiste de pé. É preciso, pois,
derruí-lo. E nada disso se alcança com orações.
Não se diz que o capitalismo já esgotou seu processo histórico.
Ao contrário, reconhecemos sua presença objetiva e sua vitalidade.
Também não se repete a fantasia dos ‘revolucionários’ descendentes do marxismo fundamentalista, para os quais a construção da
nova sociedade é inevitável, determinismo histórico ou fatalismo
religioso. Para eles, haja o que houver, o rio sempre desemboca
no mar. Dito de outra forma, o socialismo chegaria até por milagre. Daí, em muitos, a inação, meio de aderir ao statu quo: esperar
na estação a chegada do trem para nele embarcar. Ao contrário,
afirmamos mesmo a necessidade da ação revolucionária, porque
o capitalismo não é um modo de produção natural, provisória e superável, mas regime que reúne muitos meios e reservas de proteção
e superação de crises. Já em 1926, Gramsci observava que “Nos
países de capitalismo avançado, a classe dominante possui reservas
políticas e organizativas que não possuía, por exemplo, na Rússia.
Isso significa que até mesmo as crises econômicas, gravíssimas, não
têm repercussões imediatas no plano político”.14
O determinismo suprimia a necessidade da ação revolucionária, tornando supérfluo o combate ao capitalismo, donde a confusão entre as próprias reformas do capitalismo com socialismo.
Retomemos a questão.
A ideia fundamental do socialismo científico, isto é, do determinismo derivado do materialismo histórico, é que o regime capitalista, devido às suas próprias contradições internas, prepara para si
mesmo o momento em que tem de ser desmantelado. O fundamento
científico do socialismo, como é sabido, estamos agora lendo Rosa de
Luxemburgo, baseia-se em três resultados principais do desenvolvimento capitalista: (i) na anarquia crescente da economia capitalista,
a qual conduz à sua ruína inevitável; (ii) na socialização crescente do
14 In ‘Un esame della situazione italiana’ apud Coutinho, Carlos Nelson. Op. cit., p. 99.
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Roberto Amaral
processo de produção, que cria os germes do regime social futuro; e,
(iii) no reforço crescente da organização e da consciência de classe
do proletariado, que constitui o fator ativo da revolução.15
A certidão dos fatos históricos parece desautorizar a previsão
‘científica’, que não pôde prever a notável capacidade de adaptação
que o capitalismo vem revelando, desde a revolução industrial.
De uma forma ou de outra, porém, o que se evidencia é que o
desenvolvimento das forças produtivas materiais não é suficiente
para desencadear, por si só, a contradição insolúvel com as relações
de produção vigentes. De outra parte, o que a vida contemporânea nos oferece é a expansão do setor serviços sobre o industrial
e o peso crescente da ideia e do conhecimento, em face da mão de
obra, alterando substancialmente a base material da produção. E
por fim, mas não menos importante, o esmaecimento do proletariado como valor ativo da revolução. Não sei se seria ousar muito
afirmar mesmo a adaptação contemporânea da classe operária (ou
de sua ‘aristocracia’ industrial-corporativa) às condições criadas
pelo capitalismo, ou a redução do sindicalismo ao espaço da fábrica, olvidadas as questões gerais da sociedade e da nação. Daí
muitas das vitórias da social-democracia.
Quer isso dizer que o socialismo não é necessário ou que a
revolução não é mais possível? Não. Afirma-se que um e outra precisam ser buscados, perseguidos, construídos. Que derivarão da
luta social, e não da frieza de uma lei histórica, ainda à espera de
demonstração. O reconhecimento da existência de “contradições
internas” no capitalismo, tendentes ao agravamento, não justifica
a expectativa hegeliana que via nessas contradições o anúncio de
uma forma superior de sociedade.
Quer isso dizer que a transformação socialista da sociedade é
mera utopia? Não. Afirmamos que a marcha do desenvolvimento capitalista não nos conduz inexoravelmente ao socialismo, como resultado da pura ação de leis internas da história. Será sempre a opção
ético-existencial daqueles que se rebelam contra a imoralidade da
15 In Reforma ou revolução? São Paulo: Edições Elipse. s/d., p. 8.
Socialismo e Democracia
25
exploração do homem pelo homem (é verdade que sempre houve
exploração do homem pelo homem, como na escravidão, mas não
estavam dadas as condições objetivas para o pleito socialista). Por
isso o socialismo é um humanismo. Por isso, negamos o reformismo
e defendemos a revolução, entendida como intervenção na realidade
social, alterando o curso da História, mediante, por exemplo, a construção de novas bases materiais para a edificação da nova sociedade,
revolucionando as formas de produzir e de se relacionar com a natureza. Lembremos Marx: ‘Cada passo de movimento real vale mais do
que uma dúzia de programas’.16
A segunda contradição insuperável diz respeito ao modo de
produção capitalista, de que resulta o conflito capital-trabalho. O
socialismo tomou o partido do trabalho e esta opção persiste, e aliás se aprofunda, na medida em que o desenvolvimento da ciência
e da tecnologia altera a base material da produção. Porque a nossa
opção não se limita ao proletariado, ao operário organizado; optamos pelo trabalho em qualquer de suas manifestações, e à defesa
do assalariado. O socialista revolucionário do terceiro milênio denuncia a exploração do trabalho – manual, intelectual –, denuncia
a persistência da mais-valia, inerente à apropriação capitalista, mas
também quer representar os excluídos, os que não conseguiram
integrar-se na relação de produção capitalista; quer representar os
camponeses, os sem-teto e os sem-terra, mas também o pequeno
empresário, o pequeno produtor, o trabalhador autônomo. O desafio é este: em face da realidade objetiva, elaborar uma teoria revolucionária e criar uma organização revolucionária capaz de operá-la.
Para conduzir esse processo, Gorender17 indica uma nova força revolucionária, o ‘bloco dos assalariados em geral’, liderado pelos
assalariados intelectuais. Esse bloco compreende, além dos intelectuais, detentores da informação e do conhecimento e inseridos na
produção, o proletariado industrial, os trabalhadores em geral, os
trabalhadores autônomos e a pequena-burguesia.18 Sem qualquer
16 Carta a W. Bracke, Londres, 5/5/1875.
17 Cit. p. 232 e 240-241.
18 Idem. Escreve (p. 230): “Poderíamos afirmar, de maneira tosca, que, na expectativa de uma
revolução, se repetirá o esquema do grande movimento de maio de 1968 na França. O mo-
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Roberto Amaral
papel revolucionário, o lumpemproletariado e as vítimas da exclusão social deverão ser transformados em incluídos, para realizar sua
implosão, atuando dentro do sistema. Para o autor de Marxismo sem
utopia, “o proletariado rural e o campesinato se tornaram classes residuais, de pequena significação”. Ao mesmo tempo em que o proletariado industrial sofre “o impacto do processo de encolhimento e
perda da força social” e avulta o papel dos assalariados intelectuais,
seja pelo seu crescimento numérico, seja pelo papel que passam a
desempenhar na sociedade, como “detentores do fator cada vez mais
decisivo no processo de produção, ou seja, o fator conhecimento”.19
O quadro de hoje revela duas derrotas do socialismo: a da social-democracia, revogando o Estado do Bem-Estar Social para o
qual tanto contribuíram as lutas dos socialistas de todo o mundo,
e a derrota do Estado leninista, com a derrota da via democrática,
e, afinal, com a dêbácle do socialismo real, simbolizado na queda do Muro de Berlim. Essa é também a derrota do bolchevismo
com tudo o que lhe é inerente, a começar pelo partido único e o
Estado totalitário, fazendo revivescer a democracia progressiva de
Togliatti, que implica a construção do socialismo com pluralidade
de partidos e de movimentos sociais. Esse é o desafio do socialismo
do terceiro milênio.
A história vem mostrando a inconsequência do cientificismomecanicista e, dele resultante, da tese do amadurecimento espontâneo
das condições objetivas; a lição nos diz que é preciso criar as condições
subjetivas da ação revolucionária. Se o socialismo não é o resultado
inevitável da evolução econômica, o capitalismo tem de ser combatido
todas as horas. A resistência do capitalismo, mais forte do que nunca, e mais resistente do que se supunha, superando os seguidos ciclos
de crise, vem denunciando, de um lado, a impotência do positivismo
marxista da II Internacional, e, de outro, a ilusão social-democrata.
vimento foi iniciado pelos estudantes e, já desencadeado, recebeu a adesão dos operários,
dando lugar a uma greve de nove milhões de trabalhadores com a duração de três semanas.
Sem dúvida, a maior greve da História. Os trabalhadores foram os últimos a entrar no
movimento e os primeiros a sair. Quando saíram, depois de concluir um acordo com o patronato e o governo, esvaziaram o movimento. Numa conjuntura revolucionária, pode-se
ter a expectativa de que o esquema se reproduza com um final diferente”.
19 Idem, p. 231.
Socialismo e Democracia
27
Ao contrário das formulações de Bernstein e Kautsky (confundindo as próprias reformas com o socialismo, o movimento com o
objetivo final),20 o processo econômico do capitalismo não o leva, por
si só e necessariamente, ou espontaneamente, ao socialismo; a História
contemporânea revela sua sobrevivência, crise após crise, no oriente e
no ocidente, entre os desenvolvidos e os periféricos. Um capitalismo
cada vez mais financeiro, concentrador, monopolista e excludente, que
domina a economia e os sentimentos, o mercado de bens materiais e o
mercado de bens simbólicos, o petróleo e a guerra, mas igualmente a
vontade e os sentimentos graças ao monopólio ideológico.
O mundo do Manifesto Comunista se reapresenta assim em
nosso cotidiano: o mercado mundial sobre as cinzas dos mercados
nacionais, transformando em internacionais a produção e o consumo; os desejos estimulados e universalizados superam as necessidades humanas e os recursos do meio-ambiente; o capitalismo se
concentra e a comunicação se torna universal, reduzindo o mundo;
a produção se concentra de maneira progressiva e se centraliza em
fábricas altamente automatizadas e as fazendas se transformam em
fábricas e o campo é absorvido pelas cidades, o camponês perde a
terra e o pequeno produtor sucumbe na concorrência com o agronegócio. Lia-se no Manifesto, no já distante 1848:
Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para
sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos
climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se
um intercâmbio universal, uma universal interdependência
das nações. E isso se refere tanto à produção material quanto à produção intelectual. (…) A burguesia suprime cada vez
mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da
população. Aglomerou as populações, centralizou os meios
de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos.
A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política.21
20 COUTINHO, Carlos Nelson. Op. cit., p. 15.
21 Cf. Marx, K.; Engels, F.. Obras escolhidas. Rio: Editorial Vitória, 1958, v. 1, p. 25.
28
Roberto Amaral
A implantação do socialismo como inevitável fruto dialético da
guerra de opostos, da luta de classes entre o proletariado e a burguesia, não é nem determinismo nem fatalidade. Trata-se, esta concepção, de uma reminiscência do ‘marxismo’ religioso. Ao revés, a
história mostra que há sempre a alternativa da ruína das classes antagônicas, e desse conflito pode resultar a barbárie, como muito bem
escreveu Rosa de Luxemburgo para nos ensinar que, se o socialismo
é uma possibilidade, talvez até favorecida pela história, não é uma
consequência inelutável. O socialismo não é uma dádiva histórica,
mas uma escolha política. Sendo uma mera possibilidade, precisa
ser buscado. A construção do socialismo passa a depender da luta
ideológica e da conquista do consenso dos setores majoritários.
A conquista da hegemonia das forças democráticas no âmbito
da sociedade civil se antecipa à conquista do poder porque a classe
revolucionária deve ser dirigente antes de ser dominante. Se não há
revolução socialista imediata, mas simplesmente a possibilidade de
um governo sob o comando de socialistas, sem condições de alterar a essência do regime capitalista, a tarefa colocada pela história
é a de criar condições para a transição rumo ao socialismo. Essa
transição é a nossa grande marcha, segundo as condições objetivas
dadas, a guerra de posições, de consolidação de espaços, de embate
ideológico, lutando para fazer a revolução por baixo, na sociedade
civil, através do consenso, na busca da hegemonia, uma forte sociedade civil que abra caminho ao autogoverno dos cidadãos. Só aí a
democracia estará plenamente realizada.
Se o velho está morto e o novo não pode nascer, ainda, apressar o parto da história é nosso papel. E isto é ser revolucionário.
Provar, todo dia, que é possível, graças à ação organizada, mudar
o mundo.
(4 de agosto de 2001)
Socialismo e Democracia
29
II
A esquerda socialista:
impasses e alternativas
Mensagem aos que acreditam
que outro mundo, melhor, é possível
Cento e vinte e cinco anos depois de Lasalle e cem anos
depois da fundação da Segunda Internacional, os partidos
socialistas e trabalhistas estão tão perdidos que não sabem
para onde ir.
Eric Hobsbawm1
Introdução (a crise da representação)
O pressuposto de nossas reflexões é este: na crise política, o
relevante é a crise da representação, que se agrava a cada pleito.
O alarma, portanto, não vem do sistema democrático, que se consolida, mas de seu modelo representativo. Referimo-nos ao fosso
cada vez mais profundo que se cava entre a vontade do cidadão
(expressa no voto) e o exercício do mandato pelo seu representante. É a este fenômeno que estamos chamando de crise da representação. Relativamente à atividade política, há duas questões
distintas. Primeiro, a falência do sistema de partidos, e segundo,
para além dela, a já referida crise ideológica da esquerda, isto é,
a crise do pensamento de esquerda em geral e, principalmente, a
1 Estratégias para uma esquerda racional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
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crise do pensamento da esquerda socialista, determinante da crise das organizações de esquerda. Assim não há porque referir-se
à crise isolada desta ou daquela organização do campo tradicional das esquerdas. A crise é anterior, mais profunda e mais larga:
remonta ao sistema de partidos (o qual, carente de legitimidade,
pede reforma). Fenômeno autônomo é o que chamaremos de crise da esquerda, como movimento social-político-revolucionário
(para além, portanto, da crise de cada uma de suas organizações).
A tese recorrente é esta: a esquerda parece haver abandonado o
leito natural de sua existência e fazer políticos, sem haver encontrado um novo norte. Não se trata, porém, esse fenômeno, de
particularidade nossa. A crise tem evidentes raízes e movimentos
internacionais.
Com o avanço do neoliberalismo e o recuo da esquerda socialista para posições tradicionais da social-democracia, a esquerda
também renunciou ao seu projeto histórico, seja o projeto socialista da superação do capitalismo, seja o projeto social-democrata
de humanizá-lo, impondo regras ao livre mercado, pela via da
intervenção estatal e do distributivismo.
Entendemos que a crise das organizações de esquerda deriva da crise programática da esquerda socialista. Perdidos os paradigmas que se misturam com os destroços do Muro de Berlim,
destruída a fantasia do Leste Europeu, a esquerda socialista, desamparada, mantém firme os fundamentos da crítica ao capitalismo, mas não consegue construir o caminho de uma proposta
objetiva, sonhável no curso de uma geração. Atônita, renuncia
ao projeto histórico, mas não consegue construir seu substituto
e, assim, corre o risco de, sem discurso contemporâneo, perder
objetivo: em crise, em face da realidade, olha o futuro pelo espelho retrovisor.
Do ponto de vista organizacional, cabe registrar a desestruturação dos partidos comunistas da Europa Ocidental após a
débâcle do Leste Europeu, bem como a crise dos partidos socialistas e trabalhistas e sociais-democratas. O melhor exemplo de
32
Roberto Amaral
falência programática é oferecido pelo Partido Trabalhista inglês2
e nada melhor poderia ilustrar o transbordamento para a via eleitoral da exaustão ideológica que a derrota do Partido Socialista
francês nas eleições presidenciais de maio de 2002. Visto o panorama deste plano, a paisagem da América do Sul, com Chávez,
Lula, Kirschner e Vázquez,3 é animadora, e enseja ao nosso país a
oportunidade do exercício de uma liderança a que não está alheia
nossa diplomacia.
A saída pedida pelo impasse é aparentemente simples: retomar as raízes históricas da esquerda e reassumir seu papel transformador do mundo. Mas que papel é este, hoje, se, no governo,
conquistado pelo voto, a esquerda descobre que sua missão é tão
só o combate à inflação, a busca da estabilidade monetária, em
síntese, assegurar a tranquilidade do mercado, livre, onipotente
e onisciente? Qual é, portanto, o papel reformador das esquerdas
se, no governo, as circunstâncias – ou a correlação de forças, se
preferirem – impõem a manutenção das regras do jogo?
Como ser a esquerda revolucionariamente contemporânea?
Que nova sociedade prometer?
Estas, as questões que pretendemos discutir.
Esta reflexão que, lembremos, não tem a veleidade de encerrar a verdade toda, não pretende refazer o rol dos acontecimentos, mas analisar (tirando consequências) o que de fato
ocorreu e propor alternativas ao impasse. Uma delas é a construção coletiva, com a sociedade, de um projeto nacional, de
bases populares, nacionais e desenvolvimentistas.
2 Os trabalhistas são minoritários no Parlamento britânico. O PSF voltou a perder as eleições em 6/5/2010. (Nota de 2010)
3 Acrescente-se a eleição de Fernando Lugo. (Nota de 2010)
Socialismo e Democracia
33
A opção democrática como princípio radical4
Nossas teses
São as seguintes as principais teses que este texto procurará desenvolver, e nesse ponto se limita sua contribuição para o debate:
•• o impasse brasileiro é este: como construir um governo de
centro-esquerda em país no qual as classes dominantes detêm
o consenso?;
•• a esquerda socialista cumpre papel fundamental no apoio ao
governo do presidente Lula; é seu dever histórico fortalecer sua
presença na coalizão da base de governo para assim poder influir
na condução política, lutando pela hegemonia interna; a esquerda socialista não pode descurar da necessidade de ampliação de
apoio interno e social com vistas a assegurar, na correlação de
forças estabelecida, o avanço das correntes mudancistas;
•• a batalha que incumbe à esquerda se desenvolve, simultaneamente, dentro do governo e na sociedade civil (da qual, todavia, perigosamente se está desvinculando, ao afastar-se dos
movimentos sociais que lhe dão seiva e sentido);
•• essa verdadeira ‘guerra de posições’ tem por objetivo a conservação e aprofundamento dos espaços conquistados, no
governo e na sociedade; mas seu fim estratégico deve ser a
conquista da direção político-ideológica das formações majoritárias da sociedade, sem o que não construirá a hegemonia
no governo, nem contribuirá para sua conservação;
•• partido e governo têm funções distintas que não podem se confundir; e o partido deve estar sempre à esquerda do governo;
•• a crise das esquerdas (assim mesmo no plural), não é brasileira, nem nasce com o governo Lula. Sua emergência sim4 Estas reflexões foram desenvolvidas, de forma mais extensa e aprofundada, no estudo
‘A crise política brasileira e a crise da esquerda socialista: procurando alternativas ao
impasse’, publicado em Comunicação&política, v. 23, n. 1.
plesmente acentua nossa perplexidade em face do desafio
constituído pela experiência inédita de governo, a qual coloca
para o militante, feito homem de Estado, o dilema entre a paixão política e a razão de Estado;
•• Eric Hobsbawm refere-se a uma crise internacional dos partidos de esquerda já em 1989, certamente tendo como ponto
de observação a derrota simbolizada pela queda do Muro de
Berlim; entre nós brasileiros, para não retomarmos as raízes de
1935, poderemos indicar como marco de nossa crise o golpe
militar de 1964, e as diferentes formas de enfrentá-lo, todas experimentadas por uma esquerda esgarçada ideológica, política
e organizacionalmente;
•• no quadro de crises, característica da vida das esquerdas brasileiras, a conjuntura revela o desconforto resultante da incapacidade de formular uma teoria que explique e oriente a
prática de governo numa realidade ideológica adversa; por
consequência dessa dificuldade, a esquerda mostra-se desnorteada, admitindo bandeiras que jamais foram suas, como
o moralismo como valor em si, e sem condições de formular
uma teoria da ‘co-habitação’;
•• nem a coalizão vitoriosa, nem o governo, nem os partidos de
esquerda dentro e fora do governo conseguiram formular do
ponto de vista teórico – daí a crise colocada pela prática –, o
projeto de transformação pacífica e democrática da sociedade, isto é, dentro dos marcos da democracia representativa
e dos dados do mercado, embora não haja dúvida quanto à
opção pelo caminho democrático lato sensu;
•• o partido vitorioso nas eleições vê-se na contingência de desenvolver políticas que contradizem seu ideário e os programas adotados desde a fundação, sem condições objetivas de
promover uma discussão com suas bases e a partir dessa discussão encetar uma revisão programática, visando a compatibilizar teoria e prática, o que pode levá-lo a afastar-se dos
movimentos sociais que lhe deram origem;
Socialismo e Democracia
35
•• a esquerda não deve, porém, ficar refém desse impasse, sob
o pretexto de que qualquer demonstração de independência,
ou busca de caminhos próprios e diversos ajuda à direita; por
isso os partidos de esquerda devem recusar o papel de aliados
objetivos e exercer o papel de aliados programáticos; para tal,
porém, é preciso abandonar a inação;
•• a grave crise dos partidos de esquerda insere-se numa crise universal dos partidos em geral, talvez um pouco mais grave no Brasil, onde jamais houve tradição de estruturas partidárias sólidas;
•• a representação política está em crise porque os partidos romperam com seus compromissos com as bases eleitorais e perderam
a confiança da militância; mas está em crise, também, porque a
mediação do poder econômico, do poder político e dos meios de
comunicação, por sua vez ponta de lança do poder econômico
no processo eleitoral, distorce a vontade do eleitor, e o que seria
mera representação transforma-se em delegação sem limites;
•• a democracia, em si, é um bem inquestionável; mas a democracia representativa, que com ela se confunde, não é a sua única
e melhor expressão;
•• as assembleias, nominalmente eleitas pelo povo, substituem a
vontade dos representados pela dos representantes; crescentemente vem sendo anulada a separação de poderes e cada vez
mais os Executivos, quando não o sobranceiro Judiciário, como
no Brasil, exercem a iniciativa legislativa, atuam como poder
legiferante (v.g. Medidas Provisórias) e controlam a pauta das
atividades do Congresso;
•• há uma profunda crise da democracia representativa e, dentro
dela, do mandato eleitoral, em todas as instâncias, o qual, carente
de legitimidade, cada vez menos representa a vontade do eleitor;
•• a democracia que nós socialistas defendemos é a democracia
participativa, em busca de um Estado pluralista e de uma sociedade aberta a projetos associativos; ela compreende, além do
referendum revocatório e do mandato imperativo, a consulta
36
Roberto Amaral
popular permanente e a organização, a mais ampla possível, da
sociedade civil;
•• a reforma política impõe-se como fato objetivo, mas não pode
ser operada como simples artifício jurídico; os partidos também precisam ser reformados por dentro;
•• a globalização, não obstante sua assimetria, é fato objetivo e,
em muitos aspectos – como a tecnologia, as comunicações e a
economia –, irreversível; mas isso não se aplica igualmente à
ideologia da globalização, chame-se de neoliberalismo, chamese simplesmente de fundamentalismo de mercado;
•• a globalização, ao contrário do que supunham os analistas
apressados, reforça o Estado nacional e o nacionalismo, o desenvolvimento nacional e, principalmente, o desenvolvimento
cultural, em todos os níveis, mas, de especial, reclama o reforço
de nossas diversidade e identidade culturais; o reforço cultural,
rejeitada a opção pela autarquia reacionária, é alternativa que
se coloca à sobrevivência dos povos.
O primeiro governo Lula
O governo liderado pelo presidente Lula não pode ser entendido como produto da história isolada do PT. Ao contrário, deve
ser visto como o resultado da acumulação das lutas sociais, conquista dos trabalhadores, dos liberais e dos socialistas, de todos
os democratas. Para a grande vitória de 2002 muito contribuíram
batalhas já esquecidas e heróis consumidos pelo processo histórico. Isto quer dizer que o governo de centro-esquerda não pode ser
apropriado nem por uma sigla, nem por um conjunto de partidos,
e que somos, coletivamente, responsáveis não apenas pelo resultado eleitoral, etapa vencida, mas, do mesmo modo, pelo caráter
do governo. E isso exige partilhar responsabilidades. O destino do
governo Lula, hoje, se confunde com os destinos da democracia e
com a esperança dos brasileiros que ainda acreditam na emancipação nacional, na viabilidade de um projeto nacional de desen-
Socialismo e Democracia
37
volvimento. Brasileiros e cidadãos que ainda confiam na força da
vontade soberana do povo como instrumento de mudança.
Na democracia, é fundamental que o cidadão não se sinta
fracassado como eleitor. Por isso mesmo, é preciso envidar todos
os esforços visando a impedir que a vitória eleitoral se transforme
em frustração política, afastando de nossas expectativas históricas a emergência de um governo de esquerda, no que apostou
majoritariamente o eleitorado brasileiro nas eleições de 2002.
A opção democrática como princípio radical
Se o resultado do pleito reflete o anseio nacional e consolida
as conquistas políticas e os avanços de nossa sociedade, o processo democrático não é produto das elites brasileiras, que jamais
titubearam em ferir a Constituição e impor regimes autoritários
ou ditaduras francas. Ao contrário, a democracia, com todos os
seus percalços, foi uma conquista do povo, nos embates contra as
ditaduras, nos cárceres, nas ruas, nos sindicatos, nas escolas, no
Congresso, em todos os espaços do movimento social. Desta conquista não podemos abrir mão. Com a democracia, sejam quais
forem seus condicionantes e suas limitações, crescem as condições de organização dos trabalhadores, dos assalariados em geral,
e dos intelectuais. Crescem as condições favoráveis ao debate e
à discussão das questões fundamentais da sociedade. Preservar
e aprofundar a democracia – sem, porém, jamais conformar-se
com seus limites –, é nosso dever de socialistas, como é nosso
dever preservar e ampliar as liberdades conquistadas no embate social. Mas uma questão se coloca, no mundo, e entre nós de
forma ingente e urgente: será que o processo democrático, assim
como o praticamos, é incompatível com a mudança?
A democracia representativa vem assegurando níveis muito
baixos de influência popular, tanto no processo de tomada de decisão quanto no de mera consulta, e cada vez menos os interesses da sociedade civil se fazem representar no jogo político, e os
partidos políticos, exclusivamente eleitorais, isto é, limitados ao
38
Roberto Amaral
jogo eleitoral, têm como missão tornar as eleições uma escolha
relativamente simples entre um pequeno número de opções que
não ensejam alternativas. Nessa engenharia, os “[…] partidos de
esquerda só podem vencer, na melhor das hipóteses, periodicamente, e, quando vencem, a margem para a mudança social e política ampla por meios parlamentares é muito restrita”.1
Sabidamente, a alternância de partidos e governos, nas democracias representativas, não tem sido suficiente para assegurar mudanças no controle do poder do Estado. E quando essas se insinuam,
ainda que respeitando o ritual das regras do jogo, a direita não tem
titubeado em fraturar a institucionalidade, com vistas a assegurar
a incolumidade do statu quo, o que, portanto, bloqueia as políticas
mudancistas. Hoje, no Brasil, as classes dominantes detêm o controle
do Estado, daí não precisarem de lançar mão da coerção, como ocorreu em épocas passadas. Trata-se, porém, de dado conjuntural, ou
seja, de característica desse expresso momento histórico.
Se, e este é um pressuposto com o qual trabalhamos, não pode
a esquerda socialista acenar para o povo, mesmo ganhando as eleições, com a perspectiva da revolução socialista (conceito que, aliás,
precisa ser revisitado), qual é seu papel, qual é seu programa, qual é
sua promessa de dias melhores? Mediante qual projeto de governo e
de vida a esquerda pretende atrair a nova classe média, enfrentar a
desproletarização dos trabalhadores cada vez menos utilizados pela
indústria, e ainda atrair para suas fileiras os trabalhadores terceirizados, em economia cuja característica é a progressiva substituição
das atividades manufatureiras pelos serviços, a difusão e crescimento daquelas atividades econômicas alimentadas pelo conhecimento?
Como falar aos despossuídos, aos não organizados, aos afastados da produção, o desempregado e o subempregado, os miseráveis
que sequer produzem mais-valia para ser explorada? Para essas
multidões – vítimas da comercialização da fé, do assistencialismo
e do populismo – a esquerda não tem conseguido formular um
discurso. No entanto, são a base de sustentação do governo Lula,
1 HIRST, Paulo. A democracia representativa e seus limites. Rio: Jorge Zahar Editor.
1993, p. 14.
Socialismo e Democracia
39
principalmente na medida em que o presidente caminha para além
dos paradigmas partidários.
O bloqueio da revolução não pode significar, necessariamente, renúncia estratégica, ao contrário, coloca na ordem do
dia a transição dentro do sistema. Dito por outras palavras, se
não podemos concordar com a conservação deste Estado e de
sua política, ao mesmo tempo em que as condições objetivas não
permitem a construção do novo Estado, ser revolucionário, nessas circunstâncias, é lutar pelas transformações, pela esquerda,
dentro do Estado e do governo, explorando as contradições internas em busca da hegemonia, mas a elas não se cingindo, pois
é fundamental trabalhar na base da sociedade, na organização da
sociedade civil, junto aos sindicalistas e aos intelectuais. Porque
a crise política da esquerda brasileira decorre exatamente de sua
derrota ideológica, formular sua estratégia e retomar a luta pela
hegemonia é o caminho que se coloca. Recusado o determinismo
histórico fundamentalista, aos socialistas se impõe a ação, o agir
permanentemente, a intervenção ativa na realidade, sem jamais
perder de vista que a contradição fundamental é com o capitalismo, mesmo quando nos cumpra administrá-lo. Mas sem formulação teórica não há atividade política efetiva.
Se falharmos, a História não nos perdoará.
A crise da democracia representativa
(…) Na campanha é natural um certo oportunismo. Com jogada de marketing, você cria um mito, conta uma história.
O meu mito era fácil, era o real, moeda, estabilidade. O Lula
era ele próprio, a vida dele. Eu não estava mentindo, realmente tinha feito o real. O Lula também não, ele representa a
ascensão de uma camada. Mas uma coisa é campanha e outra
é governo. No governo, não bastam paz e amor.
Fernando Henrique Cardoso2
2 Em entrevista ao senador Cristovam Buarque in: Comunicação&política, 23/1/2005.
40
Roberto Amaral
O segundo turno das eleições municipais de 2004 concluiuse, sem surpresas, ao consolidar as piores promessas do primeiro
turno: a democracia representativa (na qual a esquerda apostou)
saiu ferida, e a esquerda fragmentada e sem rumo.
Mais do que tudo, a esquerda ficou sem discurso, daí sua derrota política. Não me refiro, portanto, ao desempenho eleitoral
das siglas que tradicionalmente habitam o chamado campo das
esquerdas, mas àquele conjunto de ideias e programas que distinguem no Brasil e no mundo o pensamento de esquerda, o qual
ficou desamparado.
Entre os que se debruçaram e se debruçam sobre o processo
democrático ocidental, Bobbio à frente, é unânime o registro de seu
progressivo distanciamento das raízes da vontade popular, pois essa
manifestação se revela eivada de vícios aparentemente irremovíveis:
a mediação dos meios de comunicação de massas, pervertendo o
pronunciamento eleitoral, a intermediação corruptora do poder
político, e a intervenção, a cada eleição mais decisiva, do poder
econômico, distorcendo a vontade eleitoral. Acrescentem-se, na experiência brasileira, a fraude eleitoral, minimizada mas sobrevivente, a terrível pobreza das grandes massas, as deficiências do sistema
eleitoral-judicial, a diminuição do papel da militância (substituída
por profissionais), a ação das máquinas partidárias – fenômeno
que parece imanente aos partidos de massas – sepultando a democracia interna e, finalmente, o império das práticas e métodos
do marketing, afastando a política e transformando candidatos em
atores ou produtos a serem ‘vendidos’ e ‘consumidos’.
Lembremos que o eleitorado é chamado a escolher em face de
uma pré-escolha – esta levada a cabo pelas máquinas partidárias –, o
que reduz a margem de manifestação da soberania popular, chamada a optar diante de poucas alternativas. São interesses muitas
vezes estranhos ao processo eleitoral, como a manifestação dos interesses da burocracia partidária, os interesses dos financiadores,
as preferências dos meios de comunicação de massas, os condicionamentos de pesquisas de opinião, o apoio das máquinas públicas ou corporativas, a maior ou menor capacidade de o candidato
Socialismo e Democracia
41
adaptar-se às exigências do novo espaço decisório da política, a televisão, ou antes, sua presença no vídeo como pré-condição à candidatura. Trata-se, observe-se, de pré-condição perversa em país
que vive sob o quase monopólio privado da televisão.
Escolhidos os candidatos – e dentre os poucos candidatos
expostos ao voto, só uma minoria está realmente disputando as
eleições – estes, agora pouquíssimos, são ainda discriminados
pela presença diferenciada nos meios de comunicação e particularmente no horário reservado à propaganda eleitoral no rádio e
na televisão, e assim por diante. São tratados de forma diferenciada, igualmente, no apoio financeiro e no rateio das quotas do
fundo partidário.
Essas características não são peculiaridades do processo
brasileiro (oferece-se para análise a tragédia da democracia eleitoral norte-americana), mas aqui também está atingindo proporções que põem em risco a legitimidade da manifestação da
soberania popular.
Tais mazelas – que se repetem eleição após eleição, e em intensidade cada vez maior –, não encerram, porém, a crise toda da
democracia representativa. Ela se agrava com a percepção crescente – pelo eleitorado –, da inutilidade do voto como instrumento
de mudanças, porque não há compatibilidade entre as plataformas
de campanha (que deveriam significar um pacto entre candidato e
eleitor), de um lado, e o desempenho dos mandatos, de outro. Os
compromissos de mudança construídos na oposição se transformam, no governo, em adesão ao sistema antes condenado, o que
não deixa de constituir fraude contra o processo eleitoral, pois, votando nas propostas da oposição, o eleitor termina por consagrar a
sobrevivência do programa de governo cuja derrogação pretendera
determinar com seu voto. O parlamentar não se sente comprometido com seu eleitorado, atua como instituição autônoma, sem vínculo seja com a vontade eleitoral seja com a orientação partidária.
Trata-se de evidente violação da vontade do eleitor.
A alternância partidária não significa alterações programáticas,
e, eleição após eleição, nada obstante a troca de siglas, permanece em
42
Roberto Amaral
todos os planos a mesma orientação de governo, o predomínio da
mesma ordem de interesses, das classes dominantes, a mesma voz,
o mesmo discurso, sem interrupção, continuamente, permanentemente, fazendo do governante presa fácil e inerte de um roteiro previamente escrito pelos donos do poder.
Em entrevista a Cristovam Buarque, o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, comentando o acesso da esquerda à Presidência e a impossibilidade de realizar seu programa, observa: “Você
chega lá [na Presidência], como o Lula está lá hoje, com toda sua
formação política e não tem como pôr em prática [o programa da
esquerda]. Porque o mundo é outro. O mundo é outro, não é? Mudou muito, profundamente”.3
Referindo-se a antigo diálogo com o deputado Ibsen Pinheiro,
então presidente da Câmara dos Deputados, o jornalista Franklin
Martins observa que “os políticos não fazem exatamente aquilo que
publicamente dizem que farão – às vezes com sinceridade, honestamente –, mas sim, aquilo que o jogo político da sociedade, o amadurecimento da sociedade, o conflito entre os diferentes interesses da
sociedade permitem que seja feito”. Escreve ele: “Há muito tempo,
logo depois da queda do presidente Fernando Collor, o deputado Ibsen Pinheiro – à época ele era presidente da Câmara dos Deputados,
depois foi cassado naquela leva do escândalo dos anões do orçamento, um político brilhantíssimo e um grande analista político – disse,
durante um almoço com jornalistas, algo que me pareceu surpreendente: embora Collor tenha sofrido um impeachment, sua agenda
continua na mesa e terá de ser cumprida pelo próximo governo, seja
ele qual for. E acrescentou: ‘a política é uma coisa curiosa; às vezes
quem realiza o programa não é o partido que o propôs, mas um partido adversário, ou seja, às vezes os fatos e a dinâmica da política têm
uma força tal que se impõe a todos os partidos’”.4
Silviano Santiago refere-se a um “círculo vicioso conservador”
e afirma que “Um dos ônus da esquerda desde a queda do Muro de
3 Ibid.
4 MARTINS, Franklin. ‘Governo Lula: coalizões políticas e urgências sociais’. Dez./2002.
O texto integral está em www.redeglobo.com.br/franklinmartins
Socialismo e Democracia
43
Berlim é o de fazer na prática o trabalho sujo que a direita hegemônica (no caso, o neoliberalismo) gostaria de fazer e não o teria
conseguido por falta de apoio popular”. Sua tese é exemplificada
com o governo socialista de François Mitterrand, o qual, segundo
Silviano, “foi levado a tomar atitudes e a fazer as reformas impopulares que a direita no poder não teria conseguido. Só a esquerda
teria o apoio para justificar tais atitudes e fazer as reformas.5 No
Império, a abolição da escravatura foi decretada pelo Gabinete do
Partido Conservador, e escravocrata.6 As siglas partidárias, indiferenciadas, não disputam o discurso, e se apresentam como alternativas sabendo que não serão alternativa, ao chegar ao poder;
travam pura e simplesmente a briga pelo micropoder, ao qual se
amoldam como o líquido, que se adapta ao seu invólucro.
Como se caminhássemos no Brasil para aquela ‘racionalidade’
das grandes nações europeias, em que todos os riscos estão eliminados, e nas quais a ausência de sobressaltos é a fiadora do processo democrático. Nelas, a política eleitoral-partidária já é percebida como
algo irrelevante, sem significado ou influência na vida das pessoas.7
É a real ditadura do discurso único embutida na pluralidade
ideológica sugerida pela democracia formal.
Volta-se, por estas artes, à discussão de tema muito caro às
esquerdas de anos passados: é esta democracia o caminho para a
chegada ao poder, entendida como tal a possibilidade de a esquerda, no governo, poder realizar seu programa?
Ou podemos reduzir o imbróglio à afirmação de que simplesmente o ‘mundo mudou’?
Coloca-se, a propósito, questão fundamental da política: a correlação de forças. O mesmo eleitorado que deu vitória à aliança
de centro-esquerda, no Brasil, não lhe ofereceu maioria no Con5 Entrevista a Rachel Berthol, in: Prosa & Verso. O Globo, 12/02/2005.
6 Na Grécia e na Espanha de hoje, são governos de partidos socialistas que executam a
cartilha do FMI. (Nota de 2010)
7 O direitista Jacques Chirac e o social-democrata Gerhard Schöreder se opõem à invasão do
Iraque e fazem restrições à política imperialista norte-americana da qual Tony Blair, líder
trabalhista inglês, é mero vassalo. Que é ser de direita ou esquerda para o europeu?
44
Roberto Amaral
gresso, condenando a nova ordem a negociar tanto com as forças
progressistas quanto com as forças conservadoras e fisiológicas (estas, formações que superam as classificações de direita e esquerda)
partidárias do statu quo. Também não há correspondência entre a
representação eleitoral dessa nova ordem e o poder econômico e
seu irmão siamês, o sistema de comunicação de massas, com o qual
teve, igualmente, de negociar. Negociações que também tiveram de
ser levadas a cabo com o capital financeiro internacional, durante a
campanha e no governo. O quadro internacional, a globalização e a
nova geopolítica da guerra, as contingências do mercado financeiro internacional são fenômenos objetivos.
Não se nega a imprescindibilidade das negociações, nacionais e internacionais, de um governo que não se origina do rompimento com a ordem. Observa-se que o recurso à mobilização
social, de que o governo do PT não lançou mão, teria feito pesar,
nessas negociações, o respaldo emprestado pela vontade eleitoral.
Sua ausência determinou prejuízo de posições programáticas.
Ora, uma das características da esquerda, em qualquer parte
do mundo e a qualquer tempo, tem sido a capacidade de mobilizar
as massas em função de objetivos políticos. Por que, então, evitar
esse chamamento?
A crise dos partidos
A desmoralização do voto como instrumento de mudança e progresso, a convicção de sua incapacidade de promover mudanças ou
mesmo ditar o conteúdo de mandatos, ensejam, no curto prazo, o
aventureirismo e as mais deletérias formas de corrupção eleitoral. No
médio prazo, afastam a cidadania da defesa do processo democrático.
Nesses momentos de crise casam-se a desesperança da maioria
da população, convencida da desvalia de seu voto, e o niilismo das
camadas médias da sociedade, simplesmente envolvidas e dedicadas à sua revolução pessoal. A ausência de perspectivas de mudança, o fim da esperança em câmbios sociais, leva ao conformismo
Socialismo e Democracia
45
da população e ao cinismo das classes dominantes, e, ao invés de
mudar a vida, a utopia da classe média passa a ser mudar de vida.
Impõe-se a estratégia da sobrevivência de curto prazo. Depois da
decepção em face da impotência do voto, a política torna-se presa
de minorias, e passa a ser percebida como algo irrelevante para a
vida dos cidadãos e para os destinos da sociedade.
Com o desânimo cívico do eleitor, cresce, causa e efeito a um
só tempo, a descaracterização dos partidos, que se revelam desmoralizadamente iguais. É a despolitização da política, que atende aos
usufrutuários do statu quo, atende ao atraso, à direita, aos partidos
conservadores, às lideranças conservadoras e corruptas, que assim
fazem crer, que, estando juntos, e acusados das mesmas práticas,
somos todos iguais. Daí a imagem de incoerência e contradição
construída por nossos partidos junto à opinião pública.
A esquerda perde sua identidade, porque, à noite, todos os gatos são pardos.
Se todos são iguais, o eleitor não tem porque votar em programas, e simplesmente opta por líderes burocráticos ou messiânicos
ou carismáticos, ou aceita, desesperançado, o comércio do voto ou o
apelo da fé e da exploração da fé, cega, muitas vezes comercializada,
porque a fé parece ser a tábua de salvação para quem perdeu quase
tudo, principalmente a esperança de construção de um novo mundo,
que agora, se revela remoto ou perdido.
E para esses sobre-explorados a esquerda permanece sem discurso.
A renúncia a parâmetros ideológicos, a inexistência de divisores d’água, a perda de referências, pela esquerda, ensejam a
promiscuidade de contrários no mesmo bloco, donde coligações
esdrúxulas na disputa eleitoral e no exercício da governança, na
realização de alianças demasiado amplas contemplando forças (e
lideranças) incompatíveis com a mudança.
Característica da política brasileira, aceita pelas esquerdas, é a
impossibilidade das identificações: não se sabe mais o que é o quê
e quem é quem.
46
Roberto Amaral
A inexistência de diferenciações políticas e ideológicas é convite às opções assistencialistas, fisiológicas ou messiânicas, todas
alienadoras do voto e, portanto, inimigas do povo, sobre o qual se
assenta a democracia representativa, e inimigas do sistema de partidos, que é um dos seus elementos instrumentais essenciais.
Nesse cenário, construído pela política, soa ridículo e falso o
discurso de políticos e teóricos lamentando os chamados ‘desvios’
do eleitorado, que, desesperançado e desestimulado, frustrado, resolve ele também esquecer a política, para transformar o processo
eleitoral, aquele raro momento em que pode exercer a cidadania e ter
valor e voz, num ato de resolução de questões imediatas de seu cotidiano. O fisiologismo desbragado, a negociação do voto, e a entrada
em cena de novos e antigos ‘cabos eleitorais’, como o serviço social
do parlamentar financiado com recursos públicos, a ambulância do
gabinete do parlamentar, a telha, o saco de cimento, a dentadura e a
cadeira de rodas, são o outro lado da decadência da política, operada
pelos políticos, e tolerada por partidos transformados cada vez mais
em instituições de pessoas, associação de negócios e cada vez menos expressão de projetos político-programáticos. Predomina o jogo
do poder pelo poder, pelo qual o poder se transforma em fim em
si mesmo, e não em instrumento de realização de um programa. O
custo absurdo das campanhas, a compra direta e indireta do voto, a
fragilização dos partidos, a despolitização das campanhas e, por consequência, do eleitorado, estão destruindo a vida política e desmoralizando a via parlamentar, segundo tempo da desmoralização das
eleições proporcionais, exatamente elas relegadas a plano secundário pelas elites dirigentes e, por consequência, pela grande imprensa.
Como se apresentarem agora, políticos e principalmente comentaristas políticos, surpreendidos ou aparentemente preocupados com a
escancarada crise do Poder Legislativo, em todas as suas instâncias?
Nos mais diversos países, nos quais a democracia formal vem
se constituindo em instrumento impeditivo de mudança, isto é,
servindo à conservação do poder pelas classes dominantes nada
obstante o respeito às prescrições da democracia representativa,
essa manutenção do poder nas mesmas mãos (ou, mudando de
mãos, sem mudar a representação de interesses) decorre de expeSocialismo e Democracia
47
dientes jurídico-legais-eleitorais, como o voto distrital e o bipartidarismo, que reinam em toda a Europa e nos Estados Unidos, um
sistema eleitoral concebido para transformar minorias em maiorias
permanentes. É preciso considerar – sem formular uma necessária
relação de causalidade, pois há outros fatores intervenientes – a
crise, na Europa, dos partidos trabalhistas, socialistas e de esquerda, os quais, mesmo transitando para a social-democracia (ou por
causa disso) perderam substância eleitoral e presença política. É o
caso, dentre outros, dos partidos socialistas e comunistas franceses
e italianos. Outros simplesmente se descaracterizaram no poder,
de que é exemplo a tragédia do trabalhismo inglês, transitando
de Clement Attlee para Tony Blair, deixando em muitos a dúvida
sobre o que é pior para a Inglaterra e o mundo, se o conservadorismo de Margareth Thatcher ou esse novo trabalhismo no poder.
Na América do Sul, onde quer que tenha reinado, o bipartidarismo – na verdade um sistema de partido único operado por duas
sublegendas – determinou dezenas e dezenas de anos de domínio
oligárquico e antipopular. É a história da Colômbia, é a história da
Venezuela até Chávez, é a história do Uruguai até Tabaré Vázquez,
cuja eleição interrompeu a ditadura do bipartidarismo, mediante
a qual colorados e blancos, versões da mesma elite, se revezaram
durante mais de meio século na Presidência.
Se, para a esquerda, a democracia representativa não tem significado espaço para realização de mudanças, a preocupação da direita é mesmo que ela não enseje mudanças, por mínimas que sejam.
Ainda que mínimas, podem justificar a ruptura da institucionalidade democrática. Assim, depois de atingido por um golpe de Estado
fracassado, levado a cabo pelas forças políticas autointituladas de liberais e democráticas, o chavismo, que nada tem de socialista ou de
revolucionário, vem sendo exorcizado pela grande imprensa. Suas
teses mais avançadas, afora o nacionalismo, são o distributivismo e a
participação, objetivos clássicos da social-democracia.
Os fundamentalistas do mercado, que se atribuem o direito de
fazer a guerra em nome da democracia, passam a temer o processo eleitoral, quando esse pode ensejar mudanças. Em reportagem
do Valor Econômico (‘Concentração de eleições na AL preocupa’),
48
Roberto Amaral
Cristiane Perini Lucchesi revela que “a forte concentração de eleições presidenciais em países da América Latina de dezembro deste
ano a outubro de 2006 deve trazer volatilidade extra aos mercados
emergentes”. Depois de comentar os ‘riscos’, para o Peru, representado pela eventual eleição de Alan Garcia, líder da oposição
ao presidente Alejandro Toledo, a reportagem observa que “No
México, uma fuga de capitais semelhante à vivida pelo Brasil em
2002 pode acontecer, caso o prefeito da Cidade do México, Andrés
Manuel Lopez Obrador, do Partido Democrático Revolucionário,
continue a despontar como o preferido nas pesquisas de opinião
pública, em oposição ao governo impopular de Vicente Fox, do
Partido de Ação Nacional. Visto como populista e ameaçando
criar atritos com o governo americano, Obrador desagrada de tal
forma a elite mexicana que há boatos no mercado financeiro de
que ele pode até mesmo vir a ser assassinado caso se aproxime
demais da vitória.8
O bipartidarismo
O que separa PT e PSDB não é definitivo. O que nos torna
mais distantes hoje são algumas divergências pontuais e talvez o próprio jogo do poder.
Aécio Neves9
Num ponto os estrategistas do statu quo parecem vitoriosos:
na armação de um bipartidarismo de fato, festejado pela imprensa
ligeira, pelo qual faz tanto tempo anseiam as forças conservadoras
brasileiras, contrariando a história político-partidária republicana.
O projeto bipartidário está sendo intentado na prática, com a eleição, pelo establisbment, de seus protagonistas, PT – que ainda não se
entregou a essa miragem – e PSDB, seu entusiástico defensor. Para
esse efeito, aliás, o tucanato se apressa, FHC à frente, em procurar
liderar a oposição ao governo Lula e apresentar-se como o antiPT,
ou seja, como a outra perna do bipartidarismo. Quando se fala em
8 Edição de 24/1/2005.
9 In Valor Econômico, 29/11/2004. Aécio Neves (PSDB) é governador de Minas Gerais.
Socialismo e Democracia
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establishment, fala-se, evidentemente, na grande imprensa, e ela faz
o seu papel na maquinação desse bipartidarismo: é este o tema que
monopoliza a pauta do jornalismo político.
Nesse bipartidarismo, que denominamos como de constelação, os demais partidos deverão se contentar com os papéis,
uns de satélites, outros de coadjuvantes e todos de cúmplices. Os
pequenos partidos, acicatados por uma reforma política que os
ameaça permanentemente com limitações, não terão, necessariamente, de desaparecer, mas haverão de sobreviver com autonomia limitada, isto é, como apêndices, siglas de reserva, espécie
modernizada da sublegenda do regime militar, para as manobras
das duas forças majoritárias. Essas, consolidadas, prometem, para
o futuro, em nome da democracia, a alternância, ou revezamento
no governo entre si, o que é ostensiva forma de exercício condominial do poder.
Buscam os conservadores, e não é de agora, com as recorrentes
ameaças ao pluripartidarismo – como o ensaio de bipartidarismo de
fato e o combate à eleição proporcional (de essência ensejadora do
pluralismo ideológico e da manifestação das minorias) e a defesa do
voto majoritário e distrital (de essência unipolarizador e impeditivo de
manifestação das minorias) e outras ‘modernidades’ –, a cópia (sempre cópia!) seja do sistema alemão (voto distrital misto), seja do sistema norte-americano (bipartidarismo e voto distrital) no momento em
que este se revela mais corrupto, mais inepto, mais antidemocrático,
mais antirrepresentativo, negando os fundamentos da representação,
pervertida por um sistema indireto que, estadualizando as eleições nacionais, distorce a vontade do eleitorado, de tal sorte que – pelo mecanismo do colégio eleitoral –, aquele que obtém a maioria de votos não
é necessariamente o vencedor, como se viu nas eleições presidenciais
norte-americanas de 2000. O voto distrital é sistema arcaico, concebido para que as eleições sejam instrumento de conservação do statu
quo: de 1964 a 2002, em 15 eleições norte-americanas, observa Gláucio Ary Dillon Soares10, a taxa de reeleição para a Câmara dos Deputados (House of Representatives) foi superior a 90%!
10 Folha S. Paulo, 30/10/2004.
50
Roberto Amaral
Para chegar a essa democracia representativa que despreza o
sufrágio universal, ou a um bipartidarismo que assegura a alternância entre iguais e impede a renovação, são necessários partidos
sem apegos ideológicos, sem respeito aos seus próprios programas,
com baixos índices de unidade, nas campanhas eleitorais e no exercício dos mandatos.
Esta é a agenda do establisbment. Formulada com clareza quase cínica em verso e prosa e saudada pela grande imprensa. E qual
é, nesse quadro, a estratégia da esquerda socialista?
Reagir à provocação dos conservadores? Esta é uma das questões centrais de nossa crise: o máximo que nos sobra é responder
à direita (ou à social-democracia) a quem está cabendo, sempre,
tomar a iniciativa na contenda. Falta-nos uma pauta própria.
A esquerda brasileira foi atingida por todos esses torpedos, mas
foi ferida igualmente pela despolitização do pleito de 2004 – despolitização em si mesma e também consequência de tudo o que discutimos anteriormente –, para o que ela também colaborou. Ficou
sem discurso. Porque não soube formulá-lo. Sem discurso, viu-se
na contingência de, figurante da política, render-se à lógica do bipartidarismo: renunciou ao seu próprio espaço. Reinou a lógica do
eleitoralismo, donde o pragmatismo de coligações anulando a coerência programática, donde a indiferenciação, confundindo eleitorado e militância. A disputa e o debate foram substituídos por alianças
entre os que se diziam antípodas, donde o abandono das questões
centrais do país e o consequente apelo ao paroquialismo, ao fisiologismo e ao assistencialismo o mais despudorado. A ética dos meios,
que já chegou a empolgar a esquerda brasileira, deu lugar à aética dos
fins, pela qual tudo é permitido desde que a vitória seja alcançada. A
nova ética diz que o sucesso purifica tudo e justifica as práticas, que
deixam de ser condenáveis, se levam à vitória eleitoral.
A esquerda
Na década de 1880, o socialismo proclamava-se o representante de um futuro melhor, que poderia com certeza ser desfrutado dentro de um século. Oferecia um mundo novo, que
Socialismo e Democracia
51
não somente poria fim ao obsoleto sistema capitalista e a seus
males, mas asseguraria abundância, igualdade e liberdade
para toda a Humanidade. Se Marx ou Morris pudessem voltar à vida e contemplar o mundo 100 anos depois, certamente
ficariam arrepiados ao ver os intelectuais modernos propondo Adam Smith e o livre-mercado como soluções para os
males do socialismo autoritário e do coletivismo burocrático.
Os socialistas vivos não estão menos abalados com o fato de
que o futuro lhes está sendo escancaradamente roubado, de
que a direita do livre-mercado apossou-se de uma das figuras
de retórica centrais do socialismo. Agora é o socialismo que
é apresentado como uma ideia cujo tempo passou.
Paul Hirst11
Há, e não se trata de particularidade brasileira, uma profunda
crise do pensamento e da política de esquerda. Nossos dias são caracterizados pela crise da ideia de revolução e o avanço do projeto
neoliberal. Romper com isso seria revolucionário? De outra parte, se
governo algum de esquerda contemporâneo pode ignorar o mercado, como diferenciarem-se, nossos governos, dos governos conservadores, aceitando ambos e na mesma medida a mesma ortodoxia
fiscal e monetária? A globalização é processo embutido no desenvolvimento do capitalismo, que encontrou no colapso do Leste Europeu
seu ponto de aceleração, com todas as resultantes políticas, políticoestratégicas, econômicas e militares. E, sobretudo, a crise políticoideológica, nela implícita a crise do marxismo e a desmobilização
dos partidos comunistas ocidentais. Mas, se a globalização é, no fundamental, um fato objetivo irreversível, o mesmo, no entanto, não se
dá com a ideologia baseada na globalização, o neoliberalismo, ou a
religião do livre-mercado. É possível enfrentá-la.
Mas o fim do pensamento de esquerda determinou o fim da
ação de esquerda.
Olhando para o panorama político brasileiro, perguntamos:
Que é, hoje, ser socialista? O que nos diferencia, por exemplo, da
social-democracia? Construir esse diferencial, e exercê-lo no dia a
11 A democracia representativa e seus limites, p. 95.
52
Roberto Amaral
dia da política, este é o desafio. É a nova esfinge que nos devorará
se não soubermos decifrá-la.
O pensamento conservador ganhou ênfase e se fortaleceu,
seja com a guinada do PT, levando consigo seus aliados-satélites,
para o centro, isto é, caminhando da esquerda para a social-democracia, seja com a vitória do PSDB, caminhando para o centro, o novo ponto de convergência da política nacional. Perdeu a
direita tout court, cujo ideário desatualizou-se, talvez substituído
pelo discurso mais contemporâneo da social-democracia conservadora que ameaça suas hostes (perdeu, enfatize-se, o discurso
eleitoral, não o poder, onde tem assento cativo). A esquerda, o
que ainda se pode chamar de esquerda no Brasil, atônita diante da realidade política, dividida entre o apoio ao governo Lula
e ensaios de oposição, omitiu-se ideologicamente, renunciou às
suas tradicionais posturas reformistas e, também ela, assumindo o pragmatismo olímpico, descaracterizou-se eleitoralmente,
ao promover alianças pontuais com a direita e o fisiologismo na
expectativa de ganhar eleições a qualquer custo, em alguns casos
obtendo sucesso ao preço do profundo desrespeito ao seu eleitorado e à opinião pública.
Transitando do revolucionarismo histórico de suas origens para
o reformismo, a esquerda assumiu, finalmente, as teses da democracia representativa, mas, nesse transe, transformou-se em força alternativa da pragmática neoliberal. A crise eleitoral é uma resultante da
crise política e de seu aprisionamento por esta cilada histórica.
A crise da esquerda brasileira não deriva da eleição de Lula, nem
da trágica descoberta da impossibilidade de realização no governo
de seu programa/ideário. Já antes ela havia renunciado aos seus fins
revolucionários, entendidos simplesmente como a transformação estrutural da sociedade e a quebra do monopólio das classes dirigentes.
Ao transitar majoritariamente para a social-democracia, a esquerda
socialista explicitamente reconheceu a impossibilidade de mudanças
estruturais, e passou tão só a discutir formas mais ou menos eficientes de administrar o passivo social herdado.
Socialismo e Democracia
53
À esquerda socialista, só resta uma alternativa: volver à esquerda e recuperar as teses socialistas, sem perder de vista que,
se está condenada a administrar o país (nos mais diversos níveis)
ainda no atual regime, não pode abdicar de seu destino histórico,
estratégico, a saber, o enfrentamento do capitalismo.
Para tanto, cumpre à esquerda formular suas teses. Fundamentalmente suas proposições. Explicitar táticas e estratégicas. Indicar
o objetivo a ser perseguido – o que fazer no poder identificando
as tarefas do curto, do médio e do longo prazos –, mas igualmente
indicar o caminho a ser percorrido e as lutas a serem travadas, para
alcançar seus objetivos. Ou seja, o tático – determinado pelas circunstâncias históricas – não pode superar o estratégico.
A análise crítica ao capitalismo e à social-democracia já foi
feita e está pronta. As massas e os militantes não precisam mais
de diagnóstico. O que a política cobra da esquerda brasileira – das
esquerdas em geral, mas da esquerda socialista em particular – é
a formulação de soluções factíveis, realizáveis no médio prazo.
Vencido o pleito ortodoxo do controle dos meios de produção, e
perdidas as ilusões quanto à tática de fazer a revolução pela via do
Estado, abandonada pelos antigos trabalhistas ingleses, a esquerda
socialista é chamada a dizer qual é o seu programa para a sociedade
de hoje. O que fazer no imediato, que só se conhece se se conhecem
os objetivos de médio e longo prazos.
É preciso superar o medo e a crítica para construir a esperança.
No caso brasileiro de nossos dias não se trata, tão só, de discutir se esse ou qualquer outro desenvolvimento é sustentável ou não,
mas de perguntar a quem o desenvolvimento beneficia, perguntar
se a riqueza por ele produzida está sendo distribuída, se o país,
mais rico, tem menos pobres, se os pobres têm mais oportunidades
e se todos têm acesso à cidadania.
Cumpre à esquerda formular sua proposta alternativa ao modelo neoliberal, e à esquerda socialista cumpre apresentar seu programa alternativo ao programa da social-democracia.
Cumpre à esquerda, assumindo o papel rejeitado pelas elites
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Roberto Amaral
brasileiras, forâneas, antinacionais, liderar a construção de um
Projeto Nacional, mobilizador da sociedade e das grandes massas.
É fundamental eleger nossa prioridade.
Cumpre à esquerda socialista – e não ao governo do presidente
Lula (por que este não é objetivo de governo) –, construir, com os
dados oferecidos pela realidade objetiva, a estratégia de transformação estrutural da sociedade brasileira.
O projeto nacional-desenvolvimentista
O Projeto Nacional, por si, desencadeia a geração de sinergias
indispensáveis para sua própria execução, além de constituir-se em
fator de unificação da sociedade, a partir da eleição dos interesses nacionais, de que nossa diplomacia é uma projeção. O Projeto
Nacional é, igualmente, instrumento de mobilização da vontade
nacional, para além dos projetos de segmentos sociais e grupos
econômicos. É, ainda, fator explicitador das potencialidades nacionais. Quando se fala, porém, em Projeto Nacional, estamos nos
referindo a algo além, muito além, de mero programa de governo.
Trata-se, quase, de um pacto – suprapartidário – que encerre o projeto de nação e país que desejamos construir.
Seu objetivo é o homem brasileiro, visto como uma totalidade, como a nossa civilização; trata-se, portanto, de opção política e não econômica. Busca indicadores de qualidade de vida
e de felicidade, a convivência que se antepõe aos guetos sociais
alimentados pelo acirramento das diferenças de classe, pela concentração de renda e pela exclusão dela decorrente. O desenvolvimento do país, instrumento de realização do Projeto Nacional,
é balizado pela emancipação e pela busca da igualdade, seja de
todos os nossos povos, seja entre cidadãos, seja entre homens e
mulheres, seja entre as regiões.
O desenvolvimento pelo qual lutarão os socialistas deverá dizer a quem beneficia (às grandes massas ou ao grande capital?),
que país ele está construindo, com quais setores da nacionalidade
Socialismo e Democracia
55
está comprometido. Trata-se de saber se ele caminha na direção
da emancipação nacional, ou, se, contrário senso, aprofunda nossa
vulnerabilidade internacional. Trata-se de saber se ele favorece a
distribuição de riqueza ou, como nos perversos anos 70, promove
a concentração de renda.
O Projeto Nacional que pensamos para o Brasil deve responder de imediato a questões como: que futuro oferecemos à nossa juventude? Que atenção podemos oferecer aos nossos idosos?
Não se trata, apenas, no que diz respeito aos jovens, do futuro
pessoal, no horizonte possível do desemprego. Mas do futuro do
país. Depois de 1964 e da ditadura militar, depois do fracasso da
Nova República e da recorrente vitória do neoliberalismo, após o
autoritarismo e a exclusão, com que projeto de nação acenamos
para a juventude brasileira?
Sem perspectiva de futuro não há como pensar a nação.
Vencida a questão da governabilidade, o projeto que a esquerda socialista brasileira deve perseguir precisa atender a três elementos fundamentais:
1. A questão nacional.
2. A questão popular.
3. O desenvolvimentismo.
O princípio deve ser a emancipação nacional.
A globalização e a saga privatista/desnacionalizante dos regimes
neoliberais dos dois Fernandos reatualizam a questão nacional. Ela é
aguda. A globalização é fato objetivo, agravado pelo papel desempenhado pelos Estados Unidos, como unipotência econômica, política,
cultural e militar. Não se trata, portanto, de enfrentar moinhos de
vento. Ao contrário do que afirmam os pregoeiros do liberalismo
arcaico, a globalização, que veio para ficar, exige o fortalecimento
dos estados e, neles, de suas instituições, de sua cultura, e de sua
economia. Mas, se nenhum país é uma autarquia, nenhum Estado
pode enfrentar isoladamente o quadro político-econômico atual.
Daí a política de formação de blocos e uniões de países e nenhuma é
56
Roberto Amaral
mais vitoriosa do que a União Europeia. Se esse caminho se afigurou,
há cerca de cinquenta anos, como o mais conveniente para países
economicamente desenvolvidos, mais se aplica essa alternativa aos
países em desenvolvimento ou emergentes. Daí o acerto da política brasileira, que precisa ser reforçada pelo nosso apoio decidido,
seja nas restrições à ALCA, que implicaria uma segunda e definitiva colonização, seja no esforço por salvar o Mercosul, seja já agora por uma aproximação maior com os demais países da América
do Sul, semente, quem sabe, de uma futura comunidade de países.
A globalização também exige daqueles países que não renunciaram à
autonomia, que pretendem preservar sua independência e perseguir
seus direitos, a criação de alternativas, seja de comércio e relações
econômicas, seja de relações políticas e culturais. A aproximação
do Brasil com outros países em posição estratégica similar – como,
por exemplo, China, Índia, Rússia, Coreia do Sul e África do Sul –,
é, portanto, fundamental. Igualmente fundamental, pelos mesmos
motivos, é perseverarmos na luta pelo aperfeiçoamento do sistema
multilateral, ainda ONU à frente, e pelo aprofundamento das relações bilaterais. O multilateralismo não é apenas uma esperança a ser
perseguida e alimentada permanentemente pela nossa diplomacia,
mas conditio sine qua non da convivência internacional como limitador do império da lei do mais forte, da nova barbárie.
Em muitos setores da economia, principalmente nas atividades
que exigem emprego de tecnologia de alto valor agregado, o Brasil
vem perdendo espaço em face de outros países, notadamente diante
da Coreia do Sul e da China. Se não houver um esforço concentrado
visando ao desenvolvimento nacional, perderemos, também, nossas
condições de aliança com os países emergentes. O desenvolvimento,
também deste ponto de vista, é imperativo de sobrevivência.
Essa estratégia, todavia, em si correta, pode cair no vazio,
se não se fizer acompanhar, no plano interno, de extraordinário
esforço de desenvolvimento nacional, que compreenda, como metas, a emancipação econômica e a justiça social, enfrentando uma
das mais graves mazelas de nosso modelo de desenvolvimento
econômico: a fabricação, em meio à riqueza concentrada, de multidões de pobres e párias, deserdados da história, da cidadania.
Socialismo e Democracia
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Os milhões de miseráveis de nossos países são contundente denúncia da iniquidade do modelo neoliberal de desenvolvimento
capitalista, fundado na concentração de renda e riqueza. A miséria, que seria debelada pelo crescimento, só faz crescer. A única
mudança foi que a miséria do campo – agravada pela resistência
das elites em realizar a reforma agrária ainda em pleno terceiro
milênio! – veio somar-se à miséria das cidades degradando a vida
urbana e construindo a violência depois de haver construído o
caos social e urbanístico.
O Projeto Nacional é, igualmente, uma questão de soberania.
Esse desenvolvimento exige que o país diminua sua vulnerabilidade externa e sua dependência com as exportações, particularmente quando elas são dominadas por commodities, ora
matérias-primas (grãos e minérios), ora produtos com baixo valor
tecnológico agregado. Contra esta realidade o país deve investir
prioritariamente na construção de um mercado interno que torne
sustentável nossa opção de desenvolvimento comprometido com o
bem-estar de toda a população. Este projeto exige o crescimento do
PIB, por largo período, de forma sistemática, a taxas anuais nunca
inferiores a 6%. Mas não há possibilidade de crescimento e de criação de mercado interno autossustentável sem uma prévia política,
agressiva, de distribuição de renda e geração de emprego.
Trata-se, tão simplesmente, de retomar os ideais republicanos
que na política começam pela desprivatização do público, no que,
por sinal, o atual governo tem dado avanços significativos. Esses
ideais serão realizados com a universalização dos serviços de saúde,
com a universalização da educação de qualidade, com o saneamento básico, com o investimento em transporte público e com investimentos em habitação. Esses investimentos geram emprego, ativam o
mercado interno e não acentuam a vulnerabilidade externa.
Não há soluções pré-fabricadas. O Brasil, com o engenho de
seu povo, haverá de construir seu próprio caminho. Trata-se de um
grande país – um grande e rico território, uma grande população,
uma extraordinária unidade nacional, um dos mais importantes
parques industriais do mundo –, cujo desenvolvimento, todavia,
58
Roberto Amaral
vem conhecendo uma larga história de autoritarismo e exclusão
das massas. É um país urbano, menos pelo desenvolvimento industrial, mais pela expulsão, do campo, das grandes massas dos
sem-terra: cerca de 40% de sua população vivem em áreas metropolitanas; 80% em áreas urbanas.
O Projeto Nacional indicará a via brasileira do desenvolvimento.
Após pelo menos duas décadas ‘perdidas’, só a partir de 2004
o país voltou a conhecer índices, ainda que tímidos, de crescimento econômico. Mesmo assim índices incompatíveis com as
necessidades de sua população e bastante inferiores aos de outros
países emergentes, como a China (9,5%), a Coreia do Sul (7,8%),
a Rússia (7,3%) e, em nosso continente, a Venezuela (9,4%) e a
Argentina (8,8%).12
Qualquer projeto de desenvolvimento deverá ter como alguns
de seus pressupostos o equilíbrio regional e a equalização do desenvolvimento econômico e social.
Sem restaurar a ilusão estatista, é preciso reconhecer que, no
Brasil, o Estado tem, historicamente, relevante papel como agente
de desenvolvimento, presidindo seu caráter político e sua finalidade ética, orientando-o para o bem-estar geral e a unidade nacional,
o que não se pode esperar do livre mercado.
Esse desenvolvimento deve compreender:
•• reforma agrária que redistribua a terra e assegure assistência técnica e financiamento ao pequeno proprietário e ao assentado,
superando no campo práticas de relações econômicas e sociais
pré-capitalistas, e eliminando a humilhação do trabalho escravo;
•• construção de uma rede hierarquizada de cidades e lugares,
permitindo o fortalecimento das economias locais e sua interação em um sistema nacional que contemple toda a variedade
de protagonistas (pequenas e microempresas, cooperativas, arranjos locais etc.);
12 Dados do Banco Mundial. Cf. Newsyahoo.
Socialismo e Democracia
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•• reforma tributária como instrumento de distribuição de renda;
•• escola pública de qualidade em todos os níveis como célula
preferencial de ensino e pesquisa (e, portanto, de aplicação dos
recursos públicos);
•• garantia do direito à vida, que compreende direito à saúde, ao saneamento, à habitação, ao transporte urbano, à educação e ao lazer;
•• fortalecimento do capital produtivo nacional;
•• desenvolvimento científico e tecnológico sem condicionantes e
acessível a todas as regiões do país e a todos os brasileiros;
•• desenvolvimento do programa nuclear;
•• recuperação do programa espacial (também fundamental para
o sistema de comunicações);
••
modernização de nossas forças armadas;
•• restauração federativa com a recuperação da autonomia de estados e municípios, mas, principalmente, com a superação, pelo
conjunto do país, dos clamorosos desníveis regionais (abrigando 42,7% da população brasileira, o Centro-Oeste, o Norte e
o Nordeste respondem por apenas 26% do PIB nacional), que
esgarçam a Federação e ameaçam a unidade nacional.
A integração nacional do Norte, do Centro-Oeste e do Nordeste só se operará mediante o desenvolvimento científico e tecnológico, e, relativamente ao semiárido, a transposição das águas
do São Francisco pode ser o veículo de redenção de 12 milhões
de brasileiros.
Nenhuma reforma, porém, nem a reforma social que será fiadora da democracia nem a reforma econômica, será possível senão
como fruto de um grande acordo nacional do qual participem majoritariamente as forças sociais e políticas e as correntes de pensamento e instituições como as Igrejas, e não apenas, como tem sido
60
Roberto Amaral
ao longo de nossa história, aqueles segmentos das classes dirigentes
sem qualquer compromisso com o país.
Por isso, cumpre à esquerda brasileira a defesa, como plataforma política sua, de um Projeto Nacional popular.
Ansiamos por um Projeto Nacional que nasça das bases sociais, para cuja construção é dever do governo democrático mobilizar a sociedade, sem dirigi-la. Esse Projeto Nacional selará o
compromisso de nosso povo com o desenvolvimento e o crescimento, a emancipação nacional, a distribuição de renda e a consequente elevação do padrão de vida de nossas populações.
Alguns valores parecem consagrados pela nacionalidade e devem constituir-se em referência para esse Projeto Nacional. Assim
entendemos a opção pela democracia, a comunidade federativa e a
emancipação nacional, a unidade nacional – não só territorial, mas
igualmente linguística e cultural – como fator de superação de diferenciações étnicas e regionais; a opção pela paz, pelo diálogo como
instrumento de solução de conflitos, a fraternidade entre irmãos e
a amizade com nossos vizinhos. São esses alguns dos valores que
distinguem a nacionalidade brasileira.
A reforma política
A persistir o descaso com que é tratada a questão da reforma
política, chegaremos a um ponto em que a própria democracia será
desacreditada. E isso só interessa à direita. Urge, pois, que articulemos o pensamento progressista para que essa reforma seja levada a
cabo, e que seu conteúdo assegure a legitimidade do voto, o fundamento de qualquer democracia.
Trata-se, aqui, de tomar posição em relação a algumas das
questões em debate:
1. Financiamento público das campanhas eleitorais é medida essencial para limitar a influência do poder econômico. Mas sua
implantação precisa assegurar toda transparência possível, conSocialismo e Democracia
61
trole social e defesa contra a fraude. Exige rigor para evitar que
os dois sistemas funcionem simultaneamente. Há que se levar
em conta o papel da Justiça Eleitoral, inovação brasileira introduzida nos anos 1930, que vem assumindo importância crescente na coibição de abusos. Trata-se, porém, de Justiça ainda
lenta, e perigosamente sensível às pressões do poder político.
2. É preciso aperfeiçoar o instituto da reeleição (que continuamos
entendendo como desapartado da tradição republicana brasileira), impondo, por exemplo, ao titular de cargo majoritário
candidato à reeleição, o afastamento de suas funções durante
pelo menos os três últimos meses anteriores ao pleito.
3. Implantação das listas fechadas – o eleitor, nas eleições parlamentares, deixa de votar em candidato, para votar em partido, e cada partido apresenta sua lista de candidatos, na ordem
que será respeitada na indicação dos eleitos, de acordo com o
número de votos obtidos pela legenda. Essa medida fortalece
os partidos, pode diminuir a ação do poder econômico e deve
impor a fidelidade partidária, intolerável na ditadura, pois não
havia liberdade de organização partidária, absolutamente necessária na democracia, para coibir o estelionato eleitoral. Se
é fora de dúvida que o sistema de listas fortalece os partidos,
parece evidente que este fortalecimento não deve ser o objetivo decisivo de sua implantação, pois o natural é exatamente o
contrário, a saber, que o sistema de listas seja a consequência do
fortalecimento dos partidos, e neles, da democracia interna.
4. Fortalecimento do pluripartidarismo e do voto proporcional.
A restrição à proporcionalidade, anunciada pelo voto distrital,
que facilita a corrupção e o controle eleitoral pelo poder hegemônico, é perniciosa para o voto progressista, pois facilita a
aplicação de recursos em candidatos em distritos, além de anular a manifestação multifacetada dos interesses da sociedade,
assegurando a ditadura do discurso único. No nosso entender,
a valorização dos partidos conduzirá naturalmente à melhoria
da seleção dos candidatos, comprometendo-os com programas
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Roberto Amaral
e não com interesses menores. Mas, repitamos, a valorização
dos partidos jamais decorrerá de medidas legislativas. Depende da identidade desses partidos com o processo social, e será
impossível construir um forte sistema de partidos relevando a
plano secundário a mobilização da sociedade;
5. Entendemos, porém, que nenhuma solução poderá esquecer
o mandato imperativo, que conciliará o exercício do mandato
eleitoral com a vontade do representado. A democracia deverá
perseguir formas mais participativas, como, por exemplo, o referendum confirmatório ou revocatório de mandato, que complementará o mandato imperativo e salvará a representação. De
outra parte, a democracia mais se aproximará dos cidadãos ao facilitar a propositura e tramitação de projetos derivados da iniciativa popular e ao adotar a consulta plebiscitária como condição
para a vigência de qualquer emenda constitucional. E é fundamental a revogação do poder de editar medidas provisórias, pelo
Executivo, excrescência parlamentarista em corpo presidencialista, que rouba do Legislativo, em proveito do Executivo, função
constitucional privativa e exemplar, qual seja a de legislar.
A consolidação do processo democrático está a depender de
sua legitimação, e esta só será possível com o estímulo à participação popular permanente.
A alternativa para o país é a unificação de todas as suas forças
em torno de um Projeto Nacional com vistas ao desenvolvimento
econômico e à felicidade de sua gente.
Este o desafio ao qual a esquerda socialista terá de responder.
(Rio de Janeiro, 2005)
Socialismo e Democracia
63
III
Da ditadura do proletariado à
democracia participativa1
Teses para a retomada do socialismo revolucionário
Introdução
Nosso texto discute, de forma mais ou menos analítica (i) o
fracasso do capitalismo e (ii) as propostas do socialismo. Esta sequência é proposital, porque, em substituição à crítica permanente
ao ‘socialismo’ real (tão ao gosto da direita assumida e da esquerda envergonhada), propomos a retomada de nossa ação militante:
o combate ao capitalismo. Mas discutimos, igualmente, a crise do
modelo soviético, o burocratismo, o partido único, a ditadura do
proletariado e o esmagamento da democracia liberal nas experiências de “socialismo real”.
Em contraposição ao fim da História (que tudo justificaria),
ou ao fim do socialismo – que justificaria o revisionismo, a socialdemocracia e a fragilidade de certos aliados em face do modelo
neoliberal –, estamos afirmando a revivescência da História e a
atualidade do socialismo. Atualidade e urgência, para salvar a Terra
e a Humanidade.
1 À memória de Antônio Houaiss (1915-1999), militante socialista, filólogo, escritor, crítico literário, tradutor e diplomata, e ministro da Cultura (Governo Itamar – 1992-94).
65
Tentamos discutir alguns aspectos da crise estrutural do capitalismo, sua capacidade de adaptação ao desenvolvimento das forças sociais e as modificações na base material da produção porque
tudo isso tem reflexos em nossos projetos e em nossa política. Não
fazemos política em abstrato, mas em uma sociedade concreta: o
mundo de hoje, e segundo uma correlação de forças objetiva em
face da qual nos situamos. Tendo clareza da estratégia – a revolução
socialista – teremos clareza quanto às nossas táticas.
E assim temos como enunciados dois outros temas do nosso debate: os conceitos (i) de revolução e (ii) de socialismo revolucionário.
Optamos pelo socialismo revolucionário (existe outro?), e explicamos o seu entendimento. E explicamos o conceito em si do
termo ‘revolucionário’. Seria nossa primeira tese.
A opção por um socialismo revolucionário – revolucionário
fundamentalmente em face dos fins e não dos meios – implica a
opção por uma organização revolucionária. O partido.
Destacamos, porém, neste resumo, uma das categorias do socialismo revolucionário descurada na experiência contemporânea:
a radicalidade democrática. Que entendemos por isto?
Fiel ao método de partir da crítica para a proposição, criticamos, na crítica ao capitalismo, ao liberalismo e ao neoliberalismo,
a democracia representativa, tal qual nós a praticamos, e em sua
substituição propomos a radicalidade da democracia socialista:
a democracia participativa. Ela também é explicada. Trata-se da
segunda tese.
Discutimos a globalização e a nova ordem mundial, porque
nosso projeto de partido, de socialismo e de revolução socialista
operará de acordo com condições concretas: este mundo que aí
está e que queremos transformar. Portanto, também, nossa crítica
à social-democracia que, em face do inimigo, ao invés de enfrentálo, intenta uma associação. Aí nos separamos definitivamente.
Mas também nos separamos do determinismo histórico que,
supomos, (i) foi desmentido pela realidade histórica e, (ii), gera o
66
Roberto Amaral
imobilismo. Ele sim é reformista, quando se supunha revolucionário. Talvez esse raciocínio contenha uma tese. Não temos certeza.
Da grande teórica alemã e grande heroína do socialismo prático também nos afastamos um pouco quando nos debruçamos na
análise do papel contemporâneo do proletariado. Não se trata de
firula doutrinária. É muito importante para definir as táticas do
movimento socialista moderno.
Discutimos, também, a oposição ao regime, e nosso papel nela:
nossa oposição não é essencialmente a determinado modelo, mas
ao modelo neoliberal. E aí temos oportunidade de discutir as teses
fundamentais da nova direita: modernidade, globalização, privatização, globalização etc.
