Ripe 37 - Instituição Toledo de Ensino

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ISSN 1413-7100
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maio a agosto de 2003
REVISTA DO INSTITUTO
DE PESQUISAS E ESTUDOS
Esta edição contém produções científicas desenvolvidas
no Centro de Pós-Graduação da ITE - Bauru.
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REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Faculdade de Direito de Bauru,
Mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE).
Edição - Nº 37 – maio a agosto de 2003
EDITE EDITORA DA ITE
Praça 9 de Julho, 1-51 - Vila Falcão - 17050-790 - Bauru - SP - Tel. (14) 220-5000
CONSELHO EDITORIAL
Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Iara de Toledo Fernandes,
José Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira, Luiz Alberto David Araujo, Luiz Antônio Rizzato Nunes, Lydia Neves Bastos Telles Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas, Maria Luiza Siqueira De Pretto, Pedro Walter De Pretto, Pietro de Jesús Lora Alarcón, Roberto Francisco Daniel, Thomas Bohrmann.
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
COORDENAÇÃO
Bento Barbosa Cintra Neto
* Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru. -- n. 1 (1966) - . Bauru
(SP) : a Instituição, 1966 v.
Quadrimestral
ISSN 1413-7100
1. Direito - periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos. II.
Instituição Toledo de Ensino de Bauru
CDD 340
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
n. 37 p. 1-489
2003
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ÍNDICE
Apresentação
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
9
COLABORAÇÃO DE AUTORES ESTRANGEIROS OU NACIONAIS NO EXTERIOR
Justicia como equidad o sociedad como conflicto (Una lectura crítica del
liberalismo político)
13
Carlos María Cárcova
Solidarität als soziale grundhaltung
Roberto Francisco Daniel
25
DOUTRINA
A nova lex mercatoria como fonte do Direito do Comércio Internacional. (Um
paralelo entre as concepções de Berthod Goldman e Paul Lagarde)
39
Valerio de Oliveira Mazzuoli
A determinação jurídica da liberdade de estabelecimento no Mercosul
Robson Zanetti
75
As faces da regulamentação internacional do comércio eletrônico
Danny Monteiro da Silva
85
Uma reflexão acerca dos pactos e convenções internacionais e sua aplicação no
ordenamento jurídico pátrio
107
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo
Do concurso para a magistratura e a reserva de vagas para deficientes
Francisco Antonio de Oliveira
125
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Da aplicabilidade imediata como a principal característica dos Direitos Fundamentais
131
Carla Cabogrosso Fialho
O que é Reforma Tributária?
Yoshiaki Ichihara
139
Tutela penal do patrimônio genético
Luís Paulo Sirvinskas
147
Da não incidência do ISS sobre franquias
Eduardo Amorim de Lima & Omar Augusto Leite Melo
173
Genocídio econômico
Giovani Clark
181
Os alimentos transgênicos e a responsabilidade civil do fornecedor à luz do
Código de Defesa do Consumidor
Isabela Esteves Cury, Marlene Nunes de Freitas Bueno &
187
Vera Lúcia Toledo Pereira de Gois Campos
Dano moral no direito do trabalho brasileiro e a AIDS (HIV)
Mauro Cesar Martins de Souza
201
O dever do julgador em fixar o objeto do litígio como garantia do acesso à justiça
215
Cristian de Sales Von Rondow
Atividade Agrária
Fábio Maria DE- Mattia
227
Alimentos decorrentes do parentesco, do casamento e da união estável
Ruth Maria Junqueira de Andrade Pereira e Silva
245
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PARECERES
INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO N. 4489 DE 28/11/2002 POR MACULAR O PROCESSO LEGISLATIVO PLASMADO NA LEI SUPREMA E INFRINGIR DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO – OPINIÃO LEGAL
279
Miguel Reale & Ives Gandra da Silva Martins
AS APOSENTADORIAS PARLAMENTARES E A CONSTITUIÇÃO. UM EXERCÍCIO
DE HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
303
Marcílio Toscano Franca Filho
DECISÃO DE RELEVO ESPECIAL
SEGUNDO TRIBUNAL DE ALÇADA CIVIL 5ª CÂMARA – APELAÇÃO COM REVISÃO Nº 616.898-O-9 – VOTO Nº 6304
“Arrendamento mercantil. Revisão Contratual. Alteração da política governamental cambial. Teoria da imprevisão. Fato superveniente. Onerosidade excessiva. Código de Defesa do Consumidor.”
341
Manoel de Queiroz Pereira Calças (Juiz Relator)
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Resumos de dissertações defendidas no Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos), em nível de Mestrado, Instituição Toledo de Ensino
Igualdade entre o homem e a mulher e os direitos e deveres do casamento
Magaly Bruno Lopes
367
Natureza jurídica do mandato político
Carlos Eduardo Boiça Marcondes de Moura
369
A pessoa portadora de deficiência e o seu direito de locomoção
Silvia Araújo da Silva
371
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A tutela específica da ação popular como garantia do acesso à justiça
Marco Antonio Ragazzi
373
Da nacionalidade brasileira hipótese de aquisição e perda
Daniela Ribeiro Coutinho Santos
375
A efetivação do controle de constitucionalidade na justiça binária brasileira
Renato Siqueira De Pretto
377
O concurso público e seus requisitos à luz da Constituição Federal
Rafael Siqueira De Pretto
379
O princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da proteção
constitucional da família
Edinês Maria Sormani Garcia
381
Controle jurisdicional do conteúdo dos desenhos animados infantis em busca
da efetivação do direito ao respeito à criança
Helton Laurindo Simoceli
383
Aspectos da procriação humana assistida
Eliane de Melo Labriola Ferreira
385
A dignidade da pessoa humana e o idoso
Fábio José de Souza
387
Controle da constitucionalidade e sua evolução no direito brasileiro
André Libonati
389
Princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana
Flademir Jerônimo Belinati Martins
391
A saúde na federação brasileira
Claudia Pereira de Aguiar Guimarães
393
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O direito constitucional ao trabalho e a condição de presidiário no Brasil
José Roberto Martins Segalla
395
NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE
Conceito de direito subjetivo
Ricardo da Silva Bastos
399
PONTOS DE VISTA
Uma insólita imputação de “favorecimento pessoal” (Art. 348 do CP)
Marcelo Cury
413
A filiação comprovada de Roberta
Ricardo Ribeiro Velloso
421
CONTRIBUIÇÃO ACADÊMICA
Aspectos sócio-afetivos do reconhecimento judicial da paternidade
Tatiana Cima Grave Cima
427
Da bioética ao biodireito: a filiação em face da inseminação artificial heteróloga
Viviane Hanshkov
443
ATUALIZAÇÃO PENAL
Ressocialização e reintegração: utopias
Luíz Flávio Borges D’Urso
485
INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES
489
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APRESENTAÇão
“Os canhões, as armas não atiram por si sós, as prisões não
encerram ninguém nem as forcas enforcam os criminosos (...)
Tudo é feito pelos homens”
Tolstoi
Mais uma vez estamos diante de um cenário de horror, destruição e morte.
... O homem massacrando o próprio homem!!!
O mundo busca uma explicação para tanta barbárie, uma razão que justifique essa situação. Enquanto isso os protagonistas da História justificam suas atitudes alegando a supremacia do bem e invocando o nome de Deus. Será mesmo que
é em nome de Deus que agem essas pessoas?
Na verdade, é muito cômodo atribuirmos a responsabilidade por nossas atitudes às outras pessoas. Ao mesmo tempo, é trabalhoso chamar para si a responsabilidade por mudanças, ninguém quer dar o primeiro passo. Estamos todos
inertes a espera de um milagre ou de uma solução que caia do céu sobre nossas
cabeças.
Nesse contexto, não há culpados e nem inocentes... Somos todos reféns
dessa situação! Ignoramos, entretanto, que grandes mudanças independem de
grandes homens ou mitos ou heróis. Grandes mudanças começam com pequenas
mudanças. Dependem de gestos do cotidiano de nossas vidas que precisam ser revistos, analisados novamente.
Toda essa situação vivenciada hoje é, sem dúvida, resultado de atitudes antigas, de posturas herdadas de nossos antepassados e cujas conseqüências já são
quase inevitáveis.
Não podemos permitir que a situação permaneça como está. Todos nós temos algo de bom para contribuir com essa mudança tão esperada... tão desejada...
e que já tarda tanto a chegar!
...Intuitivamente, todos sabemos o que fazer. Temos consciência de nossa
responsabilidade como homens que também escrevem a História e queremos
fazê-lo agora.
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Por tudo isso, nesta edição, nós, da RIPE, conscientes de nossa responsabilidade, procuramos mais uma vez prestar nossa colaboração para esse exercício de
transformação, abrindo espaço para a publicação de trabalhos que buscam apresentar perspectivas inovadoras, propor reflexões a respeito de temas antigos e
convidar a todos para unirem-se a nós nessa longa, porém mui gratificante jornada, em busca de tempos melhores, por meio da renovação, do exercício da cidadania e do aprimoramento de idéias.
Aproveite... reflita conosco e cresça...
Lembre-se: contamos com você!
Maio de 2003
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
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Colaboração de
Autores Estrangeiros
ou nacionais no
Exterior
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JUSTICIA COMO EQUIDAD
O SOCIEDAD COMO CONFLICTO
(Una lectura crítica del liberalismo político)
Carlos María Cárcova
Professor Titular Ordináriode Filosofiadel Derecho e Director del instituto de Investigaciones
Juridicas “Ambrosio L. Gioja” de la Faculdad de Derecho da Universidad de Buenos Aires (UBA).
1.
UNA OBRA INNOVATIVA
Cuando en 1971 John Rawls dio a conocer su “Teoría de la Justicia”, no solo
ofreció a las disciplinas jurídico-políticas una obra de enorme trascendencia sino
que, al mismo tiempo, consiguió relanzar un debate entre distintas tendencias y
orientaciones filosóficas que se habían mantenido estancas por décadas. En efecto,
en los años anteriores, los liberales discutían con los liberales, los marxistas con los
marxistas, los utilitaristas con los utilitaristas. Como efecto inesperado de su intervención, de buenas a primeras, las distintas perspectivas se volvieron conmensurables, al menos en la significativa medida que supone la expresión de un disenso razonado y fundamentado.
Probablemente no contribuyó de manera especial a ese fin, la calidad literaria o el estilo sintáctico del pensador estadounidense, proclive a sacrificar tales virtudes en el altar de la claridad expresiva. Rawls, es monótono y reiterativo. Razona
de manera recursiva, de modo que vuelve redundantemente sobre su propia argumentación. Sin embargo, sus esquemas conceptuales, orientados a construir una
teoría normativa de la sociedad justa, precipitaron una polifonía de voces que establecieron con él y con su obra, un diálogo proficuo. Herbert Hart, Gerald Cohen,
Ronald Dworkin, Joseph Raz, Richard Rorty, Jurgen Habermas, Carlos Nino, Michael
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Walzer, Charles Taylor, Sheldon Wolin, Jacques Bidet, Chantal Mouffe, Judith Butler,
Sheyla Benhabib, Bruce Ackerman, Judith Shklar son algunos de los muchos nombres que pueden mencionarse, entre quienes se han ocupado de sus ideas. A veces
para compartirlas introduciendo matices, a veces para polemizar, a veces para criticar con acritud. Como seguramente advertirá el lector avisado, el espectro de interlocutores mencionados es en extremo heterogéneo. Hay allí positivistas, marxistas,
pragmatistas, comunitaristas, feministas más o menos radicales, neo aristotélicos,
neo contractualistas, liberales, y variadas subespecies dentro de tales especies. Si
tanta gente de valía intelectual se ha ocupado de su obra, no cabe sino concluir en
que ella es verdaderamente trascendente y que ha permitido, como se ha dicho, un
apasionado y apasionante debate acerca de la legitimidad y la justificación.
En lo que sigue me propongo formular una breve síntesis de algunos de los
ejes centrales de la concepción rawlsiana, para contrastarlos luego con las “críticas
de familia” que les formula Habermas, por una parte, y con las más controversiales
que provienen de Chantal Mouffe.
Los debates que la Teoría de la Justicia suscitó, obligaron a Rawls a repasar
sus ideas, para precisar algunas o para corregir otras. Fue cumpliendo con ese cometido a través de diversas conferencias (lecciones) que se sucedieron desde fines
de los 70 y durante los 80. Una buena parte de ellas, visiblemente cohonestadas, dieron lugar a la publicación, en 1993, de “Liberalismo político”, texto en el que revisa
algunas posiciones originales. La síntesis que propondré se basa en este último libro
y en particular en su artículo “Política, no metafísica”, que había tenido una primera edición en Philosophy and Public Affairs, vol. 4, n.3 1985.
2.
LA JUSTICIA COMO EQUIDAD
Su concepción de la justicia como equidad (fórmula que ya había empleado
con anterioridad) viene a sostener, es la de una política de la justicia relativa a una
democracia constitucional. Se trata, pues, de una concepción política de la justicia
que se independiza de contenidos religiosos o filosóficos, de modo que rechaza su
articulación con planteos o concepciones metafísicas u ontológicas. Tal afirmación
supone un cambio bastante notorio en relación con sus planteos originales. Un cambio, precisamente orientado a superar reproches de naturaleza antiesencialista. Tal
concepción política de la justicia, es equivalente a una concepción moral, aplicada a
instituciones políticas, sociales y económicas correspondientes a lo que él denomina, estructuras básicas de una organización de naturaleza y fines democráticos. Su
referencia al constructivismo kantiano, afirma ahora, debe ser entendida como recurso a la razonabilidad en la producción del discurso moral. Al independizarse de
contenidos filosóficos o morales determinados, su idea de una política de la justicia,
debe comprender no solo a doctrinas diversas, sino aun a aquellas que se manifiestan inconmensurables entre sí. Y ello de ese modo, porque la justicia como equidad
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consiste en un conjunto de ideas intuitivas básicas, arraigadas en las instituciones de
un régimen democrático y en sus interpretaciones clásicas.
Se trata de una tradición política (liberal) que aspira a lograr lo que Rawls ha
caracterizado como“consensos superpuestos” (overloping consensus), que no son
sino doctrinas filosófico religiosas diferenciadas, pero propias de una democracia
constitucional más o menos justa. Se constituye así, una concepción política de la
justicia, razonable, sistemática y practicable - dice- que ofrece una opción respecto
del utilitarismo reinante.
Mediante su puesta en práctica puede superarse la tradicional dicotomía entre los valores de libertad e igualdad; entre la concepción de Locke propia de la libertad de los modernos (negativa) y la concepción de Rousseau, propia de la libertad de los antiguos (positiva). A tal fin, propone dos principios de justicia que deben guiar la realización de esos valores tradicionalmente contrapuestos, cuando los
ciudadanos son concebidos como personas moralmente dotadas para participar en
un sistema equitativo mutuamente ventajoso. Esos principios son: l. Toda persona
tiene derecho a un régimen de libertades básicas iguales para todos; 2. Las desigualdades socio-económicas solo pueden admitirse si están ligadas a funciones o empleos abiertos a todos en igualdad de oportunidades y se constituyen en beneficio
de los miembros menos favorecidos de la sociedad. Tales premisas, reconstruidas a
partir de la idea de tolerancia y del rechazo de la esclavitud, deben ser tenidas en
cuenta por toda concepción de justicia razonable, basada en un equilibrio reflexivo,
lo que permite concebir a la sociedad, como un sistema de cooperación entre personas libres e iguales. La justicia como equidad, sostiene el autor, tiene un propósito práctico, no metafísico o epistemológico. No es una concepción verdadera de justicia, sino una concepción que se presenta como la base necesaria para alcanzar
acuerdos políticos voluntarios e informados, entre ciudadanos libres e iguales. Sobre dicha base se implementan luego mecanismos de crítica y justificación que implican siempre, el reconocimiento del otro.
Los consensos alcanzados de este modo, son caracterizados como “superficiales”, entendiendo que las grandes diferencias filosóficas son irreductibles a la discusión política. Es por tal circunstancia, que una concepción política de la justicia,
resulta coextensiva de las nociones de tolerancia y de consensos superpuestos. Dicho de otro modo, una concepción así de la justicia, debe permitir, sobre la base del
reconocimiento de lo diferente, que se alcancen acuerdos prácticos de convivencia
cooperativa que, sin desactivar convicciones religiosas o filosóficas no conmensurables, consiga que ellas no constituyan un obstáculo para la vida social.
Lo que Rawls denomina constructivismo kantiano, una forma de intercambio
basado en razones, deja afuera el problema de la verdad y la controversia entre realismo y subjetivismo respecto del status de valores morales y políticos. En cambio,
reformula la tradición contractualista, para obtener una justificación fundada en el
consenso público alcanzado tras un adecuado proceso reflexivo. Ninguna concep-
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ción particular del bien, resulta así afirmada o negada, pero se atemperan y moderan las discrepancias. El intercambio fundado en razones supone cooperación, reciprocidad y un cierto objetivo común considerado valioso por quienes cooperan. Estos últimos, están investidos de la calidad de personas en el límite de una concepción política, es decir, en la condición de ciudadanos, miembros iguales de una sociedad, capaces de actuar una colaboración recíproca justa, que redunde en ventaja
racional para todos.
Con la finalidad de determinar equitativamente los términos de la cooperación aludida, el autor introduce algunas de sus ideas características. Entre ellas la de
‘‘posición originaria”. Esto es, una situación en la que las personas libres e iguales
no cuentan con ventajas unas respecto de las otras, ni con mayor poder de negociación y en la que las amenazas, el fraude o el engaño quedan excluidos. A ello se
suma otro requisito, que Rawls llama “velo de la ignorancia”, según el cual, los derechos y obligaciones deben ser atribuidos a los distintos roles sociales, tal y como si
las personas ignoraran cuál de los roles en juego les corresponderá ocupar personalmente. El acuerdo al que así se llegue será, como es obvio, hipotético y ahistórico, sin embargo, el autor le atribuye importancia, por cuanto implica una representación del intercambio cooperativo que restringe, según su opinión, en forma adecuada, lo que puede ser considerado como buenas razones. O de otro modo, lo que
puede ser considerado como fundamento justo. Podría decirse, en un lenguaje que
no es el de Rawls, que la ficción construida no comporta ningún compromiso ontológico referido a los atributos de las personas; es un simulacro útil al raciocino, pero
no diferente al simulacro implicado en interpretar el papel de Macbeth o el de Lady
Macbeth. Útil para exponer la idea de sociedad como sistema equitativo de cooperación entre personas libres e iguales, que no renuncian a concepciones particulares del bien, pero que acuerdan en que ellas forman parte de su “identidad no pública”. Su identidad pública, está mediada por la tolerancia, es identidad política y
supone consensos superpuestos. La idea de ciudadanos libres implica: a) que ellos
se conciban recíprocamente como dotados para suscribir una concepción del bien
y para modificarla sobre la base de argumentos razonables; b) que sean capaces de
generar reclamos válidos; y c) que sean capaces de autorregularse en materia de
pretensiones en atención a la solidaridad y la colaboración. La idea de responsabilidad por los fines -sostiene el autor- está implícita en la cultura política pública y la
podemos apreciar en la práctica.
3.
LAS CRÍTICAS DE FAMILIA
Lo expuesto más arriba guarda notorias semejanzas con la Teoría de la Acción
Comunicativa, desarrollada en Alemania por Jurgen Habermas. Es cierto que la panoplia conceptual del discípulo más prominente de la Escuela de Frankfurt, parece
más vasta y completa; que allí se articulan la filosofía clásica de Fichte, Kant y Hegel,
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con la herencia de Marx, Weber, Freud y Heiddeger; con los aportes de la Escuela
de Frankfurt representada por Horkheimer, Benjamín, Marcuse y Adorno; con la antropología de Kohlberg y Gehlen; con la filosofía de Appel; con la lingüística de Pierce y el segundo Wittgenstein; con la sociología de Parsons, Schutz y Winch; con la
teoría sistémica de Luhmann, entre otros insumos intelectuales. Sin embargo, el
“aire de familia” (según expresión del propio Habermas) se conserva. La situación
ideal de diálogo que Habermas teoriza, plantea homólogos requisitos que los de la
mencionada posición originaria, para los intercambios destinados a la producción
de legitimidad en el discurso político. Ambas visiones son propias y exclusivas de las
sociedades desarrolladas del capitalismo maduro, con instituciones asentadas y tradiciones culturales eurocéntricas. ¿Cuáles son entonces los reparos que Habermas
(1998) opone al pensador norteamericano?.
Los puntos de vista acerca de los fundamentos de la racionalidad moral, han
variado de manera sustancial en la historia moderna de la filosofía práctica. En Hobbes y en la subsiguiente tradición utilitaria predominó la idea de cálculo y conveniencia; en Locke la supuesta objetividad del derecho natural; en Rousseau la voluntad general y la autonomía de la soberanía del pueblo; y en Kant, finalmente, una
pura instancia de razón práctica.
En estos aspectos las concordancias de Rawls y Habermas son muy amplias.
En efecto, ambos creen posible sustentar una concepción pública de la justicia propia de las sociedades contemporáneas del capitalismo maduro, definidas como democráticas y pluralistas. Esa concepción pública, implica acuerdos mínimos en el
marco de un pensamiento postmetafísico, básicamente incorporados a criterios procedimentales cuya observancia garantiza la legitimidad de tales acuerdos. En esta
perspectiva, la noción de justicia como lo “bueno para todos” es priorizada a cualquier concepción particular del bien.
Como explica Habermas (op.cit.,1998), las tesis de Rawls rehabilitaron para la
investigación científica asuntos morales abandonados durante largo tiempo. Kant
había formulado una respuesta racional para los conflictos suscitados por ideas morales contradictorias: debemos hacer lo que sea igualmente bueno para todos.
Rawls ha renovado ese planteamiento, procurando no asumir presupuestos trascendentales. En oposición al utilitarismo de un lado y al escepticismo respecto a valores del otro, propone una lectura intersubjetiva del concepto kantiano de autonomía: actuamos autónomamente cuando obedecemos las leyes que podrían ser
aceptadas con buenas razones, por todos los afectados, sobre la base de un uso
público de la razón.
Con la actualización que alcanza su pensamiento a partir de “Liberalismo político”, Rawls enfrenta también las críticas contextualistas (Taylor, Rorty) que cuestionan la idea de una razón común a todos los seres humanos.
Dice el autor de “Facticidad y validez”: “... Puesto que yo admiro este proyecto, comparto su intención y considero sus resultados esenciales como correc-
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tos, el desacuerdo que quiero formular permanece dentro de las limitadas fronteras de una disputa familiar”. (op.cit.) Sin embargo, sus observaciones fueron punzantes e incisivas y dieron lugar a una muy larga y meditada respuesta por parte de
Rawls (1998).
Dejo apenas indicadas las cuestiones que son objeto de los cuestionamientos
de Habermas, porque entrar en su específica consideración, exige un desarrollo que
excedería el modesto propósito de estas notas y porque me parece más útil traer a
cuento las críticas que no se formulan desde dentro de la “frontera familiar”, sino
desde una perspectiva muy distinta, acerca de la política, el poder y el Estado.
Los cuestionamientos habermasianos giran en torno a: 1) el diseño de la
“posición original”, pues éste ofrecería dudas en su propósito de explicar y asegurar un juicio imparcial de principios de justicia, entendidos deontológicamente; 2)
la deficiente separación entre las cuestiones de fundamentación y las cuestiones
de aceptación, pues la neutralidad de la idea de justicia, en comparación con diversas concepciones del mundo, parece sacrificar pretensiones de validez cognitiva; 3) de las dos posiciones anteriores, se seguirá una construcción de Estado de
Derecho, que subordina el principio de legitimación democrática a los derechos
liberales básicos. Con ello Rawls no acertaría, como pretende, a reconciliar el valor libertad, con el valor igualdad. Y concluye Habermas con una frase lapidaria, en
la que expresa que la autocomprensión de la filosofía política, en el marco de un
pensamiento expurgado de anclajes metafísicos, debe ser modesta pero no equivocada. (op. cit.).
Como es sabido y resulta de alguno de los textos citados anteriormente, las
críticas de Habermas fueron objeto de una respetuosa y extensa refutación por parte de Rawls y de una dúplica del primero. En esos textos polémicos, el aire de familia se fue diluyendo y aunque compartiendo muchas nociones, quedaron confrontadas dos visiones. Una, la de Rawls, que confía en la posibilidad de formular una teoría política de la justicia para las democracias maduras, en donde la política puede
ser concebida como una actividad humana susceptible de abstraerse e independizarse de la multiplicidad de interacciones sociales que la influyen y a las que ella influye; otra, la de Habermas, en donde la política constituye -como afirma Rawls- una
doctrina comprehensiva, o dicho de otro modo, una doctrina con implicancias epistémicas y antropológicas.
4.
LA CRÍTICA DESDE EL MODELO CONFLICTUALISTA
Ya hemos visto que en la perspectiva de Rawls, la política como equidad y, en
consecuencia, la contractualidad central, esto es, la forma de Estado que aquella instrumenta, no se identifica con ninguna concepción particular del bien. Según su
punto de vista, ello no implica neutralidad, porque sus principios de justicia son sustantivos y no solo procedimentales.
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Así el pluralismo no es visto como valor, sino como factum. Las sociedades
contemporáneas son diversas y multifacéticas; encierran creencias y convicciones,
visiones del mundo, bien distintas. Rawls no considera positiva esa situación, simplemente la acepta porque la tolerancia impide cualquier forma de coerción homogeneizante.
Como destaca Chantal Mouffe (1996), esta es una idea contraria a la que sostiene Joseph Raz, para quien el valor de la autonomía implica respaldar el pluralismo moral, porque éste se constituye, precisamente, en la condición de posibilidad
de aquella. Vivir una vida autónoma, presupone elegir y para elegir se precisan opciones diversas.
Si el pluralismo moral, religioso, etc. representa un riesgo para la convivencia,
como supone entre otros liberales el propio Rawls, es preciso que la noción del bien
admitida como común a todas sea, como se ha dicho, superficial, mínima. Se trata
de un entendimiento estrictamente político y de un consenso superpuesto, en relación con otras cuestiones.
Pero esta idea supone -también ha sido dicho más arriba- remitir el discenso
a la esfera privada, pera construir el consenso en la esfera pública. Mouffe sostiene
que, de este modo, se disuelve la dimensión de lo político y se concibe a la sociedad ordenada, como exenta de política.
Está claro que comienza a incidir en la argumentación la polisemia de lo político, aunque otras dimensiones del debate no se hallen ausentes.
La crítica imputa a Rawls, querer transformar el reino de la política en un espacio idealizado en el que individuos, despojados de pasiones y creencias “molestas”, guiados siempre por la razón, aceptan someterse a procedimientos imparciales
para juzgar sus reclamos.
Mouffe evoca la ácida crítica de Carl Schmitt, para quien “los conceptos liberales se mueven típicamente entre la ética (intelectualidad) y la economía (comercio)”. A partir de esta polaridad intentan aniquilar lo político como dominio
de la conquista del poder y la represión” (The concept of de political).
Concebir lo político como un proceso racional de negociación es, para la autora, ignorar la cuestión del poder y el antagonismo (lo político por excelencia) y
confundir su naturaleza.
Por otra parte, el campo de la política es el de los grupos y no el de los individuos aislados. En consecuencia, la dinámica que lo caracteriza no puede ser aprehendida a través del cálculo individual. El planteo de Rawls y el del liberalismo en
general, se empeña en negar la conflictualidad y el antagonismo, que son propios
de todo entramado societal. De este modo, pierden de vista que la política se gestiona, primordialmente, sobre la base de construir identidades colectivas, lo que supone la definición permanente de un “nosotros”, como opuesto a un “ellos”. Todo
consenso, importa entonces, algún acto de exclusión. Jacques Derrida ha afirmado
que toda identidad se basa en un acto de exclusión y en el consiguiente estableci-
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miento de una violenta jerarquización de las polaridades resultantes: forma/contenido, esencia/accidente, blanco/ negro, hombre/mujer, etc. Ello implica, que no hay
identidad que no se cree como diferencia y que toda objetividad social se constituye mediante actos de poder. Las relaciones sociales resultan, en cierta dimensión,
relaciones de poder, puesto que la construcción de identidades implica un acto de
poder. Y, como explica Laclau, el poder no surge de identidades pre-constituidas. Al
contrario, es el poder el que define esas identidades. Dado que la coherencia social
implica reprimir algo que la niega, todo sistema de reglas objetivas demanda, como
condición esencial de la posibilidad de su existencia, una dimensión coercitiva.
(conf. “Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo.”)
El “liberalismo político” ofrece la imagen de una sociedad en la que han desaparecido el conflicto, la represión, el poder y la violencia. Pero, en realidad, esos fenómenos, solo se han ocultado. Por ejemplo, a través de la distinción entre “simple
pluralismo” y “pluralismo razonable” (Joshua Cohen). La llamada razonabilidad, es
así la clave de bóveda, que permite al liberalismo legitimar la exclusión, cuando ella
se ha acordado en un procedimiento libre y racional (vg. el velo de la ignorancia).
Tal procedimiento habilita la eliminación del adversario, permaneciendo aparentemente neutral. ¿Con qué vara es posible decidir qué sea razonable y qué no lo sea?
¿ Tal decisión no es ya, una demarcación de frontera paradigmáticamente política y,
como tal, expresiva de una cierta hegemonía? Lo que en una comunidad determinada es considerado como razonable, resulta siempre ligado a juegos del lenguaje y a
cambios históricos, discursivamente operados. Sin embargo, no por ello exentos de
crítica y eventual modificación. De lo contrario, tales nociones de razonabilidad tenderían a naturalizarse y con ello, a convertirse en inmanentes, que es exactamente
lo opuesto a lo que acontece en el actual tiempo histórico, signado por permanentes y radicales reconfiguraciones del imaginario colectivo.
Judith Butler ha dicho que el establecimiento de prácticas institucionalizadas,
que se sitúen más allá del poder y la fuerza, constituye un mecanismo poderoso que
sublima, disfraza y amplifica su propia estrategia de poder, mediante tropos de universalidad normativa. Ese esfuerzo está en la base de la concepción rawlsiana. Para
él, los valores de libertad e igualdad son los únicos a tomar en cuenta, porque, sostiene, partimos de ideas intuitivas fundamentales presentes en nuestra sociedad.
Pero ni esta idea es tan obvia como afirma ni, por cierto, es inocua. Implica, en cambio, el resultado de una decisión que excluye a quienes piensan que otros valores o
que, además de aquellos, otros valores, deberían orientar también el debate público acerca del orden deseado.
En su crítica a Rawls, Mouffe subraya la necesidad de no hipostasiar la idea de
diálogo racional, de develar sus límites. Cuando se advierte que la democracia liberal no es el resultado necesario de la evolución moral de la humanidad, sino un conjunto de prácticas contingentes, lejos de incurrir en amenazantes relativismos, lo
que podemos es entender que se trata de una conquista, de una adquisición, que
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necesita ser protegida y profundizada. “La especificidad de una democracia pluralista -dice nuestra autora- no reside en la ausencia de dominación y violencia,
sino en el establecimiento de un conjunto de instituciones a través de las cuales
ellas puedan ser limitadas y enfrentadas.”
Lo que solo puede lograrse, si no se escamotea la violencia entre los pliegues
de una pretensa racionalidad. La concepción de Rawls, deja poco espacio para el disenso y la disputa en la esfera política y contiene una fuerte pulsión homogeneizadora. Un rasgo significativo de la democracia contemporánea es su radical indeterminación constitutiva. Cuando el liberalismo político la niega, adjudicando a un conjunto histórico específico de disposiciones, carácter universal y racional, comete el
mismo error que imputa al totalitarismo, la identificación de lo universal con un particular específico. El contenido de lo universal, debe permanecer indeterminado y
abierto, pues dicha indeterminación, constituye la condición misma de existencia de
la política democrática, en la que se ha operado, como afirma Claude Lefort, “la disolución de todos los horizontes de certidumbre.” Una democracia pluralista no
puede aspirar a establecer de una vez y para siempre, principios y disposiciones definitivos, que deberían ser aceptados por los miembros de una sociedad bien ordenada, ni confinar las cuestiones conflictivas a la esfera de lo privado. Al contrario,
debe instalar en la agenda pública las cuestiones del poder y la exclusión, para someterlas al debate. Esta es la mejor garantía para su sobre existencia. Porque la negación de las diferencias mediante el recurso de afirmar ciertos principios propios
de una particular tradición política, como principios derivados de una racionalidad
universal, comporta una fatal forma de violencia y de coerción, en relación con quienes, por tradición, cultura o convicción, sostienen su propia identidad y están dispuestos a defenderla. Una identidad negada, es potencialmente más peligrosa para
la democracia de nuestro tiempo, que una identidad subordinada, pero habilitada
para discutir y modificar su condición de tal.
