A RE -construção do espaço através da luz Por Fernanda Carvalho

Transcrição

A RE -construção do espaço através da luz Por Fernanda Carvalho
Fernanda Carvalho
A RE-construção do espaço através da luz
Artigo escrito a partir da Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo
Orientador: Prof. Dr. Silvio Melcer Dworecki
São Paulo
2013
Em 2011 concluí a dissertação de mestrado “A construção do espaço atra-
DAN FLAVIN
vés da luz: uma leitura da obra de Dan Flavin” sob a orientação do professor
Silvio Dworecki, na FAU USP. O ponto de partida para esta pesquisa surgiu da
Dan Flavin (1933-1996) constrói espaços através do uso exclusivo de lâmpa-
necessidade de buscar modos de explorar o conhecimento que se tem so-
das fluorescentes. Este é o aspecto de sua obra que mais interessa a este artigo.
bre a presença da luz no espaço que complementem o universo do design,
A escolha de um único material emissor de luz e suas variações (cores, formas e
de abordar a luz como elemento de construção da tridimensionalidade e
tamanhos), portanto limitando-se tecnicamente, é uma atitude que impressiona
de entender melhor sua relação com o observador. Este artigo consiste em
ao descobrirmos a infinidade de poéticas e resultados luminosos alcançados.
um breve resumo da dissertação, procurando despertar o interesse do leitor
para novas leituras acerca das potencialidades espaciais da luz.
Além de ser instigante a comparação entre a simplicidade do material utilizado e a riqueza visual e poética atingida na obra de Dan Flavin, a lâmpada fluo-
Após a pesquisa de diversas formas de utilização da luz, entre designers
rescente é um objeto que participa da nossa vida cotidiana. Em casa, no trabalho,
e artistas, decidimos fazer o recorte a partir de uma experiência na arte que
em lojas, estamos diante dos tubos de fluorescente e não os notamos. Estamos
julgamos rica o suficiente para proporcionar diversas visões deste fenôme-
constantemente envolvidos pelo espaço revelado por eles.
no e suas complexidades. O artista escolhido para uma leitura mais aprofun-
O interesse primeiro da construção do espaço através da luz se desdobra em
dada foi Dan Flavin, por percebermos que a riqueza visual e conceitual de
diferentes aspectos que também participam do Design da Iluminação, tais como:
sua obra nos permitiria uma leitura múltipla, levantando diversos aspectos
o comportamento da luz no espaço; sua comunicação com o homem-observa-
importantes para a atividade do designer da Iluminação.
dor; a utilização da lâmpada como objeto e sua disposição no espaço.
Aquela dissertação se organizou com o objetivo de realizar uma leitu-
O designer da Iluminação conhece cada uma desses aspectos. O comporta-
ra da obra de Dan Flavin: em torno de 750 trabalhos realizados quase que
mento físico da luz emitida por fontes artificiais é conhecido através de uma série
exclusivamente com lâmpadas fluorescentes, com uma abordagem de inte-
de parâmetros: fluxo luminoso, intensidade luminosa, grau de abertura do facho
resse para a atividade do design da Iluminação. Para tanto, foi necessário re-
da fonte, temperatura de cor, reprodução de cor etc. Mas há um outro tipo de
alizar a leitura da extensa obra do artista e do contexto da arte dos anos 60.
conhecimento sensorial que depende da experiência individual. É neste campo,
subjetivo, não numérico e não mensurável, que a obra de Flavin nos coloca.
Flavin começou a usar a lâmpada fluorescente nua, desprovida de qual-
no, branco frio, luz do dia e branco suave).
quer alteração, como único material para sua obra em 1963 e continuou até
Em cada uma de suas propostas, Flavin explorava o posicionamento da lâm-
sua morte em 1996. Foram 33 anos experimentando o comportamento da
pada no espaço em vários aspectos: a posição da linha luminosa; a propagação
luz que emana do tubo luminoso. O artista partiu de um único material – a
da cor pelas paredes adjacentes e pelas paredes mais distantes; a gradativa di-
lâmpada fluorescente – em poucas variações: cinco formatos (quatro tama-
luição desta energia pelo espaço; o impacto desta energia atingindo os olhos do
nhos de tubos – 61, 122, 183 e 244 cm e um formato circular), seis cores (pink,
espectador [imagem 1].
amarelo, vermelho, verde, azul e ultravioleta) e quatro tons de branco (mor-
Além do interesse no objeto lâmpada e no fenômeno luz utilizados por Flavin, há outros aspectos curiosos para o designer da Iluminação. Os trabalhos são
criados seguindo um sistema definido, ora partindo de um local que o define,
como os trabalhos site-specific, ora impondo uma progressão aplicável em diversos locais. A infinitude da composição e a sistematização e modulação das
lâmpadas no espaço configuram um sistema inesgotável.
Na cidade de Bridgehampton, NY, podemos apreciar a obra de Dan Flavin
graças à iniciativa da instituição DIA Foundation, que permitiu que Flavin criasse
um museu exclusivamente para abrigar algumas de suas obras, no chamado THE
DAN FLAVIN ART INSTITUTE.
O espaço expositivo foi desenhado por Flavin para abrigar dez obras, sendo
nove em luz fluorescente e um desenho, concebidas entre 1963 e 1981. Trata-se,
[1] Vista da instalação
da exposição Dan
Flavin: Series and
Progressions na
galeria David Zwirner,
em Nova York, EUA,
2009
portanto, de uma mostra panorâmica de trabalhos individuais do artista. Essa é
a única montagem existente cujo leiaute foi originalmente concebido por Dan
Flavin. Outras exposições permanentes existentes atualmente – Dia:Beacon, em
Beacon, NY, e Projeto Marfa, no Texas – foram realizadas sem o acompanhamento
do artista, após a sua morte.
resultam em uma única cor em degradê. O passeio do olhar sobre a obra revela
infinitas combinações de cor, pois a percepção se transforma a cada segundo.