Ao reler este texto, e em face de suas limitações, pensei, em
chamá-lo de ‘Discurso em mangas de camisa’, para acentuar o
improviso e sua linguagem um pouco solta. Mas me contive,
porque algum leitor mais severo (ainda que mais jovem) poderia ligá-lo ao famoso texto de Tobias Barreto e julgar-me pretensioso. Por isso, quero chamá-lo, apenas, de ‘Discurso sujeito
a chuvas e trovoadas’.
Liberdade e Socialismo!
(Gávea, novembro de 1999)
1. O fracasso do ‘socialismo real’ ou a retomada da questão democrática
O século XX registrou processos sociais os mais notáveis,
como a ascensão e queda do fascismo, a decadência do liberalismo e o fim do colonialismo, decretando a falência das velhas
potências europeias.
Foi o século da revolução tecnológica e das guerras, desde o
primeiro conflito mundial (1914) à guerra da Chechênia ou de Kosovo ou do Golfo ou do Paquistão ou do Iraque ou da próxima que
os Estados Unidos inventarem.
Socialismo e Democracia
67
O último século do milênio foi, igualmente, testemunha da
mais significativa experiência que a Humanidade conheceu, desde
o clamor de liberdade-igualdade-fraternidade dos descamisados
de Paris em 1759: a Revolução de Outubro de 1917, que oferecia ao
mundo a oportunidade de realizar o sonho humanista do socialismo. Mas o século também se encerraria com outro fato histórico, a
‘Queda do Muro de Berlim’, assinalando o outro lado daquela revolução: o fracasso do ‘socialismo real’.
Nada obstante os avanços sociais inquestionavelmente alcançados, ficou igualmente posta a nu a fragilidade da democracia socialista real nos termos de sua matriz clássica ocidental – matriz e
valores por tantos anos e em tantos países desconsiderados. A História revelará um dia os prejuízos causados ao marxismo e ao socialismo por esse desvio. Se sua origem, hoje admitimos, remonta à
História da implantação do ‘socialismo em um só Estado’, a procura
de legitimação impôs ao marxismo um empobrecimento tal que faz
hoje com que muitos dos fatos desenvolvidos no Leste Europeu tenham assimilação difícil e explicação ainda mais difícil, e é por isso
que tanto escrevemos sobre ele, e tanto o discutimos. As dificuldades atingem não só os teóricos como os militantes revolucionários.
Todos, porém, parecemos despreparados para uma reconstrução do
marxismo, reconstrução que implicará, necessariamente, a recuperação de seus fundamentos democráticos originais, incompatíveis
com ‘contribuições’ pragmáticas do ‘socialismo real’, cujas raízes estão em um stalinismo que jamais será suficientemente exorcizado.
O fracasso, porém, não é do socialismo como proposta alternativa à barbárie do capitalismo. A crítica e a autocrítica se debruçam sobre um socialismo administrativo-estatal, correntemente
burocrático-autoritário e tanto ineficiente e autoritário quanto mais
burocrático, o que aponta um novo futuro: a construção de um
socialismo expungido dessas mazelas. O socialismo possível, o socialismo, enfim, em qualquer de suas possibilidades – e cada experiência histórica construirá seu próprio modelo – ataca com pena
de morte o burocratismo e o autoritarismo, nega-os como categorias que se pensaram suas, em face do stalinismo e sua preeminência sobre o socialismo real.
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Roberto Amaral
Queremos dizer que não nos identificamos com a experiência
do Leste Europeu. Mas afirmamos que dizer isso é ainda dizer muito pouco. A crítica só se justifica como instrumento de intervenção
na realidade e o desafio que a História nos cobra é o da construção
de nosso projeto socialista para o Brasil.
A débâcle da experiência do Leste Europeu está também a ensinar o fracasso de alguns princípios do leninismo, como a ditadura do proletariado, o sistema de partido único (cuja burocratização
é só uma decorrência) e a consequente supressão do pluralismo
partidário, do pluralismo ideológico e do debate. Ou seja, a renúncia a certos pressupostos da democracia clássica que, se foram por
tantos anos negligenciados pela esquerda marxista, precisam ser,
revistos, retomados pela esquerda socialista e revolucionária. A radicalidade democrática é um dos elementos da radicalidade socialista e revolucionária.
É preciso, porém, resistir aos encantos da crítica liberal e ao
oportunismo da esquerda envergonhada a fazer tábula rasa de toda
a experiência socialista. O processo revolucionário não começa
hoje, não estamos descobrindo nem a teoria nem a prática do socialismo e somos herdeiros dos erros e dos acertos dos que antes de
nós desbravaram tantos caminhos.
Se tudo temos a aprender com a crítica e a autocrítica, para pelo
menos identificar os erros que não podem ser repetidos, a Humanidade nada tem a comemorar com o fracasso dessa experiência originariamente humanista. Os russos não têm o que comemorar, como não
têm o que comemorar os amantes da paz diante do recrudescimento
da guerra e do armamentismo. A denúncia do autoritarismo estatal
soviético, e sua derrota, não fizeram menos autoritárias e injustas
as sociedades capitalistas, centrais ou periféricas. O autoritarismo se
associou à política de guerra e à prepotência dos Estados ricos sobre
os pobres, dos fortes sobre os mais fracos, a globalização instalou o
centro do poder numa só potência e o neoliberalismo aprofundou a
alienação consumista, o egoísmo hedonista, o predomínio dos interesses das minorias dominantes, elegendo o lucro como religião e as
leis do mercado como seu catecismo.
Socialismo e Democracia
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Mas é preciso afirmar, todavia, que, com todos os seus erros – negá-los é suicídio ideológico – o Leste Europeu desempenhou papel fundamental no processo de descolonização da Àsia
e da Àfrica; contribuiu política, econômica e militarmente para
a emergência dos movimentos populares e sociais de emancipação e libertação nacional em todo o mundo. Contribuiu para
a consolidação da Revolução Chinesa e teve papel decisivo na
guerra do Vietnam e na sustentação da experiência cubana. Mas,
acima de tudo, no regime da polaridade atômica, assegurou a paz
ao mundo e a sobrevivência da Terra, através da proscrição da
grande guerra, tornada inviável para o imperialismo em face da
paridade tecnológica.
Somos herdeiros, e disso muito nos orgulhamos, da luta de todos os socialistas de todo o mundo, milhões e milhões de militantes e teóricos que, desde o século XIX, vêm denunciando a injustiça
social. Nenhuma das conquistas sociais que marcaram a luta dos
trabalhadores nos últimos duzentos anos foi doação do liberalismo
ou do capitalismo. Derivaram da ação teórica e prática dos socialistas, da formulação marxista quase sempre, da ação nas ruas, das
greves, das barricadas e dos levantes dos trabalhadores, da ação dos
militantes comunistas e socialistas que, nesses mesmos duzentos
anos, conheceram o desemprego, a perseguição policial, o cárcere
e mesmo a morte.
Essa História precisa ser sempre lembrada.
Os crimes do stalinismo, os erros do “socialismo real”, o fracasso do Leste Europeu, o burocratismo soviético, a esclerose dos
partidos comunistas ortodoxos – parte significativa da História
mas não a História toda – não absolvem o capitalismo. O regime
de horror – agora de mãos livres e sem limites morais – prossegue
em sua faina contra a vida: a guerra, a depredação ambiental, o
consumismo, o desemprego, a insegurança, as restrições à democracia e a concentração de renda e riqueza em poucos países e em
suas elites econômicas, ligadas ao capital financeiro internacional:
446 bilionários têm renda equivalente à da metade da população
do planeta, estimada em 6 bilhões de pessoas.
70
Roberto Amaral
A Queda do Muro de Berlim assinala para a História – e formula
uma lição para quem quiser aprender – o esgotamento de uma experiência socialista que afinal comprometerá todas as suas conquistas
sociais e humanitárias, de que tanto é credora a Humanidade, por haver esquecido o princípio do marxismo pré- leninista:2 a democracia.
Mas, se o capitalismo fracassou – e quem há-de negar? – como
instrumento de solução dos problemas propostos pela Humanidade, a experiência socialista não realizou seu destino. E agora?
O fracasso do Leste Europeu, porém, está para o socialismo
assim como a Inquisição está para o Cristianismo. Ninguém ousará ocultar os erros, as mazelas ou os crimes de um e de outra. Mas
se não podemos culpar Cristo ou os apóstolos pelos crimes dos
Torquemadas de toda a vida, não podemos culpar Marx, nem o
socialismo, pelo stalinismo.
O socialismo, como processo histórico e como formulação
teórica, não está dependente do acerto ou dos erros de eventuais
experiências de governo, mais ou menos distanciadas de seu projeto final: a justiça social. A força animadora do socialismo é a realização do binômio igualdade-fraternidade. Sua razão essencial é
a injustiça social inerente ao capitalismo. Enquanto existirem homens que vivem como ratos para que poucos vivam como reis, o
socialismo será a mais legítima (e a mais ética) das aspirações humanas, e a consequência inelutável do capitalismo, selvagem ou
dominado, ou social-democratizado. Se continuarmos lutando.
Nosso papel é retomar a bandeira da igualdade, da justiça social, da dignidade da pessoa humana. Rever a experiência real do
socialismo, e da luta dos partidos comunistas e socialistas, para,
identificando os erros, corrigir projetos e procedimentos. Fazer e
refazer a crítica, para retomar a luta pelo socialismo. Retomando o
Marx das Teses sobre Feuerbach, não nos cabe, aos políticos revolucionários, tão somente tentar explicar a realidade; cabe-nos conhecê-la para transformá-la. Não nos basta tentar explicar as causas da
crise do socialismo. Cabe-nos superá-las, na formulação teórica e
na atuação prática de militantes.
2 Veja-se, a propósito, o prefácio de Engels à Luta de classes em França.
Socialismo e Democracia
71
O socialismo não é um projeto acabado nem conhece uma receita de fácil manipulação. O marxismo não é um catecismo, mas
uma referência, na verdade a melhor e mais competente crítica jamais formulada ao capitalismo e o melhor método de interpretação
histórica. O idealismo metafísico congela a realidade; a dialética
marxista a põe em movimento. O liberalismo quer a conservação
da realidade; o socialismo promove sua modificação radical.
2. A nova ordem mundial,3 a “globalização” e o desemprego
Uma das consequências da débâcle do Leste Europeu foi o
fim da polaridade EUA versus URSS, responsável, desde o final da
segunda grande guerra, pela contenção dos dois imperialismos e
que impediu, ao mesmo tempo, que um desses imperialismos, o
estadunidense e seus associados, agisse como senhor de baraço e
cutelo destruindo as soberanias nacionais. Essa polaridade, contemporânea da Guerra Fria, seria, à sua vez, guardiã da paz (mais
exatamente: da não guerra atômica mundial), assegurada pelo
terror mútuo. Da mútua destruição, inibidora da guerra desejada.
Essa paz e essa détente também significaram a administração do
mundo, em condomínio, a partir da ótica do interesse de cada uma
das grandes potências. O condomínio é desfeito quando um dos
impérios desmorona: o fim da era Gorbatchov também assinalaria
a desconstituição da URSS, com todos os desdobramentos conhecidos. É História recente e conhecida.
A nova correlação de forças estabelece uma ‘nova ordem mundial’ compatibilizada com a nova geopolítica. É a unipolaridade,
exercida pelos Estados Unidos, a única e talvez última superpotência, administrando o mundo como síndicos de um sistema de
poder em que todos os demais integrantes são simplesmente coadjuvantes.4 Este, o papel dos demais países da Europa desenvolvida e
3 A nova ordem mundial foi estudada por nós, de forma mais aprofundada, no ensaio
Civilização e barbárie, editado pela Executiva Nacional do PSB (Brasília, ago./1999).
No presente texto nos limitamos a uma breve definição e a uma ainda mais breve contextualização histórica.
4 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro, em seu estimulante Quinhentos anos de periferia. Porto
Alegre-Rio de Janeiro: Editora da Universidade/UFRGS-Contraponto Editora. 1999, p.
46, observa: “A nenhum analista – norte-americano ou não – que anuncia o ‘fim do Esta-
72
Roberto Amaral
do Japão. A China não interfere nesse acordo de condôminos, mas
tem sua integridade e autonomia até aqui respeitadas, como também até aqui vêm sendo respeitadas sua política interna e sua área de
influência regional. É a exceção, num processo cujos desdobramentos
não podem ser antecipados, pois compreendem – além de sua inserção política e econômica no Ocidente, como produtor e acima de tudo
como potencialmente maior mercado consumidor do mundo –, a
busca de um caminho próprio, por meio de um “socialismo de mercado” que até aqui lhe tem assegurado altos índices de desenvolvimento
e acumulação de riqueza,5 associado à ditadura do partido único.
Dessa nova ordem resulta a crise, ou o agravamento da crise do Estado moderno: de um lado, o Estado-nação ameaçado em
sua soberania condenada como anacronismo pela globalização; de
outro, o Estado-social, esvaziado pelo neoliberalismo ressurgente
com o fim da ‘ameaça’ da União Soviética e do socialismo.
O mundo globalizado ideal é um mundo asséptico, livre da
política, entregue à administração de técnicos. A soberania popular, fundamento do sistema representativo, base da democracia
ocidental, é transferida para empresas e organismos internacionais apartados de mandato popular: a OTAN, o Mercado Comum
Europeu, a União Europeia, o FMI, a OMC, as multinacionais, o
Banco Mundial, o BID, empresas como a Microsoft, os grupos controladores da comunicação de massas e da informação, a CNN no
plano internacional e suas congêneres no plano dos Estados-nação,
como o sistema Globo, no Brasil.
A ágora – ou a política – é substituída pelo mercado, ou, dizendo o mesmo por outros termos, a ágora é o mercado; o cidadão é substituído pelo consumidor/usuário; os governos, pelas
grandes corporações. O homem se enclausura e o livre trânsito é
o trânsito livre de capitais e mercadorias, mercadorias que fazem
circular ideologia.
do nacional’, ocorre imaginar ou sugerir que o Estado norte-americano esteja em vias de
desaparecimento”.
5 Todas as considerações dessas teses improvisadas remontam à experiência socialista
ocidental, nomeadamente à experiência soviética. Não nos sentimos em condições de
ousar uma incursão sobre as experiências asiáticas e africanas. Tal objeto exigiria um
ensaio próprio.
Socialismo e Democracia
73
O Estado-nacional, na globalização, é um Estado vassalo, uma
feitoria colonial, um protetorado, uma província a quem não cabe
ter projeto ou História própria.
A globalização, assegurada pela nova ordem mundial, ou
vice-versa, e o neoliberalismo, constituem a mesma unidade de
um processo de dominação a serviço das grandes potências. Modernidade, desregulamentação, flexibilização, livre mercado, livre
concorrência, privatização, reforma do Estado etc., são recursos
semânticos de um discurso puramente ideológico cuja função é
aumentar o controle da periferia pelo centro hegemônico.
Ora, imperialismo ou internacionalização capitalista ou globalização são metáforas de um só processo de dominação, o capitalismo
monopolista, que substitui a concorrência entre capitais industriais
pelos monopólios com a supremacia do capitalismo financeiro sobre
o industrial: o excedente tende a aumentar tanto em termos absolutos como em termos relativos à medida que o setor se desenvolve.6
Ou seja: o capitalismo monopolista é caracterizado pelo desenvolvimento de mecanismos de absorção do excedente e, daí, de
manutenção do crescimento, mas para isso esse mecanismo precisa
gerar despesas, donde as guerras e as despesas militares, o consumo conspícuo e predatório, o crescimento das vendas pelo estímulo ao consumo desnecessário, o consumo de massa, as despesas
públicas, e, inevitavelmente, o imperialismo, a divisão do mundo
entre exportadores e importadores, entre produtores e importadores de manufaturas, entre mercado produtor e mercado consumidor, donde a necessidade da globalização, donde a unilateralidade
do fluxo Norte-Sul.
De outra parte, a internacionalização dos circuitos econômicos, financeiros e tecnológicos atua como um fator a mais na
debilitação dos sistemas econômicos nacionais7, aumentando a
dependência dos países periféricos aos interesses das economias
centrais.8 Os pobres tendem a ser cada vez mais pobres.
6 BARAN, Paul; SWEEZY, Paul. Capitalismo monopolista, 1966, p. 72.
7 FURTADO, Celso. O Capitalismo global. São Paulo, 1998.
8 Relembremos a atualidade do Manifesto Comunista (1848): “Impelida pela necessidade de
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Roberto Amaral
A globalização é o estágio superior do capitalismo, operado
internacionalmente por um número cada vez mais restrito de empresas supranacionais que supranacionalmente passam a acumular
a mais-valia.
A associação da globalização com a revolução tecnológica
vem determinando uma notável mudança na base material de
produção, com alterações irreversíveis nas relações de trabalho,
a começar pelo conceito de mão de obra e de seu peso cada vez
menor na composição do (valor)produto. Essas inovações, e a recessão nos Estados periféricos, vêm construindo o desemprego
e a crise social, estimulados, um e outra, pela crise do setor industrial, pela fragilidade, daí decorrente, da organização proletária e dos sindicatos, esvaziados politicamente, e cada vez mais
obrigados a posturas defensivas, assistencialistas, econômicas, de
proteção do salário e do emprego, muitas vezes às custas da renúncia a conquistas sociais e trabalhistas. No regime da globalização, nos países periféricos, notadamente quando há refluxo da
produção industrial, o proletariado, nomeadamente o proletariado industrial, cada vez mais se revela reformista, e cada vez mais
se distancia de seu papel como vanguarda da revolução. Outros
agentes sociais são chamados a intervir, outros movimentos, que
mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda
parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte (…) Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em
todos os países (…) As velhas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo
diariamente. São suplantadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão
vital para todas as nações civilizadas, indústrias que não empregam mais matérias-primas
autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos
se consomem não somente no próprio país mas em todas as partes do globo. Em lugar das
antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades, que
reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais
diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias,
desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações.
Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso
dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as
nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói
todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos
estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês
de produção, constrange-as a abraçar o que elas chamam civilização, isto é, a se tornarem
burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.”
Socialismo e Democracia
75
não apenas os sindicais e partidários, se apresentam na liça política, como consequência da expansão da exploração capitalista
a novos setores da população. Essa diversificação das formas de
dominação e exploração capitalistas implicam, evidentemente, a
diversificação da agenda das reivindicações e de seus agentes: os
movimentos contra a violência, os movimentos ecologistas, os
movimentos de juventude, os movimentos das mulheres, as lutas antirracistas, os movimentos dos sem-terra e dos sem-teto, as
organizações dos pequenos produtores, de micro e pequenos empresários etc. Sem superá-lo, tudo indica que o alargamento das
formas de exclusão social está a apontar a existência de conflitos
para além do tradicional confronto capital-trabalho.
A nova base material da produção capitalista, as novas técnicas
e tecnologias de produção, a distribuição espacial dos estabelecimentos fabris, a produção espacializada e diversificada, atomizada, às vezes percorrendo vários países, a transformação das antigas
fábricas em linhas de montagem/embalagem, põem em xeque a
organização proletária. Clauss Off lembra que as organizações operárias e os sindicatos são organizações secundárias; antes de elas
pertencerem, os operários pertencem à organização capitalista, à
empresa, donde o capital desempenhar o papel de organizador primário do operariado,9 raciocínio cujas raízes remontam a Marx e
Engels (O 18 Brumário e o Manifesto Comunista).
A nova base material de produção, a desagregação da produção operária seria um fator de desarticulação do proletariado?
Essas são questões atuais e urgentes, pois trazem ao debate o
papel do proletariado (que, por seu turno, coloca uma nova questão: Qual é, hoje, o conceito de operário?) que não desempenha
mais, no quadro da revolução socialista, o papel que lhe era atribuído pelo Manifesto.10 De nossa parte, olhando para o quadro
9 OFF, Claus; WIESENTHAL, Kelmut. ‘Two logics of colective action: theoretical notes on
social class and organizational form’ in Political Power and Social Theory. JAI Press Inc,
v. I, p. 72.
10 “De todas as classes que se põem frente a frente hoje com a burguesia, somente o proletariado é uma classe realmente revolucionária. As outras classes declinam e, finalmente,
desaparecem frente à indústria moderna. O proletário é seu produto mais autêntico”.
76
Roberto Amaral
brasileiro, vemos, cada vez mais, o proletariado em sua formação
reformista. Se o nosso projeto é a revolução socialista, precisamos, sem descartar o papel do proletariado, identificar outros e
novos atores sociais.
Marx (Grundisse) cedo se interessou pela mecanização e pela
automação, lembrando que a tendência do capital é estar sempre
tentando escapar de sua dependência ao trabalho e à força de trabalho. A mecanização é o meio de o capitalista baratear seus produtos,
barateamento que é obrigado a perseguir por força da pressão da
concorrência. Se, com uma determinada quantidade de trabalho,
produz sempre, sob determinadas condições, a mesma magnitude
de valor no mesmo período de tempo, a redução da quantidade de
trabalho reduz o valor total produzido. A mecanização, assim, não
liberta o operário, porque os aumentos de produtividade realizam
o trabalho necessário e, desde que este não seja reduzido a zero, a
taxa de mais-valia pode aumentar indefinidamente.
Já a automação não envolve os trabalhadores, daí podermos
dizer que, com ela, não havendo valorização, não há mais-valia.
Pode-se daí concluir que um sistema produtivo totalmente automatizado pode liberar os operários do trabalho?
Pode-se supor que a redução do tempo de trabalho necessário sirva, não para aumentar o trabalho excedente, mas para
reduzir a um mínimo o trabalho geral necessário da sociedade,
abrindo espaço para a realização de sua Humanidade, utilizando
o tempo liberado para o desenvolvimento artístico, cultural, científico, para o lazer, enfim?
Pode-se, mas não no capitalismo.
Porque o capital simultaneamente tenta minimizar o tempo de
trabalho necessário e postula o tempo de trabalho como única moeda e fonte de riqueza.
Se o trabalhador não trabalha…
Na automação, o desenvolvimento pleno do trabalhador coletivo, do indivíduo social, chega ao seu apogeu; o tempo de trabalho
Socialismo e Democracia
77
já não pode ser a medida das riquezas e o valor de troca deixa de
ser a medida do valor de uso.11
O encontro das novas tecnologias de produção, a informática
e a robótica, o desenvolvimento científico a serviço da produção,
a concorrência e a globalização, possibilitam o crescimento econômico sem a geração de novos empregos. As novas tecnologias,
reformulando os parques industriais, reduzem a utilização de
mão de obra e o trabalho assalariado, reduzem as fábricas e distribuem territorialmente a produção.
Ora, os governos do neoliberalismo querem operar esse processo ao mesmo tempo em que promovem a revisão das leis trabalhistas e protetoras do trabalho, controlam os salários, reduzem a
previdência social, desaparelham a saúde pública, desestimulam os
investimentos e a geração de novos empregos.
Uma tentativa de programa tático
Em resposta a esse projeto neoliberal, os socialistas, ainda no
espaço do capitalismo, podem lutar pelas seguintes teses:
I. O trabalho
Garantia e valorização do trabalho não apenas como mero instrumento da cadeia produtiva a serviço da empresa capitalista e do
lucro, e do crescimento econômico, mas acima de tudo, como meio
de realização pessoal e social, de emancipação moral, de liberdade
espiritual e de exercício da cidadania.
II. A ordem econômica
Reestruturação da ordem econômica e econômico-social, visando a assegurar a todos os trabalhadores uma vida digna com
igual oportunidade de acesso a todos os cidadãos – consideradas
suas diferenciações individuais –, com igual oportunidade de acesso aos bens materiais e espirituais, porque o objetivo de toda política de esquerda é a justiça social.
11 BOTTOMORE, Tom. (Org.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1988.
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Roberto Amaral
III. O desenvolvimento
Subordinação da propriedade dos meios de produção pelo
setor privado ao controle público, considerada sua função social;
desenvolvimento do setor público/estatal (com a crescente substituição do estatal pelo público), utilizando-o como vetor de desenvolvimento e regulação da economia; desenvolvimento do setor
de produção social, que compreende cooperativas, associações de
produtores, mútuos, microempreendimentos assistidos pelo crédito diferenciado que estimulará o associativismo; estímulo às pequenas e médias empresas e às pequenas e médias propriedades
agrícolas, com prioridade à produção de alimentos e à fixação do
homem na sua terra:
1. intervenção no mercado, canalizando os fluxos financeiros
para atividades produtivas e socialmente úteis, a serviço do desenvolvimento e da desconcentração da produção e da renda;
2. o desenvolvimento desejado é aquele que promova a constante melhoria do nível e da qualidade de vida das populações, que
reduza a concentração de riqueza e renda nos planos regionais e
individuais, que vença os desequilíbrios regionais, estabeleça a unidade federativa e fomente a distribuição da renda nacional, como
primeiro passo para a universalização dos direitos.
3. O Estado do socialismo real
São conhecidas as teses do marxismo respeitantes ao Estado,
seja ao denunciá-lo como espaço no qual a luta de classes se resolve
em proveito da burguesia, seja ao anunciar a inevitabilidade de seu
desaparecimento, como efeito do fim da luta de classes. Ora, se as
lutas de classes são expungidas, como sobreviveria o Estado, seu
instrumento? Está no Manifesto:
A primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia. (…)
Uma vez desaparecidos os antagonismos de classes no curso
do desenvolvimento, e sendo concentrada toda produção pro-
Socialismo e Democracia
79
priamente falando nas mãos dos indivíduos associados, o poder
público perderá seu caráter político. O poder político é o poder
organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, em sua luta contra a burguesia, se constitui forçosamente
em classe, se se converte por uma revolução em classe dominante, e, como classe dominante, destrói violentamente as antigas
relações de produção, destrói, juntamente com essas relações
de produção, as condições dos antagonismos entre as classes,
destrói as classes em geral, e, com isso, sua dominação como
classe. Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes
e antagonismos de classes, surge uma associação em que o livre
desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos.
É evidente, porém, que em nenhum país do ‘socialismo real’
o proletariado se converteu em classe dominante, nem destruiu as
antigas relações de produção, portanto, não poderíamos exigir daqueles regimes a abolição do Estado. A União Soviética, ver-se-ia,
era ainda um Estado de classes e Estado forte.
É inquestionável o acerto marxista ao acentuar a base material da
sociedade, isto é, a propriedade privada e o modo de produção capitalista como principais geradores das desigualdades, e é possível afirmar
que a União Soviética aboliu a propriedade privada. Mas teria abolido,
igualmente, o modo de produção capitalista, ou seria seu regime econômico um capitalismo de Estado, no qual simplesmente teria sido
substituída a figura do capitalista acumulador de mais-valia?
A crise do ‘socialismo real’, de qualquer forma, pôs em evidência que, se a abolição do Estado era impossível na União Soviética
(ademais das razões téorico-doutrinárias ou históricas até pela logística da Guerra Fria), também não seria sua hipertrofia uma alternativa para a democracia. A assunção, pelo Estado, de um papel
de substituição dos interesses privados na gestão econômica e do
usufruto da propriedade revelou-se condição insuficiente, seja para
a implantação do socialismo seja para realizar a justiça social seja
para impor a racionalidade.12 Nem o estatismo é etapa preparatória
12 MARQUES, Fernando Pereira. A esquerda entre o passado e o futuro. In Vértice, mar.abr./1999. P. 26.
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Roberto Amaral
do socialismo. Ao contrário do “livre desenvolvimento de cada um
[como] condição do livre desenvolvimento de todos”, preconizado
pelo Manifesto, o que se viu foi a anulação das liberdades, sem as
quais é impensável a autonomia e o livre associativismo.
Já o neoliberalismo, quando prega a quase absoluta desregulamentação, está raciocinando segundo os interesses da classe
dominante: ao poder, as mãos livres para o seu exercício, ainda
que predatório. O Estado irrelevante é sinônimo de poder incontrolável por quem o domina, isto é, desproteção dos mais
fracos e necessitados.
Esta desregulamentação – a serviço da globalização e da nova
ordem mundial – não enfrenta o problema da crise do Estado, mas
simplesmente enfraquece a sociedade e as relações entre classes,
pois uma classe, a burguesa, assume o papel de virtual ditadora.
O Estado é seu. Não podemos aceitá-la porque esta desregulamentação (e com ela a ‘flexibilização’ dos direitos sociais) só falaciosamente pretende solucionar a ineficiência do Estado burguês: “De fato,
minimalizar o Estado, em vez de responder a um estado de coisas
que causa preocupação, visa simplesmente desproblematizar o que
é essencialmente problemático, tomando por inevitável o que pode
ser discutido e o que pode dar lugar a uma alternativa. A questão
não está, portanto, em saber como evitar os obstáculos à circulação,
como se esta fosse inquestionável, mas em saber de que modo e em
que condições esta não tem de ser inevitável, podendo ser questionada. E aqui a falácia consiste tão só no fato de se procurar solucionar um problema de ineficiência sem dar resposta ao problema da
eficiência”.13
Os socialistas – sem ilusão sobre o seu caráter de classe – lutam por um novo Estado, que, revelando uma nova correlação de
forças, em face da nova correlação de classes e movimentos sociais,
esteja preparado para enfrentar os desafios internacionais, e, internamente, ser instrumento de justiça social.
13 BARATA, André. “A esquerda como oposição”. Idem, p. 7.
Socialismo e Democracia
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4. O novo Estado
Conjurado contra a Constituição e o regime, o governo do
neoliberalismo cria um Estado vassalo, uma feitoria colonial, uma sociedade de servos do capital, sem memória de
seu passado de lutas pela cidadania, quando foi povo e nação e hoje é tão somente este cadáver que a ideologia dos
globalizadores embalsamou, depois de inocular-lhe a peçonha da morte e destruição.
Mas o cadáver há-de ressuscitar!
Paulo Bonavides14
A ordem econômica do neoliberalismo – a globalização e a
nova ordem internacional – constituem um só fenômeno políticoeconômico que tem um só desideratum: a ordem desigualitária,
privilegiando as grandes potências econômicas em prejuízo dos
países periféricos e nesses países privilegiando os interesses privados sobre os interesses coletivos, os interesses das regiões mais ricas sobre as mais pobres. Em síntese, promove a exclusão no plano
internacional e nos planos nacionais.
Para enfrentar esse desafio, nossa sociedade precisa de um
novo Estado, democrático e participativo, forte para poder ser autônomo, capaz de enfrentar os desafios da nova ordem internacional da política e da economia, intervir nas disfunções da economia
nacional, afirmar os valores da nacionalidade, o projeto brasileiro
de nação e povo, afirmar os valores da democracia participativa,
defender nossa cultura e nossa História. Trata-se, portanto, de um
papel regulador e interventor, regulando e intervindo em defesa do
interesse nacional e das maiorias em face da opressão do capital
nacional e internacional, financeiro ou não.
O fim desse Estado é assegurar os objetivos estratégicos –
isto é, de largo prazo – de nossa civilização, segundo os princípios da igualdade, da justiça social e da solidariedade, nos
termos da ética socialista.
14 BONAVIDES, Paulo. “A democracia participativa e os bloqueios da classe dominante”,
apud Teoria constitucional da democracia participativa. 2. ed., 2003. São Paulo: Editora
Malheiros.
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Roberto Amaral
Um de seus papéis é a libertação da democracia, confiscada
por um pequeno grupo que decide pelo povo sem ouví-lo, nos gabinetes das grandes empresas, dos grandes bancos, dos bancos centrais e suas adjacências, no aparelho burocrático.
Assim, torna-se insuficiente, e fraudadora, toda discussão em
torno do Estado que se restrinja a tratar de seu tamanho. A questão
não é de fita métrica, como querem fazer ver a direita e os meios de
comunicação de massa. É irrelevante seu dimensionamento físico,
como é irrelevante discutir sua eficiência ou ineficiência de modo
abstrato. Interessa saber a quem serve o Estado, a quais classes ou
setores de classes ou agrupamentos sociais serve o Estado, a quem
interessa a privatização, a quem beneficia a estatização, a quem interessa, e quem se beneficia com a desregulamentação.
Pequeno ou grande, ágil ou lerdo, eficiente ou ineficiente, o Estado, hoje a serviço de uma só classe, deverá servir aos interesses de toda
a sociedade. Esta é que é a transformação revolucionária do Estado.
Nosso objetivo, neste item, é reforçar a crítica à concepção
axiomática do determinismo histórico, mais positivista do que
científica, um cientificismo pedante que sugere a existência de
pré-respostas a demandas ainda não oferecidas. Tudo estaria
previsto no catecismo. Esse cientificismo também pode ser responsabilizado pelo arrefecimento da pulsão revolucionária, decorrente de uma concepção destorcida do materialismo histórico
segundo a qual, se não existia a ‘ordem natural das coisas’ dos
reacionários, existiria uma ‘ordem revolucionária das coisas’ e
essa ordem indicava a inelutabilidade do socialismo. O trânsito
da revolução para o reformismo seria um passo. O cientificismopositivista destruiu a utopia, o reformismo travou a revolução.
O determinismo, nessa leitura religiosa, suprimia a necessidade
da ação revolucionária, pois o capitalismo seria consumido pelo
jogo de suas próprias contradições. Nesse ponto era irmão dos
reformistas (Bernstein) que rejeitavam a ideia de uma revolução
política, uma vez que o processo econômico do capitalismo levaria, por si mesmo, espontaneamente, ao socialismo.15
15 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Socialismo e Democracia
83
Daí – sem prejuízo da revisão do ‘socialismo real’ – a nossa
proposta de retomada da crítica ao capitalismo como tese da militância socialista.
O que estamos propondo é exatamente esta inversão de polos; e
quanto mais ideológica ou iluminista for a crítica ao ‘socialismo real’,
mais profunda deve ser nossa busca do humanismo socialista, com
a denúncia ética do capitalismo, porque a crítica ao ‘socialismo real’,
posto que necessária, não pode nos fazer esquecer a crítica ao capitalismo. Mas a crítica não sobrevive à crítica, nem tem vida própria.
A crítica se justifica como o primeiro passo para a ação.
Repitamos a tese: a destruição do capitalismo e sua substituição por nova ordem, fundada na justiça social, não será produto da
necessidade. Será resultado histórico: depende da ação revolucionária dos militantes do socialismo.
O desafio é este: em face da realidade objetiva, elaborar uma
teoria revolucionária e criar uma organização revolucionária capaz de operá-la.
5. O socialismo é uma proposta democrática
Nosso regime político é a democracia e assim se chama porque busca a utilidade do maior número e não a vantagem de
alguns. Todos somos iguais perante a lei, e quando a República
outorga honrarias o faz para recompensar virtudes e não para
consagrar privilégios. Nossa cidade se acha aberta a todos os
homens. Nenhuma lei proíbe nela a entrada aos estrangeiros,
nem os priva de nossas instituições, nem de nossos espetáculos; nada há em Atenas oculto e permite-se a todos que vejam e
aprendam nela o que bem quiserem sem esconder-lhes sequer
aquelas coisas, cujo conhecimento possa ser de proveito para os
nossos inimigos, porquanto confiamos para vencer, não em preparativos misteriosos, nem em ardis e estratagemas, senão em
nosso valor e em nossa inteligência.
Péricles16
Editor, 1988.
16 Discurso em louvor póstumo aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso in VIAMONTE, Carlos Sanchez. Manual de Derecho Político. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica
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Roberto Amaral
A democracia, como forma de governo, é conhecida desde a
Antiguidade Clássica, e, geralmente, identificada como aquela modalidade “na qual a soberania pertence à totalidade dos cidadãos,
sem distinção de nascimento, riqueza ou capacidade”,17 embora a
Grécia da ágora, conhecesse escravos e estrangeiros sem direito à
cidadania. Seu conceito, nada obstante a crescente carga ideológica, começaria a fixar-se na formulação dos autores do século XVIII,
de especial Montesquieu (1689-1729) e Rousseau (1712-1778). Da
obra do sábio francês decorrem os institutos básicos da democracia
formal-indireta: a separação de poderes como instrumento e salvaguarda da liberdade, e o regime representativo, decorrente da concepção de soberania popular. A Rousseau devemos a retomada da
democracia direta.
Trata-se, a democracia, de uma forma de exercício da função
governativa em que “a vontade soberana do povo decide, direta
ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o
povo seja sempre o titular e o objeto – a saber –, o sujeito ativo e o
sujeito passivo de todo o poder legítimo”.18
Mas foi Montesquieu quem primeiro teorizou sobre a democracia representativa, ou indireta, fazendo da representação a base
da democracia. Modernamente, a melhor definição vamos recolher
de Benjamin Constant, paladino do liberalismo francês: “O sistema
representativo outra coisa não é senão uma organização, mediante a
qual a nação incumbe alguns indivíduos de fazerem aquilo que ela não
pode ou não quer fazer por si mesma”. Esse sistema, aduz, é como uma
procuração dada a um certo número de pessoas pela massa do povo
que deseja que seus interesses sejam defendidos.19
O sistema representativo, porém, está em crise.
Não podem os socialistas fazer tábula rasa da teoria, e principalmente da prática brasileira do sistema representativo. Embora
Argentina. 1959, p. 186.
17 LALANDE, André. Vocabulaire tecnhique et critique de la philosophie. Paris: PUF. 1961,
p. 87.
18 BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. São Paulo: Malheiros Editores, p. 17.
19 De la liberté des anciens comparés à celle des modernes. In Cours de Politique Constitutionelle. Paris, 1861.
Socialismo e Democracia
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seja ele, nos quadros de nossas sociedades, uma forma de assegurar
o mínimo de participação popular no processo constitutivo do poder, e ele é mesmo apenas isso, são inumeráveis as suas limitações,
a maior de todas é o descompasso entre legalidade e legitimidade,
que, apartando-o da vontade coletiva, constrói, com a crise da legitimidade, a crise da legalidade, quase sempre resolvida fora das
regras constitucionais.
A democracia representativa tem-se revelado inadequada
para resolver a crise dos povos subdesenvolvidos. Na raiz das frequentes interrupções institucionais, das fraturas constitucionais,
dos golpes de Estado, está a discronia entre a ação do mandatário
e a vontade coletiva expressa nas eleições, mas está igualmente a
própria contenção do sistema representativo. Referimo-nos àqueles momentos nos quais as massas populares vão além dos limites
toleráveis pela institucionalidade burguesa (lembremos as histórias recentes do Brasil e do Chile, de Jango e Allende; lembremos
a Argentina dos militares). Quando o Parlamento não é cerceado,
ou a democracia simplesmente derrogada, o sistema dominante
se encarrega de, através de medidas legais e constitucionais, mas
ilegítimas, impor ao sistema eleitoral e partidário tais obstáculos,
que, desse modo, torna impossível ou muito difícil a sobrevivência dos partidos populares e das minorias, impedidas que ficam,
pelo recurso legislativo que não ouviu a vontade coletiva, de se
tornarem maioria, ou ao menos de sobreviverem. É este, a propósito, o objetivo da ‘reforma política’ que o atual governo vem
intentando promover desde o primeiro mandato, com o apoio da
grande imprensa e de todas as correntes conservadoras do país.
Projetos de lei em tramitação no Congresso, alguns já convertidos
em lei, estabelecem cláusulas de barreira ao funcionamento partidário, reduzem o tempo de rádio e televisão e o acesso aos recursos
do fundo partidário, impõem a proibição de coligações ou adotam
o voto distrital, cerceiam o pluripartidarismo (do nosso ponto de
vista cláusula constitucional pétrea) e intentam acabar com o pluralismo ideológico. No seu conjunto, todas essas medidas visam a
reduzir o espaço democrático e a impedir qualquer risco de alternância no poder, um dos fundamentos da democracia.
86
Roberto Amaral
Paulo Bonavides, ao debruçar-se sobre a realidade brasileira,
proclama a inanição do sistema representativo, que, para ele, tanto falseia a verdade federativa quanto coloca a Federação em contradição com a nação e a democracia. Vai mais longe o publicista,
afirmando que “A classe dominante perdeu em grande parte a legitimidade do seu atual modelo de exercício da autoridade, sendo
patente o hiato entre a vontade dos que governam e a vontade dos
que são governados. O que estes últimos, aliás, não perderam foi
a consciência de que são depositários dessa legitimidade. Mas já
não podem transmiti-la aos governantes nas vigentes condições
políticas e sociais do funcionamento do mecanismo do poder”.20
O sistema representativo cria no cidadão-eleitor a ilusão da
participação política, através do processo eleitoral.
No quadro brasileiro, o cidadão é personagem de vida curta,
curtíssima, de um dia, de horas, de minutos: o quanto dure aquele momento solitário em que o eleitor, de quatro em quatro anos,
digita o número de seu candidato. Antes de votar, é senhor da soberania; depois que elege seu representante, fica sem função, sem
poder, sem voz, sem ação.
Sociedade desigual e injusta organizada juridicamente, mas
na qual não há justiça, onde a ordem econômica é madrasta do
homem, produzindo os excluídos e os privilegiados, enseja a
manipulação do processo democrático, pelas elites econômicas,
pelas elites políticas, pelas elites burocráticas. É a ação do poder econômico e do poder político, é a utilização incontrolada/
incontrolável das máquinas públicas, é a fraude, é a compra de
votos, é o assistencialismo, é, finalmente, a ação dos meios de
comunicação, fabricando a opinião pública ou deformando-a,
manipulando o processo eleitoral (conduzindo o governado pelo
poder secreto de recursos financeiros corruptores) e fraudando a
expressão da vontade coletiva.
Nas sociedades de massa, o papel dos meios de comunicação
passa a ser crucial, em face de seu monopólio na mediação entre a
vontade coletiva e a política, entre a sociedade e a realidade.
20 Op. cit., idem.
Socialismo e Democracia
87
Esta ameaça é tanto mais grave quanto, em países como o Brasil, os meios de comunicação de massa transitam do oligopólio para
o monopólio, e o monopólio não apenas dos veículos e dos canais,
mas o monopólio da informação, o monopólio dos conteúdos, o
monopólio do discurso, o discurso único, unilateral, a informação
sem contraditório, a opinião sem debate.
Por que não pensar em novas formas de representação e exercício da democracia, como se à Humanidade não fosse possível
produzir o que quer que seja de diverso, e, aí sim, a História tivesse
efetivamente findado para a filosofia e a teoria políticas?
Na “democracia” representativa burguesa, manipulada pelo
poder político, manipulada pelo poder econômico, manipulada
pelo aparelho burocrático, manipulada pelos meios de comunicação de massas, manipulada por uma legislação casuística ditada
pela maioria para conservar-se maioria, que pune as minorias, que
pune o pluralismo partidário e o pluralismo ideológico, o povo é
condenado à periferia da política e o eleitorado transformado em
massa anônima de votantes sem voz. Cumpre à esquerda resgatar
o cidadão para o seu papel de agente, através da democracia participativa, corrigindo as assimetrias de poder que estão no âmago da
democracia representativa e de seu sistema inconsolável de delegação e subdelegações de poder.
A representação – parlamentar ou executiva – deverá operar
sem prejuízo da intervenção do cidadão. Ao contrário, a democracia, que, para os socialistas, passa a constituir direito fundamental
dos cidadãos, assentada em valores como a igualdade, a liberdade
e a participação, é elemento assegurador do primado do controle
popular sobre o poder, porque o povo é o sujeito ativo e o sujeito
passivo de todo poder legítimo, de todo processo mediante o qual
se governam as sociedades livres, povo, “mas povo participante,
povo na militância partidária, povo no proselitismo, povo nas ruas
(…) povo, enfim, no poder”.21
A retomada democrática, pelo socialismo, devolverá ao cidadão a confiança na sua capacidade de fazer História, interferindo
na História que se faz no seu quotidiano.
21 Idem.
88
Roberto Amaral
Cumpre à esquerda socialista promover a segunda emancipação,
criando condições para que os cidadãos – libertos de suas correntes
e atores de sua história – tenham capacidade para intervir e decidir,
para fiscalizar, legislar e governar, não apenas para delegar, porque a
democracia socialista pressupõe participação, a participação do povo.
Não negamos a democracia representativa, mas afirmamos
que as mediações formais da representação política, por mais importantes que sejam, não esgotam a democracia, que vai para além
dessas instituições herdadas.
O trânsito para a democracia participativa pode ser feito mesmo no ambiente da atual ordem jurídica, mediante a utilização de
mecanismos de participação cidadã, muitos já com previsão constitucional, a saber:
a. o plebiscito;
b. o referendum;
c. a iniciativa popular;
d. o veto;
e. o direito de revogação (recall), tanto a revogação do mandato individual do agente político, como a revogação do mandato coletivo (o Abberunfungsrecht do direito constitucional
suíço) de uma assembleia, o que permitirá a destituição de
todo um parlamento ou assembleia infiel à outorga da confiança popular;
f. a substituição do mandato representativo pelo mandato imperativo; e, corolário;
g. a subordinação do mandato ao partido do eleito.
(Brasília, novembro de 1999)
Socialismo e Democracia
89
IV
A democracia representativa está morta.
Viva a democracia participativa!
Apontamentos para a reforma política
Introdução
Se a democracia, uma variedade de mecanismos políticos e
processos de decisão em que predomina a expressão da soberania popular, é um bem inquestionável – e certamente estamos em
face da mais importante conquista política do Ocidente no último
quartel do século XX, referimo-nos à recuperação e revalorização
dos valores democráticos clássicos – , não é certo que a democracia representativa deva estar com ela identificada, ou muito menos que a encerre, porque não se trata, esta, de governo do povo,
mas de processo de exercício do governo ou de elaboração de leis,
de que o povo não participa, senão indiretamente. Se ao povo
(isto é, ao colégio eleitoral) é dado escolher, com as distorções insuperáveis do mecanismo político-eleitoral, algumas pessoas encarregadas do processo de tomada de decisões – governamentais
ou legislativas –, não lhe cabe interferir diretamente nessas decisões. A democracia representativa não é necessariamente uma
forma de governo popular, mas tão somente um conjunto de procedimentos de controle sobre o governo, ou de mera legitimação
do poder, mediante o processo eleitoral, mediatizado pelo poder
econômico, pelo (abuso) do poder político, e pela manipulação
Socialismo e Democracia
91
da vontade eleitoral pelos meios de comunicação, questões insolúveis na sociedade de massas. É o que pretendemos demonstrar.
A sociedade de massas, fenômeno da última metade do século findo, ao impor, por necessidade de sua lógica, o império da
mediação, revelou, à luz do sol, a crise da democracia representativa. Esse vício deriva da intercorrência do poder econômico,
desde sempre, do poder legal manipulador do sistema (processos
de votação, construção dos distritos eleitorais, tipos de assembleias, regulamentação dos partidos, cláusulas de desempenho,
controle de presença de partidos e candidatos no rádio e na televisão, formas e extensão do sufrágio, representação majoritária e
proporcional, financiamento das campanhas etc.), e, de último,
do poder político dos meios de comunicação de massas, monopolizados ou oligopolizados, apartando o representante da vontade do representado, anulando o poder da vontade autônoma do
cidadão, seja a vontade individual ou particular, seja a vontade
decisória do representante, seja a vontade geral, a volonté générale
rousseauniana, de índole contratualista não liberal, implicando a
prioridade do público ou coletivo sobre o privado ou individual,
do geral sobre o particular, assim distinta da ‘vontade de todos’.
É nessa fonte que se alimentariam Montesquieu, Hegel (v.g. o
conceito se Sittlichkeit) e mesmo o Kant do imperativo categórico
(cuja ética antepunha a razão universal ao interesse particular),
Marx1 e, modernamente, Gramsci, instruindo seu conceito de hegemonia, mas de uma hegemonia fundada no consenso e não na
coerção: para o autor dos Cadernos do cárcere, como é sabido, a
hegemonia compreende uma relação de prioridade da vontade
geral sobre a vontade singular, do interesse comum sobre o interesse privado.2
A vontade geral e o contrato social fundado no autogoverno,
em Rousseau, que tanta influência exerceu sobre o autor de O Capital, pode ser a fonte do Estado sem classes, como seguramente foi
1 Cf. Por exemplo, Crítica ao programa de Gotha.
2 COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político, 2. ed.
Rio: Civilização Brasileira. 1999, p. 223 e segs.
92
Roberto Amaral
a matriz da ‘sociedade regulada’ gramsciana, “na qual os aparelhos
coercitivos do Estado serão absorvidos progressivamente pelos
mecanismos consensuais (ou contratuais) da sociedade civil”.3
A raiz de todos é Aristóteles (A política), distinguindo as
formas de governo entre boas e más consoante o governante se
guiava, nas primeiras pelo interesse coletivo, nas segundas pelo
próprio interesse.
Escreve o Estagirita:
(VI, 11) Portanto, está claro que todas as constituições que
têm em vista o interesse geral (são, de fato, corretas e essencialmente justas); enquanto aquelas que têm em vista o interesse pessoal (dos governantes, são defeituosas, e são desvios
de constituições corretas: são formas de despotismo); ora, a
cidade é uma comunidade de homens livres.
(VII) Fixados estes princípios, falta-nos examinar o nome e
a natureza das diferentes formas de governo, e começaremos
por aquelas que são corretas; pois, uma vez definidas, ficará
mais fácil a tarefa de definir as constituições más. Posto que
as palavras constituição e governo significam a mesma coisa,
e considerando que o governo é a autoridade soberana dos Estados, essa soberania deve estar necessariamente nas mãos de
um só indivíduo, ou de um pequeno número, ou nas mãos
da massa de cidadãos. Quando o indivíduo, ou um pequeno
número de cidadãos ou a multidão governam tendo em vista
o interesse geral, diz-se que a constituição é necessariamente pura e saudável; mas quando se governa tendo em vista o
interesse particular, isto é, atendendo ao interesse de um só
indivíduo, ou de pequeno número da multidão, trata-se de um
desvio (uma constituição viciosa e corrompida). Porque ou
bem os cidadãos participam do interesse geral ou não participam dele.4
3 Idem, p. 231.
4 ARISTÓTELES. Politique. Tome II. Les livres III e IV. Paris. Les Belles Lettres. Texte établi et
traduit par Jean Autonnets. Deuxiéme tirage revue et corrigé (Premiére édition, 1971), p. 67.
Socialismo e Democracia
93
Este interesse geral5 é o intérêt général do Contrato social.6
Só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado – e o Estado legítimo é unicamente aquele regido pelos atos da vontade geral
– , porque, se a oposição dos interesses particulares (Montesquieu)
tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo
desses interesses que o possibilitou. Retornamos a Rousseau. Por
isso, a soberania é indivisível e inalienável. O pacto social dá existência e vida ao corpo político. Pela legislação adquire movimento
e vontade, porque o ato primitivo, pelo qual esse corpo se forma e
se une, nada determina daquilo que deverá fazer para conservar-se.
O governo é um corpo intermediário entre o súdito e o soberano
para sua mútua correspondência.
Rousseau, em oposição a Montesquieu, manifesta sua aversão
à vontade (individual) do representante, porque nela implícita estava a alienação da vontade soberana do homem livre, com a consequente dissolução do conceito de vontade popular, compreendida
como expressão de unidade, soberania e governo. A democracia
participativa retoma o conceito roussauneano de povo, povo ícone, o povo do contrato social, donde a democracia compreendida
como o regime que possibilita a participação dos governados na
formação da vontade governativa.
A crítica rousseauniana aos institutos da representação se
apresenta nos dias de hoje como irretorquível, e os óbices que
chegara a admitir (Considerações sobre o governo da Polônia) à
democracia direta nos grandes Estados revelam-se demolidos
pela potencialidade das modernas tecnologias da comunicação e
da teleinformática, e mesmo por recursos formais que o constitucionalismo moderno vem incorporando às cartas políticas. De
outra parte, parece inquestionável o fracasso da democracia representativa – como supomos será demonstrado na sequência – ,
5 Em grego to (i) koienhi (ii) synpheron: (i) = comum; (ii) ao pé da letra, ‘syn-‘é um prefixo
que significa ‘com’ ou ‘junto a’, ‘pheron’ vem do verbo ‘levar com’, ‘contribuir para’. Este é
o sentido que emprega Aristóteles: ‘aquilo que contribui para todos’, ‘que ajuda a todos’.
O autor agradece a colaboração de Susana de Castro.
6 Contrat Social. Liv. II ch. VI.
94
Roberto Amaral
com seu rosário de vícios e fraudes, ilaqueando a vontade mandatária, transformando o povo-ícone em povo-objeto, destruindo
o povo-real, o povo legítimo, titular da soberania. Esta, por fim,
foi apropriada pelas elites, pelo poder econômico, por instituições e organismos e empresas multinacionais desapartadas da
soberania, pelos meios de comunicação de massas, politizados e
partidarizados, pela transformação da opinião pública ou opinião
publicada, pela usurpação do poder constituinte e do poder legiferante, pela bulha da vontade popular.
A crítica do autor do Contrato social é seminal, mas não esgota
a reflexão da ciência política.
Herdeiro de Rousseau, que tanto o influenciou, Marx terá sido
entre os filósofos modernos um dos principais críticos da democracia representativa, de par com a defesa da democracia direta,
abrindo uma senda que, em nossos dias, conheceria textos de
Gramsci, Lukács, Bobbio, Poulantzas, sem desconhecer mesmo a
crítica clássica, seja o anarcossocialismo de Proudhon,7 seja até o
liberalismo de Stuart Mill, para quem a democracia representativa,
longe de ser o governo de todo o povo por todo o povo igualmente representado, era o governo de todo o povo por uma simples
maioria do povo, exclusivamente representada, de que resulta um
governo de privilégio em favor da maioria numérica que, de fato, é
a única titular de voz no Estado.8
Gramsci, também claramente recorrendo à rica fonte do
Contrato social, transita para a construção de uma sociedade civil
que assegure a possibilidade do autogoverno (democrático) dos
cidadãos, ou o ‘autogoverno das massas operárias’, alimentado
pelas organizações de base, a única hipótese de uma democracia
plenamente realizada, fundamento de um novo modelo de socialismo que, livrando-se do Estado (e assim recuperando a essência
marxista contra a ‘estatolatria’ estalinista?) proclama a ampliação
7 Cf. Idée générale de la révolution aux xix siècle.
8 MILL, M. J. Stuart. Le Gouvernement Représentatif (Traduit par M. Dupont White). Paris:
Librairie De Gauillaumin et. 1862, p. 155 e segs.
Socialismo e Democracia
95
da ‘sociedade civil’, isto é, de um espaço público não estatal, a caminho da ‘sociedade regulada’, cujo pseudônimo é comunismo.9
Mas à crítica não ficaram alheios mesmo pensadores liberais e
conservadores. Para Schumpeter,10 por exemplo, pensador liberal,
a democracia nada mais é do que um simples método de seleção
das elites através de eleições periódicas, alinhando-se não muito
longe, portanto, da denúncia leninista da democracia representativa como a melhor forma de dominação burguesa, ou de Max
Weber, para quem, se a democracia direta é um tipo de governo,
a democracia representativa é a legitimação do poder, uma forma
plebiscitária de escolha e legitimação de líderes, que passam a dominar as massas com um poder autoritário de mando.11
Arendt, após destacar, conservadoramente, os méritos do sistema bipartidário como instrumento assecuratório das liberdades
constitucionais – sistema que, entendemos, sendo característica
tendencial da democracia representativa, mais serve à exclusão – ,
reconhece sua incapacidade em ensejar que o cidadão se converta
em partícipe dos assuntos públicos, pelo que se constituem os partidos em instrumentos eficazes para cercear e controlar o poder
do povo. Para a autora de The Origins of Totalitarism, o governo
representativo se converteu, na prática, em governo oligárquico,
ainda que não seja no sentido clássico de governo de poucos em
seu próprio interesse; o que agora chamamos democracia é uma
forma de governo na qual poucos governam em nome do interesse da maioria, ou, pelo menos, assim se supõe. O governo é democrático porque seus principais objetivos são o bem-estar popular
e a felicidade privada; podemos porém chamá-lo de oligárquico,
porque a felicidade pública e a liberdade pública se converteram,
de novo, em privilégio de uns poucos.12
9 Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. Op. cit., p. 34, 266-267.
10 SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar
Editores. 1984, p. 277.
11 WEBER, Max. Economy and Society. 1964. v. III, p. 951.
12 ARENDT, Hannah. Sobre la revolución. Ediciones de la Revista de Occidente. Madrid.
1967, p. 281-282.
96
Roberto Amaral
Mesmo para Bobbio, advogado da democracia representativa
ou parlamentar – que, reconhece, limita a participação do voto
às eleições de representantes não investidos de mandato imperativo – , qualquer projeto de democracia haveria de fundar-se
sobre três pilastras fundamentais, ausentes da democracia representativa: participação (popular), controle (social) e liberdade de
dissenso. Escreve:
Na sociedade capitalista avançada, onde o poder econômico é
sempre mais concentrado, a democracia, apesar do sufrágio universal, da formação de partidos de massa e de um grau bastante
alto de mobilização política, não conseguiu manter as próprias
promessas, que eram, sobretudo, de três ordens: participação
(ou participação coletiva e generalizada, ainda que indireta, nas
tomadas de decisões válidas para toda a comunidade), controle
a partir de baixo (com base no princípio de que todo poder não
controlado tende ao abuso) e liberdade de dissenso. Nos Estados onde as instituições democráticas são formalmente mais
aperfeiçoadas, verificam-se dois fenômenos contrastantes.13
Referindo-se aos “Estados [ocidentais] onde as instituições democráticas são mais aperfeiçoadas”, Bobbio registra, de um lado, a
apatia política, como uma das faces da ausência de participação,
e, de outro, “a participação distorcida, deformada ou manipulada
pelos organismos de massa que têm o monopólio do poder ideológico”, agravadas ambas as manifestações pela presença de organismos
que diríamos afastados da raiz da soberania popular, e sobre os
quais a coletividade não exerce qualquer sorte de controle democrático, embora sejam, esses organismos, centros efetivos de poder. Bobbio se refere às forças armadas, à burocracia e às grandes
empresas. “Quanto ao dissenso, este é limitado a uma área bem
circunscrita, que é aquela do sistema econômico dominante, e
não oferece nunca a possibilidade de uma alternativa radical. Daí
surge, entre outras coisas, uma segunda razão de desconfiança na
democracia: o método democrático, como é praticado no sistema
capitalista, não parece permitir a transformação do sistema, isto é,
13 BOBBIO, Noberto. Qual socialismo? Rio: Paz e Terra. 1987, 3. ed., p. 32-33.
Socialismo e Democracia
97
a passagem do sistema capitalista ao socialista”,14 ou mesmo uma
mudança social e política ampla, ainda que dentro do sistema, por
meios parlamentares.15
Não é pois, recente, a crítica à democracia representativa e, na
América, ela se instala com a própria democracia, pela voz de seus
corifeus, como Madison, considerado o ‘pai’ do constitucionalismo
norte-americano, a quem afligia a questão ainda hoje crucial da
democracia, a distância entre a vontade de governantes e governados. Santos16 lembra James Mill afirmando que “a menos que um
corpo representativo seja escolhido por uma parte da comunidade,
cujo interesse não pode diferir do da comunidade, o interesse desta será infalivelmente sacrificado ao interesse dos governantes”. A
proposta de representação proporcional de Stuart Mill, escrevendo
quase cem anos após Madison, é esforço visando, na crítica ao governo representativo, garantir a sobrevivência das minorias, contra
o princípio majoritário. Esta é questão contemporânea que mais se
observa nos regimes bipartidários, tendência dominante da democracia representativa contemporânea, principalmente nas chamadas ‘grandes democracias’ ocidentais, com a exclusão, da cidadania,
de setores crescentes da sociedade.
Entre nós, Alencar, escrevendo ainda no segundo Império,
foi dos primeiros críticos, formulando sua teoria da representação
proporcional antes de John Stuart Mill.17 Sua defesa da representação proporcional é a denúncia da ditadura da vontade majoritária,
expressa na democracia representativa que conheceu, assim anatematizada: “O domínio da maioria e a anulação completa da maioria; eis portanto o pensamento iníquo e absurdo em que repousa
atualmente o governo representativo”.18 Para Alencar, o ideal do go14 Idem, p. 33.
15 HIRST, Paul. A democracia representativa e seus limites. Rio: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 8.
16 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. ‘A teoria da democracia proporcional’. In: Santos, Dois escritos democráticos de José de Alencar. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,
1991, p. 21.
17 Idem. id.
18 ALENCAR, José de. Systema representativo. Edição fac-similar. Senado Federal, Brasília,
1977, p. 14. (Ed. Original: Rio de Janeiro. B. L. Garnier, Edictor. Rua do Ouvidor, 69. 1868).
98
Roberto Amaral
verno democrático só se realizaria na medida em que assegurasse a
representação de todas as forças da nação, retomando a legitimidade derivada do caráter integral da democracia da ágora e do fórum:
“Somente nesta condição o sistema representativo será legítimo”.19
Refletindo sobre os primeiros anos da República (sua Democracia representativa é de 1893), refletindo, portanto, mais precisamente a experiência ainda do segundo Império, Assis Brasil defenderá
acima de tudo o sufrágio universal regular, periódico, pluralista e
competitivo, como condição essencial da democracia moderna. Adversário da democracia direta e plebiscitária, defenderá porém a participação política popular autônoma.20
Gilberto Amado – crítico e personagem da primeira República –, entusiasta defensor da democracia representativa, e nela
do sistema proporcional em oposição às formas majoritárias (no
que se associa a Assis Brasil), autor elitista e conservador,21 não
economizou palavras na sua crítica à democracia representativa
norte-americana, monopolizável pelo poder econômico,22 aos sistemas inglês e francês, e, principalmente, à democracia da primeira República brasileira (um sistema de dominação e não de
representação), na qual identifica o falseamento da representação
19 Idem, p. 47-7.
20 BRASIL, Assis. Democracia Representativa. Do voto e da maneira de votar. In Ideias políticas de Assis Brasil. Brasília, Rio de Janeiro: Senado Federal/Casa de Rui Barbosa. 1990,
v. II, p. 27.
21 Escreve: “É um axioma de ciência política verdadeiro em todos os regimes – no regime
democrático como nos demais – que a sociedade deve ser dirigida pelos mais avisados
(sages), pelos mais inteligentes, pelos mais capazes, pelos melhores, em uma palavra pela
elite”. Esta citação (p. 11) e as demais são retiradas de: AMADO, Gilberto. Eleição e representação. Brasília: Senado Federal. Coleção Biblioteca Básica Brasileira. 1999. Doravante
indicaremos apenas a página.
22 Depois de afirmar que “(…) eleições formalmente perfeitas levaram às câmaras, aos postos de comando um grupo de homens que deviam representar o país permanentemente considerado, o país no seu conjunto material e espiritual, e não representam senão
certa soma de interesses confederados no momento, interesses que podem ser apenas
expressão de influências transitórias, alheias senão hostis aos interesses do país”, cita D.
Saville Muzzey: É sabido que “nos Estados Unidos em nossa época, de 1896 em diante,
os grandes monopólios regulam os interesses econômicos da nação, produção, salários,
preço dos gêneros de primeira necessidade, assim como os interesses políticos; eleição do
Poder Legislativo e do Poder Judiciário” (p. 15-16).
Socialismo e Democracia
99
política e a corrupção, destacando o papel do ordenamento legal
como instrumento de legitimação, ou legalização, da defraudação
da vontade popular.
Mesmo esse analista conservador e elitista chega a defender
a iniciativa popular, o referendo e o recall (reconvocação) como
meios aptos tanto a livrar os parlamentos e os governos (referia-se à experiência norte-americana em governos locais) “das
influências e dos grupos capitalistas” quanto a proporcionar a
“colaboração imediata da massa popular na direção da coisa pública”, atingindo o máximo realizado nos cantões suiços.23
1. Os novos atores
O desvanecimento do poder representante do cidadão, limitado na escolha do mandatário, e a liberdade do mandatário, agindo
sem vínculo com a representação, agravam a falência da democracia representativa tanto mais quanto outros órgãos, organismos,
instituições e entidades, sem raiz na vontade popular, sem pouso
na soberania do voto, sem legitimidade popular, adquirem poder
constituinte e, assim, passam a gerar direitos, numa flagrante usurpação de mandato, que fratura de forma irremediável a democracia
e a representação popular, sem a qual aquela falece por inanição.
São esses novos atores, no plano internacional as multinacionais (que podem decidir, a partir de suas matrizes, os destinos
econômicos dos países periféricos nos quais atuam, empresas e
corporações que, em muitos casos, representam economias superiores a muitos países) e instituições como FMI, BID, Bird, ditando,
à margem das nações e de seus povos e de seus parlamentos, os
destinos de nações e povos; são eles, nos planos nacionais, os novos
meios de comunicação de massas, eletrônicos, as grandes corporações, o sistema financeiro e a alta burocracia, no exercício ilegítimo
de poder legiferante, interferindo na constituição do poder, interferindo na ordem governativa. Governando, enfim.
23 Idem, p. 17.
100
Roberto Amaral
Quando dizemos interferindo, estamos também dizendo manipulando, isto é, alterando a vontade original; e, também, subtraindo a vontade popular, fraudando-a, anulando em sua sede a
soberania do voto.
É esse o novo papel dos meios de comunicação de massas,
politizados e partidarizados, construtores do discurso único, do
discurso unilateral, do discurso monocórdio do sistema. Esses
meios de há muito abandonaram o clássico papel de intermediação
social. São hoje atores a serviço dos interesses dos grupos que os
controlam. Não reportam: interferem no fato e passam a ser o fato;
não narram, invadem o andamento do evento em narração; não
informam, constroem a opinião; não noticiam, valoram. O fato, a
realidade, o acontecimento, o evento, não é o fato acontecido, a
ocorrência em si, mas o fato que logrou ser narrado e, principalmente, como foi narrado. Mais do que nunca, a realidade não é o
fato objetivo, mas a versão que lhe emprestam os meios de comunicação de massa. Ou seja, e finalmente: real não é o fato, mas a
notícia do fato; real não é o que ocorre, mas o que é noticiado.24
2. Os meios de comunicação de massa
Além de seu papel clássico, de construtores da realidade e, assim, de edificadores da opinião pública, os meios de comunicação
– propriedade de grupos econômicos poderosíssimos – , monopolizando a informação e controlando suas fontes, se transformam
em sujeitos ativos da política.
Esse papel não se dá, apenas, mediante a manipulação, o parti
pris, a opção partidária. Ele opera num círculo fechado de influências e interinfluências que passa a condicionar o processo político
e o processo eleitoral. Os meios influenciam quando dão ou negam
espaço ao candidato, e o candidato depende do espaço nos meios
para consolidar-se, no partido (para fazer-se candidato) e na socie24 Estudamos a questão, com mais rigor em ‘A contradição público versus privado e a construção da realidade pelos meios de comunicação de massa’, in Comunicação&política.V. 2,
n. 1 e 2, mar.-jun./1984, p. 53-62.
Socialismo e Democracia
101
dade (para eleger-se). Essa maior ou menor exposição pelos meios
determina sua presença nas pesquisas de opinião pública, que, manipuladas ou não, influenciam o processo eleitoral. Influenciam
primeiro a opinião interna dos partidos que procuram dentre seus
candidatos aqueles melhor situados nas pesquisas, e a seguir influenciam o próprio eleitorado, que persegue os candidatos mais fortes, e o
candidato mais forte é aquele com maior índice de preferência, o qual,
por estar nesta posição num determinado momento, será sempre citado. A presença nas pesquisas determina o espaço nos meios, a cobertura jornalística, o convite para entrevistas e debates, e esta exposição
passa a ser a medida dos apoios financeiros.
Outra questão é saber se há alguma razão ontológica ou deontológica para as pesquisas de intenção de voto. Por que e para
que são feitas essas pesquisas, que papel desempenham e procuram desempenhar? Qual a utilidade, ou função de uma pesquisa
de intenção de voto, pensando-se estritamente no processo eleitoral, em seu âmbito interno, em sua natureza, em seu caráter, em
sua finalidade e, em sua antologia? A que interesses cívicos ou
democráticos atende essa mercadelização do processo eleitoral?
Por que, para bem escolher seu candidato o eleitor precisa saber
se ele tem x% ou y% das intenções de voto? Não encontramos
justificativas, fora dos argumentos da mercadologia. Outrossim,
identificamos nas pesquisas, mesmo nas pesquisas não manipuladas, um instrumento de desvio da atenção eleitoral. A discussão
que toma conta dos meios – e, explique-se: os meios promovem
as pesquisas e a discussão em torno delas – são os números, as
metodologias de pesquisa, os índices de aceitação e rejeição de
candidatos, de conhecimentos ou desconhecimentos etc., em
prejuízo das discussões programáticas, das discussões mesmo
políticas em torno de programas de governo ou de mandato parlamentar. Discute-se tudo, menos os candidatos, as candidaturas
e o processo eleitoral.
Retirada a política das praças, retirada a campanha eleitoral dos
comícios das manifestações de massas, enclausurada a campanha no
vídeo e no rádio, a escolha dos partidos necessariamente se volta para
aqueles candidatos com domínio do veículo, os quais, geralmente,
102
Roberto Amaral
são os candidatos já com melhor/maior exposição, porque, para ser
alvo de entrevistas e convites para debate, o candidato, aprovado no
vestibular político da empresa jornalística, haverá de demonstrar
competência no domínio da linguagem do meio. Ao fim e ao cabo, a
televisão é um mercado e a política é um produto a ser vendido. Para
isso, o veículo busca audiência em suas novelas, nos programas de
entretenimento, mas busca igualmente no telejornalismo e nos programas políticos. Daí a videopolítica construindo a videodemocracia
que exige, como a televisão, atores, isto é, vendedores, e audiência,
ou seja, boas vendas.25
No país em que as campanhas eleitorais saíram das ruas para o
vídeo, a participação dos candidatos e dos partidos é absolutamente assimétrica, anulando qualquer possibilidade de concorrência
digna de honesta consideração.26
No período pré-eleitoral, os partidos políticos dispõem de horário gratuito no rádio e na televisão para a divulgação de seus programas e exposição de seus principais quadros eleitorais. Mas a partilha
do tempo desses programas é proporcional às bancadas na Câmara
dos Deputados, as quais variam de 108 parlamentares (PMDB) a um
parlamentar (PV, PRP e PRN). Assim, os grandes partidos dispõem,
anualmente de dois programas de 20 minutos, cada, e mais 20 minutos de inserções de 30 segundos a um minuto. Enquanto os demais
partidos dispõem apenas do direito às inserções, variando segundo
25 Escrevendo sobre ‘O espetáculo da política americana – Campanha presidencial não
seria a mesma sem a TV e Hollywood’, Priscilla Leal (JB, 27/8/2000, p. 23) traz o depoimento do mercadólogo Bruce Newman (assessor de Clinton nas duas últimas eleições
e de Vicente Fox), para quem “As pessoas acompanham os acontecimentos na Casa
Branca como se assistissem a uma novela. Uma estrela é Bill Clinton, a outra é Hillary”
e conclui: “99,99% dos americanos só conhecem o presidente pela televisão, acompanham a política e os escândalos, como o de Monica Lewinsky como um drama. Para
muitos americanos, a Casa Branca é apenas mais uma estação de TV”.
26 Com humor, o cronista Artur Xexéo (Jornal do Brasil, 11/9/1998), resume o desânimo
do cidadão diante do processo eleitoral mediatizado: “O duro de ter mais de 40 anos
– ou quase 50 para ser mais exato – é que a gente se lembra de eleições em que um
comício era capaz de virar um resultado, um debate tinha força para o eleitor escolher
seu candidato, uma passeata mobilizava multidões. Que droga de eleição é esta em que
a gente só acompanha o insosso horário eleitoral obrigatório e as maiores emoções são
reservadas para o último resultado de pesquisa!”.
Socialismo e Democracia
103
as respectivas bancadas, chegando a casos em que o total de tempo
disponível é inferior, em todo o ano, a dez minutos. No período eleitoral, no chamado horário eleitoral gratuito, o mesmo critério faz
com que partidos como o PMDB, o PFL e o PSDB tenham, respectivamente, sete, seis e cinco minutos diários, contra quatro minutos
do PT, três minutos do PTB, dois minutos do PSB, e um minuto do
PL e do PCdoB, tudo em números redondos.
Por isso, os meios de comunicação interferem, até, no processo
de formação das coligações partidárias, porque essas, por tais razões, deixam de seguir critérios de afinidade eleitoral ou programática ou ideológica, para obedecer à lógica da soma de tempo para
seus programas no rádio e na televisão.27
Esse novo papel dos meios de comunicação, na sociedade de
massas – de construir ou reconstituir a realidade – , completa o sonho consumista: em síntese e em resumo, a comunicação de massas, a informação, a notícia, como a política, é apenas mais um bem
de consumo – um sabonete, um sapato, uma marca de cigarro, um
refrigerante, a casa própria, a marca de cerveja – matizado pelo
neoliberalismo, isto é, pela apropriação desigual dos bens de consumo, de bens simbólicos e de cidadania.
Por tudo isso, a política é transformada em um bem, em uma
mercadoria, e, assim manufaturada, é também um produto destinado a ser consumido desigualmente; o cidadão deixa de ser um
ator da política, para se reduzir a um consumidor.
É a vitória do mercado.
Tal fenômeno, grave em sua descrição, preocupante em qualquer país desenvolvido, assume, no Brasil, contornos de extremo
perigo quando, em sociedade ágrafa, semialfabetizada e semiletrada, desafeita à leitura quando letrada, os meios de comunicação
de massas, principalmente os audiovisuais, o rádio e a televisão,
associados aos meios impressos, estão entregues a um sistema de
27 A propósito da videopolítica e da videodemocracia, consultar SARTORI, Giovanni.
Engenharia constitucional. Brasília: Ed. UnB. 1996, p. 162. Ver também RAMONET,
Ignacio. La tyrannie de la communication. Paris: Galilée. 1999.
104
Roberto Amaral
oligopólio que transita para o monopólio, sob todos os aspectos:
monopólio da propriedade, monopólio da audiência ou da circulação, monopólio da informação, monopólio dos conteúdos.
Em suas mãos, a construção da opinião pública.
Se, na ‘democracia’ representativa da sociedade de massas não há
o controle, pela sociedade, a partir de baixo, do sistema de comunicação e do sistema político, verifica-se a existência do controle que sobre
a sociedade e a política exerce um quarto poder, um poder incontrolável (e por isso tendente ao abuso), o poder ideológico – “imenso como
ensina a História de todos os tempos e não somente, como se acredita e se afirma hoje, a História dos nossos tempos, nos quais se desenvolveram as comunicações de massa” – monopolizado (econômica
e politicamente) por um grupo de proprietários e transmissores de
doutrina, que, sem qualquer sorte de controle social, e no exercício de
um poder monopolizado unilateral, se julga competente para declarar
quais são as ideias justas e as equivocadas, transformando suas ideias
particulares (isto é, seus interesses) em ideias universais.28
Pelo que a representação é uma farsa. A ‘democracia’ fundada
nessa farsa é uma contrafação.
3. A manipulação legal
O poder legiferante de funcionários e tecnocratas de segundo
e terceiro escalões – como o diretor da Receita Federal ou o diretor de Mercado do Banco Central – chega a rivalizar-se com o do
Congresso, parecendo mais ágil e mais eficiente; atrás de portarias,
regulamentos e normas, constituem direitos, editam regras que interferem na vida econômica do país e dos cidadãos.
Estas questões se abatem de forma mais grave nos países periféricos – em face da consabida fragilidade institucional que os caracteriza – , mas se encontram e são observadas em todo o mundo,
em face da globalização (de ordem política e ideológica que se realiza pela via econômica) e do neoliberalismo, os quais, associados,
28 Cf. BOBBIO. Op. cit., p. 34-35.
Socialismo e Democracia
105
intentam apartar a vida política (vista como uma artificialidade) da
sociedade (a vida real). Daí, num segundo momento, já próximo se
essa tragédia não for estancada, o desaparecimento dos partidos,
a oclusão das lideranças (acoimadas de ‘populistas’, uma categoria
arcaica a ser exorcizada…), e, finalmente, a liquidação da política,
a alienação programada.
Tais afirmações, que se aplicam à perfeição à nossa tragédia política contemporânea, a ela não são exclusivas.29 Trata-se,
mesmo, de categorias intrínsecas à democracia representativa,
que tem, como uma de suas pilastras, a interferência da simbiose
tautológica poder econômico-corrupção. Esse binômio é o centro
das discussões de juristas e políticos alemães estarrecidos (e por
que estarrecidos?), com os escândalos das contas inexplicáveis de
Helmut Kohl e de sua CDU, a Democracia Cristã alemã. Tratase, apenas, de uma variante da mesma sorte de ‘relação perigosa’
que, pelos mesmos métodos, e pelas suas relações com a máfia30
selou tantos anos de dominação da política italiana pela mesma
Democracia Cristã (PDC). Escândalos envolvendo a manipulação do processo político-eleitoral são característicos das políticas
japonesa e coreana, e atingem com frequência a França.
Os Estados Unidos, a par de exacerbar a participação do poder econômico no processo eleitoral, com a única e vitoriana ressalva de que a intervenção manipuladora do poder econômico se
faça às claras, também convive com denúncias de suborno em seu
29 O que estamos afirmando se aplica a qualquer sociedade de massas. Reportando-se às
últimas eleições norte-americanas, Douglas Hattaway, porta-voz democrata, dizia em
outubro de 2000: “A campanha vai ser decidida por um tipo particular de eleitor. É aquela
pessoa que quando lê a palavra política, no jornal, vira a página. Quando vê chamada
para um debate, muda de canal. É uma pessoa que não tem informação e nem faz muita
questão de ser muito informada. O instrumento mais fácil para conversar com esse tipo
de eleitor são os anúncios de TV. Relativamente bem comportados, até agora, pode-se
apostar que ficarão agressivos nos próximos dias – pelo impacto, pelo sensacionalismo e
pela violência se pretende alcançar aquele eleitor desinteressado antes que ele descubra o
que está assistindo e mude de canal”. In Gazeta Mercantil, 19/10/2000, p. a-16.
30 Exemplarmente lembramos as acusações de tráfico de influência da Loja Maçônica P-2, de Licio
Gelli, a falência fraudulenta do Banco Ambrosino, ligado ao Vaticano e à DC, as acusações que
levaram os ex-primeiros ministros Giulio Andreotti e Bettino Craxi ao banco dos réus, as ligações do primeiro ministro Silvio Berlusconi com o escândalo do grupo financeiro Finivest.
106
Roberto Amaral
processo eleitoral e, significativamente, com um constante absenteísmo de seus eleitores.31
Abstenção em eleições presidenciais nos Estados Unidos –
1932-199232
Ano
Candidatos
Abstenção %
1932
Roosevelt-Hoover
47,6
1936
Roosevelt-Landon
44
1940
Roosevelt-Wilkie
41,1
1944
Roosevelt-Dewey
44
1948
Truman-Dewey
48,9
1952
Eisenhower-Stevenson
38,4
1956
Eisenhower-Stevenson
40,7
1960
Kennedy-Nixon
37,4
1964
Johnson-Goldwater
38,1
1968
Nixon-Humphrey
37,7
1972
Nixon-McGovern
44,8
1976
Carter-Ford
46,5
1980
Reagan-Carter
1984
Reagan-Mondale
46,9
1988
Bush-Dukakis
49,8
1992
Clinton-Bush-Perot
44,1
1996
Clinton-Robert Dole
46
49
31 HALIMI, Serge (‘L’argent ou coeur des débats’), comentando as primárias presidenciais
norte-americanas de 2000, destaca o papel do poder econômico na política americana e
informa que só a campanha do republicano George Bush recolheu 70 milhões de dólares
(Le Monde Diplomatique, 4/2/2000). Segundo Paulo Moreira Leite (Gazeta Mercantil,
19/10/2000, p. a-16, o comitê democrata encerrou sua arrecadação com cerca de US$ 100
milhões. Sobre o papel do dinheiro no processo eleitoral americano ver 1. ‘Quand ceux
qui signent les chèques font les lois’, HAMILI, Serge. maio/1997; 2. ‘Des responsables
politiques si influençables’. PERTSCHUK, Mark. e 3. FERGUSON, Thomas. ‘Le trésor de
guerre du président Clinton’, 10/1996. Esses artigos também podem ser localizados em
http://www.monde-diplomatique.fr.