El desarrollo histórico de la democracia liberal ha supuesto una tensión permanente entre la lógica liberal de la libertad y la lógica democrática de la igualdad.
El liberalismo político ha intentado poner fuera del alcance de la regla de la mayoría los derechos individuales. Con ello ha procurado restringir el proceso de decisión democrática. Presentar a las instituciones liberales como el resultado de una racionalidad deliberativa pura, supone dotarlas de un tipo de fundamentación que excluye la posibilidad de todo desacuerdo, aun del que se plantea como razonable. En
opinión de Mouffe, tal actitud implica más riesgos para la democracia pluralista, que
el reconocimiento de que ella incluye aquella tensión entre la lógica liberal y la lógica democrática, como constitutiva de sí misma y por consiguiente ineliminable. Aun
en el marco de una democracia pluralista, los distintos valores se jerarquizan y se ordenan. Un cierto ordenamiento de valores imposibilita un pluralismo absoluto, lo
cual reconduce a la cuestión de la hegemonía y la coerción, como elementos constitutivos de lo social. Pero si el antagonismo no es negado, si los contenidos y prin-
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cipios de una organización democrática, están abiertos a la discusión pública y la argumentación razonada y razonable, las pulsiones agresivas pueden desviarse y desactivarse, facilitando una convivencia civilizada. Porque, finalmente la especificidad
de una democracia pluralista, no reside en la ausencia de dominación o violencia,
sino en el establecimiento de instituciones, prácticas e intercambios comunicativos,
que permitan enfrentarlas y limitarlas.
5.
CONCLUSIÓN
He intentado un análisis a la vez modesto y respetuoso del autor al que la
prestigiosa publicación dirigida por el Prof. Agustín Squella, ha dedicado el presente volumen. Modesto porque no reivindico para mí el mérito de las ideas expuestas, que es propio de los pensadores que he citado o parafraseado. Naturalmente,
me valí de Chantal Mouffe, porque coincido con su perspectiva crítica acerca de los
puntos de vista de Rawls y en general de los autores comprendidos en la corriente
del liberalismo político. En mi opinión, la autora representa en el campo de la filosofía política, posiciones semejantes a las que muchos juristas y yo mismo, representamos en el campo de la filosofía jurídica. Posiciones que transitan bajo el palio de
la denominada “teoría crítica del derecho” o estudios legales críticos, los que han insistido en la necesidad de revelar y hacer temáticas en el análisis, las dimensiones
sociales, históricas, ideológicas y políticas del fenómeno jurídico; de entenderlo
como regla de juego, como tecnología y también como práctica hegemónica y legitimatoria; de asumirlo en su paradojalidad y en su complejidad autoreferencial. Estas perspectivas definen también, un cierto “aire de familia”, distinto del mencionado más arriba, pero que justifica que haya apoyado mis reflexiones en las ideas de
Mouffe, cuya claridad conceptual, profundidad y equilibrio, me parecen muy meritorios.
Por otro lado, respetuoso, porque valoro el emprendimiento rawlsiano tanto
como el de Habermas. Se ha discutido mucho acerca de la pertinencia de teorías
normativas, de naturaleza modélica, que no dan cuenta descriptivamente de lo que
en realidad acaece, sino que proponen criterios ideales acerca de lo que debería
acaecer. Ciertamente, teorías de ese tipo implican siempre un cierto riesgo, el de la
hipóstasis. El riesgo de olvidar que la realidad es menos limpia menos generosa y
que los actores en escena, no producen sociedad bajo las premisas de la posición
originaria o de la situación ideal de diálogo. Pero, por otra parte, qué haríamos sin
construcciones modélicas, sin horizontes de sentido, hacia los cuales orientar la
construcción de consensos que nos permitan vivir, en algún tiempo de paz, de tolerancia, de equidad social. Aun cuando sea menester someterlas a críticas constructivas y a alertados reparos, las propuestas normativas, cumplen un interesante papel.
Me parece imprescindible poner estas cuestiones de manifiesto, particular-
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mente en esta época. He escrito este trabajo, al tiempo en que los EEUU, en una actitud sin precedentes, despreciando los esfuerzos de más de seis décadas de la comunidad internacional por alcanzar mecanismos de resolución reglada de conflictos
y prevenir el uso unilateral de la violencia belicista, ha decidido combatir a los que
considera caníbales, comiéndoselos. A un costo de vidas humanas, propias y ajenas
incalculable; ignorando el clamor pacifista de miles de millones de seres humanos;
el reclamo magisterial de iglesias y religiones; quebrantando alianzas históricas y culturales y poniendo a la humanidad en su conjunto, bajo amenazas gravísimas de
todo orden. El país de las tradiciones liberales más acendradas, no ha podido impedir el mesianismo exacerbado de un grupo de hombres, convencidos de que van a
construir un nuevo imperio y a disciplinar al universo a sus dictados. Allí estaban, escondidas en la parafernalia republicana del Sr. Bush y sus cómplices, la violencia y
el poder, como componentes inescindibles de la política, que adquieren por épocas
el carácter desastroso y letal de esta hora. Así y todo, alguien debería acercarles al
Presidente de los EEUU y a sus asesores civiles y militares, un ejemplar de la Teoría
de la Justicia. Aunque más no sea, para que sepan por qué razones, serán algún día,
juzgados y condenados.
BIBLIOGRAFÍA
Rawls, John (1995) “Liberalismo político”, FCE, México, DF.
Rawls, John (1998) “Réplica a Habermas” en “Debate sobre el liberalismo político”,
Ed. Paidós, Barcelona.
Habermas, Jurgen (1998) “Reconciliación mediante el uso público de la razón” y
“Razonable vs. Verdadero, o la moral de las concepciones del mundo” en “Debate sobre el liberalismo político”, Ed. Paidos, Barcelona. (La crítica de Habermas y la
respuesta de Rawls fueron publicadas originariamente en inglés en 1995. La dúplica
del primero, en alemán en 1996. Ed. Paidos reunió esos textos en el libro antes mencionado, publicado en español, en 1998.)
Mouffe, Chantal (1996) “La política y los límites del liberalismo” publicado en español en Rev. “La Política” N° 1, Primer semestre, Ed. Paidos, Barcelona.
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SOLIDARITÄT ALS SOZIALE GRUNDHALTUNG
Roberto Francisco Daniel
Formado em Direito pela Inatituição Toledo de Ensino de Bauru em História pela Universidade do
Sagrado Coração de Bauru em Teologia pela Universidade Estadual Ludwing-Maximilian, Alemanha
Doutor em Ética pela Universidade Estadual Ludwing-Maximilian, Alemanha
Professor em Ética da Faculdade de Direito de Bauru (ITE)
Professor de Ética e pesquisador do Centro de Pós-Graduação da ITE
Etymologisch stammt das Wort Solidarität aus den lateinischen Termini solidus (fest, ganz sicher) und solidum (fester Grund, Boden). So beinhaltet der Begriff
Solidarität die Ideen des Zusammengehörigkeitsgefühls, sozialer Bindung oder des
Zusammenhalts. Aus diesem Gedanken der Zugehörigkeit – auf dem gleichen Boden zu stehen – schliesst die Bedeutung des Wortes Solidarität die Bereitschaft oder
das praktische, jedenfalls emotionale Engagement für gemeinsame Ziele oder für
Ziele anderer ein, die man als bedroht oder gleichzeitig als wertvoll und legitim ansieht.1 Geschichtlich hatte das Wort ursprünglich eine rein juristische Bedeutung,
die von der Rechtsfigur der Schuld oder Verpflichtung in solidum, für das Ganze,
aus dem römischen Recht abgeleitet war. Solidarität diente der Charakterisierung
der Rechtsfigur der Gesamtschuldner, der Haftung im Sinn einer Solidarobligation
einer Schuldnergemeinschaft, innerhalb der jeder Einzelne für die Gesamtschuld
herangezogen werden kann und zugleich alle für die Schuld jedes Einzelnen einzustehen haben. Später erweiterte sich dann der Begriff vor allem zu einer Bedeutung,
die als politisch-sozialer Zusammenhalt, Unterstützung oder aber Geschwisterlich1 Vgl. Alois Baumgartner, Solidarität – I. Begriffsgeschichte, in: Lexikon für Theologie und Kirche Band 9 (Freiburg
u.a. – 3. Aufl. – 2000) 706/707.
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keit umschrieben werden kann.2 Mit dieser weit gefassten Bedeutung des Wortes
verweist Solidarität als soziologisches Phänomen auf ein vorgegebenes Gemeinsames, das Menschen zusammenschließt und zusammen engagiert. Dieses Gemeinsame ist breit und unbeschränkt. Solidarität kann aus einer gemeinsamen Freude entstehen oder aus einem gemeinsamen Nutzen, einer gemeinsamene Aufgabe oder
auch aus einer gemeinsamen Not. Grund für ein solidarisches Handeln können
ebenso Interessen, Überzeugungen, gegenseitige Sympathie wie auch gemeinsame
Antiphathie sein. Am häufigsten wird gemeinsame Not als Grund für die Solidarität
verstanden und sie kann sich als eine Steigerung der Solidarität in einem so starken
Maß erweisen, dass die Solidarität fast nur mit einer Notsituation in Verbindung gebracht wird.3 Unabhängig von der Form des Gemeinsamen lässt sich Solidarität als
„jede bewusste Erfahrung von Zusammengehörigkeit und das daraus resultierende
Verhalten einer Vielheit als Einheit“ definieren.4 Sich solidarisieren heißt, sich bewusst in die Lage anderer zu versetzen. Solidarität ist ein Identifizierungsprozess. In
den Formen von Mitleid, von Mitverantwortung und Mithaftung identifiziert sich der
Einzelne mit dem Geschick anderer. Das, was anderen geschieht, erfährt er als ihn
selbst betrefend.5
Das Verständnis von Solidarität zwischen Ungleichen wird von Emile Durkheim
thematisiert, indem er zwei Formen von Solidarität unterscheideit: eine mechanische
und eine organische Solidarität. Bei der Ersten handelt es sich um eine Solidarität zwischen Menschen, die aus der gemeinsamen oder einer ähnlichen sozialen Lage und dem
aus ihr erwachsenden Kollektivbewusstsein entsteht. Es ist eine Solidarität zwischen
Gleichen, die nur aus der Anbindung des Individuums an eine Gruppe besteht.6 Die
zweite Form der Solidarität ist die organische Solidarität, die eher die Individualität der
Menschen als notwendig erachtet. Durkheim nimmt die Ideen vom physischen Organismus, in dem jedes Organ seine Autonomie besitzen soll, damit der Organismus seine Einheit behält und gut funktionieren kann. Hier entwickelt sich die Idee der Solidarität
zwischen Ungleichen. Die Menschen sind miteinander solidarisch, weil sie in einer Gesellschaft auf die Produkte der anderen angewiesen sind. Das Kollektivbewusstsein
muss einen Teil des Individualbewusstseins freigeben, damit dort spezielle Funktionen
entstehen, die es nicht regeln kann.7 Durkheim kommt zu dieser Unterscheidung aus
2 Vgl. Andreas Wildt, Solidarität, in: Joachim Ritter/ Karlfried Gründer (Hg.), Historisches Wörterbuch der Philosophie Band 9 (Darmstadt 1996) 1004/1005.
3 Vgl. Alfred Vierkandt, Kleine Gesellschaftslehre (Stuttgart 1949) 66/67.
4 Aloys Baumgartner/Wilhelm Korff, Das Prinzip Solidarität. Strukturgesetz einer verantworteten Welt, in: Stimmen
der Zeit 208 (Freiburg 1990) 237; im weiteren zitiert als Baumgartner/Korff Prinzip.
5 Vgl. Aloys Baumgartner, Solidarität und Ehrenamtlichkeit, Subsidiarität und Selbsthilfe. Veraltete Prinzipien der
Sozialpolitik?, in: Martin R. Textor (Ko.), Sozialpolitik – Aktuelle Fragen und Probleme (München 1996) 29.
6 Vgl. Emile Durkheim, Über soziale Arbeitsteilung. Studie über die Organisation höherer Gesellschaften (Frankfurt
a.M. 1992) 181/182; im weiteren zitiert als Durkheim, Arbeitsteilung.
7 Vgl. Durkheim, Arbeitsteilung 183.
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der Reflektion über die Arbeitsteilung in einer Gesellschaft. Trotzdem führt er den Aspekt der Solidarität zwischen Fremden ein und ermöglicht ein breiteres Verständnis des
Begriffes Solidarität.
SOLIDARITÄT ALS SOZIALETHISCHES PRINZIP
Wie oben schon erwähnt wurde, gehört zur Solidarität eine Interdependenz, eine
gegenseitige Abhängigkeit von Personen, etwas Gemeinsames, was beide – Subjekt und
Rezipient – miteinander verbindet und einander verpflichtet. Worin dieses Gemeinsame besteht, ist nicht von der Bedeutung des Wortes festgelegt. Es kann alles Mögliche
sein und es ergibt sich aus konkreten Zusammenhängen. Damit der Begriff Solidarität
aber zu einer ethischen Handlung und zu einem sozialethischen Prinzip wird, braucht
er eine universelle Gemeinsamkeit, die unabhängig von anderen Motiven, die die Menschen auch miteinander verbinden, die Interdependenz herstellt. Diese universelle Interdependenz für eine Solidargemeinschaft und eine individualethische Bereitschaft, für
die anderen einzutreten, gründet sich auf den Begriff Person. Im solidarischen Handeln
versteht sich jemand mit einem anderen verbunden, in erster Linie, weil er sich und den
anderen als Person versteht. So gründet das sozialethische Prinzip der Solidarität über
all das Gemeinsamkeit hinaus, was Menschen ansonsten verbindet und verpflichtet, in
der Gemeinsamkeit der gleichen Würde aller und eines jeden, der Menschenantlitz
trägt.8 Das Verständnis des Menschen als Person und seine Menschenwürde sind strukturierendes Element der Solidarität als sozialethisches Prinzip. Die Zugehörigkeit zur Natur des Personseins und die Würde des Personseins erweisen sich als die Basis, ein solidum, aus dem den Menschen eine Forderung erwächst, entsprechend dieser Gemeinsamkeit zu denken und zu handeln. Die Solidarität als sozialethisches Prinzip muss deshalb in ihrer ontologischen Bedeutung verstanden werden, die eine Gemeinverstrickung des Personseins darstellt. Alle Mitglieder einer Gesellschaft gehören zu ihrer Geschichte, ebenso ist das Ganze, die Gesellschaft, unlösbar verstrickt in die Geschichte ihrer Glieder. Als Person bewegen alle Menschen die Menschheitsgeschichte und diese
beeinflusst die Geschichte der einzelnen Person. Von dieser ontologischen Dimension
kommt als Folge die deontologische Dimension; aus dem Begriff Person ergibt sich die
soziale und moralische Pflicht, die das Zusammenleben ordnet. Aus der Gemeinsamkeit
des Personseins entstehen die Identifikationsprozesse und die moralisch Beistandspflicht zwischen dem Individuum und der Gesellschaft.9
Die ontologische Dimension der Solidarität wird in dem von Jesus von Nazareth erzählten Gleichnis des barmherzigen Samariters dargestellt.10 In diesem
8 Vgl. Baumgartner/ Korff, Prinzip 238/239.
9 Vgl. Oswald von Nell-Breuning, Solidarismus, in: Karl Rahner (Hg.), Herders Theologisches Taschenlexikon Band
7 (Freiburg 1973) 79/80.
10 Vgl. Lk 10, 29-37.
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Gleichnis fiel ein Mann unter die Räuber und nachdem sie ihn ausgeplündert und
geschlagen hatten, blieb er halbtot liegen. Einige Menschen gingen denselben Weg
hinab, sahen den Mann und gingen vorüber. Ein Samariter kam in seine Nähe und
hatte Mitleid mit ihm. Der kümmerte sich um den halbtoten Mann und rettete ihm
das Leben. Von Bedeutung in dem Gleichnis Jesu ist, dass der solidarische Mann ein
Samariter war. Historisch wurden der Samariter zur Zeit Jesu von den Juden als
Fremde und Ketzer angesehen, von denen man eingentlich nichts anderes als Hass
erwarten würde.11 Als Gegensatz zu dem solidarischen Samariter erwähnt Jesus
Menschen, die wichtige Positionen in der damaligen jüdischen Gesellschaft hatten:
einen Priester und einen Leviten. Hier ist der Grund für das solidarische Handeln
nicht die Zugehörigkeit zum Volk Israel, nicht die soziale Lage. Im Gleichnis Jesu
kommt die Solidarität zwischen Fremden zum Ausdruck. Die Gemeinsamkeit zwischen dem Samariter und dem Opfer ist einfach das Menschenantlitz. Dem Samariter aus dem Gleichnis Jesu ist der verletzte Mann auf dem Weg unbekannt und
fremd. Für den Samariter ist er aber ein Mensch, eine Person. Daraus entsteht die
gemeinsame Basis und die moralische Pflicht. Nichts kann dem Samariter versichern, dass der Mann danach ihm gegenüber seine Dankbarkeit zeigen wird. Trotzdem fühlt er sich dem Opfer verbunden und aus diesem Gefühl entsteht die Solidarität. Nach dem Gleichnis Jesu bedeutet Solidarität das Engagement von einem für
den anderen aus dem Grund des Personseins. Solidarisch ist der Mensch, der für die
anderen Menschen steht. In diesem Gleichnis kommt das Minimum der jesuanischen Lehre und Praxis zum Ausdruck. Jesus geht sicher über die Solidarität hinaus,
seine Verkündingung ist auf das Gebot der Nächtenliebe und dessen Radikalisierung – die Liebe zu den Feinden – orientiert. Solidarität bleibt aber eine notendige
Voraussetzung für die jesuanische Praxis. In diesem Sinne wird Jesus auch als der solidarische Mensch per se, als „der Mensch für andere“12 verstanden. Deswegen hat
die jesuanische Lehre universelle Züge. Die Botschaft Jesu gilt nicht für die Glieder
des Hauses Israel, sondern für alle Menschen.13 Durch die gemeinsame Zugehörigkeit als Person, durch die ontologische Dimension ist die Universalität des Begriffes
Solidarität festgelegt. Wie im Gleichnis Jesu exemplarisch gezeigt wird, kann jede
Begegnung mit einem Fremden Solidarität auslösen oder fördern.
Solidarität kann in zwei Formen erlebt werden, die sich ergänzen: einer individualethischen und einer strukturethischen Form. Solidarität wird zunächst als individualethische Grundhaltung, Gesinnung und Handlungsmotiv verstanden, wodurch
der Mensch befähigt wird, sich in den Dienst anderer, einer Gemeinschaft oder einer
Gesellschaft zu stellen. In diesem individuellen Ethos kann der Mensch als Individuum
11 Vgl. Herbert Haag, Samaria – III., in: Lexikon für Theologie und Kirche Band 9 (Freiburg 1986) 295.
12 Dietrich Bonhoeffer, Widerstand und Ergebung (München 1970) 414.
13 Vgl. Volker Eid, Jesus Christus – D. Ethisch, in: Volker Drehsen u.a. (Hg.), Wörterbuch des Christentums (München 1995) 552/553.
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in den unterschiedlichen Gemeinschaften, in denen er lebt, seinen Beitrag zum Wohl
aller leisten. In der strukturesthischen Form erweist sich Solidarität als wechselseitiger
Identifikationsprozess und als Beistandspflicht zwischen Individuum und Gemeinschaft.14 Hier wird Solidarität als ein gemeinschaftlicher Ethos verstanden, in dem sich
die Hinwendung der Gruppe zum Einzelnen vollzieht. Von einer Solidargemeinschaft
wird das Wohl jedes Einzelnen nicht übersehen. Das allgemeine Wohl wird immer in
enger Verbindung mit dem Wohl des Einzelnen verstanden. Die beiden Solidaritätsformen stehen in dialektischer Beziehung zueinander. Sie stärken sich gegenseitig und
daraus entstehen wechselseitige Pflichten. Das Fehlen einer Form bedeutet den Zusammenbruch der anderen.15 In ihren individual- und strukturethischen Formen erweist sich Solidarität als ein Schutz für den Menschen als Person und gleichermaßen
für die Gesellschaft. Auf der einen Seite wirkt sie als wesentlicher Aspekt gegen Individualismus, der die Sozialnatur des Menschen leugnet. Auf der anderen Seite steht Solidarität gegen Kollektivismus, der den Menschen seiner Würde als Person beraubt und
ihn bloßen Objekt gesellschaftlicher Prozesse macht.16
In all ihren individual- und strukturethischen Formen benötigt Solidarität mindestens zwei Pole: ein Subjekt und einen Rezipienten. Solidarität zeigt sich konkret in einer
engagierten Haltung oder Handlungsbereitschaft eines Subjekts gegenüber einem Rezipienten. Obwohl die Existenz eines Rezipienten notwendig ist, entsteht Solidarität
hauptsächlich von der Seite des Subjekts. Voraussetzung für Solidarität ist, dass das Subjekt durch Gefühle der Zusammengehörigkeit oder durch Mitgefühl mit dem Rezipienten verbunden ist. Die Motivation des Subjekts ist teilweise altruistisch und von der Seite des Subjekts her wird sein solidarisches Handeln zur moralischen Verplichtung. Damit Solidarität entsteht, muss das Subjekt glauben, dass er moralisch verpflichtet ist,
entsprechend zu handeln. Das Subjekt eines solidarischen Handelns unterstellt aber
auch, dass der Rezipient seine Situation genauso beurteilt. Obwohl keine unmittelbare
Wechselseitigkeit für das solidarische Handeln notwendig ist, ist das Subjekt meisten davon überzeugt, dass der Rezipient sich ihm oder Dritten gegenüber aus ähnlicher Motivation analog verhält, vehalten hat, verhalten wird oder verhalten würde.17
Für die Solidarität zwischen Menschen in der gleichen oder in einer anderen
sozialen Lage gibt es neben dem gemeinsamen solidum des Personseins andere
Gründe, die, wie oben schon erklärt wurde, unbeschränkt sind. Trotz der Vielfalt
der Motive können diese Motive in zwei Gruppen von Solidarität unterteilt werden:
14 Vgl. Alois Baumgartner, Solidarität – III. Theologisch-ethisch, in: Lexikon für Theologie und Kirche Band 9 (Freiburg u.a. – 3. Aufl. 2000) 709.
15 Vgl. Alois Baumgartner, Freiheit und Solidarität. Anmerkungen zur Zuordnungsproblematik sozialethischer
Grundbegriffe, in: Hans-Günther Gruber/ Benedikta Hintersberger (Hg.), Das Wagnis der Freiheit. Theologische
Ethik im interdisziplinären Gespräch. Johannes Gründel zum 70. Geburtstag (Würzburg 1999) 162.
16 Vgl. Joseph Kardinal Höffner, Christliche Gesellschaftslehre (Kevelaer 1997) 47.
17 Vgl. Andreas Wildt, Solidarität – Begriffsgeschichte und Definition heute, in: Kurt Bayertz (Hg.), Solidarität: Begriff und Problem (Frankfurt a.M. 1998) 211/212.
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die Solidarität aus gemeinsamer Betroffenheit und die Solidarität durch Parteinahme für die anderen, besonders für die Benachteiligten. Die erste Form entsteht
nicht nur aus dem Bewusstsein des Personseins der anderen, sondern auch aus der
Anerkennung der Tatsache, dass die andere Person in der gleichen Situation befindet, wie man selbst. Hier sind Subjekt und Rezipient in ähnlichen Situationen und
helfen einander. So entsteht z.B. die Solidarität zwischen den Einwohnern eines
Dorfes, das durch den Krieg zerstört wurde. Alle Einwohner des Dorfes sind in Not
und aus der Notsituation heraus entdecken sie, dass Zusammenhalt und gegenseitige Hilfsbereitschaft Voraussetzungen für das Überleben sind. Die Solidarität durch
Parteinahme für die anderen entsteht allein aus dem Bewusstsein des gemeinsamen
Personseins. Hier fühlt sich das Subjetk für die Rezipienten mitverantwortlich, weil
sie Person sind, wie das Subjekt selbst. Zu dieser Solidarität gehört die solidarische
Handlung gegenüber den Benachteiligten, wie Armen, Opfer, Arbeitslosen, Drogenabhängigen usw.18
Solidarität als sozialethisches Prinzip bedeutet auf jeden Fall eine konkrete
und notwendige Achtung des Einzelnen als Person. Durch das konkrete solidarische
Handeln wird das Personsein, die Humanität des anderen anerkannt und bestätigt.
Durch dieses sozialethische Prinzip wird die Individualität, das Anderssein des Anderen respektiert, aber dennoch seine Gleichheit nicht übersehen.19
DIE AMBIVALENZ DES BEGRIFFS SOLIDARITÄT
Nicht alle Formen von Solidarisierung werden zu einer sittlichen Haltung. Solidarität an sich kann sowohl im Dienste des Guten als auch im Dienste des
Schlechten stehen. In diesem Sinne gibt es bei verschiedenen Formen von Solidarität Ambivalenz, die die Menschen zu einem Gruppenegoismus führt. Als universelles sozialethisches Prinzip, das auf den Menschen als Person orientiert ist, akzeptiert Solidarität jedoch keine Form von Einschränkung oder Exklusivität wie auch
keine Art von Widerspruch zu dem Begriff Person.20 Eine Form der Solidarisierung,
die zum Beispiel gleichzeitig eine Missachtung des Allgemeingültigkeitsanspruchs
der Menschenwürde bedeutet, kann nicht im sozialethischen Sinn als Solidarität
definiert werden. Das ist der Fall bei der so genannten Solidarität des Terrors.21 Diese entsteht zum Beispiel, wenn verschiedene Personen von derselben Verfolgung
bedroht sind oder wenn man sich vorgenommen hat, einen gemeinsamen Gegner
18 Vgl. Hermann Steinkamp, Solidarität – IV. Praktisch-theologisch, in: Lexikon für Theologie und Kirche Band 9
(Freiburg u.a. – 3. Aufl. – 2000) 710.
19 Vgl. Reiner Zoll, Was ist Solidarität heute? (Frankfurt a.M. 2000) 198/ 199.
20 Vgl. Baumgartner/ Korff, Prinzip 239-241.
21 Vgl. Knud E. Logstrup, Solidarität und Liebe, in: Franz Böckle u.a. (Hg.), Christlicher Glaube in moderner Gesellschaft Band 16 (Freiburg – Basel – Wien 1982) 100/101.
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zu bekämpfen, mag dieser eine Einzelperson, eine Gruppe von Menschen, eine
Institution oder die gesamte Gesellschaft sein. Die Solidarisierung zwischen den
Mitgliedern einer Mafiagruppe oder einer terroristischen Organisation ist ethisch
verwerflich, weil unter solchen Gruppen nicht auf die Unantastbarkeit menschlicher Würde geachtet wird, damit sie ihr Ziel erreichen. Ein anderes Beispiel für
eine Fehlform der Solidarität ist eine exklusivistischen Art von Solidarisierung,
wenn das solidarische Handeln dem Anspruch der Menschenwürde faktisch nur im
Hinblick auf die eigene Gruppe und deren Zielsetzungen Rechnung trägt. Statt Solidarität zeigt sich hier eine Form des Gruppenegoismus – die Gruppe sieht nur
ihre eigenen Interessen und handelt exklusivistisch. Eine sozialethische Solidarität
verbindet im Gegensatz zu einer exklusivistischen Form von Solidarisierung die
Verwirklichung des Wohls der kleineren Gruppen mit der Verwirklichung des
Wohls des Ganzen. Weil Solidarität auf den universellen Anspruch der Menschenwürde achten muss, darf sie nicht zur Unterdrückung der Persönlichkeit des Menschen führen. Solidarität darf die Freiheit des Menschen nicht einengen, sie soll vielmehr ermöglichen. Deswegen zielt Solidarität keinesfalls auf Schwächung oder Aufhebund der Eigenfunktion kleinerer, ihr zuzuordnender Solidarstrukturen und
lähmt und zerstört damit nicht ihre eigenen Entfaltungskräfte. Der Mensch entfaltet sich als Person, wenn er für die Gestaltung seiner Existenz die Initiative ergreifen kann. Ohne Eigeninitiative und ohne Freiheit verliert der Mensch sein Personsein und wird in seiner Würde und seinem Recht zutiefst veletzt. Schließlich erweist sich eine Form von solidarischem Handeln als sozialethische Solidarität,
wenn es der umfassenden Forderung der Gerechtigkeit unterworfen bleibt. Beide,
Solidarität und Gerechtigkeit, sollen sich ergänzen. Wenn Solidarität sich als das
Gemeinsamkeit Stiftende vesteht, das Menschen einander zuordnet, wird man im
Begriff der Gerechtigkeit die Bedingungen finden, unter denen die Positionen und
Rollen und die damit verbundenen Erwartungen und Ansprüche menschlich angemessen sind. Die Kombination von Solidarität und Gerechtigkeit ermöglicht das
Zusammenleben von Menschen, bei dem der Mensch als Person respektiert wird
und sich Freiheit als Person entfalten kann.22 Die Solidarität schafft damit soziale
und universale Einheit und setzt als Ziel die Ansprüche der umfassenden Forderung der Gerechtigkeit und des Wohlwollens anderen Menschen gegenüber. Deswegen soll der Mensch jedem Menschen gegenüber solidarisch handeln. Diese
ethische Forderung nach Solidarität stellt sich nicht nur in der Beziehung zwischen
den Menschen untereinander und zwischen dem Menschen als Einzelnem und der
Gesellschaft, sondern auch zwischen den Völkern, da sie grundsätzliche Gleichheit
der Personen in der Welt zu achten haben.23
22 Vgl. Baumgartner/ Korff, Prinzip 241-243.
23 Vgl. Sollicitudo Rei Socialis (Freiburg – Basel – Wien 1988) 33.
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DIE TEMPORALE INTERDEPENDENZ VON SOLIDARITÄT
Die ontologische Basis des Begriffs Person verleiht dem Begriff der Solidarität
eine Universalität, die die ganze Menschheit verbindet. Jeder Einzelne hat wegen
seines Personseins einzustehen für das Wohl der ganzen Menschheit und kein
Mensch darf von einer solidarischen Menschheit ausgeschlossen sein. Diese universelle obligatio in solidum erlaubt nicht, dass ein Weltbürger gegenüber einem einzigen Menschen gleichgültig wird. Allein vom Personsein her sollen alle Menschen
in der Welt miteinander solidarisch handeln, weil alle Menschen zur Menschheitsfamilie gehören. Dem Personprinzip ordnet sich das Strukturprinzip der Solidarität
zu, wobei das Erste dem individuellen Freiheitsaspekt und das Zweite der sozialen
Bedürftigkeit der menschlichen Person Rechnung trägt.24
Diese Zugehörigkeit als Person umfasst aber nicht nur die heute lebenden
Menschen, sondern auch die Menschen, die in der Vergangenheit zur gegenwärtigen Geschichte beigetragen haben, sowie die Menschen, die in Zukunft den
Kreis der Menschheitsfamilie erweitern.25 Zwischen den vergangenen, den gegenwärtigen und den künftigen Generationen steht nicht nur die Gemeinsamkeit
des Personseins, sondern auch die gemeinsame Geschichte und der gemeinsame
Weltraum. Aus diesem breiteren solidum wird von den gegenwärtigen Generationen nicht nur Verantwortung gegenüber Vorfahren und Nachfahren gefordert,
sondern auch Solidarität. Außer der Solidarität, dem Bewusstsein der Verbundenheit zwischen den Menschen einer Gesellschaft soll eine kollektive Form des solidarischen Handelns erlebt werden: die vertikale Solidarität.26 In diesem Sinne
gehört zu dem Begriff Solidarität auch eine temporale Interdependenz.
Solidarität erweit sich zunächst als eine Vorausstezung für eine Aufarbeitung
der Vergangenheit. Eine kollektive Aufarbeitung der Vergangenheit kann nur verwirklicht werden und ein kollektives Gedächtnis kann nur entstehen, wenn es Solidarität zwischen den Menschen gegenwärtiger Generationen gibt. Wenn das Kollektiv keine soziale Einheit besitzt, ist auch keine Identifikation mit der Vergangenheit möglich. Die obligatio in solidum soll die Mitglieder einer Gesellschaft verbinden, damit ein gemeinsamer Aufarbeitungsprozess entwickelt werden kann. Zugleich soll die Gesellschaft ein Geschichtsbewusstsein haben, mit dem sie diese Einheit auch rückwärts versteht. Die Geschichte, die in der Gegenwart erlebt wird,
wurde durch die Vergangenheit aufgebaut. Sie ist nicht fragmentarisch zu verstehen, sondern als ein einziger Prozess, der die Menschen aus der Vergangenheit
und die der Gegenwart verbindet und voneinander abhängig macht. Die jüngeren
24 Vgl. Thomas Hausmanninger, Was ist Strukturenethik? Überlegungen zum Selbstverständnis der Christlichen Sozialethik, in: http://www.kthf.uni-augsburg.de/lehrstuehle/sozethik/strukt.htm.