LUGARES DA ARQUITETURA: UM CANTO E UMA BARREIRA
Ao utilizar os cantos, segundo texto de Tiffany Bell no fôlder de apresentação
do Instituto, Flavin integra diretamente sua obra com a arquitetura que construiu.
Ler a obra de Flavin é relacionar-se com o espaço a partir de referências
Além dos cantos criados por Flavin para abrigar estes trabalhos, foram construídos
subjetivas. Esse é o ponto de partida para a descrição que faço a seguir de
corredores para as obras, apelidadas de barreiras pelo próprio artista. As barreiras
duas obras instaladas no THE DAN FLAVIN ART INSTITUTE.
interrompem o corredor construído, deixando frestas para a passagem da luz que
A segunda obra na sequência prevista por Flavin na principal sala de
inunda a metade oposta. Dois trabalhos deste tipo estão em Bridgehampton.
Bridgehampton ocupa um canto, um encontro entre paredes perpendiculares. Ao mesmo tempo em que o ilumina faz com que desapareça. Na obra
untitled, 1976, Flavin encosta o canto superior do tubo de fluorescente na
parte de cima e deixa a parte inferior afastada, como um gesto cotidiano de
encostar um objeto em um canto [imagem 2].
Uma lâmpada pink de 244 centímetros está voltada para a frente e duas
– uma verde de 61 e uma azul de 183 centímetros – estão voltadas para trás
e iluminam o canto da parede. O resultado da luz emitida neste canto cria
um triângulo de luz nas paredes adjacentes misturando as cores emitidas e
todas as nuances das suas misturas.
À medida que observamos a obra vamos lentamente percebendo cores
resultantes da mistura das cores originais da lâmpadas. A impressão é de
que um arco-íris se forma ao longo do tempo. Se fixarmos por mais tempo o olhar, essas nuances vão desaparecendo, pois, de tanto se fundirem,
[2] untitled, 1976.
Fluorescente pink 244
cm, verde 61 cm e
azul 183 cm. Dia Art
Foundation
O primeiro é untitled (to Robert, Joe and Michael), 1975-81, que ocupa
Sem olhar diretamente para as lâmpadas, mas só para sua reflexão, é a cor
um corredor quadrado de 244 X 244 centímetros, altura exata da lâmpada
pêssego que resulta nos anteparos, paredes e teto. Tão forte quanto a obra, são as
maior, nas cores pink e amarelo. Cada cor está voltada para um lado do cor-
reflexões da luz por todo o espaço expositivo. A luz extrapola o espaço ocupado
redor, formando uma cela em que podemos ver o outro lado do corredor,
pela obra invadindo toda a sala e promove a interação entre reflexões, constituin-
mas não atravessá-lo [imagem 3].
do um jogo cromático diferente em cada lugar. Quanto mais perto da obra, mais
A cor pink das lâmpadas voltadas para a frente vai, com o tempo, se mis-
intensa é a aparência da cor da lâmpada. À medida que o observador se afasta, a
turando com o amarelo da luz por trás da barreira. Aos poucos a visualização
intensidade diminui, tornando a cor mais suave e suscetível à invasão das cores
do pink vai se transformando em salmão ou pêssego, que passa a ser nossa
emitidas pelas lâmpadas vizinhas.
resultante da interação do pink com o amarelo.
A distância em que o observador se encontra é um dado que altera total-
[3] untitled (to Robert,
Joe and Michael), 197581. Fluorescente pink e
amarela, 244 cm. Dia Art
Foundation
mente a percepção da obra. Observando de longe, a obra aparece como
to a impressão da luz no espaço e, principalmente, a impressão na luz no obser-
uma tela de projeção emissora de imagens. De perto, o observador se sente
vador que, sob seus domínios, também produz um novo espaço. É no território
encapsulado pela cor emitida, e a frequência da luz exerce uma espécie de
da produção do espaço através da luz que o designer da Iluminação trabalha. Daí
força à qual estamos submetidos. Ao mesmo tempo que atrai, incomoda,
a pertinência de conhecer uma obra tão rica em experiências com a luz como é
tamanha a intensidade com que a luz emitida atinge nossos olhos e corpo.
a de Dan Flavin.
UM NOVO ESPAÇO CONSTRUÍDO ATRAVÉS DA LUZ
Após mais de 50 anos desde que Flavin começou a produzir suas peças
com luz (1961), é possível uma análise da relevância que os aspectos trazidos
pela obra podem ter na atividade do designer da Iluminação. É através da
leitura das obras que o trabalho de Flavin se revela como um grande laboratório de experiências extremamente relevantes para o Design da Iluminação.
O espaço se compõe de características físicas específicas do lugar somadas a fatores que alteram sua percepção. E um desses fatores é a luz. Sendo
A íntegra da dissertação “A construção do espaço
ela um instrumento poderoso na comunicação subliminar com o observa-
através da luz: uma leitura da obra de Dan Flavin” encon-
dor, Flavin nos mostra como a luz pode trazer informações concretas e sutis
tra-se disponível nas bibliotecas da FAUUSP e no link:
não só ao espaço mas à percepção do espaço em relação ao indivíduo. Fla-
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16134/tde-
vin constrói um espaço ideal em que o indivíduo, nele inserido e sob seus
11012012-112335/pt-br.php
domínios, o altera e é alterado por ele.
Portanto, o espaço da arte produzida por Flavin soma ao espaço concre-
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