Socialismo e Democracia
107
O conceito de democracia – qualquer – é incompatível com
o absenteísmo, pois a regra que a legitima é o governo produto da
vontade da maioria, expressa no processo eleitoral.
A grande democracia representativa ocidental, paradigma
a ser obedecido, diz-nos a direita impressa, é modelo de democracia indireta,32 sem voto e sem cidadania. Walter Dean Burhan
estima que apenas 38% dos cidadãos norte-americanos são eleitores ‘regulares’ em pleitos nacionais e estaduais, 17% são eleitores
‘eventuais’ e 45% sequer são eleitores.33 Nas eleições presidenciais
de 1996, das mais concorridas, votaram apenas 49% dos eleitores
habilitados, ou seja, 35% da população.
Esse absenteísmo também tem fulcro na percepção, pelo eleitorado, do evidente jogo de cartas marcadas em que se converteram as eleições, pré-definidas pelas estruturas partidárias, de
dois partidos, irmãos germanos, que decidem quem vai concorrer, depois de decidido quem vai ganhar. Aos eleitores, depois do
concerto da cúpula e do jogo ensaiado das primárias, cabe simplesmente homologar a decisão anunciada, elegendo um colégio
de eleitores que vai votar como toda a nação e o mundo sabem
como irá votar.
O processo eleitoral norte-americano – modelo que as democracias representativas perseguem no Ocidente, em seus méritos e
em seus defeitos, daí termos nele nos detido – se caracteriza por
negociatas nos bastidores, truques e espertezas, bem aprendidas
pela política brasileira; se o processo é pré-decidido, nos bastido32 O complicado e obsoleto sistema eleitoral indireto para a escolha do presidente, nos Estados Unidos, prevê uma primeira rodada de voto popular, estado por estado, e um segundo
turno, num colégio indireto composto pelos delegados de cada estado. Ocorre que o número de delegados varia, estado por estado, para beneficiar os pequenos estados (trata-se de
uma maioria estadual ponderada pelo número de habitantes, admitindo arredondamentos
ora para mais, ora para menos), e o sistema atribui ao ganhador, em cada um dos cinquenta
estados, o total dos votos daquele estado, sem considerar, portanto, a proporcionalidade
de candidatos em face dos votos obtidos. Nesse sistema majoritário, os votos do candidato
derrotado são transferidos para o candidato vencedor no distrito, pelo que, votando num
candidato democrata, o eleitor norte-americano pode estar assegurando a vitória de um
candidato republicano. Foi o que ocorreu em 2000.
33 Idem. Idem.
108
Roberto Amaral
res, as eleições, isto é, o chamamento dos eleitores ao voto, pode
transformar-se, como transformado está, em um grande espetáculo, uma grande feira, também um grande negócio, presidido e
organizado pelos grandes meios de comunicação, televisão à frente. No processo eleitoral não há lugar para a política, que cede ao
espetáculo; não há lugar para políticos, que cedem a cena a atores;
não há lugar para a ciência política: o espaço é ocupado pelos consultores de marketing. A política é um mercado, o candidato é uma
mercadoria, o eleitor é um consumidor.34
O que acrescentar com respeito às eleições de 2000, nas quais o
candidato que obteve a maioria dos votos não foi eleito,35 e a legitimidade do pleito é atacada por suspeitas de corrupção e fraude?
Eleições norte-americanas de 2000
População (censo de 1999) 272.878.000
Eleitorado: 201.000.000
Votos populares
Votos no Colégio Eleitoral
Gore
50.158.094
267
Bush
49.820.518
271
3.895.294
–
Outros
Total
103.873.906
538
Nessas eleições – que passarão à História como símbolo da falência do regime representativo – compareceram ao pleito pouco
mais da metade dos eleitores inscritos e apenas 38% da população
norte-americana, e o novo presidente teve o respaldo de apenas
18% de seus concidadãos, desvelando a obsolescência do sistema
político e do sistema eleitoral norte-americano, manipulado pelo
poder econômico, manipulado pelos meios de comunicação e ainda acusado de fraude eleitoral, um sistema que chega às raias desse
anacronismo – eleição indireta, cálculo ponderado dos eleitores
34 Este tema é aprofundado em Vitor Palozzi. Murro na cara, o jeito americano de vencer
eleições. Rio: Editora Objetiva, 1966.
35 Repetindo os episódios das eleições de 1824, 1876 e 1888.
Socialismo e Democracia
109
dos estados, arredondamento permitindo transferência de eleitores de um estado para outro, destruindo com um dos axiomas da
democracia representativa que é cada cidadão um voto, e cada voto
valer um voto – para poder preservar privilégios e injustiças.
Nada muito distante do que ocorreria nas últimas eleições em Israel (2001) quando de 4,5 milhões de cidadãos aptos a votar apenas 2,8
milhões, ou 46,66% da população compareceram ao pleito.
No Brasil, os escândalos envolvendo o financiamento da campanha presidencial de 1989 e o governo Collor ainda estão muito
distantes de seu fiel esclarecimento. E todos sabemos que não se
trata de fato isolado, como isolado não foi o processo, acoimado
de fraude e corrupção, que garantiu, no Congresso, a aprovação da
emenda constitucional permissiva da reeleição.
Não é democrático nem representativo o regime que se alimenta na fraude contra a vontade do representado; não é democrático porque, na sociedade de massas e do mercado, o processo
eleitoral é seletivo, constituindo uma nova forma de pleito censitário: é o reino do poder econômico. Não se diz, apenas, que
a democracia representativa abriga a ação do capital; diz-se que
compreende a corrupção, a corrupção do sufrágio e a corrupção
no exercício do mandato, negando a representação; a ação do capital se abate sobre o pleito e sobre o desempenho do mandato,
corrompendo parlamentares e executivos.
Em todos os países, ao lado da manipulação da vontade coletiva pela intervenção do poder econômico, às escâncaras ou sob
cínico controle, a classe dominante também se vale de mecanismos
legiferantes que visam a contornar a emergência do voto popular e
de esquerda, de que são simbólicos tanto a legislação italiana (que
garantiu o poder ao PDC, obstando o avanço do PCI) quanto o
voto distrital gaullista que impediu na França a conquista do poder
pela coalizão de esquerda, a mesma reforma eleitoral que garantiu
por tantos anos o poder da CDU na Alemanha. No Reino Unido,
a legislação impede o crescimento do Partido Liberal. No Chile, as
regras para as eleições garantem aos conservadores, na Câmara,
110
Roberto Amaral
um número de cadeiras superior aos votos obtidos. No Brasil, a
proposta de abolição das coligações nas eleições proporcionais, de
par com a introdução de ‘cláusula de barreira’ ao funcionamento
parlamentar, pode eliminar a representação de vários partidos, na
sua maioria os de índole ideológica.
De outra parte, o sistema de aproveitamento de sobras, no cálculo das cadeiras e na formação do quociente eleitoral, implica,
com a transferência de votos do menos votado para o mais votado,
vício e fraude contra o eleitorado.
Trata-se, portanto, essa democracia representativa, de sistema em que a burla da vontade do eleitor é a regra. Votando
no candidato de sua preferência, o eleitor pode estar elegendo
alguém, dele desconhecido, e de outro partido, porque seu voto,
em face do sistema de sobras, pode ser transferido para outro
partido. Votando em um partido, pode estar elegendo candidato
de outro partido, hipótese das coligações proporcionais. Votando na oposição, pode estar elegendo um situacionista. Votando
na legenda de um partido, com a evidente intenção de reforçála, o eleitor pode estar elegendo candidato de outra legenda,
elegendo candidato de partido que sequer atingiu o quociente
eleitoral. Finalmente: o eleitor vota num candidato e pode estar
elegendo outro.
Estudando o sistema eleitoral brasileiro, Paulo S. Tarfner, chega às seguintes conclusões:
Considerando assim sob essa ótica do eleitor, nosso sistema
eleitoral nos coloca como um dos países com maior esterilização de votos e, portanto, com elevada exclusão política. Dados
comparativos internacionais permite-nos afirmar que o Brasil
se encontra entre os países de mais elevada desproporcionalidade e o campeão de exclusão em termos absolutos.
(…)
A exclusão política de milhões de cidadãos, como ocorre entre
nós, associada a outras características do sistema político bra-
Socialismo e Democracia
111
sileiro, cujo resultado é colocar as recompensas e incentivos
do sistema nos indivíduos políticos e não nos partidos, tende a
provocar maiores descompassos entre a vontade do representado e a geração de políticas públicas por parte do legislador,
o que, em última instância, compromete e submete a riscos a
democracia brasileira.36
Toda iniciativa que visa a reduzir a representação das minorias, ademais de ferir o pluripartidarismo, cláusula pétrea do diploma de 1988 inserta no inciso V do art. 1º, é antidemocrática
porque condena uma parcela da cidadania à não representação. As
exigências da cláusula de barreira ou de desempenho afastariam
do quadro partidário de hoje nada menos que 22 legendas, num
universo de trinta organizações. A cláusula de exclusão, no modelo
de representação proporcional, ademais de antidemocrática, é inconstitucional, pois dela resultaria a forçosa existência de minorias
sem condições para se representar.
A democracia representativa – e essa é uma característica contemporânea – favorece o trânsito do pluralismo ao bipartidarismo, reduzindo, assim, os espaços da convivência e manifestação/
expressão das minorias. O bipartidarismo (Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Suécia, entre outros), limitando a representação
e a democracia, é o estuário natural do pensamento único. Com o
esmagamento da representação e das minorias, a democracia representativa também constrói o fim das expressões/manifestações
das diferenças, das regiões, das diversidades políticas, culturais, étnicas e mesmo religiosas.
Mas não cabe aqui, nos limites de nossos objetivos, a resenha
das mazelas que fazem do sistema representativo uma patologia.
Contentemo-nos com o registro de duas distorções, levantadas por
Jairo Marconi Nicolau. A primeira, denominada de gerrymander
pela literatura política é, nos países que utilizam a representação
majoritária (que no Brasil tomou a denominação de distrital), a
manipulação das fronteiras dos distritos eleitorais, com o intuito
36 TAFNER, Paulo Sérgio Braga Proporcionalidades e exclusão no sistema político-eleitoral
brasileiro (Dissertação de mestrado). Rio de Janeiro: Iuperj. Dez./1997, p. 80-81.
112
Roberto Amaral
de favorecer ou prejudicar candidatos ou partidos; a segunda é
a alocação desproporcional das cadeiras de um Parlamento: “Os
legislativos são em geral compostos por representantes de vários
distritos eleitorais.37 Quando o percentual de eleitores de cada distrito não é igual ao percentual de representantes (cadeiras) desses
distritos no Parlamento, produzem-se distorções de dois tipos. A
primeira é a violação do princípio de que todos os eleitores devem
ter votos com o mesmo valor; a segunda é a sub-representação dos
partidos que têm voto concentrado nos distritos que perdem cadeiras e a sobre-representação dos partidos que concentram votação
nos distritos que ganham cadeiras”.38 No Brasil, que adota o sistema
proporcional, com lista aberta de candidatos,39 facultado o voto na
legenda, uma das distorções é a sobrerrepresentação de estados de
eleitorado predominantemente rural, menos populosos, em prejuízo das representações de estados, portanto, distritos eleitorais, mais
populosos e de eleitorado predominantemente urbano.
Câmara dos Deputados
Unidade Federativa
Representação
Real
Proporcional
Acre
8
*
Amapá
8
1
Amazonas
8
6
17
15
8
4
Pará
Rondônia
37 No sistema brasileiro, cada estado pode ser considerado como um distrito. A questão
radica na extrema desproporção eleitoral entre os estados. Assim, temos ‘distritos’ como
São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, cujo eleitorado é, respectivamente, 24 milhões, 12
milhões e 10 milhões, ao lado de distritos como Rondônia (900 mil eleitores), Acre (320
mil eleitores), Amapá (215 mil eleitores) e Roraima (170 mil eleitores). Fonte: TSE.
38 NICOLAU, Jairo Marconi. Sistemas eleitorais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1999, p. 5.
39 Em nosso sistema, o eleitor pode votar (a) em um dos candidatos constantes das nominatas de cada partido ou (b) na legenda, sufragando o nome de um partido.
Socialismo e Democracia
113
Câmara dos Deputados
Unidade Federativa
Representação
Real
Proporcional
Roraima
8
1
Tocantins
8
4
17
14
Mato Grosso do Sul
8
6
Mato Grosso
8
7
Distrito Federal
8
6
Alagoas
9
6
Bahia
39
38
Ceará
22
22
Maranhão
18
14
Paraíba
12
11
Pernambuco
25
24
Piauí
10
9
8
8
Espírito Santo
10
9
Minas Gerais
53
57
Rio de Janeiro
46
50
São Paulo
70
113
Paraná
30
31
Rio Grande do Sul
31
34
Santa Catarina
16
17
513
513
Goiás
Rio Grande do Norte
TOTAL
* Pelo cálculo da proporcionalidade populacional, não teria direito a representação.
Fonte: Dirceu, José; Ianoni, Marcus. Reforma política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 41.
114
Roberto Amaral
Assim, um eleitor de Roraima, estado com uma bancada de
oito deputados federais, vale 33 eleitores de São Paulo, que possui
setenta parlamentares, mas cuja representação deveria ter 113 deputados federais. Enquanto os estados do Sudeste, e neles os partidos que nessas regiões têm sua principal influência política, são os
mais prejudicados, os maiores beneficiários são: Mato Grosso do
Sul e o Distrito Federal, cada um com duas cadeiras a mais do que
deveriam ter, pelo cálculo puro e simples de sua população; Sergipe
e Goiás, com três cadeiras a mais; Rondônia, quatro; Tocantins,
cinco; Acre, Amapá e Roraima, sete cada um.
A distorção decorre da ordem constitucional que, no seu art. 45,
determina oito e setenta como os números mínimo e máximo de
representação por unidade federativa. Nas duas pontas, Roraima
e São Paulo, os quais, dividido o número de cadeiras (513) pelo
eleitorado, deveriam ter um e 113 representantes, respectivamente
e, como vimos, têm oito e setenta.
A Constituição de 1988 absorve dispositivo da legislação castrense, mas não data do golpe sua recepção pelo direito brasileiro.
Ele já estava presente na Constituição de 1946, numa possível reação do constituinte à ditadura eleitoral da composição Minas-São
Paulo que havia caracterizado a República Velha até o decreto de
seu crepúsculo com a Revolução de 1930. Jairo Nicolau, que se debruçou sobre o tema, afirma que sempre houve distorção na representação parlamentar no Brasil, indicando sua existência de 1872
até nossos dias.40
Eis porque o regime representativo, no Brasil, como observa Bonavides, havendo dominado quatro repúblicas e mais de um século,
“não eliminou as oligarquias, não transferiu ao povo o comando e a
direção dos negócios públicos, não fortaleceu nem legitimou nem
tampouco fez genuína a presença dos partidos no exercício do poder.
Ao contrário, tornou mais ásperas e agudas as contradições partidárias em matéria de participação governativa eficaz. Do mesmo passo
fez, também, do poder pessoal, da hegemonia executiva e da rede de
40 Cf. MELO, Murilo Fiuza de. ‘Parlamento brasileiro nunca respeitou proporcionalidade’.
In Jornal do Brasil, 9/7/1997.
Socialismo e Democracia
115
interesses poderosos e privilegiados, a essência de toda uma política
guiada no interesse próprio de minorias refratárias à prevalência da
vontade social e sem respaldo de opinião junto das camadas majoritárias da sociedade.”41 Trata-se, pois, de princípio – o instituto representativo, tal o conhecemos no Brasil –, incuravelmente eivado de
ilegitimidade. Esta a sua história republicana, reforçando a exclusão
social, a exclusão política, a exclusão econômica, a sotoposição das
massas por minorias cada vez menores e cada vez mais poderosas.
Nessa ‘democracia’ representativa povo é bibelô, mero arabesco, destinado a compor a decoração barroca dos preâmbulos constitucionais,
gravados para a retórica populista.
O fracasso da democracia representativa, sendo o fracasso de
toda a teoria da soberania popular, donde a ilegitimidade do poder
que nela se assenta, também está exposta na falência da separação
dos poderes. A teoria tripartite dos poderes, separados e harmônicos entre si, é uma burleta em face da efetiva ditadura dos executivos e, nas federações, da União sobre os estados, seja controlando
os recursos públicos, seja controlando a arrecadação de tributos,
seja disciplinando a vida dos estados e dos municípios, seja, mesmo, legislando. Com a preeminência do Executivo, também se assinala a supremacia da União sobre os demais entes federados e a
virtual exaustão federativa.
A democracia representativa fracassou.
É preciso corrigi-la o mais urgentemente possível, para que
não contamine o coletivo dos cidadãos com a descrença na democracia tout court, direito fundamental da Humanidade, direito da
quarta geração.
4. Nossas raízes autoritárias
No Brasil, a democracia representativa jamais medrou em campo
fértil, jamais se hauriu na expressão legítima da vontade soberana do
voto livre. A raiz mais remota desse fracasso rotundo pode estar nos
41 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros Editores, p. 351.
116
Roberto Amaral
contornos próprios de nossa formação de país, nação e povo – desgraçadamente nessa ordem –, construindo uma sociedade autoritária e,
daí, um Estado autoritário, regido por um direito autoritário. O direito
da casa-grande que sempre tratou o país, o seu coletivo, o seu ‘povo’,
como senzala, com ofício próprio e definido: o trabalho, escravo de
preferência. A senzala não podia ter voz, nem a casa-grande precisava ouvi-la. O fato mesmo de ser proprietário e branco, e proprietário
porque branco, e rico porque branco, dava ao senhor todos os poderes
constituintes, e ele soube ser sempre o senhor de baraço e cutelo de sua
gente, decidindo sobre as coisas, os negócios e as pessoas, sobre a liberdade e a vida, desde nossas origens coloniais aos primórdios de nossa
organização política, quando uma constituinte de brancos e doutores
sem mandato foi dissolvida para que nossa primeira Carta política,
de inspiração iluminista, redigida a quatro mãos nas antecâmaras da
Corte, fosse, autoritariamente, outorgada pelo príncipe absoluto e assim se inaugurasse a crise constituinte na qual ainda hoje nos debatemos, sem alternativas a olho nu.
O ato de força que está no vestibular de nossa maioridade política não é episódio isolado na história dessa democracia sereníssima, sem representação popular.
O primeiro colégio da soberania nacional, convocado, nomeado
e dissolvido pelo príncipe, era formado por 23 doutores em direito,
sete em cânones, três em medicina, 22 desembargadores, nove clérigos, sete militares. Todos ligados à propriedade da terra.
Quando se abre para o processo eleitoral, o país inaugura o
voto censitário, aquele que requeria do eleitor a posse de bens ou
propriedade. A partir da Constituição de 1824 o corpo eleitoral se
separa em votantes e eleitores, excluídos do voto os que não tivessem uma renda anual líquida, por bens de raiz, indústria, comércio
ou emprego. Votavam os homens, não votavam as mulheres. Votavam os letrados, não votavam as massas incultas e analfabetas,
votava a minoria mínima, não votava a maioria. Votavam os brancos proprietários. Foi esse o Brasil colonial que chegou ao Império
e fez a Independência, para dar lugar aos condes, aos viscondes,
aos barões, aos marechais, aos almirantes, aos cônegos. Uma so-
Socialismo e Democracia
117
ciedade do latifúndio, da monocultura e do escravismo; por isso,
e, finalmente, na República, as oligarquias e o ‘coronelismo’. A uma
economia voltada para fora, de costas para a terra e com as vistas
e o coração projetados sobre o além-mar, correspondia uma elite urbana alienada – nossos bacharéis, os primeiros funcionários
públicos, os comerciantes, os ‘correspondentes’ dos grandes fazendeiros, padres, professores de latim, a pequena nobreza na corte
colonial – com os olhos, a mente e o coração fixados na praia, à espera
do paquete, meio de informação e comunicação, que lhe vinha trazer
tudo, desde a manteiga, o linho, o vinho e as poucas ferramentas de
que carecia, até as ideias, a ideologia de que se alimentava, porque,
desde cedo jamais se interessou em pensar o país.42
A alienação de nossas elites, a inexistência de uma burguesia
nacional comprometida com um projeto nacional, não são fenômenos de hoje.
Sem povo fizemos a Independência (engenho e arte de uma
diplomacia corrupta e perdulária com o erário), fizemos a Abolição
tardia (obra de um gabinete anticrônico e graça de uma Regente
interina); sem opinião pública e sem campanha republicana, sem
apelo republicano e sem o concurso do Partido Republicano, fizemos a República, obra de oficiais do exército e meia dúzia de
intelectuais fluminenses. Sem povo e sem ruptura, sem mesmo a
mudança do mando. Sem qualquer mudança social. Sem opinião
pública, sem vida partidária.
Na República, alcançada pela aliança entre intelectuais e militares, a que estiveram ausentes os políticos e o povo (o Partido Republicano veio a saber da Proclamação pelos jornais), os barões são
substituídos pelos ‘coronéis’. Depois da casa-grande e da senzala, a
política é dominada pelo trinômio coronelismo, enxada e voto. Surge
a classe média, alguma indústria, a burguesia industrial de origem
rural, mais precisamente da lavoura cafeeira, e, finalmente, o proletariado, camponeses que haviam feito sua ‘revolução’ pessoal só com
a imigração que os trouxera do campo para a cidade, da fome para
42 Tema descrito em Textos políticos de História do Brasil, BONAVIDES, Paulo; AMARAL,
Roberto. Brasília: Edições Técnicas do Senado Federal. 1996.
118
Roberto Amaral
a marmita e a boia-fria, da enxada sem campo para lavrar, para os
teares da grande cidade, para os cortiços da grande cidade, para o
desemprego da grande cidade, para as favelas que irão construir nas
grandes cidades. E alguns imigrantes estrangeiros, italianos e portugueses em sua maioria. E por largo tempo, a cena seria dominada
pelos generais. Do início, da primeira República ao fim da quarta República. Sem povo, fizemos a República Velha, consolidamos
a República, juncada de quarteladas e insurgências militares numa
querela adstrita à domesticidade da classe dominante, ligada ao latifúndio e ao livre-cambismo, e uma classe média emergente que vai
buscar apoio nos quartéis; sem povo, fizemos mesmo uma revolução que teve por objetivo impedir a Revolução, e, assim, em nossa
história, se entronizava o grande herói, ícone da política brasileira:
o príncipe de Lampeduza, tão genuinamente nacional quanto Macunaíma, e, como o herói de Mário de Andrade, igualmente sem qualquer caráter. Por isso mesmo, as mudanças de regime, as reformas,
as ‘revoluções’, os levantes, as ‘marchas’, as colunas, nada alteraria a
nomenclatura e o pódio de nossos heróis; ao poder absoluto dos senhores da terra segue-se o poder absoluto dos senhores do capital
concentrado; o escravo é substituído pelo excluído. E quando a explosão urbana (antes de mais nada consequência do esvaziamento
do campo depredado pelo latifúndio) constrói as grandes cidades, o
povo-massa vai às ruas, sem conhecer sua organização, mas não faz
história própria. Quase sempre serve de massa de manobra da mesma burguesia, que, de crise em crise, se vai conservando no mando
político, mantendo o mesmo governo, em que pese a sucessão dos
governantes.
Do Fico às ‘diretas-já’
No notável movimento das ‘diretas-já’ o povo, com o estímulo
das organizações sociais e o concurso de parte do aparelho estatal,
em mãos de províncias oposicionistas, finalmente vai às ruas; mas
não fez História. Esta ficou por conta de um Congresso sem legitimidade que, violando a representação, rejeitou a emenda que o
povo exigia, naquele que talvez tenha sido, na República, o único
momento de consenso político nacional.
Socialismo e Democracia
119
Eis porque toda a História política deste país, do Império à
República que ingressa no terceiro milênio, pode ser escrita sem
uma só referência aos partidos políticos, aquele elemento essencial das democracias representativas.
5. A crise constituinte
A crise constituinte nasce com o país, e até hoje estamos à
espera de uma ordem constitucional estável.
No relativamente curto período de pouco mais de cem anos
de vida republicana, nosso país conheceu, entre cartas, ordenações e constituições, sete diplomas. Quatro (1891, 1934, 1946 e
1988) derivados de assembleias constituintes (algumas, como
a de 1988, carentes de poder constituinte originário), um promulgado por um congresso sem legitimidade mesmo derivada
(1967), dois ditados por ditaduras (a Carta 1937 e a Ordenação de
1969). A este rol pode-se incluir a reforma de 1926, levada a cabo
por um Congresso ordinário.
O país não sabe o que é ordem constitucional estável
Durante todo esse período, e mesmo após a redemocratização
post Estado Novo e a Constituição de 1946, temos tido presidentes
da República que, ao invés de guardiães da Constituição que juraram obedecer, se transformam em chefes de Estado cujo projeto
de governo é promover a reforma da Constituição, submetendo-a
aos seus interesses políticos e administrativos imediatos. Desde
Deodoro, que renunciou ‘por não poder governar com a Constituição’, até o atual presidente FHC que, ‘para governar’, desmonta
a ordem constitucional, graças ao concurso de um Congresso que
lhe é dócil na concessão de emendas e na aprovação de medidas
provisórias que transferem para o Executivo função legiferante
exclusiva do Legislativo, e graças a um Supremo sem ânimo para
assumir seu papel político de Corte constitucional.
Em 11 anos de vida, o texto de 1988 já incorporou 31 emendas e,
presentemente, correm, no Congresso Nacional, dados de 16 de fevereiro de 2001, nada menos de 649 projetos de Emenda Constitucional.
120
Roberto Amaral
Enquanto isso, em seus 213 anos, a Constituição norte-americana sofreu 27 emendas.
Mesmo o largo período de normalidade constitucional democrática, largos nos termos restritos da realidade brasileira,
ressalve-se, de 1946 a 1964, foi perturbado por seguidas crises
institucionais, com repercussões óbvias na vida política: um presidente (Vargas) se suicidou, no auge de crise político-militar;
dois presidentes foram declarados impedidos por um Congresso
animado em seu civismo pelo cerco das tropas militares (Carlos Luz e Café Filho); um presidente (Juscelino Kubitscheck) enfrentou duas sublevações militares (Jacareacanga e Aragarças),
um renunciou (Jânio) e outro foi deposto por um levante militar
(Goulart). Entre essa renúncia e essa deposição, uma junta militar de fato e um presidente títere (Mazilli), depois da tentativa
de impedir a posse do vice-presidente constitucional, impuseram,
uma vez mais e sempre contando com a docilidade do Congresso,
a reforma parlamentarista, porque no Brasil o parlamentarismo
não é uma forma de governo, mas um expediente de golpe de
Estado constitucional.
Já sob o regime da Constituição 1988, tivemos o impeachment
do primeiro presidente da República (Fernando Collor de Mello)
eleito pelo sufrágio universal desde 1960. De 1930 a 1999, durante 69 anos de democracia representativa, conhecemos pelo menos
32 anos sob ditadura franca (1930-1932; 1937-1945; 1964-1985).
Em vários episódios e por largos períodos vivemos sob Estado de
Sítio. E que dizer dos trinta anos da democracia ‘representativa’
da República Velha, a república das oligarquias, dos caciques e
dos ‘coronéis’, das eleições a bico de pena? Que dizer dessa democracia representativa assentada na fraude eleitoral? Na ausência
de debate e de opinião pública?
5.1 As medidas provisórias
Como um dos indicadores da crise constituinte brasileira nomeamos o Executivo imitindo-se em tarefa típica e privativa do
Legislativo. Referimo-nos, por evidente, às medidas provisórias,
Socialismo e Democracia
121
excrescência de índole parlamentarista incrustada na ordem jurídica presidencialista. Não se trata de reclamar de um Parlamento,
de natureza genuflexo em face do Poder, um mínimo de ousadia
moral na rejeição das medidas flagrantemente inconstitucionais;
não se trata de querer desse Congresso, e o atual não é mais flébil
que os anteriores, o exercício do juízo de admissibilidade, rejeitando ab initio as medidas que não se conformam com as exigências
constitucionais; não se trata de reclamar do Congresso seu dever
constitucional de zelar pela preservação de sua competência legislativa (C.F. art. 49, XI); nem se trata mesmo de regulamentar a edição desse mostrengo. Trata-se, tão só, de revogar o art. 62 da C.F.
Se impossível, pois a revogação é rejeitada por todos os governos,
a alternativa democrática é subordinar a eficácia da medida à sua
aprovação popular por referendo, opção, aliás, que está consorte
com o art. 14, como única forma de salvar a soberania popular. Crime pior, só o do Executivo, reeditando-as. Em qualquer hipótese,
haverá o veto do art. 246 à admissibilidade de medida provisória na
regulamentação constitucional.
Os dados oficiais são escandalosos e desenham um escárnio
contra a ordem constitucional. Desde a promulgação da Constituição de 1988 até o dia 16 de fevereiro de 2001 foram editadas 5.702
medidas provisórias, das quais 4.890 nos seis primeiros anos de
governo FHC! As reedições somaram 5.121 medidas provisórias.
Sucedâneo ao decreto-lei da ditadura militar, a medida provisória é ainda mais autoritária do que seu antecessor; aquele, quando não aprovado pelo Congresso em 30 dias, perdia validade e não
podia ser reeditado; já a medida provisória, se tem validade inicial
de 30 dias, pode ser reeditada indefinidamente. Assim, ao Executivo, é irrelevante trabalhar a apreciação congressual, pois está em
suas mãos o expediente da reedição sem peias. Por isso mesmo,
por exemplo, para citar um episódio paradigmático, a MP que implantou o Plano Real, emitida pelo Executivo em julho de 1994, só
foi apreciada na convocação extraordinária de fevereiro de 2001,
depois de seis anos, duas eleições presidenciais e 73 reedições! Jogando com o recurso da reedição – ou seja, com a não apreciação
122
Roberto Amaral
do mérito pelo Congresso – o Executivo legisla sobre tudo: desde
finanças a matérias penais (vedadas aos antigos decretos-leis), ou
questões irrelevantes como auxílio-transporte para militares ou
vale-pedágio para caminhoneiros.
Medidas provisórias
Edição e reedição por governo
125
87
141
160
71
584
Reeditadas
22
73
364
699 (1)
1.750
137 (1)
2.076
5.121
Convertidas
109
66
121
82
73
451
Revogadas
2
5
5
11
5
28
Sem Eficácia
5
5
15
3
1
29
Rejeitadas
9
11
-
1
1
22
Em Tramitação
-
-
-
40
12
52
147
160
505
2.609
2.281
5.702
Editadas
Total Geral
Itamar Franco
(10.1992 a 12.1994)
Fernando H. Cardoso
2º Governo
(12.98 a 16.2.2001)
Fernando Collor
(3.1990 a 10.1992)
Originárias
Governo
José Sarney
(3.1985 a 3.1990)
Fernando H. Cardoso
1º Governo
( 1.1995 a 12.98)
(Atualizado em 16/02/2001)
(1) Reedições de Medidas de governos anteriores
Fonte: Presidência da República – Subchefia para Assuntos Jurídicos
Ausente o Congresso da formulação das grandes diretrizes da
política do país, vê sua competência legislativa transferir-se permanentemente para o Executivo. E isto interessa ao sistema, porque
Socialismo e Democracia
123
para toda a gente é muito mais fácil e conveniente exercer o lobby
junto a um burocrata do que ter de enfrentar o pluralismo partidário no Congresso; é muito mais fácil lidar reservadamente com um
técnico do governo do que ter que se entender com a pluralidade
de lideranças partidárias.
Embora inserta no corpo da Carta Magna, a medida provisória
é inconstitucional, “porquanto fere e anula dois princípios da ordem constitucional que não podem ser quebrantados: o da legalidade e o da legitimidade”.43 Repetimos: elas não conhecem remédio
fora da pura e simples revogação do art. 62, ou da subordinação de
sua eficácia a referendo popular.
5.2 A falência do poder legiferante do Congresso
Aprofundando a crise constituinte, há que registrar-se a falência do Poder Legislativo cedendo sua competência legiferante. Não
se trata só das medidas provisórias. No ano legislativo de 1999, o
Congresso brasileiro editou 83 leis. Dessas, 59, ou seja, 63,4%, foram de iniciativa do Executivo, 32 (34,4%) de iniciativa de uma
das duas Casas, e duas (2,2%) oriundas do Judiciário.44 No ano de
2000, piorou. O Congresso aprovou e foram sancionadas 218 leis
(143 das quais tratavam de crédito suplementar ou abertura de crédito). Desse total de 218 projetos convertidos em lei, 188 (ou seja,
86,23%) foram originários do Poder Executivo, 24 (ou seja, apenas
11%) tiveram origem em uma das duas Casas do Parlamento, e seis
(2,76%) tiveram origem no Poder Judiciário.45 Definitivamente, o
Executivo tomou a si a função legislativa.
43 BONAVIDES, Paulo. Oração da medalha Teixeira de Freitas. Rio de Janeiro: Instituto dos
Advogados Brasileiro, 1999, p. 33.
44 Dados fornecidos pela Casa Civil da Presidência da República, e publicados pela FSP,
22/3/2000 buscam esclarecer: “Esse cálculo inclui os projetos de lei sancionados e as
medidas provisórias convertidas em lei durante todo o ano. Não estão incluídas as quatro
proposta de emendas à Constituição promulgadas – duas delas também de autoria do
Executivo –, e as outras duas, do Congresso”.
45 Dados fornecidos pela Mesa da Câmara dos Deputados.
124
Roberto Amaral
Mas o melhor indicador do esvaziamento do poder legiferante
do Congresso Nacional talvez seja oferecido pela análise dos processos de elaboração e execução do Orçamento Geral da União.
Uma das mais importantes funções do Congresso brasileiro é
a elaboração do Orçamento da União. A relevância é de tal ordem
que foi alçada a matéria constitucional, a que nosso ordenamento
dedicou uma seção (Dos orçamentos) e cinco artigos (165 a 169).
Um deles (art. 166) regula o processo legislativo, e (§ 1º) cria uma
comissão mista permanente, de senadores e deputados. Mas a elaboração orçamentária, pelo Congresso, resulta numa ficção! Senão,
vejamos: do total do Orçamento aprovado (a partir de proposta do
Executivo), os parlamentares só podem interferir em cerca de 3%
(mas suas emendas não podem aumentar a previsão de receita),
percentual esse que ainda pode ser contingenciado em 50%. Do
que sobra, a União executa apenas 18% ou 20%. Mesmo aqueles
97% nos quais o Congresso não pode interferir, limitando-se sua
competência a homologar a proposta do Executivo tal qual recebida (despesas de pessoal e seus encargos, serviço da dívida e fundos
e transferências constitucionais, art. 166, § 3º, II), podem ser alterados pelo Governo, através de remanejamentos.
Examinemos o Orçamento para o exercício financeiro de 2001.
Ele importa em R$ 950.202.360.392,00 – receita esperada (sempre
realizada a mais) e despesa fixada (sempre realizada a menos).
Qual a participação do Congresso Nacional em sua elaboração?
Desses 950,2 bilhões apenas R$ 398,6 bilhões (orçamento fiscal
e da seguridade) puderam ser movimentados pelo Congresso Nacional; sua intervenção mediante remanejamentos foi de R$ 12,1
bilhões (R$ 12.067.787.676,00), ou seja, apenas 3,04% do total.
Mas ainda não é tudo.
Mediante o instituto da Desvinculação de Receita da UniãoDRU (Emenda Constitucional n° 27/2000), o governo federal obteve a desvinculação, linear, de 20% da arrecadação da União de
todas as contribuições e impostos destinados a seus fundos, órgãos
ou despesas, excluídas as transferências constitucionais obrigató-
Socialismo e Democracia
125
rias (Fundo de Participação dos Estados, Fundo de Participação
dos Municípios etc.) e o salário-educação.
No exercício financeiro de 2000, a desvinculação foi de $ 31,1
bilhões (R$ 31.062.232.686,00) e para 2001 foi de R$ 35,1 bilhões
(R$ 35.097.151.662,00).
Tais números mostram que a DRU ofereceu ao governo, nos
dois exercícios estudados, R$ 66,2 bilhões em orçamento desvinculado de qualquer destinação originária, ou, em outras palavras,
para cumprimento de contratos fiscais.
Mas, se o Congresso se vê coartado em seu papel legiferante,
não conhece termo o arbítrio do Executivo, que, do total do Orçamento Geral da União, realiza tão só o quanto lhe interessa: pois
é de seu arbítrio limitar a execução, efetuar cortes e promover
contigenciamentos.
A análise a alguns programas, em 2000, revela a distância entre a lei orçamentária, tal qual aprovada pelo Congresso, e sua
efetiva execução:
Programa
Execução(%)
Saúde do trabalhador
1,04
Implantação de redes de bancos de leite humano
5,75
Capacitação profissional (enfermagem)
6,07
Atenção a portadores de deficiência
7,97
Saúde mental
8,16
Não bastassem todas as intervenções já descritas, o Executivo, através do Decreto n. 3.746, de 6.2.2001, contigenciou mais de
7,5 bilhões do Orçamento aprovado para 2001, atingindo a Justiça
(R$ 28.104 em R$ 3,3, 2002), a defesa nacional, a segurança pública, a saúde, enfim todos os setores da atividade pública nacional.
126
Roberto Amaral
Desta forma – e, a listagem é puramente exemplificativa –, a Secretaria
Especial de Desenvolvimento Urbano sofreu um corte de 84,9% em
seu orçamento, o Ministério do Esporte e Turismo de 64,4%, o Ministério da Integração Nacional de 52,5% o Ministério da Agricultura e
do Abastecimento de 40,7%.46
6. A crise partidária
A crise dos partidos reflete a crise política brasileira e é denotativa da fragilidade da democracia representativa.
A rigor, a vida partidária, entre nós, ressalvadas as discutidíssimas experiências do Segundo Reinado e da República Velha, só
tem início com a redemocratização de 1946, para ser logo interrompida pela violência do Ato Institucional nº 2, de 1965.
Mesmo para o regime democrático derivado da Carta liberal
de 1946, era insuportável a sobrevivência das organizações à esquerda do regime, um regime que cassava registro de partidos e os
mandatos de parlamentares comunistas.
Nada obstante, a ordem partidária derivada da Carta de 46,
um pluripartidarismo condensado em três siglas de âmbito nacional (PSD, UDN e, por último, PTB), não duraria mais de 18 anos,
golpeada em 1965 pela ditadura militar. Até extinguir-se, por inanição, o sistema de partidos dos generais, a vida política brasileira
seria reduzida a duas siglas, organizadas de forma burocrática, e
segundo os ditames do regime de exceção.
Esse bipartidarismo formal – no começo Arena-MDB, na última fase PDS-PMDB –, encerrando um unipartidarismo de fato,
pois só o partido do governo podia ganhar, elegendo os delfins indicados pelo Olimpo castrense, não chega a constituir um sistema de partidos. Partidos de fancaria, essas duas siglas consentidas
compunham o coro de uma ópera bufa, cujo libreto era ditado pe46 O autor agradece a colaboração de Alexandre Navarro, assessor técnico da Câmara dos
Deputados.
Socialismo e Democracia
127
las casernas; no palco, marionetas orgulhosas dos cordéis que as
ligavam aos seus manipuladores; na plateia, um público enfastiado.
Sob o regime de exceção foram organizados, dissolvidos e
reorganizados os partidos na camisa de força do bipartidarismo
formal; realizaram-se eleições vigiadas, sujeitos seus resultados
à ‘depuração’ (via cassações de mandatos quando fracassava a
filtragem das impugnações e das restrições legais) da vigilância
militar, a mesma vigilância que mantinha aberto o Congresso e
decretava seu recesso quando isso atendia a ‘razões de segurança
nacional’ desconhecidas da nação. Sob o comando do poder, e segundo suas regras, e seu calendário, foi operada a lenta e gradual
transição da ditadura para a Nova República, que compreendeu
cassações amplas, anistia restrita, atentados da direita terrorista
incrustada no aparato estatal, e eleições presidenciais por um colégio indireto previamente ilegitimado pela nação no memorável
movimento das ‘Diretas-já’.
E nesse episódio, ao derrotar a emenda que instituía as eleições
diretas para presidente e vice-presidente da República, o Congresso Nacional decidia contra a expressa vontade constituinte da nação, e, assim, virtualmente decretava a ilegitimidade da democracia
representativa brasileira.
O episódio põe de manifesto mais uma das características
da democracia representativa, que é a incurável diacronia entre a
vontade do representado e a ação parlamentar do representante.
6.1 Os partidos no direito constitucional
A Constituição de 1824, compreensivelmente, ignorou a existência de partidos. A Constituição republicana de 1891 seguiu-lhe
os passos, embora os partidos, regionais, desde há muito existissem e funcionassem como instrumento das oligarquias e sem qualquer diferenciação ideológica, nada obstante se denominassem
conservadores ou liberais. Todos serviam aos senhores da terra. A
Constituição de 1934 – nossa experiência weimariana – limitou-se
a prever a perda de cargo imposta ao funcionário público que favo128
Roberto Amaral
recesse ‘partido político com influência de autoridade ou pressão’
(art. 179, 9º). E a Carta de 1937 é evidentemente omissa.
Aparecem os partidos, pela vez primeira, no Código Eleitoral
de 1932, Dec. nº 21.076, de 24/03/1932, arts. 58-1º, 99, 100 e 101.
Com a Constituição de 1946, os partidos passam a ser referidos, mas de forma quase e só burocrática e repressiva, dedicandose-lhe duas menções: a) do registro e da cassação (119, I); e b) dos
que não se podem organizar, registrar ou funcionar’ (art. 141, § 13).
A preocupação constitucional com os partidos políticos começa, de fato, e ironicamente, com a Carta de 1967, originária do
regime militar e do Congresso ordinário que conformou. Assim
dispõe: 1) art. 20, III (imunidade tributária); 2) art. 32, parágrafo
único e art. 39 (participação na organização das comissões parlamentares; 3) art. 37, § 20 (representação à Câmara para declaração
de perda de mandato); 4) art. 149 e incisos (organização, funcionamento e extinção); e 5) art. 166, III (possibilidade de partido
político ser acionista de empresa jornalística).
A Ordenação de 1969, editada pela Junta Militar, tratava dos
partidos em seu art. 152.
A Emenda Constitucional nº 25, de 15 de maio de 1985, que
abre o processo de redemocratização, já sob o comando do primeiro governo civil após a vintena militar, disporia:
Capítulo III
Dos Partidos Políticos
Art. 152. É livre a criação de Partidos Políticos. Sua organização
e funcionamento resguardarão a Soberania Nacional, o regime
democrático, o pluralismo partidário e os direitos fundamentais
da pessoa humana, observados os seguintes princípios (...).
Como falar em democracia representativa em regime constitucional que assim ignora a vida partidária?
Socialismo e Democracia
129
6.2 Os partidos na última redemocratização
Se bem que a abertura partidária já se insinuasse em 1982, só
com o fim do regime militar é que recomeça a construção de um
novo sistema de partidos. Que no entanto é regido pela ordenação militar, a Lei Orgânica dos Partidos Políticos (de 1971), sobrevivente até à redemocratização, para finalmente conhecer sua
revogação, tardia, com a Lei 9.096, de 1995. Só a partir dessa lei, e
das regras democráticas da Constituição de 1988, é que se começa,
neste país, a construir um sistema democrático de partidos, fundado na autonomia e na liberdade auto-organizativa. Mas, sobrevive
o Código Eleitoral, de 1965…
Mesmo essa ordem jurídica, a Lei Eleitoral, de 1997, e a Lei dos
Partidos Políticos, de 1995, já está sendo contestada.
O atual sistema de partidos, embora tenhamos partidos registrados desde 1981 (PMDB, PTB e PDT), começa a definir-se com
a Emenda Constitucional nº 25/85, mas só entraria a consolidar-se
a partir de 1988, com a definição das novas regras constitucionais.
Mesmo hoje, todavia, não se pode dizer definido nem juridicamente nem politicamente nem do ponto de vista sociológico, vale dizer,
de sua homologação pela consciência coletiva nacional.
Trata-se de sistema que remonta aos meados dos anos 80,
quando na Europa e nos Estados Unidos, para citar nossas matrizes
para tudo, a vida partidária recorre a mais de cem anos.
A referência à legislação ordinária assinala uma cronologia e
não ressalta os méritos do ordenamento. Pois a atual legislação,
elaborada sob as asas democráticas da Constituição de 1988, tem
por objetivo coartar a representação, estagnar a vida partidária,
congelar o processo político, para, finalmente, manipular a manifestação da soberania popular. A intervenção do poder econômico nas eleições é consentida, e não são estabelecidos limites
de doações financeiras às campanhas dos candidatos; o horário
eleitoral gratuito frustra todas as possibilidades de igualdade de
disputa entre candidatos e partidos. Os titulares de cargos executivos podem concorrer às suas próprias sucessões sem sequer
130
Roberto Amaral
terem de se licenciar dos respectivos cargos, numa intolerável
agressão a toda a experiência republicana.47
Por que resulta grave para a democracia a fragilidade dos partidos políticos?
O partido político é o espaço único da ação político-eleitoral
nas democracias representativas; nosso regime, de um lado, proscreve as candidaturas avulsas, fora dos partidos, e de outro proíbe
às entidades sindicais e congêneres qualquer sorte de vida partidária. O monopólio da via político-eleitoral, pelos partidos, se
completa quando uma das condições de elegibilidade é a filiação
partidária prévia.
Entre nós, os cargos políticos nos poderes Legislativo e Executivo são preenchidos mediante eleições, e só se admite candidato
mediante prévia filiação partidária (Cf. art. 14, §3º, V, da Constituição). O partido político, livre, apto à alternância no poder,
é o suprassumo do pluralismo, e é através da solidez do sistema
de partidos que se mede a robustez da democracia representativa.
Portanto, sem o concurso dos partidos, essa ficção da realidade
brasileira, não há como organizar e desempenhar as funções estatais. Na democracia representativa, não há poder político se não
há partido político. No entanto, o declínio dos partidos políticos
é fenômeno que percorre quase todas as democracias representativas. A intermediação política – a quinta-essência da democracia
representativa – entra em declínio; daí à falência das instituições
representativas, é só um passo.
7. A crise do Legislativo
Não há uma só pena de analista da política brasileira que não
escreva, como denúncia, a crise do Poder Legislativo. Variáveis são
os enfoques, mas a crítica é consensual em face de seu desempenho,
seja em punir a docilidade com que as duas Casas se curvam aos
47 Estudamos o processo eleitoral brasileiro em AMARAL, Roberto; SÉRVULO, Sérgio.
Manual das eleições. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense. 2000.
Socialismo e Democracia
131
impérios do Executivo, seja ao verberar o preço cobrado por essas
concessões; seja a denúncia do esvaziamento dos plenários, seja a
denúncia do nepotismo larvar. Outras vozes se agigantam contra o
corporativismo que, numa leitura equivocada e muito peculiar do
princípio da imunidade parlamentar, tem transformado esse instituto, de inestimável importância para a democracia parlamentar,
em mero instrumento de proteção a criminosos comuns.
A Comissão Parlamentar de Inquérito que na legislatura 19941998 desvendou as entranhas da Comissão de Orçamento, nas duas
Casas, pôs a nu a malha/máfia de interesses e negócios ilegais, contra o
erário, reunindo parlamentares, altos funcionários da República, empreiteiros e fornecedores do governo federal em verdadeiras organizações criminosas, concertadas no ofício de depredar o bem público.
As críticas, e aqui não há a menor intenção de proceder à sua
listagem, não se circunscrevem às Casas maiores da República. Ao
contrário, pervagem todo o Poder Legislativo. E lá na ponta, nas
Câmaras Municipais, onde se suporia fosse mais efetiva a fiscalização da cidadania, maiores são os desmandos e mais graves as
denúncias envolvendo tráfico de influência, nepotismo, suborno,
‘caixinhas’, comissões e o crime organizado. O rompimento de padrões éticos ameaça a legalidade do mandato e mancha de ilegitimidade a representação popular.
Localizamos na crise da representação a raiz de todos esses
problemas, os quais, em seu conjunto, constituem um dos mais
sérios óbices à consolidação da democracia, direito fundamental
em nosso país.
Já vimos como labora o processo legislativo, esvaziando a efetividade da representação popular, que mais se distancia de sua fonte em
face da concorrência de tantos elementos negativos, a saber:
1. A fragilidade do sistema de partidos composto, em sua esmagadora maioria, sem distinção programática, a não ser formal,
na letra dos manifestos sem consequência na vida real, e que, por
isso mesmo, seja nos executivos seja nos parlamentos, terminam
por se confundirem perante o eleitorado, em face dos métodos
132
Roberto Amaral
comuns, dos objetivos comuns, dos resultados comuns. Como os
gatos noturnos, no poder, os partidos brasileiros são pardos. Daí
decorre, em grande incidência, como resposta de uma sociedade
desiludida, a irrelevância do voto partidário, do voto de legenda,
com a prevalência daquele que mais desserve à democracia: o voto
do compadrio, o voto do interesse, o voto da troca de favores, abrindo caminho à mais larga atuação do poder econômico, mediante
a compra do voto, o aluguel do cabo eleitoral, o fisiologismo, e o
assistencialismo, doenças genéticas da democracia representativa
brasileira. O custo altíssimo do processo eleitoral, o custo altíssimo
de uma eleição parlamentar em qualquer de seus níveis, promove uma pré-seleção perversa, na base da sociedade, eliminando do
pleito aqueles candidatos sem visibilidade pública (privilégio dos
chefes de Executivo, administradores, atores, personagens de rádio
e televisão, esportistas), ou sem ligações corporativas ou sindicais
ou sem integração com um grupo econômico. Por isso mesmo temos representantes que fraudam o mandato, violando a vontade
eleitoral, e um Parlamento que não representa o país, mas os grupos econômicos que financiaram as campanhas.48 Assim, o voto
não elege o representante do cidadão, mas o do capital, do aparelho
corporativo, da grande empresa e da grande imprensa, do latifúndio, do mercado, do cotista do capital errático, os quais vão legislar
em benefício exclusivo de seus patronos, seus verdadeiros eleitores.
O representado, o cidadão, o homem do povo, dá ao seu representante parte de um poder que não tem mais. Este, o representante,
que já tinha o poder, legitima-o por via desta ficção.
2. Dessa distorção, que nega, na sua origem, a legitimidade
do voto, resulta o divórcio entre eleito e eleitor, entre representante e representado, pelo que o parlamentar, passado o pleito,
satisfeitos seus compromissos econômicos com os grupos que o
elegeram, ou quitados seus compromissos assistencialistas, faz-se
senhor absoluto de seu mandato.
48 Reportando-se à ‘democracia-representativa’ norte-americana, Gore Vidal observa: “(…)
Nós não possuímos uma democracia representativa. Quem foi eleito para o Congresso
não representa a Califórnia ou a Virgínia Ocidental, senão a General Motors ou a Boeing.
Todo mundo sabe disso, e as pessoas se assustam com essa situação”. VIDAL, Gore. Entrevista ao Suddeutsche Zeitung, 2 e 3/6/1999.
Socialismo e Democracia
133
3. Na sequência de mazelas que desnaturam o sistema representativo brasileiro, o deputado ou vereador eleito, uma vez que
a votação é nominal e não partidária, e não segue o sistema de
listas, também se sente acima de seu partido de cuja legenda e de
cujo quociente eleitoral dependeu para conquistar o mandato, e
se comporta sem dever respeito ao seu partido e a seus eleitores,
o que desnatura o princípio do mandato popular. Cada deputado
ou vereador, previamente liberto dos compromissos com seu eleitorado, que nada lhe pode cobrar, comporta-se, no exercício do
mandato, como uma instituição autônoma, inalcansável pela disciplina partidária, ou pela fiscalização do eleitor. Daí, em nossos
parlamentos, a proliferação de bancadas de interesse de nominata
inesgotável, organizadas erga partidos: são a ‘bancada’ dos evangélicos, a da saúde, a da medicina privada, a dos radialistas, a do
ensino privado, a dos ruralistas e, até, a dos policiais-militares.
São esses interesses, acima da representação do eleitorado ou do
programa partidário, que determinam as votações em Plenário.
4. Ao cabo e ao fim, e porque não tem compromissos quer partidários quer com a representação de seu eleitorado, por considerar-se
uma instituição autônoma, o parlamentar pode migrar de partido
em partido, em alguns casos mais de uma vez na mesma legislatura,
e raramente a migração, que não conhece punição partidária ou legal, encontra justificativa doutrinária, ideológica ou programática.49
A migração e a autonomia da ação parlamentar constituem fraude
contra a representação quando a atuação parlamentar – e esta é a
regra, lamentavelmente – deixa de respeitar seja a vontade do eleitor,
seja o programa do partido com o qual se apresentou à sociedade.
Na legislatura 1990-94, desconsiderada a fusão de siglas, 35
parlamentares trocaram de partido. No curso da legislatura 199498, esse número alcançou a escandalosa marca de 218 parlamentares, ou seja, 42,5% do total da representação.50
49 Na legislatura 1994-1998, nada menos de 64% dos deputados federais brasileiros trocaram de legenda pelo menos uma vez; alguns, 5,5%, chegaram a trocar três, quatro e
seis vezes. NICOLAU, Jairo Marconi. Multipartidarismo e democracia. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 65.
50 Cf. TAFNER, Paulo Sérgio Braga. Op. cit., p. 12.
134
Roberto Amaral
As mudanças – ‘dança’ de partidos – visando às eleições e as
composições da Mesa e das Comissões da Câmara, e a troca de favores que faz crescer as bancadas governistas, são regras em todas
as legislaturas, e não poderia ser diferente na atual:
Representação partidária na Câmara dos Deputados
Partido
PFL
Eleição de 1998
16/02/2000
105
101
PSDB
99
103
PMDB
83
96
PPB
60
52
PT
60
60
PTB
29
24
PDT
25
21
PSB
19
12
PL
12
11
PCdoB
7
7
PPS
3
13
PSD
3
–
PMN
2
–
PSC
2
–
PRONA
1
–
PSL
1
–
PST
1
–
PV
1
1
PHS
–
1
PTN
–
1
513
513
TOTAL
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral e Câmara dos Deputados – Secretaria Geral da Mesa
Socialismo e Democracia
135
Assim, nessa democracia exemplaríssima, o tamanho de cada
bancada não depende do número de votos obtidos, nem corresponde à vontade do eleitor depositada na urna; o crescimento
partidário prescinde de eleições.
5. Por todas essas razões, observada a exceção que merecem as
organizações de esquerda, não temos, a rigor, partidos, mas aglomerados de mandatários, correntes de individualidades que desmoralizam mesmo o instituto da filiação partidária: porque o partido é
buscado não como instrumento de luta política, mas como mera via
jurídica – exigência legal que se aceita a contragosto – indispensável
à obtenção do mandato. Por isso, no Brasil, o candidato se elege com
um programa de governo e governa com outro e o parlamentar pode
ignorar o programa partidário. Por isso, e finalmente, os partidos, no
governo, não governam: respaldam o governo.
Essa composição de interesses de ordem vária (na qual, todavia,
não habitam nem a ética nem a ideologia) inevitavelmente determinaria a pauta do Congresso e determinaria sua pobreza política.
Não há espaço para a representação.
A crise legislativa, todavia, não é particularidade da democracia representativa assim como a praticamos entre nós. Está
presente em todos os parlamentos ocidentais cuja competência
se restringe cada vez mais, “além dos limites de fato do poder estritamente político em uma sociedade capitalista, onde as grandes
decisões econômicas são tomadas por um poder em parte privado
e, hoje, em parte não nacional”,51 a classe dominante nacional, o
sistema financeiro à frente, as grandes multinacionais e organismos
internacionais como o FMI, o Bird, o Banco Mundial, a OMC etc.
fazendo cada vez mais distante o controle democrático do sistema
econômico pelo sistema político.
51 Cf. BOBBIO. Op. cit., p. 72.
136
Roberto Amaral
8. A democracia representativa não é democrática
Por que a democracia representativa não é democrática? Porque, se todos os cidadãos com maioridade e no pleno gozo de seus
direitos políticos dispõem, universalmente, do direito de, através do
sufrágio, eleger seu representante, o voto não tem peso idêntico, seja
por força dos mecanismos da proporcionalidade ou da construção
dos distritos eleitorais, ou dos colégios eleitorais, como na democracia representativa norte-americana; se tem o direito ao voto, não
exerce na plenitude o direito de escolha, limitado pelo quadro partidário, limitado pelas legendas partidárias, limitado pela interferência do poder econômico, pela interferência do poder político, e pelo
monopólio da informação que manipula a construção da opinião
pública. O sistema trabalha para impedir a rotatividade no poder, de
sorte que às minorias é negado o direito de tornarem-se, em condições de igualdade, maioria, pelo que a troca no poder, ainda quando
premiando partidos distintos, promove a rotação entre iguais.
Assim, podemos resumir as principais restrições à democracia
representativa:
1. burocratização crescente do aparelho estatal e aumento do poder político-decisório da burocracia, intervindo, inclusive, no
processo legiferante; essa burocratização alimenta a predominância do tecnicismo no processo decisório político, afastando
a influência da soberania popular;
2. tendência à massificação da sociedade civil, associada à apatia política (via despolitização da política) e à manipulação do
consenso, de que, por seu turno, decorrem ora a não participação, ora a participação distorcida;
3. baixos níveis de prestação de contas pelo governo, donde ausência de controle social sobre o aparelho político e ausência
de responsabilização;
4. tendência ao bipartidarismo e à concentração política, donde restrições ao pluripartidarismo e ao pluralismo ideológico (um e outro fundamentos de qualquer democracia), daí a concentração do
Socialismo e Democracia
137
poder pelas direções partidárias, atuando de forma soberana sobre
todo o conjunto do Estado (e da vida institucional) e da sociedade;
5. baixos níveis de influência popular no processo de tomada de
decisões;
6. ausência de margem de mudança social e política por meios
parlamentares, donde o reforço do conservadorismo;
7. redução da participação da cidadania nas eleições (transformadas em um processo simples de escolha entre pequeno número de alternativas similares) que, cada vez menos, influem
ou determinam mudanças; as eleições, ademais de não serem
veículos de mudança, mais funcionam como reforço e legitimação do poder;
8. controle da agenda política pelos meios de comunicação de
massa e controle do Poder Legislativo pelas direções das casas
controladas pelos partidos majoritários;
9. tendência à concentração do poder, ao unitarismo e, por consequência, ao enfraquecimento da Federação;
10. crescente caráter plebiscitário e legitimador do poder governamental estabelecido;
11. substituição da vontade dos representados pela vontade dos representantes;
12. facilidade para a ação dos lobbies e representação direta dos
grupos de interesse;
13. crescente poder legiferante do Executivo;
14. autonomização política da burocracia em face das mudanças
políticas, de sorte que a mudança política pode não significar
mudança administrativa;
15. as eleições se convertem em mero mecanismo administrativo,
perdendo sua função de exercício da soberania e como forma
de governo popular;
138
Roberto Amaral
16. representação mediatizada pelo poder econômico, pelo abuso
do poder político e pela manipulação dos meios de comunicação de massa.
A democracia representativa, finalmente, enseja o monopólio
do poder político, quando a ação combinada de (i) partidos políticos hierarquicamente controlados com (ii) governo concentrado,
num Estado centralizado, serve para destruir o pluralismo e negar
a influência popular.52
Estas questões são insolúveis na democracia representativa.
9. A democracia participativa: a democracia do terceiro
milênio
É impossível salvar a democracia representativa, porque ela contém uma contradição intrínseca: a impossibilidade de uma representação legítima (seu pressuposto), isto é, não eivada de manipulação
– manipulação que apenas cresce e se agiganta e toma as formas de
um moloch na sociedade de massas –, pela exigência de instrumentos de mediação que se constituem, ao mesmo tempo, em incontornáveis instrumentos de defraudação da vontade cidadã original.
Quando falamos de democracia representativa estamos nos referindo a uma forma de governo, uma modalidade de Estado, um
regime político, uma forma precisa, de corte ocidental-montesqueniano-iluminista e teleologicamente formal, e, por isso, intrinseca e
irrecuperavelmente injusta, para dizer que a democracia tout court
pede sua salvação, recuperando-se sua raiz ateniense, e projetandose para o futuro, como a democracia do terceiro milênio, que é a
democracia participativa, livre da ditadura do representante sobre
a vontade do representado, repondo a sincronia entre a vontade da
cidadania e a ação política.
As críticas à democracia representativa não podem abrir caminho à não democracia ou à democracia-nenhuma. Ao contrário,
elas derivam de uma opção intransigente, radical, pela democra52 HIRST, Paul. Op. cit., p. 14.
Socialismo e Democracia
139
cia. A democracia participativa é a forma de corrigi-la, ampliá-la,
aperfeiçoá-la, aprofundá-la.
O ponto de partida da democracia participativa, ou capilar, é a
democracia representativa, cujas conquistas – como o sufrágio universal, voto direto e secreto, mandato com termo certo, liberdade e
pluralismo partidário e ideológico – são aprofundadas, substituindose a preeminência da representação pela participação permanente
do cidadão, seja atendendo a mecanismos de consulta, seja principalmente participando do processo deliberativo, administrativo ou
parlamentar. Se, na democracia representativa, a participação é um
episódio, restrito às eleições, às quais o eleitor comparece e deposita
seu voto, perdendo o contato com o eleito e deixando de influir no
desempenho de seu mandato, na democracia participativa a cidadania é permanente, diária, cotidiana, é “o chamamento ao eleitor para
que, no curso da ação, ele esteja permanentemente colado, integrado,
articulado, entendido, próximo do governante, para que as ações sejam permanentemente discutidas”.53 O projeto da democracia participativa é superar a democracia representativa.
Entendendo a democracia como um processo que não se conclui, e que precisa avançar para além das esferas públicas, políticas
e institucionais, como a vida nas organizações, no trabalho, nas relações comunitárias de vizinhança, nas relações associativas, nas
relações familiares, nas relações entre marido e mulher, entre pais
e filhos, entre professores e alunos, entre patrões e empregados,
todas impregnadas de forte autoritarismo.
9.1 A raiz ateniense
Ainda que possa parecer revelação de segredo de polichinelo,
é preciso dizer que a democracia representativa faliu, mas é preciso
igualmente pôr de manifesto que essa forma de governo, sendo a mais
notável das experiências políticas da civilização ocidental e o seu mais
rotundo fracasso, não encerra toda a experiência da Humanidade.
53 de Sousa, Bernardo. ‘Orçamento participativo’ in Administração socialista: governo de
todos, prioridade para os excluídos. Brasília: Fundação João Mangabeira, s/d., p. 112.
140
Roberto Amaral
A democracia representativa é um ramo do gênero democracia, mas não esgota a espécie, nem é sua melhor experiência. Sua
biografia remonta à História ateniense, à ágora e a uma modalidade
de democracia direta que nela se praticava. Não se diz que a democracia direta possa ser reproduzida, mecanicistamente, até porque
não se tratava, aquela experiência grega, de uma democracia universal, como deverá ser a democracia participativa que pleiteamos,
e dependia, aquela, para sua efetividade, de uma estrutura social
ignominiosa, pois fundada era na escravidão. Diz-se que ela é um
ponto de partida. Diz-se que a democracia direta é a fonte histórica
da democracia participativa do terceiro milênio, que compreende,
em sua fase transitiva, formas de democracia semidireta.
A democracia54 grega, como a romana, era uma democracia de
proprietários de terras. Na pólis da Antiguidade, uma condição para
o exercício pleno da cidadania era a propriedade de um lote agrícola
(kleros, ‘fundos’) e de escravos. Em Atenas, para 90 mil cidadãos, isto
é, proprietários, havia 365 mil escravos, nesse número incluídas mulheres e crianças, e 45 mil imigrantes (metecos) e libertos. Para cada
cidadão adulto havia, no mínimo, 18 escravos e mais três metecos.
Em Corinto (460 mil escravos) e em Egina (470 mil escravos), apenas 10% da população usufruíam a cidadania. (Havia, assim, uma
‘divisão social do trabalho’: o trabalho, não só o trabalho social mas
o trabalho qualquer, era ônus do escravo; o lazer, leia-se a filosofia,
a poesia, o teatro, a magistratura, e, principalmente, a política e as
funções de Estado, eram o ‘ofício’ do cidadão, isto é, do proprietário)
54 “Democracia. A palavra, grega, é atestada, primeiro em Herodoto (século V a.C.) como ‘governo (do povo) pelo povo’. A lição foi colhida pelo historiador dos lábios de Péricles, na
oração póstuma aos atenienses mortos na Guerra do Peloponeso: “Nosso regime político é a
democracia e assim se chama porque busca a utilidade do maior número e não a vantagem
de alguns. Todos somos iguais perante a lei, e quando a república outorga honrarias o faz
para recompensar virtudes e não para consagrar privilégios. Nossa cidade se acha aberta a
todos os homens. Nenhuma lei proíbe nela a entrada aos estrangeiros, nem os priva de nossas
instituições, nem de nossos espetáculos; nada há em Atenas oculto e permite-se a todos que
vejam e aprendam nela o que bem quiserem sem esconder-lhes sequer aquelas coisas, cujo
conhecimento possa ser de proveito para os nossos inimigos, porquanto confiamos, para vencer, não em preparativos misteriosos, nem em ardis e estratagemas, senão em nosso valor e
em nossa inteligência”, apud Sánchez Viamonte, Carlos. Manual de Derecho Politico.
Buenos Aires: Editorial Bibliográfica. Argentina. 1959, p. 186.
Socialismo e Democracia
141
O exercício da democracia se fazia, portanto, somente entre uma
parcela da população, os cidadãos, iguais entre si, posto que todos,
mas só eles, estavam habilitados a participar do sorteio para o desempenho de qualquer magistratura.
As decisões podiam ser tomadas na ágora (Αγoρα: reunião, assembleia, comunidade reunida; praça pública; mercado) porque os cidadãos eram poucos, e, em certo sentido, a democracia direta da pólis
compreendia uma forma de representação, pois essa minoria de eleitos
legislava, governava e decidia, decidindo inclusive sobre a paz e a guerra, em nome de todos os habitantes, dos sorteados e dos não sorteados,
das mulheres, das crianças, dos metecos e dos escravos.
9.2 A democracia participativa
A democracia não é só uma ideia, um mero conceito, um juízo de
valor: é ação permanente, a saber, efetividade. Pressupõe a igualdade
(efetiva) de todos perante a lei (isonomia), sem distinções quaisquer,
de raça, credo, gênero, mas também sem distinção de classe ou riqueza; se todos são iguais perante a lei, todos são igualmente sujeitos à
lei, todos são igualmente cidadãos, não há cidadãos mais titulares de
direitos do que outros, não há cidadãos irresponsáveis ou ininputáveis,
não há privilégios, não há juízos nem foros privilegiados, como não
há cidadãos permanentemente “acima de qualquer suspeita” ou previamente suspeitos e condenados até prova em contrário... Todos são
(efetivamente) iguais perante o Estado e têm os mesmos direitos de
integrá-lo (isotomia), ou seja, os cargos públicos não são preenchidos
por sucessão, ou por influência do poder econômico, mas tão só como
mandato da soberania. Na democracia, todos têm (efetivamente) o
direito não só de pensar livremente como de livremente expressar-se
(isagoria), ou seja, o direito de falar e condições objetivas – meios, instrumentos, recursos – de se fazerem ouvidos ou lidos; intrínseco é o
direito de reunião, mas reunir-se para deliberar.
A ‘democracia’ representativa moderna e contemporânea é
uma contrafação de todos esses princípios, vertida que foi ao governo das minorias privilegiadas – as que estão acima das leis –
dirigentes do poder econômico e controladoras da vontade geral
142
Roberto Amaral
por artifícios os mais diversos, a começar pelo controle dos modernos meios de comunicação de massas. Tal qual praticada no
Brasil, a ‘democracia’ representativa, fundada no poder econômico e na informação manipulada, na usurpação do voto e na violentação da consciência, é mera e pérfida caricatura da soberania
do povo e da nação. Da igualdade é pura ficção, da verdade uma
impostura, da razão uma fantasmagoria. Ainda quando legal, é
ilegítima. Ilegítima porque não é do povo nem das forças majoritárias que decorre a vontade representativa. É do poder econômico cartelizado, é do monopólio da informação.
Desapartada da soberania popular, a democracia foi colher sua
representatividade na vontade e nos interesses de agentes de um
poder escandaloso que não encontra abrigo na Constituição, como
observa Paulo Bonavides, certamente o mais importante defensor
da democracia participativa entre nós:
É o poder dos chamados meios de comunicação de massa liberados a um oligopólio fático de pessoas cujo título de legitimidade não passa pela outorga nem pela sanção do elemento
popular, nominalmente sede de todos os poderes da soberania.
Manipulando e fabricando opinião, os grandes empresários dos
meios de comunicação acabam por se transverter num círculo privilegiado que dispõe com desenvoltura da vontade social
para amparar situações em oposição aos legítimos interesses
da sociedade e do país. Esse quarto poder fora do Estado e da
Constituição não raro coloca ambos sob seu centro, fazendo da
soberania do povo a irrisão e o escárnio da democracia.55
Os corifeus da ‘democracia’ representativa não cogitaram, e
não cogitam ainda os neoliberais, da incompatibilidade do modelo
clássico da democracia representativa indireta, com aquela que viria a ser a democracia de massas, contemporânea, assinalada pela
interveniência de dois fatores, irmãos siameses, responsáveis pela
manipulação dos pleitos: o poder econômico e a força dos meios de
comunicação de massas.
55 BONAVIDES, Paulo. In Democracia direta, a democracia do terceiro milênio, Ed. Xerográfica. Fortaleza, 1993.
Socialismo e Democracia
143
Não cogitaram, igualmente, da capacidade de intervenção do
poder público e do Estado, da máquina federal, das máquinas estaduais e municipais no processo eleitoral. Não apenas em sua feição
clássica, tradicional, associando fisiologismo, corrupção, empreguismo e nepotismo, política partidária de liberação de recursos
etc. Mas na sua capacidade de ditar estratégias, no que poderia
cingir-se ao campo estrito de sua competência de governo.
A democracia não é apenas um sistema de governo, uma modalidade de Estado, um regime político, uma forma de vida. É um
direito da Humanidade (dos povos e dos cidadãos). Democracia e
participação se exigem, democracia-participativa constitui uma tautologia virtuosa. Porque não há democracia sem participação, sem
povo, mas povo sujeito ativo e passivo do processo político, no pleno
exercício da cidadania, povo nas ruas, povo na militância partidária, povo nos sindicatos, povo na militância civil, povo na militância
social. Povo-nação, participando da construção da vontade governativa. O povo-massa alçado ao pódio. O regime será tanto mais
democrático quanto tenha desobstruído canais, obstáculos, óbices
à livre e direta manifestação da vontade do cidadão. Se a mediação,
qualquer mediação, implica distorção da vontade, impondo ruído
na comunicação cidadania-Estado/representado-representante, esse
fenômeno se revela como mecanismo de manipulação nas modernas
sociedades de massas que exigem a intermediação dos meios de comunicação de massas.
A questão central da democracia participativa, direito da quarta
geração, é tanto minimizar a intermediação – inerente à democracia
indireta – , quanto, e paralela e progressivamente, substituir a ‘representação’ assim como a conhecemos (que implica alienação) pela manifestação direta da soberania. É um processo de construção gradual
que não compreende o banimento de todas as formas de representação (v.g. Poder Legislativo), mas sua compatibilidade com aqueles
instrumentos de participação popular que implicam intervenção do
governado na governança e seu controle sobre os governantes.
A democracia do terceiro milênio, sobre ser participativa, será
universal, pois dela todos participarão; ignorando distinções econô-
144
Roberto Amaral
micas ou sociais, ou raciais, ou de gênero, ou de origem ou de naturalidade; a igualdade política abolirá a delegação, e todos poderão
participar ativa e diretamente, pois todos terão assento na nova ágora.
Até lá, a possibilidade de consulta imediata e constante e permanente complementará a representação e a delegação, reduzirá
o papel das mediações, minimizará as distorções, seja a interveniência do poder econômico, seja a manipulação dos meios de
comunicação de massa, os quais, sob controle social, passarão a
desempenhar papel diverso na nova sociedade.56
Não se trata de defender a democracia nenhuma em face do
fracasso da democracia representativa, repete-se. Trata-se de, sem
prejuízo da sobrevivência dos mecanismos democráticos da representação, ampliar seu raio mediante a democracia participativa ou
capilar, articulando a democracia representativa com a democracia
direta, cujos institutos cohabitarão por muito tempo.
A democracia participativa compreende, senão o consenso,
a ampla consulta popular e, dela consequente, o compromisso de
todos os atores sociais afetados, a integração de todos os povos, a
busca de novas expressões do coletivo, a descentralização das iniciativas e da gestão, a desconcentração administrativa e funcional,
a desconcentração do poder, a quebra do monopólio da política pelas classes dominantes. Ela compreende a emergência, no cenário
da política, com poder decisório, das instituições populares e sociais das mais diversas índoles, cuja organização enseja e estimula,
desde agrupamentos espontâneos e conjunturais aglutinados para
resolver um problema concreto, até amplos movimentos, v.g., pelos direitos da mulher, a defesa do consumidor, do meio-ambiente,
a defesa das minorias contra todas as formas de discriminação,
56 GORENDER, Jacob, Marxismo sem utopia. São Paulo: Editota Ática. 1999, p. 249, alinhase entre aqueles muitos autores, como Paulo Bonavides (‘Um novo conceito de democracia direta’ in Teoria do Estado, São Paulo: Malheiros Editores, 3. ed., p. 349 e segs.) que
veem no avanço tecnológico mais um fator viabilizador da democracia direta. Depois de
afirmar que a democracia representativa se soldará organicamente à democracia direta,
escreve: “a democracia direta se praticará sem burocracia, a todo momento, e sem hora
marcada, o que a tecnologia informática atual já prefigura e será muito mais desenvolvido no futuro”.
Socialismo e Democracia
145
a proteção dos direitos humanos e a denúncia de sua violação, a
defesa de interesses nacionais concretos, a iniciativa legislativa e
constitucional bem como a utilização, desmitificada, popularizada,
à margem do controle estatal, de novos meios eletrônicos, como as
rádios comunitárias, as redes de computadores e todos os meios
e instrumentos tecnológicos disponíveis. Enfim: participação dos
governados na vontade governativa.
Mas a democracia participativa não é uma democracia direta
remontando à ágora, mesmo a uma ágora teleletrônica; trata-se de
democracia semidireta marchando no sentido da democracia direta.
Mas democracia semidireta na qual a porção representativa será mínima, ao passo que a presença dos mecanismos da democracia direta será máxima. Assim, poderá compreender formas de exercício do
Poder Legislativo através de Casas submetidas ao controle dos mecanismos da consulta popular, Casas cujos componentes estarão submetidos à imperatividade do mandato, que também será revogável;
processo legislativo que compreenderá a iniciativa popular, o plebiscito, o referendo, o veto e a revogação, vale dizer, processo legislativo
que terá sempre, no povo, a instância suprema que ditará a aprovação
ou derrogação das decisões adotadas. As questões relevantes, como
toda matéria constitucional, só serão legisladas e só terão eficácia
quando submetidas à iniciativa popular, plebiscito e referendo.
10. A Constituição de 1988: uma promessa frustrada
A Constituição de 1988 foi festejada por todos os epígonos da
democracia participativa por enxergarem, no parágrafo único do
art. 1º e na redação inovadora do art. 14, uma nova concepção de
exercício da soberania popular, reiterado pelo inciso XV do art. 19.
De fato, aqueles dispositivos, que associavam ao sufrágio universal
e ao voto direto e secreto, com valor igual para todos, o plebiscito,
o referendo e a iniciativa popular, sugeriam a possibilidade de uma
democracia semidireta.
Reza o Parágrafo Único do art. 1º: “Todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
146
Roberto Amaral
Dispõe o caput do art. 14: “A soberania popular será exercida
pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.
Mas, atrás da regra constitucional não havia, animando-a
e dando-lhe vida, a vontade política da nação. Não se tratava de
avanço constitucional conquistado no debate ou na peleja, mas de
consecução do constituinte progressista, que talvez mais se deva
a descuido dos conservadores, justamente preocupados com as
questões objetivas da ordem econômica e social. A inexistência de
contemporaneidade com o processo político que, atrasado, não a
requeria e não a respaldava, esvaziou o significado da conquista,
frustrou seus objetivos e a norma positiva se transformou em mera
aspiração, sem uma vontade política para efetivá-la.
Democracia participativa não quer dizer que todas as formas
de representação sejam necessariamente abolidas. Ao contrário, importa a convivência, com os institutos da democracia representativa
sobreviventes, de mecanismos da democracia direta, como o referendo, o plebiscito e a iniciativa legislativa popular (também prevista em nosso ordenamento constitucional e já acionada por diversas
vezes), o direito de revogação (o recall e o abberufungsrecht) e o veto.
Compreende formas de exercício de mandato popular, mas sob controle absoluto da sociedade, o que compreende, ab initio, a completa
imperatividade socioeleitoral.
O direito de revogação permite ao povo – ao eleitorado – pôr
fim (antes do prazo nominal/legal) ao mandato de autoridades,
funcionário ou parlamentar.
O recall, espécie do gênero revogação, é a capacidade de o
eleitor, isto é, de uma parcela do eleitorado, destituir o funcionário ou o representante no curso do mandato. Os deputados, como
os magistrados, estão obrigados a prestar contas periodicamente
de seu trabalho, podendo ter o mandato revogado. O recall também é conhecido como revogação individual, para distingui-lo
do abberunfungsrecht, forma de revogação coletiva: o corpo eleito-
Socialismo e Democracia
147
ral, determinada parcela de seus integrantes, pode requerer a dissolução de sua respectiva assembleia.
O veto é a faculdade de o eleitorado manifestar-se coletivamente contra determinada medida governamental ou lei, já devidamente aprovada, ou em vias de ser posta em execução.57
Essas três formas notáveis de exercício democrático, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular – de todos os institutos
da democracia semidireta o que mais atende à exigência popular
de participação positiva nos atos legislativos58 – permanecem, no
corpo positivo constitucional brasileiro, como meras expectativas
de direito, passados 13 anos de vigência da ordem constitucional,
pois, regulamentados pelo legislador ordinário (lei nº 9.709/98),
aguardam da Câmara e do Senado a adaptação de seus respectivos
regimentos. Impõe-se não apenas tirar do papel essas conquistas,
por enquanto meras conquistas doutrinárias, e fortalecê-las com
outras, como o recall, o veto e o mandato imperativo, que vincula o
representante – parlamentar ou executivo – à vontade do representado – expresso no apoio a um programa de partido, ou a um programa de governo ou a ambos –, sob pena de revogação. O mandato
imperativo implica a eleição de parlamentares pelo sistema de listas
e o voto de legenda, donde o fortalecimento dos partidos e do coletivo, contra a autonomia do representante (mandato fiduciário),
despersonalizando a relação eleitor/eleito. Repitamos até à exaustão: não se pode falar em democracia sem a obrigação legal de cada
candidato, partido ou coligação, majoritária ou proporcional, respeitar, no exercício do mandato, o programa e os compromissos
assumidos, na campanha, com o eleitorado, sob pena de quebra do
mandato. Este é concedido pelo eleitor em face de compromissos
concretos e o desrespeito a esses compromissos vale como violação
do contrato. Dito de outra forma, o eleito não pode votar na sua
Casa legislativa ou aplicar no cargo executivo medidas que contrariem os compromissos que assumiu com o eleitorado, compromissos nos quais o eleitor se baseou para dar o seu voto.