25 Populorum progressio, Art. 17.
26 Vgl. Alois Baumgartner, Generation – 2. Ethisch, in: Lexikon der Bioethik Band 2 (Gütersloh 1998) 17.
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Generationen erben die Folgen der vergangenen Ereignisse und müssen sich mit
ihnen auseinander setzen. An diesen Ereignissen können sie nicht aktiv teilnehmen, da sie schon vergangen sind. Die Vergangenheit kann nicht mehr verändert
werden. Deswegen verspüren die neuen Generationen gegenüber den Opfern und
den Tätern der Geschichte ein Gefühl der Ohnmacht. Die einzige Möglichkeit eines Gefühlsausdrucks der neuen Generationen gegenüber den vergangenen Generationen, die nicht mehr leben, oder gegenüber den Überlebenden, die der Leiden
und den Schaden noch tragen müssen, ist eine Art von Solidarität, die der temporalen Interdependenz entspricht, nämlich die vertikale Solidarität. Unter vertikale
Solidarität versteht man die Pflicht des Erinnerns an die Leidensgeschichte und des
Vermeidens ähnlicher belastender Geschehnisse. Durch sie üben die neuen Generationen eine Solidarität nach rückwärts, eine Solidarität mit den Personen, die
nicht mehr leben.27 Die vertikale Solidarität zeigt sich in der Tradierung der Geschichte der Vorfahren und dessen, was man daraus lernen soll. Sie zielt darauf ab,
dass die Leidensgeschichten der Opfer und die tragische Geschichte der Täter
nicht in Vergessenheit geraten. Diese anamnetische Solidarität – so Peukert – bewährt sich im Eingedenken, in der Erinnerung an die Toten, an die Opfer und soll
eine Erinnerungskultur schaffen.28 Die vertikale Solidarität steht aber nicht nur in
Beziehung zu den Opfern der Geschichte, sondern auch zu den Tätern. Die neuen
Generationen haben die Herausforderung, die menschliche Natur und den geschichtlichen und sozialen Kontext der Täter zu begreifen. In der Erinnerung sollen
die Täter nicht als eine Inkarnation des Bösen gesehen werden, sondern als Menschen, die ihre Schuld tragen müssen, weil sie die falsche Entscheidung getroffen
haben, gegenüber ihren Mitmenschen nachlässig waren und sich von Ideologien
haben beeinflussen lassen, die auf die Würde des Menschen keine Rücksicht nahmen. Solidarität zu den Tätern bedeutet, sie als Person anzuerkennen, die aber die
Offenheit des Personseins gegenüber den anderen nicht realisiert hat. Letztendlich
bedeutet die vertikale Solidarität zu den Tätern, an ihrer Stelle Wiedergutmachung
zu leisten und dabei doch ihre Fehler nicht zu vergessen, sondern sie den künftigen Generationen bewusst zu machen.
Die vertikale Solidarität erweist sich aber auch als eine Solidarität nach vorne,
als eine Solidarität zu den künftigen Generationen. Hier bedeutet sie die Aufarbeitung der belastenden Vergangenheit selbst, die die Zukunft vor der Gefahr ihrer
Wiederholung zu schützen hat. In den Händen der gegenwärtigen Generationen
liegt teilweise das Schicksal der zukünftigen. Die Menschen von heute sollen einen
Beitrag zum notwendigen Mentalitätswandel leisten und den nachfolgenden Genenrationen eine von der Last der vergangenen Ereignisse befreite Zukunft ermögli27 Vgl. Johann Baptist Metz, Glaube in Geschichte und Gesellschaft (Mainz – 3. Aufl. – 1980) 115.
28 Vgl. Helmut Peukert, Wissenschaftstheorie – Handlungstheorie – Fundamentale Theologie (Düsseldorf 1976)
308/309.
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chen. Die vertikale Solidarität zu den künftigen Generationen wird durch die Bewahrung der Erinnerung und durch eine Tradierung ethischer Werte und Kriterien
erreicht. Die Zukunft der Menschheit entscheidet sich an der Frage ihrer Bereitschaft und Fähigkeit zur Solidarität.29
Die ganze Gesellschaft trägt die Verantwortung, die Folgen der Vergangenheit
zu verarbeiten. Diese Hypothek als moralische Pflicht anzuerkennen, setzt mehr als
nur Verantwortung voraus, nämlich eine eigene Form einer vertikalen, generationenübergreifenden Solidarität, die sich sogar auf nicht mehr lebende Generationen zu
erstrecken vermag. Da die Erinnerung an die Geschichte an alle Menschen einer Gesellschaft gerichtet ist, ist die vertikale Solidarität nicht nur eine Aufgabe des Einzelnen, sondern auch der ganzen Gesellschaft, also eine kollektive Solidarität. Wenn
die Gesellschaft als Ganzes nicht in einer vertikalen Solidarität gegenüber ihrer Vergangenheit steht, bleiben die Spannugen, die die belastenden Ereignisse aus der
Geschichte erzeugt hatten, ungelöst und damit bleibt die Freiheit und die Personwürde der Menschen nicht gesichert.
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29 Vgl. Baumgartner/ Korff, Prinzip 244.
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A NOVA LEX MERCATORIA COMO FONTE
DO DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL
(Um paralelo entre as concepções
de Berthold Goldman e Paul Lagarde)
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Advogado no Estado de São Paulo.
Mestrando na Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Franca.
Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na
Faculdade de Direito de Presidente Prudente-SP (Associação Educacional Toledo) e de
Direito Constitucional na Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE.
Classificado em primeiro lugar no “Primeiro Concurso Nacional de Monografias”
sobre os 50 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
realizado pela PUC-Minas, UFMG e OAB-MG (1999).
Autor de vários livros sobre direito internacional e direitos humanos e de diversos
artigos publicados em revistas jurídicas especializadas. E-mail: [email protected]
1.
INTRODUÇÃO
Sempre se mostrou intenso o debate acerca da caracterização da nova lex
mercatoria como fonte do direito do comércio internacional. Sem embargo do
grande número de trabalhos teóricos dedicados ao estudo da nova lex mercatoria
publicados nos últimos trinta e cinco anos, poucos são os estudos que tratam especificamente do seu caráter de fonte do direito do comércio internacional, notadamente no Brasil. Com o fito de suprir parte dessa necessidade, pretende-se colocar
à prova de uma experiência contemporânea alguns dos critérios pelos quais se pode
caracterizar as regras e fontes do universo do direito. E essa experiência é a das nor-
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mas originais do comércio internacional, que cobrem todo o universo das relações
econômicas internacionais.
A proposta deste trabalho é estudar a nova lex mercatoria como fonte do direito do comércio internacional, fazendo, para tanto, um paralelo entre as concepções dos juristas BERTHOLD GOLDMAN e PAUL LAGARDE, que estudaram adequadamente
a matéria em questão e lançaram as grandes bases para as futuras discussões a respeito desse formoso tema.
Para tanto, num primeiro momento, buscou-se desvendar se a nova lex mercatoria pertence ou não ao domínio do direito, segundo a lição de BERTHOLD GOLDMAN. Num momento posterior, verificaram-se quais as críticas de PAUL LAGARDE às
concepções de GOLDMAN e quais os paralelos existentes entre as lições desses dois
juristas em relação à nova lex mercatoria e à sua caracterização como fonte do direito do comércio internacional.
Ao final, apresentamos a nossa concepção de lex mercatoria, terminando por
mostrar ao leitor a sua posição atual.
2.
ANTECEDENTES DA LEX MERCATORIA
Com o crescente desenvolvimento das relações comerciais internacionais,
novos fenômenos vêm surgindo cujo exame merece a acurada atenção dos especialistas. O Estado, nos tempos atuais, deixou de ser o único ator das relações internacionais, passando a conviver com outros sujeitos, antes desconsiderados
como tal. Tornou-se freqüente a participação de empresas privadas em inúmeros
acordos e contratos do comércio internacional, tendo o Estado estrangeiros como
contraparte. Esse afastamento do Estado de algumas atividades internacionais permitiu o desenvolvimento de regras disciplinadoras do comércio internacional,
nascidas de sua aplicação e uso reiterados entre a sociedade internacional dos comerciantes.1
Tais usos e costumes, nascidos da prática contratual internacional, foram qualificados como verdadeira lex mercatoria, uma ordem jurídica dos comerciantes a
reger os usos profissionais do comércio no cenário internacional.2
1.Cf. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. “Lex Mercatoria: evolução e posição atual”, in Revista dos Tribunais, vol. 709, São
Paulo, nov./1994, p. 42.
2.Para o Prof. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES: “Deixando de lado as definições precisas, pode-se considerar a lex mercatoria como as regras costumeiras desenvolvidas em negócios internacionais aplicáveis em cada área determinada
do comércio internacional, aprovadas e observadas com regularidade. (…) A lex mercatoria – regras de direito
costumeiro – é produzida pelos integrantes dos diversos setores do comércio internacional – comerciantes de cereais, de especiarias, de commodities, etc. – aceita e observada com a convicção de ser obrigatória e com efetividade imposta, não pelo Estado, mas pelos próprios integrantes da corporação formada em cada um desses setores”
(Op. cit., p. 43).
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Tendo como antecedentes a Lex Rhodia – Lei do Mar de Rodes (300 a.C.),
adotada inicialmente pelos gregos e troianos e, posteriormente, disseminada no restante da Europa, e o Jus Mercatorum (séc. XIV), a lex mercatoria nasceu das feiras
da Idade Média, em resposta aos direitos feudais que, com seus inúmeros privilégios, entravavam as relações comerciais da época.3 Nas palavras do Prof. ROBERTO
LUIZ SILVA, atualmente
fala-se em uma Lex Mercatoria moderna, baseada, além de nos
usos e costumes, em contratos-padrão, preparados por entidades
estrangeiras e, mais recentemente, composta de inúmeros outros
elementos, inclusive Direito Internacional Público, leis uniformes
e regras das organizações internacionais.4
Essa “nova lex mercatoria” é que é o objeto desse nosso estudo, e nela é que
iremos nos fundamentar. Embora se discuta há mais de trinta anos na doutrina a
nova lex mercatoria não está à vista o final das controvérsias que se formam em torno dela.
3.
A NOVA LEX MERCATORIA E AS FRONTEIRAS DO DIREITO NA
CONCEPÇÃO DE BERTHOLD GOLDMAN
Foi BERTHOLD GOLDMAN quem, em 1964, detectando a existência desse direito
costumeiro internacional, nascido das práticas comerciais internacionais, trouxe à
tona a doutrina da nova lex mercatoria, em trabalho publicado nos Archives de Philosophie du Droit, n.º 09, intitulado “Frontières du droit et lex mercatoria”. Foi,
neste estudo, considerado a certidão de nascimento da nova lex mercatoria, que
GOLDMAN lançou as bases para uma ardente e profunda discussão sobre a sua caracterização como fonte do direito do comércio internacional, passando este momento a ser considerado um marco no processo de evolução do conceito.5
O Prof. GOLDMAN, em seu texto, propõe colocar à prova de uma experiência
contemporânea alguns dos critérios pelos quais se pode sonhar em se referir às
fronteiras do direito. E esta experiência é a das normas originais do comércio internacional (lex mercatoria), as quais cobrem todo o conjunto das relações econômicas internacionais. Para GOLDMAN, ai se engloba, “em outros termos, as relações in3.Cf. HERMES MARCELO HUCK. Sentença estrangeira e “lex mercatoria”: horizontes e fronteiras do comércio internacional. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 104.
4.ROBERTO LUIZ SILVA. Direito internacional público, 2.ª ed. rev, atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 24.
5.Cf. também, a esse respeito, PHILIPPE KAHN, “Droit international économique, droit du développement, lex mercatoria: concept unique ou pluralisme des ordres juridiques?”, in Le droit des relations économiques internationales: études offertes à Berthold Goldman, Paris: Librairies Thechiniques, 1982, p. 97.
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ternacionais de troca nas quais participe pelo menos uma empresa privada (ou uma
empresa pública que não faça uso das prerrogativas das quais ela está investida
como tal) – e a outra participante, podendo ser ou uma empresa da mesma natureza, ou uma pessoa moral de direito público, como uma organização internacional,
ou mais praticamente um Estado ou uma coletividade pública subordinada (portanto, na hipótese freqüente, e de grande interesse, dos investimentos nos países em
via de desenvolvimento)”.6
O que este grande jurista pretende mostrar é que cada dia mais, essas relações
parecem escapar à influência de um direito interno estatal, ou até mesmo de um direito uniforme integrado na legislação dos Estados que a ele aderiram, por serem regidas e governadas por normas de origem profissional, ou regras costumeiras e princípios internacionais revelados notadamente pelas sentenças arbitrais.
E o Prof. BERTHOLD GOLDMAN, a esse respeito, se pergunta:
“Essas ‘diretrizes de conduta’ são regras de direito e os comportamentos que elas determinam são jurídicos?” [tradução nossa].
E ele mesmo responde:
“A questão vale a pena ser colocada, não somente em razão da
amplitude e da importância das atividades que ela concerne, mas
também por que ela faz claramente aparecer algumas das dificuldades específicas da separação entre o domínio do direito, e do
que lhe é estranho. Por sua gênese e por seu mecanismo de implantação, estas ‘normas’ do comércio internacional poderiam, com
efeito, não ser consideradas, num primeiro exame, senão como
usos ou práticas espontâneas, isto é, como comportamentos para
quem simples repetição em um meio profissionalmente caracterizado (e da mesma maneira limitado) não bastaria para conferir
a dignidade de regras de direito, até mesmo de simples regras. Por
outro lado, tratam-se mesmo de regras, e podem ser consideradas
como jurídicas, já que aqueles dentre os quais se ligam as relações
que lhes obedecem não formam uma sociedade humana politicamente organizada em Estado, mas no máximo uma coletividade
ela própria espontânea, bastante distendida, e escapando a todo o
quadro estatal?” [tradução nossa].7
6.BERTHOLD GOLDMAN. “Frontières du droit et lex mercatoria”, in Archives de Philosophie du Droit, n.º 09, Paris: Sirey, 1964, p. 177. Nota: todas as citações no decorrer deste trabalho são tradução livre e original do Autor a este
texto em francês do Prof. BERTHOLD GOLDMAN.
7.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 177-178.
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Para a resposta do que pretende, GOLDMAN qualificará o fenômeno em relação a vários critérios propostos para definir o direito, ou a “regra de direito”, dispensando uma escolha prévia que, à primeira vista, poderia parecer logicamente necessária.
3.1. Operações internacionais de venda, crédito, transporte e de sociedades
Internacionais ou não, as trocas econômicas, nas palavras do Prof. GOLDMAN,
encontram seu principal molde contratual na venda; elas se acompanham de operações de crédito, e se traduzem materialmente pelo transporte de pessoas ou de
bens; por pouco que eles sejam importantes, seus atores são sociedades, antes que
pessoas físicas. É à vista dessas operações e desses “operadores” que GOLDMAN verificou, primeiramente, o arranjo autônomo deles, quando eles são internacionais.
Depois o consagrado jurista lembrou
que os litígios que deles decorrem são muito freqüentemente regulados de maneira igualmente específica, no quadro da arbitragem
comercial: constatação importante, porque se é verdade que o direito ultrapassa largamente o contencioso, é igualmente seguro
que um conjunto de modos de conduta humana não pode formar
um sistema de direito, a menos que exista uma jurisdição apta
para velar pela sua interpretação e observância.8
3.1.1. A venda comercial internacional
Segundo GOLDMAN, apesar de se poder perfeitamente conceber que a venda
comercial internacional dependa sempre da lei de um determinado Estado, designada por uma regra de conflito, em casos bastante numerosos constata-se, igualmente, que no comércio internacional, vendedores e compradores procuram muito freqüentemente fugir da influência de leis internas estatais, submetendo o contrato às normas de uma outra origem, visto que as necessidades do comércio internacional não se adequam, muitas vezes, às lei comerciais nacionais existentes nos diversos ordenamentos jurídicos dos Estados – mesmo aqueles industrializados –
bem como não encontram nos sistemas de direito internacional privado uma certeza de sua designação.9
Por estes motivos é que o século XX não viu nascer, mas renascer, segundo
ele, usos profissionais comuns da venda internacional, tendo em vista que em outras épocas, o comércio internacional havia seguido suas próprias normas, como,
8.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 178.
9.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 178-179.
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por exemplo, nas operações entre cidadãos e peregrinos, encontrando-se tais costumes provavelmente na origem dos contratos de boa-fé do direito romano, ou ao
jus mercatorum e ao direito das feiras do fim da Idade Média e do início da época
moderna.10
BERTHOLD GOLDMAN começa o seu rol de exemplos lembrando os costumes comerciais internacionais nascidos com a London Corn Trade Association. Eis sua lição:
“Mas para limitar-se ao nosso tempo, nós lembraremos que a
London Corn Trade Association, criada em 1877 e refundada em
1886 se propôs, entre outras, ‘provocar a introdução no comercio de cereais da uniformidade nas transações, favorecer a
adoção de usos fundados sobre princípios justos e eqüitativos, e
isso mais particularmente para os contratos, cartas-partes, nota
de despacho de mercadorias e polícias de segurança; estabelecer, provocar, encorajar a difusão e a adoção de fórmulas-tipo
para os contratos, para os outros documentos pré-citados e em
geral todos aqueles dos quais fazem uso o comércio dos cereais’” [tradução nossa].
E continua:
“Este programa foi totalmente realizado, uma vez que a London
Corn Trade Association estabeleceu e colocou à disposição dos negociantes de cereais várias dezenas de contratos-tipo, cuja difusão
e aplicação são consideráveis: nós os utilizamos, com efeito, em
numerosíssimas vendas internacionais, independentemente de
toda participação de empresas inglesas, e até mesmo de membros
da Associação” [tradução nossa].11
Tais contratos-tipo foram amplamente divulgados também em outros domínios do comércio internacional, a exemplo do comércio de produtos agrícolas, florestais, mineiros, petroleiros, siderúrgicos, têxteis e bens de equipamento. São eles
emanados de
associações profissionais, ou de agrupamentos de empresas
mais estreitamente integradas, até mesmo isoladas, mas poderosas; e nas últimas épocas, vários foram elaborados, sob a égide da Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas,
10.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 179.
11.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
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essencialmente para servir de quadro às relações comerciais
entre o Leste e o Oeste.12
Segundo o Prof. GOLDMAN, estes fatos comprovam, portanto, a existência
de uma rede densa e extensa de documentos, cobrindo a maioria
dos países com um bom número de bens trocados no comercio internacional; e a considerar o fenômeno sem idéia pré-concebida,
constatamos que os contratos aí referidos não são regidos nem
pela lei de um Estado, nem por uma lei uniforme adotada por
uma Convenção entre Estados, mas sim pelos próprios contratostipo. Segundo ele:
“É preciso ainda sublinhar que estes [contratos] não se limitam a
codificar usos preexistentes: eles consagram também normas novas, diferentes daquelas dos direitos estatais tradicionais, algumas
vezes inspirados, é verdade, pelo interesse dos parceiros mais poderosos, mas em outros casos também pelo interesse comum dos contratantes” [tradução nossa].13
O valor significativo de tais exemplos poderia, segundo o citado internacionalista, ser contestado à primeira vista, porque, poder-se-á dizer, as partes neste caso,
referindo-se aos contratos-tipo, estão fazendo uso simplesmente da liberdade contratual que lhes reconhecem os sistemas jurídicos dos seus respectivos Estados. Os
contatos concluídos por tais partes tornar-se-iam, então “normas individuais” para
cada uma delas – concepção kelseniana – sem se integrar às respectivas ordens jurídicas nacionais, mais precisamente nas normas de direito internacional privado
que designam a regra de conflito a ser aplicada.14
Uma postura análoga é encontrada nos comentários de PAUL LAGARDE a respeito. Este professor da Universidade de Paris I acredita que o contrato celebrado entre os comerciantes é o modo de se inserir, na ordem jurídica estatal, toda
ou parte dessa ordem não estatal. Mas nem por isso o juiz estatal, segundo ele,
poderia aplicar as regras da lex mercatoria sem o intermédio da vontade das
partes.15
12.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
13.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 179-180.
14.Cf. BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 180.
15.Cf. PAUL LAGARDE. “Approche critique de la lex mercatoria”, in Le droit des relations économiques internationales: études offertes à Berthold Goldman, Paris: Librairies Thechiniques, 1982, pp. 140-145. Nota: todas as citações
a este texto do Prof. PAUL LAGARDE são tradução livre e original do Autor ao respectivo texto em francês.
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E o Prof. BERTHOLD GOLDMAN, rebatendo a colocação daqueles que entendem
que as partes, neste caso, fazem uso simplesmente da liberdade contratual que lhes
reconhecem os sistemas jurídicos dos seus respectivos Estados, que poderia à primeira vista parecer correta, assim leciona:
“Mas na verdade, semelhante objeção ultrapassa o domínio da
descrição do fenômeno, para contestar, a não ser que ele possa ser
qualificado como um conjunto de normas jurídicas “individuais”,
pelo menos a especificidade dessa qualificação. Nós a encontraremos, sob este ângulo. Limitemo-nos aqui a dizer que a visão que
ela exprime não presta contas do arranjo concreto do comercio
internacional; é certo, com efeito, que quando eles se referem aos
contratos-tipo seus “atores” decidem regular – e em todos os casos
não-contenciosos, regulam efetivamente – sua conduta segundo
normas outras que as leis estatais. Não é seguro, nós o veremos,
que esta decisão somente possa receber eficácia da liberdade contratual sobre a qual convergem um certo número de direitos estatais; mas seria ela mesmo assim, ainda que não se pudesse, entretanto, negar que as normas concretas escolhidas no exercício dessa liberdade fossem diferentes por sua origem, e freqüentemente
também por seu conteúdo, daquelas que as partes expressamente,
ou melhor, tacitamente, extraíram de um direito estatal, se elas aí
fossem citadas” [tradução nossa].
E GOLDMAN finaliza o seu raciocínio dizendo o seguinte:
“Acrescentemos que do ponto de vista descritivo, que é por enquanto o nosso, não é mais possível considerar tais normas como ‘individuais’. Referindo-se a isso, os contraentes não têm, com efeito,
nem a intenção, nem o sentimento de criar vínculos jurídicos singulares, mas sim de submeter uma operação particular e concreta às regras gerais e abstratas. Isto é tanto mais verdade que para
a própria interpretação dos termos empregados, os contratos-tipo
em uso no Leste como no Oeste se referem freqüentemente aos Incoterms (Internacional Comercial Terms) da Câmara de Comercio Internacional [de Paris]. Este documento, que não é aliás, sobre todos os pontos, um simples ‘glossário’ fornece assim, aos quadros gerais, que já são os contratos-tipo, um quadro mais geral
ainda, submetendo-os a um método uniforme de interpretação. É
necessário então admitir que, na realidade, as operações do comercio internacional que se desenrolam nesses quadros, por assim
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dizer concêntricos, escapam largamente às leis estatais, sem prejulgar aqui o caráter jurídico ou não das normas ou dos ‘modos
de conduta’ que se substituem a elas” [tradução nossa].16
Exemplificado o seu raciocínio com a venda comercial internacional, passa
GOLDMAN a tratar das operações internacionais de crédito, e o faz da maneira abaixo exposta.
3.1.2. As operações internacionais de crédito
O fenômeno acima descrito pode ser constatado, da mesma forma, nas operações internacionais de crédito, em especial quando elas assumem a forma de crédito documentário. Trata-se, aqui, de um mecanismo “triangular”, onde o importador encarrega o banqueiro de pagar o preço ao exportador, com a apresentação por
parte deste, dos documentos constatando o embarque da mercadoria. O esquema
é completado, freqüentemente, com a confirmação do crédito por parte do banqueiro, imprimindo um caráter abstrato com a obrigação deste para com o beneficiário.17
E o Prof. GOLDMAN, a esse respeito, assim leciona:
“Ora, em muitos países, dentre os quais a França, esta instituição
complexa, e de uma técnica particularmente ‘refinada’ não é objeto de nenhum texto legislativo, e sua originalidade não permite
resolver as dificuldades que ela pode fazer surgir por aplicação
analógica de disposições não a concernindo diretamente. Em
compensação, uma codificação internacional das normas geralmente seguidas nessa matéria foi elaborada em 1933, ainda sob os
auspícios da Câmara de Comercio Internacional [de Paris]: são as
‘Regras e Usos uniformes relativos ao crédito documentário’, refeitos em Lisboa, em 1951 e revisada em 1962. De origem puramente
profissional, essas regras não são geralmente muito menos observadas pelos banqueiros, e os próprios tribunais se referem a elas,
notadamente na França: elas fornecem assim, concretamente, as
normas da operação de crédito, e a seu sujeito ainda podemos nos
perguntar se elas não são normas jurídicas, se bem que elas não tenham tomado corpo nem nas leis internas dos Estados, nem em
suas Convenções internacionais” [tradução nossa].18
16.BERTHOLD GOLDMAN. Op. cit., pp. 180-181.
17.Cf. BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 181.
18.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
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Tais regras, como se denota, são usualmente aplicadas em se tratando das referidas operações, o que demonstra a existência de usos e costumes profissionais
que escapam à legislação doméstica dos Estados.
O terceiro exemplo referido por GOLDMAN diz respeito aos transportes internacionais, nos termos do tópico seguinte.
3.1.3. Os transportes internacionais
Os transportes internacionais, da mesma forma, formam também o objeto
de um complexo de normas profissionais geralmente muito aplicadas. Já se falou
das cartas-partes e dos conhecimentos-tipo da London Corn Trade Association; no
domínio do transporte marítimo, a prática inglesa – leciona GOLDMAN – propõe outras normas, correntemente empregadas entre os contraentes dos quais nenhum é
inglês, e não têm sequer algum vínculo com a Inglaterra.19
O mesmo ocorre com o transporte aéreo internacional, que é regulado pelos
contratos-tipo da International Air Transport Association (IATA), utilizado pela
quase totalidade das companhias aéreas. Como leciona o Prof. GOLDMAN:
“A generalidade de sua aplicação torna aqui difícil a distinção entre estes contratos-tipo e os usos codificados encontrados em matéria de crédito documentário; mas, seja como for, para uns e para
outros, como para os contratos-tipo utilizados na venda internacional, não basta dizer que a liberdade contratual, princípio de
direito interno, permite se referir a isso para lhes recusar toda especificidade” [tradução nossa].20
Por fim, termina GOLDMAN esta escolha de exemplos citando aquele de algumas sociedades internacionais, cuja estrutura e funcionamento são de certa forma
completamente subtraídos tanto do direito interno estatal, como do próprio direito
internacional.
3.1.4. Estrutura e funcionamento das sociedades internacionais
Ao tratar do funcionamento das sociedades internacionais, observa-se de
início, que não se trata, aqui, de estudar aquelas sociedades cujo funcionamento
escapa realmente a todo o direito interno estatal, mas que buscam o conjunto de
regras que as governam nos tratados internacionais que as instituíram, porque,
neste caso, “o caráter jurídico de seu estatuto somente poderia então ser contro19.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
20.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 182.
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verso com o do direito internacional público no seu conjunto, que permanece
fora desse nosso propósito”.21
GOLDMAN, aqui, irá partir da análise daquelas sociedades que, embora criadas
por tratados internacionais constitutivos, são reguladas pelos seus estatutos e, subsidiariamente, pelas leis do país de sua sede social. Para GOLDMAN, os estatutos são,
efetivamente, nesse caso, obra de empresas associadas, distintas
dos Estados dos quais elas se libertam; quanto à lei de referência
subsidiária, ela somente permanece estatal em aparência, porque
ela é ‘cristalizada’ em seu estado no dia da constituição da sociedade, e suas modificações ulteriores não podem ser impostas a
esta. Ela é assim conduzida por uma coletânea de normas supletivas de natureza mais próxima dos estatutos de uma sociedade,
que do ato legislativo de um Estado soberano.22
Mais característico ainda, segundo ele, é o caso daquelas sociedades que, criadas
ou não por convenções internacionais, referem-se deliberadamente aos “princípios comuns” de várias legislações, até mesmo a fontes ainda indeterminadas, para preencher
eventuais lacunas de seus estatutos. Foi o que aconteceu com a União Carbonífera Sarro-Lorraine (Saalor), sociedade franco-alemã regida, nos termos do artigo 1º de seus estatutos, pelo Tratado franco-alemão de 27 de outubro de 1956, “pelos presentes estatutos e pelos princípios comuns do direito francês e do direito alemão”. Segundo
GOLDMAN, na ausência de disposições dos tais textos e de tais princípios comuns, o tratado levaria em consideração “para a interpretação dos estatutos e para a solução das
questões não reguladas por estes, o espírito de cooperação que inspirou a transformação da sociedade em sociedade franco-alemã”. Da mesma forma – leciona ele –, os estatutos da sociedade “Air Afrique” dispõem que esta será regida pelo tratado que a
criou, pelos próprios estatutos, e “a título subsidiário, e somente na medida em que
eles sejam compatíveis com as disposições do tratado e dos estatutos, pelos princípios
comuns da legislação dos Estados signatários do tratado”.23
Lembra GOLDMAN, enfim, o exemplo do Scandinavian Airlines System, consortium criado por uma convenção entre companhias de transporte aéreo, não se
ligando a nenhuma lei nacional: as cláusulas de seu contrato constitutivo são pouco
numerosas, e não se vê quase nada para completá-las senão os princípios comuns
às três legislações escandinavas, e mais geralmente, talvez, o direito comum das sociedades internacionais se se admite a existência delas.24
21.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
22.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
23.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 182-183.
24.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 183.
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Mas aqui fica uma pergunta: quem descobrirá tais “princípios comuns”? Segundo GOLDMAN, a questão aparece, para as sociedades, “porque os seus estatutos a
eles apelam expressa ou implicitamente, mas a questão se põe, na realidade, também para os contratos do comércio internacional, na medida em que pode ser necessário completar ou interpretar as normas dos contratos-tipo ou das ‘Regras e
Costumes’, em que se recusa a buscar [resposta], exclusivamente para isso, em um
sistema jurídico estatal cujas partes pretenderam se separar”.25
A resposta definitiva à indagação competirá ao juiz do contrato, ou da estrutura e do funcionamento da sociedade, “porque se ele não for pego de surpresa, a
lacuna das ‘normas específicas’ terá sido facilmente preenchida, ou a dificuldade de
interpretação resolvida sem o recurso de um aparelho de aspecto jurídico”. Este juiz
é, para os contratos de sociedades que nos ocupam, quase sempre um tribunal arbitral. Assim sendo, “é a arbitragem comercial internacional que nos colocará na presença do aspecto contencioso do fenômeno que nós acabamos, assim, de descrever,
antes de tentar qualificá-lo”.26
Em resumo, segundo BERTHOLD GOLDMAN, as operações internacionais de venda, crédito, transporte e de sociedades, já bastam para indicar a existência real de
uma nova lex mercatoria a reger a sociedade internacional dos comerciantes.
3.2. A arbitragem internacional e a resolução dos litígios advindos do comércio internacional
São os chamados árbitros – institucionais (isto é, designados para o quadro
dos grandes organismos de arbitragem, a exemplo da Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, a American Arbitration Association, etc) ou ad hoc –
aqueles comumente encarregados de resolver os litígios advindos do comércio internacional. E para a resolução de tais conflitos – leciona GOLDMAN – os mesmos se
referem, primeiramente, às normas específicas que têm ligação direta com o contrato ou com a sociedade em litígio (contratos-tipo, usos codificados, estatutos sociais), não podendo, entretanto, se limitar a um pano de fundo de regras gerais que
lhes são freqüentemente indispensáveis, embora eles não façam sempre apelo explícito a isso.27
O fato é que, segundo tem atestado a experiência, os árbitros não têm procurado resposta para o caso concreto submetido à sua apreciação, em uma lei estatal
nem em um tratado internacional, mas sim em um “direito costumeiro” do comércio internacional – chamado de lex mercatoria – sendo inútil perquirir se tais julgadores apenas a constatam ou se, ao contrário, a elaboram, posto que estas duas
25.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
26.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
27.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
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diligências estão, segundo GOLDMAN, intimamente misturadas, como toda vez que
um juiz exerce uma tal atividade.28
A esse respeito assim leciona BERTHOLD GOLDMAN:
“Algumas decisões arbitrais, publicadas ou analisadas, ilustram esta
tendência. Assim, na sentença relativa ao caso entre Petrolium Development (Trucial Coast) Ltd. e o Cheik de Abu Dhabi, Lord Asquith of
Bischopstone, constatando que a lei de Abu Dhabi, teoricamente
competente para reger o contrato litigioso, não continha um ‘corpo
estabelecido de princípios jurídicos utilizáveis para a interpretação
de instrumentos comerciais modernos’, decidiu, em relação igualmente à vontade das partes, que é conveniente aplicar, neste caso, os
‘princípios buscados no bom senso e na prática comum do conjunto
das nações civilizadas, uma espécie de ‘modern law of nature’. Este
apelo a um ‘direito comum das nações’ ou, pelo menos, a elaboração e a aplicação de princípios próprios ao comércio internacional
encontram-se também na sentença do MM. Ripert et Panchaud, de 2
de julho de 1956, que decidiu que a garantia contra a depreciação
monetária deve ser presumida num contrato internacional. Da mesma forma, em uma sentença não publicada, relativa a um litígio entre uma organização internacional e uma sociedade comercial, o
árbitro considerou a presunção de que o signatário de um contrato
tomou conhecimento das condições gerais às quais aí é feita referência, e por outro lado, a sanção do abuso de direito, como regras costumeiras internacionais. Os ‘princípios gerais do direito’ e os ‘usos seguidos na indústria petroleira’ foram, de maneira semelhante, invocados na sentença propalada pelos juízes MM. Sauser-Hall, Hassan e
Saba Habachi, aos 23 de agosto de 1958, para resolver o litígio entre
Aramco e o governo da Arábia Saudita” [tradução nossa].29
E GOLDMAN conclui, da seguinte maneira:
“Os exemplos poderiam ser multiplicados, tirados notadamente das
sentenças prolatadas sob a égide de uma importante instituição de
arbitragem, e que testemunham a busca constante dos árbitros, do
outro lado do conflito, entre as leis estatais, de um direito ‘transnacional’, receptáculo dos princípios comuns aos direitos nacionais,
mas amálgama também das regras específicas tiradas do comércio
28.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
29.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 183-184.
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internacional. Lembramos, enfim, que o lugar que deve ser cedido,
pelo regulamento dos litígios nesse domínio, aos ‘usos do comércio’
foi igualmente marcado – embora bastante timidamente – pela Convenção Européia sobre a Arbitragem Comercial Internacional, assinada em Genebra aos 21 de abril de 1961” [tradução nossa].30
A última constatação que faz é que os contraentes não deixam freqüentemente de convidar os árbitros para julgarem seus litígios, recusando-se a escolher uma
lei estatal para reger as suas relações, até mesmo declarando expressamente que
não querem a tais leis se referir. Mas como também esclarece o Prof. GOLDMAN, “a
despeito de uma confusão tenaz, isto não significa que nos seus espíritos os contraentes querem concluir um ‘contrato sem lei’, nem mesmo que o contrato, considerado como um conjunto de ‘normas individuais’, deva inteiramente bastar-se a si
mesmo; eles sentem, ao contrário, embora confusamente, a necessidade de colocálo no quadro das normas gerais, mas pensam também que essas normas podem ser
encontradas no direito profissional, nos usos ou nos princípios gerais [de direito]
ultrapassando as fronteiras nacionais”.31
A arbitragem, é, assim, um dos instrumentos fundamentais da nova lex mercatoria, e não pode deixar de ser levada em consideração quando se trata de analisar a ordem mercatória sob a ótica do sistema jurídico.32
A efetividade da decisão arbitral não repousa na força do Estado, mas na da
corporação em que se integram as partes litigantes. O vencido que não acatar os
mandamentos do laudo arbitral, de tal corporação será automaticamente excluído,
ante a falta de credibilidade e de confiabilidade que passará a caracterizá-lo perante
os demais atores do comércio internacional.33
Entretanto, nem a constatação material da existência de uma nova lex mercatoria, nem a constatação psicológica da referência que a ela é feita, bastam ao Prof.
30.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 184.
31.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 184-185. Nas palavras do Prof. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES: “A lex mercatoria não
compete com a lei do Estado, nem constitui um direito supranacional que derroga o direito nacional, mas é um direito adotado, sobretudo, na arbitragem comercial internacional ou outra forma de resolução de controvérsias, ad
latere do sistema estatal. Este o sentido e a amplitude da chamada lex mercatoria. Mesmo porque, como notou
CHRISTOPH W. O. STOECKER, os tribunais nacionais não a aceitam como corpo de lei alternativa a ser aplicado em um
litígio. Acatando-a, estaria o Estado abdicando de parte de sua soberania em favor de mãos invisíveis de uma comunidade de mercadores em constantes mudanças. Na verdade, a aplicação da lex mercatoria por juízes nacionais não
é compatível com a própria concepção da lex mercatoria, lastreada no caráter corporativo da comunidade de profissionais ou dos operadores do comércio internacional. Daí o vínculo estreito entre a lex mercatoria e a arbitragem” (“Lex Mercatoria: evolução e posição atual”, cit., p. 43).
32.Cf. PHILIPPE KAHN, “Droit international économique, droit du développement, lex mercatoria: concept unique ou
pluralisme des ordres juridiques?”, cit., p. 106.
33.Cf. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. Op. cit., p. 43. Vide, ainda, PHILIPPE KAHN, “Droit international économique, droit du
développement, lex mercatoria: concept unique ou pluralisme des ordres juridiques?”, cit., pp. 102-103.
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GOLDMAN para conferir a estas normas costumeiras do comércio internacional o caráter de regras de direito, sendo necessário verificar se a nova lex mercatoria é merecedora ou não desta qualificação.
3.3. Os vários métodos de caracterização do direito e a lex mercatoria
Para tanto, BERTHOLD GOLDMAN transita à segunda parte de seu estudo, a
fim demonstrar os diversos métodos que podem ser empregados para caracterizar o direito. Ou seja, sua proposta é verificar quais são os critérios determinadores das condutas humana, as que constituem regras (isto é, que não são seguidas de maneira unicamente espontânea, mas que se deve seguir) e além disso, as que constituem regras jurídicas. Para GOLDMAN, pode-se “definir a regra
de direito por seu domínio ou por seu objetivo – o que vem a ser, de uma ou
outra maneira, a incorporação à sua substância; mas pode-se também qualificála por meio de critérios formais – buscados, deve-se compreender, na sua origem, no seu alcance e na sua utilização”. E é sob este duplo esclarecimento que
GOLDMAN coloca, alternadamente, a experiência descrita anteriormente, para indagar se ela depende ou não do direito.34
A questão crucial de determinar se a lex mercatoria constitui ou não uma ordem jurídica, também é enfrentada por PAUL LAGARDE, para quem tal questão é bastante embaraçosa, pois obriga o intérprete a arriscar uma definição de “ordem jurídica” antes de verificar se a lex mercatoria responde a essa definição. Mas esta primeira questão, para LAGARDE, supondo que ela possa trazer uma resposta pelo menos parcialmente positiva, desemboca infalivelmente em uma outra:
“Se a lex mercatoria constitui uma ordem jurídica, esta ordem coexiste necessariamente com as ordens estatais e com a ordem internacional? Essas ordens mantêm mutuamente relações de coexistência ou de exclusão? Mais precisamente, qual é a atitude das ordens estatais em relação à lex mercatoria? Elas a ignoram, negam
sua existência ou aceitam de lhe ceder um lugar, por quais meios
e em quais condições?” [tradução nossa].35
É sob esse ponto de vista que o assunto deverá ser tratado, de maneira a se
chegar num consenso sobre a viabilidade de se considerar a lex mercatoria como
pertencendo ao domínio do direito, ou ao mundo jurídico.
34.BERTHOLD GOLDMAN. “Frontières du droit et lex mercatoria”, cit., p. 185.
35.PAUL LAGARDE. “Approche critique de la lex mercatoria”, cit., pp. 126-127.
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3.3.1. A separação entre o domínio do direito e o do não-direito
Como se sabe, o domínio do direito separa-se de diferentes maneiras daquele do não-direito, podendo este situar-se além ou aquém do direito.
A primeira constatação que GOLDMAN faz aqui, é que o direito se compõe das
regras do jogo econômico, onde estariam incluídos os princípios, as disposições e
contratos-tipo e os usos seguidos no comércio internacional. Eis sua lição:
“Pode-se primeiramente estimar que o direito se compõe das regras
do jogo econômico – embora esta concepção pareça ter somente
valor estatístico: porque se é verdade que a maioria das normas
jurídicas dizem respeito às relações econômicas, está, entretanto,
claro, que o direito intervém para proteger interesses afetivos ou
morais cuja repercussão patrimonial é nula ou pelo menos muito
indireta. Mas, seja como for, os princípios, as disposições e contratos-tipo e os usos seguidos no comércio internacional, se situam incontestavelmente no domínio econômico, de modo que eles mereceriam, nesse ponto de vista, ser considerados como jurídicos”
[tradução nossa].36
E assim conclui o eminente internacionalista:
“De maneira mais variada – e a nosso ver mais justa – observouse que o círculo da família e os vínculos de amizade, se eles não
são inteiramente impermeáveis ao direito, englobam, entretanto,
amplas zonas de ‘não-direito’, e que pode ser mesmo assim quando as situações que se formam não são desprovidas de toda incidência econômica (como por exemplo nas disposições testamentárias precatórias, ou o transporte gratuito). Ainda aí, tais limitações não poderiam evidentemente excluir as relações comerciais
internacionais do domínio do direito, admitindo mesmo uma certa forma de ‘amizade’ (que deveria, de preferência, chamar-se
‘confraternidade’ ou ‘solidariedade profissional’) que unem os
que aí participam, e explica, entre outros fatores, a observação espontânea de normas não-estatais” [tradução nossa].37
Esta última constatação, entretanto, segundo GOLDMAN, não autoriza concluir
que se submetendo a tais normas, os participantes do comércio internacional teriam
36.BERTHOLD GOLDMAN. Op. cit., p. 185.
37.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 185-186.
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o sentimento de se colocarem em uma situação de puro fato. O exportador de trigo, por exemplo, que vende se referindo a um contrato-tipo da London Corn Trade Association, ou o banqueiro que confirma um crédito documentário segundo as
Regras e Costumes da C.C.I pensa – se está de boa-fé – que deverá seguir as prescrições desses documentos. Para GOLDMAN, eles não se consideram, em absoluto, “à
margem” do mundo jurídico.38
O Prof. GOLDMAN a esse respeito, faz a seguinte indagação:
Mas o caráter ‘amistoso’ das relações comerciais internacionais e
o regulamento pela via da arbitragem das dificuldades que podem
surgir não justificaria considerá-las senão como fenômenos de
‘não-direito’, pelo menos como situando-se além do direito (a menos que esteja aquém)?
Como se lê no primoroso trabalho de BERTHOLD GOLDMAN, sobre este assunto,
RENÉ DAVID escreveu que “a arbitragem é, na sua essência, outra coisa diferente do
direito”; este “visa a fazer reinar a ordem, assegurando a cada um o que lhe é devido (suum cuique) enquanto que aquela é uma instituição de paz... O recurso à arbitragem, tem por objeto restaurar a harmonia entre os interessados, organizar suas
relações para o futuro, muito mais que fixar, voltando-se ao passado, o que é devido a cada um. É o que explica o motivo pelo qual a arbitragem intervém, em particular, nos litígios do comércio internacional” onde ela viria “suprir a ausência do direito verdadeiramente internacional que seria normal aplicar nesse caso”.39
GOLDMAN não concorda plenamente com as afirmações do Prof. RENÉ DAVID, e
justifica o seu ponto de vista nos termos seguintes:
“Nós não podemos concordar plenamente com essas afirmações. A
experiência concreta da arbitragem no comércio internacional
mostra, nos parece, que muito freqüentemente a sentença resolve
um litígio, como o faria uma decisão judicial; e se é verdade que
após a intervenção dos árbitros, os adversários reatam (ou prosseguem) suas relações comerciais mais freqüentemente do que fazem após a intervenção de um tribunal, é antes de tudo porque, no
comércio internacional o amor próprio representa um papel menor que em certas relações cujos juízes estatais têm que conhecer,
e também porque a ausência de publicidade da sentença acelera
a cura das feridas que ele pode receber. Também é verdade que,
quando eles são amáveis compositores, os árbitros estatuem com
38.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 186.
39.Apud. BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
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eqüidade tanto ou mais que um direito; mas eqüidade não é caridade, nem mesmo indulgência – e particularmente no domínio do
comércio internacional ela é, precisamente, em boa parte, a aplicação de costumes que corrigem a rigidez das leis estatais, como a
equity do Chanceler corrigiu primeiramente aquela da common
law do Banco do Rei, para se cristalizar, por sua vez, em seguida.
Sem dúvida, acontece também que os árbitros conciliem as partes
– e se assistirá, em semelhante caso, a um arranjo de suas relações
futuras, acrescentando-se, senão se substituindo para a solução
das dificuldades passadas; somente, não se está mais, então, no domínio do contencioso, e sabe-se já que o contencioso não é todo o
direito” [tradução nossa].40
Como conclui o Prof. BERTHOLD GOLDMAN, é suficiente, em definitivo, para não
admitir que em razão do recurso à arbitragem, o comércio internacional deva ser
considerado como superando o direito, ou como se mantendo à margem dele, deduzir que esse recurso não é uma recusa do contencioso. E parece difícil, para ele,
fazer de outra maneira.41
3.3.2. O comércio internacional não é exclusivamente dominado pelo
suum cuique – dar a cada um o que lhe é devido
O fato de o comércio internacional não ser exclusivamente dominado pelo
suum cuique (dar a cada um o que lhe é devido), pode também colocar em dúvida
o caráter jurídico de seu arranjo, tendo em vista que, segundo a tradição aristotélica, aí está o objetivo a que se destina o direito.
O Prof. GOLDMAN, a esse respeito, se pergunta se o suum cuique não é, mais
uma vez, um princípio de regulamento do contencioso, em vez de arranjo de relações contratuais. Para ele, o juiz tem,
certamente, por missão, conceder a cada qual o que lhe é devido,
mas se atendo, quase sempre, ao que as partes combinaram que
lhe seria respectivamente devido, e que não corresponde necessariamente ao que deveria, na justiça, lhes caber. A justiça positiva,
é o respeito do contrato, não o respeito do equilíbrio das prestações; e na medida em que o árbitro pode, mais freqüentemente que
o juiz, estatuir com eqüidade, é talvez sua justiça que atingirá
mais facilmente o verdadeiro suum cuique.
40.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 186-187.
41.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 187.
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E acrescenta que para BENTHAN, por exemplo,
é o útil, mais que o justo assim compreendido, que é o objetivo da
regra de direito; ora, na medida em que ele permite que as trocas
sobrevivam aos litígios, a arbitragem comercial internacional responde a este objetivo, sem dúvida melhor que o regulamento jurisdicional estatal.42
3.4. Os critérios formais habitualmente utilizados para caracterizar as regras de direito
A conclusão do Prof. GOLDMAN, então, é a de que não é, portanto, o domínio,
nem o objetivo das normas do comércio internacional, que permite considerá-las
como estranhas ao direito. Entretanto, tais normas respondem, igualmente, aos critérios formais habitualmente utilizados para caracterizar a regra de direito? Em outras palavras, as regras da nova lex mercatoria são regras editadas por uma autoridade e contendo uma sanção? Todos aqueles – diz GOLDMAN – que estimam que é
difícil determinar o domínio do direito em um momento de sua história, sem levar
em conta o que é geralmente, senão exclusivamente, considerado nesse mesmo
momento, como dele fazendo parte, julgarão que aí está o teste decisivo.43
3.4.1. A definição de “regra” na concepção de Batiffol e a pretensa
existência de um “conjunto de normas” da lex mercatoria segundo
Paul Lagarde
O primeiro passo do Prof. GOLDMAN, então, para caracterizar, por critérios formais, a lex mercatoria como direito, foi o de definir o conteúdo do termo regra, e
para tanto, tomou emprestada a conceituação, àquele tempo ainda inédita, de BATIFFOL, para quem uma regra “é uma prescrição de caráter geral, formulada com uma
precisão suficiente para que os interessados possam conhecê-la antes de agir”.44
E a esse respeito o Prof. GOLDMAN assim leciona:
“Admitiremos, sem dificuldade, que as cláusulas dos contratostipo, ou os usos codificados correspondem a esta definição, pelo
menos no que concerne à generalidade, à precisão e à publicidade. A hesitação é, sem dúvida, permitida quanto trata-se das ‘regras’ costumeiras do comércio internacional, como aquelas das
42.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
43.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
44.Apud. BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 187-188.
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quais nós citamos alguns exemplos: se se pode, notadamente, considerar que a sanção do abuso de direito ou a oponibilidade das
cláusulas impressas têm sido realmente tiradas pelo árbitro de um
fundo comum preexistente e conhecido, senão formulado com precisão, é mais difícil de admiti-lo, por exemplo, para a presunção
de garantia de troca nos contratos internacionais. Mas, para dizer
a verdade, a dificuldade não é específica às normas do comércio
internacional. Ela se encontra cada vez que o juiz passa insensivelmente da interpretação de uma regra preexistente – escrita ou
não, mas certa e conhecida, ou pelo menos conhecível – para a
elaboração de uma regra nova; em resumo, para contestar o caráter de regras às normas ou princípios extraídos pelos árbitros do
comércio internacional, poder-se-ia também recusá-los para a
‘presunção de responsabilidade’ do guarda, da qual ninguém sustentará que ela foi extraída do Código Civil. Dir-se-á que estas normas ou princípios são menos conhecidos que as soluções constantes da jurisprudência estatal? A observação é exata, mas não revela uma diferença fundamental, porque as soluções arbitrais não
são realmente ignoradas no meio profissional ao qual elas dizem
respeito” [tradução nossa].45
A indagação que GOLDMAN coloca aqui é a seguinte: de onde vem, entretanto,
que se decide mal, sob o ângulo da regra, em equiparar inteiramente estas normas
às leis ou aos costumes dependendo de uma ordem jurídica estatal?
a) Segundo GOLDMAN, inicialmente pode-se hesitar em admitir que as regras da
lex mercatoria sejam efetivas prescrições – porque esta noção implica na de comando. As cláusulas dos contratos-tipo ou os usos codificados não se impõem às partes, poderia se pensar, em virtude de sua livre adesão; e esta não é, ela própria, constrangida
senão em virtude de uma lei estatal – o artigo 1.134 do Código Civil francês, e os textos correspondentes nos outros países. Para ele, encontra-se aqui “a objeção precedentemente reservada, que recusaria às normas estudadas, o caráter de regras (partindose das regras de direito) porque a abstração mesmo feita com toda a investigação de
uma sanção, elas são, em si, radicalmente incapazes de comandar”.46
Mas tal objeção, para o Prof. BERTHOLD GOLDMAN, não é sem réplica. Nas suas
palavras:
“Por um lado, a experiência concreta do comércio internacional
parece realmente estabelecer que de fato, ‘os pequenos são obriga45.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 188.
46.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
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dos a seguir as regras estabelecidas pelos grandes’ – em outros termos, que a maioria das empresas deverão realmente, se elas querem participar do comércio internacional, adotar os contratostipo elaborados pelas organizações profissionais ou pelas maiores
empresas do seu ramo de atividade. Por outro lado, de um ponto
de vista menos rasteiro, não é de modo algum correto que as partes em um contrato internacional observem suas cláusulas (elas
próprias emprestadas de um contrato-tipo) porque cada qual estima que sua lei estatal da qual ela depende a constrange, nem que
seja por referência mais ou menos implícita a uma tal lei estatal
que árbitros imporão eventualmente o respeito; encontra-se, de
certo modo, tanto em uns como nos outros, a consciência de uma
regra comum do comércio internacional, muito simplesmente expressa no adágio pacta sunt servanda. E pouco importa, para nosso propósito, que esse adágio coincida com as regras estatais do
tipo do artigo 1.134 do Código Civil; porque se é dele que os contratos-tipo e os usos codificados emprestam sua força constrangedora,
eles são prescrições, da mesma maneira que as regras supletivas de
um direito interno” [tradução nossa].47
b) Na seqüência de seu raciocínio, o Prof. GOLDMAN faz a seguinte colocação:
“Permanece, entretanto, que a existência, hipoteticamente admitida, de uma regra
comum pacta sunt servanda não basta para conferir ao conjunto das normas do comércio internacional, no estágio atual de seu desenvolvimento o caráter de um sistema de direito”. E conclui:
Assim, por exemplo, não se encontrará regras relativas à capacidade dos contraentes, ou aos vícios do consentimento – cuja necessidade é, além do mais, bastante teórica; mas, praticamente, a medida
dos poderes dos órgãos ou dos representantes de uma sociedade comercial é determinada de maneira variável pelas diversas leis estatais, sem que se aperceba como uma regra costumeira comum poderia unificá-las; a mesma observação vale para a prescrição liberatória, e se poderia dizer sem dúvida lhe encontrar outras ilustrações.48
Está provavelmente aí – segundo ele – a segunda explicação do mal-estar que
se prova querendo assimilar completamente as normas das quais se trata para regras
de direito. Ela procede do sentimento mais ou menos definido de que somente é
47.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 188-189.
48.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 189.
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verdadeira regra de direito aquela que se integra em um sistema completo e que se
basta a si mesma. A regra isolada, para GOLDMAN, parece capenga, devendo apoiar-se
em uma muleta buscada em uma ordem diferente.
A conclusão que chega o então professor da Faculdade de Direito de Paris,
aqui, é a seguinte:
“Tomar partido nessa exigência suplementar da definição do direito, ultrapassaria o quadro dessas observações. Notemos somente que ela não impediria que em si, cada norma específica do comércio internacional tivesse realmente as características de uma
regra; é somente seu conjunto que não formaria um sistema de direito. Mas observamos também que uma concepção monista da ordem jurídica das relações econômicas faria desaparecer a objeção: admitiria-se então, que um contrato do comércio internacional seja submetido às suas próprias regras, ultrapassando as fronteiras dos Estados eventualmente completadas por regras estatais.
E é aqui o momento de acrescentar que sendo obra de árbitros internacionais, a designação destas regras estatais poderia progressivamente ser feita em virtude de um sistema de solução dos conflitos ele mesmo comum, em vez de ser fundada sobre o direito internacional privado de um país determinado, mas cuja escolha
não é jamais isenta de arbitrariedade” [tradução nossa].49
A conclusão aqui, é no sentido de que “o caráter de regras não pode ser recusado aos elementos constitutivos da lex mercatoria”, embora esta ainda não forme um sistema inteiramente autônomo.
O Prof. PAUL LAGARDE, toma emprestado esta concepção de “ordem jurídica”
dos defensores da lex mercatoria, para posteriormente tecer suas críticas a esse sistema. Para ele, não são todas as normas da lex mercatoria que merecem ser qualificadas como “regras jurídicas”, a exemplo de algumas cláusulas contratuais como a
de “força maior” ou hardship, e também algumas combinações contratuais novas,
como as euro-emissões e os eurocréditos, dos quais o Sr. GOLDMAN escreveu que a
“repetição e a efetividade” tornariam previsíveis a aparição de “um sistema jurídico
novo e transnacional apto a chegar à objetividade”.50
Na lição do Prof. LAGARDE:
“Se se coloca de lado certos contratos-tipo, cujas condições gerais
se aparentam com uma regulamentação profissional, é difícil de
49.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
50.Apud. PAUL LAGARDE. “Approche critique de la lex mercatoria”, cit., pp. 128-129.
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não ver em tais cláusulas ou de tais combinações contratuais, por
mais interessantes que elas sejam, o simples uso pelas partes de
sua liberdade contratual. Consciente da objeção, o Sr. GOLDMAN a
afasta pondo em relevo que as normas concretas escolhidas no
exercício dessa liberdade são buscadas fora de um direito estatal,
e em oposição ao argumento da repetição e da efetividade. A resposta não convence senão pela metade. Para a afirmação da repetição dessas cláusulas pode-se opor a grande variedade das fórmulas utilizadas, que torna difícil uma generalização das soluções. E, mesmo supondo que seja constatada a repetição de cláusulas substancialmente idênticas, esta repetição não implica a
existência de uma regra de direito material da lex mercatoria”
[tradução nossa].51
O exemplo dado pelo Prof. PHILIPPE KAHN das
cláusulas de estabilização da legislação apresentadas nos contratos de investimento concluídos nos anos 60 com os Estados africanos, mas que não são mais aceitas hoje por esses mesmos Estados,
leva à maior reserva. Enfim, se não se pode negar que os agentes
do comércio internacional procuram sempre sua inspiração fora
dos direitos estatais, e organizam uma rede de direitos e obrigações que os direitos estatais abandonam o mais freqüentemente à
sua autonomia, não resulta necessariamente que o arranjo assim
realizado por uns, fossem os mais numerosos ou os mais importantes, tenha valor de norma para os outros.52
A conclusão a que chega o Prof. LAGARDE, é a de que caso se pretenda conservar para a expressão lex mercatoria um sentido pleno, isto é, considerada como
uma ordem jurídica não estatal, é preciso cuidar para não qualificar de “elemento”
da lex mercatoria o que poderia ser somente uma simples prática contratual internacional.53
Mas a lex mercatoria pode ser entendida como um “conjunto de normas” formadoras de um sistema jurídico. Em trabalho publicado em 1979, BERTHOLD GOLDMAN chegou a afirmar que “a lex mercatoria preenche realmente a função de um
conjunto de regras de direito”. A diferença entre esta afirmação e a doutrina contida no artigo anterior, de 1964, objeto deste estudo, teria consistido, segundo PAUL
51.PAUL LAGARDE. Idem, p. 129.
52.PAUL LAGARDE. Idem, pp. 129-130.
53.PAUL LAGARDE. Idem, p. 130.
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LAGARDE, “na absorção pela lex mercatoria dos princípios gerais do direito no sentido do art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. E como esses princípios
cobrem o conjunto do direito das obrigações contratuais e extra-contratuais e do
procedimento, a lex mercatoria que os utiliza teria, portanto vocação para reger o
conjunto dessas questões e mereceria, então, o caráter de ordem jurídica no sentido de conjunto organizado de normas, salvo algumas exceções pouco significativas
como a capacidade ou os vícios do consentimento”.54
Esta demonstração, da maneira com que foi colocada a questão, permitiria aos
“princípios gerais do direito” fazer nascer a lex mercatoria, permitindo aos árbitros,
quando chamados a resolver os litígios dela advindos, deduzir desses princípios gerais, cuja positividade estaria garantida pelo art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, as soluções a serem dadas ao caso concreto, na ausência de regras
precisas advindas da prática espontânea dos agentes do comércio internacional.55
O Prof. LAGARDE leciona no sentido de ser bastante difícil admitir que os princípios gerais do direito internacional, possam, assim, passar por um tipo de osmose, do direito internacional para a lex mercatoria, como pretendido pelo Prof. BERTHOLD GOLDMAN. Eis sua lição:
“Se a lex mercatoria constitui um conjunto de regras, este conjunto
é distinto daquele constituído pelo direito internacional. Não é
porque os princípios do direito internacional – como aliás os das
ordens jurídicas estatais – derivam de categorias comuns, que se
deve reconhecer um caráter de positividade a tudo o que poderia
ser deduzido desse fundo comum. A positividade dos princípios do
direito internacional, como a dos princípios dos direitos estatais,
se configura porque esses direitos são, eles próprios, direitos positi54.PAUL LAGARDE. Idem, ibidem. Como destaca o Prof. LAGARDE: “Deve-se observar bem o raciocínio pelo qual esta
anexação dos princípios gerais à lex mercatoria se encontra realizada. Por diversas vezes, em seu artigo de 1979, o
Sr. GOLDMAN afirma que os princípios gerais, no sentido do art. 38 [do Estatuto da CIJ] são um elemento constitutivo da lex mercatoria. A dificuldade existe, evidentemente, porque esses princípios gerais são os do direito internacional tal como o encara o dito art. 38, portanto de uma ordem jurídica cujos sujeitos principais são os Estados e
não os agentes do comércio internacional. E de fato, o Sr. GOLDMAN recusa a idéia como as empresas privadas pretendiam se referir, ‘de maneira precisa e limitativa, ao art. 38 do Estatuto da Corte, texto de direito internacional
público para o qual sua atenção sem dúvida não está geralmente propensa’. Mas deve-se acrescentar logo que, ‘esses princípios (...) se inserem realmente nesse direito econômico comum que forma, precisamente, a lex mercatoria, e na verdade o dominam’. A prova dela seria que esses princípios do art. 38 são tirados do direito das obrigações e do direito processual, em resumo, do que faz a trama das relações de comércio internacional. Em outros termos, os princípios gerais do direito internacional, do qual não se pode negar o caráter positivo, uma vez que eles
são consagrados pelo art. 38, derivariam eles próprios dos princípios de um direito econômico comum cuja sociedade internacional tomaria progressivamente consciência, pela jurisprudência internacional propriamente dita, enriquecida por aquela dos tribunais arbitrais de direito privado” [tradução nossa] (Op. cit., p. 131).
55.PAUL LAGARDE. Idem, p. 131.
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vos. Parece difícil afirmar que os princípios gerais da lex mercatoria têm valor de direito positivo, se previamente não se colocou que
a lex mercatoria constituía uma ordem jurídica positiva. Ora, seria
necessário para aí chegar, um outra demonstração quanto à realidade positiva desses mesmos princípios” [tradução nossa].56
Na realidade, o que ocorre é que, na maioria dos contratos internacionais, em
especial nos de investimento, a parte privada teme que o Estado co-contratante
aproveite de seu poder legiferante, para alterar suas normas de direito internacional
privado, no sentido de sempre beneficiar-se, daí advindo a necessidade de se “corrigir” esse direito pelos “princípios gerais” do contrato internacional. O que se pretende, então, é alçar essa situação jurídica nascida de um contrato ao nível do direito internacional público, cujas prescrições se impõem aos Estados diretamente. E
neste caso já se fala na existência de um sistema jurídico completo e autônomo, superior às ordens jurídicas nacionais, cujo conteúdo (ainda incerto) é deduzido de
tais “princípios gerais”.
A crítica de LAGARDE, aqui, é no sentido de que o que foi dito acima
não poderia encontrar aplicação em um litígio, em resumo, banal, entre pessoas privadas, onde não existe nenhum temor de ver
um dos dois Estados, cuja lei é potencialmente aplicável, modificar
sua legislação para vir, no caso particular, ao socorro de seu súdito, e em que por conseguinte, não pode ser avançado nenhum
motivo legítimo para recorrer a um direito internacional cujas
prescrições seriam superiores àquelas dos direitos nacionais.57
A conclusão, aqui, é no sentido de que a abordagem da lex mercatoria pela
noção de “regras” conduz a um resultado bastante modesto, decorrente da concepção medíocre da ordem jurídica da qual se partiu para os desenvolvimentos que precederam. Assim, frustrado esse objetivo, LAGARDE acredita ser mais útil inverter a ordem da pesquisa e examinar doravante se a lex mercatoria, ou melhor, a societas
mercatorum constitui uma estrutura social capaz de produzir suas próprias normas.
Partindo-se da concepção institucional de “ordem jurídica” de SANTI ROMANO,
percebe-se que o Estado não é o único tipo de ordem jurídica. A ordem jurídica da
Igreja Católica é um exemplo bastante expressivo disso. E SANTI ROMANO, segundo LAGARDE, admite que uma sociedade revolucionária ou uma associação de assaltantes
à mão armada, até mesmo uma seita cismática (aqueles que se separam da comunhão de uma igreja), podem também constituir instituições, organizações que, iso56.PAUL LAGARDE. Idem, p. 132.
57.PAUL LAGARDE. Idem, p. 133.
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ladamente e intrinsecamente consideradas são “jurídicas”, mesmo se elas são rejeitadas e consideradas como ilícitas pelas ordens jurídicas estatais ou eclesiásticas,
contra as quais elas se levantam e pretendem destruir. A partir do momento em que
existe este elemento de organização social, diz LAGARDE, há ordem jurídica, mas este
elemento é irredutível: “uma classe ou camada social, não organizada como tal, mas
resultando de uma simples afinidade entre as pessoas que dela fazem parte, não é
uma sociedade no sentido próprio” e não pode constituir uma ordem jurídica.58
Segundo o eminente internacionalista:
“Mede-se o proveito que os partidários da lex mercatoria poderiam
tirar dessa análise da ordem jurídica. Em lugar de se engajar na
difícil demonstração da natureza de regra jurídica e do caráter
sistemático dos elementos esparsos da lex mercatoria, era-lhe suficiente constatar a existência desta societas mercatorum para dela
deduzir que esta, a partir do momento em que ela se organiza, torna-se uma ordem jurídica. A ordem jurídica da lex mercatoria não
seria deduzida da existência das normas; é a virtualidade [potencialidade] de normas que decorreria de existência da ordem jurídica. E essa tentativa deveria ser tanto mais fácil quanto a prova
da existência da instituição é a prova de um simples fato. Santi Romano escreve do Estado, mas o faria também de qualquer outra
ordem jurídica que ‘ele não encontrasse sua origem em um procedimento regulado por normas jurídicas, mas em um fato… Ora,
apenas este fato está terminado, apenas o Estado está efetivamente em vida, que o direito é. A norma pode então nascer. Não é portanto esta que, em primeiro lugar estabelece o direito, ela não é senão uma manifestação mais tardia, subsidiária. Aliás, se não
pode haver direito antes nem fora da instituição, é falta precisamente de uma organização para tornar jurídica a norma’. O objeto da demonstração deveria ser, portanto, de um lado, a prova
da existência de uma ‘sociedade dos comerciantes’ e por outro
lado, da organização desta” [tradução nossa].59
Para LAGARDE, enfim, não há uma verdadeira “organização” no pretenso sistema jurídico da lex mercatoria, mas tão-somente ilhotas de organização que aparecem no cenário do comércio internacional, mas não uma organização única.60
58.PAUL LAGARDE. Idem, pp. 134-135.