57 DUVERGER, Maurice. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Paris: PUF, 1956, p. 22.
58 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. Rio: Fundação Getúlio Vargas. 2. ed., 1972, p. 349.
148
Roberto Amaral
Se a promessa constitucional de uma democracia semidireta se
frustrou, entre nós, há, porém, avanços que precisam ser aprofundados, e cuja origem é de muito antes da Carta democrática de 1988,59
como as diversas experiências de orçamento participativo, planejamento cidadão e outras iniciativas que ensejam a participação direta da cidadania, como os comitês ou conselhos de bairro, conselho
escolar e conselho de segurança, todos eleitos diretamente pela população, eleições para diretores de escola, eleição para as administrações regionais e distritais, criação de conselhos municipais com a
participação majoritária da população na administração de questões
cruciais como o Plano Diretor, a política de saúde etc., ensejando
a descentralização, quebrando com a ditadura da concentração do
poder, substituindo o poder concentrado pelo poder de baixo para
cima, deslocando do centro hegemônico para a periferia a discussão
dos problemas coletivos.
Temos afirmado que o diploma federal de 1988 deu vazão a
muitas formas de democracia direta ou participativa que o legislador ordinário não se interessou em regulamentar e muito menos
o Executivo em pôr em prática, nada obstante o princípio da participação direta do cidadão permear a Carta constitucional, como
a sugerir uma tomada de posição do legislador constituinte. Mas
iniciativas estaduais, fundadas na autorização constitucional, abriram caminho para novas experiências participativas. Exemplo é a
Emenda Constitucional nº 7, aprovada pela Assembleia Legislativa
do Rio Grande do Sul, que agregou (art. 19) a participação como
um princípio da administração estadual, comando explícito da
Constituição do estado a todos os poderes.
O sucesso de tais medidas alternativas de governos democráticos e de esquerda põe a nu a fragilidade da representação. Mas,
se os estados e municípios pelo menos admitem os limites da representação, para superá-los, a União deles se vale para aprofundar
suas relações imperativas com a sociedade.
59 Registram-se a experiência pioneira de democracia participativa em Lajes, Santa Catarina (administração Dirceu Carneiro, 1977-1982) e as práticas participativas em Pelotas
(administração Bernardo de Souza, de 1983 a 1987), destacando-se a primeira experiência nacional de elaboração participativa do orçamento municipal.
Socialismo e Democracia
149
Sem a descentralização política, sem o fortalecimento do poder local, sem a organização autônoma das comunidades, contra o
que conspira a representação, não há como falar em democracia.
A vida política, a democratização da política, depende de partidos organizados, do sufrágio universal e da liberdade de escolha, quer dizer, é preciso que cada cidadão seja livre (objetiva e
subjetivamente) para escolher, o que exige pluralidade política e
pluralidade ideológica. Só há escolha quando o cidadão está em
face de alternativas distintas, assegurado à minoria o direito de poder tornar-se maioria, sem rompimento do código democrático.
Mas depende, acima de tudo, da efetiva capacidade de o indivíduo – o cidadão livre –, interferir em tudo aquilo que, no Estado e
na sociedade, diga respeito à sua vida, aos seus interesses sociais,
econômicos e políticos. Depende da capacidade de a coletividade
de indivíduos controlar o poder político. Finalmente: depende da
materialização da soberania popular. Não se trata, mais, de aumentar ou estender o sufrágio, mas de promover a ocupação de espaços
e de alargar o exercício deliberativo dos indivíduos, ampliando os
direitos políticos da cidadania.
É evidente que a questão não se encerra numa pura e simples
reforma política ou na aplicação democrática de avanços tecnológicos. A democratização da política, tanto quanto a democratização dos meios de comunicação de massa (e a democratização da
informática, da teleinformática etc.) e a difusão e o acesso universal
à internet, serão consequências da democratização da sociedade
brasileira, com o rompimento das bases atuais do poder político
e do poder econômico. Não se trata de uma reforma constitucional à espera da vontade política dominante para efetivar-se. É uma
reforma que depende da inversão do mando. De profundas transformações sociais, do rompimento do statu quo que as classes dominantes brasileiras mantêm intacto, para a preservação secular de
seus interesses.
Só merece o título de democrática aquela sociedade na qual todos
os cidadãos exerçam o direito objetivo de influir nas decisões políticas.
A democracia participativa é a subversão do terceiro milênio.
150
Roberto Amaral
11. A promessa venezuelana da Constituição de 1999
A democracia participativa é a única forma de realização –
dentro dos quadros da atual institucionalidade – de mudanças
radicais em nossas sociedades, as únicas aptas a alterar o rumo da
política, substituindo as velhas estruturas, desde sempre a serviço
da exclusão, por instrumentos modernos de participação.
Dentre as experiências em curso em nosso continente, a Venezuela parece demonstrar, na prática, que a profunda democratização da sociedade e do sistema econômico é a mais eficiente forma
de promover mudanças sociais e públicas. E que a profunda democratização da sociedade pode ser o melhor antídoto às pressões
forâneas, às pressões do grande capital, das grandes potências que
não admitem projeto próprio para os países periféricos.
Merecedor de todo registro é o esforço do povo venezuelano
– após o colapso de um regime democrático-representativo que
impôs por mais de 40 anos a corrupção e a concentração de renda,
donde o empobrecimento das populações de um dos mais ricos
países de nosso continente –, construindo, com o voto reiterado,
um processo de ruptura com as velhas estruturas e promovendo, na ordem constitucional, profundas mudanças que ensejam
uma nova democracia, semidireta, abrindo caminho seguro para
uma democracia participativa. Um dos produtos desse processo de mudança, sem correspondente na América Latina, e todo
ele pautado em estrita legalidade, é a Constituição bolivariana de
1999, elaborada por uma Constituinte autônoma e exclusiva, convocada por plebiscito, e confirmada pelo povo por intermédio de
referendo. O que, por exemplo, não foi permitido ao povo brasileiro na última redemocratização.
A nova sociedade venezuelana tem como forma de participação popular a reiteração do voto: em pouco mais de um ano, os
cidadãos foram chamados às urnas 1) para eleger seu presidente,
que obteve 57% dos votos válidos; 2) para, em plebiscito, convocar uma Constituinte (por intermédio de 88% dos votos); 3) para,
em referendo, confirmar (90% dos votos) a Constituição elaborada pela Assembleia Constituinte exclusiva; e, finalmente, 4) para
Socialismo e Democracia
151
eleger todos os corpos de direção nacional, dos municípios à Presidência da República.
A nova ordem constitucional tem como objetivo: a democracia
semidireta que transita para a democracia participativa.
A Constituição venezuelana, denominada de bolivariana,
para remontar ao ideal da unificação continental, abriga o direito
à objeção de consciência, uma defensoria do povo (uma espécie
de poder moderador), a igualdade e a paridade entre mulheres e
homens, o reconhecimento dos direitos dos indígenas e a criação
de um poder denominado de ‘moral’ consagrado a combater a
corrupção e o abuso.60
Atribui maior poder e autonomia às comunidades, consagra
o plebiscito, o referendo e a iniciativa (legislativa e constitucional)
popular; submete todos os eleitos (inclusive o presidente da República) à possibilidade de nova eleição, no curso do mandato, segundo a vontade do eleitorado.
O ponto de partida positivado em termos constitucionais
consta do seu art. 5, verbis:
A soberania reside intransferivelmente no povo, que a exerce
diretamente na forma prevista nesta Constituição e na lei, e, indiretamente, mediante o sufrágio, pelos órgãos que exercem o
poder público. Os órgãos do Estado emanam da soberania popular e a ela estão submetidos.
A inversão (preeminência do exercício direto sobre o indireto)
caracteriza exemplarmente o salto da democracia representativa
para a democracia participativa. Nesta, o poder tem sede no povo
e por ele é exercido, preferentemente; a participação dos representantes eleitos é subsidiária, complementar.61
60 A fonte é o pensamento de Simón Bolívar. Está no ‘Discurso de Angostura’, pronunciado
ante o Congresso de Angostura, em 15/2/1819.
61 Compare-se com a redação do Parágrafo Único do art. 1ª da Constituição brasileira (repete-se): “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”.
152
Roberto Amaral
Trata-se não apenas de um Estado democrático, é a afirmação do
novo ordenamento, mas de um Estado democrático e social, de direito
e de justiça, que, para isso, propugna como valores superiores de sua
ordem jurídica e de sua atuação a vida, a liberdade, a justiça, a igualdade, a solidariedade, a democracia, a responsabilidade social, a preeminência dos direitos humanos, a ética e o pluralismo político (art. 2º).
Essa nova ordem se materializa na concepção de um governo
democrático e participativo, fundado no processo eletivo, na descentralização, na responsabilidade, no pluralismo político (de que
deriva o pluralismo partidário), na revogabilidade dos mandatos
(art. 6º), e na representação proporcional (art. 63).
É direito dos cidadãos participar livremente dos assuntos políticos, diretamente ou por intermédio de seus representantes eleitos
(art. 62). Entre esses direitos está o de votar.
Desdobramento e efetivação do princípio da revocabilidade
dos mandatos, o art. 66 introduz a obrigatoriedade da prestação de contas do representante ao representado, essencial para
o recall, e ainda inova quando estabelece como regra, para a legitimidade do mandato, a correspondência entre seu exercício e
as promessas de campanha, evitando a fraude e a bulha contra a
vontade eleitoral: “Os eleitores e as eleitoras têm direito a que seus
representantes prestem contas públicas, transparentes e periódicas
sobre sua gestão, de acordo com o programa apresentado”.
11.1 Uma experiência de democracia participativa
O projeto de democracia participativa venezuelana está consagrado mediante os seguintes princípios e instrumentos (art. 70):
I – instrumentos políticos:
a.a eleição para o exercício de cargos públicos;
b.o referendo;
c.a consulta popular;
d.a assembleia aberta;
Socialismo e Democracia
153
e.a assembleia dos cidadãos, cujas decisões têm caráter
vinculante.
II – instrumentos sociais e econômicos:
a.a autogestão;
b.a cogestão;
c.as cooperativas, em todas as suas formas, inclusive as de
caráter financeiro;
d.as caixas de poupança;
e.a empresa comunitária.
O referendo poderá ser consultivo, confirmatório ou revogatório.
As matérias de especial interesse nacional poderão ser submetidas a referendo consultivo, seja por iniciativa do presidente da
República, seja por decisão da Assembleia Nacional, seja por requerimento de pelo menos 10% dos eleitores. A regra se aplica, igualmente, às instâncias estaduais, municipais e distritais (art. 71).
Toda e qualquer emenda constitucional, para que tenha vigência, será submetida a referendo confirmatório, trinta dias após sua
promulgação. A regra também se aplica às hipóteses de reforma
constitucional (art. 341).
São ainda submetidos a referendo:
a) aqueles projetos de lei em discussão na Assembleia Nacional,
por decisão de pelo menos dois terços de seus membros;
b) os tratados, convênios ou acordos internacionais que possam comprometer a soberania nacional ou transferir competências a órgãos supranacionais, por decisão de dois
terços dos membros da Assembleia Nacional ou a requerimento de 15% dos eleitores (art.73).
E, lição que poderíamos de logo incorporar ao nosso processo
constitucional, estancando as medidas provisórias, são submetidos
a referendo os decretos com força de lei ditados pela Presidência da
República (art.74).
154
Roberto Amaral
Serão submetidos a referendo as leis cuja revogação total ou
parcial tenha sido solicitada por iniciativa de pelo menos 10% dos
eleitores (art. 74).
A iniciativa legislativa (art. 204) pode ser exercida a requerimento de 0,1% dos eleitores.
A iniciativa de emenda constitucional pode ser exercida por
15% dos eleitores. A emenda de iniciativa da Assembleia ou do presidente da República dependerá de referendo (art. 341). O projeto
de reforma constitucional aprovado pela Assembleia será submetido a referendo no prazo de trinta dias após sanção (art.344).
Todos os cargos e magistraturas ocupados mediante eleição popular são revogáveis. Esta a regra do art. 72: transcorrida a metade
do período para o qual foi eleito o funcionário, um número não menor de 20% dos eleitores inscritos na mesma circunscrição poderá
solicitar a convocação de um referendo para revogar seu mandato.
O mesmo se aplica aos membros da Assembleia Nacional.
Os deputados devem manter seus eleitores informados de sua
atuação, e, anualmente, prestar contas de seu mandato aos eleitores
da circunscrição pela qual foram eleitos e estão sujeitos ao referendo revogatório do mandato (art. 197).
A democracia participativa venezuelana, embora positivada,
significando um grande progresso para a vida política do continente, é ainda um só projeto, um notável projeto de um constitucionalismo moderno, mas carente de apoio para objetivar-se. Não lhe
basta a vontade política dos dirigentes, essencial, mas não suficiente, pois reformas dessa ordem não se solidificam senão quando resultam de exigência do movimento social, como está a demonstrar
a frustração do tímido ensaio da Constituição brasileira de 1988.
A Carta bolivariana, que também retoma as tão caras teses da
unificação continental,62 imperativo em face da globalização, é experi62 Também neste sentido foi inovador o texto brasileiro de 1988, ao dispor no parágrafo
único do art. 4º: “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comuni-
Socialismo e Democracia
155
mento cujo sucesso interessa a todos os democratas. Com seu destino,
portanto, também estamos comprometidos, pois, consabidamente, são
poderosos os interesses que, em nossa região, resistem a toda sorte de
mudança e participação. Não se trata, pois, de obra do acaso o concerto de forças poderosas que, naquele país e no continente, já terçam as
armas da maquinação visando a promover o naufrágio de um esforço
político que nada mais significa senão a representação constitucional
da emergência política das forças populares por tantos anos e décadas
submetidas à dominação de uma elite forânea, descomprometida com
os interesses daquele povo e daquela nação.
Mas os compromissos das forças conservadoras, em nosso continente, com a democracia, jamais foram estratégicos. Democratas
são enquanto o sistema serve à conservação do statu quo, e não vacilam em golpear a ordem constitucional ao menor sinal de mudança
na ordem do poder ou de emergência das forças populares. Na Venezuela, o concerto dos grandes empresários – de cujos interesses os
meios de comunicação são porta-vozes –, ameaça esse experimento
que seu povo tem todo o direito de testar.
(03 de março de 2001)
dade latino-americana de nações”.
156
Roberto Amaral
V
Controle das eleições e informação –
o papel dos meios de comunicação
de massa: uma contradição da
democracia representativa1
Introdução2
Um dos expedientes modernos de controle político, decerto
o mais eficiente, é aquele exercido sobre as fontes da informação.
Quando dizemos controle político, estamos nos referindo aos meios
e instrumentos de conquista e conservação, ruptura e mudança do
poder. Quando esse processo se desenvolve em uma sociedade democrática e ainda que minimamente representativa, controlar as
fontes da informação corresponde a ter em mão os instrumentos
construtores, isto é, formadores, da opinião pública, a matéria-prima
do processo eleitoral, aquele que conhecemos fundado na sobera1 Texto revisto de palestra sob este título proferida na XVII Conferência Nacional dos Advogados, Rio de Janeiro, 29/8 a 2/9/1999 – Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil.
2 O processo eleitoral é predefinido pela concorrência de dois fatores, de presença quase
sempre simultânea, o poder econômico e a intervenção dos meios de comunicação. Neste
texto, nosso objeto é a presença dos meios de comunicação de massa no processo eleitoral. O leitor interessado em estudar a interferência do poder econômico no processo
eleitoral brasileiro poderá consultar, entre outros estudos, Paulo Sérgio Braga Tafner,
“Proporcionalidade e exclusão no sistema eleitoral brasileiro”. Tese de Mestrado, IUPERJ.
Rio de Janeiro, 1997, versão xerográfica.
157
nia popular e no sufrágio. Por outras palavras, controlar as fontes
da informação significa construir, cinzelar a opinião pública, transformando a opinião dos indivíduos e a opinião difusa das massas em
opinião pública, qualificada politicamente, e, por óbvio, e por essas
razões, manipulada, isto é, condicionada, porque em sua definição
interferem elementos externos e estranhos ao processo social. É que
opinião pública não é a soma das opiniões individuais, mas a opinião
que uma coletividade assume sobre determinados temas, em função
das informações que e como lhe são transmitidas.
Opinião pública subentende hegemonia ideológica.
Escrevendo em 1937, Edward Hallet Carr3 lembra que o controle sobre a opinião pública é tão essencial aos objetivos políticos (poder), quanto os recursos econômicos ou militares, aos quais, aliás,
está sempre associado. H. D. Lasswell, no prefácio a Allied Propaganda and the Collpase of the German Empire, de G. G. Bruntz, observa
que a guerra psicológica deve acompanhar a guerra econômica e a
guerra militar, guerras psicológica, econômica e militar que a moderna diplomacia norte-americana unificaria numa só categoria,
com a propaganda se transformando no mais eficiente instrumento
da política de conquista. E assim, quando o mundo se preparava
para aquela que seria a terceira e última guerra mundial, a hecatombe final, derivada do encontro dos arsenais atômicos das duas
superpotências, o que se viu foi a débâcle de uma delas, sem que se
ouvisse um só tiro de pistola. Não eliminamos da análise as disfunções endógenas do sistema econômico-político do Leste Europeu,
mas queremos pôr de manifesto que o ato pacífico e simbólico da
derrubada do muro de Berlim foi o grande fruto de uma tática de
poder que tem no controle da propaganda, ou na guerra ideológica,
seu principal trunfo.
A importância desse controle sobre a opinião pública cresce
na medida em que crescem as bases da política, aumentando o
número daqueles cuja opinião deve ser considerada4 e que, para
3 CARR, Edward Hellet, Vinte anos de crise: 1919-1939. Editora Universidade de Brasília,
1981, p. 129.
4 Este processo talvez possa ser identificado como socialização da participação política,
ou, para usar categoria gramsciana, “ocidentalização” da sociedade, donde a necessidade
158
Roberto Amaral
ser considerada, deve ser manipulada, ou seja, na medida em que
a Humanidade transita da galáxia gutenberguiana para a aldeia
global de índole orwell-mac-luhaniana, mais orwelliana do que
mac-luhaniana.
Esse controle é essencial nas sociedades de massas. Não se trata, evidentemente, de um controle apenas material – via controle
das nascentes da informação e de seus meios de propagação – mas
fundamentalmente ideológico. O controle do meio é instrumento do controle (e da produção) do conteúdo que transmite. Nesse
sentido, o desenvolvimento tecnológico, propiciando a maior integração, é, ironicamente, seu servidor, e quanto mais desenvolvida a
sociedade de massas, mais viável o monopólio.
Segundo Carr, a proeminência do poder (político) sobre a opinião (pública) decorre do desenvolvimento conjugado da economia (produção em massa) e da indústria da guerra:5 a política é
vitalmente dependente da opinião das grandes massas de pessoas
mais ou menos politicamente conscientes, das quais as mais ressonantes, as mais influentes e as mais acessíveis à propaganda são
as que vivem nas grandes cidades ou em torno delas. Em resumo,
antecipando Sorokin,6 a opinião pública depende da manipulação
das massas pela propaganda.
Estudando uma Europa mal saída da belle époque, que ainda não
conhecia nem a televisão nem o monopólio da comunicação, processos da sociedade de massas, escrevia Carr, ainda em 1937:
de o governo buscar o consenso que, acrescentamos nós, é perseguido pela manipulação
das massas pela propaganda.
5 A Humanidade ainda careceria de 24 anos para conhecer a expressão military-industrial
complex cunhada pelo general Eisenhower no por isso mesmo célebre discurso de transmissão do cargo de presidente dos Estados unidos a John Kennedy (1961). A íntegra
do discurso do velho cabo de guerra e presidente pode ser encontrada em: CNN.com/
CustomNews.
6 A primeira edição da obra clássica de Serge Tchakhotine, Le viol de foules par la propagande politique, vem a público em 1939, na França. Dois meses depois de sua aparição,
quando a guerra já estava declarada, a polícia de Paris a apreendeu nas livrarias. Em
1940, com a ocupação alemã, o livro foi finalmente confiscado e destruído. A primeira
edição brasileira, sob o título A mistificação das massas pela propaganda política, é de
1967, iniciativa da Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro.
Socialismo e Democracia
159
(…) Mas quando falamos de propaganda hoje em dia, pensamos
principalmente naqueles outros instrumentos cujo uso a educação
popular tornou possível: o rádio, o filme e a imprensa popular. O
rádio, o cinema e a imprensa compartilham, no mais alto grau, do
atributo característico da indústria moderna, ou seja, de que a produção em massa, o quase-monopólio e a padronização são uma
condição para o trabalho econômico e eficiente. Sua gerência, na
sequência natural do desenvolvimento, tornou-se concentrada em
um número cada vez menor de mãos; e esta concentração facilita e torna inevitável o controle de opinião centralizado. A produção em massa da opinião é o corolário da produção em massa de
bens. Assim como a concepção de liberdade política do século XIX
tornou-se ilusória para grandes massas da população, devido ao
crescimento e à concentração do poder econômico, a concepção
de liberdade de pensamento do século XIX está sendo, da mesma
forma, fundamentalmente modificada pelo desenvolvimento desses instrumentos novos e extremamente poderosos de poder sobre
a opinião. (…) A questão não é mais se os homens devam ser politicamente livres para expressar suas opiniões, mas se a liberdade de
opinião possui, para grandes massas do povo, algum sentido que
não a sujeição à influência de inúmeras formas de propaganda dirigidas por interesses escusos de um tipo ou de outro.
E conclui:
(…) A nacionalização da opinião processou-se, em toda parte,
pari passu com a nacionalização da indústria.7
De outra parte, a informação com que trabalham os meios de
comunicação não constitui puro elemento, puro dado, pura descrição – por força até da inexistência de informação pura, pura
narração; informação compreende conotação e denotação, ou seja,
toda informação (isto é, todo elemento objetivo) é transformada
em opinião para poder formar opinião pública. E opinião pública,
na sociedade de massas, é a opinião publicada, a opinião mediatizada pela comunicação de massas. Ao fim e ao cabo: opinião pública é uma versão, ideológica, valorada, da realidade, construída
pelos meios de comunicação de massa.
7 Idem, p. 130-131.
160
Roberto Amaral
Ora, a opinião pública, essa opinião assim construída, é a matéria-prima do processo eleitoral. Sem ela e sem este a democracia
de raiz representativa falece por inanição.
Por todos esses motivos, os meios de comunicação passam a
desempenhar, nas sociedades de massa, papel relevante, como sujeito ativo da arena política. Esse papel é de ator, de pleiteante, de
interveniente. Controlando as nascentes da informação e o processo de sua difusão, e controlando, portanto, a formação da opinião
pública – raiz da opinião eleitoral, de que deriva, no processo democrático, a definição do poder –, os meios de comunicação estão,
finalmente, definindo a política.
Em nosso país é de se observar que os meios de comunicação
de massas, ademais de suas características universais, têm o seu
império sobre a opinião pública facilitado pela tradição ágrafa de
nossa sociedade, sociedade de iletrados e semiletrados, de analfabetos absolutos e analfabetos funcionais, e de alfabetizados que
não leem. Enquanto as camadas majoritárias da população não têm
acesso à imprensa escrita, seu único meio de contato com a realidade, com o mundo, é através da tevê aberta (delas também estão distantes a internet e a televisão por assinatura), que não lhes oferece
um contato com o mundo, mas uma visão de mundo, de um mundo reconstruído à sua imagem (da tevê) e segundo seus interesses.
Estamos nos referindo, evidentemente, ao papel que entre nós
desempenham os meios eletrônicos, notadamente o rádio e a televisão. Esse poder de mediação entre a sociedade e a realidade – e
real não é o fato em si, mas o fato narrado, e segundo a narração –,
é exercido de forma oligopolística, porque, na sociedade de massas,
não há possibilidade de outro contato da sociedade com a realidade a não ser por intermédio desses meios, da versão que esses
meios constróem da realidade. Mas os meios, que, em frente à sociedade, exercem o monopólio da fala, do discurso único, unidirecional, que esconde o debate, evita o pluralismo, são eles próprios
explorados de forma monopolística.
É neste contexto que se dá o processo eleitoral, que não compreende, simplesmente, a votação, nem só a campanha eleitoral,
Socialismo e Democracia
161
mas que começa, dentro dos partidos, pela escolha dos candidatos,
influenciada pelos meios de comunicação. São diversas as formas
de interveniência, ora destacando nomes ora condicionando a escolha àqueles candidatos que, ainda quando não sendo os melhores
quadros partidários, são os que despontam como de melhor aceitação pelos meios e de melhor desempenho na televisão.8
1. Construindo as candidaturas
O processo de construção das candidaturas, ainda no âmbito
interno dos partidos, tem início com as pesquisas de opinião que,
manipuladas ou não, manipulam a vontade partidária, induzindo
escolhas, pois a escolha recai naquele candidato de bom desempenho nas sondagens de opinião, montadas e divulgadas pelos meios
de comunicação. A sequência dessas pesquisas constitui uma verdade em si: porque estando bem na pesquisa o candidato estará supostamente bem no processo eleitoral, e isso passa a ser argumento
decisivo nas decisões partidárias; e porque está bem numa pesquisa, influencia a pesquisa seguinte e porque está bem na pesquisa é
citado no jornal, é convidado para os debates (quando os há, e a
decisão é exclusiva do veículo), assim por diante. Mas o inverso é
igualmente verdadeiro: porque está mal nas pesquisas, porque esteve mal numa pesquisa, o candidato está ameaçado de continuar
mal nas pesquisas seguintes e no desempenho eleitoral: os convites
para entrevistas e debates, lembramos, tanto quanto a cobertura na
imprensa, gráfica e eletrônica, estão na razão direta do tamanho do
partido e da posição do candidato nas pesquisas. Há campanhas
que, por essas razões – arguidas pelos meios de comunicação como
critério editorial, orientação de pauta e parâmetro para a distribuição de espaço e tempo –, são literalmente ignoradas. De outra
parte, a presença do candidato nas pesquisas de opinião também
define os apoios financeiros. As contribuições guardam rigorosa
relação com os índices de intenção de voto.
8 A este propósito, um excelente estudo é oferecido por Vitor Paolozzi. Murro na cara
(O jeito americano de vencer eleições). Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.
162
Roberto Amaral
Outra questão, que não é objeto dessas considerações, é o processo de construção das pesquisas.
A boa ou má presença nas pesquisas de opinião é, também,
pré-condicionada pelos meios de comunicação, pois refletem, necessariamente, o espaço antes dedicado ao candidato, ou ao précandidato, ou político, seja nos noticiários, seja nas entrevistas.
O critério nem sempre é rigorosamente jornalístico, no sentido
da necessária vinculação do personagem ao fato. Necessidade
dupla: pois, se de um lado justifica a presença no meio, também
justifica sua ausência. A televisão trabalha com outros condicionantes, como a imagem e a precisão oral. A primeira exige um
mínimo de empatia do entrevistado, e a segunda a precisão nas
respostas, assegurando eficiência expositiva, que se mede pela
associação do discurso claro e direto com o mínimo de tempo
necessário para a enunciação do juízo. O bom entrevistado é
aquele que já tem a resposta articulada, podendo expô-la em
15-30 segundos.9 A televisão faz o candidato à sua imagem e
semelhança, isto é, ele deve ter as características exigidas dos
atores e dos apresentadores e todos – atores, apresentadores, políticos, entrevistados e entrevistadores, programas e conteúdos,
portanto a política – também, devem servir ao grande Deus e
senhor da mídia: a audiência.
E não há outra explicação para o fato de todos os legislativos
brasileiros, das Câmaras Municipais ao Senado, e os postos executivos, prefeituras e governos estaduais, estarem sendo ocupados
por um número crescente de radialistas, publicitários, jornalistas,
atores, apresentadores e personagens diversos do mundo da televisão e dos meios de comunicação em geral.
Ao lado dessa seleção de natureza mais ou menos objetiva, há
a seleção subjetiva, de ordem ideológica, que atende a interesses
objetivos da empresa proprietária do canal; a seleção política daqueles que podem ser entrevistados e daqueles que podem ser con9 O leitor que desejar aprofundar o tema encontrará subsídios em obras recentes de Pierre
Bourdieu: (1) Sobre la televisión. Barcelona: Editorial Anagrama, S. A., 1997 e (2) Contrafuegos. Idem. Idem, 1999.
Socialismo e Democracia
163
vidados para seus raros programas de debates, e a emissora, quanto
mais disponha de boa audiência, mais rigorosa é nessa seleção.
De uma forma ou de outra, o objeto da televisão, mesmo nos
noticiários, é a audiência, garantia de receita publicitária, e audiência exige bom desempenho dos atores.
Não se afirma, aqui, a absoluta inexistência de opinião livre e,
por decorrência, a ilegitimidade do processo eleitoral como um a
priori. Diz-se que tanto a construção da opinião pública (essência
da opinião eleitoral), quanto o processo eleitoral em si, observam
essas matizações. Diz-se, mais, que esse processo, que compreende a exclusão, e que alimenta a exclusão, é apenas uma peça, talvez a mais importante, mas sempre apenas uma peça, no sistema
autoritário brasileiro, um autoritarismo larvar, que percorre toda
a sociedade brasileira, desde a formação colonial aos nossos dias.
É, pois, nesse contexto, que examinaremos o papel da informação
e da formação da opinião pública no processo eleitoral brasileiro.
2. A mediatização na sociedade de massas
Os meios de comunicação de massas guardam rigorosa coerência com essa sociedade. Gêmeos univitelinos do mesmo autoritarismo, têm um objeto comum: a exclusão.
A exclusão econômica, a exclusão de gênero, a exclusão étnica
se completam com a exclusão política que danifica o processo eleitoral e denuncia a democracia representativa.
A sociedade de massas, fenômeno da última metade do século findo, ao impor, por necessidade de sua lógica, o império
da mediação, revelou à luz do sol a ilegitimidade da democracia
representativa. Ela deriva da interferência do poder econômico,
desde sempre, e, de último, do poder político dos meios de comunicação de massas, monopolizados ou oligopolizados, apartando
o representante da vontade do representado, anulando o poder da
vontade autônoma do cidadão, seja a vontade individual, seja a
vontade geral (‘volonté générale’) de fonte rousseauneana.
164
Roberto Amaral
Quando falamos da interferência dos meios, estamos nos referindo ao seu poder de manipular, isto é, alterar a vontade original;
também estamos dizendo de sua capacidade de subtrair e fraudar
a vontade popular, anulando em sua sede a soberania do voto e da
vontade eleitoral.
É esse o novo papel dos meios de comunicação de massa,
politizados e partidarizados, construtores do discurso único, do
discurso unilateral, do discurso monocórdio do sistema. Esses
meios – que no passado tão relevantes serviços prestaram à democracia – de há muito abandonaram o clássico papel de intermediação social. São hoje atores. Não reportam: interferem no
fato e passam a ser o fato; não narram, invadem o andamento do
fato em narração; não informam, constróem a opinião; não noticiam, opinam. O fato, a realidade, o acontecimento, o evento, não
é o fato acontecido, a ocorrência em si, mas o fato que logrou ser
narrado e, principalmente, como foi narrado. Mais do que nunca
a realidade não é o fato, mas sua versão.
Repetimos: Tal fenômeno, grave em sua descrição, preocupante em qualquer país desenvolvido, assume, no Brasil,
contornos de extremo perigo quando, em sociedade ágrafa, semialfabetizada e semiletrada, desafeita à leitura quando letrada,
os meios de comunicação de massa, principalmente os audiovisuais, o rádio e a televisão, associados aos meios impressos, estão
entregues a um sistema de oligopólio que transita para o monopólio, sob todos os aspectos: monopólio da propriedade, monopólio da audiência ou da circulação, monopólio da informação,
monopólio dos conteúdos.10
Em suas mãos, a construção da opinião pública.11
Pelo que a representação é uma farsa. A ‘democracia’ fundada
nessa farsa é uma fraude.
10 Cf. AMARAL, Roberto e GUIMARÃES, César. ‘Brazilian Television: a Rapid Conversio’,
apud FOX, Elizabeth (Editor). Media and Politics in Latin America. London: Sage Publications. 1988.
11 Discutimos os mecanismos de construção da opinião pública em “O poder da midia e o
controle da opinião pública”. Anais da XVI Conferência Nacional dos Advogados. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Brasília. 1997.
Socialismo e Democracia
165
3. Os meios de comunicação e o controle da informação
Como já afirmamos, os meios de comunicação de massa de há
muito renunciaram ao antigo papel de responsáveis, mais ou menos isentos, pela intermediação entre a sociedade e o Estado, entre
a política e a cultura. São o novo espaço da pólis, com pensamento
próprio, com projeto próprio.
Em síntese e em resumo, a comunicação de massas, como a
política, é um bem de consumo, matizado pelo neoliberalismo, isto
é, pela apropriação desigual dos bens de consumo, de bens simbólicos e de cidadania.
O mercado consome tudo, inclusive bens simbólicos.
Se a informação é um bem de consumo, e assim e para esse fim
manufaturada, é também um produto consumido desigualmente,
como o sabonete, o pão, a casa própria, o emprego, o salário.
Atividade empresarial – comercial/industrial – que persegue o
lucro, o meio de comunicação é uma empresa, como um supermercado ou uma fábrica de pães: sua função é produzir e vender uma
mercadoria, que, como poderia ser pão ou manteiga ou cigarro, é
opinião; o meio tem interesses concretos a representar e defender, e
a defesa desses interesses é que preside sua programação, dos shows
aos noticiários, nos quais revela suas preferências políticas, a serviço de seus interesses políticos e mercantis.
Daí a uniformidade de linhas políticas de todos os canais de
televisão.
Esse unilateralismo é servido, de outra parte, pelo monopólio.
O sistema nacional de televisão, com mais de trezentos canais, é
controlado por duas/três redes, das quais uma tem mais de 50% da
audiência nacional. Fora das redes, os demais canais constituem-se
meros repetidores de imagem e som gerados pelas grandes redes,
exercendo nos estados o mesmo papel de monopólio que se verifica
no plano nacional.
O sistema nacional de televisão é fundado na concentração
de propriedade, no monopólio da audiência, na superposição do
nacional sobre o regional, das redes sobre a produção local, da
166
Roberto Amaral
produção em cruz12 sobre a produção independente, do entretenimento sobre a produção cultural, do privado sobre o público.
Um sistema monopolístico que incorporou ao seu poder, como se
legítima fôra, a capacidade de, narrando ou omitindo a revelação
do fato, interferir no seu andamento, produzir a realidade, pois
real não é mais o fato em si, mas o fato narrado, narrado como
decidiu narrar a rede.
O mesmo sistema nacional se reproduz, tal qual, em cada estado, pois em cada estado um subsistema, à imagem e semelhança
do sistema central, controla, à sua vez, a televisão local, a radiofonia local, a imprensa local, e, por consequência, a política local;
quando não, a ela está intimamente ligado, num perfeito sistema
de vasos comunicantes. É a nossa realidade fractal, mediante a
qual o sistema central monopolístico se reproduz em cada sistema
local, cuja soma é o sistema nacional controlador, que se repete
ad infinitum, fractalmente,13 em todo o país, em cada estado, em
cada município, em cada vila.
Estas análises se justificam para pôr de manifesto a importância
do horário eleitoral gratuito, o único espaço de que dispõe o partido
para se apresentar, sem mediações; o único espaço que se lhe é oferecido para revelar ao eleitorado, e defendê-las, as suas respectivas visões
de realidade, suas visões de mundo e de sociedade sem mediação. Assim rompendo com o monopólio ideológico dos meios. Que, por isso
mesmo, movem-lhe tenaz combate.
Esta questão é tão mais importante quando, em país ágrafo,
nossas campanhas eleitorais são crescentemente eletrônicas, no
sentido de que sofrem cada vez mais, e de forma incoercível, a
influência da televisão.
12 Assim designamos o processo mediante o qual o mesmo sistema de televisão, verticalizando toda a produção por ele veiculada, atua ainda em todos os demais meios de comunicação de massa, rádio, imprensa gráfica, discografia, na mesma cidade, no mesmo estado e
nacionalmente. Exemplo paradigmático é oferecido no Brasil pelo Sistema Globo.
13 Como tal identificamos o modelo de controle dos meios mediante o qual o sistema centralnacional se reproduz em cada sistema regional, local. Cf. AMARAL, Roberto. In “A (des)
ordem constitucional-administrativa e a disciplina da radiodifusão: análise e (alguma)
prospectiva” apud Comunicação&política. N.s. v. I, n. 1, ago.-set./1994, p. 125-146.
Socialismo e Democracia
167
Essa influência se observa no período eleitoral, mas igualmente no período pré-eleitoral. Ela se manifesta na cobertura de
determinadas candidaturas, mas igualmente se observa na indução das candidaturas. A primeira das influências é a necessidade
de escolha de um candidato que tenha fácil diálogo com o meio,
domine sua linguagem oral e formal. Essa opção, o próprio meio
a faz, antes dos partidos e dos candidatos, escolhendo aqueles aos
quais dará espaço em seus programas e em seus noticiários.
Não se encerra aí o papel dos meios de comunicação. Eles
atuam fora do período eleitoral (referimo-nos agora aos programas partidários, Lei no 9.096/95, art. 45), e, durante o período
eleitoral, é no rádio e na televisão que se processa, verdadeiramente, a campanha eleitoral. Referimo-nos à propaganda eleitoral gratuita (Lei no 9.505/97, art. 47).
A campanha sai das ruas, sai dos comícios, para se centrar
nos veículos, e o desempenho eleitoral muitas vezes está na razão
direta do tempo de rádio e televisão disponível e da qualidade
formal do programa.
Por isso mesmo, o tempo de duração do horário eleitoral gratuito vem diminuindo eleição por eleição, como, legislação por
legislação, vem diminuindo o espaço para as redes nacionais e
estaduais de rádio e televisão convocadas para a divulgação dos
programas partidários. Na última alteração, o tempo desses programas, que era de 1 (uma) hora, caiu para uma média de 10 minutos. Em alguns casos, não passa de 1 (um) minuto.
É vasta a literatura científico-acadêmica brasileira e internacional, sobre o papel dos meios de comunicação de massas, a televisão
em primeiro plano, intervindo no processo eleitoral e alterando a
formação da vontade eleitoral.14
14 A revista Comunicação&política, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos
(Cebela), vem há anos se dedicando a esse estudo. Relativamente às eleições de 1998 cf.
VENTURI, Gustavo. “Imagem pública, propaganda eleitoral e reeleição na disputa presidencial de 1998”. Comunicação&política, n. 3, set.-dez./1998, p. 30 e segs.
168
Roberto Amaral
As emissoras, no plano nacional e principalmente nos planos locais, atuam como verdadeiros partidos políticos, e interferem diretamente no processo eleitoral. Na sua grande maioria, os
canais de rádio e os de televisão espalhados Brasil afora, meros
repetidores das grandes redes, pertencem a políticos situacionistas e foram distribuídos pura e exclusivamente por critérios
partidários, que privilegiam os grandes partidos, reforçando a
unilateralidade ideológica e partidária e, em muitos casos, de
subgrupos partidários, que, nas suas regiões, nos seus estados,
nos seus municípios dominam de forma monopolística os meios
de comunicação de massa. São hoje inumeráveis os estudos acadêmicos e científicos sobre os critérios clientelistas e fisiológicos
de distribuição de concessões como moeda política. Paulino Motter15 estuda o período Sarney, para afirmar que nenhum outro
governo distribuiu tantos canais em tão pouco tempo, nem fez
uso político de forma tão explícita. No período da Constituinte (1987-1988), por exemplo, foram beneficiados nada menos
de 91 parlamentares. Desses, apenas quatro deixaram de votar
nos dois principais projetos de interesse do governo: (a) o que
aumentava o mandato do titular da Presidência, de quatro para
cinco anos, e (b) o que mantinha a forma presidencialista de governo, defendida pelo presidente concedente. Os parlamentares
beneficiários, por óbvio, pertenciam aos grandes partidos. Jayme Brener e Sylvio Costa16 demonstram que no governo FHC a
grande maioria dos canais de TV foi distribuída a políticos, em
dezembro de 1996. O fato seria corriqueiro se não estivéssemos,
então, a um mês, da difícil votação em primeiro turno da emenda
constitucional permissiva da reeleição, na Câmara dos Deputados. Nesse período foram outorgadas pelo governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso aproximadamente 400 repetidoras,
sobretudo para empresas e entidades controladas por políticos,
e para prefeituras. No mesmo período o governo distribuiu 479
15 “O uso político das concessões das emissoras de rádio e televisão no governo Sarney” in
Comunicação&política, v. 1, 1994. Nova série, p. 89-116.
16 “Coronelismo eletrônico: o governo Fernando Henrique e o novo capítulo de uma velha
história”, in Comunicação&política, Nova série, v. 4, n. 2, p. 29-53.
Socialismo e Democracia
169
RTVs, beneficiando prefeituras do PMDB (131), PPB (84), PFL
(55), PSDB (63), PDT (39), PTB (53) e 55 com outros partidos,
nenhum, justiça seja feita, do campo da esquerda. Mas a melhor
síntese até aqui produzida sobre essa política que visa a fortalecer
o atrasado, o arcaico, o retrógrado e o mandonismo, num país
que perigosamente passou a adotar o princípio da reeleição dos
titulares de mandatos executivos, foi oferecida por José Bonifácio
Sobrinho, ex-vice-presidente da Rede Globo de Televisão:
A política de concessões foi orientada para privilegiar as oligarquias e os monopólios. Se o jornal era dócil, o dono ganhava
uma rádio. Se o jornal e o rádio eram dóceis, ganhavam uma
TV. Se o jornal, o rádio e a TV são dóceis, têm chance de ter
uma TV a cabo.17
Pela sua propriedade e de seus conteúdos se efetiva o controle
dos meios de comunicação.
A intervenção na programação das emissoras de televisão –
concessionárias ou permissionárias de serviço público – tem fulcro
na natureza do serviço e da concessão, e no princípio constitucional
da igualdade de todos, que deve ser assegurada pelo Estado, constituindo-se em corolário do regime jurídico de direito democrático.18
A ação da televisão, intervindo no andamento do processo
eleitoral, manifesta-se, contemporaneamente, não apenas através
de seus noticiários (telejornais) – nos quais políticos, partidos e temas são privilegiados ou omitidos –, ou dos debates, mesas-redondas e programas similares, com convidados selecionados segundo
os interesses políticos da empresa, mas, igualmente, com a mesma
eficiência persuasiva, em seus programas de entretenimento, como
os humorísticos, as novelas e minisséries, também usados para ridicularizar adversários ou temas.
17 Veja, 3/12/1997, p. 9-11.
18 Um resumo da malha legal reguladora do sistema brasileiro de rádio e televisão se encontra em AMARAL, Roberto. “O ordenamento constitucional-administrativo brasileiro
e a disciplina dos meios de comunicação de massa”. In ROCHA, Cármen Lúcia Antunes.
Perspectivas do direito público. Belo Horizonte: Del Rey. 1995, p. 465 e segs.
170
Roberto Amaral
A partilha do tempo reservado ao horário eleitoral gratuito,
um pouco mais de 49 minutos e 36,6 segundos três vezes ao dia,
foge a todo critério de isonomia. A regra é a presença desigual dos
partidos e candidatos no horário gratuito de televisão, pois dele
participarão proporcionalmente ao tamanho de suas respectivas
representações na Câmara dos Deputados no início da Legislatura
que estiver em curso.
Uma das consequências da distribuição grosseiramente assimétrica do tempo da propaganda eleitoral gratuita é a distorção do
sentido político das coligações partidárias, as quais passam a ser
buscadas, não em função de programas, não em face de eventuais
afinidades políticas e ideológicas, mas para atender à necessidade
de construir um banco ou fundo de tempos de rádio e televisão,
sem o qual não há possibilidade de disputa no pleito. Não se trata,
porém, do mais grave dos prejuízos.
Do nosso ponto de vista, o cerne da questão está na violência legal que se abate contra os partidos, isto é, contra a vida partidária e o
processo democrático, eivando de vício a campanha eleitoral, quando a legislação ordinária privilegia os grandes partidos no cálculo
do tempo no horário eleitoral gratuito – um serviço público – que
deveria ter sua utilização presidida pelos princípios da equidade e
da isonomia. Relembre-se que o horário eleitoral gratuito é o único
momento em que a propaganda pode ser feita pelos partidos, porque
os governos, em todas as suas instâncias, podem fazê-la e a fazem, o
ano inteiro, se divulgando, e se promovendo, em campanhas de sustentação de apoio da opinião pública as quais, desferidas durante a
administração, estão voltadas para o período eleitoral, quando ainda
podem ir ao ar, com as limitações que a lei passa a prescrever.
A consciência majoritária tem tanta clareza quanto ao papel
do rádio e da televisão no processo político-eleitoral, que adota o
mesmo princípio discriminatório para o cálculo dos programas
partidários fora do período eleitoral (Lei no 9.096/95, arts. 45 a 49)
e na distribuição do Fundo Partidário, uma herança do Código
Eleitoral de 1965, promulgado pelo regime castrense.
Socialismo e Democracia
171
A impossibilidade de um mínimo de concorrência fica evidente
com a simples avaliação dos dispositivos da Lei no 9.504/97 aos pleitos eleitorais, a qualquer deles. Apliquemos a regra para as eleições
presidenciais. Foi a seguinte a distribuição do tempo, por partido, nas
eleições de 1998, quadro que pouco difere para as eleições de 2002:
Partido
Tempo no horário eleitoral
PMDB
7min.16s
PFL
6min.36s
PSDB
5min.
PPB
6min.42s.
PT
4min.10s.
PTB
3min.11s.
PSB
1min.58s
PL
1min.49s.
PCdoB
1min.38s.
PMN
1min.14s
PSD
1min.11s
PPS
1min.07s
PSC
1min.11s
PV
1min.02s
PRP
1min.02s
PRN
1min.02s
Foi também esse o tempo dos partidos para as eleições para
a Câmara dos Deputados, e assim, de novo, num círculo vicioso,
porque têm poucos deputados, os pequenos partidos continuarão
172
Roberto Amaral
com poucos deputados. Acrescente-se a esta distorção a aplicação
do art. 13 da Lei nº 9.096/95, que limita o funcionamento parlamentar, em todas as Casas legislativas para as quais tenha elegido
representantes, ao “partido que, em cada eleição para a Câmara
dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento
dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos estados, com um mínimo
de dois por cento do total de cada um deles”.19
4. A crise da política
A política, assim esvaziada, deixa de ser instrumento de realização dos fins sociais; abastardada, passa a ser a arte da mentira, do engodo, da farsa, da fraude, dos subterfúgios, da coisa
sempre menor, dos projetos individuais, da traição aos interesses
coletivos. A política é reduzida a um inócuo exercício institucional, organizando eleições defraudadas e corrompidas, das quais
emergem governos fraudulentos e corruptos, em eleições que não
valem nada porque nada mudam. Assim, o povo vai sendo expulso da ágora e cada vez menos se identifica com seu mandatário,
ou com as instituições do governo – e como se identificar com
a corrupção, com a traição do interesse público, a privatização
do público pelos interesses do capital? Com as administrações
controladas pelos interesses do empresariado, o tráfico de informações privilegiadas proporcionado por funcionários públicos
em funções estratégicas, que transitam do serviço público para
o empresariado privado e vice-versa? Com o desvio, para fins
privados, dos bens, benefícios e serviços públicos? Com o nepotismo, o favorecimento, o clientelismo e a desmoralização do
interesse público e do interesse nacional anatematizados como
arcaísmos? O fim das conquistas republicanas, o fim do serviço público – o fim da igualdade dos direitos, o fim do direito
à educação, do direito à saúde, à cultura, à arte, e finalmente, o
19 Ver a Disposição Transitória constante do art. 57 da Lei no 9.096/95. A chamada ‘cláusula de barreira’, todavia, e não sem tempo, foi declarada inconstitucional pelo STF.
(Nota de 2010)
Socialismo e Democracia
173
fim do direito ao trabalho –, em síntese, a vitória ideológica do
neoliberalismo, instala na população, a crise de desconfiança no
Estado e na prioridade do bem público. Poucos se dão conta do
novo autoritarismo – e uma de suas expressões é a unilateralidade
do pensamento-único – porque estão preservados os marcos da
democracia formal.
As pessoas sentem que nada funciona para elas.
O povo, o grande desenganado, ainda vota, e os meios de
comunicação circulam livremente. Organizando essa fraude, a
ação concertada dos meios de comunicação e da intelectualidade,
inclusive acadêmica, construindo o discurso único, dogmático,
o monopólio da informação abundante e insignificante, desintegrada e desintegradora, dispersa e desestruturada e desestruturante. Uma visão cada vez mais despolitizada, incolor e inodora,
desestoricizada e desestoricizante, instantaneísta e descontínua,
atomizada e atomizante do mundo, o mundo mediático que, embora virtual, se sobrepõe ao mundo real.
Daí a videopolítica e a videodemocracia. A opinião pública é
a opinião dos que controlam os grandes meios de comunicação,
verdadeiros partidos ou o partido único, portador do discurso
ideológico dominante, homogeneizado ou homogeneizador: a
inevitabilidade da globalização, o fim do Estado indutor de desenvolvimento, o fim da história, a privatização e a desnacionalização
– como imperativos – donde o fim do debate e do contraditório. Há
uma unanimidade planetária dos grandes meios de comunicação
– impressos e tecnológicos –, em torno dos primados ideológicos
da nova ordem internacional. A mesmice da impressa brasileira é
a reprodução colonizada das matrizes do pensamento internacional, de onde copiamos ideias, hábitos, costumes, visão de mundo,
política, regime, amor e ódio. A política, assim, é o simulacro da
política. A democracia – sem diálogo e sem representação – nega
a democracia. A comunicação não informa: a ampla liberdade de
imprensa é o manto que encobre a ausência de debates e responsabilidade, o contraditório e o confronto das ideias. A cidadania é um
puro engodo, quando os cidadãos poderiam aspirar a mais direitos.
174
Roberto Amaral
Nesse vídeoshow, a política é excedente; um espetáculo pouco
excitante para atrair a audiência. Pede reflexão, quando a telinha
quer oferecer sentimento, paixão, compaixão. Por isso, conflito de
lógicas antípodas, a televisão limpa a política de seu conteúdo, e
trata de transformá-la em espetáculo. Fantástico, se possível.
Daí a ideologia única, o discurso único, a economia única,
o mercado globalizado como religião, o monopólio da ortodoxia
tecnocrática exercido pelos novos evangelistas do novo mundo, a
técno-burocracia, os altos funcionários das grandes empresas, os
executivos dos organismos internacionais, empunhando as bíblias
e os alcorões do fundamentalismo neoliberal. A globalização apresenta-se como fatalidade, o fim do Estado-nação diz-se inevitável,
a dependência parece de necessidade. Tudo isso, apesar do fracasso
do modelo neoliberal.
É, uma vez mais, a vitória do discurso sobre a realidade, é a
servidão voluntária.
(Rio de Janeiro, 2/9/1999)
Socialismo e Democracia
175
VI
As eleições de 2002
Desde 1985, quando demos partida à reorganização do PSB,
nos perguntamos: Que partido queremos? Trata-se de uma pergunta-método que a militância deve repetir permanentemente.
Trata-se de pergunta que jamais deixará de ser oportuna, porque
sua resposta indicará sempre nosso nível ideológico e a resposta ao
projeto de construção da sociedade socialista.
Esta pergunta é ingente no momento em que o partido vive seu
mais intenso e rico processo de crescimento, em toda sua história.
Que partido queremos? Aquele apto a desempenhar o papel
revolucionário de, com as demais forças socialistas do país, promover a conquista do governo, e preparar as condições propícias ao
regime de transição ao socialismo?
Para facilitar a discussão, digamos que há duas espécies de
partidos: os conservadores e os ideológicos, ou revolucionários.
Partidos conservadores são aquelas organizações que têm em
mira, principalmente, galgar o poder, a fim de lograr posições de
mando para seus dirigentes, e vantagens materiais, sobretudo empregos públicos (ou ‘comissões’ ou isso e aquilo) para sua clientela.
Partidos ideológicos são aqueles que buscam a realização de
ideais de conteúdo político e se propõem a transformar toda a ordem institucional, inspirados por princípios filosóficos que implicam uma concepção nova da sociedade e do Estado. Não raro, a
ação política dessas organizações, sobre envolver matéria de teor
177
constitucional, reflete, do mesmo passo, dissidência com a estrutura política e social estabelecida.
Para os partidos conservadores, galgar o poder é um fim em si,
como para o político tradicional a conquista e a renovação do mandato passam a constituir fins em si. Para os partidos ideológicos, o
poder é um meio de realização de seu programa, o mandato um
instrumento de conquista do poder. Nada se justifica por si, nem
mesmo o partido, senão pelo objetivo real de construção de uma
nova sociedade, de um novo Estado. Ocorre, porém, que, muitas
vezes, o partido de esquerda, que deveria guardar aquelas características dos partidos ideológicos, passa a ter comportamento similar ao dos partidos conservadores, ou de patronagem, e assim, se
transformam, o partido e seus mandatários, em correia de transmissão do mesmo poder, do poder que combatem do ponto de vista ideológico, mas que na prática terminam por reforçar. Deixam
de refletir dissidência com a estrutura política e social estabelecida, e, pior, intentam a ela adaptarem-se, para, assim, melhor serem assimilados. São aqueles partidos que atuam na órbita política
em inteiro acordo com o espírito das instituições, sem suscitarem
questões de fundo, pertinentes à natureza do regime, como são as
questões filosóficas ou econômicas. E mais, aceitando as regras do
jogo, sem denunciá-las, também aceitam o mando, também aceitam o regime, e assim se habilitam a suceder a grei conservadora
em queda de prestígio junto à opinião pública, simplesmente prometendo uma administração talvez mais eficiente ou menos predadora. Não há mais distinções de fundo.
Nós, socialistas do PSB, ao contrário, por todos os motivos,
sejam estratégicos ou táticos, queremos denunciar as questões de
fundo e nomear nossa distinção. Porque ou nos distinguimos ou
perecemos numa vasta geleia de partidos sem firmeza de atuação.
O papel do partido revolucionário é romper com as cadeias de reprodução, do regime, de mandatos ou meramente ideológicas.
Quer isso dizer que o partido socialista secundariza seu crescimento ou menospreza o projeto eleitoral? Não. Quer dizer que
o crescimento deve guardar coerência com o objetivo e que o fim
178
Roberto Amaral
não é o resultado eleitoral em si. É preciso ganhar as eleições para
lançar as bases do projeto de transformação da sociedade. Esse é o
papel do socialista. Se seu mandato não está a serviço desse objetivo, não se enquadra nos objetivos de uma proposta socialista.
Por isso, temos um projeto político que, distinto ideologicamente, nos distingue estrategicamente, e, que, portanto, nos deve
distinguir eleitoralmente, porque o processo eleitoral é uma tática
subordinada a objetivos programáticos. É preciso dizer: nosso projeto eleitoral, servidor do projeto de construção partidária, não se
confunde com o projeto eleitoral dos demais partidos de esquerda,
mesmo da esquerda socialista.
Isto também diz respeito a 2002.
Partido estratégico, precisamos eleger o maior número possível de vereadores e prefeitos, mas vereadores e prefeitos comprometidos com nossos objetivos estratégicos e táticos.
Repitamos: Pior do que não eleger, é eleger mal.
Nossos compromissos, porém, não se encerram com as eleições, até porque é muito vasto o campo de atuação do partido de
esquerda, que compreende a institucionalidade, mas a ela não
se limita.
Para o militante socialista o processo eleitoral é principalmente político. Nosso objetivo, portanto, não é apenas somar votos,
mas aproveitar o pleito para o proselitismo de nossas ideias, para a
defesa de nossos programas, para a disputa com os conservadores.
Nosso objetivo é conquistar corações e mentes, é ganhar a batalha
ideológica, é garantir o apoio da maioria da população para nossos
projetos e teses.
O PSB precisa assumir o compromisso da diferença e da ruptura.
Para o socialista, tanto a campanha eleitoral quanto o desempenho do mandato, no Legislativo ou no Executivo, constituem
compromissos pedagógicos com a mudança, com a administração
eficiente e proba, com a defesa dos interesses dos desprotegidos,
Socialismo e Democracia
179
com a compatibilidade entre programa e administração, entre
compromisso de campanha e compromisso de governo.
Por isso o PSB – se as premissas deste texto são verdadeiras
– não tem alternativa política senão construir, sua candidatura
própria à Presidência da República, promover com ela um grande
debate, eleger uma grande bancada de deputados socialistas, assegurar a disputa do segundo turno pela esquerda, e a unidade popular
na sustentação do governo a ser eleito em 2002.
(Agosto de 2001)
180
Roberto Amaral
VII
As eleições de 2006 e as massas:
uma emergência frustrada?1
As vagas no arquipélago
Embora todos possamos estar de acordo na afirmação de que
nosso continente é um arquipélago, seja do ponto de vista político,
seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista cultural,
é possível identificar, em sua História recente, certos movimentos
que se propagariam como vagas. É o que sugere a crônica institucional das últimas décadas.
Podemos reduzir essas vagas a três categorias, que denominamos de era das ditaduras, era da redemocratização e era da emergência das massas.
A era das ditaduras militares, em plena e aguda Guerra Fria,
tem seu epicentro no golpe de 1964 que, no Brasil, derrogou o governo constitucional de João Goulart. No mesmo ano, na Bolívia,
o golpe de René Barrientos, destituíra Victor Paz Estensoro. Antes, em 1962, tivéramos, na Argentina, a queda de Arturo Frondizi,
abrindo uma longa saga de golpes militares entremeada por uma
rápida recidiva civil peronista (Campora, Perón, Isabelita).
1 Transcrição revista de Aula Magna de abertura do ano letivo de 2007 dos cursos de
mestado em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizada em
9/4/2007. Publicada originalmente em Comunicação&Política, v. 25, n. 1, p. 9-30.
181
Em 1963, um golpe de Estado destituíra o presidente Arosemena e suspendera a Constituição, no Equador. Em 1972, seria a
vez da deposição de Velasco Ibarra, substituído pelo general Guillermo Rodriguez Lara, por seu turno deposto em 1976.
Em 1968, entra em cena o Peru, com o golpe do general Juan
Carlos Alvarado, que depôs Belaúnde Terry, para ser deposto em
1975 pelo general Francisco Morales Bermúdez.
O ano de 1973 registra o levante militar que decaptaria a experiência de Salvador Allende, no Chile.
Assim, em uma vaga de cerca de dez anos, conhecem a ditadura militar a Argentina, o Uruguai, o Brasil, o Equador, a Bolívia,
o Peru, o Chile. A ditadura Stroessner vinha de longe (1954) e fechava o Cone-Sul.
Também como uma vaga, uma a uma essas ditaduras seriam
derrubadas e substituídas por governos neoliberais, uma outra saga,
a qual, aliás, se instalara no continente com a ditadura Pinochet. Desta
feita, o processo redemocratizante mal consome cinco anos.
No Peru, o fim do ciclo das ditaduras se encerra com a eleição
de Belaúnde Terry, em 1980.
Na Bolívia, em 1982, após uma série de golpes militares, toma
posse Hernán Siles Zuazo.
Em 1983, Raúl Alfonsín é eleito presidente, dando fim à sequência de ditaduras militares argentinas.
No ano seguinte, em 1984, realizam-se eleições no Uruguai, e
é eleito Julio Maria Sanguinetti.
Finalmente, em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral –
montado pela ditadura para garantir a sucessão entre seus delfins
– elege o primeiro presidente civil brasileiro desde o golpe de 1964,
o ex-governador Tancredo Neves, e no dia 15 de março dá posse ao
seu vice José Sarney. É História consabida.
A última vaga seria esta em que vivemos, caracterizada pela
formação de governos de centro-esquerda responsáveis pelo rom-
182
Roberto Amaral
pimento com as regras do Consenso de Washington e o neoliberalismo. Mas o que dela destacamos, e trata-se do essencial para
nossas reflexões, é, em níveis variados de país a país, a notável
preeminência das grandes massas no processo político materializada nos governos de Hugo Chávez, na Venezuela, Kirschner, na
Argentina, Lula, no Brasil, Tabaré Vazquez, no Uruguai, Michele
Bachelet, no Chile, Rafael Corrêa, no Equador, Evo Morales, na
Bolívia e, no Peru, embora não logrando as eleições no segundo
turno, a extraordinária votação de Ollanta Humala.
O processo político nesses países – tendo como pano de
fundo governos neoliberais de caráter democrático sucedendo a
ditaduras militares, e governos populares sucedendo a governos
neoliberais – se separa em dois grupos, se os considerarmos do
ponto de vista da organização partidária. De um lado, os países
do Cone Sul, onde é relativamente forte a organização partidária
(Argentina, Brasil, Uruguai e Chile) e, de outra parte, os demais
países, nos quais a característica mais distintiva é, ou a ausência
de organizações partidárias, ou sua fragilidade (Equador, Bolívia,
Venezuela e Peru).
Respeitadas as peculiaridades históricas e culturais, respeitado o distinto peso das questões étnicas, esses países oferecem como fenômeno comum, no atual processo político,
a emergência das grandes massas, das massas excluídas, das
massas sotopostas, das etnias discriminadas, dos pobres de
uma maneira geral, massas que passam a agir como sujeito,
rompendo com todas as intermediações clássicas, quase sempre nomeando como líder um quadro próprio, o que exemplificamos com as lideranças de Hugo Chávez e do cocaleiro Evo
Morales, e, de certa forma, se considerarmos sua origem e sua
biografia, a ascensão do torneiro-mecânico Luiz Inácio Lula da
Silva. E essa emergência do popular e das massas pobres, inorgânicas, é tanto maior quanto mais fraca é a vida partidária.
A exceção deve-se ao Brasil, onde se associam participação popular e estruturas partidárias nacionais de caráter sólido, o que pode
ser exemplificado por partidos como o PMDB e o PT.
Socialismo e Democracia
183
No Peru, na Bolívia e no Equador afloram as grandes massas indígenas, na Venezuela essas massas e os pobres e miseráveis das grandes
cidades que se identificam na imagem criolla de Chávez. Nenhuma
dessas lideranças vem dos corpos preparados pelas elites.
No Brasil, certamente mais do que no Chile, e provavelmente mais do que na Argentina, assistimos, em 2006, à elevação dos
excluídos, das grandes massas, do ‘povão’, à categoria de sujeito no
processo eleitoral.
O caso brasileiro
A vida político-eleitoral brasileira é servida por algumas verdades ditas inquestionáveis. A primeira delas é a dificuldade de
as esquerdas brasileiras falarem ao seu eleitorado de escolha, os
pobres, as grandes massas excluídas, os excedentes do processo
produtivo, os sobrantes da cidadania, a cuja conquista se dedica,
na convicção de que tem alternativas a oferecer. Nada obstante
essa opção programática, as esquerdas veem – ou viam? –, eleição
após eleição, as grandes massas à mercê do populismo e do assistencialismo, isto é, a serviço eleitoral da direita. Seu discurso, ao
contrário só encontrava apelo nas populações urbanas, nas grandes cidades e nos segmentos da classe média.
Outra verdade da política nacional é uma geografia eleitoral,
que, grosso modo, divide o país em dois hemisférios: de um lado,
as grandes cidades, desenvolvidas e politizadas do Sul-Sudeste e
as capitais; e de outro o Norte-Nordeste, caracterizado pelo atraso, pelo domínio oligárquico, pelo analfabetismo, o desemprego
e a desinformação. No primeiro hemisfério, predomina o voto
progressista; no segundo, o voto conservador. Daí a legislação
sobrerepresentar o eleitorado do Norte-Nordeste, como meio
de assegurar a continuidade conservadora. Isto não é novo. Vem
de longe. Jairo Nicolau identifica essa tendência já no Império.
Bem mais tarde, no Brasil pós Estado Novo, foi o artifício que os
constituintes de 1946 usaram para impedir uma nova hegemonia
Minas-São Paulo: reduziram estrategicamente as bancadas desses
184
Roberto Amaral
Estados.2 No mandarinato militar, seus alquimistas, para anular a
prevista vitória dos candidatos da oposição nas eleições à Câmara
Federal nos grandes centros, tratou de aumentar o peso do voto
dos ‘grotões’, isto é, do Norte e do Nordeste.
Em síntese: não há controvérsia respeitante ao caráter conservador do eleitorado do Norte e Nordeste e dos ‘grotões’ de um
modo geral.
Não por outra razão, nas últimas eleições – 1989, 1994 e 1998
– Collor, Fernando Henrique e José Serra partiam, bem cevados
de votos, dos chamados ‘grotões’, isto é, do eleitorado do interior
do país, enquanto Lula, candidato das esquerdas, contava, como
sua base de propulsão, com o eleitorado urbano, localizado principalmente nas capitais.3 Em outras palavras, podemos afirmar
que Collor, FHC e Serra, representando os mesmos interesses,
conservadores, tinham a mesma base eleitoral, tanto do ponto de
vista espacial, quanto do ponto de vista de classe. Essa geografia eleitoral opunha um Norte-Nordeste oligárquico e atrasado a
um Sul-Sudeste inovador, moderno e mudancista, onde supostamente era mais fácil a receptividade ao discurso da esquerda. Assim, naquelas eleições, a estratégia dos candidatos era conhecida
e não permitia variáveis: os candidatos da direita, hegemônicos
no Brasil arcaico, nos municípios menos urbanizados do NorteNordeste e nos demais pequenos municípios pobres do país onde
se concentram 46% do eleitorado, garantiriam a eleição, a partir
desta base, disputando com a esquerda o voto urbano e das grandes metrópoles do Sul-Sudeste e principais capitais. Contrário
senso, tentando anular esse handicap, o candidato da esquerda
partia dos grandes centros em busca do voto dos ‘grotões’. A vitória seria de quem mais ampliasse no campo adversário, ou, perdia
quem tinha eleitorado mais vulnerável. Ganhou sempre a direita,
com seu eleitorado cativo, protegido pelos ‘coronéis’ e oligarcas.
2 NICOLAU, Jairo. “Parlamento brasileiro nunca respeitou proporcionalidade”. Jornal do
Brasil. Rio de Janeiro, 7/7/1992.
3 “La elección presidencial de 2006 en Brasil”, apud Atlas Electoral Latinoamericano 20052006. La Paz, 2007.
Socialismo e Democracia
185
Em 2002, Lula elegeu-se presidente e o PT conquistou a
maior bancada da Câmara Federal, com 91 deputados: apenas 17
parlamentares nordestinos. No Nordeste, o PFL, o campeão, elegeu 44 deputados, o PMDB 23 e o PSDB 22.
Em 2006, as regiões Norte e Nordeste continuavam mais pobres e as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste eram as mais dinânimas; aquelas apresentavam as maiores desigualdades sociais, e o
maior número de população não branca e de camponeses ocupados na agricultura familiar.4 No Sudeste, os grandes centros financeiros, a economia mais capitalista do país, a maior concentração
de operários e a expectativa do voto trabalhista. No Centro-Oeste,
o agronegócio parecia haver levado o capitalismo para o campo.
No entanto, foi no Norte-Nordeste que Lula obteve seu melhor desempenho. Perderia no Sul, no Centro-Oeste e em São
Paulo. Esfinges da ciência política brasileira: o candidato operário venceu nas regiões mais atrasadas; o candidato conservador,
supostamente filiado à opus dei, venceu nas regiões mais ricas,
mais dinâmicas e mais escolarizadas.
Impossível esconder que houve uma profunda alteração no
comportamento do eleitorado brasileiro. O desafio é explicá-la.
Poder-se-á simplesmente dizer que o candidato Lula compôs com
as oligarquias e delas recebeu a recompensa do voto. O qual, tirado do adversário e adicionado às suas bases tradicionais, garantiram a vitória. Mas poder-se-á, igualmente, dizer que este
fenômeno eleitoral é consequência de um processo de liberação
das massas, que não se enquadra em padrões geográficos, pois é
de índole social, acompanhando as grandes massas pobres onde
se encontrem, e elas se encontram tanto nos ‘grotões’ do Nordeste
quanto nas grandes metrópoles do Sul-Sudeste. Uma de duas: ou
não há mais ‘grotões’, ou os ‘grotões’, com sinal político trocado,
dominam as periferias dos grandes centros. Numa hipótese e em
outra, os ‘grotões’ do Norte e do Nordeste votaram como os ‘grotões’ do Sudeste: em Lula.
4 Idem.
186
Roberto Amaral
As eleições de 2006
O pleito
Se estamos diante de uma tese, podemos desdobrá-la na afirmação de que o povo brasileiro, de certa forma rompendo com os
limites de nossas organizações – mais do que isto, à margem do comando das organizações políticas e político-partidárias –, deu um
passo à frente no processo político. Se preferirem uma redução, diremos: deu um salto de qualidade. Superou os limites partidários e os
comandos das lideranças regionais e logrou afirmar uma posição que
ia para além de, plebiscitariamente, escolher entre a corrupção e seu
combate, entre A e B, ou entre Lula e Alckmin. Estamos afirmando
a presença de uma opção ideológica incidindo sobre questões que a
disputa partidária não ousara colocar para o pleito, como o conflito
entre um Brasil rico e um Brasil paupérrimo. Ambos habitados por
gente e não por indicadores estatísticos. A votação do segundo-turno
de 2006, deste ponto de vista, revela o que, impressionisticamente,
poderíamos chamar de ‘a emergência silenciosa ou não pressentida
das massas’. Não se trata de fenômeno revolucionário, longe, muito
longe disso, mas é fenômeno político de altíssimo significado, porque, entre nós, a simples inclinação mudancista é já relevante. Podese ler, na vontade eleitoral expressa nas urnas, a ruptura com o statu
quo ante, isto é, o rompimento com o neoliberalismo, a retomada da
política, a opção pelas grandes massas excluídas.
Herdeiros da tradição leninista, a que tanto devemos, da qual
deriva a preeminência da organização como ponto de partida para
a ação e o papel (quase exclusivo) organizativo e revolucionário
do proletariado, temos, porém, dificuldade de compreender a
exata dimensão dessa emergência popular, em face de seu caráter
autônomo (no que refere às organizações), espontâneo e quase voluntarista. E, herdeiros do antipopulismo, somos frequentemente
incomodados com a ascensão de lideranças que estabelecem um
contato (diria quase diálogo) direto com as massas, independentemente de formulações ideológicas e da intermediação partidária.
Socialismo e Democracia
187
Deste ponto de vista não podemos hoje mensurar os riscos por
que correm a democracia e o processo político reformista.
Os dois ‘Brasis’
O fato objetivo é que o Brasil profundo, silencioso e pouco
ouvido, toma conhecimento da existência de dois ‘brasis’, estrangeiros entre si, um rico e um pobre, um poderoso e um dominado, e descobre a que porção pertence. Assume essa clivagem, e
diante dela se define. O ‘povão’ passa a ser sujeito, dispensando
mediações. Isso quer dizer que o movimento foi de mão dupla:
houve o apelo do líder carismático, mas houve igualmente a inclinação das grandes massas.
Direita e esquerda, finalmente, convergem. Ambas agora reconhecem a divisão do país. Só que a primeira, por indústria, diz
que essa divisão – uma nova forma de ‘luta de classes’ – é produto
da pregação lulista, um trabalhismo que estaria retornando ao
populismo. Ora, este país sempre esteve cindido como dois meridianos incomunicáveis, no desenho exemplar de ‘casa-grande e
senzala’. O fato novo, o inusitado, está em que os excluídos – classicamente considerados massa de manobra das elites e da classe
média e objeto do populismo – quase que como de repente, sem
fazer-se notar a transição, assumem papel ativo em cenário de
coadjuvante, identificam seus interesses próprios (que não são
os do ‘conjunto’ da sociedade), e, por fim, constroem seu próprio discurso. Rompem com a intermediação populista clássica e
dispensam as intermediações dos meios de comunicação e põem
em xeque o papel dito determinante dos ‘formadores de opinião’.
Assim, penetra de um libreto que sempre o ignorou, o povo se
apresenta em cena, domina o palco onde só eram iluminados os
‘mais iguais’ e, finalmente, atua como sujeito. Decide o destino do
espetáculo. Processo superficial, passageiro? Só a História conhece a resposta. Mas este ‘levante’ tem antecedentes.
Como é sabido, o presidente Lula, no seu primeiro mandato
– depois de 2004, principalmente no final de 2005, mas, de certa
188
Roberto Amaral
forma, até o juízo final do segundo turno de 2006 –, teve sua governança ameaçada e salva. Ameaçada por correligionários chamados de ‘aloprados’, ameaçada por escândalos éticos, reais, ameaçada
pela pressão, legítima, da oposição parlamentar, ameaçada pela
contundência uníssona, uniforme e unânime dos meios de comunicação de massa. Ameaças graves, institucionalmente perigosas,
em face da anemia da base parlamentar do governo – dispersa, acovardada ante a direita parlamentar e a indignação da classe média.
Salvou-a – a governança, portanto seu mandato – o próprio presidente quando, dispensando os serviços de uma retaguarda em pânico, compreendeu, à frente de todos, dos partidos, inânimes, e dos
ideólogos, da esquerda assustada e da direita surpreendida, que a
alternativa salvadora se encontrava na sociedade, no chamamento
ao povo – os ‘menos iguais’ – que o atenderia, na medida em que
se considerasse identificado com seu apelo. Compreendera o presidente – revisitando as raízes de sua formação como líder popular
e sua própria biografia –, que, no campo clássico da correlação de
forças no qual se travava, por escolha dos adversários, a pendência
política, isto é, no campo clássico das elites, da classe média, do
Congresso, da imprensa, ele era o contendor frágil. Esquivandose de porfiar o combate no teatro indicado pelos adversários, tratou de atrai-los para o cenário em que era mais forte: foi buscar
alimento e apoio no contato direto com as grandes massas, onde
identificou os seus ‘iguais’ e por eles foi acolhido. A direita sentiu o
golpe, mas não teve como evitar a tática presidencial; não podendo
aceitar o desafio, procurou outros flancos, supostamente mais vulneráveis. Combate as viagens, as inaugurações, as caminhadas e os
discursos ‘populistas’ do presidente, isto é, tenta desqualificar seu
contato com as grandes massas e a empatia que lograra estabelecer.
Mas, com o discurso de uma ética puramente moralista, só conseguiu que seu apelo encontrasse eco em setores da classe média
e suas adjacências, que já estavam conquistadas, mas que haviam
perdido a capacidade de liderar ou condicionar a opinião dos demais segmentos da sociedade.
O apoio popular – indiferente ao significado das acusações que
pesavam sobre o presidente – impediu o impeachment.
Socialismo e Democracia
189
Antes, outro presidente, igualmente ameaçado, também sem
apoio parlamentar e talqualmente condenado pela grande imprensa, e por igual acusado de corrupção, também tentou o chamamento às massas; mas essas responderam engrossando o coro
do repúdio nacional. Seu mandato foi consumido por um oportuno impeachment. Lula, todavia, encontraria o aplauso, o carinho e
o apoio das grandes massas – pobres, e quanto mais pobres e mais
periféricas, mais solidárias. Dir-se-á que Collor, ao contrário de
Lula, não dispunha de partido nem de massa popular mobilizável.
Mas Vargas dispunha de partido, de base parlamentar e apoio na
massa trabalhista, o que, porém, se revelou insuficiente para impedir o 24 de agosto.
O ‘Brasil profundo’
Antes da tentativa de interpretações explicativas do comportamento social, procuremos relembrar os passos do presidente, ainda
não candidato à reeleição. Quando se decide por romper com a
inércia, simbolizada pelo Olimpo acuado em que se convertera o
Palácio do Planalto, e procurar o contato direto com o povo, o presidente escolhe para iniciar sua peregrinação as regiões mais pobres
do país e nessas regiões as comunidades mais excluídas. Começa
exatamente pelo Nordeste, e fora do Nordeste prefere os ‘nordestes’
espalhados pelo Brasil rico, as periferias das grandes metrópoles.
É este o Brasil que, ouvidos moucos para a cantilena da classe média – que antes levara um presidente ao suicídio e outro à cassação
– vai sustentar, primeiro o presidente, e logo a seguir o candidato.
E foi o Nordeste, no primeiro turno das eleições de 2006, que
se antepôs à avalanche dos votos doados pelo Sul e pelo Sudeste
ao candidato da direita. O fenômeno repetir-se-ia no segundo turno. De novo o Nordeste como protagonista. Dali parte a arrancada eleitoral que asseguraria a Lula, no segundo turno, quase 62%
da votação do país: a maré montante da consagração do candidato
nasce na sucessão de ondas de apoio popular que se estende por
todo o Nordeste e chega ao Norte, com índices de apoio que se
avizinham da unanimidade: Amazonas (86%), Maranhão (84%),
190
Roberto Amaral
Ceará (82%), Pernambuco (78%), Piauí (77%), Paraíba (75%), Pará
e Sergipe 60%. Note-se que, nesses estados – de estrutura rural e
predominantemente atrasada, sob domínio de ‘coronéis’ e caciques
eleitorais, baixamente industrializados, o quadro de realidade deveria ser o mais adverso para as pretensões de um candidato das
esquerdas: estados na sua maioria governados por adversários políticos, classe dominante conservadora, capitalismo débil, controle
dos meios de comunicação pelas elites, dominância eleitoral pelos
partidos de direita. Não houve represa possível para a força das novas correntes. E, invertendo a ordem ‘natural’ da História política
do país, é do Norte, é do longínquo, que nasce a tendência que em
breve iria inundar todo o país, culminando com a votação consagradora do segundo turno de 2006.
E onde Lula perdeu? Em São Paulo, Paraná, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Roraima.
O povo pobre deixara de ser tributário no processo eleitoral.
O brasileiro que no Rio Grande do Sul votou em Lula foi o mesmo
brasileiro que nele votou no interior do Ceará.
Episódio isolado?
Outra questão, é perguntar se esse movimento cairá no vazio,
se essas massas permanecerão desorganizadas. Este desafio não sabemos se as esquerdas brasileiras estão em condições de enfrentar.
O divórcio da classe média e os ‘formadores de opinião’
A esquerda também está por entender seu divórcio com a
classe média.
Enamorados da classe média e saudosistas do proletariado, minguante e cada vez mais atraído pelos seus pleitos corporativos, como
estabilidade no emprego e reposição salarial, percorremos o processo eleitoral sem entender porque, assim de uma hora para outra, essa
classe média – sempre festejada por nós até em seu moralismo udenista que tantas e tantas vezes o petismo atiçou – nos dava as costas.
Enquanto procurávamos entender porque havíamos perdido o quase
Socialismo e Democracia
191
monopólio do moralismo, o povo, à nossa frente, sem apartar-se da
ética, compreendia que a discussão das questões fundamentais que lhe
diziam respeito transitava em outro nicho da política. Compreendeu
que a discussão ética, pertinente, era, todavia, naquela quadra, a cortina de fumaça sob a qual outros intentavam interferir em seu destino;
o que estava em jogo, na verdade, era a continuidade de uma política
social distributivista e compensatória – identificada por essas massas
como a política social do governo Lula – posta sob ameaça pelo discurso da direita. Explicar como o presidente Lula conseguiu estabelecer essa identificação, eis outro desafio. Talvez, porém, seja o desafio
essencial, decifrador desse fenômeno até aqui mal identificado como ‘a
emergência silenciosa das massas’, que tem como uma de suas características o questionamento do real papel dos chamados ‘formadores de
opinião’. Pelo menos nestas últimas eleições.
Estamos diante de dois fenômenos distintos, embora intercomunicantes, sem que necessariamente se possa identificar precedência e consequência. Refiro-me à emergência das massas (tendo como
ponto de referência o apoio ao presidente ameaçado) de par com o
rompimento das mediações na formação da opinião nacional, em
país no qual a opinião publicada é sempre confundida com opinião
pública: o já referido fim do papel indutor dos ‘formadores de opinião’, e, consequentemente, o fim da preeminência do pensamento
das elites e da classe média sobre a sociedade em geral, que fazia
das massas subalternas meras reprodutoras do pensamento da classe
dominante. Na raiz de um e de outro fenômeno identificamos um
terceiro, contemporâneo: a redefinição do papel dos ‘grotões’. Pois
foi nos ‘grotões’ que se operou a reação. Que foi feito desses ‘grotões’
se eles, eleitoralmente, nas eleições presidenciais, se aliaram às forças
progressistas, cujo discurso promete a mudança?
Também esse fenômeno aguarda seus exegetas.
Outra questão – que pode ser mais uma peculiaridade do presidencialismo brasileiro – é a natureza profundamente distinta dos
votos majoritário e proporcional. Este parece ser o voto do compadrio, do interesse, da proximidade. Aquele parece ser o voto cívico.
Por isso, não se encontram, necessariamente. O mesmo eleitor que,
192
Roberto Amaral
na Bahia, sufragava Lula e Jacques Wagner pode muito bem votar
em Antonio Carlos Magalhães Neto para deputado federal.
A vez da ‘coalizão’
São distintas as circunstâncias eleitorais vividas em 2002 e o
quadro da disputa presidencial de 2006. Direi mesmo que o último pleito guarda diferenças quase fundamentais entre o primeiro
e o segundo turnos da eleição. Do fato de os pleitos haverem sido
distintos em seus respectivos significados políticos não resulta, todavia, que o novo governo – este segundo mandato resultante do
embate eleitoral –, será necessariamente distinto do primeiro. Ao
contrário, e em que pese às características políticas diferenciadoras do pleito, poderemos ter como segundo mandato a mera continuidade do primeiro. Nenhuma mudança está automaticamente
assegurada, simplesmente porque o curso do processo político deriva não apenas da vontade dos governantes, mas, sobretudo, de
uma determinante chamada correlação de forças. E no plano da
correlação de forças as correntes ditas mudancistas, dentro do governo, não são hegemônicas, embora seja razoável afirmar que o
pronunciamento eleitoral da sociedade, precisamente no segundo
turno, foi um dictack mudancista.
Mas a sociedade ainda não governa
Concluído o processo eleitoral, porém, parece que com ele se
encerra o papel das grandes massas. Deixam o proscênio e retornam para as coxias, onde se amontoam os figurantes. Entram em
cena os partidos e as grandes lideranças.
É a hora e a vez das negociações de cúpula.
O país precisa da governança. O presidente precisa de tranquilidade para poder governar. A República, eis um consenso, não
suportará, sem riscos para a institucionalidade, a repetição da crise
continuada de 2005 e 2006. A economia precisa de calma e os senhores do mercado reclamam por segurança para seus investimentos. O governo pode conviver com uma imprensa quase hostil, mas
Socialismo e Democracia
193
não pode abrir mão de maioria no Congresso. Precisa negociar
com todas as forças do mosaico político sem se dar ao luxo de proceder a avaliações ideológicas: só assim, com uma ampla maioria,
logrará isolar a oposição e trafegar num céu de brigadeiro, que se
mede em votos disponíveis. Por isso mesmo a coalizão de apoio ao
governo, sua base parlamentar, reúne 11 siglas, uma mistura heterodoxa a qual, na ausência de um fio ideológico-programático
condutor, impossível nas circunstâncias, só pode ser construída
mediante os instrumentos clássicos de que sempre lançou mão o
presidencialismo na constituição de suas maiorias: a distribuição
de fatias de poder, ou, mais precisamente, a troca dessas fatias de
poder no Executivo por voto no Parlamento.
Não discutimos os méritos dessa política – simplesmente registramos o fenômeno –, mas lamentamos que ela seja vista como
sucedâneo à mobilização popular, ou que esta seja reservada tão
só aos momentos de crise. O próprio lançamento do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), e sua sustentação, privilegiam
as negociações exclusivamente parlamentares, quando seu futuro
está a depender de sua adoção pela sociedade, aquela mesma que
salvou a governança em 2005 e elegeu Lula em 2006.
A coalizão, ou, a base parlamentar de apoio, ou simplesmente
‘a base’, precisa de um eixo que impeça a descaracterização do governo e esse, quanto mais identificado ideológica e politicamente,
mais poderá assegurar a sobrevida da maioria momentânea. Para
que a coalizão seja ou venha a ser ampla, e mais ampla do que a
atual parece impossível, carece de um ponto de apoio ideológico,
o qual, se a esquerda dentro do governo não oferecer, será assegurado pelas forças mais conservadoras e habilitadas a esse ofício do
mando, de que é expoente o PMDB, cuja competência ficou mais
uma vez demonstrada nas negociações visando à formação do Ministério do segundo mandato. Por mais ampla, porém, que seja a
coalizão, não haverá alternativa para um governo de mudanças se
sua liderança, o presidente, não introduzir a sociedade brasileira
como interlocutora. O ‘povão’, que falou como agente nas eleições,
foi afastado do processo político. Se uma vez mais – em 2007 repetindo 2003 –, o governo optar pelos entendimentos de gabinete, se
194
Roberto Amaral
uma vez mais apostar na solução dos impasses através das negociações de elite, de cima para baixo, em entendimentos com banqueiros e empresários da grande imprensa, perderá a força do apoio
popular e não realizará qualquer das reformas necessárias, ou pelo
menos não as realizará na medida exigida pelo país.
Confiemos que os partidos saberão sustentar popularmente o
governo Lula e influir na sua direção, ficando à sua esquerda, ao
lutar pelo aprofundamento das mudanças.
O que fazer?
O que fazer? Apoiar a organização popular onde ela exista, e
onde ela não existir, estimular sua emergência, sabendo que não
há como fazê-lo sem enfrentar desconfiança ou mesmo reação do
chamado ‘mercado’, um dos sustentáculos do governo. O futuro
do movimento de esquerda no Brasil – e ai de nós se pensarmos
que nosso futuro termina no segundo mandato do presidente Lula
– está na organização dessas massas que emergiram independentemente de nosso apelo. Seria irresponsável pensar que nosso compromisso histórico se encerra com a aventura de governo de um
partido ou mesmo de uma coalizão de partidos de centro e de esquerda, alguns, mesmo, conservadores. Este governo, para pensarmos minimamente de forma revolucionária, é mero instrumento
de um largo processo de transformação social mal iniciado e ainda
tangendo sua epiderme. Para as elites de sempre não constituirá
problema o retorno ao statu quo ante, ao final do mandato iniciante; ao contrário, elas terão o que comemorar; mas para o grande
povo representará nova fase de sotoposição de seus interesses.
E ainda há muito o que fazer em defesa das massas, mesmo no regime capitalista em que vivemos.
Como impedir, no regime democrático, a reassunção do neoliberalismo, com tudo o que representa de antipovo e antinação?
Mediante a organização social: o fortalecimento dos movimentos
sociais pari passu o fortalecimento das organizações e partidos de
esquerda mediante sua inserção no movimento popular. O elemen-
Socialismo e Democracia
195
to aglutinador dessa organização ainda não é a construção de uma
sociedade socialista – objetivo o qual, todavia, não podemos abandonar –, mas a elaboração coletiva de um projeto unificador.
PAC?
Uma das lamentáveis deficiências do primeiro governo Lula foi
a ausência de um projeto unificador de suas diversas tendências.
O que poderíamos chamar de projeto unificador? Aquele que, ao
dialogar com a sociedade, unificasse todas as forças do governo, se
possível da nação, em torno de metas concretas reunidas em torno
de um projeto único: assegurar o desenvolvimento do país, desenvolvimento que se traduziria como crescimento com distribuição de
renda, o que implica geração e distribuição equânime de riqueza.
Esse projeto pode ser o PAC? Não; mas o PAC pode ser sua
semente.
Ele será, pelo menos, seu referencial. E sua diferença, chamando a sociedade brasileira a definir-se diante da opção atraso
(continuidade) ou crescimento (mudança) como garantia do desenvolvimento. Por que não discutir com a sociedade, que ao votar fez
uma opção política, a escolha do modelo de desenvolvimento que
se deseja para o país? Para lograrmos uma sucessão de esquerda
ao governo Lula precisamos construir nosso diferencial, e esse diferencial é o desenvolvimento, como foi, em outras décadas, ora o
nacionalismo, ora a industrialização. Toda a sociedade – e eis uma
unanimidade da qual só divergem os funcionários do Consenso
de Washington – defende o crescimento; mas isso não é suficiente.
Pois, tradicionalmente, em nosso país, o crescimento só tem servido
para enriquecer as elites e concentrar a renda nacional. O crescimento
que a esquerda defende é aquele associado à ascensão das massas,
pois qualquer política de crescimento deve estar comprometida
com a distribuição de riqueza. Essa luta ainda precisa ser travada
dentro do governo.
196
Roberto Amaral
Um projeto de nação
Para além do PAC, a esquerda brasileira precisa construir
um projeto de nação, um projeto de país. Uma visão de mundo,
de país e sociedade, de Estado, de política, que seja denominador comum da sociedade brasileira e que faça com que, a partir
desses princípios e desses projetos, unifiquemos as bandeiras
da sociedade brasileira na luta social. O presidente Lula pode
comandar esse processo. Mas aí se coloca uma questão para a
esquerda brasileira: como manter o governo de centro-esquerda ou o governo de centro caminhando para a esquerda, numa
correlação de forças em que o poder conservador mantém hegemonia? Como operar as mudanças num quadro de correlação de forças dominado pela classe dirigente, pelas elites, pelo
capital financeiro? Porque – repitamos o óbvio ululante – não
fizemos revolução, nem alteramos a correlação de forças mesmo
na sociedade. Timidamente estamos construindo um governo
reformista. Não nos foi dado mudar as estruturas políticas e
econômicas e sociais do país. Entenda-se que não adianta falar
em mudanças, não adianta falar em reforma política e reforma
tributária, não adianta sequer falar em queda de juros se antes
o governo e o país não estiverem acertados em torno de uma
tese fundamental: a necessidade de construção de um ‘projeto
nacional de desenvolvimento’.
Quando escrevemos desenvolvimento queremos significar
crescimento com distribuição de renda, isto é, um projeto econômico subordinado à opção política.
O fim da economia como entidade em si
Este projeto terá de suceder ao fim da autonomia da administração da economia em face da vontade nacional, à parte da vida política, à parte da vida social, à parte de qualquer projeto de qualidade
de vida, porque tudo se reduz a números, e o povo é apenas uma coluna nas páginas das estatísticas e no noticiário dos jornais. Assim se
corrói a democracia representativa, porque mais importante do que
Socialismo e Democracia
197
nossos congressistas são os dirigentes do Banco Central, a tecnoburocracia do Ministério da Fazenda e das agências reguladoras: todos
à margem da vontade política, todos imunes à soberania popular. Eis
o que nos unifica, e pode manter o povo permanentemente ao lado
do presidente: a construção do país. O resto, ainda que necessário
e indispensável, os entendimentos com a maioria no Congresso, as
negociações com o ‘mercado’, torna-se realmente secundário. Mas
essa é uma visão de esquerda...
Para crescer, o Brasil precisa investir, ou seja, gastar dinheiro
em infraestrutura, logística, rodovias, estrada de ferro, sistemas aéreos, segurança de voo (mais do que nunca!), portos, cabotagem.
Ao mesmo tempo em que tem que fazer isso tudo, tem de pagar os
juros da dívida pública e tem que intervir nesse escândalo que é a
saúde pública brasileira. E todos sabemos que não há possibilidade
de desenvolvimento sem investimentos maciços e constantes em
educação, ciência e tecnologia. E tudo isso só se faz com dinheiro. E de onde vamos tirá-lo? Apenas da queda de juros? Podemos
esperar que a queda de juros reanime a economia e daqui a cinco
anos tenhamos retorno com a reativação da produção? Por que não
tirar do superávit primário? Ninguém consegue explicar. Será que
depois de tantos anos tão ‘bem comportados’ diante das regras do
capital internacional ainda precisamos oferecer garantia que tolhe
nosso crescimento? Isso quando sabemos que nenhuma garantia é
melhor que... o crescimento?
Reformas
Antes de pensar em qualquer reforma, precisamos definir o
desenvolvimentismo como o projeto central do governo e este
caráter desenvolvimentista, que significa geração de emprego, é
a resposta histórica que temos a obrigação de oferecer ao povo
brasileiro. O mais é decorrência, como a reforma tributária,
uma vez que, sem crescimento, tudo pode continuar como está,
pois o marasmo será o mesmo. Sem crescimento, nenhuma reforma tributária facilitará a distribuição de renda, e nela está o
nó górdio da questão. Sem distribuição de renda o crescimento
198
Roberto Amaral
só faz aumentar a pobreza das grandes massas, como ocorreu
nos anos do ‘milagre’.
Antes de discutirmos, por exemplo, reforma política (ou simplesmente eleitoral?), discutamos reforma para quê; discutamos,
antes, que Estado queremos. Definamos: reforma política para tornar as eleições mais transparentes ou para tornar mais efetiva a
representatividade ou para tornar mais democrática a sociedade,
para tornar mais democrático o processo eleitoral ou para tudo
isso. Mas a discussão, pobre, se reduz a tecnicalidades, cláusula
de barreira, financiamento público de campanha, votação em listas abertas ou listas fechadas. Para que isto? A cláusula de barreira
serve a quê? As listas servem a quê? Este é o projeto do sistema, da
grande imprensa e dos setores conservadores. Muito bem, é uma
proposta. E qual é a proposta da esquerda? Uma reforma que radicalize a democracia ao assegurar o direito da participação popular.
Conclusão
Retornemos ao ponto de partida: o pronunciamento eleitoral
de 2006, dando destaque à votação do segundo turno.
A votação obtida por Lula – e não estou revelando qualquer
novidade – emprestou-lhe apoio maior, bem superior, àquele obtido, no mesmo pleito, nas eleições legislativas, pelos partidos de
sua coligação. E mais uma vez – estaremos diante de uma característica do presidencialismo brasileiro? – a votação dada ao presidente não repercute na formação de bancadas, embora as eleições
sejam simultâneas. Por consequência, o presidente, majoritário
no pronunciamento da soberania popular e minoritário no Congresso, do que depende sua estabilidade político-administrativa,
é obrigado a promover negociações, manobras, concessões de
toda ordem, e essas concessões são sempre, necessariamente, à
direita. É o preço que a governança cobra. Mas o presidente teve
no início do primeiro mandato e tem agora no início do segundo,
o apoio massivo da sociedade.
Por que não o utiliza?
Socialismo e Democracia
199
Acaba de perder uma grande oportunidade de mobilização
popular deixando de discutir com a sociedade o conteúdo do PAC,
quando poderia ter utilizado o seu prestígio para construir um movimento nacional desenvolvimentista.
É preciso trazer o povo de volta à boca da cena.
200
Roberto Amaral
VIII
Nação, cultura e comunicação1
O novo século herda de seu antecessor a incerteza e a crise.
E certamente ainda será mais curto que o breve século XX, para
lembrarmos Hobsbawn. A incerteza sobre suas sendas é palmilhada pela crise de algumas instituições que a Humanidade levou séculos construindo, como Estado, soberania, nação e nacionalidade.
Quando os direitos humanos pareciam ser reconhecidos em escala
internacional – e eu lembraria o esforço visando à criação do Tribunal Penal Internacional – entra em decadência a cidadania, com
a crise da política e a crise da democracia e a falência da democracia representativa, donde cidadanias não apenas sem comunidades,
mas cidadanias sem Estado, Estado sem nação – denunciada pela
modernidade como um anacronismo –, e cultura sem civilização.
Examinarei essas questões do prisma da globalização neoliberal e da ‘modernidade’, para dizer que estamos submetidos
a um processo de dominação forâneo. Mas é preciso dizer que
somos Estados, civilizações e nações com histórias próprias de
submissão ao imperialismo, de servidão voluntária e de opressão
de seus nacionais.
Em nosso continente, ao desbaratamento das ditaduras militares, seguiu-se a emergência de estruturas autoritárias permeando
todas as sociedades, e nelas todos os espaços da vida social, para
1 Seminário Cultura, Comunicación y Estado en América Latina: Los desafios de la globalización. Patrocínio Word Association for Christian Communication (London) – Centro
de Estudios Avanzados de la Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Córdoba,
5 a 9/7/2000.
201
nos dizer que o autoritarismo não é superestrutural. Tardiamente aprendemos que o justo pleito democrático não era suficiente
em si, como não eram suficientes em si a reorganização jurídica
de nossos Estados e a retomada do processo eleitoral. Vencidas as
ditaduras militares, sobrevieram regimes autoritários, alguns de
corte populista, e cresceu a exclusão social. Dir-se-á que o povo
vota, já vota e seu voto quase sempre é respeitado e que isso é um
avanço no campo da cidadania. É. Mas o povo vota sabendo que de
seu voto não resultarão transformações políticas ou sociais, nem
mesmo mudanças políticas. Muitas vezes, as histórias recentes do
Brasil e Argentina são exemplares, votando na mudança, o cidadão
elege o conservadorismo.
Nossos Estados são indefensáveis. Criados sob a égide do colonialismo, cresceram a serviço da escravidão e hoje se sustentam na
exclusão. Exclusão econômica, exclusão política, exclusão ética, exclusão social das maiorias esmagadoras de nossas populações que
se vêem fora do Estado, fora da política, fora da ordem jurídica.
Pode-se dizer que em nosso continente, e a propósito o Brasil é um
paradigma, nossos Estados se anteciparam à nação e organizaram o
país segundo os interesses de classe instalados. Aqui tivemos o país
antes do Estado, o Estado antes da nação, a nação antes do povo
e antes de havermos construído uma civilização. Por isso mesmo,
sem uma elite identificada com um projeto nacional, porque fundada na alienação, na reprodução colonial dos interesses da metrópole; assim, fizemos uma monarquia constitucional sem povo, e
sem necessidade de opinião pública fizemos a República. Por isso
mesmo esse Estado, o Estado latino-americano, não se identifica
com a nação, e, Estado de classe, estado da classe dominante, representante de interesses oligárquicos e forâneos, não podia construir
uma nação-comunidade, uma nação-coletivo, uma nação reunida
por valores comuns e destino comum, porque é uma nação dilacerada pela desigualdade, fragmentada socialmente. Assim, ela não é
nem uma coletividade de cidadãos nem fundadora do Estado.
Talvez esse quadro pouco animador esteja na raiz da explicação da forma subserviente e reflexa com a qual nossas elites, sem
exceção, responderam às imposições ideológicas da globalização.
202
Roberto Amaral
Como falar em cidadania em sociedades reflexas, sem projeto
nacional, nas quais predomina a miséria?
Como falar em participação?
Não resultou fácil aos publicistas do Estado moderno determinar o conceito de nação. Na verdade, ele tem suas raízes de conscientização nas lutas contra o privilégio e não houve classe que dele
se valesse com mais empenho e proveito do que a velha bourguesie
francesa, para introduzí-lo como base de uma nova legitimidade,
em presença dos valores da autoridade dinástica, peculiar às monarquias de direito divino, as quais entraram em declínio histórico e já não podiam sustentar-se perante a reformulação social, de
cunho revolucionário, oriunda das ideias propagadas pela Revolução Francesa. A queda do Ancien Regime foi, na verdade, a queda
de um princípio de soberania que, se trasladando do monarca absoluto, se corporificou em um conceito novo: o de nação; a nação
enquanto totalidade e expressão de crenças comuns, de solidariedade, de comunhão de destinos. Ressalto a comunhão de destinos
como sua característica fundamental e a mais distintiva. É o conceito que desemboca teoricamente na fórmula lapidar de Ernest
Renan: “a nação, um plebiscito de todos os dias”.
Se o conceito de nação é algo metafísico, o de nacionalidade é
concreto, porquanto se positiva com mais clareza, energia e determinação nos grupos étnicos que entram diretamente ao teatro das lutas
emancipatórias e desempenham um papel no palco da História.
Vista por esse ângulo, a nacionalidade potencializa a nação e
é indestrutível e imune à violência dissolvente do neoliberalismo e
da globalização.
As transformações do Estado, sob o comando de nossas elites,
em busca de acomodação ao novo estágio da ordem capitalista, podem conduzir à rejeição do clássico modelo nacional, mas jamais à
supressão do sentimento e da consciência de nacionalidade.
A nação pode ser vista como produto dos nacionalismos ao
qual corresponde um modo de produzir sentidos coletivos. Recuperando o papel organizador do Estado, Ernest Gellner, lem-
Socialismo e Democracia
203
bramos que o nacionalismo deita profundas raízes nas exigências
estruturais da sociedade industrial. Sabemos que Stálin,2 repetindo
Otto Bauer,3 e invertendo a concepção original de Marx e Engels,
atribui o advento da nação à necessidade que tinha a indústria de
um mercado nacional, com uma população homogênea e um mercado comum, por isso ela teve lugar primeiro na Europa ocidental.
Mas como se coloca essa mesma questão quando o capitalismo se
internacionaliza, o mercado nacional é substituído pelo mercado
globalizado ou pelo mercado único das grandes potências? Quando as nações são ameaçadas pelo internacionalismo burguês e o
regime da unipotência, e a sociedade industrial é substituída pela
sociedade pós-industrial, informatizada, virtualizada, sob o reino
do capital internacional, especulativo e volátil, viajante?
Nossas nações enfrentam o desafio da globalização, que antes
desestruturou o Estado, desorganizou as economias e estabeleceu o
regime da dependência. Referimo-nos à destruição do Estado, dos
Estados-nacionais, do Estado-nação, e, inevitavelmente, da política.
À transformação do Estado social no Estado mínimo, ou irresponsável, cego para a crise social. Dito de outra forma, queremos assinalar
que a chamada ‘crise do Estado’ é mais propriamente a crise da soberania (portanto, do nacional), posto que, se é impossível a sobrevivência do Estado carente de soberania, é de igual modo inconcebível
a sobrevivência da soberania em face do regime da unipotência.
É esta a nova ordem mundial. Ela representa, ademais do império do consumismo, do lucro e do mercado, a unidimensionalidade de valores; seu antídoto, é a recuperação da nacionalidade,
da nação e dos interesses nacionais. Em face dessa nova ordem,
a defesa do nacional, isto é da nação, é um imperativo de sobrevivência política e econômica, mas sobretudo de sobrevivência
cultural. Sobrevivência que está muito a depender do papel que
no mundo e em nossos países exercem os meios de comunica2 STALIN, I. V. 1913, “Marxism and the National Question’” in I.V. Satlin. Marxism and the
National and Colonial Question [O marxismo e o problema nacional e colonial, 1979].
3 BAUER, Otto 1907 (1924), Die Nationalitätenfrage und die Sozialdemokratie. Cit por
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Jorge Zahar Editor. Rio de
Janeiro. 1988, p. 274.
204
Roberto Amaral
ção de massas. Em nosso continente, os meios de comunicação,
principalmente os eletrônicos, professam a ideologia dominante,
e em nossos países nossos governos não representam os interesses
nacionais. Nossa imprensa é reflexa, segue os padrões informativos e os conteúdos da grande imprensa norte-americana, enquanto nossos governos reproduzem os interesses de Wall Street, do
FMI, do Bird, do BID etc. Mas, é impossível pensar num processo
de democracia representativa sem a mediação dos meios de comunicação de massas…
Não nos resta outra alternativa, aos intelectuais, senão integrar-nos como classe dos assalariados intelectuais, inserida diretamente no processo de produção, classe-massa. Possui ela a massa
crítica a que se referia Lênin, assumindo dessa maneira um papel
hegemônico no processo revolucionário. A disfunção capitalista
está criando os exércitos dos excluídos. Escreve Jacob Gorender,
pensador marxista brasileiro:
(...) Mas a força social dirigente da luta revolucionária não deve
ser formada por excluídos, porém por incluídos no sistema, por
aqueles capazes de realizar sua implosão, atuando nas engrenagens decisivas da produção econômica.4
No processo de alienação de nossas sociedades, de alienação
de nossos interesses, interiorizando a ideologia da globalização,
da “modernidade”, do neoliberalismo, do livre mercado e do consumismo, a ação concertada dos meios de comunicação, construindo o discurso único, dogmático, o monopólio da informação
abundante e insignificante, desintegrada e desintegradora, dispersa, desestruturada e desestruturante, uma visão cada vez mais
despolitizada, incolor e inodora, ‘deshistoticizada’ e ‘deshistoricizante’, instantaneista e descontínua, atomizada e atomizante do
mundo, o mundo midiático, que, virtual, se sobrepõe ao mundo
real, expulso da televisão. Daí a videopolítica e a videodemocracia. A opinião pública é a opinião dos que controlam os grandes
meios de comunicação, verdadeiros partidos, ou, o partido-úni4 GORENDER, Jacob. Marxismo sem utopia. São Paulo: Editora Ática, 1999, p. 232.
Socialismo e Democracia
205
co, portador do discurso ideológico homogeneizado: a inevitabilidade da “globalização”, o “fim” do Estado, o “fim” da História, a
privatização e a desnacionalização como imperativos categóricos,
donde o fim do debate e do contraditório. A política, assim, é o
simulacro da política, a democracia (sem diálogo, e sem representação) nega a democracia, a comunicação não informa.
São esses meios que vão determinar os conceitos de nação, de
cultura, de Estado, de democracia, de cidadania, frustrada quando é justo aos cidadãos aspirar a mais direitos.
O fundamento dessa nova ordem econômica é a liberdade
dos indivíduos. Mas o que se vê é sua destruição: a violência do
desemprego, a precariedade da sobrevivência física, o medo derivado da insegurança: o homem passou a temer o futuro. O reinado do mercado implica o reinado do consumidor, o substituto
comercial (despolitizado) do cidadão: o bem público é o bem privado, a coisa pública é a coisa privada. Ao livre-fluxo de mercadorias (no sentido Norte-Sul) e do dinheiro não corresponde o livre
trânsito de homens.
Nossos povos estão sendo chamados a enfrentar esses desafios aprofundando o processo democrático em nossos países, democratizando nossas sociedades, e retomando o papel social do
Estado. Uma vez mais teremos de encontrar na diversidade de
nossos povos, de nossas culturas e de nossas histórias o amálgama
de unificação de nossos interesses: o desenvolvimento econômico, a reconstrução de nossos países, a radicalidade democrática, o
aprofundamento da participação popular no processo decisório, o
fortalecimento dos movimentos sociais, a legitimação da política.
Todo e qualquer avanço democrático haverá de subtender a
republicanização do país, o que significa incluir os excluidos em
seus direitos civis, econômicos, sociais e políticos. A radicalização democrática implica o reconhecimento de sua instância econômica ao lado da instância política.
A alternativa à globalização pode ser a retomada do nacional,
a alternativa ao poder concentrado pode ser o poder local, a alternativa à alienação deve ser a participação.
206
Roberto Amaral
Talvez a alternativa da política seja a descentralização, a
retomada da política local, a política vicinal, possibilitando o
fortalecimento das raízes populares e culturais, construindo a resistência a partir da base da nacionalidade: a comunidade. Talvez
pudéssemos falar na regionalização da nação. “A região é a nação
do século XXI e o princípio da regionalidade terá nas décadas
vindouras a mesma força expansiva e a mesma intensidade que
teve o princípio das nacionalidades no século XIX. Há-de valer
portanto em dimensão territorial como antídoto de resistência
étnica à dissolução globalizadora do neoliberalismo, cuja conspiração contra as soberanias é patente. Conspiração para subalternizá-las ou desfazê-las”. São palavras do publicista brasileiro
Paulo Bonavides,5 renovando sua tese sobre a necessidade – doravante imperiosa – de introduzir no esquema da Federação brasileira uma quarta instância política de poder autônomo.
Mas a grande alternativa pode e deve ser a integração continental.
Separados e isolados até por imposição da geopolítica colonizadora, nossos países começam a se reconhecer a si mesmos e assim descobrimos que temos mais unidade do que diversidade, mais
aproximações do que divergência e, que, respeitando nossas culturas
e nossos projetos, de cada povo e de cada país, podemos construir
em comum o projeto do desenvolvimento comum, pensando com os
olhos mais no alto, pensando na comunidade sul-americana.
É a retomada do direito de construir nosso próprio destino.
5 In A Constituição aberta. 2. ed. Editora Malheiros, São Paulo, 1998.
Socialismo e Democracia
207
IX
Imprensa e controle da
opinião pública: uma tragédia
da democracia representativa
Introdução
O tema, analisado do ponto de vista da representação popular, requer desdobramento metodológico, a saber: opinião pública, meios de comunicação de massas e sufrágio, donde eleger-se
como questão central a identificação dos condicionantes da representação popular legítima. Tem-se, consensualmente, como
pré-requisito da democracia representativa – e, portanto, do sufrágio –, a existência de uma opinião pública autônoma servida
por meios de comunicação de massas antes de tudo livres, isentos
ou plurideológicos ou não uniformes, ou não unilaterais. Admitese, finalmente, como pressupostos insusbstituíveis, (i) o exercício
do direito à informação e, concomitantemente, (ii) o usufruto da
informação livre, isto é, não contaminada. Outra questão – igualmente estratégica mas alheia às presentes considerações –, é a possibilidade, de logo posta em dúvida, de uma informação livre na
sociedade de massas, mercê do papel inafastável de mediação exercido pelos meios de comunicação. Diz-se que a mediação em si,
isto é, independentemente de manipulação dolosa, é instrumento
de distorção no processo comunicacional, interferindo, portanto,
na formação da opinião pública, comprometendo os fundamentos
da democracia representativa.
209
A questão se coloca nos seguintes termos: é possível o exercício da democracia representativa em sociedade na qual a opinião
pública é objeto de manipulação?
O simples enunciado desses pressupostos declara a tese: as
noções correntes de opinião pública e representação são incompatíveis (i) com a convergência de um sistema de comunicação
de massas unilateral, sob o prisma ideológico, e monopolizado,
seja como propriedade seja como emissor de conteúdos seja pela
audiência que atinge; e (ii) com uma sociedade concentracionista, fundada na exclusão econômica, na exclusão política, social
e cultural. Ou seja, em sociedade na qual a cidadania é exercida segundo os padrões econômicos: assimetricamente. Uma vez
mais a vida imaterial é a produção e reprodução da vida material,
implicando a produção e reprodução das relações econômicas e
sociais globais.
A própria essência do sufrágio popular e, dele derivada, da
representação, e, portanto, da democracia representativa, entra
em crise quando a imprensa – cuja deontologia é orientar a opinião do cidadão – se transforma em objeto e sujeito de monopólio e de mercantilização.
Essas as questões que estudaremos, como se segue.
1. Opinião pública: do Iluminismo ao autoritarismo1
O binômio concentração-exclusão é característica do autoritarismo brasileiro, assim percorrendo, entranhadamente, toda
a História nacional, donde o agrafismo, a desorganização social
e a desinformação, atingindo as grandes massas, subalternizadas,
dominadas, mantidas fora da cidadania.O Estado moderno consolida os padrões da sociedade colonial.
1 Tratamos da temática do autoritarismo em diversos ensaios, particularmente em Intervencionismo e autoritarismo no Brasil. Difel: São Paulo, 1974, e nos artigos “Notas visando à fixação de um conceito de autoritarismo”, in Comunicação&política, v. 1, n. 1, mar.maio/1983, p. 43-52 e “O exílio do povo: alienação da História (segundas notas sobre o
autoritarismo)”, idem, n. 8, p. 119-130.
210
Roberto Amaral
A civilização autoritária logrou construir uma sociedade de
massas e ingressar na modernidade sem, todavia, apartar-se de seus
valores; daí uma sociedade industrial, tecnologicamente avançada,
mas atrasada do ponto de vista social; concentracionista, mas eletrônica, informatizada, apetrechada para criar a opinião pública
como uma manufatura (um automóvel, um pão, um sabonete, um
refrigerante), transformando-a em produto pronto para o consumo,
cuja demanda, por sua vez, estimula. A opinião pública é manipulada de acordo com a demanda estimulada, e essa opinião pública
construída, operada, cinzelada, é servida à sociedade, às instituições,
ao sabor dos interesses dominantes, no Estado, e nos anéis burocráticos2 que cercam o Estado, na sua acepção mais ampla, rompendo as
barreiras dos limites políticos stricto sensu, compreendendo coerção
(ou monopólio da violência) e hegemonia (de um grupo social sobre
a sociedade nacional).3 Assim, a opinião pública não é, seja espontânea, seja racional (postulados do liberalismo), para ser artificial e
irracional. E, acima de tudo, produzível e manipulada.
Se os meios de comunicação de massa não têm o monopólio da formulação ideológica, detêm a hegemonia de sua difusão
e assim se transformam no cenário privilegiado da politic, que se
exerce fora da política, fora dos partidos e mesmo fora da sociedade. Esse fenômeno, que se estende por toda a cadeia de valores
da sociedade, chega mesmo ao proselitismo religioso, construindo
pop stars e fazendo dos canais de televisão espaços-templos de
2 A noção de “anéis burocráticos” está em CARDOSO, Fernando Henrique. In Autoritarismo
e democratização. Paz e Terra: Rio, 1974, p. 208: “(…) círculos de informação e pressão
(portanto, de poder) que se constituem como mecanismo para permitir a articulação entre
setores do Estado (inclusive das forças armadas) e setores das classes sociais”.
3 Evidentemente, estamos citando Gramsci, para quem a concepção de Estado comporta duas
esferas principais: “a sociedade política (que o autor dos Quaderni também chama de ‘Estado
em sentido estrito’ ou de “Estado-coerção”), que é formada pelo conjunto dos mecanismos
através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência
e que se identifica com os aparelhos de coerção sob o controle das burocracias executiva e
policial-militar; e a sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto das organizações
responsáveis pela elaboração e/ou difusão de ideologias, compreendendo o sistema escolar,
as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização
material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa) etc.” COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político (Nova edição ampliada) Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1999, p. 127.
Socialismo e Democracia
211
evengalização. Os valores, a ideologia, manufaturáveis, são mercadorias de consumo. O Evangelho também.
A consciência de que a opinião pública é um produto manufaturado deve ser assumida com todas as consequências, pois implica
a afirmação de que sua matéria-prima, a informação, também é
produto de consumo. Ou seja, a informação, ademais de mediatizada, é consumida segundo os padrões da sociedade de classes que
professa a concentração de renda, isto é, que distribui a riqueza
desigualmente. Daí constituir-se hipótese de difícil demonstração
a possibilidade de opinião pública em país no qual 50% dos mais
pobres consomem 11,6% da renda nacional e os 20% mais ricos
consomem cerca de 63,3% (Ipea). País em que a renda dos 10%
mais ricos da população é sete vezes maior do que a renda dos 40%
mais pobres (Banco Mundial).
Esta a primeira tese: se a informação é uma manufatura, um
bem de consumo, é também um produto consumido desigualmente, como o sabonete, o pão, a casa própria, o salário. Como a saúde,
a educação, a cultura, a política.
Constitui, portanto, mera fantasia liberal a expectativa de
opinião pública em sociedade ágrafa, manipulada por um sistema de comunicação de massas que transita do oligopólio para o
monopólio, fazendo com que interesses particulares e comuns a
uma só classe se imponham como o interesse geral da sociedade.
Esta a segunda tese.
Finalmente: se, na sociedade moderna, mediática, o contato
do cidadão com a realidade depende dos meios de comunicação de
massa, são eles que constróem seus valores e constroem antes de
tudo a política e o discurso político, modificando a política.
1.1. A morte da opinião pública
A opinião pública não existe mais e não pode mais existir,
reduzida que foi a um agregado estatístico de opiniões individuais privadas, dissimulada pelo tratamento jornalístico que insinua distanciamento.
212
Roberto Amaral
As sondagens, com seu aparato científico, são instrumento de
contrafação, pois, mais do que revelar uma opinião, constróem a
opinião; mais do que dar sustentação ao noticiário, são o noticiário. Luis Felipe Miguel – apoiando-se em Bourdieu4 –, destaca a
abordagem acentuadamente mercadológica das sondagens, para
observar que as pesquisas “promovem a adulteração do sentido
de ‘opinião pública’, transformada no simples somatório das opiniões particulares. Os pressupostos, de caráter plebiscitário, são
de que as questões colocadas pelos entrevistadores interessam
igualmente a todos, que todos têm iguais condições de responder
e que todas as opiniões têm o mesmo peso social. Nada disso efetivamente ocorre. Por isso, o sentido original de ‘opinião pública’
é o conjunto das opiniões que vêm a público, isto é, que querem
se fazer ouvir, através de cartas aos jornais, passeatas, abaixo-assinados, greves, pressões sobre parlamentares”.5
A grande vítima das ‘sondagens’, porém, é a vida política.
Elaboradas antes de desencadeados os processos político-eleitorais, as pesquisas condicionam a escolha dos candidatos pelos
partidos e a aceitação dos candidatos pelo eleitorado, transformando o processo eleitoral de processo político em processo
que mede a aceitação ou a rejeição, induzida, dos candidatos
pelo eleitorado. As sondagens, sua divulgação, são o termômetro pelo qual se pautam, inclusive, as contribuições financeiras.
Com isso a imprensa, que promove essas sondagens – e ela mesma possui institutos de pesquisa ou a eles se associa –, no que
alimenta e divulga essas pesquisas, afasta do processo político
as discussões em torno de programas, de plataformas, de partidos ou mesmo em torno dos candidatos, pois a cobertura da
imprensa se reduz à cobertura pura e simples do resultado das
sondagens, que também condicionam a cobertura, pela imprensa, dos candidatos, que têm suas campanhas ‘cobertas’ (tempo
e espaço) segundo a respectiva colocação nas pesquisas de intenção de voto. Em todas as hipóteses, a imprensa manipula a
4 “L’opinion publique n’ existe pas”, in Questions de sociologie, p. 222-235.
5 MIGUEL, Luis Felipe. Mito e discurso político. Imprensa Oficial-Editora da Unicamp.
Campinas, SP. 2000, p. 82.
Socialismo e Democracia
213
vontade eleitoral, exagerando a importância dessas sondagens
como previsão do comportamento eleitoral.
Escolhido o candidato, seu projeto político e eleitoral não é
mais defender uma plataforma política, um programa de governo,
as propostas partidárias, mas tão só conhecer o que as sondagens
dizem que é a opinião do eleitorado, para veiculá-la, para expressála, para reproduzi-la (na pretensão de bem situar-se nas pesquisas,
isto é, na preferência do eleitorado) e assim simplesmente renuncia ao seu papel de liderança e de pioneirismo, de modificação e
transformação. E, de fato, sem talvez ter consciência desse suicídio, o candidato renuncia à política, enquanto o debate público,
suprimido, é substituído pela pasmaceira, a gelatina de programas/
propostas repetidos da direita à esquerda, porque a fonte, agora comum, não é mais a diversidade programática, mas a interpretação
comum da suposta opinião pública exposta nos números das pesquisas. O político deixa de ser líder e se autoexila como prisioneiro sem sursis da parcela mais instável da multidão detectada pelas
sondagens. Buscando agradar à opinião pública das sondagens, as
campanhas renunciam às propostas ideológicas, e, na ausência do
debate ideológico todos se confundem, direita, esquerda e centro.
A imprensa conclui a despolitização, porque não há mais cobertura das campanhas políticas, mas tão só do festival das sondagens,
e cada órgão de imprensa, cada canal de tevê e cada jornal tem a
sua sondagem e sobre sua sondagem particular sobre uma suposta
opinião pública cada jornal, cada tevê, cada rádio pauta a cobertura
de uma campanha eleitoral que deixa de existir. É sobre tal fantasia
que as candidaturas e as campanhas se estruturam.
As ‘sondagens’ e a pauta da imprensa, uma interação, disciplinam o que deve ser a campanha e o candidato que desejar beneficiar-se com um mínimo de espaço e tempo terá de entregar-se
a essa pauta, e assim ficam todos dizendo a mesma coisa, fazendo
programas e aparições similares, programas eleitorais similares
no rádio e na televisão, pois todos perseguem o mesmo padrão
estético e o mesmo padrão político. E todos, ao final da campanha, denunciam a ‘despolitização’ do eleitorado, ou descobrem
que o eleitorado não persegue mais partidos ou ideologias, sem
214
Roberto Amaral
compreenderem que as diferenças político-ideológicas tornaramse irrelevantes para o eleitorado porque, antes, essas diferenças
haviam sucumbido à vitória da dupla sondagens de opinião/marketing eleitoral. Mas, sobretudo, as sondagens, isto é, os índices de
intenção de votos apurado, mesmo antes do início da campanha
eleitoral, definem os atores do processo, pois dele a imprensa exclui, com o oposto de nanicos aqueles que se apresentam ou foram apresentados com baixo apoio eleitoral.
Examinemos um modelo de manipulação. Frequentemente,
o meio levanta uma tese e discorre seguidamente sobre ela, para,
após essa reiteração, promover uma ‘pesquisa de opinião’. Assim,
por exemplo, no início do ano de 2000, após um ciclo de manifestações do MST, a Folha de S. Paulo6 estampou uma série de
reportagens sobre as invasões de prédios públicos pelos militantes da reforma agrária, arguindo irregularidades, ilegalidades e
prejuízos ao patrimônio público, ao cabo das quais seu instituto
de pesquisa, o Data Folha, em campo, indaga do cidadão se ele é
favorável às invasões, para, com base em números e estatísticas e
gráficos e análises, concluir o óbvio, agora apresentado com foros de revelação: ‘a opinião pública paulistana é contra as invasões’. E a seguir, uma outra série de matérias é publicada, já agora
comentando a resposta dos cidadãos à pergunta do Data Folha.
A temática já não é o fato (as invasões), mas a resposta aferida
pela pesquisa do jornal em sequência à reação provocada pelo
noticiário, ou seja, a matéria é a ‘pesquisa’ inventada pelo jornal.
Depois de haver feito o cidadão salivar como o cão pavloviano
diante de um naco de carne, pede-se sua opinião, e sua opinião é
festejada porque inevitavelmente vem confirmar a tese do jornal:
a grande maioria dos paulistanos é contra a invasão de prédios
públicos. E a partir dessa resposta ‘surpreendente’, são desenvolvidas, desdobramento do mesmo tema, outras matérias. Assim, é
dada ao cidadão a ilusão democrática de que existe opinião pública, e que sua opinião individual é levada em conta, porque não
6 A referência ao jornal paulista é puramente aleatória e não procura acentuar qualquer
particularidade. Trata-se, o modelo de conduta em exame, de prática comum a toda a
imprensa brasileira.
Socialismo e Democracia
215
há nada melhor para dominar a opinião do que dominar o ‘real’
sobre o qual se faz com que ela reaja.7
Essa metodologia da manipulação, que induz o leitor a formular como sua a opinião do veículo, e ainda sugere a sensação
de que está ‘opinando’, de que está influenciando o curso dos
acontecimentos (afinal, para quê se apura a ‘opinião pública’?), é
levada aos extremos no jornal, nas emissoras de rádio e na televisão. O mais famoso canal de televisão do Brasil, ao final de seu
programa-revista da noite de domingo8 (campeão de audiência)
convida seus telespectadores a escolher o tema da reportagem da
próxima semana, elegendo, por telefone, uma de três alternativas
que oferece. Ocorre que um dos temas propostos é a temática da
reportagem sensacionalista daquela noite, enquanto os dois outros são temas neutros e frios, ali incluídos para compor a tríade
e induzir a escolha. O telespectador escolhe o tema inevitável (ou
pré-escolhido pela produção) e o programa termina dizendo que
ele escolheu a reportagem da próxima semana: “Você escolheu”.
Essa mesma ‘interação’ é posta em prática para a eleição dos filmes a serem exibidos no correr da semana.
A questão, porém, se coloca para além da manipulação,
porque opinião apurada não significa, necessariamente, mesmo
quando apurada corretamente, opinião pública, porque, como
assinala Bourdieu, “o que existe é a estimulação de respostas a
perguntas que, não necessariamente, brotaram do público, mas
foram formuladas por aqueles que estão interessados em conhecer, para seus próprios fins, a resposta do público sobre determinado assunto”.9 No fundamental, a opinião pública apurada é um
reforço, pois simplesmente apura a eficiência da manipulação pelos meios de comunicação de massa. Não há alternativa: opinião
pública, na sociedade moderna, é a opinião publicada, uma vez
que a pesquisa tem por finalidade sancionar, com ritual científi7 BRUNE, François. “A era da passividade”. Le Monde Diplomatique. Ed. bras. Ano 1, n. 3.
8 Referimo-nos evidentemente, ao “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão.
9 BOURDIEU, Pierre. “A opinião pública não existe” in Michel Thiollent (org.) in Crítica
metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1980.
216
Roberto Amaral
co, a opinião que o meio vem veiculando, fazendo-a, assim, de tão
reiterada, pública.
O círculo vicioso pesquisa-opinião é o centro da política, que,
ao tempo em que persegue a ‘opinião pública’, forma a opinião e
por ela é conduzida. Mas o objeto essencial do meio já não é mais
transmitir informação, é formar opinião, não só opinião pública,
mas opinião comercial: no altar do meio de comunicação reina a
Deusa audiência (circulação)-publicidade, a que tudo o mais está
submetido. O cidadão é apenas um consumidor a seduzir, para o
consumo de ideias ou de objetos materiais. Na base de tudo, cálculos estatísticos, sondagens de opinião, audiência. Assim como a
televisão procura vender os produtos que anuncia, assim também
se formam as novas correntes de opinião e assim o meio intervém
no processo político-estatal de tomada de decisões.
Não mais existe opinião pública por todos os motivos expostos por Bourdieu e por todas as razões por ele não nomeadas,
a saber, o caráter das sociedades de massas, o caráter e o papel
desempenhado pelos meios de comunicação que se transformam
em agentes, atores, construtores e manipuladores da realidade,
cada vez mais ideológica.
E, repitamos, real não é o que ocorre: é o que é narrado e como
é narrado pelos meios de comunicação de massa. A revelação – sua
eleição pelo meio de comunicação – é que torna o fato real.
Desde o Iluminismo, a opinião pública vinha ou vem sendo pensada como a “organização do público sobre algo ou sobre
questões que são públicas”, ou seja, uma opinião pública que é
também uma opinião política ou uma opinião pública que transcendeu ao privado, sem ser o somatório de cada uma e de todas,
resultado do intercâmbio, do conflito, do diálogo, entre opiniões
diferentes. O que, para ser correto, requereria cidadania, ou seja,
cidadãos aptos a ter opinião. Cidadãos aptos a ter opinião são
aqueles que, tendo acesso à mercadoria chamada informação, estão habilitados a processar essa informação, ou seja, a proceder a
um juízo de valor.
Socialismo e Democracia
217
Mas o que é opinião pública hoje, senão um agregado estatístico de opiniões individuais privadas? O que está nas mãos dos
meios de comunicação de massas senão o monopólio da difusão
do conhecimento?
Opinião pública é o que o meio nos diz que é, ao mesmo tempo
em que usa as sondagens para legitimar sua pauta, para legitimar
suas afirmações. Ademais, é muito difícil considerar a possibilidade
de difusão de informações se a mediação é levada a cabo por uma
imprensa que recusa o contraditório e professa a unilateralidade
ideológica. Imprensa que, se historicamente enfrentou e contestou
o poder político, mais e mais se identifica com ele, e essa identificação é tanto mais perfeita quanto se desenvolve o capitalismo e nele
os meios de comunicação são empresas comerciais-industriais, ou
propriedade de grupos econômicos: “Há muito tempo as relações
de poder entre a mídia e o Estado estão de cabeça para baixo, ou
melhor, foram colocadas de cabeça para cima pela celebrada ‘revolução das comunicações’. Os partidos, os governos e os fatos políticos só existem pela via dos meios de comunicação. O poder real há
muito migrou para os cérebros e as mãos dos donos da informação,
que se entregam ao trabalho de ‘orientação’ das massas desarvoradas. O eleitor pode mudar de partido, o espectador de canal, e tudo
continua na mesma. Os amigos dos reis costumam contra-atacar,
argumentando que é ridículo supor uma conspiração entre a mídia, os governos e os negócios. Têm toda a razão: o pior é que não
há mesmo nenhuma maquinação. São apenas consensos produzidos pelo andamento normal dos negócios”.10
Não se diz que falta liberdade (em face do Estado) à imprensa; afirma-se que lhe falta a necessidade de possuí-la, de exercê-la,
pois não lhe interessa o dissídio ideológico, em face do consenso
político-econômico.
Opinião pública exige um mínimo de autonomia, portanto,
um mínimo de informação, ou seja, o acesso à informação limpa,
o que requer juízo crítico e a existência de veículos independentes
10 BELUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. “Democracia na América” in Folha de S. Paulo.
2/9/2000.
218
Roberto Amaral
e isentos, de uma classe média exercendo a cidadania, ao invés de
sociedade de classes. Ao invés de proletários com possibilidade de
acesso à propriedade, temos a divisão da sociedade entre possuidores e excluídos. Firma-se nessas relações de poder, a começar pela
disjuntiva proprietários versus assalariados. Proprietários da informação (porque proprietários de outros bens econômicos) e assalariados (ou seja, não proprietários). Faltam ao cidadão comum os
pressupostos sociais para a igualdade de oportunidades, para que
qualquer um com pertinência e sorte possa conseguir o statu de
proprietário, e com isso as qualificações de um homem privado,
admitido à esfera pública: formação cultural e propriedade (capacidade de adquirir bens, inclusive bens simbólicos).
Por isso mesmo no Brasil o meio de comunicação, a imprensa,
é um partido político.
2. Nossa sociedade autoritária
Qual é, porém, nossa sociedade? Trata-se de sociedade, desde
suas origens, autoritária, segregacionista e excludente, um Estado
privatizado pelos interesses das classes dominantes, um Estado corporativo que processa a exclusão e que exerce a mais elevada concentração de renda do mundo. Sociedade assim organizada desde
suas raízes coloniais produz os excluídos econômicos, os excluídos
sociais e políticos, os sem escola, os sem informação, os sem sem.
Somos sociedade ágrafa, de analfabetos11 e de alfabetizados que são
analfabetos funcionais, porque não leem. A informação disponível é audiovisual. E a informação audiovisual é, por definição, por
essência, por necessidade, uniforme. Uniformizada. Unilateral e,
principalmente, fragmentada. E, assim, não enseja, nem a reflexão,
nem o juízo crítico. Não possibilita a visão de conjunto,12 descon11 O analfabetismo atinge 15,8 milhões de pessoas no Brasil (dados de 1997), o que corresponde
a 14,7% de sua população (Fonte: Almanaque Abril 2000, 26. ed., São Paulo: Abril, 2000).
12 Outra coisa é a aplicação dessas técnicas à campanha eleitoral, basicamente à campanha
eleitoral no rádio e na tevê: a comunicalização da política e a carnavalização do processo
eleitoral, virtualmente extinguindo o debate e substituindo-o pela informação fragmentada através de spots que são tanto mais perfeitos quanto mais se aproximam de comer-
Socialismo e Democracia
219
textualiza, desenraíza, deshistoriciza, autonomiza os fatos, rompe
com o nexo causal, dilacera a realidade, destrói o pensamento político e a possibilidade de opinião.
Na era da televisão, a imagem – que estava presa na imprensa
gráfica e, no rádio, escondida, para ser imaginada –, passa a ser o
fato, a notícia, o acontecimento, a revelação. A percepção da realidade é modificada tanto pela quantidade de informação – uma
sucessão de imagens-informação, uma sequência de imagens-ícones-fotogramas-frames-quadros-dados emitidos em grande velocidade que o cidadão não consegue digerir – quanto pelo tratamento
da imagem, pela trucagem, pelo movimento, pelo enquadramento,
pelos métodos modernos e sofisticados de edição, pela apresentação e pela velocidade da sequência. Por isso, o discurso ideal da
televisão é o videoclip. A imagem não é mais, como no tempo da
imprensa gráfica, uma coadjuvante da notícia, uma peça de convencimento. É agora protagonista absoluta, que sobreleva o som e
o texto. Mas, em regra, mostrando, esconde.
O homo sapiens cede lugar ao homo ocular. Personagem inteiramente dependente das imagens, e, portanto, com muito menos
capacidade de crítica ou reflexão. Informação, assim, passa a ser o
que é ou pode ser visível, ou seja, apenas aquilo que pode ser mostrado rapidamente através de uma imagem, e, necessariamente, de
forma fragmentada.
É a educação para a passividade, que desarma os indivíduos e
compromete a cidadania.
Os meios de comunicação de massas não procedem mais à intermediação entre a sociedade e o Estado. Entre a política e a cultura. Deixam de reportar, para interferir no fato e passam a ser o
fato; não narram, invadem o andamento do fato em narração; não
informam, formam opinião; não noticiam, opinam. São o novo espaço da pólis, com pensamento próprio, com projeto próprio.
A ideologia do consumo, a prima-dona, rege a sociedade mediatizada, porque o consumismo depende da sociedade da comuciais de guaraná ou de cerveja, por exemplo.
220
Roberto Amaral
nicação. E desde que foi ensinado ao telespectador que o mundo
é consumível – e não transformável – as grandes representações
que dele são oferecidas serão selecionadas, condicionadas e dimensionadas como produtos, porque ‘a felicidade é uma soma de
felicidades, e essas pequenas felicidades são, precisamente, as pequenas compras’.13 Na nova era da comunicação, assinalada pela
reunião contemporânea dos avanços tecnológicos da informática
e da comunicação de massas com o desenvolvimento capitalista,
e a concentração-exclusão nos países periféricos, a informação se
reduz a uma simples mercadoria cujo valor varia de acordo com a
relação do binômio oferta e procura.
3. A despolitização da pólis e a atrofia da ágora
Os meios de comunicação de massas reproduzem a sociedade
em que atuam – e que antes ajudaram a moldar – e, por isso, no
Brasil, se caracterizam pela concentração de veículos. A modernização aqui operada nas últimas décadas é servidora desse modelo
concentracionista: nela, as mudanças se fizeram para que não ocorressem mudanças políticas.
Quando dizemos que reproduzem a sociedade, não estamos
dizendo que atuam passivamente, pois, entre nós, os meios de
comunicação de massa são agentes políticos, interferem na ordem política, têm voz ativa no processo eleitoral, tomam partido
e são um partido. Servem à manutenção do statu quo. Porque há
coerência entre os interesses instalados no Estado e os interesses representados pelos meios. Neste sentido, eles não são meros
reprodutores passivos da sociedade, mas, principalmente, defendem este modelo de sociedade.
O processo de concentração/exclusão – que da economia transborda para a política, nela atingindo os meios de comunicação de
massas – tem fundamentos ideológicos e está na lógica de um projeto
refinado de dominação centro-periferia. Mas não é tudo. A concen13 BRUNE, François. Cit.
Socialismo e Democracia
221
tração é já um imperativo da essência do próprio desenvolvimento
capitalista e do caráter da apropriação/acumulação condicionante/
condicionada pela globalização/monopolização, que anula tanto a
(‘livre’) concorrência quanto o pluralismo ideológico. Esse mesmo
processo é, por seu turno, estimulado pelo desenvolvimento tecnológico, caracterizado, também ele, pela concentração e alto emprego de
capital, num círculo permanente e crescente de substituição de mão
de obra por novas tecnologias – a informática e a robótica –, e a busca
de mão de obra mais barata, o que leva à sobre-exploração dos assalariados dos países periféricos, sobre-exploração facilitada pela ação
das elites locais, que, em contrapartida à carência de capital, oferecem
às multinacionais, como atrativo compensatório aos seus investimentos, os baixos salários que impõem aos seus trabalhadores.
Dessa conjunção deriva uma apropriação assimétrica dos bens
econômicos e, daí, culturais e políticos. O esvaziamento da política e do Estado se dá tanto no âmbito interno/nacional, quanto
no âmbito internacional, na relação política nacional/política internacional, Estado periférico/Estado central. Donde, nos planos
nacionais internos e internacional, uma economia subalternizada,
uma cultura subalternizada, uma informação subalternizada e uma
política (cidadania) subalternizada.
Exatamente quando o acesso a procedimentos simbólicos (e
informação) sofisticados é (seria) um imperativo atual para trabalhar e consumir, a distonia material/econômica, cultural e política
entre e intraclasses, intrapaíses, sociedades e nações é reforçada
pelo controle metropolitano das novas tecnologias,14 alienando as
sociedades nacionais do processo produtivo, no primeiro plano,
e, a seguir, do consumo, de bens materiais, de bens políticos e do
exercício da cidadania. Este é desviado da pólis para a sociedade
civil, onde as formas de integração se operam menos por princípios
14 Capítulo à parte, exigindo ensaio autônomo, é a imposição, pelos Estados centrais ao
mundo periférico, de leis de patentes assecuratórias de seu controle sobre tecnologia,
aprofundando, ainda mais, o domínio Norte-Sul. Ver, a propósito, “Saber e progresso:
patentes e dominação” in HOUAISS, Antônio; AMARAL, Roberto. A modernidade no
Brasil: conciliação ou ruptura? Rio de Janeiro: Vozes. 1995.
222
Roberto Amaral
ou direitos da cidadania e mais pela inserção, frágil e periférica,
desnivelada e desigual no consumo.
As novas formas de organização social têm como substrato e
projeto o esgotamento da política.
Como “crise da política”, no geral, tem-se identificado o esvaziamento da vida pública e da vida política, mediante o gradual
processo de privatização do público e do Estado. É a outra face da
falência das instituições clássicas, quando organismos extraestatais
– o grande empresariado, as grandes corporações, as multinacionais,
os conglomerados dos meios de comunicação de massas, os bancos e
as agências internacionais, os FMIs, os BIDs etc. – passam a exercer
funções públicas, desempenhando, sem limites de fronteiras, papéis
antes reservados ao Estado e à política, ocupando mesmo o papel de
agentes das relações internacionais. Assim, uma das características
das velhas e modernas democracias representativas, fundadas nominalmente na soberania do voto popular, passa a ser o governo de
instituições constituídas à margem do sufrágio...
É nesse quadro que surge a ‘nova’ fase da organização da sociedade civil15 (“civil”, aí, em oposição à “política”), primeiro, mediante
a mobilização de moradores em torno de suas reivindicações básicas, e, segundo, mediante a reorganização sindical possível (de um
sindicalismo crescentemente econômico e não político, defensivo
e com muito pouca possibilidade de tomar a iniciativa da ação)
e, principalmente, através das chamadas associações representativas de classe e interesses etc. Sua última e mais importante manifestação, na América Latina, opera mediante as chamadas ONGs,
organizações não governamentais, sociedades civis prestadoras de
serviços, e de crescente intervenção política. Em todas as hipóteses
havia e há – e é disto que queremos tratar – o sentido de superar as
mediações, quaisquer, entre a sociedade (a cidadania, digamos) e o
Estado, stricto sensu, abolindo, no primeiro plano, a mediação dos
partidos políticos (para o que teoricamente eles se destinam), e, no
15 Aqui empregada no sentido corrente, de comunidade, organizações leigas, organizações
não governamentais, associações profissionais e de caráter corporativo, associações estudantis, sindicais e gremiais em geral.
Socialismo e Democracia
223
segundo momento, superando a própria mediação da representação (mandatária) popular.
Poder-se-ia afirmar que, em face da falência da democracia
representativa, estamos observando o processo de sua superação
mediante a crescente emergência e participação da sociedade civil.
Mas o que se vê é a mobilização da ‘sociedade civil’ pelos meios de
comunicação de massa.
Assim, a esses novos atores de uma “nova” política (sem “política” e sem partidos) tem cabido a direção dos movimentos populares, das mobilizações coletivas e de massas, resguardando-se
aos partidos políticos ou o papel puramente referendador (ou de
legitimação institucional) ou as funções de retaguarda das ações.
No mais das vezes é pedido aos partidos que se conservem alheios
para “não estreitar o movimento”. Ora, o que se deveria cobrar
desses partidos era justamente resgatar o espaço da política, sem
o que não há nem democracia, nem representação popular, nem
politização da sociedade. Mas a crise dos partidos é apenas uma
das manifestações da crise maior, da democracia representativa.
O papel essencial dos partidos é, desta forma, frequentemente
transferido para outras instituições, e a mobilização popular passa
a ser uma dependência do monopólio da comunicação de massas,
que intente estabelecer, autonomamente, isto é, a partir de seus
próprios interesses, a pauta da sociedade.
Os meios de comunicação de massas, ditando a agenda da política, não apenas se revelam independentes das demandas e necessidades da sociedade: no mais das vezes, ditam essas demandas e
criam essas necessidades.
Alimentado pelos efeitos combinados da desregulamentação
e da privatização com o desenvolvimento e proliferação de novas
tecnologias, foi acelerado em todo o mundo – principalmente a
partir dos anos 80 – o processo de mundialização da comunicação, que também é servidor do neoliberalismo e da globalização.
E na medida em que mais se transnacionalizam e se globalizam,
mais se livram de qualquer controle das sociedades sobre as quais
224
Roberto Amaral
atuam e livres se encontram diante da inexistência de uma regulamentação externa eficaz, produto da fragilidade do Estado-nação
e da decadência da soberania clássica, acentuados pela globalização neoliberal que minimiza a capacidade regulatória dos Estados.
Desregulamentação e privatização caminham de mãos dadas, e
juntas também significam a vitória da comunicação comercial globalizada, o que de resto importa o fim do interesse público, social
e nacional. A audiência e, por seu intermédio, a receita publicitária e o lucro, são os deuses que reinam no altar da nova religião
comunicacional. Mesmo quando o Estado nacional preserva seu
poder regulamentar, seus efeitos se revelam secundários, em face
da mundialização da comunicação, via transmissão por satélite, via
tevê por assinatura, via rede mundial de computadores.
4. Tecnologia e exclusão
A primeira característica do sistema brasileiro é a concentração, tanto de meios quanto de empresas. O sistema de televisão
aberta (UHF/UHF) é controlado (ideológica e economicamente)
por três redes nacionais, uma das quais, o maior conglomerado de
comunicação do país e da América Latina, e um dos quatro maiores do mundo, atua em todos os campos da indústria cultural.
A mesma concentração no plano da televisão (tanto aberta quanto por assinatura) se repete relativamente às emissoras de rádio e
à imprensa gráfica. A televisão por assinatura está hegemonizada pela NET das Organizações Globo. Este sistema de exploração reflete o processo nacional de concentração acentuado pelo
neoliberalismo, a saber, a concentração política (a concentração
dos poderes na União em prejuízo dos estados e municípios; no
Executivo em prejuízo dos demais poderes), a concentração econômica (regional e oligopolística, via conglomerados) e a concentração de renda per capita (a maior do mundo) e intraregional,
construindo, todas, a concentração da informação, do conhecimento, da cultura, e, finalmente, da cidadania. Cada vez mais
aumenta o número dos que não sabem e diminui o número dos
que sabem mais.
Socialismo e Democracia
225
O sistema de comunicação social brasileiro, integrado coerentemente na estrutura político-social autoritária, apresenta as seguintes características:
•• caráter autoritário, definido pela existência de estruturas e práticas de natureza antidemocrática;
•• c aráter excludente, revelado pela desigual distribuição de mensagens, privilegiando-se minorias em detrimento de grandes
camadas da população;
•• tendência à concentração crescente da propriedade e de estruturas de produção e de transmissão em pequenos grupos e nas
regiões mais adiantadas;
•• acentuada dependência externa em termos de equipamentos,
processos tecnológicos e mensagens culturais (notícias, filmes,
séries, programas de tevê, música popular etc.);
•• excessivo peso do sistema comercial de comunicação social;
•• ausência de participação do profissional e do público (da sociedade) nas estruturas que definem a orientação para o sistema
de comunicação social;
•• obsolescência da legislação e de outros instrumentos de ação
política e administrativa.16
Denominamos esse processo concentracionista de macrocefalia17, querendo significar o modelo segundo o qual pequeno
número de empresas, três ou quatro (dentre elas um só grupo con16 Cf. AMARAL, Roberto (Coordenador). Proposta de uma política nacional de comunicação para o Brasil. Centre de Recherches pour le Développement Internacional-CRDI/
Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos-Cebela in Comunição & Política. Rio
de Janeiro, n. 9, p. 1-191.
17 Este conceito desenvolvo em diversos artigos e especialmente em ‘Macrocefalia da comunicação de massa no Brasil’. Comunicação&política. Rio de Janeiro, v. 3 (1-4); p. 5281.jan/dez. 1985
226
Roberto Amaral
trola mais de 60% da audiência de rádio e tevê e outro tanto de
circulação de veículos gráficos), dominando o mercado, domina
a audiência, a informação, os padrões e valores comunicacionais,
e impõe seus valores e seus padrões a todos os demais veículos e
meios, ainda quando integrantes de outros grupos econômicos,
independentemente da região na qual atuem e, assim, pela via do
mercado, a televisão é una, o rádio é uno e a imprensa gráfica é una.
Uma derivação da macrocefalia é o monopólio em cruz, com
o que estamos designando o processo mediante o qual o mesmo
sistema de comunicação, já macrocefálico, atuando em todos os
campos da indústria cultural, o rádio e a imprensa gráfica (jornais,
revistas, livros, fascículos etc.), a indústria fonográfica, a indústria de vídeo, a indústria cinematográfica, de shows, a produção de
eventos etc., verticaliza sua própria criação, produção, comercialização e distribuição, inviabilizando o desenvolvimento de uma
indústria e produção nacional independentes.
O mesmo sistema nacional (modelo: Organizações Globo)
que, nacionalmente, monopoliza a comunicação e a informação,
liderando as emissões de televisão e rádio, liderando o jornalismo impresso (a maior rede nacional de televisão e rádio é também proprietária dos dois maiores jornais do país e de uma das
três maiores revistas semanais), se reproduz, tal qual, em cada
Estado, como um subsistema, que, à imagem e semelhança do
sistema central, controla, à sua vez, a televisão local, a radiofonia
local, a imprensa gráfica local (em cada estado, a liderança da
televisão regional é ocupada pelo canal reprodutor do sinal da
rede Globo; a este canal, propriedade do grupo ou de grupo a
ele associado, está sempre ligado um jornal, sempre o de maior
circulação, e o jornal de maior circulação local – e não há mais
de dois periódicos dignos deste nome por estado – é sempre ligado a um canal de televisão, sempre o canal reprodutor do sinal da rede Globo). É o que denominamos de dominação fractal,
pela qual o sistema local repete o modelo de dominação nacional,
ou, dito por outros meios, o sistema central, macrocefálico, se
repete, miniaturizado, em cada estado, em cada cidade, fractalmente, incontrolavelmente.
Socialismo e Democracia
227
Neste quadro, é politicamente de importância secundária a
distribuição de canais regionais de rádio ou de televisão com políticos de segunda classe, pois, esses canais, meros repetidores, serão
sempre reprodutores dos conteúdos das grandes redes.
O fenômeno da concentração, todavia, é mundial, como mundial é o modelo capitalista.
Apenas nove empresas dominam a comunicação no mundo;
50% da receita dessas grandes corporações decorrem de operações fora de suas respectivas sedes.18 Menos de cinquenta empresas são responsáveis pela imensa maioria da produção mundial de
filmes e de programas de tevê, além de serem as donas de canais
de transmissão por cabo e de sistemas de cabo e satélite, publicação de livros, revistas e do mercado fonográfico.19 Já no início dos
anos 80, um terço das horas de transmissão de televisão em todo
o mundo era preenchido com programação importada, a maioria
norte-americana.20
Se, na era da informação, os meios de comunicação de massas conhecem a mais significativa expansão econômica de sua
história (embora, e talvez consequentemente, decaiam o número de jornais e as tiragens dos periódicos, em todo o mundo),
cresce, planetariamente, a concentração, seja dos meios, seja das
empresas, dos grupos econômicos controladores da informação
e dos meios de comunicação de massa. Há a concentração internacional em dois ou três canais, há a concentração geográfica,
em canais norte-americanos, e há a concentração em cada país.21
18 McCHESNEY, R. W. ‘The global media giants: the nine firms that dominate the World’.
Extra! New York, N. Y., v. 10. n. 6, 1997, p. 12 e 12-13 apud BIERNAZKI, Willians E., “Globalização da comunicação”, in Comunicação & educação, Ano VII, set.-dez./2000, p. 49.
19 Idem.
20 GERSHON, R.A. The transational media corporation: Global messages and free market
competition. Mahwah, N. J.: Lawrence Erlbaum Associates, 1997, apud BIERNAZKI,
Willians E., cit. p. 55. SINCLAIR, JACK e CUNNIGHAM (eds). New patterrns in global
television: Peripheral vision. Oxford: Oxford University Press, 1999, trabalham sobre o
papel da televisão influenciando mudanças e mudando países e povos.
21 Recentemente, nos Estados Unidos se fundiram os grupos (televisão) ABC e Disney, a CBS
com a Westinghouse, a NBC com a General Electric, a CNN com a Time-Warner. Por sua
vez o portal American On Line se fundiu com a Warner (que também edita a revista For-
228
Roberto Amaral
E há, finalmente, a concentração nas fontes internacionais de notícias e de cultura.
É a versão econômico-comunicacional da nova ordem econômico-política internacional.
No modelo neoliberal – que compreende a globalização e a crise
do Estado-nação – verifica-se a superposição, em cada espaço nacional, de dois sistemas de comunicação: o nacional e o estrangeiro ou
transnacional, ou internacional, cujo símbolo é indiscutivelmente a
CNN, a mais importante rede mundial de rádio e televisão.22 Os Estados periféricos, ademais de abrirem suas fronteiras ao fluxo internacional de informação, alinham suas práticas internas ao modelo
neoliberal, vale dizer, transformam seus próprios sistemas em aparelhos reprodutores do modelo central, norte-americano, cujos valores, padrões e interesses, os interesses tutelados pelo Departamento
de Estado, passam a reproduzir, sem consideração com os interesses
culturais, éticos e políticos nacionais. Nossa visão de mundo, nossos
valores, os valores veiculados nos países periféricos, passam a ser
os valores dos canais-matriz. Assim, nos definimos sobre a paz e a
guerra, e assim nos definimos sobre nós próprios.
No Brasil, a presença da televisão mundial, a CNN é o paradigma, opera através (i) do acesso direto aos seus canais (cabo) em
espanhol e inglês; (ii) pelo fornecimento de imagem aos canais natune), numa operação declarada de 138 bilhões de dólares. Da união da maior provedora
de serviços da internet com a principal empresa de comunicação pode resultar também o
monopólio mundial do mercado de venda de músicas on line. Nos Estados Unidos representa ameaça de esmagamento das concorrentes das linhas de cabo do complexo AOL/
Time-Warner-Bros. (O Globo, 23/9/2000, p. 32). No mundo da internet a Microsoft tem o
monopólio virtual dos softweres. Presentemente, a Comissão Econômica da União Europeia discute a proposta de joint venture de US$ 20 bilhões entre as divisões de música da
EMI Group PLC e da Time Warner Inc. Concretizada, o mercado mundial estaria reduzido
a quatro grandes gravadoras: EMI-Warner, Universal Music (da Seagram), Sony music (da
Sony Corp.) e BMG (da Bertelsman AG). The Wall Street Journal Americas in O Estado de
Minas, 5/10/2000, p. 16. A Sony, faz anos, adquiriu a Columbia Pictures e a CBS Records. A
Hachette, francesa, atua no mercado norte-americano.
22 Cf. WINSECK, D. “Gulf War in the Global Village: CNN, Democracy, and the Information Age” p. 60-74 citado por DEMERS, François, ‘Crisis del Estado nación y comunicación politica interna’ in MOUCHON, Jean et al Comunicación y política. Gedisa
Editorial: Barcelona, 1998, p. 297.
Socialismo e Democracia
229
cionais que, em decorrência, em seus noticiários internacionais, se
transformam em repetidores do canal norte-americano, reproduzindo, assim, nacionalmente, a visão de mundo do canal internacional; e (iii) mediante a assimilação de seus padrões de produção,
formais, estéticos e ideológicos.
O fluxo informativo, dominante, Norte-Sul, centro-periferia,
não é, todavia, fenômeno recente, e vem sendo dissecado desde
os estudos (anos 70) da Comissão Mac Bride (Unesco), e, deles
resultantes, pela desiludida luta dos países do Terceiro Mundo visando à construção de uma Nova Ordem Mundial da Informação
(Nomic), pois uma das formas de controle da imprensa nacional é
o controle das fontes da informação, as agências noticiosas internacionais, com sede nos Estados Unidos,23 na França24 e na Inglaterra.25 É pelos olhos dessas agências e da CNN que o noticiário de
todo o mundo vê o mundo e a Humanidade se vê a si mesma.
A promoção do capitalismo financeiro é o objetivo central do
modelo anglo-americano de informação – baseado no “livre”-fluxo
da informação (matizado como vimos) e na compressão das culturas nacionais – e coloca as redes de informação internacional entre
os vetores que traçam esse modelo de recolonização.26 Nesse processo de dominação desempenha papel fundamental a ideologia de
um mundo livre das soberanias estatais, porque o que se convencionou chamar de ideologia do neoliberalismo tem por principal
adversário o Estado-nação naquilo que ele pode representar como
espaço de resistência da cultura nacional.27 O modelo econômico –
23 Associated Press (AP) e United Press International (UPI).
24 Agence France Presse (AFP).
25 Reuters.
26 ALBERT, M. Capitalisme contre capitalisme. Paris. Editions Seuil.1991.
27 Demers comenta a contradição entre os interesses nacionais e os das grandes empresas
supranacionais, entre o espaço aberto dos países dependentes e a introjeção dos interesses
dos países dominantes. Escreve: “Los objetivos nacionales que siguen [os Estados], por
exemplo em matéria de idioma y cultura, entran aí, salvo en el caso de los países dominantes, en contradicción con las tecnologías supranacionales y los mercados globales, y por lo
tanto con los intereses de las grandes corporaciones. Por otra parte, a lo largo de las últimas
décadas las redes de comunicación internacional de estas grandes empresas han estado
realizando un trabajo de zapa constante de las fronteras nacionales” (Op. cit. p. 302).
230
Roberto Amaral
a concentração e a exclusão como resultados da liberdade de mercado e da globalização – transborda para a comunicação e para a
política, desde os meios clássicos – jornais gráficos e televisão aberta –, aos meios “alternativos” – a televisão por assinatura, paga, por
exemplo, e as redes fechadas.
No Brasil, existem, hoje, 32 milhões de residências com aparelhos de televisão,28 ou, noutros termos, 87% dos domicílios possuem um ou mais aparelhos.29 A audiência nacional é estimada em
100 milhões de espectadores. São números da televisão “aberta”.
Em contrapartida, apenas 3%, ou 2,7 milhões,30 têm tevê paga seja
MMDS (10%), satélite (32%) seja cabo (58%), que chega a apenas
7% dos lares brasileiros.31 Ora, isso não pode configurar surpresa,
se considerarmos que a adesão ao sistema de tevê por assinatura
custa cerca de 94 dólares e sua mensalidade 39 dólares, numa democracia liberal cujo salário mínimo nacional, recentemente reajustado, é inferior a 80 dólares, o menor do Mercosul e um dos
menores do mundo... Eis porque 97% dos usuários dessa televisão
“alternativa” estão entre os 1% mais ricos, 42% têm renda superior
a 5.600 dólares, isto é, quase 67 vezes o salário mínimo.32
A informação gradualmente se transfere dos canais abertos
para os canais de televisão por assinatura paga, oferecendo à minoria que a ela pode ter acesso a informação abundante e refinada
– negada ao telespectador tradicional que se conformará com a ‘antiga’ televisão aberta –, que vai desde a possibilidade de ter acesso
a um universo de 151 canais,33 até mesmo ao noticiário internacional, em inglês (CNN e BBC), francês, alemão, italiano, japonês,
espanhol etc. Mas não só ela. Se quiser, o telespectador brasileiro
disporá ainda de outros canais, embora não tenha aumentado seu
28 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
29 Fonte: Almanaque Abril, ed. Cit.
30 Idem.
31 Cf. FSP, 15/10/2000, suplemento TVFolha, p. 6. Segundo a mesma fonte, reportando-se
à pesquisa da empresa PTS – Pay-TV Survey, o Brasil possuiria 3.164.853 assinantes.
32 Cf. “Grupo Abril inaugura TV digital” in Jornal do Brasil. Ed. 21/6/1996, p. 19 e “Pesquisa
traça perfil de quem assiste à NET”. O Globo. Idem. p. 25.
33 Fonte: Direct TV.
Socialismo e Democracia
231
leque de opções, pois, trocando de canal, não terá mudado de conteúdo. Senão, vejamos. Se for assinante da NET, por exemplo, poderá
preferir o canal MTV (Music Television – videoclips americanos) ou
o Deutsche Welle (programas jornalísticos e variedades em alemão,
inglês e espanhol) ou o TV5 (canal público, mantido por consórcio
constituído pelos governos da França, Canadá, Bélgica e Suíça; programas jornalísticos, culturais e filmes; em francês), ou o Cartoon
Network (desenhos animados norte-americanos) ou o Fox Kids (seriados infantis e videoclips norte-americanos da Fox…) ou o Nikelodeon (desenhos animados e programas infantis) ou o BBC World
(notícias e comentários em inglês) ou o MGM (filmes e seriados da
MGM) ou o RAI (italiano) ou o Animal Planet ou o GNT (documentários, entrevistas) ou o Multishow ou o People+Arts ou o AXN
(filmes e esportes radicais) ou o USA (filmes norte-americanos) ou o
TNT (filmes e esportes) ou o Warner (filmes e desenhos da Warner
Bros.) ou o Discovery Channel ou o The Superstation (shows e programas jornalísticos) ou o Fox (filmes, desenhos adultos, da Fox) ou
o Bloomberg Television (indicadores econômicos em inglês e português) ou o ESPN (rede americana de esportes) ou o TVE (televisão
espanhola) ou um dos cinco Telecines (filmes). Pode ainda clicar nos
canais da Playboy ou do SexyHot (agora também disponível na internet) e assistir filmes eróticos. Para que não se diga que ao público
brasileiro não se oferece qualquer alternativa de uma programação
ligada à sua cultura, uma vez que mudando de canal não muda de
programação, pois não há variação no bombardeio ideológico, cabe
assinalar a existência também de canais nacionais na rede por assinatura, como a Rede Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial), o Canal Rural, a Globo News (uma mixagem da programação aberta da Rede Globo), o Vida (idem) o canal Futura (canal
educativo da Rede Globo) e o Canal Brasil (filmes nacionais, videoclips e reportagens).34 Há, ainda, os canais da Câmara dos Deputados, do STF e do Senado Federal.
Mas o telespectador brasileiro pode optar pela TVA. Nesta hipótese, a que canais teria acesso? CNN International (inglês), Car34 Cf. Guia de Programação Net. Ano VII, n. 8, out./2000.
232
Roberto Amaral
toon Network, E! Entertainment Television, Discovery Kids, Fox,
Fox Kids, Nikelodeon, People+art, TNT (todos esses transmitidos
ao vivo, via satélite, de seus países), RTPi (telejornal cultural europeu), AXN, ESPN international, ESPN Brasil,35 Eurochannel, F&A,
HBO/HB2 (filmes), Sony (filmes) e Warner Bros (filmes).
O assinante da TVA teve à sua escolha, no mês de outubro
de 2000, nada menos que 800 filmes. Eram 614 películas norteamericanas, 63 inglesas, 43 francesas, 26 italianas, 15 espanholas,
nove australianas, oito canadenses, seis alemãs, cinco suíças, duas
dinamarquesas, duas argentinas, uma polonesa, uma portuguesa, uma russa, uma chinesa, uma coreana, uma irlandesa e, finalmente, uma brasileira.36 A exposição é puramente estatística, e o
período escolhido por sorteio. Não estamos discutindo o conteúdo das películas.