59.PAUL LAGARDE. Idem, p. 135.
60.Cf. PAUL LAGARDE. Idem, p. 140.
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3.4.2. A lex mercatoria como regra jurídica emanada de uma autoridade
Resta saber, então, se as regras da lex mercatoria são jurídicas pela sua origem, ou seja, se emanam de uma autoridade. Para o Prof. BERTHOLD GOLDMAN:
“Colocar a questão é postular que uma tal ‘proveniência’ é indispensável para que uma norma seja jurídica – e este postulado não
é universalmente admitido. As escolas históricas do direito vêem
neste um fenômeno espontâneo, nascido do ‘espírito do povo’
(Volksgeist); e a escola sociológica, vê um fato social. E parece efetivamente difícil unir indissoluvelmente direito e autoridade: não
se chegaria assim a negar que o direito costumeiro seja [parte] do
direito, ou pelo menos a não lhe reconhecer este caráter senão a
partir do momento em que ele é consagrado por uma aplicação
judiciária, o que seria de novo confundir direito e contencioso? A
mesma observação valeria para amplos setores do direito internacional público – que se hesita, entretanto, a considerar sempre
como estranhos ao domínio do direito” [tradução nossa].61
E continua este mesmo jurista dizendo o seguinte:
“De resto, as cláusulas dos contratos-tipo, como os usos codificados
do comércio internacional não são, em seu estado atual, frutos de
uma elaboração espontânea, mas sim de uma ‘edição’, ou de uma
constatação ‘informadora’. Estas emanam, o mais freqüentemente, de organismos profissionais que não são certamente autoridades públicas (embora, no caso importante dos contratos-tipo da Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas, seja a instituição internacional suprema que tenha suscitado e orientado sua
elaboração); mas os ‘operadores’ do comércio internacional não
as consideram como menos qualificadas para definir suas normas. Ora, admitindo mesmo que para merecer, sem reserva, o
qualificativo de ‘jurídico’, uma regra deva ter sido editada ou formulada por uma autoridade – ou pelo menos que um conjunto de
regras permaneceria à margem do direito se nenhuma delas tivesse uma tal origem – semelhante condição somente se justificaria
porque ela traduziria, com outras (a precisão, a generalidade, a
publicidade e a sanção) a necessidade de certeza, de previsibilida-
61.BERTHOLD GOLDMAN. “Frontières du droit et lex mercatoria”, cit., p. 190.
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de e de efetividade da regra do direito. Mas seria então satisfeito,
entretanto, que a regra seja obra de uma autoridade profissional,
ou de uma autoridade pública” [tradução nossa].62
Apesar de ser verdade que numerosos contratos-tipo são obra singular de
uma única empresa, suficientemente poderosa para impô-los aos seus co-contraentes, não se pode considerar, segundo GOLDMAN, que as cláusulas de tais documentos emanam de uma autoridade exterior aos contratos concluídos pela própria empresa; e fica difícil admiti-la, mesmo que um tal contrato-tipo seja utilizado em contratos particulares aos quais esta empresa permaneceria estranha. E isto porque,
por mais poderosa que ela seja, esta pode, com efeito, ser considerada como uma força na profissão, mas não como uma autoridade profissional. Quando muito se admitirá que uma ampla difusão de um tal contrato-tipo poderia conferir com o decorrer do
tempo, às suas cláusulas, o caráter de regras costumeiras, buscando sua efetividade no consensus da profissão; mas exemplos de
uma tal evolução parecem ter sido pouco citados.63
Nas palavras do Prof. BERTHOLD GOLDMAN:
“De maneira mais geral, uma outra reserva poderia ser empregada para uma qualificação ‘jurídica’ das normas profissionais,
mesmo emanando de órgãos representativos ou de associações:
afirmou-se, com efeito, que elas não seriam de toda maneira aplicadas, em cada país, a não ser que a autoridade pública desse país
admita a sua aplicação. Fontes juris originais por sua proveniência material, as novas “fontes do direito comercial internacional”
não o seriam se se considera o poder de comando que elas manifestam”.
Ainda segundo ele:
“Ao nível da aplicação não contenciosa das normas, esta afirmação parece muito discutível; ela retomaria, efetivamente, nos parece, sua ‘fixação’ já contestada em uma regra de liberdade contratual dependendo de uma ordem jurídica interna. A menos que
se sustente que, mesmo uma regra comum pacta sunt servanda não
62.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
63.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
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poderia ser seguida senão porque cada Estado quer realmente admiti-la, em seu território; mas é bom levar em conta a psicologia
dos que a aplicam e também, recusar a hipótese de um direito comercial internacional porque excluiu-se dela, antecipadamente
essa possibilidade” [tradução nossa].64
A conclusão do Prof. GOLDMAN, aqui, é no sentido de que não é seguro que tal
observação esteja fundada em relação à aplicação contenciosa das normas pelos árbitros do comércio internacional. Para ele, a experiência ensina que estes não agem
no interior de uma ordem jurídica estatal, mas se colocam, ao contrário, imediatamente, no nível da comunidade internacional dos comerciantes.65
3.4.3. A lex mercatoria dispõe de meios para assegurar o cumprimento e
aplicação de suas normas?
Há ainda um último elemento formal que se diz necessário para caracterizar
as regras de direito. Trata-se da sanção, meio através do qual as regras de direito
exigem o seu fiel cumprimento por parte dos destinatários da norma.
Bastaria, para retirar da lex mercatoria o ser caráter “jurídico”, a alegação de
que, no caso de desrespeito das normas do comércio internacional – ou mais exatamente da sentença arbitral que dela faz aplicação – por uma das partes contratantes, seria indispensável a parte prejudicada socorrer-se da força pública de um direito interno estatal, tendo em vista não existir no cenário comercial internacional uma
força cogente que obrigue a parte cumprir com sua obrigação.
Seria isto verdade? Para GOLDMAN, a observação é parcialmente inexata e o seu
alcance ainda permanece discutível. Nas suas palavras:
“A experiência prova, com efeito, ainda aqui, não somente que as
sentenças arbitrais são na maioria das vezes executadas espontaneamente, o que já atestaria a efetividade das regras que elas colocam em prática se fossem despojadas de sanções aplicáveis pela
coletividade dos comerciantes; mas também que tais sanções existem. Um notável inventário delas foi recentemente preparado: encontram-se aí, notadamente, sanções disciplinares aplicadas pelos
agrupamentos corporativos, a sanção de ordem moral (mas com
repercussão profissional e material) consistindo na publicidade
da sentença, as sanções diretamente profissionais como a eliminação de uma bolsa de comércio ou de algumas operações comer64.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 190-191.
65.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 191.
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ciais, [e] até mesmo as sanções pecuniárias garantidas por consignações prévias. Certamente – salvo às do último tipo, praticamente limitadas, parece, à cobrança de despesas da arbitragem – estas
diversas ‘sanções’ são, de preferência, meios de assegurar indiretamente a execução da sentença do que procedimentos de execução
forçada propriamente ditos; mas que elas sejam primeiramente
cominatórias não devem dissimular seu caráter praticamente
coercitivo. Será conveniente, também, que a licitude de algumas
dentre elas possa ser discutida, e foi efetivamente recusada pelos
tribunais, em particular na França; mas essas dificuldades dizem
respeito, na maioria das vezes, às modalidades de aplicação das
sanções profissionais em lugar de seu próprio princípio” [tradução
nossa].66
E GOLDMAN continua, dizendo o seguinte:
“Permanece que em algumas hipóteses – estatisticamente raras –
a execução da sentença arbitral aplicando as normas próprias do
comércio internacional não poderá ser obtida senão pela intervenção da força pública. Mas nós não pensamos que isso deixe essas próprias normas fora do direito; porque precisamente, essa última sanção lhes é realmente concedida salvo se elas apareçam,
através da sentença, como contrárias à ordem pública do país em
que a execução é requerida. Elas não permanecem, por conseguinte, desprovidas de sanção – e pode-se somente dizer que elas
devem algumas vezes, para obtê-la, fazer um apelo a uma ordem
jurídica estatal em relação a qual elas se pretenderiam autônomas” [tradução nossa].67
O que se conclui, então, é que a sanção pretendida na lex mercatoria existe,
apenas não é idêntica àquela conhecida pelo direito interno estatal, como meio para
se fazer valer o respeito aos mandamentos de suas regras jurídicas.
Aqui se encontra, então, a dificuldade vinda do fato de que a lex mercatoria
não é um sistema jurídico completo, e acrescenta-se, também, que ela não diz respeito a uma coletividade politicamente organizada, que só pode ser dotada de uma
força coercitiva irresistível. Mas isso não é suficiente – segundo GOLDMAN – para
constatar que pelo menos algumas das normas que a compõem – e em verdade todas, com exceção dos contratos-tipo emanados de empresas isoladas – são realmen66.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 191-192.
67.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 192.
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te “regras gerais de direito”, e não simples normas individuais presas a uma regra estatal que reconhece força obrigatória aos contratos. Tampouco se pode desconhecer – ainda segundo GOLDMAN – o seu movimento em direção a uma sistematização
certamente incompleta, mas crescente.68
4.
A CONCLUSÃO DE BERTHOLD GOLDMAN SOBRE AS NORMAS DA
NOVA LEX MERCATORIA
A conclusão a que chegou GOLDMAN em seu primoroso trabalho, foi a de que
a lex mercatoria situa-se, tanto substancial como formalmente, no domínio do direito, tendo ainda a finalidade de cuidar para que os interesses que ela persegue
para sua satisfação permaneçam suficientemente equilibrados para garantir a legitimidade de suas prescrições.
Eis as suas palavras:
“La lex mercatoria se situe donc bien, substantiellement comme formellement, dans le domaine du droit; il reste encore à veiller à ce
que les intérêts dont elle poursuit la satisfaction demeurent suffisamment équilibrés pour garantir la légitimité de ses prescriptions.
Mais ceci, aurait dit KIPLING, est une autre histoire”.69
Sem embargo das críticas que podem ser formuladas às suas concepções,
muitas delas já expressadas pelo Prof. PAUL LAGARDE, o certo que é a doutrina da nova
lex mercatoria teve o seu surgimento, em 1964, com o trabalho de BERTHOLD GOLDMAN, intitulado “Frontières du droit et lex mercatoria”, publicado nos Archives de
Philosophie du Droit, n.º 09, onde detectou ele a existência desse direito costumeiro internacional, nascido das práticas comerciais internacionais, liberto e desvinculado de qualquer fronteira estatal.
A partir daí, GOLDMAN lança as bases para uma ardente e profunda discussão,
ainda longe de encontrar o seu fim, sobre a nova lex mercatoria e sua caracterização como fonte do direito do comércio internacional.
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO
Pelo paralelo que pôde ser feito entre as concepções de BERTHOLD GOLDMAN e
PAUL LAGARDE acerca da nova lex mercatoria, em primeiro lugar pode-se concluir
que esses usos e costumes comerciais internacionais são, efetivamente, a grande
fonte do direito do comércio internacional contemporâneo, isto não significando,
68.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
69.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.
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entretanto, que a nova lex mercatoria deva se manter afastada de toda e qualquer
normatividade estatal.
Em segundo plano, pode-se concluir, junto ao Prof. ROBERTO LUIZ SILVA, que a
arbitragem não pode ser imposta por uma associação de profissionais a todos os
atores do comércio internacional, sendo necessária não só “a autorização das partes
para se constituir um tribunal arbitral, mas também, em última instância, o consentimento estatal”, de forma que, para a lex mercatoria ser considerada um “sistema
jurídico”, deve ser ela “positivada não só pela jurisprudência, mas também por tratados ou leis nacionais”. Um comércio internacional “com regras criadas diretamente pelos atores, sem conteúdo necessariamente jurídico, torna-se alvo de especulações político-econômicas e financeiras”.70
É inegável, entretanto, que o cenário internacional, atualmente, favorece o
processo evolutivo de formação de regras uniformes do comércio internacional. Várias são as organizações privadas internacionais que trabalham para a unificação do
direito do comércio internacional e para a harmonização dos vários e diferentes direitos nacionais. Dentre elas, está o Institut International pour l’Unification du
Droit Privé (UNIDROIT), fundado em Roma, em 1926, com o objetivo de preparar,
gradualmente, a adoção de uma legislação de direito privado uniforme pelos diversos Estados. Não se pode esquecer, também, do extraordinário papel desempenhado pela Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (UNCITRAL – United Nations Commission on International Trade Law), fundada em
1968, também nesse mesmo sentido. Ambas organizações exercem papel preponderante no sentido de unificar as regras uniformes do comércio internacional, regras
essas que igualmente compõem a nova lex mercatoria.71
A nova lex mercatoria emerge, então, como um conjunto de regras escritas
ou não, levadas a efeito pela comunidade internacional dos comerciantes, com vistas a assegurar a regência das relações internacionais do comércio, pretendendo es70.ROBERTO LUIZ SILVA. Direito internacional público, cit., p. 29. Cf. também, HERMES MARCELO HUCK, Sentença estrangeira e “lex mercatoria”: horizontes e fronteiras do comércio internacional, cit., p. 118.
71.Cf. BEAT WALTER RECHSTEINER. Direito internacional privado: teoria e prática, 4.ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 62-64. Como destaca este mesmo autor: “Para os adeptos da Lex Mercatoria, as regras uniformes,
elaboradas por essas organizações, compõem, igualmente, a Lex Mercatoria. Os Estados que as reconhecem e as
incorporam nas suas legislações internas, estão diretamente vinculados a elas. Quanto às outras regras uniformes,
desenvolvidas principalmente pelos próprios agentes do comércio internacional, à primeira vista, parecem ter existência à margem das legislações estatais. Examinando-as mais de perto, porém, verifica-se que os diversos direitos
estatais não excluem a aplicação das regras da Lex Mercatoria dentro do seu âmbito, reconhecendo às partes uma
ampla liberdade na formação de suas relações jurídicas, além de levar em consideração os usos e costumes comerciais, para atribuir-lhes eficácia jurídica perante a ordem jurídica interna. Por essas razões, segundo nosso entendimento, a Lex Mercatoria não pode existir totalmente desvinculada do regime jurídico estatal, como aliás sustenta
grande parte da doutrina. Ela está ligada, necessariamente e sempre, ao ordenamento jurídico de um determinado
Estado que tutela os interesses de toda a coletividade, e não só ao dos integrantes de um grupo, tais como os agentes do comércio internacional” (Op. cit., p. 60).
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tar acima da legislação interna dos Estados, já que, para a resolução dos conflitos
que dela surgem, as regras do direito estatal são ainda bastantes insatisfatórias. Além
do mais, para os adeptos da nova lex mercatoria tais regras do direito interno dos
Estados são bastantes incertas e imprevisíveis, o que não se coaduna com a dinâmica das relações comerciais internacionais, principalmente nesses novos tempos de
globalização.
De outra banda, há os que defendem a estrita vinculação da nova lex mercatoria ao direito interno estatal, sob pena de se conceder parte da soberania do Estado às mãos invisíveis de uma inconstante comunidade de comerciantes, que faz a
lei de acordo com suas conveniências e necessidades particulares.
Na lição do Prof. HERMES MARCELO HUCK:
“Um corpo supranacional de regras jurídicas, desvinculado de qualquer Estado soberano, a regular as relações comerciais internacionais, conflita frontalmente com o curso atual da história, ainda
marcada pela tendência codificadora nascida nos séculos XVIII e
XIX. Não se pode imaginar um direito desvinculado da história. A
busca da interação social, econômica e política é uma resposta moderna e democrática para uma sociedade internacional transparente, sem castas dominantes, apta a livremente criar regras, independentemente de imposições ou coações. Um direito de classe, aplicável a todas as relações comerciais internacionais, sem o resguardo do Estado, ainda que com inegável vantagem utilitária, é, num
primeiro momento, a negação daquela resposta democrática”.72
Toda a dificuldade está, como se vê, na compatibilização das regras da nova
lex mercatoria com os vários direitos internos estatais, a fim de se evitar o predomínio exclusivo das leis de mercado, e a conseqüente e inevitável especulação dele
advinda. Deve-se tratar o assunto com realismo, e não fantasiosamente, observandose as prescrições do direito interno estatal, que não pode ficar à margem da sociedade dos international merchants, que estão sempre em busca de suas conveniências particulares.73
72.HERMES MARCELO HUCK. Sentença estrangeira e “lex mercatoria”: horizontes e fronteiras do comércio internacional, cit., pp. 104-105. Em sentido contrário, vide JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO, que bem resume o pensamento atual em favor da nova lex mercatoria, quando leciona que “a característica do comércio internacional hoje
é a regulação de relações econômicas por meio de um processo normativo desencadeado na própria classe dos comerciantes ou agentes do comércio internacional” (Fundamentos da arbitragem do comércio internacional. São
Paulo: Saraiva, 1993, p. 89).
73.Cf. HERMES MARCELO HUCK. Sentença estrangeira e “lex mercatoria”: horizontes e fronteiras do comércio internacional, cit., pp. 120-121.
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6.
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A determinação jurídica da liberdade de
estabelecimento no Mercosul
Robson Zanetti
Mestre e doutorando em Direito Comercial pela Universitè de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne).
Especialista em Direito Comercial pela Università Statale degli Studi di Milano.
Uma das questões bastante complicadas surgidas no Mercosul se refere à determinação do direito ou liberdade de estabelecimento, porque não existe um posicionamento claro sobre sua existência no Tratado de Assunção.
Em virtude desta obscuridade, o Tratado nos lança o desafio de buscarmos
uma interpretação convincente de sua existência. Assim, para determinarmos a base
legal da liberdade de estabelecimento no Mercosul é preciso avaliarmos quais são as
fontes de direito que dão sustentabilidade à circulação das pessoas independentes
neste Mercado (A) para, posteriormente, avaliarmos as condições necessárias para
se atingir o almejado mercado comum do sul (B).
A - AS FONTES DE DIREITO EM MATÉRIA DE ESTABELECIMENTO
O Protocolo de Ouro Preto, firmado em 1994, estabelece, em seu artigo 41, de
forma exemplificativa, as fontes de direito no Mercosul. Estas fontes também são
aplicadas em matéria de estabelecimento e, assim, estão indicadas:
I - O Tratado de Assunção, seus protocolos e os instrumentos adicionais ou complementares;
II - Os acordos celebrados no âmbito do Tratado de Assunção e
seus protocolos;
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III - As decisões do Conselho do Mercado Comum, as Resoluções do
Grupo de Mercado Comum e as Diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul, adotadas desde a entrada em vigor do Tratado de
Assunção.
A liberdade de estabelecimento no Mercosul tem como marco inicial o Tratado de Assunção, o qual estabelece a possibilidade da livre circulação dos fatores produtivos no Mercosul (a). A partir desta previsão, novas disposições legais surgem
para impulsionar a realização efetiva desta liberdade (b).
a) A circulação de fatores produtivos conforme o Tratado de Assunção
O artigo 1º do Tratado de Assunção estabelece que o Mercosul implica:
“A livre circulação de bens, serviços, e fatores de produção entre os Estados...”;
A liberdade de estabelecimento constitui-se numa etapa posterior à união
aduaneira e ao comércio de serviços. A doutrina entende que ela forma, juntamente com a liberdade de circulação de trabalhadores dependentes e a liberdade de circulação de capitais, a liberdade de circulação de fatores produtivos1.
A liberdade de circulação de fatores produtivos é o gênero do qual a liberdade de circulação de pessoas (assalariadas e independentes) e a livre circulação de capitais são espécies.
O Tratado de Roma, que veio constituir a atual União Européia, também considera não somente os produtos, mas os fatores produtivos como elementos indispensáveis para a formação de um mercado comum. A doutrina francesa também utiliza o termo “fatores de produção” ao se referir à liberdade de estabelecimento2.
O Mercado Comum do Sul exige que a liberdade de estabelecimento seja colocada em prática ao lado das outras liberdades fundamentais para que este mercado não seja restringido somente a livre troca de bens e serviços.3
As pessoas físicas independentes e as jurídicas que exercem uma atividade
econômica representam fatores de produção e elas não podem ser excluídas da liberdade de circulação quando nós falamos na formação de um mercado comum.
1 PEREIRA, Ana Paula Cristina. Mercosul: o novo quadro jurídico das relações comerciais na América Latina. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 110; FARIA, Guiomar Estrella Farias. A liberdade de estabelecimento empresarial
nos mercados integrados: um estudo comparativo. Dissertação para obtenção do grau de mestre em direito dos
Negócios e Integração. Porto Alegre: 1998, p. 35; ALEGRIA, Héctor. Reconocimiento, libertad de establecimiento,
sociedads y Mercosur, in Rev. de derecho privado y comunitario, nº 5, p. 441; Fundacion Centro de Estudios Políticos y Administrativos. Buenos Aires: Ediciones ciudad Argentina, 1996, p. 21 e s.
2 DOMESTICI-MET, Marie-José. Droit d’établissement et libre prestation des services. Paris: Ediction Tecniques-Juris-Classeur, 1998, p. 25 e s.
3 ERNST, Christoph. Le Mercosur et l’Union Européenne: Un rapprochement économique prometteur? Thèse sustantada junto a Universidade de Paris 1 em 1996.
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b) As fontes de direito complementares
Em matéria de estabelecimento, as fontes de direito complementares ao Tratado de Assunção são as que servem para continuar impulsionando o direito de estabelecimento no Mercosul. Elas são raras de serem encontradas (1), por isso será
necessário que os Estados Partes assumam uma posição progressiva para regulamentar esta matéria de forma a permitir efetivamente a liberdade de estabelecimento no Mercosul (2).
1- A situação atual
O Tratado de Assunção é um instrumento-meio e não um instrumento-fim para criar o Mercosul e, assim, conforme as necessidades vão surgindo, certas disposições legais devem ser tomadas.
Em matéria de estabelecimento, a atual situação do Mercosul é catastrófica, praticamente não existem fontes de direito regulamentando a matéria, com pequenas exceções, como a da decisão estabelecida pelo Grupo de Mercado Comum, criando um “Acordo
marco sobre condições de acesso para empresas de seguros com
ênfase no acesso por sucursal“4.
Para quem sonhou com a criação de um mercado comum até 31 de dezembro de 19945, seu sonho ainda está um pouco distante de ser concretizado, embora
não seja impossível de realizá-lo. É preciso que novas disposições legais sejam tomadas pelos Estados Partes.
2- O reforço da atual situação
O Tratado de Assunção estabelece, em seu artigo 5, que “durante o período de transição” ele procurará criar o mercado comum do sul utilizando um “Programa de Liberação Comercial“ visando à supressão de restrições tarifárias ou
medidas de efeito equivalente, bem como, suprimindo outras formas de restrições “não tarifárias“.
Este Programa de Liberação Comercial consiste em liberar a circulação de capitais, de pessoas independentes e de assalariados, de bens e serviços, a fim de criar
4 Decisão tomada em Assunção em 15 de junho de 1999.
5 O artigo 1 do Tratado de Assunção estabelece que “ Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum,
que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará “Mercado Comum do Sul “ (Mercosul).
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o mercado comum do sul, onde os súditos comunitários recebam o mesmo tratamento que recebem em seu país de origem e sem discriminações.
Este Programa de Liberação Comercial não é específico para cada uma das liberdades e, para que haja a liberação em matéria de estabelecimento, é necessário
que seja estabelecido um programa específico de liberações.
Para que isso aconteça, é importante que desde já os Estados Partes não introduzam novas restrições em suas legislações e que estabeleçam neste programa, a supressão das restrições existentes, a coordenação e harmonização de suas legislações.
A entrada e a permanência dos súditos comunitários é de fundamental importância para a implementação do Mercosul porque, sem a entrada e a permanência
destas pessoas nos Estados Partes, a liberdade de estabelecimento não será concretamente realizada. Esta entrada e permanência dos súditos comunitários devem ser
logo regulamentadas pelos Estados Partes a fim de permitir o exercício de suas profissões.
A produção jurídica destas fontes complementares utilizadas para
realizar a liberdade de estabelecimento está baseada principalmente nos atos normativos tomados pelo Conselho de Mercado Comum e pelas Resoluções do Grupo de Mercado Comum, porém, outras fontes também podem ser utilizadas, como as diretrizes tomadas pela Comissão de Comércio, os costumes, as decisões dos tribunais, a doutrina, as regras de direito internacional, do direito comunitário europeu e os princípios gerais de direito interno6.
É importante ser destacado que o direito do Mercosul dependerá muito da interpretação realizada pelas autoridades julgadoras. A nível nacional, através dos tribunais locais; a nível comunitário, através do Tribunal ad hoc7. É através da interpretação dos tribunais que nós poderemos concretizar a formação desta liberdade e
deste mercado comum.
B- O OBJETIVO DOS PAÍSES PARTES EM FORMAR UM MERCADO COMUM
O artigo 1º do Tratado de Assunção estabelece que:
6 Não estamos fazendo uma distinção entre fontes originárias ou derivadas, esta não é nossa intenção neste trabalho. Para uma análise das fontes de direito no Mercosul, ver o artigo intulado “ As fontes de direito no Mercosul “,
de autoria da prof. Maristela Basso, publicado no site do “jus navegandi” na seção de direito internacional. www.jusnavegandi.com.br, 2000.
7 Ver Protocolo de Brasília para a solução de controvérsias, aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 88 (Diário Oficial de 2/12/92) e promulgado pelo Decreto 922 (Diário Oficial de 13/9/93).
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“Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum que deverá estar
estabelecido até 31 de dezembro de 1994, e que se denominará “Mercado Comum
do Sul“ (Mercosul)
Neste sentido, o preâmbulo do Tratado de Assunção estabelece que os Países Partes resolvem ampliar seus mercados nacionais através de sua integração
para fazer frente à consolidação dos grandes espaços econômicos internacionais.
Assim, o Tratado de Assunção é instituído entre os Estados Partes para fortalecer suas economias e criar um mercado comum. Esta criação envolve alguns aspectos econômicos (a) e jurídicos (b) como observamos.
a) As observações de ordem econômica
O objetivo principal do Mercosul é a integração econômica dos Estados
Partes8 e a liberdade de estabelecimento nasce da exigência econômica9, assim
esta liberdade aparece de forma excepcional num mundo onde os Estados tem
por tradição restringir seus mercados a entrada de estrangeiros.
No sentido econômico, a liberdade de estabelecimento concorre com outras liberdades de circulação a fim de construir o Mercosul para que as pessoas
possam exercer suas atividades livremente10. Ela se constitui num direito de natureza econômica que visa a integrar as pessoas independentes dos Países Partes para concorrer dentro e fora do Mercosul com os demais blocos econômicos.
Esta integração econômica vai além de uma união aduaneira comum, ela
é uma estratégia dos Países Partes que desejam criar uma economia de livre
mercado11 dentro do bloco. Foi com esta intenção que os governos do Brasil e
da Argentina, após o Tratado de Assunção, procuram integrar suas economias
através da criação de empresas com dupla nacionalidade12 e de joint ventures.
A integração econômica no Mercosul, hoje, é uma realidade comercial.
Desde a data em que foi firmado o Tratado de Assunção até hoje houve um crescimento econômico intra-bloco de 300%13 e a este crescimento está associada a
8 Miguel Ángel Ekmekdjian. Introducción al derecho comunitário latinoamericano. Buenos Aires, 1996.
9 ALBUQUERQUE, José Augusto Gilhon. O Mercosul e a integração econômica no continente: programa de política internacional e comparada – USP. Buenos Aires: Mercosul Sinopsis Estatística, vol. 2, 1996, p. 21 e s.
10 MARTINEZ, Augusto Duran. El Mercosur despues de Ouro Preto: aspectos jurídicos. Série Congresos y Conferencias, nº 11. Seminário realizado en la Faculdad de Derecho de la U.C.U.D.A.L los dias 28 y 29 agosto. Montevidéo: Indústria Gráfica Nuevo Siglo Ltda, 1996.
11 MANSILLA, Hugo Llanos. El derecho de la intégracion en el ordenamiento jurídico interno, vol. 1. Buenos Aires: p. 225.
12 Como exemplo temos o Estatuto binacional para a criação de empresas brasileiras e argentinas.
13 Mercosul: xito comercial do Mercosul. www.mre.gov.br (Mercosul – mercado comum do sul).
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regionalização de empresas, que somente em forma de joint ventures14 atinge
dois bilhões de dólares15.
Este crescimento comercial entre os Países Partes cria uma situação de fato fazendo com que as pessoas procurem ampliar seus negócios na busca de novos mercados e daí vem a necessidade da liberação de circulação das pessoas independentes.
A Argentina, preocupada com seu mercado interno, no início do ano 2000 se
prepara para lançar um programa contra a saída de empresas de seu País que desejam se instalar do outro lado da fronteira, mais precisamente, no Brasil. O Brasil, do
outro lado, responde a esta atitude da Argentina dizendo que são as empresas brasileiras que deixam o Brasil para se instalar na Argentina e demonstra com dados
que cinco bilhões de dólares foram investidos por empresas brasileiras na Argentina nos últimos 5 anos16.
A idéia Argentina de lançar um programa contra a saída das empresas de seu
território é absolutamente improcedente quando se fala na criação de um mercado
comum, mas o importante de se constatar neste caso, é que está havendo a circulação de empresas do Brasil para a Argentina e vice-versa, só está faltando uma regulamentação adequada onde fique claro, por exemplo, que um País Parte não pode
proibir a saída de empresas de seu território em direção de outro Estado Parte.
Como se percebe, o Mercosul dos sonhos hoje é uma realidade17 econômica.
b) As observações de ordem jurídica
Conforme estabelece o artigo 1º do Tratado de Assunção, os Estados Partes
decidem constituir um mercado comum, o qual se chamará “Mercado Comum do
Sul“ (Mercosul).
“Este Mercado Comum implica:
A livre circulação de bens, serviços, e fatores de produtivos entre os
Estados Partes, pela eliminação, entre outros, dos direitos alfandegários e das restrições não tarifárias à circulação de mercadorias
e de toda outra medida de efeito equivalente...”
Esta disposição legal se enquadra na finalidade estabelecida no preâmbulo do
Tratado de Assunção porque os Estados Partes consideram que “a ampliação dos
14 ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon Albuquerque. O Mercosul e a integração econômica no continente: programa de política internacional e comparada – USP. Buenos Aires: Mercosur Sinopsis Estatística, vol. 2, 1996, p. 16 e s.
15 Mercosul: xito comercial do Mercosul. www.mre.gov.br (Mercosul – mercado comum do sul).
16 Jornal Gazeta do Povo. Curitiba-Pr, 17 de janeiro de 2000.
17 CARDOSO, Fernando Henrique. Raul Plebisch: um precursor da integração latino-americana. Mercosul Sinópse Estatística, vol. 1. Rio de Janeiro: 1992, p. 30.
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seus mercados nacionais, através da integração, constitui uma condição fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça social“
entendendo que este objetivo deve ser atingido com “a melhora das interconexões
físicas, a coordenação de políticas macroeconômicas, da complementação dos diferentes setores da economia.“
A política visando à constituição deste Mercado passa a fazer parte dos objetivos dos países integrantes do Mercosul, através da coordenação de políticas macroeconômicas que deverá se realizar concorrentemente e progressivamente com a realização dos programas de redução tarifária e não tarifária18.
O Tratado de Assunção, funcionando como um tratado quadro, não deu nenhuma atenção especial no momento de sua formação à liberdade de estabelecimento; muito pelo contrário, deixou até esta questão, no mínimo, duvidosa, ao estabelecer que o Mercosul implica a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, sem definir quais fatores produtivos.
Entre estas liberdades de circulação, nosso estudo é dedicado à livre circulação de pessoas não assalariadas e é ela que deve assegurar ao súdito comunitário a
liberdade de circular em qualquer um dos Estados Partes. Ela constitui a essência, é
o princípio que dará às pessoas a liberdade de entrar e permanecer num País Parte
diferente do de sua nacionalidade, ter acesso e poder exercer uma atividade econômica.
Quando falamos na construção de um mercado comum, nós pensamos na
construção do mercado comum europeu e tomamos este como referencial. Desta
forma, nós verificamos que a formação de um mercado comum implica a realização
de quatro liberdades19consideradas fundamentais para sua formação20: a liberdade
de circulação de pessoas (assalariadas e independentes), a liberdade de circulação
de capitais, a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de circulação de mercadorias.
O objetivo anunciado no Tratado de Assunção não é somente de promover
uma zona de livre comércio21 ou de uma zona de união aduaneira, mas sim, o de
criar um mercado comum no estilo do único mercado comum existente neste momento no mundo, que é o europeu.
O Tratado de Assunção dá prioridade à abertura dos mercados de serviços22
com relação à liberdade de estabelecimento para facilitar o processo de integração
18 PASTORI, Alejandro. Marché commum du sud. Paris: Revue du marché commum et de l’union européenne, nº
372, novembro 1993, p. 778.
19 MANIN, Philippe. Les communauté européennes: l’union européenne. Paris: Pedone, 1998, nº 180, p. 116.
20 MANIN, Philippe. Les communauté européennes: l’union européenne. Paris: Pedone, 1998, nº 180, p. 116.
21 BATISTA, Luiz Olavo. O Mercosul, suas instituições e ordenamento jurídico. São Paulo: LTr, 1998, p. 41.
22 “Comunicado conjunto dos presidentes dos Estados Partes do Mercosul”. XV Reunião do Conselho do Mercado
Comum.
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rumo à constituição do Mercosul. A abertura dos mercados de serviços constitui a
fase precedente à liberação de estabelecimento, logo, a liberdade de estabelecimento constitui-se, assim, na última fase do processo de integração estabelecido no Tratado de Assunção para a formação do Mercosul23.
Esta liberdade não é limitada ao direito de entrar e sair livremente de um País
para outro, ela vai além disso, porque permite que um súdito de um dos Estados
Partes se instale para trabalhar e viver num outro Estado Parte e seja tratado da mesma forma que os nacionais deste País que o receberá24.
A liberdade de circulação no interior do Mercosul deverá assegurar a qualquer
um dos Estados Partes a efetiva entrada dos fatores de produção originários de um
outro Estado Parte25. O direito de estabelecimento é um direito fundamental do súdito comunitário.
O Tratado que cria o Mercosul visa a realizar, entre as economias dos Estados
Partes, a formação de um mercado comum, no qual fazem parte não somente os
bens e os serviços, mas igualmente os fatores de produção. Este Mercado Comum
poderá funcionar como o pretendido mercado interior europeu.26
Esta concepção, que engloba o direito de estabelecimento, vai além do objetivo particular de cada um dos Estados Partes. Ela é proveniente da vontade ambiciosa de abertura dos mercados nacionais permitindo a mobilidade dos súditos comunitários que atuam de forma independente.
A dúvida existente sobre a criação ou não de um mercado comum no direito comunitário europeu também foi questionada, mas ela foi resolvida pela Corte de Justiça da
Comunidade Européia, ao afirmar na célebre decisão Van Gen en Loos27 de 5 de fevereiro de 1963 que o objetivo do Tratado de Roma é o de “instituir um mercado comum e
este mercado vai além de um acordo que se restringe a reciprocidade de direitos e obrigações entre seus contratantes e ele se aplica a todos os súditos comunitários”.
Esperamos que este problema, se um dia for levantado junto ao órgão julgador competente no Mercosul, possa ser solucionado da mesma forma que o foi no
direito comunitário europeu, uma vez que a intenção dos Países Partes ao constituir
o Tratado de Assunção é o de criar um mercado comum, ainda que presente a cláusula de reciprocidade de direitos e obrigações28.
23 COELHO, Fabio Ulhoa. Revista do instituto de pesquisas e estudos, nº 19. Bauru: Instituição Toledo de Ensino,
ag.-nov., 1997, p. 19.
24 PHILIP, C. Droit social européen. Paris: Ed. Masson, p. 140.
25 PEREIRA, Ana Paula Cristina. Cit. prec., p. 109.
26 Mémorandum de la Commission de la Communauté Européenne sur la création d’une société commerciale européenne. Ver. trim. dr. eur., 1ère année, nº 2, avril-juin. Paris: Édition Sirey, 1965, p. 409.
27 CJCE, 5 de fevereiro de 1963. Van Gend en Loos N.G. Transport en expeditie onderning c. Admnistration fiscale néerlandaise, processo nº 26-62, Rec.: p. 1.
28 O artigo 2º do Tratado de Assunção estabelece: “ O Mercado Comum estará fundado na reciprocidade de direitos e obrigações entre os Estados Partes “.
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CONCLUSÃO
A base para se demonstrar a existência da liberdade de estabelecimento no
Mercosul é proveniente do artigo 1º do Tratado de Assunção. Neste artigo, fica estabelecido que os Estados Partes liberam os fatores produtivos para construir o Mercosul. A liberdade de estabelecimento é um princípio fundamental dentro de um
mercado comum e, sem ela, não existe mercado comum.
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Artigo 1 do Tratado de Assunção estabelece que “ Os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de
1994, e que se denominará “Mercado Comum do Sul “ (Mercosul).
Artigo 2º do Tratado de Assunção estabelece: “ O Mercado Comum estará fundado
na reciprocidade de direitos e obrigações entre os Estados Partes “.
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“Comunicado conjunto dos presidentes dos Estados Partes do Mercosul”. XV Reunião do Conselho do Mercado Comum.
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(Diário Oficial de 13/9/93).
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AS FACES DA REGULAMENTAÇÃO INTERNACIONAL
DO COMÉRCIO ELETRÔNICO
Danny Monteiro da Silva
Mestrando Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina e bolsista CAPES.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru – ITE.
1. INTRODUÇÃO
Quem poderia, há três ou quatro décadas atrás, prever que os avanços tecnológicos, especialmente na área das telecomunicações, evoluiriam de forma tão célere como vem ocorrendo? A resposta para essa questão será, sem dúvida, o pano de
fundo do presente artigo, pois aqueles que apostaram em inovações tecnológicas e
contribuíram para a expansão das tecnologias da informação, estão hoje bem à frente dos demais em termos de concorrência tecnológica e comercial.
As previsões feitas há quatro décadas por Mashall McLuhan realizaram-se
como profecia1, e o maior exemplo disso permeia a realidade do convívio social humano há aproximadamente dez anos, sem que a humanidade sequer possa perceber as alterações de comportamento e do modo de vida a que vem sendo submetida. A Internet juntou, num único instrumento, as telecomunicações e o computa1 Marshall McLuhan estudou os meios de comunicação e os efeitos que os mesmos exerciam sobre a sociedade, escreveu diversas obras consagradas, das quais, as mais importantes foram: “Os meios de comunicação como extensões do homem”, publicada em 1964, e “O meio é a mensagem”, publicada em 1967, onde criou a expressão “aldeia global”, utilizada para expressar o “avizinhamento mundial”, o maior e mais fantástico dos efeitos que os
avanços tecnológicos na área da telecomunicação causaram sobre a sociedade mundial.
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dor e promete ainda mais, adaptando à sua estrutura cada vez mais instrumentos,
como a televisão e o rádio. Com isso, encurta as distâncias, dilui as fronteiras, compacta o tempo e acima de tudo abriga uma economia, dita virtual, que cresce incessantemente, movimentando anualmente bilhões de dólares.
Hoje é possível, com um simples apertar de teclas enviar, mensagens e documentos, ler ou assistir às notícias, fatos ou acontecimentos no momento em que
eles ocorrem de qualquer lugar do planeta e - o mais importante para o presente estudo - tornou possível anunciar, divulgar, escolher, comparar, comprar e vender
mercadorias, contratar e prestar serviços.
O termo “comércio eletrônico” expressa-se, em sua abrangente e controvertida definição, exatamente por meio dos verbos transcritos linhas acima, com uma
ressalva: o comércio eletrônico não se realiza apenas por meio da Internet como
pensa, equivocadamente, a maioria das pessoas, pois as transações comerciais eletrônicas abrangem os negócios celebrados por toda e qualquer espécie de rede de
telecomunicações.
Assim, “o comércio eletrônico pode ser definido como a produção, a publicidade, a venda e a distribuição de produtos e serviços através das redes de telecomunicações”2, das quais a Internet, ao lado da televisão, do telefone, do fax, dentre outros, é sem dúvida o mais notável instrumento para sua realização, justamente pela
evolução espantosa que vem apresentando e por sua capacidade de conectar os demais instrumentos já mencionados à sua estrutura, expandindo, por conseqüência,
o mercado e o comércio eletrônico.
O surgimento da Internet remonta ao ano de 1969, tendo como marco inicial
o Advanced Research Projects Agency Network (ARPANET), dedicado a facilitar as
comunicações e o intercâmbio de informações entre as universidades norte-americanas, ou seja, naquela oportunidade funcionava apenas como um correio eletrônico, o que hoje se denomina e-mail3.
A rede mundial, World Wide Web (WWW), tal como é conhecida hoje, surgiu
em 1990, possibilitando a transmissão de web pages, integradas com gráficos e textos, preparando o cenário para que, em 1994, ocorressem as primeiras atividades comerciais e operações financeiras on-line. Em 1997, já havia 110 países conectados à
rede mundial de computadores. Em 1998, esse número ultrapassou a casa de 200
nações4, sendo que em poucos anos, segundo dados da International Telecomunication Union (ITU), essa cobertura será universal5.
Conforme pesquisas realizadas pela ITU, o número de usuários conectados no
ano de 1991, quando a Internet ainda engatinhava, era de 4,5 milhões de indivíduos.
2 Baochet et al, O comércio eletrónico y el papel de la OMC, p. 5
3 Idem, p. 11.
4 Singh, Electronic Commerce, p. 1.
5 Baochet et al, O comércio eletrónico y el papel de la OMC, p. 11.
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Cinco anos mais tarde, em 1996, esse número saltava para 60 milhões de usuários,
sendo que em 2001 já existiam 300 milhões de pessoas conectadas à rede mundial
de computadores, demonstrando, portanto, que ela é, sem dúvida, o mercado potencial que mais cresce no mundo. O número de consumidores potenciais aumentou aproximadamente 670% em 10 anos, considerando apenas as transações denominadas Business to Consumer (B2C), uma vez que existem ainda as transações Business to Business (B2B), realizadas entre empresas6.
Aliás, as transações eletrônicas do tipo B2B são as mais crescentes. Em 1996,
movimentaram 200 milhões de dólares, em 2000, foram 60 bilhões. Já em 2001, foram movimentados quase 300 bilhões de dólares, ou seja, quase seis vezes o valor
movimentado pelas transações B2C no mesmo ano, as quais transacionaram 50 bilhões de dólares7.
O crescimento e a evolução desenfreada da Internet contribuirá para que dentro de quatro ou cinco anos o comércio eletrônico corresponda a 2% de todo o comércio mundial8. Para se ter uma idéia de quanto isso representa, basta dizer que
0,9% foi a participação brasileira no comércio mundial durante o ano de 20019.
A evolução do comércio eletrônico e o tamanho de sua importância para a
economia e para o comércio internacional ficam claros considerando-se que em
1996 as transações efetuadas por meios eletrônicos movimentaram aproximadamente 3 bilhões de dólares em todo o mundo, sendo que as estimativas para 2002
ultrapassam a casa dos 300 bilhões de dólares10. Segundo dados da Forest Research
Inc., em pesquisa realizada em 1997, a Internet respondia por apenas 2% de todas
as transações eletrônicas. Em 2002, esse índice será de 25%, e em 2007, alcançará a
casa de 50% de todas as transações eletrônicas11.
Essa infinidade de números, dados, estatísticas e previsões, têm por finalidade demonstrar, de maneira clara e objetiva, que o mercado para o comércio eletrônico vem crescendo vertiginosamente, fato que, estando diretamente vinculado à
expansão da Internet, acarreta o crescimento reflexo das indústrias de equipamento de informática, de programas para computadores e de serviços conexos, como as
telecomunicações, que também poderão ser negociados eletronicamente, num verdadeiro círculo evolutivo, denotando a importância que o assunto merece dos governos e dos negociadores internacionais.
O ritmo de expansão do comércio eletrônico será acelerado ainda mais com
o surgimento, em 1997, da tecnologia W.A.P. (Wireless Application Protocol), cuja
6 Idem, p. 8.
7 Idem, p. 27.
8 Idem, p. 6.
9 Brasil. Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.
10 Baochet et al, O comércio eletrónico y el papel de la OMC, p. 27
11 Idem, p. 25.
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rápida evolução já possibilita o acesso à Internet diretamente dos aparelhos de telefone celular, viabilizando a realização de transações comerciais e financeiras de qualquer lugar do globo terrestre, mediante a utilização de um simples e compacto aparelho telefônico, contribuindo para aumentar, ainda mais, o número de consumidores potenciais dentro desse crescente mercado eletrônico.
A expansão vertiginosa e incomparável desse ramo comercial se deve às vantagens proporcionadas por esse tipo de transação, uma vez que ela diminui os custos, especialmente com mão-de-obra, evita os atravessadores, contribuindo, assim,
para diminuir o preço final dos produtos, além de facilitar o intercâmbio internacional e a entrada de novos participantes no mercado, os quais poderão concorrer em
igualdade com os demais, o que beneficia especialmente as pequenas e médias empresas.
O grande problema dessa evolução e desse crescimento acelerado é a dificuldade que impõe à sua regulamentação pelo ordenamento jurídico, uma vez que a
velocidade das inovações tecnológicas torna praticamente impossível uma regulamentação rígida e duradoura sobre a matéria. O presente estudo irá analisar as dificuldades enfrentadas na tentativa de uma regulamentação internacional, especialmente no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Por ora, cumpre
discorrer sobre a evolução da regulamentação internacional existente e a evolução
das discussões em torno da questão no âmbito OMC.
2.
A REGULAMENTAÇÃO NA OMC
O comércio eletrônico começou a ser debatido no âmbito da OMC a partir da
Segunda Conferência Ministerial, realizada em Genebra, em maio de 1998. Naquela
oportunidade, declarou-se a necessidade do estabelecimento de um programa de
trabalho, que foi implantado sob coordenação do Conselho Geral12. O programa de
trabalho conta, ainda, com a participação ativa do Conselho de Comércio de Serviços, do Conselho de Comércio de Mercadorias, do Conselho de Propriedade Intelectual e do Conselho de Comércio e Desenvolvimento. O objetivo do programa de
trabalho é estudar os impactos do comércio eletrônico no comércio mundial e oferecer elementos que possibilitem a regulamentação do mesmo na organização13.
Na mesma oportunidade, os Membros assumiram o compromisso de não cobrar tarifas aduaneiras sobre as transações eletrônicas até que se atingisse um consenso sobre a regulamentação da matéria. Essa suspensão temporária da cobrança
de tarifas aduaneiras foi renovada no parágrafo 34 da Declaração de Doha, firmada
na Conferência Ministerial realizada no Catar, em novembro de 200114.
12 WT/MIN(98)/DEC/2.
13 WT/GC/W/90.
14 WT/MIN(01)/DEC/1.
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Até o momento, os Membros identificaram três tipos de transações na Internet:
(i) transações correspondentes a serviços prestados através da Internet em todas as
suas etapas; (ii) transações nas quais intervém serviços de distribuição: os produtos, sejam bens ou serviços, são selecionados e se comprados on-line, porém são entregues
por meios convencionais; (iii) transações em que intervém a função de transportes e
de telecomunicações, incluindo a prestação de serviços de acesso à Internet.
A maioria dos Membros concorda que a maior parte do comércio envolvendo
a Internet classifica-se como serviços, estando, portanto, abrangidos pela regulamentação do Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS). Contudo, existem discordâncias sobre determinadas classificações. O maior exemplo dessas discordâncias gira em torno das crescentes transações envolvendo os livros digitais e o fornecimento de músicas, filmes, dentre outras mercadorias entregues digitalmente, uma
vez que, enquanto para alguns Membros, as transações cuja entrega é feita digitalmente consistiriam unicamente em prestação de serviços regulamentada pelo
GATS15, para outros seria, às vezes, aquisição de produtos, devendo, assim, ser regulamentada tanto pelo GATS, como pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
(GATT)16 e para um terceiro grupo seria, ainda, uma categoria sui generis nova, ou
seja, nem produto, nem serviço, necessitando de uma nova regulamentação, mais
específica e que vá além do GATT e do GATS17.
A importância dessa discussão se deve, sobretudo, ao interesse que os países
desenvolvidos, especialmente os Estados Unidos, o Japão e a União Européia, têm
em transformar a atual suspensão temporária da cobrança aduaneira em algo definitivo, sob o argumento de que essa liberalização expandiria como nunca o comércio
internacional, gerando desenvolvimento. Por sua vez, os países em desenvolvimento preferem resguardar seus mercados internos, justificando tal atitude pela carência de tecnologia que enfrentam, o que impossibilitaria suas empresas de competir
em condição de igualdade com os demais países.
Tal discussão tem como pano de fundo o fato de que, se tais transações forem
consideradas mercadorias, aplicar-se-á sobre elas, como já dito, a regulamentação
prevista no GATT, que prescreve a possibilidade de imposição de tarifas e outros direitos aduaneiros pelos Membros, enquanto que se tais transações forem consideradas serviços, serão regulamentadas pelo GATS, que não prevê a possibilidade da imposição de direitos de aduana, prescrevendo, tão-somente, a obrigação do tratamento nacional a todas as atividades que engloba e cujos compromissos forem explicitamente aceitos pelo Membro. O quadro abaixo demonstra mais claramente as
diferenças entre as duas regulamentações:
15 Especialmente os Estados Unidos (WT/GC/W/78) e União Européia (WT/GC/W/306), bem como outros países,
tais como o Canadá (WT/GC/W/339) e a Venezuela (WT/GC/W/376).
16 Como é o caso do Japão, conforme WT/GC/W/253.
17 Este é o caso da Austrália, conforme WT/GC/W/86.
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COMPARAÇÃO ENTRE OS REGULAMENTOS SOBRE COMÉRCIO DE
BENS E SERVIÇOS NA OMC18
Tratamento Nacional
Impostos de aduana
Quotas
GATT
Regulamentação
sobre Comércio
de bens
Obrigação geral.
Não permite exceções; mas
se aplica somente mediante
medidas internas.
Obrigação geral.
Não permite exceções; mas
se aplica somente mediante
medidas internas.
Não permite, exceto em
certas emergências.
GATTS
Regulamentação
sobre Comércio
de serviços
Não é uma obrigação geral;
aplica-se somente àqueles setores que o membro, explicitamente, escolheu e que também pode ser objeto de limitações. Mas se aplica para
todas as medidas que aferem
o fornecimento de serviços.
Não permite se o membro
se comprometeu a prover o
trtamento nacional sem limitações.
Permite, salvo se o membro
se comprometeu a prover o
acesso ao mercado sem limitações.
Dentro do contexto do programa de trabalho, cumpre ao Conselho de Comércio de Serviços analisar o tratamento que deve ser dado ao comércio eletrônico
no âmbito do GATS, analisando as seguintes questões: alcance (incluindo os modos
de fornecimento dos serviços – Art. I); cláusula da Nação Mais Favorecida (NMF –
art. II); transparência (art. III); participação crescente dos países em desenvolvimento (art. IV); regulamentação nacional, normas e reconhecimento (art. VI e VII); competência (art. VIII e IX); proteção da intimidade e da moral, além da prevenção contra fraudes (art. XIV); compromisso de acesso aos mercados para fornecimento eletrônico de serviços (incluindo os compromissos sobre os serviços de telecomunicações básicas e de telecomunicações de valor agregado e os serviços de distribuição
– art. XVI); tratamento nacional (art. XVII); acesso às redes e serviços públicos de
transporte e de telecomunicações e a utilização dos mesmos (Anexo sobre telecomunicações); direitos de aduana; e questões referentes à classificação19.
O Conselho de Comércio de Bens vem analisando as questões referentes ao comércio eletrônico no âmbito do GATT/94 e o Anexo I-A do acordo referente à OMC,
cuidando, especialmente de questões relativas ao acesso dos produtos relacionados
com o comércio eletrônico aos mercados e o acesso a esses produtos; questões de valoração aduaneira derivada do acordo relativo a aplicação do art. VII do GATT/94, questões derivadas da aplicação do acordo sobre procedimentos para o trâmite de licenças
de importação; imposição dos direitos de aduana e demais direitos e cargas tributárias
segundo definição do art. II do GATT/94; normas relacionadas com o comércio eletrô-
18 Mattoo & Schuknecht, Trade policies for electronic commerce, p. 11/12.
19 WT/GC/W/90.
20 Idem.
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nico; questões referentes as normas de origem e questões referentes à classificação20.
Já o Conselho de Direitos Relativos à Propriedade Intelectual, vem cuidando
da questão no âmbito do Acordo sobe Aspectos Comerciais Relativos à Direitos de
Propriedade Intelectual (TRIPS). Como a próprio denominação deixa claro, esse
Conselho cuida do debate acerca da proteção aos direitos de propriedade intelectual em toda e qualquer atividade comercial realizada por meios eletrônicos. O tema
é bastante sensível, uma vez que, na Internet, tudo é objeto de registro, incluindo o
registro dos links, dos downloads de software, dos domínios dos sites, do próprio
e-commerce; há registros para se transmitir sons, imagens, vender carros on-line e
mandar cartões de felicitações pela web. A Internet fez pela propriedade intelectual
o que nenhuma outra tecnologia havia feito anteriormente. Assim, tal conselho centra-se especificamente sobre as questões envolvendo a proteção e a observância dos
direitos autorais e direitos conexos, proteção e observância das marcas de indústria
ou de comércio, as novas tecnologias e o acesso à tecnologia21.
Por fim, o Conselho de Comércio e Desenvolvimento vem examinando as
conseqüências do comércio eletrônico para o desenvolvimento, tendo sempre em
conta as necessidades econômicas, financeiras e de desenvolvimento dos países em
desenvolvimento. Esse Conselho cuida especificamente de questões como: efeitos
do comércio eletrônico nas perspectivas comerciais dos países em desenvolvimento, especialmente para as pequenas e médias empresas e meios para incrementar ao
máximo os benefícios que possam resultar para elas; desafios para a participação
dos países em desenvolvimento no comércio eletrônico, particularmente em relação às exportações de produtos entregues por meios eletrônicos e formas de melhorar essa participação; examinar o papel de um melhor acesso à infraestrutura e a
transferência de tecnologia e do movimento de pessoas físicas, uso da tecnologia da
informação na integração dos países em desenvolvimento ao sistema multilateral de
comércio; além de conseqüências para os países em desenvolvimento face à possível repercussão do comércio eletrônico nos meios tradicionais de distribuição das
mercadorias físicas e conseqüências financeiras do comércio eletrônico para os países em desenvolvimento22.
Como se vê, a complexidade que envolve as discussões se desenvolve em
meio a uma gama de interesses, que são reflexos diretos da resposta correta da
questão colocada nas primeiras linhas do presente artigo. Ou seja: os países detentores do conhecimento, da tecnologia e da infra-estrutura necessária para uma participação efetiva no comércio eletrônico pregam, logicamente, ampla liberalização
comercial e grande flexibilidade na regulamentação, enquanto que os países tecnologicamente mais atrasados preocupam-se com eventuais perdas que possam vir a
sofrer em decorrência de sua impossibilidade de disputar os mercados internacio21 Idem.
22 Idem.
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nais através do comércio eletrônico, bem como pela facilidade que os produtos estrangeiros terão para adentrar suas fronteiras e causar sérios prejuízos ao seu setor
produtivo23.
A verdade resume-se no fato de que é impossível reverter os avanços tecnológicos e os países que não se adequarem a esses avanços só terão a perder. O importante é saber barganhar no momento da abertura dos mercados, requisitando acesso facilitado ao conhecimento, às tecnologias e à infra-estrutura necessárias para poderem desfrutar dos potenciais benefícios do comércio eletrônico, não se esquecendo que os países desenvolvidos possuem muito mais pessoas conectadas à rede
mundial, ou seja, o número de consumidores potenciais é muito maior do que nos
países desenvolvidos.
Segundo pesquisa da ITU, realizada em 2000, enquanto nos Estados Unidos,
Europa e Japão já existiam aproximadamente 1000 usuários conectados para cada
10.000 habitantes, na América Latina esse número caía para 110, enquanto que na
África não chegava nem na casa dos 50 usuários para cada 10.000 indivíduos24. Esses
dados demonstram que o comércio eletrônico ainda não apresenta muitos consumidores potenciais no hemisfério sul, onde apesar de existir um mercado ainda exíguo, sua expansão já apresenta um acelerado crescimento, vez que vem acompanhando as tendências mundiais. Assim, os países em desenvolvimento parecem estar diante de uma oportunidade que talvez nunca tenham tido anteriormente. Portanto, devem ter por objetivo a disputa dos mercados dos países desenvolvidos, que
atualmente já apresentam grande potencial e uma voracidade tremenda. Para se beneficiar desse mercado emergente será indispensável barganhar a abertura do mercado interno com acesso facilitado à tecnologia, além de se incentivar pesquisas e
desenvolver projetos voltados para área do comércio eletrônico. O Brasil, ainda que
de forma muito vaga, parece estar dando os primeiros passos nesse sentido, conforme será demonstrado adiante.
Já os países desenvolvidos sabem exatamente o que querem: liberalização comercial com a impossibilidade de cobrança aduaneira ou de imposição de qualquer
outra espécie de barreira comercial, regulamentação flexível e proteção integral, absoluta e eficaz a todo e qualquer direito de propriedade intelectual, direta ou indiretamente ligados às transações eletrônicas, sejam dados, informações, mercadorias
ou serviços, sendo que tal fato se deve à evidência de que o comércio eletrônico é
o melhor instrumento de facilitação do comércio. A maior demonstração dessa política reflete-se no Acordo sobre Tecnologia da Informação (ATI), que prevê a eliminação da imposição de direitos de aduana aplicadas a seis categorias de produtos:
23 Nesse sentido ver manifestações dos Membros junto ao Conselho Geral da OMC: Indonésia e Singapura
(WT/GC/W/247), Japão (WT/GC/W/253), U.E. (WT/GC/W306), Canadá (WT/GC/W/339), Cuba (WT/GC/W/380),
MERCOSUL (WT/GC/W/434).
24 Goldstein & O’Connor, E-commerce for development, p. 10.
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computadores, equipamento de telecomunicação, semicondutores, equipamentos
de fabricação e testes de semicondutores, suportes lógicos e instrumentos científicos, os quais se consubstanciam na estrutura física necessária para o desenvolvimento e evolução do comércio eletrônico.
É com esse intuito que o Congresso do Estados Unidos aprovou no início do
mês de agosto de 2002, a Trade Act 2002, conhecida também como Trade Promotion Authority Act (Lei de Autorização da Promoção Comercial) ou simplesmente
TPA25, autorizando, assim, a expansão dos poderes do Presidente norte-americano
para negociar tratados comerciais internacionais, tornando, assim, mais ágil o processo de negociação e aprovação desses tratados, obedecendo, obviamente, certos
limites estabelecidos pelo Poder Legislativo.
A importância desse instrumento legal vislumbra-se no fato de que ela traça os
alicerces sobre os quais se desenrolarão as negociações sobre o comércio em todos
os acordos comerciais em que os Estados Unidos forem parte.
3.
A POLÍTICA NORTE-AMERICANA PARA O COMÉRCIO ELETRÔNICO
Antes mesmo que a discussão sobre a TPA chegasse ao público, a política norte-americana sobre o comércio eletrônico já estava muito bem definida. Os interesses norte-americanos se explicam facilmente, uma vez que esse país apresenta a
mais desenvolvida indústria de telecomunicações e de informática do mundo. Não
há dúvida quanto a isso, uma vez que as grandes indústrias de computador, de soft-
25 A TPA é uma modalidade do processo legislativo norte-americano destinado à aprovação mais célere de tratados,
convenções e acordos internacionais conhecida como fast track. Consiste numa autorização, uma delegação de poderes feita pelo Poder Legislativo ao Executivo, para que esse, observadas certas limitações impostas pelo primeiro,
proceda à negociação mais célere dos acordos internacionais. Suas principais características são descritas, sucintamente, por Sharyn O’halloran da seguinte forma: O fast track reduz a incerteza que permeia a negociação de um
tratado, pois uma vez negociado, será aprovado ou rejeitado na íntegra pelo Congresso. Ele estipula apenas a necessidade de maioria simples em ambas as casas do Congresso para ser aprovado, enquanto o procedimento convencional requer dois terços para a aprovação do tratado; ele limita a possibilidade de ressalvas protecionistas que
resultam nas oportunidades em que o Congresso faz a legislação. Uma vez formalizado o acordo, ele é formalmente encaminhado ao Congresso e o debate é limitado, sendo a legislação analisada sem a possibilidade de emenda.
Esse procedimento apresenta três funções: primeiro, ele possibilita o veto do Congresso sobre as atividades do Executivo, pois o Congresso mantém três possibilidades de frear a autoridade de negociação do Presidente: 1) quando um dos Comitês de Finanças, ou o do Casa dos Representantes ou o do Senado, desaprovar a resolução dentro
do prazo de 60 dias de seu requerimento, denegando ao Presidente a autoridade do fast track; 2) quando qualquer
uma das duas casas alegar que não recebeu informações sobre as negociações no prazo de 60 dias e 3) quando o
Congresso vota o acordo final. Segundo, ele possibilita que o Congresso se mantenha informado, assim, seus membros podem participar ativamente nas negociações internacionais e monitorar as ações do executivo. E terceiro,
possibilita que os membros do Congresso definam suas preferências políticas. Para maiores informações sobre as
peculiaridades desse procedimento legislativo norte-americano, consultar: O’halloran. “Politics, process, and Amercian trade policy”, p. 159 – 183.
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ware e as empresas que comercializam bens e serviços eletronicamente têm sua
sede naquele país, mais especificamente no famoso Vale do Silício, localizado ao sul
de San Francisco, no Estado da Califórnia. Além disso, os Estados Unidos possuem
um avançado pregão de valores onde se negociam empregada em indústrias que são
grandes produtoras ou usuárias intensivas de produtos e serviços que envolvem tecnologia da informação. Estima-se que atualmente 1,2 milhão de empregos nos Estados Unidos estão diretamente relacionados com a Internet”26.
Outros fatores permeiam as justificativas para a atenção que os Estados Unidos vêm dedicando à questão do comércio eletrônico, principalmente no setor internacional. Atualmente os Estados Unidos dominam o mundo virtual da Internet e,
conseqüentemente, o comércio eletrônico internacional. Os norte-americanos representam 85% de todos os usuários conectados à rede mundial de computadores.
Eles possuem também 70% de todos os web sites do mundo, seguidos de longe pela
União Européia (UE), que vem em segundo lugar com 14% do total global27. Por serem pioneiros na utilização da Internet, tanto os empreendedores como os consumidores daquele país já estão habituados exclusivamente títulos e ações relativos às
chamadas “empresas ponto-com”, a conhecida Nasdaq, que movimenta diariamente milhões de dólares.
Os interesses norte-americanos não se traduzem apenas nas declarações da
Consulesa Geral dos Estados Unidos, Carmen Martinez, publicadas no jornal O Estado de São Paulo, onde afirmou que
o comércio eletrônico está, de maneira expressiva, gerando oportunidades para pessoas sem empregos tradicionais, ao mesmo tempo em que estimula empreendimentos. O Departamento do Comércio dos Estados Unidos calcula que até 2006 quase a metade da força de trabalho americana estará a utilizar a Internet para negociar, consultar, contratar, comprar ou vender bens e serviços.
O mercado interno norte-americano contribui de maneira extraordinária para
elevar os índices de crescimento do mercado mundial para o comércio eletrônico.
Enquanto em 1996 o comércio eletrônico mundial movimentou 3 bilhões de dólares, em 1997, apenas os Estados Unidos movimentaram quase 8 bilhões de dólares28.
Diariamente, são 52 mil novos norte-americanos conectando-se a Internet, contri26 Martinez, Facilitando o desenvolvimento da economia on line, p 1.
27 Baochet et al, O comércio eletrónico y el papel de la OMC, p. 27.
28 Idem, ibidem.
29 Conforme declarações da diplomata norte-americana Charlene Barshefsky, membro do U. S. Trade Representative (USTR) e responsável pelas negociações que levaram à inclusão da China no comércio internacional no ano de
2001, baseando-se em dados da ITU disponível na Internet em: <www.ustr.gov>, acesso em 04.10.2002.
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buindo para que esses números cresçam ainda mais29.
Para 2002, as previsões da Forest Research Inc., são de que apenas o mercado
virtual norte-americano movimente algo em torno de 327 bilhões de dólares, o que
corresponderia a 2,3% de todas as transações comerciais realizadas naquele país30.