De novo a exclusão; o continente, que já havia construído os
cidadãos de primeira, segunda e terceira classes, constrói agora telespectadores de primeira, de segunda e terceira... classes... Mas todos desinformados, ou ilusoriamente informados. Pois, crescendo
a possibilidade de troca de canais, não cresce a possibilidade de
acesso a conteúdos diferenciados. Mas fica o sonho de um contato
mais próximo com o resto do mundo.37
Não é distinto no plano da rede mundial de computadores.
Se um extraterrestre desembarcasse hoje em qualquer país da
América Latina e fosse conhecer esse país e o planeta pelas vias da
internet, teria diante de si um mundo anglófono, ocidentalizado,
branco e consumista. Ora, a grande promessa de democratização
da informação é hoje – e por quanto tempo ainda? – um instrumento de afirmação de uma nação, de uma cultura, de uma língua,
forâneas, agindo na direção centro-periferia, onde uma vez mais é
veículo de elitização da cultura, da informação e da política.
35 A Globosat anunciou a compra de 25% do Canal ESPN Brasil de que resultou a criação
do canal de esportes ESPN Fox Sports, numa parceria com a ESPN e a Fox. Cf. FSP,
19/10/2000, p. E10.
36 Cf. TVA. Julho/2000/Ano IX n. 107 e www.tva.com.br.
37 LANDO, Vivien. ‘Regalos da tevê a cabo’. Gazeta Mercantil. 1/10/2000, p. 17
Socialismo e Democracia
233
O prometido mundo da liberdade – a rede mundial de computadores – é, em nossos dias, refém de uma empresa monopolística norte-americana, a poderosa Microsoft, fabricante dos
programas DOS/Windows, que equipam algo como 90% dos
computadores domésticos e cerca de 85% dos computadores corporativos de todo o mundo. Seguidamente é alvo de processos
pela justiça norte-americana, acusada de dumping e monopólio.
A concentração é globalizada.
Os países ricos – com apenas 15% da população mundial –
concentram 80% dos usuários da internet. Na América do Norte,
com menos de 5% da população, se encontram mais de 50% dos
usuários mundiais.38
Dos 269 milhões de usuários da internet em todo o mundo,
nada menos de 137 milhões estão nos Estados Unidos e 26 milhões
no Japão. Na Europa são 82 milhões. Deste total, 56% residem no
Reino Unido, Alemanha e Itália.39
A promessa de liberdade dos novos meios guarda simetria
com a desigualdade do desenvolvimento mundial. Assim, há menos linhas telefônicas em toda a África negra do que na cidade de
Tóquio e nos países africanos a conexão e o uso mensal custam em
média 100 dólares norte-americanos, dez vezes mais do que nos
Estados Unidos.40 Depois da África, o continente menos servido é
a América Latina, e aqui a maioria das conexões está na Argentina,
Brasil e México.
Estão nos Estados Unidos nada menos que 50% das setenta mil
redes que compõem a internet,41 que não pode ser ‘navegada’ se o
usuário brasileiro não dispuser de um computador, de uma placa de
modem, de softwares adequados para ingressar na rede, de uma boa
linha telefônica ou acesso à banda larga, de acesso a um provedor, de
um certo padrão educacional, um certo adestramento para manipu38 Fonte: Almanaque Abril. Idem.
39 Fonte: Nielsen/NetRatings, in Gazeta Mercantil ed. do Rio, 18/9/2000, p. 6.
40 Fonte: Almanaque Abril. Idem.
41 Cf. CHARLAB, Sérgio. “Entidade infalível e indomável”. In Jornal do Brasil. Ed. 12/5/96. p. 18.
234
Roberto Amaral
lar o computador e conhecimentos razoáveis de inglês. Na medida
em que mais acumula informação, em que mais concentra informação e oferece ao plugado um número elevado de portas de acesso a
essas informações, via webs, a Rede condiciona o acesso ao site ao
domínio de uma senha que, à sua vez, depende de uma assinatura,
paga... E a que terá acesso? Nada menos de 93% da informação que
circula nos sites da internet são escritos ou falados na língua inglesa,
4% em francês, 3% em todas as demais línguas.42 O internauta que
não conhecer inglês – que não é apenas o meio de intercomunicação
da rede, mas, igualmente, uma maneira de pensar – navegará muito
pouco fora dos sítios brasileiros.43
A promessa do novo sistema, de realizar o ideal da democratização da informação, rompendo com as barreiras que afligem ainda
hoje os meios de comunicação de massas, está por objetivar-se. Antes, transformou a informação em mercadoria para iniciados. Num
mundo de pouco mais de 6 bilhões de habitantes (algo como 9 bilhões
em 2.030) apenas 200 milhões são usuários de computadores pessoais,
donde o público da internet estar limitado a menos de 4% da população do planeta.44 Menos de 10% dos possuidores de computadores no
mundo têm acesso direto à internet; menos de 5% dos lares do mundo
têm computadores domésticos; menos de 4% da população americana
tem acesso em tempo real à internet.45 Esta fantástica concentração –
ou exclusão –, todavia, não tem causado qualquer tipo de preocupação
aos teóricos e prógonos da social-democracia, pois, como afirma John
Perry Barlow, da Eletronic Frontier Foundation, “O problema de quem
terá acesso à informação não é um problema da internet, mas uma
questão de defasagem entre riqueza e pobreza”... Defasagem que, não
disse ele, só tende a crescer.
42 Cf. ZAPPA, Regina. “A vez da inteligência na internet”. Jornal do Brasil, ed. 15/5/96, p. 18.
43 A Media Metrix, empresa norte-americana especializada em medição de audiência
na internet, divulgou a lista dos 25 domínios mais visitados no Brasil: 15 são norteamericanos, seis brasileiros (entre eles o Ministério da Fazenda), dois espanhóis e
dois portugueses. Cf. Gazeta Mercantil. Ed. cit. Apenas um terço dos internautas
brasileiros que têm acesso à internet em suas residências visitam a web. Cf. FSP,
19/10/2000, p. B4.
44 Cf. RAMONET, Ignacio. La Tyrannie de la communication. Paris: Galilée. 1999. p. 109.
45 Fonte: Morgan Santley & Co. In Jornal do Brasil. Ed. 12/5/1996. p. 18
Socialismo e Democracia
235
A rede de informação democrática revelou-se concentracionista, mesmo nos Estados Unidos. Estudo da Gartner Group, encomendado pela Câmara dos Representantes, afirma que milhões
de adultos americanos podem se tornar “analfabetos funcionais”
nos próximos anos, porque não têm internet ou não têm acesso à
rede de computadores. O estudo revela ainda que apenas 35% dos
americanos de ‘status socioeconômico baixo’ têm acesso à internet,
ante 53% na classe média baixa, 79% na classe média média e 83%
na classe média alta. Essa divisão, conclui o estudo, significa que
boa parte da população corre o risco de ficar para trás econômica
e socialmente: “Quanto mais pessoas ligadas à internet usam a tecnologia para obter melhores empregos, mais oportunidades educacionais e melhor estilo de vida, mais bem equipadas elas se tornam
para ascenderem do que aqueles sem acesso à internet”.46
Não estamos questionando a potencialidade da rede mundial de computadores. Estamos denunciando a concentração de
renda (donde concentração de informação). Por enquanto, ela
aumentou sim o círculo da informação, mas entre os que já possuíam a informação, por serem portadores da cultura dominante.
Classe média, pequena burguesia, intelectualidade, aprofundando,
desta maneira, o fosso informativo (e, portanto, o acesso à cidadania) entre povo e elite econômica. Estamos afirmando que, em um
país com quase 170 milhões de habitantes,47 o Brasil, dispomos, no
ano 2000, de 2, 5 milhões de usuários de internet, ou seja, pouco
mais de 1,5% da população, nesse montante agregadas ligações privadas, públicas, governamentais, empresariais, todas enfim.48
A disponibilidade de informação em abundância e a possibilidade de sua circulação ultra rápida não têm significado mais e
46 Cf. Reuters, Washington, 5/10/2000.
47 O Censo Demográfico de 2000 estima a população brasileira em 167 milhões de habitantes.
48 Relatório de Desenvolvimento da Humanidade. ONU. 1999 (Fonte: O Globo, 11/7/1999). Há
divergências quanto a este número. Segundo o IBOPE (Fonte: www.ibope.com.br/digital/produtos/internet) os usuários brasileiros somariam, em outubro de 2000, 4,8 milhões, a saber,
pouco mais de 3% da população. Ou seja: ainda um quase nada. Segundo Rafael Tonelli, da
Apek Telecom, “cerca de 58% das pessoas que acessam a internet ainda não possuem computador em casa. E as que possuem representam a ínfima porcentagem de 3% da população
brasileira” (Cf. ‘Orelhão.com’, Ícaro Brasil, n. 194, out./2000, p. 22).
236
Roberto Amaral
melhor informação, nem têm contribuído para maior liberdade de
informação. Ao contrário, estamos assistindo à construção de uma
nova forma de desigualdade entre os povos; o mundo, já dividido
entre nações ricas e pobres, poderosas e exploradas, constrói agora
a divisão entre cidadãos ricos e pobres em informação.
A desinformação, ou, dito por outros termos, a concentração
da informação, ou, ainda, a exclusão das grandes massas, afastadas
do acesso à informação, constitui a essência da democracia representativa brasileira.
5. Novas tecnologias comunicativas, velhos modelos de
dominação
Num quadro de características comuns da América Latina, o
caso brasileiro pode oferecer alguns exemplos que se repetem com
suas especificidades. O ingresso do Brasil nos padrões contemporâneos da produção e consumo cultural tem como pano de fundo uma escandalosa desigualdade social, que é, aliás, retrato mais
permanente e mais notável do nosso continente. Em 1999, quase
57 milhões de brasileiros – o equivalente a 35% da população – viviam em condições de pobreza com renda inferior à de seus pares
no México ou na Argentina.49 Décima, ou nona, ou oitava potência econômica do mundo, o Brasil ostenta, porém, a mais perversa
concentração de renda! Neste país, uma população com padrões
de consumo conspícuos similares ao Primeiro Mundo, mais ou
menos um terço de seus habitantes, divide seu habitat com outra
população, miserável, ou que está no limiar da miséria e da exclusão social, econômica e política quase absoluta.50 A desigualdade
é característica atávica das nossas sociedades latino-americanas,
hoje exacerbada num cenário em que a globalização e suas conse49 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O órgão governamental brasileiro considera pobres aqueles que possuem uma renda familiar per capita inferior a meio salário
mínimo. Em 2000, esse salário-mínimo correspondia a 83 dólares.
50 Esses dados foram retirados do “Relatório sobre Desenvolvimento Humano”, divulgado no Brasil pela ONU, e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do
governo federal.
Socialismo e Democracia
237
quências desfavoráveis são tidas, pelos governos nacionais, como
inevitáveis, e cujas perspectivas são ou a carência de empregos ou a
percepção de salários cada vez menores, associadas à ineficiência,
insuficiência ou ausência de políticas sociais, gradualmente reduzidas com a provocada diminuição do tamanho e da importância
e competência do Estado-social, de quem se procura retirar, em
nome da livre concorrência, até! o papel de mero regulador adamsmithiano do mercado... Essa iniquidade social tem, historicamente,
definido os traços principais de uma cultura política de exclusão,
aprofundando o fosso entre as cidadanias de primeira, segunda e
terceira classes, sabido que se há mais de uma cidadania, não há
cidadania alguma. Esta cultura política da exclusão dispõe, num
mesmo espectro, atitudes das mais arcaicas às mais modernas, e
define modos próprios de as sociedades latino-americanas viverem
a cidadania e de se integrarem nesta rede de produção-consumo
cultural majoritariamente orientada pelos meios de comunicação
de massa. A introdução das novas tecnologias ocorre neste quadro
político-cultural marcado pela desigualdade. Seus usos e apropriações, reduzidos os meios de comunicação de massa a simplesmente
um negócio lucrativo, apartado de qualquer princípio ou deontologia, reduzem a nada o prometido papel de panaceia democrática, fazendo ressaltar, ao contrário, sua função potencializadora das
desigualdades e das distâncias sociais, entre os países, e de suas
populações no interior de cada um deles. Ou seja, à alta inovação
tecnológica não corresponde necessariamente uma proporcional
melhoria social. Apesar de suas potencialidades técnicas, notadamente interativas e democratizantes, as novas tecnologias passam a
ser vítimas das velhas regras de mercado e das limitações políticas, no
caso, elitistas, das sociedades onde se instalam. E essas políticas são
i) aquelas concentracionistas e regulatórias da propriedade e do
uso de tais canais, hoje conduzidas por Estados nacionais cuja opção preferencial é pelo neoliberalismo e pelas regras do mercado;
e ii) aquelas derivadas de uma política econômica concentradora
de renda e de uma política educacional incapaz de oferecer habilitação e competência cultural necessárias aos potenciais usuários
destas novas tecnologias, estabelecendo o círculo vicioso: o pobre
238
Roberto Amaral
será cada vez menos informado e, porque desinformado, excluído
das novas relações de produção e trabalho e do consumo de bens
materiais e culturais e políticos. A exclusão perfeita.
Com o uso intensivo das novas tecnologias informatizadas, aos
problemas de um analfabetismo letrado aliam-se os do analfabetismo
tecnológico, num mundo no qual a importância do trabalho material
cede cada vez mais terreno ao trabalho imaterial e gera uma divisão
sem precedentes ao impor a separação espacial dos trabalhadores e
inviabilizar a construção da identidade no/pelo trabalho. Não mais a
fábrica, com sua linha de montagem localizada num mesmo espaço e
organizando o proletariado, mas uma rede bastante dispersa e fragmentada de fornecedores de peças desarticuladas de um produto que
não está à vista, coordenada pela inteligência informatizada que isola
o operário e tende a esvaziar o proletariado, seu ser coletivo.
O uso intensivo das tecnologias comunicativas transforma não
só o consumo cultural em um negócio, mas também o mundo da
política. Os meios de comunicação de massa – um negócio – cumprem o papel de ator político por excelência, influindo não só na
escolha dos candidatos, mas mesmo na condução de processos políticos notáveis. O narrador se transforma em construtor, criador
da realidade e assim os destinos da política – vale dizer, a condução
histórica – têm seus contornos traçados pela intensa cobertura (ou
ausência de) dos meios de comunicação de massa, transformados
em tribuna pública, embora, concentrada nas mãos de pouquíssimos e poderosos grupos privados, seus controladores.51
Um dos novos papéis dos modernos meios de comunicação de
massa, uniformemente orientados do ponto de vista ideológico, é
pautar as ações do Estado.
51 Um estudo sobre o papel da televisão moldando o fato político: GUIMARÃES, César;
AMARAL, Roberto. “La televisión brasileña: una rápida conversión al nuevo orden”. In
FOX, Elizabeth. Medios de comunicación y política en América Latina. México: Ediciones
C. Gili. S.A., 1989. É vasta a literatura nesse sentido. Ver, entre outros muitos, BOURDIEU, Pierre. Sobre la televisión e Contrafuegos (edis. cits), RAMONET, Ignacio. La
Tyrannie de la communication (cit), PAOLOZZI, Vitor. Murro na cara – o jeito americano
de vencer eleições. S. Paulo: Ed. Objetiva. 1996, AMARAL, Roberto (Coord). FHC: os
paulistas no poder. Rio: Casa Jorge Editora. 1995, MIGUEL, Luis Felipe. Mito e discurso
político. Campinas: Editora da Unicamp. 2000.
Socialismo e Democracia
239
6. Altos investimentos e grande concentração na televisão
das elites
O modo como, no Brasil, foi implantada a televisão por assinatura, e o uso ainda restrito da rede de computadores – a internet – apontam para o crescente processo de redução das margens
democráticas, mesmo formais, e para o predomínio da cultura da
excludência, como política. Não se trata mais de mera (se bem
que relevante) consequência da disfunção econômica; é já um
projeto político.
A implantação da tevê por assinatura no Brasil tem início oficial em 1991.52 Representa já hoje um mercado em acelerada expansão, cujo modelo de desenvolvimento não difere da tradicional
tendência nativa da manutenção dos monopólios dos meios de comunicação de massa que prevalece no sistema de televisão aberta,
um mercado desigualmente oligopolizado por três redes.
O crescimento da tevê por assinatura, por outro lado, afina-se
com o modelo internacional da formação dos grandes oligopólios
dos meios de comunicação de massa detentores de numerosos meios
de comunicação estendendo-se por vários países, em associações as
mais diversas com os empresários locais-nacionais. Essas relações,
antes veladas, são agora explícitas, legais e legitimadas pelo discurso
neoliberal. Neste contexto concentracionista é que cresce o mercado
de TV por assinatura hoje liderado por duas operadoras: a NET (associada à SKY), das Organizações Globo, com 64% do mercado, e a
TVA (associada à DirecTV), do grupo Abril, com 25% de participação. Empresas independentes reúnem 7% do mercado.53
Esses grupos receberam suas concessões em 1989, quatro meses após a aprovação da Constituição de 1988 (em permanente
reforma, desde então) e começaram a operar em 1991. A regulamentação só ocorreria em 1995, depois de estas operadoras terem
adquirido grandes vantagens técnicas e o controle do mercado de
52 O Brasil foi um dos últimos países da América Latina a instalar serviços de tevê por
assinatura, após a Argentina, a Colômbia, a Bolívia e a Venezuela.
53 In Relatório idem. Ibidem.
240
Roberto Amaral
assinantes das principais cidades do país. A lei que viria regulamentar a tevê a cabo absteve-se de qualquer proteção do mercado
contra a formação de monopólios, oligopólios e a concentração em
cruz da produção e da propriedade; não cogitou ainda menos de
proteger o cidadão contra o monopólio da informação.
Para explorar a tevê de assinatura por satélite, que entrou em
operação em 1996, o grupo Globo, da família Marinho, e a News
Corporation, do megaempresário Rupert Murdoch, formalizaram
acordo para a expansão, na América Latina, do Direct Home TV,
o sistema de transmissão direta de TV por assinatura via satélite,
possível de ser captada por miniantenas parabólicas.54 Enquanto
isso, o Grupo Abril associou-se à Hughes Communications para
lançar o serviço em toda a América Latina, com transmissão de
144 canais em espanhol e português, além de 60 canais de música
para a região por meio do satélite norte-americano Galaxy Latin
American (GLA).
Tais associações dos oligopólios nacionais com os grandes
grupos estrangeiros dos meios de comunicação de massa tornam
explícitos os aportes, antes velados, dos capitais estrangeiros aos
meios de comunicação nacionais, embora a legislação da tevê a
cabo brasileira, por exemplo, tenha assegurado o controle majoritário, de 51%, aos empresários nacionais.55 Não existe, porém,
no cenário da globalização, qualquer mecanismo regulatório que
faça restrição à propriedade cruzada dos meios de comunicação de
massa em termos nacionais ou internacionais. Assim, a concentração da propriedade ultrapassa, em escala até agora desconhecida,
as fronteiras nacionais e, na ausência de Estados-nacionais reguladores fortes, ou de qualquer mecanismo supranacional de regulamentação, os monopólios internos dos meios de comunicação de
massa ficam ainda mais fortalecidos pelo ingresso de capital inter54 A associação da Globo (54%) com a News Corporation, de Murdoch (36%), e a PCI,
maior empresa de tevê a cabo paga dos EUA (10%), visa a controlar o mercado latinoamericano, estimado em 30 milhões de usuários.
55 As autoridades do Ministério das Comunicações, no entanto, reconhecem que a principal dificuldade do governo está em analisar e identificar a composição acionária de cada
empresa: “São grupos empresariais que formam estruturas muito complexas”.
Socialismo e Democracia
241
nacional, tornando debilíssimas quaisquer iniciativas societárias,
empresariais ou não governamentais locais, ante a concorrência
financeira e a competência técnica já acumulada por esses grupos, processo de fragilização nacional e de desproteção do cidadão/usuário que também se observaria na política de privatização
e desnacionalização do sistema nacional de telecomunicações.56
Com a implantação da tevê de assinatura por satélite, repetese o mesmo percurso da tevê a cabo. As empresas Globo e Abril
implantam-na, e depois de as melhores fatias do mercado haverem
sido entre elas distribuídas, em acordo, e acumulados conhecimentos técnicos e mercadológicos para a exploração do novo veículo, o
Estado cuida da regulamentação legal. É o último ato, sancionador
do fato consumado, homologador de uma ocupação de mercado
que não pode mais ser alterada, pois qualquer tentativa de concorrência, daí em diante, se revela impensável.
O processo de implantação destas duas inovações da tecnologia televisiva não só tem apontado para a notória monopolização da propriedade e do controle deste meio massivo – anunciado
como a “tecnologia” da democratização – como está dificultando
o acesso à tevê das multidões que não dispõem de renda suficiente
para se tornarem telespectadores deste sistema pago. Ao elitizar o
mercado, cobrando taxas de ingresso e mensalidades, as tevês por
assinatura vedam o acesso a grandes parcelas da população que ficarão relegadas ao consumo da programação das emissoras abertas, nas quais os complexos empresariais deverão investir cada vez
menos, posto que seus canais estarão dirigidos ao público de menor renda, e, portanto, de menor poder de compra, determinando,
já no médio prazo, a migração da publicidade para os canais segmentados da televisão por assinatura.
Por outro lado, a expansão destas tecnologias televisivas não
implica um ingresso importante de recursos na produção local de
programas; há pouco jornalismo, em quaisquer de suas formas,
56 Tramita no Congresso Nacional projeto de emenda constitucional permissiva da presença de capital estrangeiro no controle acionário de empresas nacionais de comunicação, vedada pela Constituição de 1988.
242
Roberto Amaral
produzidos localmente. No geral, trata-se de repetição ou mixagem dos programas do canal líder da rede de tevê aberta a que
pertencem. Em outras palavras, é quase zero o estímulo econômico/cultural à produção televisiva ou cinematográfica nacional. Os
noticiários são essencialmente norte-americanos e europeus, e os
filmes, em sua maioria esmagadora, norte-americanos.
Na tevê por assinatura, a língua predominante dos canais internacionais é o inglês e o padrão cultural, político e estético é essencialmente norte-americano. Uma televisão que conjuga outra
língua, outra cultura e outra estética. O fato de ser uma televisão
por assinatura, paga, serve, assim, ao projeto segmentante/elitizante/excludente.
7. Internet: a comunidade tecnológica dos iniciados
A nova tecnologia da rede de computadores – internet –, apesar
de seu potencial ampliador do fluxo de informações, não pode ser
referida como um meio de comunicação de massa. Ainda mais cara
e inacessível que a televisão paga, o acesso à rede de computadores,
como vimos, requer mais recursos financeiros dos usuários, o que,
presentemente, a torna restrita a um número relativamente reduzido
de consumidores, tomada a população em termos absolutos.57
O ideal de exclusão não é atingido pela televisão aberta, mas
pela internet, o novo altar do saber, do conhecimento e da informação. Para os que a ela podem ter acesso.
Um cultuado sentimento de aparente igualdade de que desfrutam os usuários da rede, é real... se pensado nos limites da própria
57 A própria rede encarrega-se de interrogar-se sobre o perfil de seus usuários através de
formulários eletrônicos na www. Há duas pesquisas divulgadas no site da Survey Net,
cujos resultados foram obtidos a partir da resposta a 5.098 questionários respondidos
através da rede, e uma outra do Instituto de Pesquisa Nielsen, que entrevistou mil
usuários nos Estados Unidos e no Canadá. Embora as pesquisas possuam diferenças de
abrangência e rigor, permitem traçar um perfil do usuário dominante da internet: possui
de 26 a 30 anos; pertence ao sexo masculino; tem formação superior e trabalha; utiliza
em primeiro lugar o www, e em segundo o e-mail; utiliza a internet para aquisição de
informação. Em resumo: usuários com qualificação cultural e financeira.
Socialismo e Democracia
243
rede, ou seja, se desconsiderarmos todos aqueles não usuários, não
partícipes desta comunidade tecnológica transnacional elitizada.
Contrapondo-se à possibilidade teórica de um fluxo livre e
irrestrito de informações no interior das redes, a realidade objetiva aponta para o seu crescente e amplo uso comercial. A rede é,
assim, mais um negócio no grande mercado. A tendência a olhos
vistos é sua apropriação pelos mesmos conglomerados dos meios
de comunicação de massa, notáveis tentáculos que sucessivamente
passam a abarrotar a rede com uma quantidade quase ilimitada de
informações geradas em seus outros meios, além de transformá-la
em extraordinário mercado. Por estes fornecedores de informações
24 horas, a rede será apropriada como mais um canal comunicativo
e lucrativo. É a conquista do “novo” meio pelos ‘velhos’ meios... Em
outras palavras, a nova tecnologia é absorvida pela velha tecnologia, o conteúdo da nova tecnologia é partilhado com os conteúdos
da antiga tecnologia e, finalmente, a promessa de democratização é
substituída pelo aprofundamento da concentração e do monopólio.
No caso brasileiro, por exemplo, em que o uso da internet está
mais avançado do que nos demais países latino-americanos, praticamente todos os jornais, não só os grandes veículos nacionais,
mas também os jornais de província, as revistas e os magazines,
todos os canais de televisão e mesmo emissoras de rádio, estão disponíveis na internet, assim como a CNN e seus diversos canais,
inclusive sua rádio, esta em uma versão em português, em tempo
real. Embora possa haver outros jornais alternativos, hoje editados
na própria rede, o amplo domínio pertence a estes consolidados
meios que descobrem na internet mais um espaço de expansão de
seus respectivos impérios e de suas visões de mundo. O maior portal brasileiro é o Universo on line (UOL) resultado da fusão do web
site Brasil on line (BOL), do grupo Abril, com o Universo on line
(do grupo Folha) e seu projeto é atuar em toda a América Latina.
Possuiria 500 mil assinantes no Brasil. Mais recentemente, o grupo
O Globo lançou seus serviços on-line inspirando-se nos America
On line, Compuserve e Prodigy. O crescimento deste tipo de serviço
está a depender, tão só, do aumento do número de provedores no
país e da expansão das linhas telefônicas.
244
Roberto Amaral
O uso da rede também está sendo operado, de forma diferenciada, pelas emissoras de televisão aberta, para, através da linguagem específica da internet, divulgar e oferecer arquivos de sua
programação e noticiosos.58
8. Globalização: a universalização da propriedade em cruz
Crescentemente menos independente e livre, porque crescentemente integrada no sistema de poder, no qual ocupa espaço próprio,
com interesses muitas vezes autônomos, a imprensa se vê ligada a
poderosos grupos econômico-financeiros, os quais perseguem projetos próprios, projetos econômicos e projetos políticos. Ela não está
apenas a serviço do poder, como aparelho ideológico do Estado, para
usar a expressão cunhada por Althusser.59 Ela atua na constituição
do poder, ela tem assento no Olimpo, senta-se ao lado do príncipe, como um par. A imprensa não tem contradições com o sistema
e quando entra em conflito com o governante é porque, antes, este
entrou em contradição com o poder ou contrariou ou ameaçou contrariar seus interesses específicos, porque ambos atuam na mesma
arena do poder. Não se diz apenas que o meio de comunicação de
massa tem um papel para além de mero aparelho reprodutor do Estado. Afirma-se que é agente no processo político-ideológico, com
interesses próprios (como grupo econômico que é) na mesa de composição dos interesses dominantes no seio da hegemonia de classe
que controla o Estado.
De outra parte, esses mesmos grupos econômico-financeiros,
nacionais e internacionais, que controlam as empresas produtoras e
comercializadoras de informação, são eles também responsáveis pelos grandes empreendimentos e pelas receitas de publicidade de que
depende diretamente a sobrevivência dos meios. A busca desenfreada
pela publicidade põe numerosos veículos em situação de dependência
em face dos anunciantes que chegam a ser, em inumeráveis oportuni58 SINCLAIR et al, cits. p. 6, observam que a televisão foi reforçada pela introdução das
novas tecnologias que pareciam suas concorrentes.
59 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Posições 2. Rio de Janeiro: Graal.
1980. P. 62.
Socialismo e Democracia
245
dades, os proprietários clandestinos de muitos veículos,60 tal a força
decorrente das receitas que proporciona. O papel da publicidade entre nós pode ser avaliada quando consideramos que o Brasil possui um dos maiores mercados publicitários do mundo. Em 1999, a
propaganda privada em televisão (55,7% do total), rádio, outdoor,
jornal, revista e tevê por assinatura somou R$ 8.009.585.628. Em
2001, de janeiro a setembro, esse valor já era de R$ 7.163.591.246.
Os meios de comunicação de massa são, conscientemente, instrumentos de expressão dos interesses dominantes, dos interesses
econômicos e dos interesses políticos, e, assim, reforçam o reacionarismo, o conservadorismo e o discurso único. Estão a serviço do
sistema de dominação no qual têm assento como agentes.
Na maioria das vezes, a globalização, um eufemismo mais
contemporâneo de imperialismo, tem representado a intensificação dos processos privatistas e oligopolistas neoliberais, justificados, sob novos discursos, em escala mundial. Enquanto os
países do Norte – o caso europeu nos parece notório – procuram
integrar desenvolvendo uma crítica política que tenta manter fortalecidas as identidades culturais e políticas regionais/nacionais,
os países do Sul respondem de modo enfraquecido aos requisitos
desta nova ordem. Suas políticas não resultam das necessidades
internas de suas sociedades, e seus acordos econômicos emergem
como subtratados a serviço de uma nova ordem mundial operada
pelos países do Norte, notadamente os Estados Unidos, em sua
política de expansão extraterritorial de soberania. Mais do que
uma ruptura natural com o mundo moderno, os novos meios,
nestas realidades latino-americanas, intensificam as relações históricas de subalternidade.
A informação irrelevante, a informação fragmentada, a informação de terceiro nível, será oferecida à população brasileira, àquele
brasileiro que puder ter o televisor ligado à sua frente; mas a grande informação, instrumento de poder, será reduzida àqueles que neste país
puderem ter acesso às redes de televisão por assinatura ou à internet.
60 ROMANET, Ignacio. “Médias en danger”. Le Monde Diplomatique. Fév./1996.
246
Roberto Amaral
Não sei se é possível neste país, com tais características, falar
em opinião pública e falar em democracia, e muito menos em democracia representativa.
Satélites, informática, sistemas de comunicação digitais, a promessa de interactividade e a rede mundial de computadores e a interação
internet-televisão, a rede em tempo real, mais do que a descentralização prometida e a interação, mais do que a libertação da informação
dos limites dos meios, a realidade parece conduzir para o aprofundamento da dominação e do controle, alimentando a ameaça do big-brother orweliano. Pois o que temos é uma comunicação crescentemente
concentradora e dirigida no sentido Norte-Sul, centro-periferia, países
desenvolvidos-países em desenvolvimento – donde a inexistência de
livre fluxo da informação internacional – crescentemente mundializada e antinacional, com a coarctação do local aprofundada pelo caráter
antinacional do sistema brasileiro, dependente em suas fontes ideológicas e dependente de tecnologias desenvolvidas no centro do poder,
reinando sobre sociedade desigualmente desenvolvida e desigualmente conectada com os novos meios.
Em mais uma experiência histórica, fica evidente que a dominação também pode revelar-se um atributo da modernidade, tanto
quanto o desenvolvimento tecnológico pode constituir-se em mais um
elemento de sotoposição da subjetividade humana. A crença, quase
religiosa, no absolutismo do potencial emancipatório da ciência e da
tecnologia, não permitiu que os marxistas oficiais, ou positivistas, antevissem as possibilidades de emprego desses recursos de dominação
na Alemanha nazista e na União Soviética. E faz com que, hoje, uma
sociologia ligeira se encante com os recursos da tecnotrônica, como
entidade autônoma, e assim também se poste sem olhos para ver o
papel real da tecnologia na sociedade real dos homens.
Há uma tese final: o desenvolvimento tecnológico (que, aliás,
sempre esteve ligado a estratégias políticas e militares) não é suficiente, em si, para garantir o uso dos meios em benefício do livre fluxo da informação, da liberdade e dos interesses das grandes massas.
Como muito bem assinalou Darcy Ribeiro:
Socialismo e Democracia
247
Cada revolução tecnológica, ao agir sobre um novo contexto, não
repete, em relação às sociedades nele existentes, a história daquelas em que ocorreu originalmente, em virtude de quatro fatores
de diferenciação. Primeiro, porque mais frequentemente os povos são chamados a reviver o processo por efeito da difusão do
que conduzidos por esforços autônomos de autossuperação. Segundo, porque a difusão não coloca ao alcance das sociedades os
mesmos elementos originalmente desenvolvidos, nem na mesma
ordem em que se sucederam e, tampouco, com as mesmas associações com outros elementos na forma de complexos integrados. Terceiro, porque os processos civilizatórios são movidos por
revoluções tecnológicas que privilegiam os povos que primeiro
as experimentam, ensejando-lhes condições de expansão como
núcleos de dominação. Quarto, porque os povos atingidos pelos
mesmos processos civilizatórios, através de movimentos de atualização histórica, perdendo o comando do seu destino e condenados à subjugação e à dependência, veem estritamente condicionado todo o seu desenvolvimento ulterior.61
Se a democratização dos meios de comunicação é ponto de
partida para a democratização da sociedade brasileira (o que implica descentralização), é impossível pensar em meios democráticos em sociedade autoritária. Não é a tecnologia que define o uso,
mas a política. A mudança no plano político, porém, depende do
papel desempenhado pelos meios de comunicação que, no Brasil,
têm lócus próprio, no qual exercem papel próprio. Aqui são agentes. Como romper com o círculo vicioso?
Não vemos alternativa fora da descentralização econômica, politica e administrativa, implicando a descentralização dos
meios de comunicação, fora do poder local em oposição ao poder central, fora da democracia participativa que – ainda conservando instrumentos da democracia representativa, revista,
armada de instrumentos de democracia direta, como o plebiscito,
o referendo, a iniciativa parlamentar popular, o recall e o man61 RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório brasileiro (Etapas da evolução sociocultural).
Coleção Grandes nomes do pensamento brasileiro. São Paulo: edição da Folha de S. Paulo
sob licença da Companhia das Letras, 2000, p. 33.
248
Roberto Amaral
dato imperativo –, fortalecerá a descentralização radical, com a
criação dos conselhos municipais deliberativos, a separação das
funções administrativa e de governo, a gestão democrática e a
radicalização do controle social. Nenhuma mudança será possível
sem a revisão do pacto federativo e das competências dos diversos poderes, dos papéis da União, dos estados e dos municípios,
sem uma reforma politica que reduza a representação e aumente
a participação.
A concentração dos meios de comunicação – concentrados
regionalmente no Leste do país; concentrados em um número mínimo de redes; concentrados como propriedade e como empresas;
concentrados politicamente; concentrando audiência e circulação;
esmagando o regional e o local; alienando; impondo o discurso
único; impedindo o diálogo – é incompatível com a democracia.
Não haverá mudança se a reforma não se fizer de baixo para
cima. E, se assim for, inaugurará uma nova História.
Socialismo e Democracia
249
X
Globalização e neoliberalismo1
Permitam-me os queridos amigos que inicie esta intervenção
narrando-lhes episódio que, brasileiro, é simbólico da tragédia
que envolve nosso continente. Faz poucos dias, às vésperas das
comemorações do nosso dia nacional, o presidente da República
de meu país, pressionado pela crise interna agravada pelo racionamento de energia e pela desvalorização do real, nossa moeda, e
pela crise externa atribuída às dificuldades presentes da Argentina, proclamou, com toda a força de seus pulmões, dirigindo-se a
um grupo de empresários:
– Exportar
ou morrer!
Descontado o ridículo, a proclamação do presidente brasileiro encerra a vulnerabilidade externa a que nossos países foram
levados pela adoção irresponsável de um modelo de economia
que, derivado de nossa dependência cultural, determinou nossa
dependência econômica.
Nossos países, adotado o modelo da globalização, vivem à cata
de divisas para financiar o déficit público, para financiar as importações, para financiar o serviço da dívida, até mesmo para financiar
as exportações. A política de juros altos, que inibe a produção nacional, procura justificativa na necessidade, ingente, de atrair in1 Palestra preparada para a abertura do Foro Internacional de Pensamento Alternativo –
El nuevo orden económico: globalización neoliberal o globalización internacionalista,
Quito, Equador, 25, 26 e 27 de setembro de 2002. O evento foi suspenso em face do 11
de Setembro.
251
vestimentos externos. Daí, abandonado o esforço de crescimento
do mercado interno, de que dependera nosso desenvolvimento até
aqui, o apelo quase fundamentalista às exportações. Porque cada
vez mais recebemos cada vez menos pelo que exportamos.
Nunca será demais lembrar, como faz Celso Furtado,2 que os
preços reais dos produtos do Terceiro Mundo apresentam tendência histórica declinante. Essa queda, que tem história de muitos
anos, chegou a 20% entre 1989 e 1991.
Em face dessa brutal depreciação, nossos governos, dependentes, reflexos, só conhecem uma política, a saber, aumentar as
exportações, e, para aumentar as exportações, contraem financiamentos externos para financiar a produção, aumentando duas vezes a dependência. Prisioneiro dessa lógica perversa, o presidente
brasileiro grita com todos os pulmões:
– Exportar
ou morrer!
De um lado, a pressão das grandes potências ditando os preços internacionais de nossos poucos produtos exportáveis, de
outro, nossos próprios governos, a pretexto de perseguir alguma
competitividade no mercado internacional, vilipendiando o câmbio e reduzindo o valor real dos salários dos trabalhadores, para
baratear o custo da produção nacional, contribuindo assim para a
concentração de renda e a exclusão social, causa e efeito de uma
tragédia que, separando continentes e países, separa nossos povos
em nossos países.
A queda dos preços e a tomada de financiamento externo
formam a base da dívida externa, agravada pela política geral de
importações. De um lado, do nosso lado, a abolição geral de toda
sorte de barreiras, sem o dever de criar mecanismos internos prévios de proteção ao produto nacional e à nossa mão de obra; de
outro lado, o protecionismo das grandes nações, as barreiras sanitárias e outras, como as não tarifárias, em particular as injustas
e arbitrárias legislações protecionistas mascaradas sob o rótulo de
antidumping, são acionadas ao bel-prazer pelas administrações das
2 In O Capitalismo Global. São Paulo 1998. P. 41.
252
Roberto Amaral
nações industrializadas para proteger diferentes grupos de interesse de seus países. O protecionismo internacional atingiu seu mais
alto nível com a criação da OMC, em 1995, e os Estados Unidos
figuram como líder na adoção de expedientes não tarifários como
forma de barrar as importações das economias emergentes, atingindo mesmo outros mercados, que não só os agrícolas, como é o
caso do setor siderúrgico.3
É a dualidade da lógica imperial que faz com que os países dominantes possam recorrer ao protecionismo e aos subsídios que proíbem aos países do Sul. Segundo o FMI, autoridade insuspeitíssima
para tal afirmação, os países integrantes da Organização de Cooperação Econômica para o Desenvolvimento (OCDE) desembolsam
anualmente 365 bilhões de dólares para proteger seus agricultores.
O despudor europeu e norte-americano, protegendo e subsidiando sua agricultura e sua indústria, só encontra paralelo em
nossa subserviência promovendo a redução unilateral das tarifas
de importação.
Em nome da competitividade internacional adotamos modelos de produção que exigem tecnologias intensivas de capital e excludentes de mão de obra. E assim, via endividamento, exportamos
capital e emprego para o Primeiro Mundo.
E construímos o nosso desemprego.
Segundo dados da OIT, o desemprego aberto (ou seja, aquele que não considera o desemprego oculto pelo trabalho precário,
pelo lumpesinato e pela indigência) só fez crescer em nosso continente, de 1990 a 2000. Nesses dez anos, ele cresceu, na Argentina,
de 7,5% para 15,4%; no Brasil, de 4,3% para 7,1%; no Chile, de 7,4%
para 9,4%; na Colômbia, de 10,5% para 20,4%; no Uruguai, de 9,2%
para 12%; e na Venezuela, de 11% para 14,6%.4
Em nome da globalização e da modernidade neoliberal, somos
chamados a exportar. Mas metade das importações brasileiras, e
3 Cf. Gazeta Mercantil. ‘O nefasto protecionismo dos ricos.’ São Paulo, 18/7/2001, p. A-2.
4 Esses dados, assim como os relativos a armamentos, estão em Almanaque Abril – Edição
Mundo 2001. São Paulo: Editora Abril, 2001, p. 23 e 50.
Socialismo e Democracia
253
não deve ser diverso nos demais países, é paga com o endividamento externo. E assim aumentamos nossa dependência.
Reduzido o valor de nossos produtos de exportação, reduzido o universo de nossa pauta de exportações, predominantemente
de commodities, entra em crise a produção industrial. Os poucos
países do continente que conseguiram algum desenvolvimento
industrial enfrentam grave crise, crise de sobrevivência, em face
da impossibilidade de concorrência com o produto internacional.
E assim, exportando menos, obtemos menos divisas do que necessitamos. E assim nos endividamos mais.
No Orçamento federal brasileiro, para 2002, no total de 637
bilhões de reais, nada menos de 336 bilhões, ou seja, 53%, são destinados ao pagamento do serviço da dívida.
E assim, ao invés de exportadores de manufaturados e absorvedores de investimentos externos, nos transformamos, ao preço da
pobreza de nossos povos, em importadores de bens e exportadores
de capital, isto é, de excedentes gerados internamente e drenados
como juros, lucros, serviços, pagamentos, devendo, concomitantemente, aumentar o esforço de poupança e reduzir o investimento interno. Enquanto isso, parte considerável da poupança disponível em
todo o mundo, inclusive nos países periféricos e pobres, é transferida
para o financiamento do enorme desequilíbrio da conta-corrente do
balanço de pagamentos dos Estados Unidos, cuja dívida externa superava, em 1997, um trilhão de dólares, desequilíbrio estrutural que
é a causa da drenagem, para sua economia, de mais da metade da
poupança internacional.
Assim se explica, a observação é ainda de Furtado,5 o esforço
daquele país visando à criação de zonas de livre-câmbio, como o
Nafta, englobando os mercados norte-americano, mexicano e canadense. Mediante esses acordos, as indústrias norte-americanas
recuperam a competitividade internacional, pois os salários monetários no México não passam de uma décima parte dos salários percebidos pelos operários norte-americanos. A vitoriosa experiência
5 Idem, p. 30.
254
Roberto Amaral
de integração com o México, isto é, de superexploração de sua mão
de obra, é o paradigma ao projeto mais amplo de abarcar todo o
hemisfério. Eis as razões da ALCA.
No caso brasileiro, e no caso da grande maioria de nossos países,
as políticas de estabilização de preços e de câmbio, adotadas uniformemente, como regra fundamentalista, ditadas pelo alcorão do
FMI, estão apoiadas em crescente endividamento externo.
Assim, por razões que nenhuma lógica consegue demonstrar,
adotamos um modelo de desenvolvimento que nos impõe um brutal endividamento externo, de par com a queda dos valores das exportações e da capacidade de adquirir divisas. Como consequência,
a mesma lógica perversa do endividamento nos impõe as políticas
de ajustamento, adotadas em todos os nossos países, segundo o
mesmo receituário. Donde pobreza e endividamento.
Se todo o esforço do modelo é tendente a atrair capital externo,
mesmo volátil, mesmo causando as crises que já foram vividas pela
Rússia, pelo México, pelo Brasil e pela Argentina, a realidade mostra
que esse capital, cada vez mais caro, está cada vez mais arredio. Segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, Unctad, 85% dos investimentos internacionais diretos
ficaram entre os países do G-7. Estimativas construídas antes do 11
de Setembro preveem que o fluxo global de investimentos deve cair,
em 2001, em cerca de 40%. Quaisquer que sejam os desdobramentos
dos atentados nos Estados Unidos, é seguro afirmar que a liquidez
internacional, principalmente os fluxos de capital dirigidos para os
nossos países, diminuirá. Pode ser que um dia nossos governos compreendam que não deviam ter feito nossas economias depender tão
completamente da poupança externa.
Em 1995, a dívida externa brasileira somava 159 milhões de
dólares. Cinco anos passados, ela atingia 236 milhões, representando 15% do PIB.
Se este processo de endividamento não for estancado, nossos
países desaparecerão, pois todo o capital fixo deles estará alienado.
Se não conseguirmos deter o processo de concentração de renda e de
Socialismo e Democracia
255
exclusão social, o continente será submetido a um ciclo de tensão
que pode destruir a governabilidade. Mas a política de concentração
de renda é fundamental para o modelo, pois gera o excedente necessário para pagar a dívida e os lucros dos investimentos externos.
O presidente proclama:
– Exportar ou morrer!
Nossos países, que abandonaram as políticas de desenvolvimento do mercado interno e o financiamento de seu desenvolvimento basicamente com a poupança interna, na rota inversa do que
fizeram China, Índia e alguns tigres asiáticos, enfrentam, é uma vez
mais o caso brasileiro, taxas de crescimento que mal acompanham
o crescimento populacional. Para 2002, a previsão brasileira, oficial, é de um crescimento de apenas 2,2% do PIB. Alguns analistas,
porém, estimam que o crescimento do PIB ficará, em 2001 em 1%
e que em 2002 será algo ao redor de zero.6
Uma economia de mercado não fundamentalista teria de aplicar, para sobreviver, um mínimo de regras autoprotetoras. Não seria
necessário apelar para qualquer sorte de keynesianismo para adotar um mínimo ou um máximo de diretrizes públicas para proteger
os pobres, países e povos. Mas que vemos na sociedade de mercado
globalizado? Os países mais pobres desprotegidos em suas relações
comerciais, econômicas e políticas com os países ricos.
O livre-cambismo, ou neodarwinismo, para não falar de livre
canibalismo nas relações internacionais, assegurando a ‘livre concorrência’ entre as economias dos países pobres e subdesenvolvidos
e as economias dos países ricos, abundantes em capital e tecnologia, isto é, a concorrência entre desiguais, favorável aos dominantes. Assim, ao invés do intercâmbio educacional ou de projetos de
disseminação tecnológica, ou de diretrizes ecológicas e ambientais
e incentivos médicos, o que conhecemos é a imposição, aos nossos
países, de leis de patentes que virtualmente impedem ou dificultam
6 SAVASINI, José Augusto Arantes. ‘Como fica o jogo após a perda das duas torres’. Gazeta
Mercantil, 18/9/2001.
256
Roberto Amaral
nosso desenvolvimento científico, principalmente na área biológica.
A recente discussão sobre a produção de remédios pelos países periféricos – opondo os interesses pecuniários dos laboratórios comerciais protegidos pela diplomacia dos países nos quais têm sede, aos
interesses da Humanidade –, tanto quanto a oposição das grandes
potências ao Protocolo de Kioto, dão bem o retrato da visão que o
primeiro mundo consumista tem do resto da Humanidade.
A atual arquitetura econômica, financeira e política do mundo,
imposta a todo o planeta por menos de meia dúzia de nações, incluindo suas instituições mais sacralizadas, como o FMI e o Banco
Mundial, remonta à conferência de Bretton-Woods, de uma distante 1944. Aquela conferência, a antecipação capitalista e ocidental
da partilha que seria comungada em Yalta (1945), refletia os interesses das grandes potências de um mundo do passado que insistia
em sobreviver quando o futuro já estava sendo gestado. Naquela
altura a Ásia e a África, em sua quase totalidade, dormiam sob o
colonialismo arcaico e a pobreza era justificada como fenômeno
natural – que a Deus pertence –, como consequência da inferioridade racial dos pobres, por natureza destinados ao subdesenvolvimento assim como, quase que por um determinismo histórico,
derivado de seu desenvolvimento, os ricos eram destinados à riqueza, e dela decorrente, ao controle do mundo.
Nesse mundo, ou no mundo de então, a democracia – em qualquer de suas modalidades – era um valor que navegava a milhas de
distância de nossos continentes.
É a essa realidade anacrônica que o atual modelo de globalização nos quer remeter. Trata-se de projeto tanto fácil de ser alcançado quanto transitou da Guerra Fria e de sua polaridade para
uma geopolítica caracterizada pela unipolaridade, tal a distância
econômica, política, tecnológica, científica e militar dos Estados
Unidos em face do resto do mundo.
Assim, em plena globalização, falecem os organismos internacionais – a começar pela ONU – e o diálogo é substituído pelo dictat
unilateral e a diplomacia pela intervenção militar. Finda a Guerra
Fria, emerge, fortalecida, a Otan, que, lógica houvesse, deveria ter
Socialismo e Democracia
257
sucumbido em 1989, soterrada pelos escombros do muro de Berlim
e o fim da União Soviética. O novo mundo talvez justifique mesmo a
preeminência da via militar. O novo mundo, mais rico, é constituído
de um número cada vez maior de países pobres; a pobreza abjeta de
mais da metade da população precisa conviver em paz com a prosperidade sem precedentes de menos de 1% da Humanidade.
O mundo unipolarizado, todavia, e por isso mesmo, não conheceu nem o progresso – como ente coletivo – nem a paz. Jamais se verificaram tantos e tão graves conflitos, envolvendo etnias,
nações, países, povos, federações e consórcios de nações e exércitos. Mata-se em nome de Deus e da democracia, numa escalada
de terrorismo que não conhece limites. E o terrorismo não pode
ser reduzido a uma paranoia religiosa, pois ela perpassa a política
das grandes potências e se enraíza em uma geopolítica que nem
começou nem terminou com a Guerra Fria. Ao lado do terrorismo
paranóide de grupos isolados, há o terrorismo racional e cartesiano de políticas de Estado. Na fonte da chocante continuação da
violência e do desperdício, os interesses estratégicos das grandes
potências, presentes em todos os conflitos, diretamente neles atuando com suas tropas, ou com as de seus prepostos, ou indiretamente, fornecendo recursos, serviços de inteligência ou através
do pornográfico comércio de armas, inclusive de minas antipessoais, comércio cuja proscrição é vedada pelos grandes países,
que também vetam o Tribunal Penal Internacional, e rompem
com o tratado antimísseis. A Cruz Vermelha Internacional estima em 110 milhões o número de minas espalhadas pelo mundo,
na África (Angola, Egito, Moçambique, Somália, Sudão e Eritreia),
na Ásia (Irã, Iraque, Afeganistão, China, Camboja e Vietnã), na
Bósnia-Herzenovina, na Croácia e na Ucrânia. Segundo a mesma Cruz Vermelha, elas já mataram mais de 1 milhão de pessoas.
E continuarão matando civis, findas as guerras e as invasões, em
face do alto custo de sua desativação.
Não sem razão, os cinco maiores exportadores mundiais de
armas são os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, respondendo por nada menos de 86% das armas
exportadas. Em 1999, o comércio de armas mobilizou 53,4 bilhões
258
Roberto Amaral
de dólares. Os Estados Unidos, evidentemente, são os maiores
exportadores mundiais, respondendo por 49,1% deste mercado,
seguidos pelo Reino Unido (18,7%) e pela França (17,6%). Nesse
mesmo ano os gastos mundiais com defesa, contabilizados, somaram 809 bilhões de dólares.
Nos últimos cinquenta anos os Estados Unidos gastaram sete
trilhões de dólares em defesa.7
Quanto foi gasto na erradicação da fome?
Não se tem registro.
O empobrecimento do mundo, o crescimento da pobreza e da
exclusão, os conflitos, e a nova geopolítica militar e o esvaziamento
dos organismos internacionais servem a quê e a quem?
À construção de um modelo econômico que é também um modelo político e cultural, um modelo de civilização dos jeans (e das
baggy pants), da coca-cola e do McDonalds, do individualismo e da
intolerância, do poderio e do mando, a civilização do cinema e da
guerra; é a sociedade norte-americana com seus índices conspícuos
de consumo instituída como princípio e fim de toda a história humana, é a universalização do modelo de uma sociedade do qual nos
transformamos em caudatários, em seus gostos e desgostos, em suas
paixões e em seus ódios, em seus valores; dependentes de seu modelo
cultural, de sua visão de mundo, de seu avanço científico e tecnológico, dependentes, até, de sua língua, de seus olhares, de sua visão
de nós mesmos, porque é através de seu cinema e de sua televisão, é
através de sua mídia e de suas agências de notícias que nós, os latinoamericanos, nos vemos, nos olhamos, nos tocamos. Multiplicam-se os
meios, mas o conteúdo é homogeneizado, a programação é estandarizada e nossos corações e mentes são construídos pela unilateralidade
ideológica que reflete a concentração do capital – econômico, político, militar, cultural, científico e tecnológico – fundamento subjetivo e
objetivo de uma dominação simbólica – universal, global, planetária
e quase sideral – sem precedente que se exerce por todos os meios,
sobretudo pelos meios culturais, sobretudo através do domínio do
7 VIDAL, Gore. ‘Algo de novo na Terça-feira Negra’. Folha de S. Paulo, 18/9/2001, E-9.
Socialismo e Democracia
259
noticiário e da mídia de uma forma geral, ela própria um instrumento
das grandes agências internacionais, instrumento dos interesses objetivos que dão sustentação ideológica à cartilha neoliberal.
Para ter acesso a qualquer informação do que ocorre no Equador ou no Peru ou na Argentina, os brasileiros dependem da boa
vontade das agências de notícias internacionais e da CNN. É através de sua ótica – de sua visão de mundo e dos interesses que representa – que somos informados da crise do Oriente Médio, da
guerra dos Bálcãs, da Guerra do Golfo; é através de sua ótica, e
dos interesses estratégicos que representa, que somos informados
e levados a fazer opinião sobre Cuba e o que ocorre na Venezuela.
A primeira consequência dessa globalização é a concentração
da riqueza em um mundo do qual a maioria da Humanidade está
excluída, impondo-se a irrecorrível divisão do planeta entre os que
pertencem ao futuro e os que ficarão permanentemente no passado, sabendo-se que, no Primeiro Mundo, ficarão concentradas as
atividades criativas, inovadoras, a produção da ciência, da informação e da tecnologia, enfim, do conhecimento, isto é, os instrumentos modernos de poder e dominação.
Em 2000, o PIB dos países integrantes do G-7 somava 67 trilhões de dólares; o PIB de todos os países do Mercosul mais o do
Chile e o do México somava 1 trilhão e meio de dólares.
Como o processo se dá, por definição, de forma globalizada,
assim são seus efeitos: a emigração forçada e a constituição de um
exército de reserva mundial formado por desempregados, emigrantes clandestinos etc. que coloca todo o seu peso sobre a mão de
obra nacional, ela mesma precarizada, e sobre seus salários, vilipendiados, e sem defesa, com o esvaziamento político dos sindicatos,
construindo uma Humanidade de párias vagando em um Estado
privatizado, do qual foram retiradas suas funções sociais, a defesa
do emprego, a defesa da saúde, sem previdência social, sem seguridade social, um Estado sem mesmo capacidade de intervenção
em sua própria economia. O avanço da globalização dos circuitos
econômicos, financeiros e tecnológicos determina o esvaziamento
260
Roberto Amaral
dos sistemas econômicos nacionais e dos Estados, aos quais faltarão meios para determinar seja sua política econômica seja sua
política tecnológica seja sua política de produção, pois todas elas
estarão sendo decididas nas sedes das multinacionais que operam
em seus territórios. A um tal Estado assim enfraquecido sobrarão
as áreas sociais e culturais, aquelas fortemente limitadas pela vitória do liberalismo e, dela consequente, da desregulamentação.
Consolidado esse modelo de globalização, serão nossas sociedades progressivamente privadas de toda independência econômica
e cultural em relação à potência dominante.
E agora, o que fazer?
Busquemos alternativas.
A globalização poderia ser definida como um processo histórico que não é nem novo nem exclusivamente ocidental; desenvolvendo-se desde sempre, vem progredindo, século após século, por
meio de viagens, comércio, migração, difusão de influências culturais e disseminação de conhecimentos (envolvendo por exemplo a
ciência e a tecnologia). Nem sequer é puramente ocidental. Se no
final do último século seu movimento seguia a rota do Ocidente
para o resto do mundo, no começo do segundo milênio era a Europa que recebia a ciência e a tecnologia de chineses e a matemática
árabe e indiana.8 Entre um polo e outro, nos séculos XV e XVI, as
grandes navegações foram notável esforço de império comercial,
político e cultural. Mais recentemente, a Revolução Francesa tentou universalizar o poder burguês e o liberalismo (e concomitantemente os direitos do cidadão), realizando no mundo, isto é, no
Ocidente, e de forma mais irrecorrível, as transformações políticas
que afinal asseguraram a vitória da burguesia, e a ideologia do iluminismo, que se fez universal, sobre aquelas forças que insistiam
em manter presas a economia e a política. Destruindo o autoritarismo monárquico, derrotando a nobreza e o feudalismo, a Revolução Francesa se completaria, de forma objetiva, com a Primeira
8 SEN, Amartya. ‘A pressa e a retórica do confronto’. In Folha de S. Paulo, Suplemento Mais.
SP. 9/9/2001, p. 8.
Socialismo e Democracia
261
Revolução Industrial, ponto de partida para a universalização do
capitalismo como regime político e teoria de valores.
Dessa globalização pode-se dizer que se trata de imperativo
histórico que condiciona a evolução de todas as economias atuais.
Derivada remotamente das grandes descobertas e do comércio
mundial, é a globalização dos sistemas produtivos, alimentada pela
revolução tecnológica.
A globalização de que tratamos aqui, porém, não é fenômeno
nem natural nem histórico – no sentido de desdobramento inevitável –, mas a metáfora do neocolonialismo. Trata-se da globalização
dos fluxos financeiros e monetários e ocorre nos centros de poder
que se estruturam no mundo desenvolvido, Estados Unidos, União
Europeia e Japão.
A globalização de que tratamos aqui não resulta de geração
espontânea, nem é o resultado de um processo de evolução natural
nem atende a necessidades históricas. É produto do trabalho prolongado e constante de uma imensa força de trabalho intelectual,
concertado e organizado em verdadeiras empresas de produção,
difusão e intervenção.9
A diferença entre uma e outra acepções são a desigualdade, a pobreza abjeta, de países e de povos, e a riqueza sem precedentes concentrada em poucos países e neles em poucos segmentos populacionais.
Esta é a diferença fundamental, mas não é a diferença toda,
porque a globalização, finalmente, golpeia o modelo ocidental de
democracia representativa, esvaziando as funções tanto dos legislativos quanto dos executivos, isto é, dos poderes constituídos com
base na soberania do voto, esvaziamento que se dá, seja pela transferência do poder de decisão para multinacionais e organismos internacionais, seja, no plano nacional, pela transferência de poderes
de governo para agências reguladoras.
O subdesenvolvimento, que é a nossa doença, não se curará,
porém, simplesmente com os remédios oferecidos pelas leis do
mercado, mas sim com a ação de um Estado nacional que possa
9 BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001, p. 8.
262
Roberto Amaral
construir e pôr em execução, como projeto político, a erradicação da pobreza. Longe de qualquer contradição, afirmamos que o
Estado nacional é uma exigência da globalização, porque só um
Estado nacional forte, legítimo e legitimado pode fazer face aos desafios da mundialização e ao dever de preservar o projeto nacional.
A globalização dos fluxos monetários e financeiros exige rigoroso
constrangimento, de sorte que as empresas multinacionais sejam
levadas a respeitar as prioridades nacionais que, no caso de nossos
países, se devem voltar para o fortalecimento do mercado interno
e da oferta de emprego. O avanço das tecnologias, a informática, a
automação, a robótica, exigem a presença do Estado e a adoção de
políticas sociais tendentes a proteger o trabalhador.
O objetivo da política, portanto do Estado, é a realização dos
fins sociais. E não há como realizá-los sem a produção e a distribuição da riqueza nacional. A abertura ao mercado internacional,
a vanguarda tecnológica, tanto quanto a eficiência econômica, são
meios. Para essa reforma, precisamos do Estado refeito, desprivatizado, voltado para os interesses gerais da sociedade, em condições
de intervir em benefício do bem comum.
Esse novo Estado haverá de enfrentar o problema da fome e
da sub-alimentação, da segurança pública, das epidemias e das
doenças contagiosas, terá de concentrar os investimentos no fator humano para poder conciliar a globalização com a criação de
emprego, dirigir os investimentos no sentido do fortalecimento
do mercado interno, controlando, a partir do interesse nacional,
as decisões que dizem respeito à economia, ao desenvolvimento
científico e tecnológico.
Para superar a clivagem desenvolvimento/subdesenvolvimento é necessário que se conjugue uma vontade política – que exige
Estados democráticos e participativos – com condições objetivas já
oferecidas por muitas de nossas sociedades; exige uma ampla discussão nacional que conjugue pesquisadores e militantes apoiando-se
no Estado, mas num Estado modificado; apoiando-se nos sindicatos,
mas em sindicatos modificados; uma força de contestação que re-
Socialismo e Democracia
263
pouse na mobilização do capital cultural, o que implica a democratização de nossas instituições, profundamente autoritárias.
Recentemente, pelas razões sabidas e que não precisam ser rememoradas, pela dor que sua reiteração nos provoca, o presidente
dos Estados Unidos declarou o início da primeira guerra do terceiro milênio. Esqueceu-se de que estamos em guerra contínua em
todo o mundo, no Oriente Médio, talvez a mais grave delas, no Iraque, no Afeganistão, na antiga Iugoslávia, nos Bálcãs, na Chechênia, na Irlanda, na Espanha e na África. Neste continente, todas as
formas de guerra, a guerra clássica, a guerra de guerrilha, e a guerra
da fome e das epidemias que mata quase tanto quanto as minas
deixadas pelas tropas ocidentais. Na América Latina, na Colômbia
tenta-se internacionalizar uma guerra fratricida.
Há um ditado espanhol que diz que não se deve criar um corvo
porque, quando ele cresce, come os olhos do dono.
É evidente que não se pode analisar a tragédia da terça-feira
11 de Setembro como um fato autônomo, e seria muito bom para
a Humanidade, e para o Ocidente, que os responsáveis pela reação
militar reavaliassem a atual ordem internacional, que não pode se
sustentar, porque, destruindo metade do mundo, está cavando a
fossa de seu próprio ataúde.
O mundo está solidário contra a barbárie do terrorismo, inimigo
da Humanidade, tanto quanto contra a fome, não mais nem menos.
(9 de outubro de 2001)
264
Roberto Amaral
XI
Civilização e barbárie
(ou Ensaio sobre a nova ordem mundial)
Os Estados Unidos de hoje são o Michael Jordan da geopolítica – o sistema esmagadoramente dominante.
Thomas L. Friedman1
Boas ideias e boas tecnologias precisam de uma forte potência que promova essas ideias pelo próprio exemplo e que proteja essas ideias ao sair vencedora do campo de batalha.
Robert Kagan2
1. A nova ordem mundial
O atormentado final de século consolida a crise do Estado moderno: de um lado, o Estado-nação ameaçado em sua soberania;
de outro, o Estado-social esvaziado pelo neoliberalismo. Ambos
sofrem, por igual, a crise da política, com todos os seus desdobramentos possíveis, inclusive a supremacia da guerra sobre a détente e a negociação, o esvaziamento da ONU e a virtual falência do
direito internacional, reduzido a mero arcaísmo pela nova ordem
mundial, presidida pelo regime da potência única.
Nesse quadro, as crises do Golfo Pérsico (relembre-se: o Iraque continua vítima diária dos bombardeios norte-americanos e
1 The New York Times Magazine.
2 Historiador, citado por Friedman.
265
ingleses, levados a cabo sem mandato da ONU) e dos Bálcãs são
episódios paradigmáticos, mas não encerram a história toda.
De fato, ao lado da ‘globalização’ econômica (essencialmente um
projeto político), este final de século assinala a vigência de uma nova
ordem mundial – caracterizada pela unipolaridade política, econômica, militar, tecnológica e cultural (que implica, também, o monopólio da informação) –, fenômeno desconhecido pela comunidade
das nações nos últimos dois séculos, e bem mais significativo que o
imperialismo/colonialismo inglês, talvez só comparável à pax romana, mas, sem dúvida alguma, mais profundo do que essa. Na verdade,
‘globalização’ e nova ordem mundial se fundem como fenômenos intercomunicantes, cada um causa e consequência do outro. Trata-se de
um domínio político, planetário, construído como desdobramento do
império norte-americano sobre a economia de mercado, donde a balcanização/libanização dos demais Estados – que não mais podem aspirar à soberania –, cujas prerrogativas são crescentemente limitadas,
reduzidas e condicionadas, dos pontos de vista político, econômico e
militar. O Estado tradicional entra em decadência e a Humanidade
volta a conviver com protetorados de fato.
Essa falência da soberania (donde a crise dos Estados-nação e
dos organismos internacionais) é uma das consequências da transição do mundo do polipoder (e da bipolaridade e da Guerra Fria)
para a unipolaridade, o período que vem do momento histórico
identificado como ‘queda do muro de Berlim’ (1989) até nossos
dias, cujo marco é a autonomia da Otan (Organização do Tratado
do Atlântico Norte) em face da ONU, se autoproclamando e agindo
como uma força erga-Estados, erga-direito.
Como fase de polipoder denominamos aqueles anos que medeiam a primeira e a segunda guerras mundiais, assinalados pela
construção de vários pólos de poder econômico, político e militar, tanto na Europa (Alemanha, Itália, França, Inglaterra, URSS),
quanto na Ásia (Japão), quanto na América (Estados Unidos).
A bipolaridade é o período que se segue à derrota do nazifascismo,
com seus desdobramentos, a saber, o controle político-militar sobre a Alemanha dividida e partilhada, a desmilitarização do Japão
266
Roberto Amaral
sob controle norte-americano, a construção do império soviético, a
liderança ideológica, cultural e militar do ‘sistema ocidental’ pelos
Estados Unidos, e, finalmente, a Guerra Fria.
A derrocada do ‘socialismo real’ e o consequente (e articulado)
desmantelamento da União Soviética ensejam a unipolaridade, isto
é, o império isolado, autônomo e incontestável dos Estados Unidos.
Da condição de unipotência econômica, militar e política resulta o
monopólio de intervenção nos negócios e interesses de outras soberanias, posto que a política internacional, para esse país, e em face
dessa nova geopolítica, é apenas o prolongamento de sua política
nacional, a saber, uma projeção de seus interesses. De outra parte,
e como desdobramento inevitável dessa compreensão de mundo,
o que quer que seja que não sirva aos interesses norte-americanos
é entendido como desservindo aos interesses norte-americanos, e,
nessas condições, hostilizado.
A unipolaridade – ou esta era de unipotência – determina a
falência dos organismos internacionais (e do direito internacional
público) –, com destaque para o desvanecimento da ONU – e,
pari passu –, a destruição do Estado, dos Estados nacionais, do
Estado-nação, e, inevitavelmente, da política. Dito de outra forma,
queremos assinalar que a chamada ‘crise do Estado’ é mais propriamente a crise da soberania, posto que, se é impossível a sobrevivência do Estado carente de soberania, é de igual modo inconcebível
a sobrevivência da soberania em face do regime da unipotência.
E, assim, os Estados são reduzidos a simples territórios, e as nações
a um anacronismo.
Daí, o fim da política.
É esta a nova ordem mundial.
No plano das relações internacionais, a falência da soberania (ou
o fim da autodeterminação, acentuado pela militarização dos conflitos
políticos) é a matéria-prima da interdependência global; no âmbito
interno das nações seu correspondente é o esvaziamento da política.
Porque o fim da política é também o reino da política única,
espinha dorsal ideológica da ‘globalização’.
Socialismo e Democracia
267
A política, esvaziada, deixa de ser instrumento de realização dos
fins sociais; abastardada, é a arte da mentira, do engodo, da farsa, da
fraude, do subterfúgio. Da coisa sempre menor, dos projetos individuais, da traição aos interesses coletivos. A política é reduzida a um
inócuo exercício institucional, organizando eleições defraudadas e
corrompidas das quais emergem governos fraudulentos e corruptos,
em eleições que não valem nada porque nada mudam. Assim, o povo
vai sendo expulso da ágora e cada vez menos se identifica com seus
mandatários ou com as instituições de governo. E como se identificar
com a corrupção, com a traição do interesse público, a privatização
do público pelos interesses do capital? Com as administrações controladas pelos interesses do empresariado, o tráfico de informações
privilegiadas proporcionado por funcionários públicos em funções
estratégicas que transitam do serviço público para o empresariado
privado e vice-versa? Com o desvio, para fins privados, dos bens,
benefícios e serviços públicos? Com o nepotismo, o favorecimento,
o clientelismo e a desmoralização do interesse público e do interesse
nacional, anatematizados como arcaísmos?
Com o fim das conquistas republicanas – o fim do serviço público, o fim da igualdade dos direitos, o fim do direito à educação,
do direito à saúde, à cultura, à arte e, finalmente, o fim do direito
ao trabalho – se instala na população a crise de desconfiança no
Estado e na prioridade do bem público.
Poucos se dão conta do ‘novo’ autoritarismo porque são preservados os marcos da democracia formal: o povo – o grande desenganado – ainda vota, e os meios de comunicação circulam sem
censura estatal.
Organizando essa fraude, a ação concertada dos meios de
comunicação e da intelectualidade, inclusive acadêmica, construindo o discurso único, dogmático, o monopólio da informação
abundante e insignificante, desintegrada e desintegradora, dispersa e desestruturada e desestruturante, uma visão cada vez mais
despolitizada, incolor e inodora, deshistoricizada e deshistoricizante, instantaneísta e descontínua, atomizada e atomizante do
mundo, o mundo mediático, que, virtual, se sobrepõe ao mundo
268
Roberto Amaral
real, expulso da televisão. Daí a videopolítica e a videodemocracia. A opinião pública é a opinião dos que controlam os grandes
meios de comunicação, verdadeiros partidos, ou o partido-único,
portador do discurso ideológico homogeneizado: a inevitabilidade da ‘globalização’, o ‘fim do Estado’, o ‘fim da história’, a privatização e a desnacionalização como imperativos, donde o fim do
debate e do contraditório. Há uma unanimidade planetária dos
grandes meios de comunicação – impressos e tecnológicos – em
torno dos primados ideológicos da nova ordem internacional.
A mesmice da imprensa brasileira3 é a reprodução colonizada das
matrizes do pensamento internacional, de onde copiamos ideias,
hábitos, costumes, visão de mundo, política, regime, amor e ódio.
A política, assim, é o simulacro da política, a democracia (sem
diálogo e sem representação) nega a democracia, a comunicação
não informa: a ampla liberdade de imprensa é o manto que encobre a ausência de debate, o contraditório e o confronto das ideias.
A cidadania é um puro engodo, quando mais direitos os cidadãos
poderiam aspirar.
Daí, a ideologia única, o discurso único, a economia única, o
mercado (globalizado) como religião. O monopólio da ortodoxia
tecnocrática, exercido pelos novos evangelistas do novo mundo:
a tecnoburocracia, os altos funcionários das grandes empresas, os
executivos dos organismos internacionais empunhando as bíblias e
os alcorões do fundamentalismo neoliberal. A ‘globalização’ tornase uma fatalidade, o fim do Estado, inevitável, a dependência, uma
3 O papel da imprensa, instrumento da guerra – a guerra mediática em que objetivos militares
se confundem com seus efeitos nos meios de comunicação de massa, na qual a imprensa é um
instrumento de ação com objetivos em nada diversos dos bombardeiros e das bombas- está a
exigir um ensaio à parte, o que extrapolaria os limites deste texto. Da imprensa brasileira – em
face do distanciamento geográfico e da inexistência de interesses envolvendo as economias
brasileira e iugoslava – poder-se-ia esperar um mínimo de não passionalismo. Mas não foi
o que se viu. Ao leitor brasileiro foi transmitido um noticiário de segunda mão e unilateral,
fornecido por uma das partes em conflito. Jamais a imprensa brasileira procurou conhecer
um eventual outro lado da história. Quando enviou seus próprios repórteres, foi para reforçar
a visão unilateral da guerra. Que Hollyood sirva ao Pentágono e a CNN atenda ao Departamento de Estado norte-americano, até que se entende. Mas o que a imprensa brasileira tem
com isso? Sua subserviência chega a pô-la em distonia com Brasília, cuja posição foi sempre
ainda que exageradamente tímida, de condenação da guerra como meio de solução dos conflitos políticos.
Socialismo e Democracia
269
necessidade. Apesar do fracasso do modelo neoliberal. É, uma vez
mais, a vitória do discurso sobre a realidade.
O fundamento dessa nova ordem econômica é a liberdade dos
indivíduos. Mas o que se vê é sua destruição: a violência do desemprego, a precariedade da sobrevivência física, o medo derivado
da insegurança: o homem passou a temer o futuro. O reinado do
mercado implica o reinado do consumidor, o substituto comercial
(despolitizado) do cidadão: o bem público é o bem privado, a coisa
pública é a coisa privada.4 Dizem que as fronteiras entre Estados
já não funcionam, mas os trabalhadores não têm livre trânsito. Ao
livre fluxo de mercadorias (no sentido Norte-Sul) e do capital não
corresponde o livre trânsito de homens; a mão de obra farta das
antigas colônias e os conflitos religiosos, estimulados, alimentam
na Europa e em todo o mundo políticas migratórias racistas e discriminatórias. Importam-se empresas e mercadorias; exportam-se
empregos e territórios:
Importam-se empresas e exportam-se lugares. Impõe-se de fora
do país o que deve ser a produção, a circulação e a distribuição dentro do país, anarquizando a divisão interna do trabalho
com o reforço de uma divisão internacional do trabalho que determina como e o que produzir e exportar, de modo a manter
desigualmente repartidos, na escala planetária, a produção, o
emprego, a mais-valia, o poder econômico e político.5
E, em nome do mercado e da liberdade, do livre-câmbio e do
neoliberalismo, temos o monopólio absoluto ou mais perfeito (e
não estamos em face de uma contradição em termos): o monopólio
estatal pelo Estado único.
O monopólio da economia.
O monopólio do mercado.
4 BOURDIEU, Pierre. Contre-feux. Propos pour servir à la résistence contre l’invasion néoliberale. Liber-Raisons d’Agir. Paris. 1998.
5 SANTOS, Milton. Geógrafo, professor emérito da USP. In ‘Guerra dos lugares’. Folha de
S. Paulo. 8/8/1999.
270
Roberto Amaral
O monopólio dos valores.
O monopólio da informação e, finalmente, o monopólio da
violência e da guerra.
Os Estados cedem poder e competência em proveito de organismos que não pertencem a qualquer categoria da soberania
popular ou da democracia representativa.6 São o FMI, o BID, o
Banco Mundial, o BIRD, a Microsoft, a General Motors, a IBM, a
CNN, a banca internacional e o capital especulativo que ditam as
regras do comércio e da economia no planeta, o novo Leviatan do
mundo neoliberalizado.7
6 A crítica de Gore Vidal à ‘democracia representativa’ norte-americana pode ser aplicada a todas as democracias ocidentais. Depois de assinalar, como fato triste, que em
seu país não exista mais política (o que seria uma das fontes da ‘política’ de guerra),
observa: “(…) Nós não possuímos uma democracia representativa. Quem foi eleito
para o Congresso não representa a Califórnia ou a Virgínia Ocidental, senão a General
Motors ou a Boeing. Todo mundo sabe disso, e as pessoas se acostumaram com essa
situação. (…) Nós, americanos, temos de defender o nosso Bill of Rights ou já quase o
perdemos. Um homem que durante vinte anos fez comerciais para a General Electric
se tornou um dia presidente dos Estados Unidos e fez no seu novo emprego aquilo que
melhor podia –comerciais para a General Motors. Estou me referindo a Ronald Reagan.
Os apresentadores talvez sejam trocados, mas o comercial para a empresa permanece
o mesmo. Richard Nixon não foi imbecil quando disse que os EUA não precisavam de
nenhum governo para a política interna. Naturalmente precisariam urgente de uma,
mesmo quando não sob o seu ponto de vista. O país se auto gera. Nixon queria dizer
com isso que as empresas do país conduziam os negócios do país. E neste negócio
não se trata de outra coisa que não de dinheiro. O presidente só é necessário para a
política externa. Um demagogo experto poderia demonstrar essa cosa nostra das empresas. (…) Ele (Clinton) é apenas um empregado. Os presidentes não interessam. Eles
podem fazer algumas besteiras na política externa, como agora em Kosovo, mas não
na política interna. O presidente americano pode ser porventura importante para os
sérvios, mas não o é para os americanos. A América dos conglomerados emprega seus
advogados, que tratam de seus interesses no Congresso e no governo. Para isso eles são
bem pagos; os donativos para as campanhas eleitorais fazem mais do que o necessário”.
VIDAL, Gore. Em entrevista a WINKLER, no Suddeutsche Zeitung, edição de 2 e 3/6/
1999. (Tradução de Susana de Castro)
7 Escreve FRIEDMAN, Thomas, articulista do The New York Times Magazine, no artigo ‘Manifesto para o mundo veloz’ traduzido pelo O Estado de São Paulo e publicado na edição
de 29/5/99: “O sistema da ‘globalização’ encontra-se erguido em torno de três elementos de
equilíbrio que se sobrepõem e exercem influência entre si. É o tradicional equilíbrio entre
Estados e Estados. O seguinte é o equilíbrio entre Estados e supermercados – os gigantescos mercados globais de títulos e ações. Os Estados Unidos podem destruir você jogando
bombas e os supermercados podem destruir você desvalorizando os seus títulos”.
Socialismo e Democracia
271
Uma só rede de televisão decide o que podemos ver e ouvir,
transformando o mundo num espetáculo, num videogame, reduzido o mundo a uma visão ideológica unilateral, e os fatos, aos
fatos que interessam a essa visão. Em nossos países, onde reina
o monopólio da audiência,8 as redes locais reproduzem a grande
rede mundial. A aldeia global macluhaniana funde-se com a premonição orwelliana.
Finalmente, depois do mercado único, se estabeleceu o exército
único, mais poderoso e mais impudico do que as legiões de César,
mais impiedoso com seus adversários do que qualquer outro.
Mas o desmantelamento das Federações (o fim da União Soviética foi só um começo), no que desfaz grandes Estados e enseja a multiplicação de pequenos entes políticos, sem capacidade
de autonomia econômico-política e segurança militar, também
alimenta as reivindicações de nacionalidades e reacende conflitos
territoriais, religiosos e étnicos de difícil controle.9 Assim, a provocada desconstituição da Iugoslávia está na raiz dos conflitos entre
sérvios e kosóvares,10 estimulando aqueles nacionalismos étnicos
que Tito havia posto sob o controle de uma Federação (República
Socialista Federativa da Iugoslávia).
Como ignorar a história, descontextualizando os fatos, como
se cada fato ou episódio fosse uma totalidade, uma realidade histórica desapartada do passado que a engendrou, como fazem os Es8 Cf. O Globo de 5/9/1999: “67 das 70 maiores audiências do Brasil são da (TV) Globo”
9 “A desaparição da URSS originou 15 novos Estados, com graus variados de soberania
efetiva mas dotados de representação internacional própria, forças armadas e sistemas
de leis particulares. A criação da CEI não foi capaz de evitar a deflagração de guerras
abertas em repúblicas ex-soviéticas. Os conflitos latentes entre povos, etnias e nacionalidades que compunham o Estado soviético degeneraram em conflitos militares e uma
instabilidade estrutural se instalou na periferia da Comunidade e na região báltica”.
MAGNOLI, Demétrio. Questões internacionais contemporâneas. Fundação Alexandre
Gusmão. Brasília. 1995, p. 84.
10 Escreve FARAH, Paulo Daniel ‘Os Bálcãs – Qual será a próxima guerra?’ in Folha de
S. Paulo, 20/6/1999: “O Ocidente viu o desmantelo da ex-Iugoslávia como uma vitória
sobre o comunismo (mas) a ofensiva neoliberal contra os antigos Estados comunistas
produziu desordens na Europa que causaram o ressurgimento de comportamentos semelhantes aos dos nazistas”.