Em síntese, pode-se afirmar que os Estados Unidos visualizaram corretamente as potencialidades e as oportunidades incomparáveis que comércio eletrônico representa para poderem fazer expandir ainda mais sua já dinâmica economia, que,
apesar de demonstrar sinais de desaceleração, ainda continua crescente31. Para eles,
que impulsionaram a revolução tecnológica, preparando-se para a “aldeia global”, o
melhor discurso é o da ampla liberalização comercial e da maior flexibilização possível da futura regulamentação internacional, para, assim, poderem alcançar uma
parcela significativa de um mercado que vem duplicando-se a cada ano32.
Os princípios que norteiam os objetivos da política norte-americana para o comércio eletrônico, segundo declarações do Secretário de Comércio do Estados Unidos, William M. Daley e da diplomata Charlene Barshefsky, membro do U. S. Trade
Representative, são os seguintes: o livre desenvolvimento e a autoregulamentação
dos comércio eletrônico, incluídos aí a necessidade de um cyberspace dutty-free, ou
seja, livre de impostos, neutralidade tecnológica33, tratamento mais liberal possível
para os produtos digitais, proteção às patentes e aos direitos de propriedade intelectual, além fiscalização eficaz contra a pirataria, proteção ao consumidor e acesso
universal à Internet34.
A TPA reflete exatamente o que foi exposto no parágrafo anterior. O texto
enumera, em sua sessão 2102, que trata dos objetivos na negociação dos acordos comerciais, na sua letra “B”, item 9, quais são as pretensões que, permeando todo o
texto da TPA, se refletem nos objetivos específicos relacionados ao comércio eletrônico. Assim prescreve a mencionada lei:
“Os principais objetivos da negociação dos Estados Unidos com
relação ao comércio eletrônico são: (a) garantir as obrigações
correntes, regulamentos, disciplinas e compromissos assumidos
30 Baochet et al, O comércio eletrónico y el papel de la OMC, p. 27.
31 Segundo dados da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a economia norte-americana vem sofrendo certa desaceleração, mesmo assim cresceu 1% em 2001 e para 2002 as previsões são de um
crescimento médio de 0,75%.
32 Baochet et al, O comércio eletrónico y el papel de la OMC, p. 27.
33 O princípio de neutralidade tecnológica, sob a perspectiva do comércio, significa que os países não deveriam negar a empresas e consumidores os benefícios de produtos e serviços mais novos ou mais baratos simplesmente porque eles são negociados eletronicamente. Fazer isso seria sufocar a inovação antes do nascimento. Conforme declarações da diplomata e representante comercial norte-americana Charlene Barshefsky (USTR) disponível na Internet em: <www.ustr.gov>, acesso em 04.10.2002.
34 Conforme declarações disponíveis na Internet em: <www.ustr.gov>, acesso em 04.10.2002.
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perante a Organização Mundial do Comércio aplicados ao comércio eletrônico; (b) assegurar que: (i) a entrega eletrônica de
bens e serviços não receba tratamento menos favorável perante
a regulamentação a compromissos comerciais que os produtos
entregues fisicamente; e (ii) a classificação do comércio eletrônico como bens ou serviços receba o tratamento mais liberal possível; (c) garantir que os governos evitem implementar medidas de
relação comercial que impeçam o comércio eletrônico; (d) onde
a política legitima objetive requeira regulamentação doméstica
que afetem o comércio eletrônico, obter compromissos que de alguma forma a regulamentação seja menos restritiva para o comércio, não discriminatória, e transparente e promovam uma
abertura do mercado; e (e) estender a moratória existente na
OMC sobre a imposição de tarifas sobre o comércio eletrônico35.
Os norte-americanos associam o desenvolvimento e o crescimento comercial
e econômico como sendo essenciais para a segurança nacional. Isto fica evidente no
texto da TPA. Assim, encarando o comércio eletrônico como sendo talvez o último,
porém o mais promissor instrumento de abertura e expansão comercial para seu setor produtivo, investem nele toda a sua atenção.
A população, evidentemente, compartilha da mesma opinião que o governo,
o que fica evidente no Advisory Commission on Electronic Commerce Report to
Congress36, de abril de 2000, o que demonstra o interesse e a participação ativa da
sociedade na política comercial do país.
Somando-se todos os fatores até aqui expostos, fica evidente o motivo da
pressa que os Estados Unidos têm para definir a regulamentação internacional
do comércio eletrônico, a ponto de incluí-lo de maneira específica na TPA. A evidência da urgência que o assunto representa para esse país se demonstra também no âmbito da OMC, onde pretendem que as discussões sobre o comércio
eletrônico se realizem somente sob os auspícios do Conselho Geral e, de um
modo geral, deixando que certas peculiaridades sejam discutidas em outras organizações, tais como a Organização de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), a Comissão Internacional de Leis Comerciais das Nações Unidas
(UNCITRAL), a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO), dentre
outras, ao contrário da União Européia, que prefere a realização de amplos estudos e análises no âmbito da própria OMC, o que demandaria mais tempo para se
chegar a uma regulamentação final. Contudo, por enquanto, as discussões vêm
35 Estados Unidos da América. Congress. Trade Act 2002 (tradução livre do autor).
36 Estados Unidos da América. Electronic Commerce Commission, Advisory Commission on Electronic Commerce Report to Congress.
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se desenvolvendo, como já mencionado, de maneira muito complexa dentro da
própria OMC, através de seu programa de trabalho já detalhado anteriormente37.
Por fim, é imprescindível dizer que os Estados Unidos também se preocupam
muito com a proteção de seu mercado interno. Tal fato fica evidente diante das
constantes reclamações apresentadas contra este país perante o Órgão de Solução
de Controvérsias (OSC) da OMC questionando a legalidade de certas medidas, impostas pelo governo norte-americano e que são consideradas protecionistas pelos
demais Membros, tais como imposição de barreiras técnicas38 ou de sobretaxas,
como no caso do aço brasileiro39, ou, ainda, mediante a utilização de subsídios concedidos aos seus produtores nos mais diversos setores da sua economia. Certamente, tais medidas irão se repetir com relação ao comércio eletrônico.
4.
O BRASIL E O COMÉRCIO ELETRÔNICO
O comércio eletrônico mundial tem pouco mais de sete anos de vida e, no
Brasil, metade disso. É, portanto, um setor ainda em formação. Contudo, mesmo
diante de tal fato, um país que pretende expandir seu mercado internacional jamais
poderá se furtar a ampla discussão que envolve um mercado novo, inexplorado e
que, apesar de sofisticado e exigir grandes investimentos, mostra-se o mais promissor e lucrativo da atualidade.
Segundo o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possuía, em 2001, 175.194.059 habitantes, sendo que nessa
imensa população apenas 12,6% dos domicílios possuíam computador e que 8,6%
dos domicílios possuíam computador com acesso à Internet40.
Em números, o Brasil possuía, em 2001, cerca de 13 milhões de usuários da
Internet, ou seja um número muito inferior aos 160 milhões de norte-americanos
conectados à rede mundial de computadores41; mas vem demonstrando um crescimento acelerado se comparado com dados das pesquisas anteriores. Uma pesquisa
realizada pelo Instituto Data Folha entre os dias 23 e 27 de agosto de 2001, revelou,
ainda, que 76% dos usuários brasileiros fizeram compras pela rede nos seis meses
anteriores a sua realização42.
Os quadros abaixo, mostram projeções da evolução do número de usuários
da Internet no Brasil:
37 Mann, Transatlantic issues on electronic commerce, p. 6.
38 Estados Unidos – Hormônios, WT/DS26 e WT/DS48.
39 Estados Unidos – Medidas definitivas de salvaguarda sobre importações de determinados produtos de aço,
WT/DS259/10.
40 Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2001.
41 Filipini, O que o futuro reserva para o comércio eletrônico no Brasil? II. Artigo disponível na Internet em
<www.e-commerce.org.br>, acesso em 02.10.2002.
42 Pesquisa Data Folha disponível na Internet em <www.e-commerce.org.br>, acesso em 02.10.2002.
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CENÁRIOS DE CRESCIMENTO PARA A INTERNET NO BRASIL43
(em milhões)
Ano
2001
2002
Total
População
172,3
199,9
Pessimista
Cresc. Anual 12%
Internautas
12.0
37.2
%
Pop
6,9%
18,7%
Intermediário Cresc.
Anual 16%
Internautas
12.0
52.9
%
Pop
6,9%
26,5%
Otimista
Cresc. Anual 20%
Internautas
12.0
74.3
%
Pop
6,9%
37,2%
POPULAÇÃO DE INTERNAUTAS NO BRASIL – Pesquisas selecionadas
Data da
Pesquisa
Fev/2002
Jul/1997
Usuários
(milhões)
13,08
1,15
Nº de Meses
Acumulado
55
1
Crescimento
Acumulado
1034%
-
Crescimento
% da
médio/mês População
18,8%
7,6%
-
Ademais, pesquisa conjunta da Camara-e.net com a Câmara Americana de Comércio Eletrônico (ANCHAM), e a Consultoria Boucinhas & Campos Internet Business revela que a utilização da Internet para a venda de produtos e serviços já cresceu 37% no Brasil ao longo do ano de 200244. Ressalte-se ainda que dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV), demonstram que no ano de 2001 o comércio eletrônico
movimentou 2,1 bilhões de dólares no mercado brasileiro45.
Esses dados demonstram que apesar de tardio se comparado com os países mais
desenvolvidos, o mercado brasileiro encontra-se em plena expansão, denotando grande potencialidade, a qual poderá vir a ser explorada pelo mercado mundial. Da mesma
forma, percebe-se que o empresariado nacional começa a notar as potencialidades do
mercado proporcionado pelo comércio eletrônico e procura utilizar-se desse instrumento comercial para expandir seus negócios, buscando uma participação maior tanto
no mercado nacional como no internacional. A Internet, sem dúvida, lhes proporciona
a capacidade de competir de forma mais equânime com grandes empresas transnacionais e a possibilidade de expandir como nunca as exportações brasileiras.
43 Filipini, O que o futuro reserva para o comércio eletrônico no Brasil? I. Artigo disponível na Internet em
<www.e-commerce.org.br>, acesso em 02.10.2002.
44 Pesquisa realizada pela Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico em conjunto com Câmara Americana de Comércio Eletrônico (AMCHAM) e Consultoria Boucinha &Campos Internet Business durante o mês de junho de
2002, disponível na Internet em <www.camara-e.net>, acesso em 27.09.2002.
45 Fundação Getúlio Vargas (FGV), 4ª Pesquisa sobre Comércio Eletrônico no Mercado Brasileiro. Pesquisa disponível na Internet no site do Comitê Interministerial de Comércio Eletrônico, em <www.ce.mdic.gov.br>, acesso em 23.09.2002.
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O setor privado da informática vem negociando com o governo desde de janeiro de 2002 medidas de forte impacto positivo na economia do país e que contribuem para diminuir a exclusão digital, promovendo a educação das futuras gerações
à nova ordem mundial. Dentre as medidas, destacam-se: a antecipação da Tarifa Externa Comum (TEC) para o setor de informática de 2006 para 2002, mantendo-se os
moldes já estabelecidos pelo bloco de comércio do Mercosul, a criação do Mecanismo de Equalização Competitiva, estabelecendo um crédito fiscal proporcional ao
volume de componentes locais agregados aos produtos (substituição de importações), a implementação de mecanismos de financiamento ao consumidor final, com
taxas adequadas a um programa social e pontos de acesso públicos, a exemplo dos
hoje conhecidos telefones públicos. Os resultados previstos em decorrência dessas
medidas seria uma queda de 17% no preço bruto do PC para o consumidor final, o
que permite triplicar, em quatro anos, o número de máquinas instaladas no país46.
Outro aspecto positivo são os programas que vêm sendo desenvolvidos pelo
governo federal, dos quais se destacam o Programa Sociedade da Informação, que
se constitui num conjunto de iniciativas, coordenadas pelo Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT) e que prevê ações dos governos federal, estaduais, municipais,
junto com a iniciativa privada. O programa pretende viabilizar um novo estágio de
evolução da Internet e suas aplicações no Brasil, tanto na capacitação de pessoal
para pesquisa e desenvolvimento quanto na garantia de serviços avançados de comunicação e informação. Faz parte do Plano Plurianual 2000-2004, com investimentos previstos de R$ 3,4 bilhões, em quatro anos, para colocar o país em condições
de operar a Internet com todos os requisitos técnicos já existentes nos países mais
avançados, tanto no que diz respeito à velocidade de transmissão de dados, quanto
a novos serviços e aplicações. Sua meta é criar, nos próximos quatro anos, as bases
para que aumente substancialmente a participação da economia da informação no
Produto Interno Bruto – hoje estimada em dez por cento. A indústria e as empresas brasileiras deverão ser os setores mais beneficiados, tornando-se mais competitivos no mercado internacional. O Programa Sociedade da Informação está estruturado em oito linhas de ação e em nove áreas de atuação. As linhas de ação indicam
a direção dos projetos: pesquisa e desenvolvimento em tecnologias-chave; prototipagem de aplicações estratégicas; implantação de infra-estrutura avançada para pesquisa e ensino; fomento a informações e conteúdos; fomento a novos empreendimentos; apoio a difusão tecnológica; apoio a aplicações sociais; governança no mundo eletrônico47.
Especificamente para analisar as questões envolvendo o comércio eletrônico,
principalmente no âmbito dos tratados comerciais multilaterais que o Brasil vem ne46 Brasil: Comitê Interministerial de Comércio Eletrônico. Notícia disponível na Internet em
<www.ce.mdic.gov.br>, acesso em 23.09.2002.
47 Brasil. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Programa Sociedade da Informação.
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gociando, como os acordos da OMC, as negociações da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA) e do Mercosul, foi criado, em abril de 2000, o Comitê Interministerial de Comércio Eletrônico, envolvendo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e o Ministério
do Planejamento (MP), além do Ministério da Fazenda (MF), Ministério das Comunicações (MC), Ministério das Relações Exteriores (MRE) e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), contando ainda com a participação da sociedade civil e da
iniciativa privada48.
Esse Comitê vem desenvolvendo, desde dezembro de 2001, o Programa Projetos-Modelo em Comércio Eletrônico. O programa se inspira em programas similares existentes em outros países e visa a desenvolver sistemas de tecnologia da informação, principalmente voltados para comércio eletrônico na Internet, especialmente onde o mercado não os desenvolve adequadamente, ao menos de início, principalmente pelo caráter inovador (técnico ou cultural) dos serviços (e, em certos casos, da tecnologia) e pela necessidade de ampla cooperação e parceria entre as empresas, onde em muitos casos não se supera com facilidade a barreira cultural da
competição direta. Seu alcance e potencial são enormes, como atestam as diversas
manifestações de interesse no programa, e o investimento pequeno e distribuído
por diversos agentes.
Atualmente, existem seis projetos sendo desenvolvidos: (i) Projeto Brasil
Rede, visa ao desenvolvimento de um sistema eletrônico on-line que dará suporte
técnico, operacional, logístico e informacional a técnicos e empresários brasileiros
residentes no exterior, objetivando a realização de negócios com empresas brasileiras, principalmente as pequenas e médias, que resultem em exportações; (ii) Sistema para ‘clusterização’ e exportação para o arranjo local do pólo têxtil de Nova Friburgo/RJ, que visa ao desenvolvimento de um sistema eletrônico on-line tipo B2B
que dará suporte técnico, operacional, logístico e informacional ao pólo têxtil existente naquela região do Estado do Rio de Janeiro, objetivando a capacitação avançada da comunidade em comércio eletrônico, em especial para o mercado externo;
(iii) Portal de exportações de bens culturais, voltado especificamente para o setor
fotográfico e que visa ao desenvolvimento de um sistema eletrônico on-line do tipo
portal internet B2B e B2C, voltado para a produção fotográfica brasileira, visando-a
sua exportação e, adicionalmente, contribuindo para o desenvolvimento da imagem
do país no exterior; (iv) Hub de transportes, que visa o desenvolvimento de um sistema eletrônico on-line que dará suporte técnico, operacional e logístico a pequenas e médias empresas de transporte de cargas terrestres, com vistas a sua inserção
na cadeia de suprimentos do comércio eletrônico; (v) Projeto de comunicação ele48 Conforme o texto do “Programa Projetos Modelo em Comércio Eletrônico”, do Comitê Interministerial de Comércio Eletrônico, os órgãos representantes da sociedade civil e da iniciativa privada no respectivo programa são:
CNC, CNI, CNT, Febraban, Assespro, ABES, Abrabet, CNA, CNDL, BRISA e AEB.
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trônica para a comunidade exportadora, que visa à ampliação do número de participantes da comunidade do comércio exterior (exportadores, importadores, governo,
transportadoras, terminais, agentes de carga, seguradoras e bancos) utilizando a troca eletrônica de informações e documentos, possibilitando o uso dessas práticas e
tecnologias por parte de pequenas e médias empresas, objetivando a agilização e redução de custos do comércio exterior, além de permitir a integração dessas empresas nas cadeias eletrônicas de clientes e fornecedores; e (vi) Projeto de comunicação automatizada com grandes varejistas estrangeiros, que objetiva abrir para as pequenas e médias empresas a possibilidade de vender para as grandes redes varejistas, principalmente norte-americanas, que já não mais aceitam se relacionar com
seus fornecedores por meio não eletrônico49.
Percebe-se, através da infinidade de iniciativas apontadas acima, que governo
brasileiro também se deu conta dos benefícios potenciais oferecidos pelo comércio
eletrônico no crescimento da economia brasileira, especialmente pelas possibilidades que proporciona de expansão das exportações brasileiras no comércio mundial
Contudo, os governantes brasileiros parecem ignorar outros aspectos importantes que envolvem o comércio eletrônico. Não há ainda qualquer estratégia esboçada, tal como ocorre nos Estados Unidos, bem como no Japão ou na UE, com relação à política de negociação da regulamentação jurídica que se prepara para ser instaurada no âmbito da OMC.
Um único documento brasileiro relacionado ao comércio eletrônico endereçado ao Conselho Geral da organização demonstra que o país limita-se a acompanhar a evolução do programa de trabalho. Aliás, o documento foi remetido juntamente com seus parceiros do MERCOSUL, o que também demonstra a passividade
dos mesmos perante o assunto50.
Certamente, é importantíssimo preocupar-se com a preparação do seu setor produtivo, comercial e de publicidade, de modo que possa competir em
igualdade com as empresas dos demais países, até mesmo porque é inegável que
exista uma irreversibilidade das alterações que as evoluções tecnológicas vêm impondo ao comércio internacional. Contudo, é imprescindível um envolvimento
maior na discussão no âmbito da OMC, bem como o estabelecimento de uma estratégia de negociação que contenha objetivos claramente determinados e que
seja fundada não só na participação ativa dos setores econômicos envolvidos,
mas também num amplo debate que envolva toda a sociedade, uma vez que a
questão é do interesse de todos, já que o comércio internacional está diretamente relacionado a questões não apenas econômicas, mas acima de tudo sociais (reflete-se também no trabalho, na educação, na cultura, na busca do bem estar social) e porque não de segurança nacional.
49 Brasil. Comitê Interministerial de Comércio Eletrônico. Programa Projetos Modelo em Comércio Eletrônico.
50 WT/GC/W/434.
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Assim, é indispensável conciliar a evolução científica, que possibilita a importantíssima capacidade competitiva no mercado internacional, com uma estratégia
bem definida de negociação das regras que virão a ser implementadas para normatizar a questão, buscando estabelecer dispositivos que favoreçam a expansão mercadológica da economia brasileira ou que ao menos sejam igualitárias e não possibilitem vantagens demasiadas aos competidores de outros países em detrimento dos
nacionais, a exemplo do que já ocorrera no passado.
É indispensável, por exemplo, negociar um melhor acesso à infra-estrutura e
a transferência de tecnologia, abertura gradual do mercado para evitar danos aos setores produtivos nacionais e, acima de tudo, acesso igualitário aos mercados dos
países desenvolvidos, visando a normas mais efetivas que impossibilitem ou ao menos dificultem a adoção de medidas protecionistas pelos países desenvolvidos em
favor de seus setores produtivos nacionais, tais como imposição de barreiras técnicas, subsídios ou sobretaxas aos produtos e serviços brasileiros mais competitivos,
a exemplo do que vem ocorrendo nos setores siderúrgico e agrícola.
O comércio eletrônico, devido à sua amplitude e à sua acelerada dinâmica
constantemente evolutiva, ao que tudo indica, receberá uma regulamentação liberal
e flexível, aprofundando ainda mais a importância da capacidade competitiva no
mercado internacional, porém é preciso que se estabeleçam normas que possibilitem que essa regulamentação flexível e liberal que se pretende seja estabelecida de
maneira que efetive a igualdade de oportunidades a todos os atores do cenário comercial internacional, daí porque o governo brasileiro peca ao não dar a publicidade adequada ao assunto junto à sociedade e de envolver-se apenas superficialmente no debate internacional, enquanto acompanha, distante, a discussão que se desenvolve no âmbito da OMC.
5.
CONCLUSÕES
O presente trabalho pretendeu demonstrar a rápida evolução que vem permeando o mercado do comércio eletrônico mundial e como a questão da sua regulamentação vem evoluindo no âmbito da OMC, bem como quais são os interesses e
perspectivas que o Brasil deve vislumbrar para não ser atropelado pela celeridade
das inovações tecnológicas.
O texto do Trade Act 2002, somado aos interesses de outros países membros
da OMC, parecem deixar claro qual será a regulamentação internacional que será
dada à questão do comércio eletrônico. Diante disso, é imprescindível que o Brasil
se preocupe em estimular e desenvolver o surgimento da tecnologia necessária para
acompanhar os avanços e poder participar em grau de igualdade competitiva na disputa pelo seu espaço nesse rico e promissor setor comercial.
Os números, estatísticas e dados fornecidos no presente estudo demonstram
de maneira evidente que o Brasil, assim como os demais países que participam ati-
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vamente do comércio mundial, estão diante do surgimento de um mercado que
promete revolucionar o comércio internacional, proporcionando oportunidades
que jamais se apresentaram de maneira tão promissora para o setor produtivo dos
países em desenvolvimento.
Daí a importância que deve ser dada ao assunto tanto no seu aspecto técnicocientífico, como nos seus aspectos político e jurídico. O Brasil parece ainda estar engatinhando no primeiro aspecto. No segundo, que por sua vez é determinante para
se estabelecer o terceiro, parece que os negociadores brasileiros, a exemplo do que
ocorre com os demais países em desenvolvimento, ainda não aprenderam com os
erros do passado e continuam a não tratar com a seriedade necessária a importância de se determinar objetivos, para que da negociação dos acordos da OMC resultem normas jurídicas internacionais que sejam cumpridas em condições de igualdade por todos os envolvidos e impossibilitem a imposição de medidas protecionistas,
garantindo o acesso aos mercados dos países desenvolvidos, além de medidas que
facilitem o acesso à infra-estrutura e a transferência de tecnologia.
Parece ter ficado claro que nesse novo seguimento do mercado imensamente promissor, representado pelo comércio eletrônico, assim como em todos
os outros, aqueles que souberem se posicionar e determinarem quais são seus
objetivos com maior antecedência e clareza, certamente conseguirão expandir
seus mercados aumentando suas exportações e sua participação no disputado
mercado internacional.
Imprescindível dizer ainda, que, na “aldeia global”, tudo acontece de forma extremamente rápida, sendo indispensável extrema agilidade nessa determinação política, de modo a garantir uma participação efetiva, porém, sempre cautelosa, prudente e
sensata em todas as rodadas de negociação, enquanto, concomitantemente, se acelera
o incremento do investimento no desenvolvimento de pesquisas e na implementação
de projetos e programas, como os aqui sucintamente apresentados, sob pena de se
perder a oportunidade de expansão incomparável que o comércio eletrônico faz emergir dentro do já saturado, competitivo e atribulado comércio internacional.
7.
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Uma reflexão acerca dos Pactos e Convenções
Internacionais e sua aplicação no
ordenamento jurídico pátrio
Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo1
Bacharel em Direito pela UCSal (Universidade Católica do Salvador).
Conciliador dos Juizados Especiais Federais Cíveis na Bahia.
Aprovado, recentemente no concurso para advogado
da CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco).
Ex-aluno do Curso Jus Podivm.
[email protected]
1.
INTRODUÇÃO
Com o avanço da globalização e das ideologias calcadas em interesses econômico-financeiros, tendentes à expansão agressiva por novos mercados consumidores, o Direito moderno se vê diante da contingência de se adaptar a esses fatores
reais de poder2, rompendo, por conta desses mesmos fatores, não só com vetustos
institutos jurídicos, mas também impondo uma modificação na interpretação de outros tantos (serve de exemplo, a revisão do conceito de soberania por parte dos países participantes dos grandes mercados comuns). Além disso, tais agentes meta-jurídicos acabam por criar novos conceitos e figuras jurídicas (tome-se como exemplo,
a criação de um Tribunal Europeu para julgamento de algumas espécies de crimes,
1 Os meus mais sinceros agradecimentos aos professores Paulo Queiroz, Luiz Flávio Gomes, Ada Pellegrini Grinover e Alice Bianchini, pelos comentários, sugestões e críticas a este modesto trabalho.
2 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Sérgio Antônio Fabris Editor (SAFE), 1991, Rio Grande
do Sul.
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como é o caso dos crimes de guerra), desempenhando, assim, um verdadeiro papel
de força propulsora do Direito.
É dentro deste contexto mundial que o Brasil, hoje já participante do MERCOSUL (bloco econômico, na atualidade, em franca decadência) e assediado por outros
grandes conglomerados comerciais (Mercado Comum Europeu e o NAFTA, havendo, por parte deste último, uma grande pressão internacional para formar a ALCA –
Área Livre de Comércio entre as Américas), vê-se compelido a participar (ou, pelo
menos, a sofrer as conseqüências de sua omissão) das grandes decisões mundiais,
atuando, por esse mesmo motivo, cada vez mais, na realização e assinatura (por parte do Chefe do Poder Executivo – CF, art. 84, VIII) de novos tratados e convenções,
bem como assumindo, na mesma proporção, o compromisso de ratificar os mesmos
(CF, art. 49, I), para que possam adquirir, assim, força coercitiva dentro do ordenamento jurídico brasileiro e, ao mesmo tempo, demonstrar ao mundo, com tal comportamento, a seriedade com que é tratada a matéria pelo país.
Foi, tendo em conta esta nova moldura das relações mundiais, que o legislador constituinte de 1988 salientou, de maneira expressa, a questão relativa ao ingresso no ordenamento jurídico pátrio dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, dedicando, dada a relevância da matéria, artigo
específico (CF, art. 5º, § 2º) ao tema, o qual encontra-se, desta forma, positivado:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte” (grifo nosso).
Pois bem, diante desta situação, cabem aos estudiosos e operadores do direito,
não só analisar todas as conseqüências que essa série de acontecimentos irão ocasionar
em nosso ordenamento, mas também observar criteriosamente as interferências que
irão gerar em torno dos direitos e garantias expressos na Constituição Federal, assunto
que, dada a sua relevância e conteúdo marcadamente liberal, diz respeito, mais diretamente, aos ramos dos direitos penal e processual penal (servem de exemplo o Pacto de
San José de Costa Rica e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) e que demanda, por parte do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, caput), uma atuação diligente, tendo em vista a natureza eminentemente constitucional que rodeia o tema
(como, por exemplo, a natureza jurídica das normas de gênese alienígena e a maneira
como a Constituição disciplina a sua entrada em nosso ordenamento).
Contudo, ao se proceder a tal análise, deve-se ter em conta que estes dois últimos
institutos, quais sejam, os direitos e garantias, não são expressões sinônimas, sendo necessário, portanto, estabelecer as suas distinções, para que, destarte, possa se ter a real
noção da interferência destes tratados internacionais nos direitos e garantias contemplados em nosso ordenamento jurídico. Passemos, então, a esta diferenciação.
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2.
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DIREITOS E GARANTIAS E SUA DISTINÇÃO.
Tomado em seu significado autônomo e quase que desvinculado de toda
acepção política, o termo garantia tem por escopo estabelecer uma posição que assevera a segurança e põe cobro à incerteza e à fragilidade. Vale dizer, existe a garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se
deve conjurar.
Entrementes, surgem as primeiras dificuldades em precisar o significado deste termo quando ele é trasladado para a esfera política e jurídica, possuindo, a partir de então, um sentido não técnico, uma dimensão conceitual, de cunho axiológico, por estar vinculado aos valores da liberdade e da personalidade como instrumento de sua proteção.
A garantia, vista como um meio de defesa, coloca-se, então, diante do direito,
mas com este não se deve confundir. Esse equívoco de tratar de forma semelhante
os direitos e garantias, de utilizar as duas expressões como se fossem sinônimas,
tem sido reprovado pela doutrina mais abalizada3, a qual separa, com a devida precisão, os dois institutos.
Com efeito, este engano ocorre sempre que a garantia é colocada numa acepção em conexidade direta com o instrumento de organização do Estado que é a
Constituição. Além disso, se admitida fosse essa confusão, nunca se lograria um conceito exato e útil do que seja, realmente, uma garantia constitucional. Ademais, uma
vez adotado este caminho ideológico, cair-se-ia no obscurecimento de uma das noções mais importantes para a compreensão da progressão valorativa do Estado Liberal para o Estado Social, ou seja, acabar-se-ia por ignorar um dos pontos mais relevantes da história da evolução das garantias fundamentais nas Constituições.
Convém ressaltar, desde já, que existem dois pontos ao redor dos quais giram as
garantias, as declarações e os direitos desde a sua origem mais remota, quais sejam, o
indivíduo e a liberdade. No decorrer do século XX, um terceiro ponto foi acrescentado: a instituição. E diga-se, desde logo, que o advento deste terceiro ponto marca, com
cores definitivas, uma ruptura da linha clássica e tradicional no entendimento das garantias, que antes eram entendidas apenas como garantias individuais.
Tendo em vista a proximidade dos direitos com as garantias e considerando a
finalidade destas, que é tornar eficaz a liberdade tutelada pelos poderes públicos e
destacadas nas conhecidas declarações direitos, a doutrina latino-americana tem
procurado estabelecer um critério de distinção entre ambos os institutos, sabendose, contudo, que, feita uma rigorosa observância do mesmo, a preservação de tal critério distintivo se faz de todo inexeqüível, pois casos raros e excepcionais sempre
iram existir.
3 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª. edição, Malheiros, São Paulo, 2000, pp. 481-485.
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Para Carlos Sánchez Viamonte4, a expressão garantia abrange apenas “a proteção prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia”. E, nesta esteira do
raciocínio, o mesmo autor, em outra obra, sustentando a distinção entre garantia e
direito, estabelece que
garantia é a instituição criada em favor do indivíduo, para que,
armado com ela, possa ter ao seu alcance imediato o meio de fazer efetivo qualquer dos direitos individuais que constituem em
conjunto a liberdade civil e política5.
Outro estudioso argentino, Rafael Bielsa, citado por Paulo Bonavides, também
preocupado em estabelecer uma nítida distinção entre os dois institutos sobre comento, pontua que “as garantias são normas positivas, e, portanto, expressas na
Constituição ou nas leis, que asseguram e protegem um determinado direito”6.
Considerando a latitude do presente instituto, Bielsa afirma que
a garantia pode referir-se a um direito em sentido subjetivo, em defesa do interesse individual, ou a um direito em sentido objetivo,
em defesa do interesse coletivo7.
Releva notar, ainda, que, nesse passo, grande também foi à contribuição de
Juan Carlos Rébora, também citado por Paulo Bonavides, o qual consigna que
as garantias funcionam em caso de desconhecimento ou violação
do direito e que o fracasso das garantias não significa a inexistência do direito; suspensão de garantias não pode significar supressão de direitos8.
Não é demais, ainda, lembrar a lição de Rui Barbosa acerca da matéria, o qual
assim pondera:
a confusão, que irrefletidamente se faz muitas vezes entre direitos
e garantias, desvia-se sensivelmente do rigor científico, que deve
presidir à interpretação dos textos, e adultera o sentido natural
das palavras. Direito é a faculdade reconhecida, natural, ou legal,
4 VIAMONTE, Carlos Sánchez. Manual de Derecho Constitucional, 4ª. edicíon, Buenos Aires, 1959, p.123.
5 VIAMONTE, Carlos Sánchez. El Habeas Corpus: la Libertad y su Garantía, Buenos Aires, 1927, p. 1.
6 Rafael Bielsa, apud Paulo Bonavides, ob. cit. p.483.
7 Rafael Bielsa, apud Paulo Bonavides, ob. cit. p.483.
8 Juan Carlos Rébora, apud Paulo Bonavides, ob. cit. p.483.
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de praticar ou não praticar certos atos, ao passo que a garantia
ou segurança de um direito, é o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados de ocorrências mais ou menos fácil9.