272
Roberto Amaral
tados Unidos e seus aliados, com a complacência de uma imprensa
mundial comprometida com a ideologia da guerra?
É preciso lembrar que os sérvios chegaram à região hoje identificada como Kosovo no ano VI d.C.
É preciso lembrar a Batalha de Kosovo em 1389, com a derrota
do expansionismo sérvio.
É preciso lembrar a primeira grande guerra.
É preciso lembrar a invasão da Iugoslávia por tropas alemãs,
italianas, húngaras, romenas e búlgaras em abril de 1941, quando
a diplomacia de guerra de Hitler e Mussolini cunhou a expressão
‘Nova ordem mundial’, reatualizada pela Otan.
É preciso lembrar a guerra da Bósnia.
Como ignorar as sequelas da guerra civil da Bósnia (19921995), e o artificialismo do compromisso de paz firmado em Daytona
(EUA), em 1995, por iniciativa dos Estados Unidos?11
É preciso lembrar o acordo de Daytona e a expulsão, pelos croatas, do presidente Franjo Tudjman, de milhares de sérvios da região
de Krijina, que já estava sob a proteção da ONU, e que não esboçou
qualquer sorte de reação, reação que também não se conheceu, de
qualquer organismo internacional, quando o deslocamento de civis
sérvios da Croácia e da Bósnia criou um contingente de cerca de
700 mil refugiados.
“Os sérvios não esqueceram a sua história, como também não
a esqueceram os outros povos da região”.12
11 O acordo de Daytona, “ao mesmo tempo que impôs uma paz armada, coroou a lógica da
limpeza étnica e a separação entre os povos criando três entidades nacionais (de um lado,
com metade do território, as entidades croata e muçulmana reunidas em uma federação;
com a outra metade, uma entidade sérvia). Em cada um dos territórios, os membros das
demais etnias foram deslocados, impondo assim a lógica da separação, que era atribuída
aos sérvios e cuja negação, supostamente, justificava toda ação dos aliados dos Estados
Unidos. Os acordos implicaram a renúncia sérvia a certos territórios. Eles, que tinham
chegado a dominar 70% da Bósnia, ficaram com cerca de 50%. Os sérvios perderam terras,
mas o acordo tornou vencedora a lógica da imposição de uma separação entre os povos”.
SERVA, Leão. In ‘Bálcãs: onde as tragédias da História se repetem (Nesta guerra, a primeira
vítima é o leitor)”. Política Externa. v. 8, n.1, jun./1999. P. 14.
12 Idem. p. 3-15. Recomendamos sua leitura principalmente para aquele leitor que desejar
Socialismo e Democracia
273
A política de negar a guerra sem construir a paz era o germe
inevitável da segunda fase da tragédia.13
Mas, se não é o primeiro confronto étnico-religioso com desdobramentos político-militares (católicos e protestantes na Irlanda,
o Irã dos aiatolás, os curdos no Iraque e na Turquia, os conflitos no
Paquistão, no Afeganistão e na Argélia), não será o último. Outros
virão, como desdobramento de um processo já desencadeado, ou,
se necessário, virão estimulados de fora para dentro. Como foi estimulada a guerra Iraque-Irã, a guerrilha talibã quando esta servia
para desestabilizar o governo pró-soviético do Afeganistão.
Pergunta-se: a Otan continuará intervindo nos conflitos étnicos e religiosos que se multiplicarão pelo mundo, nas próximas décadas? Só nos Bálcãs, os estrategistas da guerra podem anotar as
rivalidades entre cristãos (ortodoxos e católicos romanos) e muçulmanos, divididos entre povos e etnias os mais diversos, como sérvios, croatas, eslovenos, macedônios, búlgaros, romenos, húngaros,
gregos, albaneses e turcos. Na região do Cáucaso, os atritos entre
a Armênia e o Azerbaijão parecem incontornáveis, tanto quanto
os confrontos com a guerrilha fundamentalista no Daguestão. Na
Geórgia, eclodem os movimentos separatistas dos eslavos da Ossétia do Sul e da Abkhazia. A instabilidade e o conflito são as características dos Estados muçulmanos: Turquia, Irã, Afeganistão e
Paquistão. Há conflitos com os curdos, principalmente na Turquia
e no Iraque. Na Europa, não foram resolvidas as questões autonomistas no interior da Espanha, nem o conflito religioso-político na
Irlanda do Norte. Estão presentes as disputas entre a Grécia, o Chipre e a Turquia. No Líbano, no Marrocos, em todo o Oriente, para
além das disputas entre árabes e judeus. Os conflitos são inumeráveis na Ásia (Índia, Paquistão, Afeganistão, Bangladesh, Coreias,
Taiwan…) e na África, mas este continente não conta…
uma indispensável contextualização da crise e do conflito dos Bálcãs.
13 Como se poderia ter evitado a tragédia, já que se tratava de fragmentar a Iugoslávia?
Como os 600 mil sérvios que viviam na Croácia poderiam viver a divisão senão como
uma tragédia que levaria à guerra e aos massacres?. Peter Handke, em entrevista ao
“Libération”, Folha de S. Paulo, 4/4/1997, isto é, dois anos antes da invasão ‘humanitária’.
274
Roberto Amaral
Ora, certamente um dos objetivos da estratégia da Otan (isto é,
dos Estados Unidos), nos Bálcãs, é a pulverização dos Estados, mediante o estímulo à vontade autonomista de minorias e unidades
federativas que agora podem ter a esperança de que contarão com o
maior exército do mundo para avalizar seus pleitos diante dos Estados a que pertencem. Essa política, que começa a dilacerar o Leste
Europeu, não deverá ficar, necessariamente, contida no subcontinente. Ao contrário, a expectativa mais razoável é que o mundo
venha a assistir a uma multiplicação de movimentos separatistas
laicos, o que implica a multiplicação de focos de conflito e guerra e
o enfraquecimento dos Estados, criando condições favoráveis para
a estratégia da potência hegemônica.14 O episódio de Kosovo, é, na
essência, uma tomada de posição da Otan em face de uma guerra
civil autonomista, no seio da Iugoslávia. E de aspirações como essa
está pontilhado o mundo de hoje, seja na Europa (atingindo, além
do Leste, países como a França e a Espanha), seja na Ásia, seja na
África. E onde esses movimentos não atendam a motivações históricas, culturais ou étnicas, elas bem que podem ser provocadas, estimuladas, organizadas, financiadas, pois essa é a lógica da guerra.
Não será exagero indicar, já como fruto desse autonomismo despertado pela intervenção da Otan, a inesperada iniciativa
de Taipé reivindicando do governo de Pequim um tratamento de
Estado-Estado entre a China e Taiwan. Ou os novos conflitos no
Cáucaso, onde o grupo rebelde fundamentalista Wahhabi Islâmico ocupou, no início de agosto de 1999, três cidades da República
russa do Daguestão. Seu objetivo é forçar a criação de um Estado
islâmico ao norte do Cáucaso, ao lado da Chechênia.
1.1. A pax americana
Estas são as características essenciais de uma nova ordem internacional, presidida pelo que todos estão chamando de pax americana,
estabelecendo, de um lado, a melancólica agonia da ONU e do direito
14 Cf. MARTINS, José Miguel Q., in ‘Nem a guerra nem a paz’, apud Conjuntura política, Boletim de análise do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, n. 7, maio/1999, p. 33-36.
Socialismo e Democracia
275
internacional, e, de outro, o império dos interesses norte-americanos
sobre o mundo, daí o conflito com o Irã, os bombardeios punitivos sobre o Iraque, o Sudão e a Iugoslávia, a lei Helmans-Burton de pretendida aplicação extraterritorial, os bloqueios econômicos e políticos e o
direito que se atribuem os Estados Unidos de aplicar sanções políticas
e econômicas severíssimas (embargos, sobretaxações e outras práticas
protecionistas e retaliatórias) contra nações soberanas. Mais da metade
dos países do planeta está submetida, foi vítima ou está ameaçada por
sanções econômicas ou comerciais decretadas por Washington. Estados como o Iraque, a Coreia do Norte, o Sudão, Cuba, Irã ou a Líbia,
condenados unilateralmente como ‘párias’ por Washington, pagaram
ou pagam alto preço por insistirem, cada um ao seu modo, em sobreviver com um mínimo de autodeterminação. Um deles, o Iraque, está
submetido a uma liquidação de caráter genocida, em consequência de
um embargo cujos objetivos não obedecem mais a qualquer lógica razoável, salvo a autossatisfação da implacável cólera norte-americana.15
A discriminação comercial e o comércio administrado de forma unilateral são postos em prática tendo como pano de fundo
um discurso que proclama o livre-comércio e o multilateralismo.
As vítimas não têm a quem recorrer, emparedadas entre a unipotência e a inutilidade de uma Organização Mundial de Comércio
(OMC), justamente esvaziada e impotente, ademais de manipulada. Nem a diplomacia brasileira ousa ignorar:
As potências econômicas e comerciais são responsáveis pela
maior parte das distorções no multilateralismo pela razão simples de que têm influência determinante sobre as trocas internacionais. A Rodada Uruguai foi pródiga em exemplos, que envolveram notadamente a questão dos subsídios agrícolas (aplicados
em larga escala pela UE e, setorialmente, por americanos e japoneses) e das barreiras protecionistas informais (caso flagrante
dos sistemas de distribuição de mercadorias no Japão).
Os Estados Unidos, principal defensor das teses multilateralistas e liberalizantes, revelam-se acentuadamente protecionistas
15 SAID, Edward W., ‘La trahision de los intelectuales’. In Le Monde Diplomatique, out./
1999. p. 6-7.
276
Roberto Amaral
no que concerne a ramais vitais da sua indústria (através, por
exemplo, dos subsídios indiretos à microeletrônica, por meio
das encomendas de material bélico). A administração Clinton,
que desde a campanha eleitoral definiu prioridades de política
externa condicionadas ao incremento da performance comercial dos produtos nacionais, atenta permanentemente contra o
multilateralismo ao promover o comércio administrado com
o Japão e ao multiplicar as ameaças de aplicação da legislação
comercial retaliatória de que dispõe (Super 301), ignorando as
instâncias multilaterais de recurso.
A combinação dessas duas características da ordem comercial
internacional – multilateralismo regulado por consensos negociados e práticas comerciais discriminatórias utilizadas unilateralmente – parece configurar o cenário mais provável no horizonte próximo.16
O déficit comercial recorde dos EUA deverá fortalecer esse
protecionismo e prejudicar ainda mais as exportações dos países
emergentes (v.g. Brasil, Argentina, México, ‘tigres asiáticos’) às voltas com os rescaldos nacionais da crise econômica mundial.17
A condição de único país com interesse global desaparta os Estados Unidos das limitações legais: seus interesses, onde quer que estejam, são interesses ‘nacionais’ e seu direito não pode confinar-se a
limitações geográficas, até porque suas fronteiras se confundem com
a extensão de seus interesses; são do tamanho do mundo. Os Estados
Unidos, assim, não compreendem porque teriam de partilhar sua soberania ou limitá-la em face da soberania de outros países, quando
podem exercer essa soberania de forma absoluta e sem que ninguém,
nenhum país e nem mesmo as Nações Unidas, possa contestá-los. Eis
como se desfaz um dos pressupostos do direito: sua universalidade.
Esta, a consequência fática do regime de unipotência militar.
Esta pax americana só semanticamente remonta à pax romana
imposta ao mundo depois da vitória de Cipião sobre as tropas de
16 MAGNOLI, Demétrio. Op. cit. p. 122-123.
17 Cf. Folha de S. Paulo, 26/6/1999.
Socialismo e Democracia
277
Aníbal decretando a queda de Cartago e o fim das guerras púnicas (264-146 a.C.). Porque o império norte-americano é mais extenso e mais profundo, política, ideológica e militarmente, muito
mais planetário e, proporcionalmente, muito mais poderoso do
ponto de vista bélico, concentrando em suas mãos poderes de
destruição inimagináveis por outros impérios em qualquer época
da humanidade. Poderes que jamais foram empregados tão livremente como hoje.
Ora, por inevitável, a ‘globalização’ econômica estaria a exigir
um projeto também globalizado de estratégia militar (mais precisamente: econômico-militar) de segurança, ditado, evidentemente,
pelos interesses da unipotência. Assim, não é mais insólito que a
primeira ‘guerra’ da Otan seja travada após o fim do Pacto de Varsóvia e a débâcle da União Soviética e o fim do ‘fantasma’ comunista; que, ao invés de repelir uma agressão comunista, promova o
bombardeio de um país que até há pouco se considerava europeu
e ocidental… e que não havia invadido ou ameaçado a integridade
territorial de nenhum outro país europeu.
Mero desdobramento dessa lógica, a Otan, a partir de Kosovo
e da reunião de Washington18 se atribui o direito de intervir onde
quer que seja, e, ademais de intervir e bombardear o território que
lhe parecer de seu direito bombardear, se outorga também o poder
de estabelecer embargos econômicos para obediência de todas as
nações do mundo. Nessa reunião, a cúpula da Aliança praticamente revogou o ‘Conceito estratégico’, aprovado em 1991, em Roma,
quando ainda existia a União Soviética, e construiu uma linha de
ação da chamada nova Otan. Se, pelo estatuto original, os objetivos
estratégicos da organização se limitavam à defesa diante de agressões de outros países, pela nova ordem a Otan pode intervir fora de
seu território, independentemente de agressão, e sem autorização
prévia do Conselho da ONU, exigência do presidente norte-ame18 Trata-se da Cimeira de 23 de abril p.p. realizada em comemoração dos 50 anos do Tratado. Nessa reunião, a cúpula da Otan decidiu, além de manter os ataques à Iugoslávia,
adotar medidas complementares como ‘aplicação intensificada de sanções econômicas e
um embargo de produtos petrolíferos”. Jornal do Brasil, 24/4/1999.
278
Roberto Amaral
ricano. Seu desafio, agora, “é combater novas ameaças, como o terrorismo, as armas de destruição em massa e os conflitos regionais
provocados por rivalidades étnicas ou religiosas”.19
Tudo, como se vê.
Um colegiado de exércitos, assim autotransformado em instrumento de intervenção militar, sob o comando dos Estados
Unidos, age como se fôra um organismo internacional de Direito,
decretando a obsolescência da Carta das Nações. O fim do Estado
se dá num processo moloch: construindo o Estado erga-Estado.
1.2. A ‘globalização’ da nova ordem mundial
Comecemos pelo óbvio: a nova ordem internacional (de que
a autonomia dos exércitos norte-americanos é um só indicador) e
a ‘globalização’ constituem fenômenos interdependentes e complementares, um circuito de vasos comunicantes. Sistema internacional
de poder que substitui a Guerra Fria, a ‘globalização’ é a disseminação do capitalismo financeiro sobre o capitalismo de produção, a
onipotência do mercado livre (sendo livre, tão só, o fluxo Norte-Sul),
com todos os seus ingredientes, não só econômicos quanto políticos,
não só ideológicos quanto militares, interligando mercado, ideologia
e guerra. É perfeita a síntese de Thomas Friedman:
Nós, americanos, somos os apóstolos do mundo veloz, os profetas do livre-mercado e os sumos sacerdotes da alta tecnologia. Queremos a ‘ampliação’ tanto dos nossos valores como de
nossas Pizza Huts.
Queremos que o mundo siga a nossa liderança e se torne democrático e capitalista, com um web site em cada atividade, uma
Pepsi nos lábios, o Windows da Microsoft em cada computador
e com todos, em toda parte, colocando a própria gasolina.20
19 “Intervenção é a nova estratégia”, Oppenheimer, W., in Jornal do Brasil, idem.
20 FRIEDMAN. Idem.
Socialismo e Democracia
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Nunca a guerra foi tão exemplarmente a continuação da política por outros meios. É o mesmo Friedman:
A mão oculta do mercado jamais funcionará sem um punho
oculto – o McDonald’s não pode prosperar sem a Mc Donnel
Douglas, que projetou o F-15. E o punho oculto que mantém o
mundo seguro para as tecnologias do Vale do Silício chama-se
Forças Armadas, Força Aérea, Marinha e Fuzileiros Navais dos
Estados Unidos.21
A globalização, assim, precisa ser vista como um sistema articulado de poder planetário (que abarca todas as esferas da expressão
humana) e que atinge forçosamente a todos os países e povos, como
engrenagem que, para funcionar, não admite ponto morto. Os recalcitrantes serão punidos. A ‘globalização’ é a homogeneização do pensamento e dos exércitos, o fim das nações e dos projetos regionais (e,
se desaparecem as nações, devem desaparecer a cultura nacional e
os exércitos nacionais), donde a redução do mundo a um mercado
a um só tempo universal e único, com ideologia única, com projeto
único, com vontade única, presidido por uma unipotência, senhora
do bem e do mal, portadora do ‘bem’ e inimiga do ‘mal’. E mal é tudo
o que por ela for designado como tal. Para esse efeito, o império militar precisa de uma causa, de um inimigo a perseguir e a punir; se
ele não existe, pode ser criado. Daí as satanizações sucessivas: o comunismo em geral e Cuba em particular, o Irã dos aiatolás, o Iraque
de Saddam, a Iugoslávia de Milosevic. Até Granada22 e a República
Dominicana23 já foram alvos de intervenção.
21 Idem. Idem.
22 Só para lembrar: trata-se de uma das Antilhas, um Estado independente com 344
km2 e 110 mil habitantes. Foi invadido pelos Estados Unidos (administração Reagan)
em 1983 porque tinha um governo sob forte influencia cubana, evidenciada pela
construção, em sua capital (São Jorge) de uma pista de aviões que, podendo servir a
um aeroporto internacional, ‘também poderia servir de base para uma agressão ao
território norte-americano’… A pista ou o aeroporto era construído por engenheiros
ou técnicos cubanos.
23 Só para lembrar: Estado independente da América Central, situado na parte oriental da
ilha do Haiti, com 48.400 km2 e 7.500.000 habitantes; em 1983 foi invadido por tropas
norte-americanas e de outros países da OEA, inclusive o Brasil (sob ditadura militar),
para impedir a posse do presidente eleito, J. Bosch, de esquerda.
280
Roberto Amaral
O objeto da satanização pode ser um regime, um país, um dirigente político ou uma causa, como o combate ao narcotráfico, que
pode amanhã justificar a balcanização da Colômbia, ou a defesa de
recursos naturais indispensáveis à sobrevivência da Humanidade…
Nesse sentido é mesmo o fim da história…
A crise dos Bálcãs é, pois, uma das exigências da ‘globalização’
(via potência única) vista como a sucessora da Guerra Fria.
1.3. Os Estados Unidos e a globalização: um caso de sucesso
econômico
A ‘globalização’ se confunde com os Estados Unidos e os Estados Unidos são os maiores beneficiários da ‘globalização’.
Os Estados Unidos são o único grande mercado consumidor
que cresceu durante todo o período da crise global, iniciada em
julho de 1997, na Tailândia. São inumeráveis, e incontroversas, as
análises de observadores norte-americanos. Em recente comentário, o New York Times escreve:
O grande afluxo de capitais impulsionou Wall Street: a soma do
valor de todas as Access negociadas na Bolsa de Nova Iorque subiu de US$ 8,92 trilhões em junho de 1997, quando começou a
etapa asiática da crise, para US$ 11,72 trilhões em dezembro do
ano passado. Uma alta de 31%, no período em que outras Bolsas
ditas emergentes, como a de Moscou, acumulavam perdas de até
86%. Simultaneamente, o desemprego americano caiu aos níveis
mais baixos das últimas três décadas e a economia cresceu em
ritmo acelerado. No ano passado, o Produto Interno Bruto (PIB)
expandiu-se a uma taxa de 6,1%, a melhor dos anos 90.24
O Brasil, depois das ‘duas décadas perdidas’, deve ter, em
1999/2000, crescimento negativo em torno de -1% a -1,5%.
24 Citado pelo Jornal do Brasil de 1/3/1999.
Socialismo e Democracia
281
O déficit comercial norte-americano de US$ 21,3 bilhões revela, a um tempo, a riqueza dos Estados Unidos e a pobreza do
mundo. Revela mais, que sua riqueza resulta da pobreza do mundo, cuja capacidade de compra vem caindo. Esse outro lado da
globalização põe a nu a fragilidade da economia mundial, dependente do poder de compra, isto é, da vitalidade de uma só economia, cujo permanente boom pode levar a uma inflação (ameaça
admitida pelo Federal Reserve Board) que, associada ao déficit,
será tratada pelos remédios clássicos do capitalismo norte-americano: mais protecionismo. Ou seja, mais restrições ao desenvolvimento da economia mundial, de particular dos países chamados
‘emergentes’, Brasil entre eles.
1.4. De novo (e sempre) o velho complexo industrial-militar
A expressão – ‘military-industrial complex’ – foi insuspeitadamente grafada pelo presidente general Dwight Eisenhower, no célebre discurso de transmissão do cargo de presidente dos Estados
Unidos a John Kennedy (1961). Peça premonitória, guarda dramática atualidade quase 40 anos passados e muito pode nos ajudar a
compreender a política militarista norte-americana:
(…) fomos compelidos a criar uma indústria de armamentos
permanente de vastas proporções. Além disso, três milhões e
meio de homens e mulheres estão diretamente engajados no sistema de defesa. Gastamos anualmente, com segurança militar,
mais que a renda líquida de todas as corporações dos Estados
Unidos. Esta conjunção de um imenso establishment militar
com uma grande indústria de armas é nova na experiência americana. A influência total, econômica, política e até espiritual
– se faz sentir em cada cidade, em cada Assembleia, em cada
repartição do governo federal. Reconhecemos a necessidade
imperativa desse desenvolvimento. Não podemos, porém, deixar de compreender suas graves implicações. Nossas atividades,
recursos e subsistência estão todos envolvidos, bem como a própria estrutura de nossa sociedade. Nos conselhos de governo,
devemos nos prevenir contra a influência injustificada, busca-
282
Roberto Amaral
da ou não, do complexo industrial-militar (military-industrial
complex). O potencial para uma desastrosa emergência ou extravio de poder existe e persistirá. Não devemos jamais permitir que o peso dessa combinação ameace nossas liberdades e
nossos processos democráticos. Não devemos dar nada como
pronto e garantido. Somente uma cidadania alerta e bem informada pode exigir a harmonização adequada do imenso aparato
industrial e militar de defesa com nossos métodos e objetivos
pacíficos, para que segurança e liberdade caminhem juntas. A
revolução tecnológica das últimas décadas tem sido similar e
em grande parte responsável pelas dramáticas transformações
em nossa postura industrial-militar. Nessa revolução, a pesquisa tornou-se central; também tornou-se mais formal, complexa
e cara. Uma parte cada vez maior é realizada, para, pela ou sob
a direção do governo federal. Hoje, o inventor solitário, trabalhando em sua oficina, foi substituído por forças-tarefas de cientistas em laboratórios e campos de prova. Do mesmo modo, a
universidade gratuita – historicamente o berço das ideias livres
e das descobertas científicas – experimentou uma revolução na
política de pesquisa. Em parte devido aos altos custos envolvidos, o que passa a orientar a pesquisa não é a curiosidade intelectual, mas a possibilidade de um contrato com o governo. Para
cada velho quadro-negro existem agora centenas de novos computadores eletrônicos. A perspectiva de dominação dos nossos
scholars pelo emprego federal, pela distribuição de projetos e
pelo poder do dinheiro está sempre presente e deve ser considerada em sua gravidade. Mas, levando em consideração, como é
de nosso dever, a pesquisa científica e as invenções, precisamos
estar igualmente alertas para o perigo de as políticas públicas se
tornarem cativas de uma elite científica e tecnológica”.25
Eis, na palavra de um velho cabo de guerra, comandante da
maior potência do mundo, o reconhecimento da autonomia econômica das guerras e do círculo vicioso do desenvolvimento industrial capitalista: a economia de guerra gerando o desenvolvimento
industrial que exige a guerra para poder continuar crescendo.
25 A íntegra do discurso pode ser encontrada na internet, no endereço: CNN.com/CustomNews. O autor agradece a colaboração de Pedro Amaral.
Socialismo e Democracia
283
Não é pois destituído de lógica o fato de os Estados Unidos, hoje,
finda a Guerra Fria e desmantelada a União Soviética e desativado o
Pacto de Varsóvia, gastarem com armamento mais que todos os países
ocidentais juntos. O orçamento militar para 1999 é 30% maior que o
orçamento conjunto de todos os demais países da Otan. Tanta despesa
deve ser justificada, esta já é uma boa razão. Uma pequena guerra é
sempre bem-vinda para os negócios. Para isso é necessário ter bons
inimigos. Não tendo, é só inventá-los: Coreia do Norte, Cuba, de Fidel,
Vietnam, a República Dominicana, de Bosch, Granada, a Nicarágua
dos sandinistas, Noriega, o Irã dos aiatolás, a Líbia, de Kadafhi, o Iraque, de Saddam, Bin Laden, Milosevic, a guerrilha colombiana…
Nos anos da pós-industrialização, nos anos dessa nova ordem mundial, a tecnologia bélica – que se sofistica a cada dia –
associa aos interesses industriais até mesmo o desenvolvimento
científico tecnológico:
Grande parte da prosperidade americana decorre dos investimentos diretos e do comércio das megaempresas americanas no
mundo. São eles que colocam os Estados Unidos no centro da
economia e da política internacional. Essa situação hegemônica
depende de sua liderança científica e tecnológica. Na sociedade americana, a intervenção do Estado na economia é vigorosamente rejeitada. Assim, a estratégia para poder investir em
ciência e tecnologia, dínamo da economia, utiliza o argumento
da segurança nacional. Esse argumento, para ser crível, necessita de inimigos e estes têm de ser eventualmente enfrentados e
punidos, o que serve de teste para novos armamentos e novas
estratégias. A definição de novos alvos desafia a racionalidade e
a previsão, como os exemplos de Granada, do próprio Iraque e
o Kosovo indicam.26
26 Samuel Pinheiro Guimarães, diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais
do Itamaraty, em entrevista ao Jornal do Brasil, 25/7/1999. Este texto já estava concluído
quando nos chegou às mãos seu livro Quinhentos anos de periferia. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul/Contraponto. 1999. O livro em si, ademais de seus extraordinários
méritos, tem duas características bem brasileiras: editado por uma Universidade, sofre uma
comercialização amadora, não se encontra nas livrarias; de outra parte, vem merecendo
significativo silêncio dos diplomatas brasileiros que, no entanto, e justificadamente, não se
cansam nas loas ao livro de antigo chefe do Departamento de Estado Norte-Americano;
cuja edição brasileira conta. até, com declarações (‘comerciais’) do ministro do Exterior
284
Roberto Amaral
Como, de outra forma, explicar o esforço de guerra norte-americano, os altos investimentos em pesquisa e tecnologia, as inversões vultosíssimas na pesquisa e produção de novos armamentos,
a manutenção de um caríssimo exército que quase cobre toda a
extensão do planeta, quando não há mais inimigo a enfrentar?
E, hoje, é de tal ordem a distância tecnológico-bélico-econômica que separa os Estados Unidos dos demais países, que se revela
uma farsa qualquer tentativa de justificar a guerra – guerras, guerrinhas, invasões etc. – com o argumento de sua defesa preventiva
em face de uma ameaça presumível. Não há ameaça ou o que quer
que possa constituir-se em ameaça ao grande Império. Tudo o mais
é retórica de guerra que o complexo industrial-militar-tecnológico-científico explica.
2. A ‘guerra’ da Otan
E a ironia da História é que, ao contrário da fé marxista de
que a História não se repete a não ser como uma farsa, nos
Bálcãs ela parece se repetir: as forças internacionais provocaram lá, e agora de novo, o apressamento da limpeza étnica,
catalizaram a violência. Seria necessária uma forte dose de
autocensura ou de ingenuidade para não perguntar: será que
a Otan não queria exatamente provocar a limpeza étnica para
organizar áreas homogêneas e impor assim uma paz mais duradoura após a matança?
Leão Serva27
Primeiro de tudo, não se pode chamar de guerra um conflito
sem combate, uma intervenção sem resistência, quando as baixas
só se dão de um lado e o desnível de poderio militar, econômico e
tecnológico entre as partes é simplesmente abissal.
A propósito dessa nova doutrina de guerra norte-americana,
de guerra ‘segura’ e ‘limpa’, na qual o pessoal e os equipamentos
militares são praticamente inatingíveis e invulneráveis aos ataques,
brasileiro em anúncios de página inteira no Jornal do Brasil, de 22/8/1999.
27 ‘Bálcãs: onde as tragédias da História se repetem’, Política Externa, v. 8, n. 1.
Socialismo e Democracia
285
à defesa e às represálias dos inimigos, Edward W. Saïd, professor de
literatura comparada na Universidade de Colúmbia (Nova York),
observa, com Richard Falk, autor de direito internacional por ele
citado, que a estrutura desse tipo de guerra (v.g. Iraque e Iugoslávia) assemelha-se às técnicas da tortura: enquanto o interrogadoralgoz dispõe de todos os poderes, podendo escolher e utilizar os
métodos que desejar, sua vítima, à disposição da vontade de seu
perseguidor, não dispõe de qualquer recurso.28
Em nome de uma ingerência humanitária – caracterização de
resto insustentável – a Otan violou três princípios fundamentais da
convivência internacional, conquista que nossa civilização supunha
haver consolidado em Yalta, ao preço de tantos sacrifícios: a soberania dos Estados – que remonta às revoluções americana (1776)
e francesa (1789) –,29 a autodeterminação dos povos e a Carta da
ONU30 da qual seus países sócios são signatários, a grande maioria
fundadora e alguns membros do seu Conselho de Segurança.
Os bombardeios da Otan contra a Iugoslávia – matando civis, 31
atingindo alvos civis, destruindo a infraestrutura do país – foram desfechados sem amparo em qualquer deliberação da ONU.
E, assinada a rendição, é ainda a Otan quem decide a composição da força internacional de paz. Que papel resta à ONU?
Fazer apelos à caridade internacional para que socorra os refugiados. Aliás, é da tradição norte-americana o unilateralismo de
suas ações, sempre ao largo das Nações Unidas, seja a pura e simples intervenção militar (e a militarização dos conflitos políticos),
tanto em sua extensão geográfica latina (Panamá, Cuba, Granada)
quanto no Oriente, assim como em suas incursões no Irã, seus
28 Cit. idem.
29 Diz o art. 3o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Le príncipe de toute
souveranité réside essentiellement dans la nation”.
30 A Carta da ONU proíbe a ameaça ou uso da força, a não ser que o Conselho de Segurança o tenha autorizado expressamente, depois de concluir que os meios pacíficos
fracassaram, ou em defesa própria contra “agressão armada”, até que o Conselho de
Segurança atue.
31 Jornal do Brasil, 19/6/1999. “Nossos soberanos atacam do ar pessoas inocentes. Isto é tão
ruim quanto tudo o que Milosevic faz. Milosevic, ao menos, menosprezava as pessoas
que mata, enquanto nós nem ao menos as conhecemos”. VIDAL, Gore. Cit. Idem.
286
Roberto Amaral
bombardeios punitivos no Iraque, no Sudão (destruindo metade
da indústria farmacêutica desse paupérrimo país africano) e no
Afeganistão; seja a assunção, pela sua diplomacia, das negociações
internacionais (os acordos de Daytona sobre a Bósnia e os diversos
acordos Israel-países árabes-palestinos), condenando a plano secundário a função mediadora e arbitral da ONU, aquele papel que
justificou sua criação.
Dir-se-á que, no caso da ação da Otan nos Bálcãs, se tratava de
salvar o povo kosovar da fúria luciferina de um ditador sanguinário.
Isso justificaria a destruição da soberania iugoslava? Justificaria o assassinato de tantos civis (22 mil, segundo as autoridades de Belgrado)?
A arguição de pretensas motivações humanitárias pode justificar o uso
indiscriminado da força contra adversários? Pode-se falar em intervenção moral quando a desproporção militar e tecnológica entre os
supostos adversários é tão colossal? Quando a morte – o bombardeio
de áreas civis, áreas residenciais, hospitais, embaixadas, escolas, pontes, ônibus, trens, sanatórios, comboios de refugiados etc. – é reduzida
à sua mais miserável insignificância ética: ‘acidente tecnológico’? Pode
a proteção do povo kosovar justificar a ameaça à sobrevivência dos
sérvios? Afinal, pode a barbárie justificar a barbárie?32
Se a vida humana é intocável – e ela o é, e a função dos Estados,
isto é, das nações civilizadas, é garanti-la – ela não pode ser sacrificada,
mesmo quando a vítima não seja nem branca nem europeia.
Ademais da demanda ética, que não pode ser superada, a pergunta não é, tão só, se é lícita a intervenção em defesa de direitos
humanos violados; mas: Que tribunal – fora do direito internacional – é competente para julgar a violação e determinar a ação militar, e o caráter dessa ação?
Uma das exigências da regra moral é sua universalidade. Se era
– e é! – crime a limpeza étnica levada a cabo na Iugoslávia, também
32 A dúvida se coloca mesmo para as autoridades americanas, como revela recente artigo
do ex-presidente Jimmy Carter (New York Times, 27/5/1999), no qual o antigo líder do
Partido Democrata, de Clinton, após afirmar que a decisão de atacar toda a Iugoslávia
tornara-se contraproducente, e a destruição da vida civil ‘sem sentido e brutal’, escreve:
“Não estou certo de que nosso país concorde em destruir vidas civis de um país inteiro
para tentar forçar um líder recalcitrante, que é um criminoso de guerra, a obedecer aos
nossos desejos”.
Socialismo e Democracia
287
foram e são crimes as limpezas étnicas levadas a cabo na Turquia,
na Palestina e na África.
Poder-se-á perguntar – pergunta que não se fez a imprensa
brasileira, reflexa, reativa –, onde estavam os sentimentos humanitaristas de norte-americanos e ingleses (deixamos de fazer referências ao humanitarismo alemão para não lembrar o holocausto
e a segunda guerra mundial…) quando a violência se abatia sobre
povos de outras etnias (não brancos) e de outros continentes que
não o europeu? A começar por uma das primeiras limpezas étnicas do após-guerra, aquela de 1948, da qual a Palestina foi vítima
e testemunha, e que por outros meios prossegue até hoje. Assim,
é preciso lembrar que, em Angola, diante da insensibilidade de
norte-americanos e ingleses, já morreram, só este ano, 2000, vítimas da guerra (financiada de fora por grandes potências) 780 mil
negros, e outros 650 deixam diariamente suas casas. Cerca de 70
mil angolanos perderam braços e pernas nas explosões de minas
terrestres de fabricação norte-americana. Aliás, esse povo é vítima dos ataques da Unita, um exército de facínoras armado pela
África do Sul racista e pelos Estados Unidos e até recentemente
mantido com recursos norte-americanos. Justificativa ‘humanitária’: os governos angolanos pós-descolonização eram apoiados
por Cuba e pela URSS. No Sudão, há pouco punido pelos Estados Unidos, contam-se quatro milhões de vítimas da guerra. Em
todo o continente africano são 2,7 milhões de refugiados, quase
9 milhões de desabrigados. Na Ásia, no Afeganistão, contam-se
2,6 milhões. Na Indonésia, durante seu mandato, garantido pelos Estados Unidos, e em nome da Guerra Fria, Suharto33 matou,
em 1965, cerca de quinhentos mil adversários políticos, que não
contavam para o humanitarismo do Pentágono e o Foreing Office:
eram todos, dizia o ditador sanguinário, comunistas. Também não
se conheceu o humanitarismo nem norte-americano nem inglês
no Zaire (ex-República Democrática do Congo e ex-Congo Belga), onde o general Mobutu, corrupto e genocida, a partir de um
33 Defenestrado do poder quando não mais servia ao regime da unipotência, o ditador
encontra-se intocado e conduz um governo fantoche formado por ex-auxiliares por ele
mesmo indicados.
288
Roberto Amaral
golpe de Estado instrumentalizado pela CIA, que anteriormente já
havia obtido a queda e assassinato (1961) do primeiro ministro Patrice
Lumumba, governou até 1998, deixando o poder pouco antes de falecer, e quando, esgotada a Guerra Fria, não tinha mais serventia. A
ideologia do combate aos ditadores, defesa dos direitos humanos e
defesa das minorias, pretexto para intervenções de toda ordem, também não se viu no Chile, onde os ‘especialistas’ norte-americanos e
sua diplomacia – Kissinger (Departamento de Estado) e Bush (CIA)
à frente – colaboraram com Pinochet no golpe contra o governo
constitucional de Salvador Allende e no apoio à ditadura em todos
os anos de brutal repressão; também não se viu nem na Argentina
dos militares e dos civis ‘desaparecidos’, nem no Brasil da tortura.
A ‘teoria de valores’ da política externa norte-americana,
para a qual os marines são seus melhores embaixadores e a guerra
a melhor diplomacia, conhece apenas dois postulados: seus interesses e o argumento da força bruta. Assim, jamais teve apreço, de
princípio, seja pela democracia, seja pelas ditaduras. Combateu
essas quando os titulares eram adversários de seus interesses, e
as defendeu quando postas a serviço da Guerra Fria (v.g. Indonésia, Brasil, Chile... ). Jamais hesitou em golpear aqueles regimes democráticos – v.g. República Dominicana de Bosch, Brasil
de Goulart e Chile de Allende – que pudessem contrariar, ainda
que minimamente, seus interesses. Assim também em face dos
movimentos guerrilheiros. Para ela é insuportável a guerrilha na
Colômbia, desestabilizando uma democracia (vá lá o termo), ou
em São Salvador: esses guerrilheiros, esquerdistas, têm sempre
objetivos totalitários… Mas essa mesma política jamais deixou de
apoiar os movimentos guerrilheiros, de direita, que ameaçavam
a consolidação de regimes que podiam ser considerados adversários: os ‘contras’ da Nicarágua desestruturando a democracia
sandinista; as tropas criminosas da Unita destruindo o futuro de
Angola. Sem falar no seu apoio à guerrilha talibã, no seu apoio
inicial aos aiatolás, e no seu incitamento e apoio ao Iraque (sempre uma ditadura, sob Saddam) na sua guerra contra o Irã, o financiamento dos cubanos anticastristas...
Socialismo e Democracia
289
Em que recesso repousava o humanitarismo anglo-americano
enquanto hutus e tutsis se matavam (e se matam desde 1966) na
África central (só no último massacre, em 1998, morreram mais
de 500 mil homens, mas… negros), conflito que prossegue, percorrendo essas etnias, em Ruanda, onde começou, em Burundi, no
Congo, no Zaire, nada obstante o silêncio da imprensa internacional, que, silenciando, tenta negar sua existência?
A repressão turca contra os curdos, segundo os cálculos mais
moderados, nada fica a dever às atrocidades de Milosevic. No início dos anos 90, cerca de um milhão de curdos abandonaram o
campo, enquanto o exército turco arrasava as zonas rurais. Nessa
época, denuncia Jonathan Randal:
(...) a Turquia se transformou no maior importador individual
de material militar americano e, por conseguinte, no maior
comprador de armas do mundo. Quando os grupos de direitos
humanos denunciaram que a Turquia havia utilizado aviões
americanos para bombardear povoações, o governo Clinton
encontrou formas de se esquivar às leis que exigiam a suspensão da entrega de armamentos.34
A Turquia é uma base militar americana, de extraordinária importância estratégica...
E a morte de 560 mil iraquianos?
Não foi diferente no Camboja. Não se sabe quantos milhares (ou
milhão ?) de cambojanos, foram mortos pelo Kmer Vermelho, a serviço do regime de Pol Pot. Sabe-se que os Estados Unidos, após a invasão
do Vietnam, reconheceu o governo banido da Kampuchea Democrática como representante oficial do Camboja, por sua ‘continuidade’
com o regime de Pol Pot. O governo americano apoiou o criminoso
Kmer Vermelho em suas carnificinas contra o povo do Camboja, e
puniu o Vietnam com severíssimas sanções, por havê-lo combatido.
34 CHOMSKY, Noam. “Lei, direitos humanos e as lições da história”. Jornal do Brasil,
25/4/1999.
290
Roberto Amaral
Anualmente, pelo menos 20 mil pessoas, civis e camponeses,
principalmente crianças, morrem ao pisarem em miniminas que
estão espalhadas por todo o território do Norte do Laos:
(...) que nos anos 60 e 70 foi alvo do que provavelmente terão
sido os maiores e, seguramente, os mais cruéis bombardeios da
História contra uma população civil. As mortes foram causadas
pelas minibombas, diminutas armas antipessoais muito piores
do que as minas: são projetadas especificamente para matar e
mutilar, e não têm qualquer efeito sobre caminhões, edifícios
ou outros objetos. A planície ficou juncada de centenas de milhões desses projéteis. (…) O Grupo Consultivo sobre minas,
com sede na Grã-Bretanha, está tentando limpar os campos
dessas armas letais; mas, segundo a imprensa britânica, os Estados Unidos se negam a emprestar seus especialistas e seus ‘procedimentos’ que fariam o trabalho ‘com muito mais rapidez e
segurança’. Esses procedimentos constituem segredo de Estado,
como tudo que se relaciona com este assunto nos EUA.35
Como é sabido, os Estados Unidos se opõem ao tratado de
Ottawa de prescrição das minas.
Que humanitarismo resiste à catástrofe ecológica que se abateu sobre a Iugoslávia? O bombardeio de usinas químicas que poluem rios e matam fauna e flora; o uso de bombas com grafite que
contêm componentes cancerígenos; bombas de urânio provocando
radioatividade; bombas/minas de fragmentação e seus estilhaços
não detonados que ficarão no solo agindo como minas, atingindo
civis, as mesmas bombas que, depositadas no Adriático, ameaçam
a população civil que o utiliza?36
Todos esses são armamentos proscritos pelo direito internacional
e cujo emprego constitui crime de guerra, diga-se de passagem.
O humanitarismo estaria a exigir, se a intervenção tivesse realmente motivações éticas, a ingerência militar em outros países
onde povos igualmente com direito à vida estão sujeitos a toda
35 Idem.
36 Cf. RAMONET, Ignacio. ‘Nouvel ordre global’. Le Monde Diplomatique, jun./1999, p. 4.
Socialismo e Democracia
291
sorte de expiação, no Sudão (Sul), em Serra Leoa, no Tibet, em
Timor-Leste. A miséria de Biafra também a ninguém comove e não
é porque não comova as lentes da CNN que deixou de existir.
A mesma ética que se irritou com a invasão do Kuwait (tão rico
em petróleo – fornecedor do Japão e da Alemanha – e tão estrategicamente localizado em face do Golfo Pérsico), silenciou em face da
invasão e anexação do Timor-Leste, pela Indonésia, e do Tibet, pela
China. Nada a falar sobre o Líbano, invadido de um lado por Israel,
de outro pela Síria, e bombardeado quase diariamente, sem estar em
guerra com quem quer que seja. Nada a dizer sobre a guerra de Moscou contra os separatistas da Chechênia.
Na verdade, o humanitarismo de Washington, determinando
o belicismo da Otan, é uma pura manobra geopolítica, que visa a
assegurar um caminho europeu para o Oriente, afastar a influência russa37 (que sempre teve interesses militares nos Bálcãs e no
Adriático), colocar uma cunha entre a Alemanha e a Rússia, enfim,
a balcanização do Leste Europeu, e, através do exército coletivo
consolidado, impedir a emergência, na Europa, de qualquer sorte
de formação militar independente.
A questão fundamental está em que o bombardeio do povo iugoslavo – sejam quais forem as consequências para os kosóvares de
origem albanesa, que permanecem em guerra contra os sérvios –, assegura o fortalecimento da Otan quando o lógico seria, após o fim
da Guerra Fria, sua dissolução substituída por uma organização de
defesa europeia específica. Esse fortalecimento da Otan é peça preciosa na estratégia militar norte-americana, que, assim, bloqueia o
surgimento, na Europa, de um sistema estratégico rival.38
Ela também lembra aos europeus quem é o chefe da firma.
37 A Rússia tem laços históricos, culturais e cristãos ortodoxos com a Sérvia, à qual vende
armas e petróleo desde o fim da Segunda Guerra. Foi sua aliada na Primeira e Segunda
guerras mundiais.
38 Cf. PFAF, William. ‘What Good is NATO if America Intends to Go Alone?’. In International Herald Tribune. 20/1/1999.
292
Roberto Amaral
2. 1. A economia da guerra
Não podem ser descartadas as razões puramente econômicas, da economia de guerra, que envolve tantos bilhões de dólares
em armamentos crescentemente sofisticados, e razões puramente
tecnológicas, pois, de fato, desde o experimento das Malvinas, as
grandes potências vêm investindo maciçamente na sofisticada tecnologia de guerra e episódios como esses servem de campo para
teste dos novos inventos.39 Principalmente considerando-se seu
alto custo financeiro – o que não é nada desagradável para o complexo industrial-militar –, e o baixíssimo – na verdade nulo – custo
ou risco em vidas humanas, o que atende a uma das exigências da
opinião pública norte-americana.40 De fato, em 78 dias de bombardeios intensíssimos, não há o registro de um só militar a serviço
da Otan morto em ação. Mesmo a perda de material é irrelevante.
Após mais de 25 mil incursões aéreas, apenas dois aviões foram
declarados perdidos (mas seus tripulantes salvos, resgatados em
território inimigo) e um helicóptero tombou, em treinamento.
O que poderia – pela via política e diplomática – ser obtido
como encaminhamento, ainda gradual, de uma solução para uma
crise que tem raízes históricas, vai demandar mais algumas décadas
de guerra e frustração.
Terminada a ação punitiva dos Estados Unidos-Otan, contra os
sérvios, verifica-se que ela não impediu a limpeza étnica de Milosevic
39 José Meireles Passos, ‘A caminho da guerra do futuro’ (O Globo), fazendo um resumo dos
avanços do Pentágono na direção da guerra tecnológica, observa que “ A tendência é que
os combates se tornem mais parecidos com um videogame, uma espécie de guerra virtual,
só que, na prática, davastadora. Em vez de produzir munição sólida, pesada, convencional,
biológica, química ou nuclear, opta-se pelo cultivo de vírus de computador, da fabricação
das chamadas bombas lógicas e das bombas eletromagnéticas”. Acrescenta: “Já na Guerra
do Golfo Pérsico, em janeiro de 1991, os EUA utilizaram uma dessas novas armas, na época
ainda em estágio inicial: em vez de explosivos, os mísseis cruzadores Tomahawk levavam
ogivas eletromagnéticas para destruir os sistemas eletrônicos do Iraque”.
40 “Entre as coisas mais espertas que a direita norte-americana poderia fazer está a revogação,
depois da guerra do Vietnam, da obrigatoriedade do serviço militar. Com a obrigatoriedade
do serviço militar não seria possível uma tal campanha (Kosovo). Eles possuem mães e pais
ricos e poderosos que diriam: meu filho não irá voar sobre Kosovo para vocês, seus idiotas!
Por isso, o exército americano recruta soldados entre os pobres, negros e brancos na mesma
medida. Esse exército assalariado é bem pago. Uma cláusula importante no contrato de serviço, entretanto, diz: não queremos nenhum ferido e morto”. VIDAL, Gore. idem.
Socialismo e Democracia
293
contra os kosóvares albaneses. Ao contrário, os raids aéreos ilegais
aceleraram a limpeza étnica contra os povos de origem albanesa e
o êxodo da população de Kosovo, e seu saldo, assinada a rendição
incondicional, é simplesmente macabro: milhares de iugoslavos, sérvios e descendentes de albaneses mortos, o exacerbamento do ódio,
a impossibilidade de qualquer solução política, o aprofundamento
dos conflitos entre as diversas etnias, nações e regiões. Terminados
os bombardeios, os kosóvares – que permanecerão na Iugoslávia,
ao contrário dos pilotos americanos e ingleses –, não podem contar
com qualquer vitória. Ao contrário, a expectativa é que ficou ainda
mais difícil uma alternativa de paz com os sérvios, que terminaram
virtualmente expulsos do Kosovo, que consideram o berço de sua
nação, e onde estão seus templos mais sagrados.41
Neste episódio, perderam quase todos: perderam os kosóvares que não alcançaram a paz e retornam a um Kosovo destruído;
perderam os iugoslavos que quase perderam seu país, arrasado
pelos bombardeios; perderam os sérvios que, num êxodo estimado em cem mil, estão nas estradas em busca de novas terras e
território onde possam encontrar um mínimo de segurança; perdeu a minoria sérvia de Kosovo, ameaçada de ser chacinada pela
maioria de origem albanesa, que busca vingança para seus mortos
(e quem vai agora assegurar um lar para os sérvios expulsos de
Kosovo?); perderam a Macedônia e Montenegro, cujas economias,
de si já frágeis, foram destroçadas; perderam os países balcânicos;
perdeu a ONU; perdeu o direito internacional; perdeu a paz; perdeu o princípio da negociação e da arbitragem sobre a militariza41 “A região que hoje chamamos Kosovo é chamada de Velha Sérvia pelos sérvios, que a
reivindicam por ser a terra de seus ancestrais, porque ali eles estavam no começo de
sua história conhecida (antes, ágrafos, migraram para a região em torno do século vi
d.C. expulsando outros moradores) e ali perderam a batalha para os turcos otomanos
e foram expulsos, tornando-se os que ficaram uma minoria em sua terra natal. A seu
modo de ver, “vencer os turcos” é retomar Kosovo, desfazer o que os otomanos fizeram.
A mesma região é reivindicada pelos albaneses porque há muito são eles que fazem a
maioria de seus habitantes, pelo menos desde que a derrota dos sérvios forçou a migração para o Norte e a hegemonia turca permitiu a chegada dos albaneses. Para um leitor
brasileiro, cuja totalidade da história escrita se mede em meio milênio, essas histórias
podem parecer sem sentido. Para povos cujas árvores genealógicas muitas vezes remontam a mil anos, a memória do passado está escrita na história pessoal de cada um”.
SERVA, Leão. Idem. p. 7.
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Roberto Amaral
ção dos conflitos. E perderam os que lutam pela eliminação das
armas nucleares.
Ganhou a indústria da guerra. Perderam os defensores dos direitos humanos.
Findos (ou suspensos?) os bombardeios, arrasada a Iugoslávia,
destruído Kosovo, partilhada a antiga província sérvia entre as potências agressoras e invasoras, os Bálcãs terminam o século mais
explosivos do que nunca. O ódio religioso-étnico foi agravado,
Turquia, Grécia e Chipre, membros da Otan e aliados de Washington, mantêm suas rivalidades históricas e disputas de territórios
e os consequentes conflitos sobre os respectivos espaços aéreos.
A ‘guerra’ contra os sérvios – população agredida pelos turcos, pelos austríacos, pelos nazistas e por seus aliados croatas – tornou iminentes os conflitos entre a Iugoslávia e a Albânia e aqueles países
que serviram de base aos aviões aliados.
Concluídos (ou suspensos?) os bombardeios, milhares e milhares de iugoslavos, sérvios e croatas, retornam uns às suas casas
perdidas, outros delas são expulsos. Ninguém pode avaliar seu próprio futuro. Autodeterminação? Autonomia sob a soberania sérvia?
Ocupação permanente pelas tropas da Otan? Partilha? Soberania
partilhada? Quem protegerá os sérvios de Kosovo? Nenhuma dessas
interrogações passou pela cabeça dos dirigentes da guerra.
A sorte do povo de Kosovo, massacrado por um governante
imoral, parece um pormenor em tudo isso, até porque o conflito
étnico não foi resolvido, senão agravado.
Uma alternativa poderia ser a criação de um Tribunal Penal
Internacional com poderes para julgar os autores de crimes contra
a Humanidade, imprescritíveis independentemente do status do
agente, e independentemente mesmo de eventual decisão legal tomada por um Estado soberano. Mas os Estados Unidos são contra
esse tribunal e impedem sua constituição.
Além de haver votado contra a criação do Tribunal Penal Internacional, na reunião de Roma, os Estados Unidos vêm-se opondo à
competência de um tribunal internacional para processar acusados de
Socialismo e Democracia
295
crimes de guerra. Desde então o Ministério da Defesa vem advertindo
a comunidade internacional de que os Estados Unidos não poderão
aprovar a criação de um tribunal que tenha o poder de julgar militares americanos. Precatadamente, estão tentando obrigar alguns
governos – África do Sul, Polônia, Hungria e República Tcheca são
citados nominalmente – a firmar acordos segundo os quais norteamericanos não seriam entregues ao tribunal, se fossem acusados
de crimes contra a Humanidade, de guerra ou genocídio. A afirmação é de Pierre Sane, secretário-geral da Anistia Internacional.42
Mas Washington não está preocupada apenas com seus militares:
(…) o governo americano procura também garantir que os funcionários da Agência Central de Inteligência (CIA) fiquem protegidos de ser extraditados por solicitação do TPI. A preocupação de Washington é que operações como o atual bombardeio da
Otan contra a Iugoslávia façam com que dezenas de funcionários
militares, civis e da inteligência sejam processados pelo TPI.43
Mas, se o Sr. Milosevic foi, e justamente, indiciado pelo Tribunal
de Haia, como criminoso de guerra, qual deve ser a acusação a ser
formulada contra os responsáveis pelas agressões ao território e às
populações civis do Líbano, da Palestina, do Iraque, do Irã, do Afeganistão, do Panamá, de Granada, do Sudão e da Iugoslávia, violando as constituições de seus próprios países, realizando guerras não
declaradas nem autorizadas, violando a Carta das Nações Unidas?
2.2. A guerra como ‘valor’
Subsiste, por fim, a questão da guerra justa. Mas haverá guerra
justa? Quem decide o que é uma guerra justa? O vencedor? Ora,
qualquer arguição desse conceito, para validar-se, terá, primeiro,
de reabilitar o nazifascismo (e suas autoproclamadas razões), absolver
os tiranos de todos os tempos e abrir um precedente moral de tal
ordem que pode significar o suicídio da Humanidade.
42 HAQ, Farhab.“ EUA agem contra tribunal internacional”. Jornal do Brasil. 9/6/1999.
43 Idem.
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Roberto Amaral
É fácil de demonstrar.
As atrocidades do governo turco procuram justificativa no argumento de que está defendendo o país da ameaça de guerrilheiros
e terroristas. Na América Latina, esse argumento foi utilizado, à
saciedade, pelos governos militares para justificar o assassinato de
seus adversários, na Argentina, no Brasil, no Chile, no Uruguai, no
Peru, no Paraguai, na Nicarágua. Foi repetido no Laos e no Camboja pelos assassinos do Kmer Vermelho. Na Argélia, o argumento
do Ocidente (França à frente) para impedir a posse do governo legalmente eleito foi a ameaça islâmica. Essa violência está na raiz de
todos os massacres que ali se repetem quase diariamente, prometendo transbordar para a Europa. O ataque do Japão à Mandchúria,
a invasão da Etiópia por Mussolini, e a ocupação da Tchecoslováquia pelas tropas de Hitler foram acompanhadas de elevada retórica humanitária, ou simplesmente do que Naom Chomsky prefere
chamar de ‘justificativas obscenas’. Os nazistas procuravam justificar com a teoria do espaço vital, o que se repete com a ideologia
norte-americana de nossos dias, quando desencadeia a ‘guerra preventiva’. Se ela é ‘justa’ para os Estados Unidos, não seria igualmente justa para iranianos e coreanos do norte, diariamente ameaçados
de extermínio pela grande potência?
O Japão ia construir um ‘paraíso’ terrestre enquanto defendia os
habitantes da Mandchúria contra os ‘bandidos chineses’. Mussolini estava libertando milhares de escravos enquanto realizava
a ‘missão civilizadora’ do Ocidente. Hitler anunciou a intenção
alemã de aliviar as tensões étnicas e a violência, além de ‘salvaguardar a individualidade dos povos alemão e tcheco’. O presidente da Eslováquia pediu a Hitler que transformasse seu país
num protetorado.44
Com a invasão da Baía dos Porcos, os Estados Unidos prometiam ‘libertar’ os cubanos do governo de Fidel Castro.
A categoria determinante da moral é a universalidade, ou, dito
pelo anverso, tudo aquilo que não pode ser generalizado é imoral,
44 CHOMSKY, Noam. Op. cit.
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é anético. A legitimidade do direito deriva da universalidade de sua
vigência: só constitui direito aquela norma que se aplica a todos ou
que por todos pode ser acionada.45
Se a Otan tem o direito de bombardear os sérvios para garantir a
autonomia de Kosovo – legalmente e historicamente uma dependência da Sérvia, que, ao lado de Montenegro, forma a Iugoslávia46 – por
que outros povos, os curdos, os palestinos, os tibetanos, os chechenos,
os muçulmanos da Caxemira, não têm o mesmo direito? Ou, têm os
tibetanos o direito de bombardear Pequim para se livrarem da opressão chinesa? Ou Pequim pode bombardear Taiwan para retomar sua
ilha, roubada pelas tropas de Chang-Kai-Chek, apoiadas pelo Ocidente? Que tal Brasil e Portugal bombardearem a Indonésia para libertar
os povos irmãos do Timor-Leste, ou os libaneses bombardearem a Síria e Israel para recuperar seu território e punir Tel-Aviv pelos raids
criminosos que assassinam a população civil sob o pretexto de perseguir guerrilheiros? O argumento, dos sérvios, para justificar sua
posse de Kosovo – a antiguidade –, poderia justificar uma reivindicação mexicana sobre o Novo México e tantas outras terras suas perdidas para os Estados Unidos; por outro lado, o argumento (croata)
da maioria, sancionado pelos bombardeios, poderia justificar uma
reivindicação autonomista cubana sobre Miami, ou a expulsão, pelo
Paraguai, dos ‘brasilguaios’ que estão ocupando suas terras e seus ne45 O preceito ‘não matarás’ não deriva de um critério gravado por natureza no coração dos
homens, como pretendiam os jusnaturalistas, mas do imperativo categórico (Kant), pois, se
eu matar e quiser, para me absolver a mim mesmo, transformar essa máxima em princípio,
convertendo o assassinato em princípio universal, todos matariam, e, portanto, todos morreriam. Ouso sugerir duas leituras: ‘Guerra santa ou guerra justa?’ e ‘Segundas considerações
éticas (ou: Cada história tem o Ricardo que merece)’, in HOUAISS, Antônio; AMARAL, Roberto. Socialismo, vida morte, ressurreição (2. ed.) Editora Vozes. Petrópolis, 1993.
46 Relembre-se: a Iugoslávia, até o fim da Guerra Fria, isto é, antes de ser despedaçada, como a
maioria dos Estados do antigo Leste Europeu (como a URSS e a Tchecoslováquia), era uma
República Socialista Federativa, formada por seis repúblicas: Bósnia-Herzegovína, Croácia,
Macedônia, Montenegro, Sérvia (que incluía as províncias de Voivodina e Kosovo-Metohija)
e Eslovênia. Compreendia um território de 255.805 km2 e uma população de 23.239.000 de
habitantes. Após a débâcle, a Iugoslávia, o mais aberto dos países do Leste, passou a reunir
apenas a Sérvia (com as província de Voivodina e Kosovo) e Montenegro, reduzida a um território de 102.200 km2 e a uma população de 10.500.000 habitantes. As guerras que se seguiram à partição da antiga Federação (Eslovênia, Croácia e Bósnia) mataram 250 mil pessoas e
provocaram a fuga de um milhão de refugiados.
298
Roberto Amaral
gócios. Evidentemente, a aplicação dessas teorias aos Estados Unidos
parece mera excentricidade, até porque o colosso militar está acima
também das doutrinas e das teorias. Mas, observa Leão Serva, “nos
Bálcãs, elas se mostraram tão reais quanto recentemente se revelaram reais na Palestina e em Chipre”.47
Se a ação da Otan fosse legítima, se estivesse amparada no direito, estaríamos condenando a Humanidade à barbárie. Se fosse
possível fazer valer como direito, isto é, como regra universal, o
direito a que se autoatribuem os Estados Unidos, a Humanidade
sucumbiria, devorada numa chacina autofágica.
Os bombardeios contra a Iugoslávia, pela Otan, constituem,
de todos os modos, uma guerra inaugural, no sentido de sua justificativa, pois a Otan não pode alegar a defesa de nenhum dos
territórios de seus Estados-membros, objeto de sua criação, no fragor da Guerra Fria. As alegadas razões humanitárias de hoje, puramente ideológicas, podem amanhã ser substituídas por outras,
como a defesa de um determinado soberano ou de um regime, ou
de uma tese. A ‘salvação da Humanidade’, por exemplo, pode amanhã justificar, manu militari, a ‘proteção’ de santuários ecológicos
como a Amazônia, ‘ameaçada de destruição’ por isso ou por aquilo.
O combate ao narcotráfico pode amanhã ser a justificativa do muito provável desembarque das tropas norte-americanas na Colômbia.
A ‘ameaça’ que à sua segurança pode representar a consolidação de
um regime nacional-popular na Venezuela, pode justificar a intervenção dos Estados Unidos naquele país, seu grande fornecedor de
petróleo... Ninguém se iluda: o regime da unipotência arrogante
atualiza La Fontaine e a lógica do lobo.
A intervenção da Otan, finalmente, representa um salto no escuro
para todas as nações do mundo que agora estão sabendo que não há
mais soberania absoluta, nem direito internacional inquestionável, e que
Estado nenhum pode entrar em conflito com o Estado hegemônico.
Ontem, Panamá, Vietnam, Iraque. Hoje, Iugoslávia. Amanhã,…
47 SERVA, Leão. p. 8.
Socialismo e Democracia
299
A propósito, a invasão do Panamá e o sequestro de seu presidente traficante custaram a morte de mais de 2 mil pessoas, duas
vezes mais que na derrubada de Ceausescu, na sua maior parte civis. Mas ninguém fala aí nem em genocídio nem em carnificina.48
Da convicção da comunidade internacional de que ninguém está
a salvo da esmagadora superioridade militar dos Estados Unidos e
seus sócios da Otan, resultam consequências estratégicas e ideológicas. No plano militar, a constituição de um eixo atômico anti-hegemônico, reunindo Rússia, China e Índia,49 que não tem mais qualquer
razão para cumprir a promessa de assinar o tratado de não-realização
de testes nucleares. A Humanidade pode estar à beira de uma nova
e catastrófica corrida atômica, enquanto a ação da Otan está oferecendo a dirigentes irresponsáveis um irrespondível álibi ideológico
para a retomada do armamentismo, criando emulações regionais de
desdobramento imprevisível.50 E no plano político, os Estados Unidos deverão reforçar a segurança de suas embaixadas em todo o mundo e assumir a responsabilidade de serem vistos por grande parte da
Humanidade (chineses, russos, indianos, árabes, latino-americanos e
africanos) como inimigos de suas sociedades.
É claro que a ONU sai do episódio perigosamente sem função.
Há que repensá-la no regime da unipotência.
Não há dúvida de que os bombardeios acabaram por destruir o
que restava da frágil ordem internacional, que já não pode oferecer
aos fracos qualquer grau de proteção ante os Estados predadores.
Os Estados Unidos – a superpotência que não respeita a lei – estão assumindo, perante a Humanidade, com o apoio de seus peões
48 Cf. RAMONET, Ignácio. La tyrannie de la communication. Galilée. Paris. 1999, p. 148.
49 A ideia desse eixo (ao qual se somariam, inevitavelmente, o mundo islâmico e outras
potências) teria sido lançada por Primakov, ex-primeiro-ministro russo, em dezembro
p.p. A proposta foi retomada a 11 de maio p.p., pelo embaixador da China na Índia,
anunciando haver chegado a hora de os “três gigantes asiáticos se juntarem para velar
por sua segurança mútua num universo unipolar”. Cf. CARLOS, Newton. “Choque de
civilizações?” in. Jornal do Brasil, 24/5/1999.
50 Noticia o Jornal do Brasil, edição de 9/6/1999: “A importância da criação de um sistema
de defesa da América do Sul foi levantada no seminário ‘Diálogo para o Milênio’, promovido ontem no Rio pelo Itamaraty”.
300
Roberto Amaral
europeus, o papel de principal ameaça externa contra nossas sociedades e nossa civilização.
Não é de admirar, portanto, que o ressentimento com relação
aos Estados Unidos esteja crescendo globalmente.51
Depois de relembrar uma antiga sentença do general De Gaulle
(“Podem ter certeza de que os americanos cometerão todas as idiotices que puderem imaginar, mais algumas que estão além do imaginável”), o jornalista brasileiro Márcio Moreira Alves52 comenta o
estrago que os bombardeios fizeram à ONU e às negociações para
eliminação das armas nucleares. A professora Mary Wynne-Ashford,
vice-presidente da organização Físicos Internacionais pela Prevenção da Guerra Nuclear (FIPGN), por ele citada, revela o desalento de
dois recentes seminários a que compareceu em Moscou e Estocolmo,
e põe em destaque que “a opinião pública antiamericana na Rússia
é mais profunda e ampla do que nunca. ‘Hoje, a Sérvia, amanhã, a
Rússia’ é uma opinião que se enraizou profundamente na consciência das pessoas”. Por fim, conclui o articulista de O Globo :
“Nós, no Brasil, não temos de repetir, por enquanto, o temor
de Moscou: ‘Hoje, a Sérvia; amanhã, a Rússia’. Mas não custa pensar no assunto”.
Pensemos.
3. E a América Latina?
A experiência nos Bálcãs, no que depender dos Estados Unidos, deve ser levada para o resto do mundo. O primeiro alvo pode
ser o nosso continente.
Senão, vejamos.
51 “Desde o colapso econômico da Rússia, em agosto, pesquisas mostram que uma parcela
considerável da população culpa os EUA pelas falhas do país (…). Muitos russos acham
que os EUA – apesar de sua ajuda econômica e assessoria, ou talvez por causa disso – têm
uma política determinada de rebaixá-los e enfraquecê-los”. HOLMES, Charles W. ‘Jogo
russo movido por patriotismo e mágoa’, in O Globo, 20/6/1999.
52 ‘Além de Kosovo’ in O Globo. 11/6/1999.
Socialismo e Democracia
301
Na 29ª Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), encerrada a 9 de junho de 1999, o delegado
norte-americano propôs “que um grupo de países, vizinhos ou
simplesmente relacionados política e economicamente, pudesse
intervir em conflitos internos de outra nação”,53 sem a necessidade
de apelo à Assembleia.
Teve o apoio do Brasil.
No mês seguinte, o presidente Clinton, em entrevista coletiva,
declarou que a crise colombiana é assunto “de interesse da segurança
nacional” dos Estados Unidos.54 Todos sabemos quais podem ser as
consequências desse entendimento.
A Colômbia está às voltas, há décadas, com uma verdadeira
guerra civil – que já produziu mais de um milhão de refugiados
(mais que em Kosovo) e só nos últimos dez anos matou cerca de 35
mil pessoas (cerca de 1/3 do seu território encontra-se sob o controle das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARCs)
– e pela guerra do narcotráfico, o qual, diga-se de passagem, é
alimentado pela demanda dos usuários norte-americanos e pela
incompetência dos Estados Unidos de controlarem suas próprias
fronteiras. Esse complexo de crises já fez com que aquele país se
transformasse no terceiro do mundo em ajuda militar norte-americana (logo após Israel e Egito):
Neste ano, a Colômbia receberá US$ 289 milhões em ajuda militar dos EUA, e, no ano que vem, a quantia pode subir para US$ 1
bilhão. Embora o dinheiro só possa ser usado para treinamento
e missões de apoio, como vôos de observação, foi assim que os
EUA começaram seu envolvimento no Vietnam.55
Os colombianos vêem com espanto – mas a opinião pública
internacional e latino-americana com indiferença – o interesse de
53 Cf. Jornal do Brasil, ed. 11/6/1999.
54 Cf. CASTRO, Moacir Werneck de. ‘A porta aberta’, in Jornal do Brasil, 27/7/1999.
55 SEKLES, Flávia. ‘A guerra americana na Colômbia”. Jornal do Brasil, 1º/8/1999.
302
Roberto Amaral
Washington em fornecer armas e recursos destinados ao combate à
guerrilha, em vez de ajudar a resolver a crise social mais aguda de
sua história.56
Mas não é tudo. O exército americano tem presença física e ativa
em território colombiano, sob o pretexto de ajudar as forças armadas
no combate à guerrilha e ao tráfico. Há mais de 300 americanos na
Colômbia, entre soldados (200) e agentes do DEA (órgão de combate
às drogas) e da CIA. São ‘assessores’ treinando mil colombianos de um
batalhão que deve entrar em operação em dezembro, para enfrentar os
guerrilheros. Em setembro, o governo de Pastrana receberá mais seis
helicópteros de combate para proteger os aviões que jogam desfolhantes. O avião norte-americano que caiu na selva estava equipado para
vigiar a guerrilha.57 Também foi assim que tudo começou no Vietnam.
Aliás, por razões fáceis de compreender, os Estados Unidos unem, no
mesmo processo, a guerrilha esquerdista das FARCs e o narcotráfico,
identificado como financiador daquela.58 Ninguém fala em combater
os paramilitares de direita e extrema direita.
E a imprensa faz a sua parte. A brasileira Veja, ainda presa à
retórica da Guerra Fria, diz que a situação da Colômbia é de ‘emergência’ em face do ‘agravamento da guerra civil e do envolvimento
da guerrilha comunista (sic) com o narcotráfico’.59 O boletim do Pentágono não escreveria melhor. Segundo o jornal argentino La Nación,
o sempre dócil governo Ménem (que acaba de ver recusada sua ridícula autocandidatura à Otan) teria sido instado por Washington
a assumir a iniciativa de propor a criação de uma força conjunta de
intervenção, à qual os EUA depois se juntariam.60 Argumentos não
faltariam para essa nova ‘intervenção humanitária’: a guerra civil,
56 Cf. GARZÓN, Luis. Presidente da Central Unitária dos Trabalhadores, CUT (socialdemocrata). ‘Intervenção dos EUA pode oficializar guerra civil’. Diário de Pernambuco.
7/8/1999.
57 Veja. Ano 32, edição 1610, 11/8/1999. ‘A sombra do Vietnã’. p. 52-53.
58 “Antes de partir para a Colômbia, o gal. Barry McCaffrey, chefe da luta contra o narcotráfico
nos EUA, disse, em Milão, que os EUA não diferenciam mais o combate ao narcotráfico do
combate à guerrilha. Na visão americana, as FARC são financiadas por uma extensa rede de
narcotráfico”. O GLOBO, 27/7/ de julho de 1999. V., igualmente, SEKLES, Flávia. Idem.
59 Veja. Idem.
60 SEKLES, Flávia. Idem.
Socialismo e Democracia
303
o narcotráfico e a ameaça de incursões da guerrilha nos territórios
de fronteira, o que, aliás já vem sendo preventivamente manipulado pelas imprensas locais. Ressalvada a gravidade colombiana, que
a transforma em um caso especial, também estão em crise, seja por
força do narcotráfico, seja pela sobrevivência da guerrilha, o Peru e
a Bolívia. O Equador, há anos, transita de uma crise econômica para
outra. Essa conjunção de fatores constitui o pano de fundo daquele
que pode ser o cenário de maior apreensão: uma nova Venezuela de
futuro imperscrutável, governada por um líder populista de raízes
militares que mantém o apoio quase consensual de sua população,
com um discurso nacionalista, desenvolvimentista e até aqui em
nada comprometido com os interesses políticos, econômicos e ideológicos da nova ordem mundial.
Não precisamos falar de Cuba.
Mas esse é só um dos ingredientes que podem transformar
nosso continente num explosivo caldeirão social.
Nem mesmo os néscios ignoram o preço social que nossos países estão pagando à ‘globalização’. O fundamentalismo dos que acreditam na magia do mercado tem sido a causa da derrocada de nossos
mercados, do aumento da concentração de renda, da queda do PIB,
e do aumento da recessão, do desemprego e da exclusão e da queda
geral da qualidade de vida. O PIB da América Latina deverá cair, em
1999, entre -0,5% e -1,5%. Na Argentina, essa queda será de -3%, no
Equador de -5%, no Chile de -2,3%, no Uruguai, de -0,5%, na Colômbia, de -1%, no Brasil de -1% a -1,5%, e na Venezuela de -6%.61
Alguns países apresentarão taxas de desemprego de 15%. Em compensação, o comércio internacional dos Estados Unidos só é superavitário com a América Latina. Há 10 anos nos vendiam 25 bilhões
de dólares por ano; hoje, essa cifra saltou para 90 bilhões, informa a
CEPAL. Com isso os Estados Unidos ganharam 650 mil empregos.
A crise econômica aumenta as desigualdades sociais, colocadas
hoje em patamares obscenos. Nesse campeonato, o Brasil mantém a
61 “Instabilidade mostra sua cara. América Latina revive tensão social com protestos e
ameaças de estado de exceção”. O Globo, 1º/8/1999.
304
Roberto Amaral
liderança: o país registrou uma queda no percentual de renda total
em mãos dos 40% mais pobres de 11,5%, em 1993, para 10,5%, em
1996, enquanto os 10% mais ricos da população viram sua fatia de
renda aumentar de 43% para 44,3%.62 Numa população estimada em
160 milhões de seres, somos 15% de analfabetos, 35% com menos
de quatro anos de escolaridade, 36% de infectados por parasitas. Em
compensação, os bancos privados brasileiros tiveram, no primeiro
semestre de 1999, a melhor rentabilidade da História: 35,35%, duas
vezes mais que a média do setor (15%), que já se destaca como uma
das maiores do mundo. Com base no estudo de 15 bancos, a consultoria Austin Assis conclui que a rentabilidade dessas instituições
saltou de R$ 194,5 milhões no primeiro semestre de 1998, para
R$ 2,560 bilhões, neste ano, o que equivale a um crescimento de
1.216% no intervalo de um ano! O que representa principalmente
uma brutal transferência de renda da população para os bancos,
que, aliás, não pagam imposto, segundo declarou à Câmara dos
Deputados (CPI do Sistema Financeiro), o secretário da Receita
Federal. O outro lado dessa moeda perversa é inevitável: aumento das ocupações de propriedades, bloqueio de estradas, greves e
lock-outs, desabastecimento, aumento da violência urbana, conflito
social, que pode se manifestar através do ressurgimento de ações
guerrilheiras e revolucionárias, e na retomada do tradicional autoritarismo latino-americano.
As informações disponíveis indicam que a diplomacia brasileira
não estaria disposta a aprovar a ideia da intervenção militar, conjunta
ou não, na Colômbia. Nosso governo teria consciência de que essa operação seria uma porta aberta para outras intervenções, notadamente
nas regiões limítrofes da Amazônia, por onde o Brasil tem fronteiras
com o Peru, a Colômbia, a Venezuela e também com a Bolívia.
Sabe-se que nossas Forças Armadas, justificadamente preocupadas com a integridade da Amazônia brasileira, jamais veriam
com bons olhos a presença de tropas estrangeiras na região, mesmo
tratando-se do exército norte-americano.
62 Idem.
Socialismo e Democracia
305
Sabe-se, igualmente – dá conta o noticiário da imprensa – que
Brasil e Estados Unidos já discutem uma ação conjunta de “cerco a
guerrilheìros’ e uma ação militar brasileira. Foi esse o tema da conversa entre o general Charles Whilhelm, chefe do Comando Sul das
Forças Armadas com o ministro da Defesa do Brasil, Élcio Alvares63
em agosto de 1999. Enquanto espera a data certa para a ‘operação
militar’, a Polícia Federal brasileira foi acionada para desencadear
uma “operação destinada a fechar as rotas de abastecimento de alimentos para as regiões da Colômbia controladas pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A operação faz parte da
estratégia americana de cerco à área controlada pelos guerrilheros
que foi desmilitarizada pelo governo colombiano em novembro de
1998 para viabilizar as negociações de paz”. A ‘operação’ coincidiu
com a presença, em Brasília, do chefe do Escritório de Controle
de Drogas da Casa Branca, Barry MacCaffrey, que se encontrou
com o chefe da Casa Militar da Presidência da República, general
Alberto Cardoso...64
Não se sabe, porém, qual é a política do maior país da América
do Sul e da América Latina para a América do Sul e a América Latina. Não se sabe, mesmo, se existe uma tal política. Como não se
sabe qual é sua política para a África e a lusofonia. Em matéria de
política exterior sabe-se, apenas, que o Brasil pleiteia um assento
no Conselho de Segurança da ONU. Para fazer o quê, não se sabe.
Para defender que programa, que ideias, que política, não se sabe.
Até aqui temos sido incapazes de produzir uma política externa
que não seja puramente reativa. Fora o curto período das administrações Jânio Quadros/João Goulart (ministros Afonso Arinos e San
Thiago Dantas), e Geisel (ministro Azeredo da Silveira), nossa política internacional tem-se caracterizado, principalmente a partir da II
Guerra Mundial, pelo alinhamento automático aos interesses norteamericanos, nada obstante o notável contencioso econômico resultante das barreiras americanas às exportações brasileiras. Em abono
à renúncia à vida independente, nem mesmo difusos interesses de
63 ‘EUA e Brasil discutem cerco a guerrilheiros’. O Globo. 18/8/1999.
64 ‘Brasil cortará rotas para a Colômbia’. Jornal do Brasil. 20/8/1999.
306
Roberto Amaral
uma geopolítica comum podem hoje ser alegados, em face do fim da
Guerra Fria e da total irrisão da ‘ameaça’ comunista. Nesses termos,
portanto, nada impediria o país de procurar uma agenda própria,
consolidando sua liderança no continente, ocupando na África o
espaço que sua História nos oferece, e procurando novos parceiros
internacionais, como, por exemplo, a Índia, a China65 e a Rússia.
Enfim, ocupar um espaço próprio, adequado à sua importância territorial, à sua economia, à sua história, e contribuir – por
exemplo ao lado da China, da Índia, do Japão e de uma Rússia livre
de seus atuais dirigentes – para a recuperação da multipolaridade,
fundamental para nosso desenvolvimento e mesmo para a sobrevivência da Humanidade.
Mas isso seria querer demais de nossas elites, pois significaria
a busca de caminhos próprios. E a História das elites brasileiras é
a permanente traição aos interesses nacionais, o total descompromisso com a construção da nacionalidade, ou com a defesa dos
interesses de seu povo.
Não se trata de propor para nossos povos um quixotesco enfrentamento da ‘globalização’ em condições de absoluta desigualdade de
forças, mas, tão só, de fortalecer o país e a nacionalidade para fazer
face aos desafios dessa forma moderna de imperialismo.
A resistência passa pela liderança de nossos povos, da unificação da América Latina em torno de seus interesses, da associação
com outros continentes e povos.
Separados e isolados até por imposição da geopolítica colonizadora, precisamos encetar o processo do mútuo conhecimento,
assim descobrindo que temos mais unidade do que diversidade,
mais aproximações do que divergências e, que, respeitando nossas
65 Observa Samuel Pinheiro Guimarães que “A China tem experimentado extraordinário
crescimento de produção e das exportações de uma maneira independente, sem se submeter à política das agências internacionais. A China, após resolver a questão da unidade
de seu território, com a reintegração de Taiwan, deverá desempenhar, em conjunto com
o Japão, outra economia heterodoxa, papel extraordinário internacional, o qual poderá
recuperar sua multipolaridade, o que é fundamental para o Brasil”. Idem.
Socialismo e Democracia
307
culturas e nossos projetos, de cada povo e de cada país, podemos
construir o projeto do desenvolvimento comum.
Mas tudo isso passa, antes de mais nada, por alterações na correlação de forças políticas no interior de nossos países.
Com vistas à nossa integração, o MERCOSUL pode ser um
primeiro passo, aglutinando, de princípio, os interesses dos países
do Cone-Sul. Nesse sentido, trata-se de projeto que precisa ser estimulado e preservado, nada obstante suas limitações. Não podemos
nos iludir quanto à sua fragilidade, reflexo das limitações dos paísesmembros. Simples acordo de mercado ou aduaneiro, o MERCOSUL
pode se transformar num grande instrumento tanto de integração
econômica quanto de integração cultural e política, fortalecendo
nossos países no diálogo com outros blocos e com o Norte, sobretudo com a União Europeia e mesmo na resistência à ALCA (Área
de Livre Comércio das Américas). Uma das últimas e mais graves
ameaças à sobrevivência de nossos países, ela representará, na prática, a absorção, pela economia e pela política dos Estados Unidos, da
política, da economia, da autonomia e da soberania de nossos países.
A ALCA, uma vez efetivada, incorporará os territórios dos 33 países das Américas66 (12% do PIB da região) ao território dos Estados
Unidos (88% do PIB), absorvendo, com os territórios, a economia, a
política, a autonomia, a independência e a cultura dos nossos países,
que também terão renunciado ao direito à soberania e à história própria, como observa Samuel Pinheiro Guimarães:
As decisões de política econômica tomadas por autoridades
americanas nos Estados Unidos passariam a ter influência decisiva sobre o progresso e o bem-estar dos brasileiros e sobre a
possibilidade de ter o Brasil políticas econômicas próprias, voltadas para seus interesses”.67
A adesão brasileira à ALCA – que deve começar a funcionar a
partir de 2005, segundo compromissos do atual governo brasilei66 Todos, menos Cuba.
67 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. id. Idem.
308
Roberto Amaral
ro68 – pode representar nosso suicídio coletivo. Seria a modernidade ‘pós’-Kosovo.
A nova ordem mundial derivada do fim da Guerra Fria coloca para nossos povos uma questão irrecusável: os Estados Unidos
e sua política econômico-militar (onde começa uma e termina a
outra?) dirigida pelo interesse e pelo oportunismo – jamais por
uma teoria de valores –, sem mesmo atender a questões concretas
de segurança, interesse nacional ou fins estratégicos claramente
definidos, e levada a cabo com truculência e arrogância, continuarão a dirigir o mundo? Ou, é possível enxergar no horizonte
de nossas existências qualquer sorte de resistência, pelo menos
intelectual e moral?
A utopia é a recuperação do direito de construir nosso próprio destino, em que pese a nova ordem mundial.
(31 de maio de 2000 )
68 Cf. ROSSI, Celso. ‘EUA cobram ‘plena atenção’ à ALCA’. Fstado de S. Paulo, 21/7/1999.
Socialismo e Democracia
309
XII
A especificidade de nossa formação
e o papel brasileiro no projeto de
autonomia sul-americana1
I. Breve notícia sobre a formação colonial
Suponho que boa abertura para este diálogo seja uma breve
notícia sobre a formação do Brasil (esse gigante desconhecido)
como território, país, Estado e nação. Exatamente nesta ordem.
Comprovadamente, o Brasil não foi descoberto, assim, como o
foi a ilha La Española por Colombo; mas certamente será o único
país do mundo com certidão de nascimento, a carta do escrivão da
frota, Pero Vaz, anunciando ao rei de Portugal o encanto das terras
americanas. Território previamente conhecido e previamente visitado, foi apossado por um nobre português por ordem de seu rei e
em nome da Santa Madre Igreja, Católica e Romana.
Nenhum acaso, nenhuma aventura.
A partir daquele momento, rezando a primeira missa e fincando em nosso solo seu brasão, Portugal assumia a propriedade da
terra, mas muito distante ainda estava de assegurar-se da posse do
1 Desenvolvimento (15/2/2009) de palestras ditadas no dia 20 de janeiro na Tulane University (N.O., LA), a convite do Center for Inter-American Policy & Research. Este texto
foi lido pelos professores Ailton Benedito de Souza, Pedro Amaral e F. J. Amaral Vieira,
cujas sugestões agradeço.
311
novo e vasto território, cobiçado por corsários franceses, holandeses
e espanhóis e, mais tarde, alvo de invasões por franceses e holandeses, que aqui lograram até a instalar governo.
Suponho poder registrar o início de uma colonização, a portuguesa, mas a portuguesa na América, muito distinta e distante
das suas contemporâneas construções da América inglesa e da
América hispânica. Se todas essas colonizações têm como característica comum a administração predatória de recursos físicos
e vidas humanas (com destaque para as expedições espanholas
e portuguesas), o experimento espanhol tem um atributo distintivo, a saber, a multiplicação de Estados, para a qual contribuiu,
evidentemente, o próprio caráter das guerras de libertação nacional, que não se repetiram na outra metade do continente.
Acabamos de identificar a marca distintiva dos experimentos
português e espanhol.
Enquanto no Brasil a colonização portuguesa amplia seu território, avançando sobre terras reservadas pelo papa Alexandre
VI, através da Bula Inter Cœtera, ao reino espanhol, o colonialismo espanhol vê um extensíssimo território, que vinha da América Central ou mesmo da Califórnia ao que hoje chamamos de
Patagônia, no extremo Sul do grande continente, dividir-se em
uma série de miniterritórios-nações. Assim, além de ampliar o
território brasileiro, o mantêm politicamente íntegro, como é
hoje, uniforme em que pese a multiplicidade cultural, valores políticos e linguísticos. Quero ressaltar que a colonização portuguesa logrou tais sucessos sem precisar recorrer à guerra.
A única área posteriormente acrescida, o território hoje correspondente ao Estado do Acre, foi adquirida da Bolívia e dessa
aquisição (1903) muito se orgulha a diplomacia brasileira. Não
foi necessário o uso de canhoeiros.
O ‘milagre’ dessa unidade, e dela é que queremos falar, pede
diariamente explicações aos historiadores, pois, a vocação para o
entendimento e a composição não pode ser arguida como marca
da colonização portuguesa, distinguida, até ontem, pelo trabuco e
pela violência em terras africanas e asiáticas. O fato é que somos
312
Roberto Amaral
hoje, contrastando com a América Hispânica, um território de 8,5
milhões de quilômetros quadrados contínuos e assim maior do
que o território norte-americano se dele desapartarmos o Alasca.
Nesse território brasileiro, com quase 200 milhões de habitantes,
só se fala uma língua, inexistem minorias étnicas ou nacionais.
II. Reforma ou revolução? O pacto das elites
Apesar de nossa imensidão territorial, e de mantermos limites
com nove nações independentes e a Guiana Francesa, não sobrevive com qualquer delas a menor sorte de contencioso fronteiriço.
Eis o ponto que pretendo destacar como distintivo de nossas
formações e de nossos destinos históricos, de brasileiros, hispanoamericanos e norte-americanos. Somos, os brasileiros, povo que
privilegia a negociação, a continuidade, a acomodação, a concordata. Somos avessos à ruptura, e talvez isso possa explicar o ritmo
relativamente lento das transformações sociais no Brasil.
Bom exemplo desses arranjos, por exemplo, está no fato de o
Estado democrático não haver podido processar os insurretos de
1964 e nem mesmo os funcionários públicos, civis e militares, acusados de assassinatos e tortura durante a longa repressão militar.
Contrariamente ao que ocorre na América Hispânica, notoriamente na Argentina e no Chile.
Se em outras paisagens predominou o conflito, resolvido mediante a violência ou a guerra, mas muitas vezes apressando revoluções, entre nós predominou e predomina a conciliação como
anteparo à revolução, a transição ao invés das grandes batalhas,
mas transição que é transação, e a conciliação segundo o modelo
prussiano, de cima para baixo, valor que encontramos sintetizado
na frase símbolo de um de nossos heróis, um dos líderes da chamada Revolução de 1930, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”.
Mas ninguém queria revolução, nem mesmo os ‘revolucionários’. João Pessoa, candidato a vice-presidente na chapa encabeçada
por Getúlio Vargas, derrotada por Júlio Prestes, candidato do pre-
Socialismo e Democracia
313
sidente Washington Luís, a quem as forças insurgentes iriam depor
para impedir a posse de seu delfim, declararia: “Nunca contarão comi-
go para um movimento armado. Prefiro dez Júlios Prestes a uma revolução”.
Morto João Pessoa, vítima de crime passional, recusada a liderança por Luis Carlos Prestes, não restou a Getúlio Vargas outra
alternativa senão assumir o comando da revolução. Vencido pelas
circunstâncias mas não convencido, Vargas advertiria seus companheiros de sedição: “Se essa revolução fracassar, negarei que estou
metido nela”.
No fundo, no primeiro grupo de estrategos, havia receios que
transcendiam a sagacidade ou a insegurança de caráter do personagem escolhido para o script previamente escrito para o papel
principal. Havia, fundamentalmente, o medo do povo, daquela
turba que poderia alterar a rota previamente fixada, os caminhos e
os limites autoimpostos do movimento. Havia entre os principais
líderes o temor de que a multidão fizesse emergir, dentro do movimento, o monstro revolucionário, incontrolável, e não apenas a
parada revolucionária, ou o desfilar das tropas na avenida, como
fôra em 1889 e fôra sempre e sempre seria em nossa História.
Os corifeus da paz republicana (leia-se: conciliação), senhores
da ordem, herdeiros do agrarismo exportador, descendentes políticos de Antonio Carlos, de Pinheiro Machado, de Borges de Medeiros, dos oligarcas do Nordeste, reunidos em torno do corpo ainda
quente de João Pessoa, admitem tudo, o golpe de Estado (a que
sempre recorrem) e a insurreição, até, nunca a Revolução. Podem
admitir as revoltas. E quantas promoveram e viveram desde 1889
sem ferir seus interesses? Admitem reformas desde que só políticas, longe de tocar nos alicerces da estrutura social.
Muitos anos passados, o líder da redemocratização de 1984,
presidente da Constituinte, construtor da “Constituição Cidadã”,
o deputado Ulisses Guimarães, proclamaria: “Ou mudamos ou
nos mudam”.
Tudo, menos o povo como sujeito.
314
Roberto Amaral
Ou, mudar para que nada mude, sentença do Príncipe de Lampedusa que se abateu sobre nossa História, abastardando-a.
Este o caráter de nossa formação: a resolução dos conflitos mediante o pacto das elites, e, subentendida, a ausência de povo.
As grandes reivindicações das massas, quando essas emergem,
evoluções rápidas, são negociadas com as classes dominantes e
consoante seus interesses.
Poder-se-á contra-argumentar que o Brasil já se envolveu em
guerra continental, sim. Foi uma miserável guerra contra o Paraguai na segunda metade do século XIX; mas podemos dizer em
nossa defesa, sem esconjurar nossos crimes, que, vencedor, o Brasil
não se apossou de um só centímetro quadrado das terras do derrotado, e que Brasil, Uruguai e Argentina, os invasores, foram à
guerra estimulados e financiados pelo Império inglês que ali no
Sul temia (os impérios sempre temem!) a exótica experiência de
desenvolvimento autônomo, projeto do ditador Solano Lopez. Não
culpemos SM inglesa: os séculos mostrariam que as guerras por
empreitada ou preventivas seriam uma das características desta
modernidade da qual pretendemos nos apartar. Já ensinavam que
os limites territoriais não são fixados em tratados, mas estabelecidos pelo poder militar. E, ademais, foi um bom negócio para a
banca dos Rothschild, financiadores da aventura. Brasil, Uruguai e
Argentina ganharam a guerra, mas ficaram com suas finanças empenhadas na Inglaterra. E mais dependentes do grande Império.
Mas é igualmente verdade que não conhecemos guerras de libertação nacional. Nossa Independência foi proclamada pelo príncipe
herdeiro do reino português, após negociações com o Império britânico, negociações das quais decorreu a assunção, pelo governo brasileiro,
de todas as dívidas contraídas por Portugal junto à Inglaterra. Naquele
então era a Inglaterra, com suas canhoneiras, quem dava o nihil obstat.
Assim se conciliavam os interesses da Corte portuguesa e do
jovem Estado brasileiro, pois este conseguia, via Inglaterra, a certeza de que o gesto intrépido da independência não seria contestado
pelo antigo reino, e este livrara-se da pesada dívida contraída. Tudo
‘em casa’ e na mesma família.
Socialismo e Democracia
315
Tudo, menos revolução.
Em 1822, cria-se um país economicamente dependente, sem
mercado interno, e uma nação por fazer-se, condenada a prorrogar
o projeto colonial fundado no escravismo, no rentismo da aristocracia, na autonomia dos senhores da terra e na preservação da
estrutura agrária arcaica.
A abolição da escravatura foi ato jurídico de magnanimidade da princesa-regente, magnânima (foi qualificada pelo mais
eminente jornalista do abolicionismo, José do Patrocínio, ele
próprio um negro, filho de uma escrava com um padre, como
‘a Redentora’, a cujos pés se prostraria), mas igualmente atenta
às pressões inglesas, às quais resistia o imperador. Foi levada a
cabo, a abolição, por um gabinete conservador e escravocrata, que terminou livrando o Estado e os escravocratas dos ônus
da indenização e da reforma agrária. Na verdade, a Abolição
foi construída como um longo processo parlamentar resultado
da conciliação entre conservadores e liberais, todos acordes em
evitar uma ruptura que poderia implodir a economia. Assim, tivemos uma sucessão de medidas liberatórias, num processo homeopático, gradual, de concessões, cujos principais marcos são
proibição do tráfico negreiro (atendendo a pressões insuportáveis
da Inglaterra, pressões que incluíam o apresamento e apropriação
de navios transportando africanos para o Brasil) que eliminava a
realimentação do braço cativo, a Lei do Ventre Livre que declarava livre o filho de escravo aqui nascido, e a lei do sexagenário, que
assegurava a alforria dos escravos aos sessenta anos.
Planejada, a abolição da escravatura foi prevista muito antes
de ser anunciada, deixando-se com a princesa-regente o ato simbólico de sua decretação.
Participação popular, nenhuma. Nada além de retretas, sessões
cívicas, festivais de oratória.
Por trás de tudo, um trato: tudo era assimilável, menos a desenfeudação da terra.
A transação, sempre.
316
Roberto Amaral
Se não conseguiu livrar-se do preconceito racial e sempre ansiasse pelo ‘embranquecimento da raça’, jamais nossa civilização
praticou o apartheid. Somos exemplo raro de miscigenização.
A Proclamação da República não resultou da campanha republicana nem muito menos contou com o concurso do frágil Partido Republicano, que dela esteve distante, ou de movimento de
massas de qualquer natureza. Foi um episódio militar, executado
pelo Exército, resolvido na caserna. Nasceu de um golpe militar
que pretendia simplesmente derrubar um gabinete (o Brasil era
então, relembre-se, uma monarquia parlamentarista) incompatibilizado com a liderança militar.
Aristides Lobo, republicano, descreve em artigo publicado no
Diário Popular dia 18, o espetáculo vazio mediante o qual o país mudara de regime de governo no dia 15 de novembro de 1889. Sem povo:
Por ora, a cor do Governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento
civil foi quase nula.
O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava.
Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada.
O engenho e a astúcia de jovens oficiais republicanos alteraram a qualidade da crise e levaram o marechal Deodoro da Fonseca, que apenas queria depor um desafeto, a proclamar um regime
que jamais entendeu. Instaurada a República, ela haveria de institucionalizar-se e assim se fez com a promulgação de uma Constituição que era quase tão somente a tradução da Constituição dos
Estados Unidos. Copiamos-lhe quase tudo, até o nome. Passamos
a ser ‘República dos Estados Unidos do Brasil’, título que só perderíamos graças aos militares, quando, em 1967, resolveram sistematizar numa Carta as diretrizes do golpe de Estado de 1964 e da
ditadura, fruto da reação da direita oligárquica, mas igualmente
instaurada com a assistência técnica do Departamento de Estado
norte-americano e a vigilância de suas belonaves fundeadas ao largo de nosso litoral.
Socialismo e Democracia
317
Sem povo, nascia e viveria a República, que posteriormente se
chamaria de Velha, sem legitimidade representativa, sem opinião
pública, controlada pelas oligarquias, sem soberania popular. Mas
tudo dentro dos termos do acordo que conciliava, no poder, os interesses dos plantadores de café de São Paulo e os dos pecuaristas
de Minas Gerais. Até pelo menos 1930.
Para os senhores da terra, os verdadeiros donos do poder, era
indiferente a opção entre Monarquia e República, desde que fosse
respeitado seu mando. A República respeitou.
Este acordo partia do pressuposto segundo o qual o país estava determinado a ser, sempre, um exportador de produtos agrícolas. Tinha para assegurá-lo o pacto da alternância de presidentes
mineiros e paulistas. O rompimento desse pacto pelo presidente
Washington Luís, que indicara para sua sucessão um candidato
paulista como ele, em prejuízo da candidatura mineira de Antonio
Carlos, está na raiz da revolução de 30.
Em 1891, na primeira crise do governo republicano, Deodoro, presidente da República, é instado a fechar o Congresso, mas,
‘para evitar derramamento de sangue’, prefere renunciar ao poder.
Sucede-lhe o vice, o também marechal Floriano Peixoto, contra
a letra constitucional, que exigia novas eleições. Possibilitou a
posse um acordo travado dentro do Congresso. Episódio similar
conheceríamos em 1984, na passagem da ditadura para o regime
de transição.
Em 1910, Rui Barbosa lidera a primeira campanha civilista,
em busca da Presidência da República. O lema de sua candidatura, ditado por Otávio Mangabeira, líder liberal, seria “Rui Barbosa ou a revolução”.
A ameaça de ruptura cobrando a conciliação.
Em 1920, após os levantes populares nos Estados Unidos e na
Europa, e mesmo no Brasil, após a primeira Guerra Mundial e a
Revolução de 1917, declararia o próprio Rui: “Ninguém hoje pode
invocar a revolução como porto seguro da liberdade. Nesses sorvedores insidiosos, ninguém sabe o que a espera”.
318
Roberto Amaral
Em 1930, depois de uma série de levantes militares, assistimos
ao movimento político-militar que se autodenominou em Revolução de 1930, a qual, sem tropas a enfrentar, instalou no poder
o futuro ditador Vargas, com o duplo mandato de restabelecer a
democracia representativa, desmoralizada pela fraude eleitoral, e
livrar o regime das amarras dos agroexportadores, os quais, todavia, permaneceriam no poder e dariam as cartas ao governo.
Dominado pelas circunstâncias que, na História, muitas vezes se sobrepõem à vontade dos homens, Vargas lidera o levante,
chega ao poder, mas num último esforço tenta impedir a revolução: queria assumir não como chefe do movimento insurrecional
vitorioso, mas como o candidato legal que tivera sua vitória eleitoral esbulhada nas urnas. Cede aos ‘tenentes’ e ao que se poderia
chamar, na época, de ‘opinião pública’, e assume como ditador a
chefia do Governo Provisório. O mais, está contado pela História.
Depois de derrotar a insurreição de forças militares e civis
paulistas, (‘revolução paulista’ de 1932) reivindicantes da constitucionalização prometida pelo governo Provisório e só alcançada
com a Constituinte de 1934, Vargas aproveitou-se de um levante
comunista (1935), de caráter militar e sem apelo às massas, para
instalar o ‘Estado de guerra’, a repressão e um draconiano Tribunal de Segurança Nacional que tudo podia quando se tratava de
punir os adversários do governo. Era o ensejo de que carecia o
regime para, sem resistência, lançar uma pá-de-cal no que restava de democracia, instaurar a repressão policial e abrir caminho
para, em 1937, suspender as eleições (convocadas para 1938), instaurar o ‘Estado Novo’, sua ditadura franca. Mas foi esse regime o
responsável pela modernização do país, pelo lançamento das bases de sua futura industrialização, e pela implantação de uma moderna legislação trabalhista, ainda hoje vigente em sua essência.
Ideologicamente autoritário e para-fascista, o regime namora ao
mesmo tempo com os alemães e as democracias ocidentais ameaçadas. Numa negociação na qual se empenharam o presidente
Roosevelt e o ditador brasileiro, Vargas decide levar o Brasil à
guerra em defesa da democracia nos campos europeus, em troca
Socialismo e Democracia
319
da ajuda americana à industrialização brasileira, que jamais contara com a simpatia dos grandes irmãos do Norte.
Ainda hoje o ditador é elogiado pela boa negociação.
Derrotadas as tropas do Eixo, tornara-se intolerável ao país que
lutara pela democracia nos campos de batalha da Itália continuar
a conviver com a ditadura. É evidente que este desfecho esteve nas
cogitações de Vargas, exímio estrategista, que assim adiou o quanto
pôde a consabidamente inevitável adesão à causa dos Aliados. Depois de acicatado pelo embaixador dos Estados Unidos no Brasil,
Vargas é convidado pelos militares, muitos seus sócios na imposição do golpe de 1937 e seus sustentáculos no período de exceção,
a deixar a Presidência. Acede, e, sem resistência, vai descansar em
sua estância no sul do país. Eis como o Brasil se redemocratizou.
Assim havia sido em 1889. O imperador, silente e acabrunhado, embarcou, com suas malas e suas mágoas, para o exílio em Paris. Sua Marinha de Guerra conciliada com o Exército.
Assim seria em 1930. O presidente Washington Luís, deposto, aceita o braço do cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, e segue
para o exílio.
Assim em 1961. Após o fracasso da tentativa de golpe solitário,
o presidente Jânio Quadros, virtualmente deposto pelo Congresso
(num acordo que envolveu o partido do governo, a UDN, liderada pelo governador Lacerda, e os partidos da oposição, o PSD e
o PTB) toma um cargueiro de passagem por Santos e segue para
rápido autoexílio na Europa.
O povo, atônito, não se levantou para pedir a volta do renunciante, mas pela posse de seu sucessor legal, ameaçada pelos militares. Não se repetiram os retornos de De Gaulle e Fidel Castro,
que tanto inspiraram os feiticeiros do Palácio do Planalto. Parece
mesmo que a História só se repete como tragédia ou farsa.
Assim em 1964. Com o povo a um tempo mobilizado e atônito,
o presidente Goulart renuncia a qualquer sorte de resistência, pois
‘não desejava ver derramamento de sangue entre patrícios’ e volta a
ser estancieiro, desta feita no vizinho Uruguai.
320
Roberto Amaral
Vargas voltaria ao poder, pelo voto, em 1951, àquela altura em
franca oposição aos interesses norte-americanos. Chocavam-se então duas tendências principais na política e na economia brasileiras:
a que propunha o desenvolvimento autônomo, apoiada por Vargas,
e a que propunha o desenvolvimento alinhado aos interesses norteamericanos, nos marcos da Guerra Fria que se acirrava. Em 1954,
Vargas – personagem de teatro grego em História que jamais apreciou a tragédia – pagou com a vida para não ser deposto por militares
alinhados com os Estados Unidos, enfraquecendo-os politicamente,
o que ensejou a realização de eleição presidencial no ano seguinte, na
qual se sagrou vencedor Juscelino Kubitschek, igualmente comprometido com o desenvolvimento autônomo.
Mas entre a eleição e a posse de JK (cujo vice era João Goulart,
ministro do Trabalho de Vargas e pivô de várias crises militares), as
forças políticas civis e militares derrotadas intentaram um golpe de
Estado visando a impedir a posse dos eleitos. O ministro da guerra
comandou um ‘contragolpe’ e o Congresso, em uma só votação, declarou impedidos de exercer a presidência o presidente Café Filho
que sucedera Getúlio Vargas e o presidente da Câmara, deputado
Carlos luz, seu substituto legal. Os insurretos deram um passeio de
cruzador no litoral entre o Rio de Janeiro e Santos (SP) e regressaram
a seus postos, desprovidos de apoios. O líder civil da intentona foi
passar uma pequena temporada em New York depois de uns dias
em Havana e logo regressou para reassumir seu mandato de deputado federal.
Chamado a ditar o direito, provocado por habeas corpus impetrado pelo presidente impedido, o Supremo Tribunal Federal reconhece a força das baionetas consagrando o único direito que vige,
aquele que tem a força como garantidora de sua obediência.
O país volta à normalidade, os militares aos quartéis e o primeiro ato do novo presidente foi decretar anistia aos revoltosos.
Ao longo do mandato de Juscelino, continuou intenso o choque
de tendências, já a esta altura com novo e inédito ingrediente: a participação popular, através dos movimentos sindical e estudantil.
Socialismo e Democracia
321
O ‘desenvolvimentismo’, fundado nas grandes obras e no projeto de industrialização, beneficiando sempre os interesses privados,
de par com uma política externa que começava a se preocupar com
a América do Sul (é desse então a iniciativa brasileira e jusceliana da Operação Pan-Americana), e arroubos como o rompimento
com o FMI – o ícone do imperialismo naqueles anos – a presença
atuante de seu vice João Goulart controlando o Ministério do Trabalho, juntam em sua defesa o empresariado e as forças populares.
O Partido Comunista, nada obstante a permanência da ilegalidade
formal, conhece a luz do sol e seu principal líder, Luis Carlos Prestes, de posse de um habeas corpus concedido pelo juiz Monjardim
Filho, volta à liberdade e à ação política pública.
No início dos anos 1960, assistiu-se ao grande ascenso das
forças populares, o mais significativo da República, associando o
nacionalismo que vinha do último governo Vargas, às utopias sociais suscitadas pelo governo Goulart, construindo as bases de uma
esquerda jacobina que, só após a ditadura, se reconciliaria com a
democracia formal e representativa.
Em 1960, apoiado pelos golpistas de 1954 e pela tendência alinhada aos Estados Unidos, com expressiva votação popular, elegese Jânio Quadros. No poder, fez com que as contradições de então
se desenvolvessem celeremente: ao mesmo tempo em que adotou
política econômica conservadora (antecipando-se à ortodoxia monetarista dos militares no regime pós-64), colocou o país no plano
externo no movimento dos não alinhados, capitaneado pela Iugoslávia e pela Índia. Recebeu Tito, condecorou Guevara, recusouse a acompanhar a posição americana na OEA em relação a Cuba.
Acabou por renunciar intempestivamente, abrindo séria crise militar, pois seu vice-presidente, João Goulart, eleito também pelo voto
direto, era o herdeiro político de Vargas e tinha forte apoio sindical.
A renúncia parecia haver colocado o país diante da inevitabilidade de um conflito militar. Mas um acordo das elites, transacionado no Congresso – tendo como pano de fundo inédita
mobilização civil –, muda, em poucas horas, o regime de presidencialista a parlamentarista, assim obtendo o acordo dos mili-
322
Roberto Amaral
tares rebelados à posse do vice-presidente João Goulart, o qual,
no poder, negocia a revogação da mudança do regime e faz retornar o país ao presidencialismo, após a realização de um plebiscito no qual o parlamentarismo foi rejeitado por mais de 80% dos
eleitores. Tudo nos termos de estrita legalidade, o que em outras
paragens certamente teria acarretado interrupções institucionais,
conflitos militares ou revoluções.
Em 1964, apenas três anos passados desses eventos, outra vez
o país se depara com a tensão política e social, e quando parecia,
finalmente, que caminhávamos para o confronto, a política se reordena com o exílio voluntário do presidente e, sem resistência, se
instaura, em nome da democracia, das liberdades e da defesa da
Constituição, a ditadura militar, liderada pelo mesmo grupo que
derrubara Vargas em 1945, que o levara ao suicídio em 1954 e tentara evitar a posse de Juscelino em 1956. A princípio alinhados aos
interesses dos EUA, os militares deles progressivamente se afastam,
chegando ao ponto de denunciar o Acordo Militar Brasil-EUA no
governo Geisel, o penúltimo general-presidente. Progressivamente
isolada nacional e internacionalmente, a ditadura chega ao ocaso
em 1984, quando é solapada pelo maior movimento popular da
história do país, a campanha das ‘diretas-já’ (eleições diretas para
presidente) e termina por implodir (elegendo um oposicionista) o
colégio eleitoral montado pelos militares e seus juristas exatamente
para consagrar o candidato previamente escolhido pelos quartéis.
Nasce uma nova transação.
Quando todos apostavam na ruptura com o regime decaído,
um acordo entre civis e militares estabelece as regras da transição/
transação graças à qual o regime militar sobrevive no civil, a ditadura na democracia, e, joia da conciliação brasileira, eleito Tancredo Neves, o candidato da oposição, assume, com sua morte, o
seu vice, o senador José Sarney, ex-líder do governo militar e expresidente do partido da ditadura.
O verdadeiro reveillon de 1984, aí então com contornos de festa cívica, só se deu em março de 1985, quando uma nova era deveria iniciar-se. Na noite do dia 14, engalanada, Brasília era só festa.
Socialismo e Democracia
323
Todos comemoravam o fim da ditadura. A História escreveria outros
fatos. Internado, submetido à cirurgia de emergência, o presidente
eleito estava impedido de tomar posse na manhã do dia seguinte, 15
de março de 1985. Para alguns juristas e políticos, deveria assumir,
na interinidade, o presidente da Câmara, deputado Ulisses Guimarães. Mas, para outros, essa alternativa não seria aceita pelos militares. O consenso entre juristas, políticos e militares se fez em torno
da tese de que deveria assumir o vice José Sarney. Na madrugada, é
costurado o acordo em torno da posse do vice, e assim políticos de
direita e de esquerda, oposicionistas e governistas, civis e militares
vão à posse inesperada, enquanto o ditador escolhe a porta dos fundos do Palácio do Planalto para sair de cena. Do acordo, fez parte
o compromisso de o novo governo não convocar uma Assembleia
Constituinte, que tudo poderia, nem permitir qualquer sorte de punição a militares, que permaneceriam nas ilhargas do poder. O novo
governo seria apenas o início de uma longa transição.
José Sarney governa por cinco anos, convoca um Congresso
ordinário com poderes para elaborar a nova Constituição que, promulgada, condena como excessivamente generosa quanto ao atendimento de reivindicações sociais, embora a tivesse permanentemente
em cima de sua mesa de trabalho, ao lado de um exemplar da Bíblia.
É hoje, além de presidente do Senado Federal, prócer dos mais notáveis do governo do presidente Lula, este, inegavelmente, o mais progressista dos presidentes em toda a História republicana brasileira.
A conciliação é amálgama que se faz à direita e à esquerda.
Em 1935, o Partido Comunista descarta a via revolucionária
(por meio da organização das massas) para a conquista do socialismo e, sem mobilização popular, sem apelo ao proletariado
ou às grandes massas, opta pelo assalto ao poder. Deixa as ruas
para tramar nos quartéis. Um punhado de oficiais e militares de
variadas patentes se encarrega do levante. De novo a ironia da
História, que então se repete como farsa.O assalto ao Palácio de
Inverno da Revolução de 1917 transforma-se entre nós em caricata tentativa de golpe, batizada pelos legalistas como “intentona” e condenada ao destino inevitável dos desatinos políticos:
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Roberto Amaral
ao fracasso. Será um dos pretextos utilizados pelo governo para
a repressão. Dois anos passados, vivas e revividas as imagens de
1935, repressão nas ruas, o governo denuncia a existência de um
novo plano comunista de tomada do poder, o ‘Plano Cohen’. Era
o pretexto de que carecia para suspender as eleições (convocadas
para 1938) e decretar a ditadura que chamaria de ‘Estado Novo’, e
que duraria de 1937 a 1945.
O autor do falso plano subversivo, oficial integralista, seria
prócer de destaque na irrupção da intentona de 1964. Aliás, se a
História não se repete, repetir-se-ia na República a utilização de
documentos falsos como instrumento de fazer política. Os anos
1920 conheceriam as cartas falsas que tentaram incompatibilizar
o presidente Artur Bernardes, de tendências nacionalistas, com as
forças armadas; nos anos 1950, o jornalista Carlos Lacerda, líder
da direita depois de líder estudantil comunista, brandiria contra
João Goulart (o alvo era Vargas) a famosa ‘Carta Brandi’ (falsa),
que acusava o ministro do Trabalho de envolvimento com contrabando de madeira.
A iniciativa comunista de ‘tomada do poder’ contamina a direita integralista, que, na noite de 10 de maio 1938, tenta ‘tomar de
assalto’ o Palácio Guanabara, onde dormia o ditador.
A História se repete como sempre: como fracasso.
Nos anos 1960, na medida em que é instrumental à esquerda e à direita, a conciliação dominaria as forças revolucionárias.
O mesmo Partido Comunista do levante de 1935 renuncia à luta
de classes e elege como sua aliada a ‘burguesia nacional’, ilusoriamente vista em conflito com o imperialismo. Matrimônio
não correspondido. A política de conciliação com o capitalismo
brasileiro levou mesmo a esquerda a acreditar que os generais
fariam a revolução para colocar sargentos e operários no poder,
e associou seu destino ao dispositivo militar da Presidência da
República, chefiado por um general de duas estrelas que não foi
encontrado quando as tropas insurrectas se levantaram contra o
governo constitucional.
Socialismo e Democracia
325
Independentemente de nossas fragilidades ideológicas e doutrinárias, a própria funcionalidade do regime parece eleger a conciliação como principal instrumento de trabalho. O presidencialismo
brasileiro, fundado num bom pluralismo partidário, sempre ameaçado nas reformas políticas periódicas, impõe os governos de coalizão contra os governos de um só partido (pois nunca o partido do
presidente é hegemônico no parlamento) e a coalizão, no governo
(incluindo a distribuição dos ministérios) e no Parlamento, vai da
esquerda à direita, conciliando interesses e ideias antagônicos.
Em 2002, na sua quarta e vitoriosa disputa presidencial, ainda
apontado pela direita como ameaça de ruptura, o candidato Luís
Inácio Lula da Silva se apressa em divulgar sua ‘Carta ao povo brasileiro’ mediante a qual se compromete com uma ‘lúcida e criteriosa
transição entre o que temos e aquilo que a sociedade reivindica”.
III. Será possível uma América do Sul autônoma?
O Brasil e as perspectivas do governo Obama
O presidente Lula, ex-líder sindical, metalúrgico de profissão,
líder grevista, fundador do Partido dos Trabalhadores, que se anunciara como de esquerda e portador de uma promessa de revolução
socialista, realiza, no governo, o sonho inalcançado por Vargas:
uma democracia fundada na conciliação de classes (chamemo-la
de pluriclassista), reunindo, na sua base de apoio parlamentar partidos de esquerda e de centro-direita, e na sociedade, obtendo o
apoio ao mesmo tempo dos excluídos, das classes médias e das chamadas elites financeiras. Aprofundou a independência da política
externa em face dos interesses norte-americanos ao mesmo tempo
em que estabeleceu, com Bush, inesperado e caloroso diálogo. Dizem mesmo os mais próximos, que floresceu entre os presidentes
uma mútua admiração, sem que o governo brasileiro abrisse mão
de seu contencioso com os Estados Unidos, notadamente nas restrições à ALCA, ao bloqueio a Cuba, ao protecionismo agrícola, às
resistências à transferência de tecnologia, à invasão do Iraque, ao
unilateralismo nas relações internacionais etc.
326
Roberto Amaral
Assim, por essas artes e engenhos, e caprichos da História, um
ex-torneiro mecânico, líder sindicalista de esquerda, apontado pela
direita brasileira como extremista, comanda, no Brasil, em paz com
os Estados Unidos administrados pela sua direita, o único projeto
social-democrata do continente. E o faz em momento especial da
América do Sul, quando se verifica a emergência das massas e de
seus contingentes nacionais explorados – no Paraguai, no Equador,
na Bolívia, no Uruguai e na Venezuela. Se a esses novos governos,
que de uma forma ou de outra, transitam do anti-imperialismo, isto
é, do antiamericanismo, para a reivindicação de alternativas socialistas ainda imprecisas, reunirmos a Argentina dos Kirshners e identificaremos, sem qualquer dificuldade, uma inclinação do continente à
esquerda. O que isso significará no horizonte dos próximos 20 anos,
é difícil de prever. Certo, porém, é afirmar que esses países dificilmente retornarão ao statu quo ante. Pelo menos nos próximos oito
anos, independentemente do que fará em política externa a nova administração democrata.
Duas políticas dos EUA podemos já dizer que não prosperaram, a primeira delas, foi a cara construção de um enclave próamericano ou anticontinental, em que se tornou a Colômbia sob o
governo Uribe. Se logrou a manutenção de seu aliado no poder e
levá-lo a vitórias militares sobre as tropas guerrilheiras, foi impotente na contenção do narcotráfico. E, pior, o isolamento do governo Uribe, e seus conflitos mais diretos com a Venezuela, o Equador
e a Bolívia contribuíram para o maior isolamento dos seus patrocinadores, os Estados Unidos, na região. A outra foi a cediça política de, através das alianças com setores locais dominantes, quase
sempre corruptos e anti-nacionais, sempre oligárquicos, promover
golpes de Estado. É o que nos ensinam os intentos da diplomacia
norte-americana na Venezuela (2002) e, mais recentemente, na Bolívia, onde Evo Morales acaba de vencer mais um plebiscito com a
sanção popular ao seu projeto de Constituição. Chavez, que permanece no poder há dez anos, acaba de ganhar um referendum
que lhe permitirá, se desejar, reeleger-se indefinidamente. É hoje,
na América Latina, o ícone do antiamericanismo.
Socialismo e Democracia
327
No caso boliviano, importa frisar que, pela vez primeira na História da América do Sul, houve uma intervenção concertada entre todos
os governos da região (inclusive o da Colômbia) para, sem a participação dos EUA, sustentar o governo constitucional de Morales, ameaçado pela direita boliviana, ostensivamente apoiada por Washington.
Nesses casos, o tiro saiu pela culatra, repetindo o erro reiterado do bloqueio a Cuba.
Sobre o que ocorre na América do Sul e nesses países, precisamos negar algumas conclusões superficiais. Em nosso continente, há algo mais que a simples ascensão do populismo e do
anti-americanismo, fórmula clássica de que se utiliza a direita
para contestar os governos populares. Há aqui um fenômeno
novo, que eu chamo de emergência das massas dispensando mediações, portanto, movimentos antipopulistas, pois, o que ali se
verifica são os povos originários assumindo um protagonismo
inédito e crescente. A América do Sul é outra quando um índio,
ex-líder sindicalista e produtor de coca, camponês pobre, é eleito
presidente da Bolívia; quando um criollo chefia o governo venezuelano respaldado em sucessivos plebiscitos, a saber, 15 eleições
em dez anos.
No Brasil, onde se vive um outro processo, um ex-líder sindical, oriundo das mais pobres extrações sociais do Nordeste brasileiro, assume a Presidência da República.
Separar os novos governantes da América do Sul entre bad
boys e friends pode ser simples e fácil. Mas não se revela eficaz.
Esse cenário, se fotografado nos anos 1960, estaria desenhando
para o observador a iminência de golpes de Estado, intervenções
estrangeiras e, remédio sempre prescrito para combater o esquerdismo, ditaduras militares.
Mas somos hoje, a América do Sul, uma rara zona de paz no
planeta.
Como explicar esse aparente ‘milagre’ político?
Contrastando com o passado recente, nosso continente tem
os seus governos, hoje, todos eles, ungidos por processos eleito328
Roberto Amaral
rais não contestados e seus povos usufruem da democracia possível, embora sejam, esses governos, em seu conjunto, governos
que também adotam medidas nacionalistas e populares, o que
incomoda as classes dominantes locais. Não há registro de quebra
da institucionalidade nos últimos vinte anos; ao contrário, há sim
uma sucessão de eleições, plebiscitos e referendados aos quais se
submete o poder popular.
A que atribuir tal milagre, senão à conjunção de variados fatores, entre os quais assinalo a conhecida marginalização da América
do Sul pelas políticas do Partido Republicano dos EUA?
Quero dizer que muito da tranquilidade continental deriva da
prioridade da política externa norte-americana nos últimos anos,
focada no Oriente Médio, na proteção ao expansionismo israelense, e nas guerras ao Iraque e ao Afeganistão, em nome do combate
ao terrorismo. Mas não posso deixar de afirmar que o Brasil tem
algum papel a ser reconhecido nessa entente, qual terá sido, com os
nossos valores da conciliação, da contemporização, da transação e
da negociação, o de havermos servido de anteparo, e harmonização, a muitos dos conflitos entre os interesses do continente e os da
administração republicana nos EUA, nada obstante seu caráter reacionário. Somam-se a essas características que antes indiquei como
formadoras da nacionalidade brasileira, as próprias características
do presidente Lula, desde seu sucesso sindical reconhecido como
negociador e conciliador, avesso ao embate, senão àqueles arroubos verbais de que tanto necessita a mobilização das massas. Isso
talvez explique seu êxito popular, em país conservador, autoritário
e de origem escravocrata.
Esse papel de liderança o Brasil certamente continuará a exercer nos próximos anos.
Por que não haveriam de ser excelentes as relações Brasil-Estados Unidos, Lula-Obama, se foram excelentes as relações brasileiras
nas duas últimas presidências americanas, nada obstante o protecionismo e o intervencionismo, comuns a democratas e republicanos,
comuns a Clinton e a Bush, e à sua devoção comum, dogmática, ao
complexo industrial-militar, reflexo do ‘destino-manifesto’?
Socialismo e Democracia
329
Teme-se no Brasil que o governo Obama aprofunde o protecionismo norte-americano, principalmente sobre nossas commodities
e mantenha suas restrições à transferência tecnológica, de que tanto carecemos. Por outro lado, torce-se para que o novo governo dê
prioridade às suas crises maiores, deixando a América do Sul com
a América do Sul.
Sempre que isso ocorre, o continente conhece a paz e o progresso. Como agora.
Nossas chamadas elites, ou seja, as classes dominantes de nossos países, sem a interferência dos EUA, são obrigadas a formular
seus interesses de modo mais ou menos autônomo, mais voltado
para o território, e a articulação com os países do entorno se torna
mais fácil.
A propósito, o Brasil acaba de anunciar, por intermédio de decreto presidencial, sua Estratégia Nacional de Defesa, a qual elege,
como prioridade, o desenvolvimento dos programas nuclear, espacial e cibernético, exatamente aqueles, os quais, associados ao
rearmamento de nossas forças armadas, mais tem contado com as
restrições do governo dos Estados Unidos.
Mas os interesses mútuos cimentarão um forte relacionamento.
Algumas prioridades do governo Obama independem de suas
escolhas ideológicas. Aí está, e ela sozinha já serviria para mobilizar
todas as forças governamentais, a brutal crise do capitalismo mundial.
Dela sabemos que sairemos, só que não sabemos como, nem quando. Com ela foi desconstituído o neoliberalismo e destronado o deusmercado, na tardia confissão de Alan Greenspan. Como se essa crise
não fosse bastante em si, está aí, quente, a crise do Oriente Médio, a
agressividade da política de Israel em face de seus vizinhos ocupados
(e Obama terá de definir-se diante de seus aliados israelenses e o restante do mundo), aí está a desastrada invasão do Iraque esperando por
uma saída, aí estão o Irã e o Afeganistão, os fundamentalismos de toda
ordem. Aí está a ameaça do terrorismo difuso. E aí está a promessa
de novos conflitos entre os vizinhos atômicos, Índia e Paquistão. E a
intermitente crise de abastecimento de energia e alimentos.
330
Roberto Amaral
Tudo isso tendo como pano de fundo – ou alicerce? – a crise do capitalismo mundial a partir da crise do capitalismo norteamericano. Depois da bolha tecnológica, da bolha habitacional, da
bolha financeira, eis a crise do maior símbolo da força da economia
e do american way of life norte-americano, sua indústria automobilística. Aí está, cobrando encomendas, o ‘complexo industrial militar’ de que falava Eisenhower, aí estão os interesses empresariais
da maior monta possível de par com a expectativa de que nessa
administração os direitos humanos, os direitos trabalhistas e a regulamentação ambiental receberão a atenção que não mereceram
nos oito anos de Bush.
Como suspender as encomendas que a guerra propicia à economia norte-americana?
Aí está o espetacular colapso do prestígio dos EUA junto à opinião pública internacional e mesmo junto a seus aliados, ensejando, no vazio, o aparecimento de lideranças surpreendentes como
a de Sarkozy e iniciativas guerreiras como a de Olmert no ocaso
de seu triste governo, e o próprio primeiro-ministro pessoalmente
acusado de corrupção e às vésperas de um desafio eleitoral.
Aí está a ascensão, contemporânea, de novos atores, comerciais e políticos, como a China, a Rússia, o Brasil, a Índia.
Qualquer que seja o desfecho da crise, os Estados Unidos dela
sairão como a maior potência militar do mundo, sua maior economia e seu maior produtor de ciência e tecnologia. Mas dificilmente
recuperarão no curto e médio prazos a liderança política e moral
que terminou por perder na administração Bush.
Abre-se grave vazio político quando as organizações multilaterais e os fóruns multinacionais entram em decadência, para a qual
tem contribuído a política norte-americana, sobretudo nas administrações republicanas, principalmente a partir de Reagan.
Certamente Obama, ao contrário de seu antecessor, não se investirá a missão de ‘novo cruzado’, com o dever sagrado de impor
aos ‘novos ‘bárbaros’, os valores de um novo ocidentalismo, a sua
visão cristã e evangelizadora, ou, se me permitirem, a visão fundamentalista do ocidentalismo cristão.
Socialismo e Democracia
331
E só essa pequena inflexão muito servirá para conter a tensão
internacional.
Ainda que tenha sido eleito ‘para mudar’ – e para mudar eu
traduzo como desconstituir o pesado legado dos anos Bush – o presidente Obama foi eleito para defender os interesses dos Estados
Unidos, e os defenderá como prioridade, mesmo que, ao contrário
de Bush, esteja convencido de que os interesses norte-americanos
nem sempre coincidem com os interesses da Humanidade, ou, dito
de forma mais precisa, ainda que não esteja convencido de que os
interesses da Humanidade deverão coincidir com os interesses dos
Estados Unidos.
Nesse cenário – haverá outro? – os Estados Unidos precisam
de paz no Sul, e, ouso dizer-lhes, só a estabilidade brasileira poderá
oferecê-la. O preço pode ser o não-intervencionismo no Continente, apesar da reativação da IV Frota, coincidentemente anunciada
logo após a confirmação das grandes reservas de petróleo no litoral
brasileiro. O Brasil deseja consolidar seu papel autônomo em face
das grandes potências, e tem consciência de sua liderança. Nem
uma coisa nem outra colidem com os interesses norte-americanos,
cujos objetivos, dependem também do crescimento e da estabilidade política e econômica de seus aliados. Esses aliados são, ao
mesmo tempo, fornecedores de matérias-primas que os EUA precisam importar, inclusive petróleo, e consumidores dos produtos
industrializados norte-americanos, num comércio internacional
no qual disputam fatias significativas a Comunidade Europeia, o
Japão e a China. Basta a Obama compreender a conveniência do
desengajamento dos EUA no continente, compreendendo, porém,
que, em troca, o Brasil não estará disposto a assumir o trabalho de
polícia da região.
Os Estados Unidos de Obama e o Brasil de Lula têm mais
aproximações que divergências. Se estão distantes no que diz respeito ao desastrado bloqueio a Cuba, cujo direito à autodeterminação continuaremos defendendo; se também estamos distantes
relativamente à política no Oriente Médio e principalmente quanto à invasão do Iraque, terão de estar mais próximos em futura
332
Roberto Amaral
rodada de Doha, na retomada dos compromissos com Kyoto, e
no pós-Kyoto, na defesa da ferida camada de ozônio do planeta,
nas restrições às emissões de CO2 e no encontro de alternativas
ao consumo de combustíveis fósseis, para o que a política brasileira de biocombustíveis pode oferecer uma saída. Deverá ser um
consenso entre as duas administrações o desenvolvimento como
base da estabilidade regional, e, por razões acima de tudo éticohumanitárias, a salvação da África, onde o próprio novo presidente dos Estados Unidos tem seus ancestrais e nossos povos uma
impagável dívida moral.
Há uma nova ordem internacional em gestação (como há uma
nova ordem econômica engendrada pela crise), e para ela deverá
estar atenta a administração democrata. Essa nova ordem compreende o papel de sujeito desempenhado pelos países do Sul, dentro e
fora do G-20, a morte do ‘consenso de Washington’ e a necessidade
de um novo ‘Bretton Woods’, que ninguém sabe como será.
As prioridades internacionais dos EUA deverão ser o conflito
no Oriente Médio, a retirada das tropas do Iraque, o anunciado
aprofundamento da guerra no Afeganistão, as relações com o Irã, o
Paquistão, a Rússia e a China.
Não representando área em conflito, a América do Sul estará
fora das lentes do Pentágono e do Departamento de Estado. Na
América Latina dentre as questões mais relevantes inscrevem-se a
normalização das relações com Cuba, México, em face do narcotráfico e da imigração ilegal, e a Colômbia, por carecer de solução
democrática para sua guerra civil cinquentenária.
O Brasil continuará como um bom interlocutor dos EUA. As
boas relações políticas, porém, serão insuficientes para melhorar as
relações comerciais que deverão ser ainda mais difíceis em face das
tendências protecionistas do Congresso democrata, tendências essas agravadas pela crise financeira e o desemprego norte-americano. Os subsídios americanos para álcool de milho, e as sobretaxas
sobre as importações de aço, que contrariam os interesses brasileiros, permanecerão de pé.
Socialismo e Democracia
333
O Brasil continuará defendendo a paz e a negociação como
única alternativa para os contenciosos; condenará o intervencionismo militar e defenderá o fortalecimento dos organismos internacionais e multilaterais.
Os Estados Unidos são fortes e grandes demais para se importarem com isso. Mas, como observou a sra. Hillary Clinton, em
sabatina no Senado americano para confirmar a nomeação como
secretária de Estado, ‘Os EUA não podem resolver sozinhos os problemas mais urgentes do mundo [na sua maioria por eles mesmos
criados] e o mundo não pode resolvê-los sem os EUA’.
Orientação bibliográfica
A obra seminal sobre a conciliação como regra no concerto
dos conflitos sociais/impasses históricos é Conciliação e reforma
no Brasil, um desafio histórico-político, de José Honório Rodrigues,
livro de 1965, editado pela Civilização Brasileira. Desenvolvo este
tema no livro A modernidade no Brasil: conciliação ou ruptura?
(em colaboração com Antônio Houaiss), obra de 1995, editada
pela Vozes, de Petrópolis. Nesse livro, se encontram as citações de
João Pessoa e Getúlio Vargas. A citação de Rui Barbosa está em
Mangabeira, Francisco. João Mangabeira: República e socialismo
no Brasil. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1979. Discuto a
ausência do povo brasileiro na construção da História do país no
livro Textos políticos da História do Brasil (em colaboração com
Paulo Bonavides). Brasília. Edições Técnicas do Senado Federal
(11 volumes) 2002. Nessa obra se encontram, também, as fontes
das citações de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, Ulisses Guimarães e Aristides Lobo. Uma versão do assalto integralista ao
Palácio Guanabara, escrita por uma integrante da resistência, está
em Getúlio Vargas, meu pai, de Alzira Vargas do Amaral Peixoto.
Editora Globo. Rio-Porto Alegre, 1960. O julgamento do habeas
corpus e do mandado de segurança interpostos pelo presidente
Café Filho ao STF (destaco o voto de Nelson Hungria, p. 427-461)
está em Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Edgard Costa. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1964.
334
Roberto Amaral
Terceiro volume. As negociações entre a alta liderança do ‘tenentismo’, a autonomeada Junta Governativa que assumira o governo
com a deposição de Washington Luís e a cúpula revolucionária
gaúcha (Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha), estão rapidamente
descritas em Vida de um revolucionário (memórias), de Agildo
Barata. Editora Alfa-Omega, São Paulo, 1978. É Barata quem testumunha a opção de Vargas pela posse como presidente eleito. A
certificação da Carta Compromisso que teria assegurado a posse
de Tancredo é oferecida pelo ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, então senador, e um de seus supostos redatores. Está na
revista Comunicação&política. n. 9, p. 97 e segs. Finalmente, meu
primeiro estudo sobre a emergência das massas na América do
Sul encontra-se no artigo ‘As eleições de 2006 e a emergência das
grandes massas no processo político’, publicado como editorial de
Comunicação&política, v. 24, n. 3, p. 007-017. O texto integral da
‘Carta ao povo brasileiro’ pode ser encontrado em <http://www.
democraciasur.com/documentos/BrasilLulaCartaPovoBrasil.
htm>.
(Janeiro/fevereiro de 2009)
Socialismo e Democracia
335
XIII
A quem interessa a crise do
Poder Legislativo?
Uma das características de nossa História política é a conciliação, instrumento mediante o qual as classes dominantes, em todos
os momentos de crise, evitam a emergência popular e asseguram
a conservação de seus interesses. O povo é sempre um expectante,
plateia de espetáculo que não escreveu, que não dirigiu e no qual
não é ator. Quando muito se lhe concede o papel de figurante, mas
aí, sempre, para preparar a cena destinada ao brilho do astro principal. Em síntese, massa de manobra para a traficância das elites.
Essa conciliação, que trai sempre o interesse nacional, afasta o
povo de seus instrumentos institucionais, com os quais deixa de se
identificar. Daí a crise da representação, porque, votando em programas e promessas de campanha, o cidadão se vê seguidamente
traído pelo mandato de seu representante.
Muitas vezes, a conciliação se consuma no Congresso e aí podemos ter uma das explicações históricas para o crescente distanciamento entre a cidadania e a casa de sua representação. Assim, e para
ficarmos adstritos às últimas décadas, lembremos que um Congresso
cercado pelas tropas do general Denys legalizou o contragolpe do
marechal Henrique Teixeira, Lott em 1955; foi o Congresso que, em
1961, resolveu a crise provocada pela renúncia de Jânio: com o povo
nas ruas defendendo a legalidade e o presidencialismo, decretou a
instauração de um parlamentarismo falsário, preço cobrado para a
posse de Jango; foi o Congresso que, em 1964, declarou a vacância
337
da Presidência da República com o presidente constitucional do país
em seu território; durante os 21 anos da ditadura, elegeu e deu posse
a todos os generais-presidentes pré-escolhidos pelo Estado maior do
mandarinato militar e lhe deu o respaldo de que carecia para manter
diante da sociedade internacional a caricatura de regime constitucional. Foi ainda o Congresso Nacional que, votando contra o sentimento nacional, derrubou as ‘Diretas-já’ (impondo ao país uma de
suas mais profundas frustrações políticas), para, pouco depois, implodido pelas pressões que vinham das ruas, transformado em Colégio Eleitoral, eleger Tancredo Neves e ao mesmo tempo consagrar
a transição lenta e gradual que a um só tempo assegurou a retomada
democrática e impediu mudanças sociais.
Na Nova República, em 1985, ao homologar um acordo das elites políticas com os militares, o Congresso frustrou os anseios nacionais por uma Constituinte exclusiva. E, assim, tivemos, na verdade,
um Congresso constituinte convocado por um Congresso ordinário
sem poder originário. Refiro-me à denominada Assembleia Nacional Constituinte eleita em 1986 e instalada em 1987, de quem recebemos a Constituição de 1988. Constituição democrática que, no
entanto, absorveria uma das maiores arbitrariedades institucionais
perpetradas pela ditadura, o famigerado ‘Pacote de abril’ de 1977.
Por intermédio do arbítrio, a ditadura, no afã de impedir que as vozes do Brasil moderno, industrial e urbano passassem a prevalecer,
aumentou a representação dos estados menos populosos e limitou a
dos mais populosos, desfigurando de vez o princípio básico da democracia representativa, a saber, a cada cidadão um voto. Assim, a
Constituição de 1988 dava também sua contribuição para deter as
mudanças, que podiam ser sopradas pelo voto metropolitano.
A crise política brasileira é potencializada pela falência dos
partidos (estes perdem espaço, cedendo lugar a sub-bancadas
corporativas, intrapartidárias, grupos de interesse, lobbies) e, por
consequência, pela eliminação do debate das ideias, donde a emergência do que a crônica política chama de ‘baixo clero’. Mas, somese a tudo isso a incapacidade da coalizão governista de administrar
sua base parlamentar. Essa incapacidade ficou ainda mais gritante
no recente episódio da eleição da Mesa da Câmara dos Deputados
338
Roberto Amaral
quando o partido majoritário se revelou sem a necessária competência para simplesmente dar continuidade à tradição da Casa, de
eleger para a sua Presidência o representante de sua maior bancada.
Entretanto, com todos os seus problemas e contradições, e não
obstante seus compromissos com as elites, é o Congresso, no Brasil e
em qualquer parte do mundo, que pratica a democracia representativa,
o poder que mais se aproxima do sentimento nacional, funcionando
mesmo como válvula reguladora da democracia: quanto mais respeitado, mais expectativas democráticas, mais garantias de liberdade.
Em qualquer hipótese, a ameaça autoritária começa, sempre,
com a desmoralização da via parlamentar. Portanto, a ninguém de
bom juízo pode interessar a fragilização do Congresso Nacional.
Essas considerações vêm a propósito da desastrada eleição da
nova Mesa da Câmara dos Deputados – pela qual os menos responsáveis são os vitoriosos. Entendo que sem a compreensão do
processo real é impossível refletir sobre a crise política que vive o
país, crise que se faz mais evidente nos impasses seguidos que vêm
caracterizando a crônica recente da Câmara dos Deputados. Mas a
imprensa ligeira prefere o anedótico e tudo é reduzido às excentricidades e à incontinência verbal do presidente Severino Cavalcanti.
Ora, este senhor não é causa, mas efeito. Para além do que supõem
os comentaristas de plantão, o imbróglio é mais profundo e pode
atingir os alicerces da ordem institucional, porque esta não sobrevive se são solapados os fundamentos da democracia, e um dos
mais importantes desses fundamentos é a identificação do eleitor
com seus representantes.
Os observadores da cena política registram, unanimemente, a
contínua e progressiva queda da qualidade da representação parlamentar. Mas fazem esse registro como se tal abastardamento fosse decisão
dos deuses de um Olimpo perverso. Esquecem que essa degradação
é uma das consequências das eleições proporcionais virtualmente
transformadas em distritais – tão caras ao pensamento conservador!
– que retiram do processo eleitoral a discussão em torno das questões nacionais e trazem para as casas legislativas, em todos os níveis,
os melhores frutos dos grotões, do atraso político, liquidando a reSocialismo e Democracia
339
presentação urbana e metropolitana, aquela mais consciente e mais
afeita às pressões da sociedade, em síntese, elegendo aqueles que não
têm opinião pública à qual dar satisfações, e por isso mesmo podem
legislar em desacordo com os interesses de toda a sociedade, restringindo-se à defesa de interesses próprios, paroquiais ou corporativos.
Sai a ideologia, entra o assistencialismo; sai o político, entra o dono de
centro social. Entre um e outro atuam os grandes interesses econômicos, os financiadores das campanhas eleitorais, conduzindo as eleições
e condicionando mesmo o processo legislativo.
Aquela triste noite do aumento da receita dos deputados e
do aumento dos salários de castas privilegiadas do funcionalismo
público é bem um indicador da distância entre o atual Congresso
e a vontade nacional.
A este quadro, por si preocupante, acrescenta-se o progressivo
distanciamento entre a sociedade, o eleitorado, a cidadania, e o
Poder Legislativo. O povo não se identifica com o Congresso que
elege, e o parlamentar não representa seu eleitor. É gravíssima a
crise de representatividade. E se revelará muito frágil a democracia na qual o eleitor não confia mais na força de seu voto.
O rescaldo dessa eleição (que ainda não produziu todos os seus
efeitos), mostrou, antes de tudo, a falência dos partidos e, com ela,
os bloqueios do sistema político no qual os índices de fraude (fraude
eleitoral e fraude contra os eleitores), infidelidade partidária e corrupção – que se expressa nas ‘comissões’, nas caixinhas e nos caixas
2, nos desvios de verbas, nas licitações fraudulentas, no desrespeito
à cidadania, no desrespeito aos programas partidários, simples grife
para as manipulações do marketing eleitoral – atingem níveis profundamente preocupantes. O resumo e a síntese é a aposentadoria
da ética, esquecidas nossas lideranças de que não há alternativa para
a democracia fora de um Congresso representativo do sentimento
nacional, legitimado para proceder à reforma política.
(08 de abril de 2005)
340
Roberto Amaral
XIV
O PSB e o socialismo revolucionário*
O socialismo é, por definição, revolucionário, se o entendemos como o regime que se propõe a substituir o regime vigente,
superando-o e sucedendo-o:
Aliás, é exatamente nesta medida que o socialismo se distingue
da social-democracia (falo da social-democracia europeia, alemã
[Bernstein],1 filha do socialismo). Enquanto a social-democracia
pretende a reforma do capitalismo – silvestre, especulativo, liberticida, sem pátria nem fronteiras, que dissolve cidadanias e desmembra nacionalidades –, por dentro, corrigindo, humanizando-o, o
socialismo visa a derrogá-lo, porque é incurável a exploração do
homem pelo homem; se o socialismo é um humanismo, o capitalismo é um anti-humanismo.
Revolucionário, na expressão, diz respeito aos fins, e não aos
meios, estes são ditados pela realidade objetiva, embora os socialistas tenham por opção preferencial a disputa segundo as regras do
processo democrático formal, mesmo segundo as regras da classe
dominante, que dita o direito.
Qualquer que seja o meio, os socialistas assumiram o compromisso histórico, pode ser esta a grande e mais rica consequência da
débâcle soviética, de construção de um regime econômico que tenha
como base política a radicalidade democrático-participativa, para
além, portanto, dos limites da democracia representativa burguesa.
* Para Jamil Haddad, a quem o PSB deve sua refundação.
1 BERNSTEIN, Eduard. Os fundamentos do socialismo e as finalidades da social-democracia.
Socialismo e Democracia
341
Não estamos inovando.
A critica à social-democracia e a opção revolucionária, nos
termos já explicados, remontam às origens da reorganização partidária, adotadas que foram pelo I Congresso do Partido Socialista
Brasileiro, realizado em Brasília nos dias 10 a 12 de outubro de
1987. Lê-se em suas Resoluções:
A experiência social-democrata, [por outro lado] apesar de
guardar raízes históricas ligadas ao socialismo prático e teórico de Marx e Engels, resvalou inteiramente para o caminho
das reformas sociais no sistema capitalista, sem apontar para
sua superação. No fundo, as conquistas sóciodemocratas, que
melhoraram, sem dúvida, a situação dos trabalhadores em países ocidentais desenvolvidos, foram, e são sustentadas, além da
exploração interna do proletariado, pela superexploração das
grandes massas dos países dependentes e periféricos do sistema
imperialista de dominação.
Nas condições de países como o Brasil, o sistema social-democrata é, portanto, não somente uma perspectiva historicamente reacionária, como também uma impossibilidade prática, na
medida em que a perspectiva de uma acumulação imperialista
de capital de parte de nosso país já não encontra quaisquer condições de execução na etapa atual do capitalismo internacional.
Por outro lado, é bom também ressaltar que todas às vezes em
que o sistema capitalista enfrenta crises ou impasses, de ordem
internacional ou não, a burguesia inicia um processo de eliminação gradual das conquistas sociais, reduzindo sensivelmente
os níveis de seguro-desemprego, da assistência médica e várias
outras aquisições da chamada sociedade do bem-estar, apesar
da natural resistência das forças sociais progressistas, da classe
operária em primeiro plano.
Essas crises, aliás, acentuam o caráter reacionário da política interna e externa desses Estados, colocando a própria social-democracia numa situação difícil, desde que, para não perder suas posições
em relação aos conservadores e partidos da grande burguesia imperialista, sobretudo na Europa, renuncia aos seus programas mais
ambiciosos de aprofundamento das ‘reformas’. Assumindo cada
342
Roberto Amaral
vez mais o papel de administradora da crise capitalista, a socialdemocracia limita-se ao esforço para que as conquistas sociais dos
trabalhadores não sofram ainda mais reduções. No plano da política externa, essa postura, à direita, da social-democracia diante da
crise, se reflete em posições de perfil conservador, quando não em
um direto alinhamento internacional à política imperialista, como
foi o caso do governo Mário Soares em Portugal.
Transposta para o Brasil, a experiência social-democrata, travestida de “socialismo democrático”, é uma empulhação que não
resiste a uma crítica mais profunda. Trata-se, de fato, de uma tentativa a mais do desgastado liberalismo burguês para assegurar-se
de maior poder de domínio sobre as massas descontentes com o
regime capitalista e suas contradições em nosso país.
É, pois, dever do Partido Socialista Brasileiro, neste momento, a
partir de definições claras e honestas de sua própria identidade
ideológica, contribuir para desmascarar a mistificação deliberada do conceito de socialismo, que não deve ser confundido com
qualquer marca de ‘espuma’ destinada a ‘barbear’ o capitalismo
para torná-lo mais aceitável pela opinião pública.
Essa atitude de restabelecimento da verdadeira essência do socialismo, como conceito e prática de substituição do modo de
produção capitalista, em nada é antagônica à democracia, uma
vez que, por um lado, as condições internacionais de desenvolvimento da consciência política dos povos assegurem hoje maiores
perspectivas à consolidação de projetos socialistas com alto nível
de democracia e, por outro lado, o próprio desenvolvimento e
amadurecimento das forças mundiais que aspiram ao socialismo
já permitem a não repetição dos erros históricos cometidos nas
experiências reais de construção do socialismo contemporâneo.
Em outras palavras, não é necessário ser social-democrata para
assegurar o modelo democrático de socialismo. Ou, colocando
de modo mais preciso, nunca foi patente da social-democracia a
luta pela garantia das liberdades no socialismo.2
2 Resoluções do I Congresso Nacional do Partido Socialista Brasileiro. Brasília, 10 a 12/10/ 1987.
Socialismo e Democracia
343
Esta concepção revolucionária de socialismo tem reflexos na
concepcão de nosso partido, e na formulação de sua estratégia e de
suas táticas.
Assim, não somos oposição ao governo FHC simplesmente
porque seu titular promove a recessão e governa contra os interesses populares, nem nosso projeto é apenas administrar melhor
o modelo econômico que Collor começou a implantar no país.3
Nossa oposição é ao modelo social-democrata, antipovo e antinacional, e, em contraposição a este modelo, bem ou mal administrado, oferecemos ao país um projeto nacional de desenvolvimento
fundado no resgate de nossa História e de nossa cultura, na recuperação de nossa autonomia e de nossa independência, visando à
retomada do desenvolvimento e do crescimento, gerando emprego
e renda, distribuindo a riqueza, recuperando a dignidade do povo
brasileiro, restaurando e aprofundando a democracia.
Por um Partido revolucionário
O PSB é herdeiro (um dos herdeiros) da luta e das experiências
dos socialistas em todo o mundo.
Na organização do PSB, em 1947 – após a II Guerra Mundial
e a vitória sobre o fascismo, na sequência da luta contra a ditadura
(onde haviam atuado destacadamente) e no alvorecer da redemocratização –, nossos fundadores souberam se apartar da tradição
dos partidos comunistas ortodoxos. O partido herdeiro da Esquerda Democrática tinha como objetivo conciliar o processo de
transformações sociais com as exigências de ampla liberdade civil
e política. Sem restrição ao projeto socialista, e sem negar apoio
às experiências em curso, João Mangabeira e seus companheiros
espancaram de nosso ideário as concepções de ditadura do proletariado e de partido único. Em seu lugar foi inscrita a consigna
‘Socialismo e liberdade’.4 Essa visão premonitória, se antecipando
3 ARRAES, Miguel. “Ameaça à democracia”. In Folha de S. Paulo, 6/9/1999, p. 3.
4 Aos que desejarem conhecer a História do PSB, principalmente entre 1947 e sua
cassação, em 1964, recomendamos os textos da professora Margarida Vieira, FJM.
Recomendo, especialmente, Semeando o socialismo. (Nota de 2007)
344
Roberto Amaral
a tantos teóricos e a tantas organizações por várias décadas, impôs,
todavia, ao nosso Partido, naqueles anos e em sua primeira fase, a
incompreensão de muitos aliados da frente democrática.
Fomos acusados de sociais-democratas.
Foi árdua a luta, na refundação, de abril de 1985 até aqui, para
recompor nossa imagem e nossa identidade na esquerda socialista.
Mas o fato objetivo é que, hoje, e após a queda do Muro de
Berlim, não precisamos fazer autocrítica.
Muito devemos aos nossos fundadores.
Esses fatos precisam ser recordados porque constituem patrimônio de nossa militância e servem como instrumento de luta, nos
embates políticos, nos embates ideológicos, no debate teórico.
Não nos cabe, neste texto, nem é requerido, refazer a caminhada de 1985 até aqui. Desejamos, apenas, sublinhar a rigorosa linha
reta de coerência política.
Ela é nossa mais cara credencial.
Ao definir-se como partido de esquerda e socialista, e se afastando de qualquer identidade com a social-democracia, o PSB de
logo se perfilou na oposição à Nova República. Foi o primeiro partido a defender a Frente de Esquerda e foi sua a formulação (em
1986!) das bases da futura Frente Brasil-Popular. Pequeno, pobre,
funcionando com registro provisório, bancada diminuta, teve destacada e patriótica atuação na Constituinte, que ajudou a convocar.
Lutou pela anistia, ampla, geral e irrestrita, penalizou a tortura, defendeu os interesses dos trabalhadores, dos pobres e dos excluídos,
das mulheres, dos índios, dos negros e de todos os discriminados.
Defendeu a nação. Desempenhou, pioneiramente, papel o mais
relevante na campanha de 1989 e, derrotado, no dia imediato destacava-se na oposição sem tréguas ao governo Fernando Collor, a
primeira experiência neoliberal brasileira. Moveu-lhe tenaz combate. Foi artífice da CPI que levaria ao impeachment do presidente
singularmente corrupto e nela atuou diretamente, com o senador
José Paulo Bisol e o deputado Jamil Haddad. Seus filiados Evan-
Socialismo e Democracia
345
dro Lins e Silva e Sérgio Sérvulo funcionaram como advogados
do Brasil no memorável julgamento do Senado Federal. Instalado
o governo Itamar Franco, o PSB compreendeu, diferenciando-se
dos vários segmentos da esquerda, que hoje, se tiverem juízo, devem estar fazendo autocrítica, o significado daquela transição, e
não negou seu apoio ao novo governo, do qual participaria com
as presenças de seus dois ex-presidentes, Antônio Houaiss e Jamil Haddad, notáveis ministros da Cultura e da Saúde. Dessa
experiência soube se afastar quando, ministro da Fazenda FHC,
a correlação de forças internas passou visivelmente a inclinar-se
pelas posições neoliberais do futuro presidente. Combateu-o nos
pleitos de 1994 e 1998 e move-lhe oposição desde o primeiro dia
do primeiro mandato.
Esta linha reta de coerência político-programática também
compreende sua luta, desde a refundação, pela unidade políticoeleitoral dos partidos da esquerda socialista. Essa luta, ininterrupta, eleição após eleição, começa com a constituição da Frente
Brasil-Popular e chega à Frente das Oposições (reunindo PSB, PT,
PDT, PCdoB e PCB) que, no dia 18 de novembro, com a nossa contribuição decisiva, lançou o Movimento Cívico em Defesa do Brasil, da Democracia e do Trabalho.
Quando começamos essa jornada, em abril de 1985, toda a representação eleitoral do Partido, em reorganização, se resumia a
Jamil Haddad, segundo suplente de Saturnino Braga, então senador pelo PDT.
Este Partido tem História. Sabe a que veio.
Sem prejuízo da Frente de Esquerda e sem prejuízo da política de esquerda e do projeto coletivo, o PSB tem uma estratégia
própria, que busca marcar sua identidade e sua diferenciação em
face dos demais partidos da esquerda socialista. Diferenciado e organizado, o PSB persegue o poder, quer conquistá-lo no processo
político-eleitoral, para nele realizar seu Programa.
Nos diferenciamos porque somos socialistas e não trabalhistas; nos diferenciamos porque, socialistas, defendemos o único
346
Roberto Amaral
socialismo possível: o democrático. Nos diferenciamos porque
queremos ser o Partido de todos os excluídos, e não de um segmento de classe.
O projeto tático é crescer, crescer na sociedade, crescer no
movimento social, e crescer eleitoralmente, o que compreende o
fortalecimento de sua organização e o necessariamente bom desempenho nas eleições municipais de 2000.5
Precisamos não só manter todas as atuais prefeituras, a começar pelas das capitais, quanto avançar, conquistar o maior número
possível de novas administrações municipais e eleger o maior número possível de vereadores, nos habilitando para a disputa dos
governos estaduais e da Presidência da República, quando teremos
que estar preparados para dobrar as atuais bancadas federais. Sem
prejuízo da política de aliança e unidade, mas considerando principalmente a diversidade da correlação de forças, município por
município, deveremos ter o maior número possível de candidaturas próprias às prefeituras municipais e, sempre que as condições
objetivas aconselharem, organizar chapa própria para as eleições
de vereadores.
Não temos medo das limitações legais que a direita e a socialdemocracia intentam impor ao nosso funcionamento, porque vamos superá-las já nas eleições de 2002, mas vamos superá-las não
apenas em face do desafio legal; vamos superá-las fundamentalmente porque este é o nosso desafio político. Para realizar seu projeto estratégico, o PSB precisa de densidade eleitoral, que se mede
pelo número de parlamentares e executivos que eleger.
Ainda sem prejuízo da unidade das oposições, que, aliás, precisa ser ampliada, indo para além de nossos partidos e alcançando
os setores democráticos da sociedade em conflito com o projeto
neoliberal, sem prejuízo da unidade da frente dos partidos da esquerda socialista, entendemos que cada um de nossos partidos
deve apresentar seu projeto eleitoral para 2002, lançar suas candidaturas e seus respectivos programas, discutir e debater com a
5 O mesmo se aplica às eleições de 2008. (Nota de 2007)
Socialismo e Democracia
347
população e as demais conformações políticas, num amplo debate
nacional que poderá amanhã construir uma coligação ou uma coalizão de forças suficientemente preparada para enfrentar e derrotar
o neoliberalismo.
Partido estratégico, precisamos eleger o maior número de companheiros, mas nossos compromissos não se encerram com as eleições,
até porque é muito vasto o campo de atuação do partido de esquerda,
que compreende a institucionalidade, mas a ela não se limita.
O PSB assumiu com a sociedade e com a História o compromisso da diferença e da mudança.
Para o socialista, tanto a campanha eleitoral quanto o desempenho do mandato, no Legislativo ou no Executivo, constituem um
compromisso pedagógico, com a mudança, com a administração
eficiente e proba, com a defesa dos interesses dos desprotegidos,
com a compatibilidade entre programa e administração, entre
compromissos de campanha e compromissos de administração.
A ação socialista encerra um magistério e uma pedagogia.
Tendo em vista tanto os projetos regionais quanto o projeto nacional, mas principalmente considerando o projeto nacional, estamos convencidos de que, respeitadas as distintas realidades – e cada
direção municipal ou regional saberá melhor do que ninguém administrar nossos projetos eleitorais e políticos –, devemos, em cada
unidade, lutar prioritariamente pela união das forças de esquerda,
mas, sempre, tentar ampliar seu raio de ação, trazendo para o nosso
campo todas as forças que se oponham ao projeto neoliberal.
O Brasil não suportará outros quatro anos de administração
neoliberal.
Isso aumenta nossas responsabilidades. As eleições de 2002
não podem ser encaradas como projeto isolado que diz respeito
a cada um de nossos partidos, insuladamente, cada um com sua
tática a serviço do próprio umbigo. Pesa em nossas mãos, não é
figura de retórica, o futuro do país e das instituições democráticas e a continuidade da ordem constitucional. Para salvar o país
348
Roberto Amaral
e a democracia, precisamos, precisa a esquerda brasileira, ganhar
as eleições. Mas, salta aos olhos – quem tiver olhos para ver que
analise nosso desempenho nas três últimas eleições presidenciais
– que a esquerda brasileira, mesmo unificada, não tem conseguido
ultrapassar a faixa dos 25% a 30% dos votos. Trata-se de excelente
votação, mas insuficiente para ganhar as eleições. E nós precisamos ganhar as eleições e conquistar uma base parlamentar que nos
assegure sustentação e governabilidade. Precisamos, pois, é uma
lição acaciana, agregar novas forças, ir para além do campo da esquerda, atrair os democratas, os progressistas e todos aqueles que se
disponham a lutar contra o projeto da social-democracia. No plano
federal, portanto, mais do que em qualquer outra disputa, é fundamental que a coalizão de esquerda cresça para uma coalizão de
centro-esquerda, na qual a esquerda possa constituir o núcleo.
O candidato dessa nova coalizão deverá ser aquele que, unificando nossos partidos, primeiramente, e nossas forças, revele
maior capacidade de ampliação junto à sociedade. Por isso mesmo
consideramos definitivamente encerrada a política do ‘candidato
natural’. De outra parte, a indicação do candidato do bloco das esquerdas ou das oposições não será mais privilégio ou monopólio
de um só partido, ainda que seja o mais forte de todos os nossos.
Mesmo considerando que estamos a quase três anos do pleito,
precisamos abrir imediatamente esse debate e a forma mais inteligente de realizá-lo é através da indicação de pré-candidaturas. Que
cada um de nossos partidos indique o melhor nome disponível e
que nossas militâncias e a receptividade da sociedade possam indicar a melhor alternativa.
(Brasília, 28 de novembro de 1999)
Socialismo e Democracia
349
Outros livros de Roberto Amaral
Ensaios
•
Manual das eleições (em colaboração com Sérgio Sérvulo). 3. ed.
São Paulo: Ed. Saraiva. 2006.
•
Em defesa da utopia ou A necessidade de defender Dom Quixote
contra a ameaça dos Sanchos Panças. Brasília: Fundação João
Mangabeira. 2006
•
A esquerda socialista: impasses e alternativas (Mensagem aos que
acreditam que outro mundo, melhor, é possível). Rio. 2005.
•
Manual das eleições (em colaboração com Sérgio Sérvulo) 3. ed.
São Paulo: Ed. Saraiva. 2006.
•
O papel do intelectual na política. Fortaleza: Edições Demócrito
Rocha. 2005.
•
Ciência e tecnologia a serviço do progresso e da inclusão social.
Brasília: UNESCO, 2003.
•
Ciência e tecnologia: desenvolvimento e inclusão social. Brasília:
UNESCO, 2003.
•
Manual das eleições (em colaboração com Sérgio Sérvulo). São
Paulo: Saraiva. 2002.
•
Textos políticos da história do Brasil (em colaboração com Paulo
Bonavides). Brasília: Edições Técnicas do Senado Federal (11v.)
2002.
•
Socialismo, vida, morte e ressurreição (em colaboração com
Antônio Houaiss). 2. ed. Petrópolis: Vozes. 1982.
•
A modernidade no Brasil: conciliação ou ruptura? (em
colaboração com Antônio Houaiss). Petrópolis: Vozes. 1995.
•
Socialismo, vida, morte e ressurreição (em colaboração com
Antônio Houaiss). Petrópolis: Vozes. 1997.
•
FHC: os paulistas no poder (Org.). Rio de Janeiro: Casa Jorge
Editorial. 1995.
•
Legislação eleitoral comentada. Rio de Janeiro: Revan. 1996.
•
Introdução ao estudo do estado e do direito. Rio de Janeiro:
Forense. 1990.
•
Crônica dos anos Geisel. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.1987.
•
Poluição, alienação e ideologia. Rio de Janeiro: Achiamé. 1983.
•
O futuro da comunicação. Rio de Janeiro: Achiamé. 1981.
•
Comunicação de massa, o impasse brasileiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 1978.
•
Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Zahar. 1976.
•
Intervencionismo e autoritarismo no Brasil. São Paulo: Difel.
1975.
•
Juventude em crise (de Sartre a Marcuse). Rio de Janeiro: Bit
Editora. 1972.
•
Sartre e a revolta do nosso tempo. Rio de Janeiro: Forense. 1967.
Ficção
Romance
•
Não há noite tão longa. Rio de Janeiro: Record. 1996.
Contos
•
Limites. Rio de Janeiro: Record. 1999.
•
Viagem e outras histórias. São Paulo: Brasiliense. 1991.
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