Todavia, o mais recente contraste entre os direitos e garantias é lembrado
pelo constitucionalista português Jorge Miranda, o qual a respeito do tema, escreve:
Clássica e bem atual é a contraposição dos direitos fundamentais,
pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos ou direito e liberdades, por um lado, e garantias, por outro lado.
Os direitos representam por si só certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas (ainda
que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo); os
direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se direta e
imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias, as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem
com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se10.
Entretanto, ao tratar do direito de liberdade, exemplo maior de conquista do
Estado Liberal, Jorge Miranda tece uma discriminação ainda mais contundente e clara, a saber:
– As liberdades assentam na pessoa, independentemente do Estado; as garantias reportam-se ao Estado em atividade de relação
com a pessoa; - as liberdades são formas de a pessoa agir, as garantias modos de organização ou de atuação do Estado; - as liberdades valem por aquilo que vale a pessoa, as garantias têm valor
instrumental e derivado11.
Por outro lado, para José Joaquim Gomes Canotilho,
9 BARBOSA, Rui. A Constituição e os Atos Inconstitucionais, 2ª, Rio de Janeiro, s/d, pp.193/194.
10 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, tomo IV, “Direitos Fundamentais”, Coimbra, 1988,
pp.88/89.
11 MIRANDA, Jorge. Ob. Cit. p. 89.
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tomadas a rigor, as clássicas garantias também são direitos, embora muitas vezes se salientasse nelas o caráter instrumental de proteção dos direitos12.
Consideradas neste último aspecto, as garantias traduzem-se quer no direito
dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos, quer no reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade.
Contudo, convém ressaltar que a distinção até aqui estabelecida entre direitos
como normas meramente declaratórias, e as garantias como normas essencialmente assecuratórias, não é decisiva, em face do texto constitucional, porque, a rigor, as garantias em certa medida são declaradas e, às vezes, declaram-se os direitos
usando forma assecuratória.
De fato, a Constituição não estabelece regra que aparte as duas categorias,
nem sequer adota terminologia precisa a respeito das garantias, o que se constata
no Título II e Capítulo I deste, nos quais não foram estabelecidas pelo legislador
constituinte quaisquer espécies de organização e sistematização acerca destes desiguais institutos13.
Diga-se, ainda, por oportuno que é, que as garantias não se confundem com
os remédios constitucionais14. As garantias são de conteúdo mais abrangente, incluindo todas as disposições assecuratórias de direitos previstos na Constituição.
No mais, convém assinalar que alguns dispositivos constitucionais contêm direitos e garantias no mesmo enunciado, é o que se vê no inciso X, do artigo 5º, da
Constituição Federal de 1988.
Diante de tudo quanto até aqui foi dito, nota-se que a premente necessidade
de afirmar e proteger a liberdade perante o Estado foi, como se percebe a olho nu,
o marco jurídico desta elaboração conceitual, a qual é produto dos pensamentos e
constatações de juristas liberais, que acrescentaram na terminologia do antigo, mofado e ditatorial direito público as locuções de direitos individuais, garantias individuais e, por derradeiro, mas com imenso êxito e eficácia de expressão, as denominadas garantias constitucionais.
Nesse passo, cumpre salientar que tais garantias constitucionais podem ser
encontradas na doutrina com quatro sentidos diferentes.
No primeiro deles, a garantia constitucional aparece, conforme anota José
Afonso da Silva15, como reconhecimento constitucional dos direitos fundamentais;
assim, a declaração de direitos seria simplesmente um compromisso de respeitar a
existência e o exercício desses direitos, “que não provêm de lei alguma, senão dire12 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional - Coimbra: Almedina, 1993, p. 520.
13 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13ª edição, 1997, Malheiros, pp.183-184.
14 MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.
15 Ob. Cit. p. 184.
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tamente da qualidade e dos atributos naturais do ser humano”; parte-se da idéia de
que os direitos preexistem à Constituição, que não os cria nem outorga, reconheceos apenas e os garante; é uma idéia vinculada à concepção do direito natural ou da
supra-estatalidade dos direitos fundamentais.
Tomada num segundo aspecto, as garantias constitucionais significam as “prescrições que vedam determinadas ações do poder público, ou seja, formalidades prescritas pelas Constituições, para abrigarem dos abusos do poder e das violações possíveis de seus concidadãos os direitos constitutivos da personalidade individual”16.
Apreciada sobre um terceiro enfoque, as garantias constitucionais consistem
na proteção prática da liberdade levada ao máximo de sua eficácia”17 ou “recursos jurídicos destinados a fazer efetivos os direitos que assegura”18.
Há, ainda, uma quarta concepção acerca dessas garantias, a qual tem um sentido mais amplo do que as demais e refere-se aos “meios predispostos para assegurar a observância, e, portanto, a conservação, de um determinado ordenamento
constitucional”19. Note-se que esta última concepção aproxima-se dos mecanismos
de defesa de dado regime político constitucional, sendo mesmo até contrário, às vezes, aos direitos, porquanto são meios que importam na suspensão destes e de algumas de suas garantias (estado de defesa e estado de sítio).
Estabelecida a distinção entre os direitos e as garantias e demonstrada as dificuldades que marcam o tema, é necessário deixar bem claro que não serão todos os
tratados, que venham a ter o Brasil como parte, que poderão ingressar no ordenamento jurídico pátrio, visto que, como impõe uma interpretação sistemática do texto constitucional, somente poderão ter, mais do que validade, existência dentro do
ordenamento jurídico nacional, se não forem tendentes a abolir os mencionados direitos e garantias esposadas na Constituição (proteção conferida as mal denominadas cláusulas pétreas).
Aliás, essa é a redação do artigo 60, parágrafo 4º inciso IV da Constituição Federal que assim disciplina a matéria:
Art.60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta...
§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e garantias individuais (grifo nosso).
Logo, como se vê, os tratados internacionais, no que tange aos direitos e garantias contemplados em nosso texto constitucional, não têm um campo de atuação
16 BAZDRESCH, Luiz. Curso elementar de garantias constitucionales, México, Editorial Jus, 1977.
17 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 17ª edição, Saraiva.
18 BASCUÑÁN, Alejandro Silva. Tratado de Derecho Constitucional, Santiago, Editorial Jurídica da Chile, 1963.
19 CAETANO, Marcello, Manual de ciência política e direito constitucional, 6ªed., Lisboa, Coimbra Editora, 1970.
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tão amplo como se possa imaginar, pelo contrário a sua área de desempenho é ainda menor, se considerado que não só não podem abolir, como também não poderão restringir tais direitos e garantias, sejam esses individuais ou institucionais20.
Poder-se-ia dizer acerca dessa última intelecção, que a mesma é despropositada e carecedora de fundamento, uma vez que o texto constitucional utilizou as expressões abolir, em vez de restringir, e individual, sem acrescentar o vocábulo institucional. Pois bem, ousamos a discordar deste entendimento vinculado à letra “mal
compreendida” da lei, pelos motivos que passamos a expor.
Em primeiro plano, cabe lembrar que a função de adequar e encontrar o sentido real e atual do texto legal é exclusiva do hermeneuta, e não do legislador, pois
é ele que, em vista das situações concretas, terá que aplicar o texto legal abstrato,
geral e impessoal. Vale dizer, será este que irá ponderar o conteúdo fático, o seu valor e aplicar, tendo em vista o espírito da lei (mens legis), a norma, tendo em conta
a natureza tridimensional do direito21.
Portanto, o intérprete não estar vinculado ao texto legal, nem muito menos
por ele limitado, ao contrário, pode-se valer de um sem número de métodos de interpretação (histórico, teleológico, sistemático, dentre outros) para alcançar o verdadeiro sentido da norma.
Além disso, cabe lembrar, com Carlos Maximiliano22, que a interpretação gramatical é a mais desprezível e restrita de todas, só devendo ser utilizada de forma
complementar, ou seja, suplementando os outros citados métodos.
Num segundo plano, convém ressaltar que admitir, ainda que em tese, que os
direitos e garantias possam ser restringidos por meio de tratado internacional é, a
um só tempo, incorrer em dois equívocos, quais sejam, contrariar a própria finalidade para qual foram constituídos tais direitos e garantias, ou seja, a de declarar e proteger direitos fundamentais ao ser humano e ao seu convívio numa sociedade civilizada, bem como o de tornar regra geral um verdadeiro retrocesso no que concerne à matéria ora sob comento (os direitos e garantias), ainda mais se considerada
que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito (CF, art.
1º, caput) e que tem como seus fundamentos, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, incisos II e III, respectivamente), e como objetivos fundamentais, dentre alguns, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária; o de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
20 Quanto aos direitos e garantias institucionais estes, ao contrário dos individuais, não se referem a pessoas, mas
a determinadas instituições (servem de exemplo a maternidade, a família, a liberdade de imprensa, o funcionalismo público, os entes federativos) que possuem sujeito e objeto diferenciados e que são protegidas diretamente
como realidade sociais objetivas e só, indiretamente, se expandem para a proteção dos direitos individuais. Para
uma visão mais aprofundada acerca do assunto, consulte-se a obra do estudioso português J.J. Gomes Canotilho,
intitulada “Direito Constitucional”, p. 522.
21 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. Saraiva, 1999, São Paulo.
22 MAXILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Forense, 10ªed., Rio de Janeiro.
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e regionais; e o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, incisos I, III
e IV, respectivamente).
O absurdo torna-se ainda maior, se o ponto de partida da interpretação for,
isoladamente, os tratados internacionais relativos às matérias penal e processual penal. Isto porque tais ramos do direito constituem, na verdade, a positivação de todas as garantias mínimas do acusado frente ao poder desproporcional do Estado
(esta é a idéia fundamental da constituição do Estado de Direito). Logo, admitir que
as aludidas normas estrangeiras possam restringir direitos e garantias do acusado é,
não só uma grande tolice, como, a um só tempo, violar o Estado Democrático de Direito e o seu princípio basilar, qual seja, o da legalidade, pois este é concebido para
cristalizar direitos e garantias mínimas e não para positivar absurdos dentro do ordenamento jurídico.
Saliente-se, ainda, que, em tal caso (admitidas com o escopo de restringir direitos e garantias), tais normas estrangeiras, à vista do que dispõe o artigo 17 da Lei
de Introdução do Código Civil (LICC)23, não produzirão quaisquer efeitos perante o
nosso ordenamento, sendo, portanto, nulas absolutamente, uma vez que ofendem,
de forma clara e inconteste, a ordem pública.
E, em terceiro e último plano, faz-se mister adicionar aos direitos e garantias
individuais os direitos fundamentais e garantias institucionais, pois, de outra forma,
acabar-se-á por viabilizar a ofensa e até a abolição dos primeiros, vez que esses considerados indiretamente, se expandem para a proteção dos direitos individuais.
Exemplificando: violado restará o direito fundamental do menor recém-nascido de
ser amamentado por sua mãe, mesmo encontrando-se esta presa (CF, art.5º, L), se
restar violada as instituições da maternidade e da família (CF, Título VIII, Capítulo
VII).
Em suma: tendo-se em vista tudo quanto até aqui exposto, os tratados internacionais só poderão ingressar no ordenamento jurídico nacional se objetivarem
ampliar ou, pelo menos, não restringirem, direitos fundamentais e garantias (individuais e institucionais).
3.
A NATUREZA JURÍDICA DOS PACTOS E CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS
Convém ressaltar, agora, sob qual feição normativa os tratados, pactos e convenções internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico. Vale dizer, se
como normas constitucionais; como normas infraconstitucionais ordinárias; ou
como normas infraconstitucionais especiais.
23 LICC, Art. 17. “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão
eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes”.
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Como se vê, trata-se de matéria, deveras espinhosa, visto que dá margem a
várias exegeses por parte da doutrina e dos tribunais, as quais, basicamente,
como já se adiantou acima, resumem-se em três posicionamentos doutrinários, a
saber:
O primeiro deles, que encontra apoio na maioria da doutrina24 e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal25, tribunal este que tem como incumbência
constitucional a guarda da Constituição (CF, art. 102, caput), sustenta que as normas estrangeiras ingressam em nosso ordenamento como normas infraconstitucionais ordinárias. O que equivale a dizer que para essa linha de pensamento (concepção dualista26) os tratados internacionais situam-se, dentro da pirâmide Kelseniana27,
na mesma posição das leis ordinárias.
Os defensores desta corrente ideológica sustentam este posicionamento sob
o fundamento de que as normas estrangeiras não podem ser equiparadas às normas
constitucionais, pois tal procedimento afrontaria, em última análise, a soberania nacional e, quando menos, a ordem pública e os bons costumes praticados no Brasil
(LICC, art. 17).
Além disso, argumentam que um tratado internacional, referendado que é por
decreto legislativo aprovado por maioria simples, não pode se equiparar, nem muito menos revogar uma norma constitucional, a qual exige maioria qualificada de 3/5
(três quintos) para ser modificada (CF, art. 60, § 2º). O que acabaria por proporcionar, segundo esses, um abalo na rigidez da Constituição.
24 Luiz David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, dentre outros, em seu manual de Direito Constitucional defendem tal posicionamento. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, tratando do tema, destaca: “É pacífico no direito brasileiro que as normas internacionais convencionais têm força hierárquica de lei ordinária. Em conseqüência, se o Brasil incorporar tratado que institua direitos ‘fundamentais’, estes terão força de lei ordinária” – FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo. Saraiva, p. 99.
25 STF, Pleno, ADIn 1.480-DF, Rel. Min. Celso de Mello, transcrito no HC 78.375-2 – Informativo STF, nº135, de 7
a11/12/98: “(...) PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS DE
DIREITO INTERNO.
– Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se,
no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera
relação de paridade normativa. Precedentes.
No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de
direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“lex posterior derogat
priori”) ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes.”
Medida Liminar, decisão do Min. Celso de Mello, DJ, 10 fev. 1999, p. 23, e CR 8.279-4, Rel. Min. Celso de Mello, DJ,
14 de maio de 1998, p. 35-6.
26 A doutrina lembra que, em contraposição a concepção dualista, existe a concepção monista acerca d natureza
jurídica dos tratados.
27 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Martins Fontes, 1999.
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Não fosse isso suficiente, os defensores de tal linha de pensamento lembram
ainda que outra demonstração de que as normas dos tratados internacionais são
equivalentes às normas ordinárias encontra-se na própria Constituição, em seu artigo 105, inciso III, alínea a28, ao conferir tratamento igual a ambas as espécies de normas no que tange à interposição de recurso especial apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça. Vale dizer, se a Constituição quisesse atribuir feição diferenciada aos
tipos de normas sub examine, teria deixado à apreciação do Supremo Tribunal Federal as normas internacionais.
Com efeito, o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, na expressão do atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Min. Marco Aurélio de Mello, revela apenas
propósito “simplesmente pedagógico [do constituinte]”29.
Nesse sentido, também, é a lição de Paulo Gustavo Gonet Branco30, que, defendendo tal posicionamento, afirma:
“O acervo de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal registra
precedentes em que se discute se o Pacto de S. José da Costa Rica,
em vigor no Brasil a partir da década de 90 e que proíbe a prisão
civil, ressalvando apenas o caso de dívida alimentícia, teria inviabilizado a prisão do depositário infiel, admitida pela Constituição,
no art. 5º, LXVII. Em diversas ocasiões, o STF confirmou a legitimidade dessas prisões, a começar pela decisão do Plenário, de
23.11.95, no HC 72.131, a que se seguiram diversas outras, como o
RE 206.086, DJ 7.2.97, o HC 75.925-1/SP, DJ 12.12.97, e o HC 77.3877/SP, DJ 23.10.98”.
Nesse passo, por oportuno que é, convém transcrever um trecho do voto do
Min. Moreira Alves, quando da decisão do HC 77.387-7/SP, DJ 23.10.98:
“– Esta Corte, por seu Plenário (HC 72.131), firmou o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de
alienação fiduciária, bem como de que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º,
28 CF, “Art.105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
(...)
III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (...)” (grifo nosso).
29 Em voto vogal, quando do julgamento, em 22.11.1995, no STF, do HC 72.131-1/RJ.
30 GONET BRANCO, Paulo Gustavo; MENDES, Gilmar Ferreira e COELHO, Inocêncio Mártires. Hermenêutica
Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília Jurídica. 2000, p.164.
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LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel”.
Por fim, mas não menos importante, os defensores desta primeira linha de
pensamento aduzem, ainda, a título de argumento, a circunstância de que se os tratados internacionais forem considerados normas infraconstitucionais ordinárias,
possível será estabelecer um controle de constitucionalidade dos mesmos, seja
quanto ao seu sentido expresso (ou formal), seja quanto ao seu significado essencial (ou material). O que, em contrapartida, ainda segundo aqueles, não será possível caso se admita a equivalência dos tratados às normas constitucionais, por não
poder haver normas constitucionais inconstitucionais.
No que concerne à segunda forma de entendimento acerca da natureza jurídica dos tratados internacionais, estes são equivalentes às normas infraconstitucionais especiais. Logo, ao contrário dos defensores da primeira corrente, os quais sustentam que entre os tratados internacionais e as leis ordinárias deve-se observar o
princípio de que a norma posterior revoga a anterior, para estes (defensores do segundo posicionamento) deve prevalecer outro princípio, qual seja, o de que a lei especial revoga a geral.
Desta forma, nota-se, desde já, o primeiro dos pontos de divergência entre a
primeira e a segunda linha de pensamento, qual seja, enquanto para o primeiro entendimento prevalece a regra temporal em caso de conflito entre os tratados internacionais e a lei ordinária, para o segundo, impõe-se a regra de aplicação da norma
especial em caso de conflito, desconsiderando-se, portanto, o fator tempo.
Os defensores31 desta segunda corrente ideológica, que têm em Kelsen32 um
de seus maiores expoentes, sustentam que os tratados equivalem-se às leis especiais, por se tratar de norma que, além de aprovada pelo Congresso Nacional (CF,
art.49, I), resulta de acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita
e regido pelo direito internacional33. Ou seja, enquanto as leis ordinárias são fruto
apenas da intelecção do Congresso Nacional (CF, art. 61 usque 69), os tratados são
produto de um pacto internacional que, para entrarem vigor em nosso ordenamento jurídico, ainda terão que ser ratificados pelo Congresso Nacional, após a assinatura do Chefe de Estado (Cf, art. 84, VIII).
31 Filiam-se a esse entendimento José Carlos de Magalhães (O Supremo Tribunal Federal e as relações entre direito interno e direito internacional, Boletim Brasileiro de Direito Internacional, 61-69:53, 1975-79, p.56), Celso
Albuquerque de Mello (Direito Constitucional Internacional, Rio de Janeiro, Renovar, 1994, p. 344), Haroldo Valladão (Direito Internacional Privado, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1974, v.3, p. 93 e ss.), Luciano Amaro (Direito Tributário Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2000, p.169-71), dentre outros.
32 Ob. Cit., p.437 e ss. e, especialmente, p.442-447.
33 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Saraiva, São Paulo, 1999, p.21.
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Mas esse não é o único motivo que fundamenta tal posicionamento, merece
ainda destaque o fato de que, por se tratar à convenção do resultado de um acordo
internacional entre diferentes Estados, esta não pode, simplesmente, ser revogada
por leis ordinárias nacional posteriores, pois, de outra forma, além de se retirar à eficácia e importância dessas normas internacionais admitida será, também, a responsabilização do Estado na Ordem Internacional, maculando não só a imagem do país
transgressor no cenário mundial, como também se criando uma crise de credibilidade em torno deste nas futuras convenções e relações internacionais. Em uma só palavra, acabar-se-ia por se instalar uma situação de mal-estar, com repercussão internacional.
Convém ressaltar, nesse passo, o entendimento da Corte Permanente de Justiça Internacional, em parecer proferido em 31.07.1930, afirmando a natureza especial dos tratados e a sua superioridade perante as leis ordinárias, o qual é lembrado
por Luís Roberto Barroso, nos seguintes termos:
É princípio geral reconhecido, do direito internacional, que, nas
relações entre potências contratantes de um tratado, as disposições de uma lei não podem prevalecer sobre a de um tratado (grifo nosso)34.
Os estudiosos que sustentam tal modo de entender aduzem, ainda, que o próprio ordenamento jurídico nacional dá, em diversas oportunidades, mostras de ser
este o melhor entendimento35. Aliás, outro não é o espírito do Código Tributário Nacional (Lei nº5.172/66), que em seu artigo 98 (tal artigo deve ser entendido com certas reservas, segundo Luciano Amaro36) dispõe:
“Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou
modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela
que lhes sobrevenha” (grifo nosso).
Outros são os exemplos identificados no ordenamento jurídico no mesmo
sentido, são eles: a) os casos de extradição, onde se considera que a lei interna (Lei
nº6.815/80), que é geral, cede vez ao tratado, que é regar especial37; b) a situação
34 Ob. Cit., p.16.
35 MACHADO, Hugo de Brito. Tributação no Mercosul, no Caderno de Pesquisas Tributárias, Nova Série, nº3,
p.87.
36 Ob. Cit., p. 171.
37 A propósito, convém assinalar que o Supremo Tribunal Federal já decidiu acerca da matéria, neste mesmo sentido: “No sistema brasileiro, ratificado e promulgado, o tratado bilateral de extradição se incorpora, com força
de lei especial, ao ordenamento jurídico interno, de tal modo que a cláusula que limita a prisão do extraditando ou determina a sua libertação, ao termo de certo prazo (45 dias, contados do pedido de prisão preventiva),
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prevista no art. 178 da Constituição Federal (alterado pela Emenda nº7/95), o qual
trata da ordenação dos transportes internacionais38.
Entretanto, para a maioria dos juristas, dentre os quais se pode citar, a título
de exemplo, os nomes de Luís Roberto Barroso39 e Jacob Dolinger40, estes casos são
apenas exceções, que, como tais, apenas confirmam a regra geral, isto é, de que os
tratados equivalem-se às leis ordinárias.
Todavia, os defensores desse segundo modo de entender a natureza jurídica
das convenções internacionais aduzem que outra razão fundamental para que os tratados internacionais sejam equiparados a leis especiais é o fato de que se constituem, essencialmente, em acordos internacionais firmados entre determinados Estados acerca de uma dada matéria, o que implica dizer que só devem reger as relações entre os Estados assinantes do tratado, não se referindo, portanto, aos outros
Estados não participantes. Logo, são leis especiais porque regulam especificamente
as relações entre tais Estados e não toda e qualquer relação mantida entre diferentes Estados.
De outra forma, ainda segundo os defensores deste posicionamento, os tratados equivaler-se-iam às leis ordinárias e seriam revogados ou poderiam revogar essas, seja qual fosse a situação em exame, o que traria, ainda segundo os mesmos, sérias inconveniências, pois não só estabeleceria igual tratamento com todos os Estados, fossem ou não assinantes de determinado tratado, como também tornaria, totalmente, inútil à celebração de futuros tratados, já que o tratamento conferido seria uniforme, além do que criaria uma instabilidade no ordenamento jurídico interno, no que concerne às relações entre as pessoas físicas e jurídicas do país, vez que
estas teriam seus negócios, bens, direitos, garantias e liberdades pessoais, ora regulados por tratados, ora disciplinados por leis ordinárias.
Por fim, merece ser também trazido à baila o terceiro entendimento acerca da
natureza jurídica dos tratados, o qual acima nos referimos rapidamente e que sustenta a equivalência dos tratados41 às normas constitucionais.Os defensores desta úlcria direito individual em seu favor, contra o qual não é oponível disposição mais rigorosa da lei geral (90 dias,
contados da data em que efetivada a prisão – art. 82, §§ 2º e 3º da Lei nº6.815/80)” (RTJ, 162:822, 1997, Extr. 194
- República Argentina, rel Min. Sepúlveda Pertence).
38 CF, Art. 178. “A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à
ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”.
39 Ob. Cit., p.19-20.
40 DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado; parte geral. 2º ed., Rio de Janeiro, Renovar, 1993, p.102.
41 Note-se, entrementes, que, segundo os defensores deste último entendimento, não será todo e qualquer tratado que possuirá tal natureza jurídica, mas, tão-somente, aqueles que regulam, exclusivamente, direitos fundamentais e garantias individuais e institucionais, ou seja, normas internacionais fundamentais, emanadas dos princípios
gerais do direito e dos costumes dos povos civilizados. Nesse sentido, confira-se o art.38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
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tima linha ideológica defendem que o parágrafo 2º (segundo), do artigo 5º, da Constituição Federal dá ensejo a que se assevere que se adotou um sistema aberto de direitos fundamentais no Brasil, não se podendo considerar taxativa a enumeração
dos direitos fundamentais no Título II da Constituição.
Nesse sentido, então, é legítimo cogitar, como sustenta José Afonso da Silva42,
de direitos fundamentais expressos, direitos fundamentais implícitos e direitos fundamentais decorrentes do regime e de tratados internacionais. Vale dizer, de direitos fundamentais previstos, expressa ou implicitamente, no catálogo da Lex Legum
e direitos materialmente fundamentais que estão fora do catálogo. Direitos que,
apesar de não rotulados expressamente como fundamentais no título próprio da
Constituição, podem ser como tais considerados, em razão da análise do seu objeto e dos princípios adotados pela Constituição de 1988.
Essa sua fundamentalidade decorre diretamente da sua referência a posições
jurídicas ligadas ao valor da dignidade humana (CF, art. 1º, III), que, por sua importância, não podem ser deixadas à disponibilidade absoluta do legislador ordinário43.
Isto porque os direitos fundamentais não são a sobra de tudo o que o homem não
pode fazer, mas o núcleo mínimo resistente no qual estão cristalizados os direitos
essenciais à dignidade de qualquer pessoa humana.
Entendidos assim, os direitos fundamentais previstos nos tratados assinados e
ratificados pelo Brasil gozam, não apenas da condição de normas constitucionais
fundamentais, como também integram o rol das matérias constitucionais imodificáveis por emenda constitucional (ou seja, das erroneamente designadas cláusulas pétreas – CF, art. 60, § 4º, IV). Nesse sentido são os entendimentos de Antônio Augusto Cançado Trindade44 e Flávia Piovesan45 e Ada Pellegrini Grinover46.
Os que advogam este entendimento ressaltam, ainda, que o texto do parágrafo 2º, do artigo 5º é bastante claro neste sentido, uma vez que, após afirmar a existência dos direitos e garantias expressos na Constituição, deixa claro que estes não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Aliás, nesse passo, releva notar que está em curso no Congresso Nacional proposta de Emenda à Constituição (no contexto da chamada “Reforma do Poder Judiciário”) que visa a acrescentar ao artigo 5º da Constituição Federal um parágrafo 3º
42 Ob. Cit. p. 178.
43 Paulo Gustavo Gonet Branco lembra que a Constituição de 1969, em seu artigo 153, § 36 já dava azo a deduzirse a existência de outros direitos fundamentais além dos expressamente previstos no texto constitucional.
44 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Proteção dos Direitos Humanos e o Brasil. Brasília, Ed. da UnB,
1998, pp. 133-134.
45 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo, Max Limonad, 1996,
pp.94 e 98.
46 GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antônio Magalhães e FERNANDES, Antônio Scarance. As nulidades
no processo penal, RT, 6ª ed., São Paulo, 1999.
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(terceiro)47 com o escopo de confirmar, de forma definitiva, a qualidade de norma
constitucional às normas oriundas de tratados internacionais, bem como acaba por
ratificar, na sua inteireza, o presente entendimento, sendo esta, pois, a tendência do
legislador pátrio, seguido nisso pelo Superior Tribunal de Justiça48.
Este último entendimento ganha, ainda, maior relevância, quando se tomam
em consideração os tratados que estão a disciplinar direitos e garantias relativas aos
direitos penal e processual penal.
Por derradeiro, não se diga que este último entendimento não pode prosperar por criar a inconveniente possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais, como se destacou linhas atrás, uma vez que os tratados, além de poderem ser
declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, III, b), poderiam determinar a inconstitucionalidade de regras, já previstas na Constituição,
antes havidas como constitucionais.
A presente argumentação, segundo os causídicos desta linha de pensamento,
não merece prosperar, pois, como assinala Otto Bachof49, é possível, sim, haver normas constitucionais inconstitucionais, não havendo nisso nenhum absurdo50.
Ademais, como os tratados internacionais só se prestarão a não abolir (como
também a não restringir, no nosso entender) os direitos e garantias, não há por que
não admiti-los como normas constitucionais. Vale dizer, se é certo que as normas
restritivas devem ser interpretadas restritivamente51, também é certo que as normas
garantidoras devem ser interpretadas extensivamente.
Além disso, se os tratados internacionais versam sobre direitos fundamentais
e garantias individuais (e institucionais, no nosso entender), definindo os mesmos,
estes, na qualidade de normas constitucionais, têm aplicação imediata, consoante
dispõe o artigo 5º, parágrafo 1º (primeiro), da Constituição Federal.
Em síntese bem apertada de tudo quanto até aqui foi exposto, podemos, segundo o nosso entender, acentuar que os tratados internacionais, segundo a matéria e
princípios que os norteiam, são, no que concerne às matérias em geral (direito civil, co47 Art. 5º, § 3º. “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 (três quintos) dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais, condicionada à aplicação pela outra parte”.
48 STJ: cf. DJU, 11 mar. 1996, RHC 4.849-PR, p. 6664, rel. Min. Adhemar Maciel; e DJU, 19 mar. 1997, RHC 5507-PR,
rel. Min. Anselmo Santiago.
49 BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais?. Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa, Coimbra,
Livraria Almedina, 1994.
50 É o que ocorre, por exemplo, com as normas constitucionais (assim consideradas porque se encontram no texto da
Constituição) que apresentam algum vício formal na sua elaboração, sendo, portanto, inconstitucionais. Nesse sentido,
Ada Pelegrinni Grinover, em artigo publicado na Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº17 de 1999,
págs. 112-126, informa que o inciso XII, do artigo 5º da Constituição Federal, que trata do sigilo das correspondências
e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, teve sua redação modificada durante a confecção da redação
definitiva do dispositivo sem ter sido, como impõe a lei, submetida à apreciação da Assembléia Constituinte.
51 MAXIMILIANO, Carlos. Ob. Cit. p.45.
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mercial e outras), equiparados às leis ordinárias; no que se refere ao direito tributário,
aos transportes internacionais (CF, art. 178) e a algumas legislações especiais (Lei
nº6.815/80), equiparados às leis especiais e, quanto aos direitos fundamentais, às garantias (individuais e institucionais) e alguns ramos do direito (como, por exemplo, os
direitos penal e processual penal), equivalentes às normas constitucionais.
4.
MOMENTO A PARTIR DO QUAL PRODUZ SEUS EFEITOS.
O momento em que o tratado internacional passa a possuir eficácia deve ser
estudado, cindindo-se o mesmo em duas partes: a) o momento da assinatura do tratado e b) o momento da ratificação do tratado.
O primeiro momento, o da assinatura (ou celebração) do tratado, como ato
de soberania que é, requer, segundo dispõe a Constituição Federal, que seja praticado, privativamente, pelo Chefe de Estado, ou seja, pelo Presidente da República,
na qualidade de representante da República Federativa do Brasil nas questões relativas à seara internacional.
Aliás, esse é o comando contido no artigo 84, inciso VIII da Magna Carta, que
assim dispõe:
Art.84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos
ao referendo do Congresso Nacional.
Convém assinalar, entretanto, que apreciado, ainda neste momento, o tratado
ou convenção internacional não obriga o país assinante a observá-lo e cumpri-lo perante as relações jurídicas que forem travadas dentro do seu foro interno, ou seja,
ainda não se encontra vigente e integrado ao ordenamento jurídico interno, obrigando apenas o país, no que concerne às relações internacionais que venha a manter com os outros países assinantes52.
Sendo assim, para que os tratados possam obter vigência e produzir todos os seus
efeitos no ordenamento jurídico interno, mister se faz que estes sejam referendados (ou
ratificados) pelo Congresso Nacional (CF, art. 49, I)53, por meio de decreto legislativo.
52 Conforme dispõe o artigo 2º do Pacto de São José da Costa Rica: “Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no art.1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e
liberdades”.
53 CF, Art. 49. “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre tratados,
acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.
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Mas não é só isso. Após a aprovação pelo Congresso Nacional, a eficácia depende, ainda, da futura edição de decreto do Presidente da República.
Como se vê, trata-se de ato complexo, sujeito à conjugação de vontades do
Congresso Nacional, que resolve definitivamente mediante a aprovação por decreto
legislativo, e do Presidente da República, que celebra o acordo como Chefe de Estado para promulgá-lo após o referendo do Parlamento (STF, CR 8.279-4, Rel. Min.
Celso de Mello, DJU, 14 de maio 1998, p.35-6).
Vê, por conseguinte, que é a conjugação dos Poderes Legislativo e Executivo,
independentes e harmônicos entre si (CF, art. 2º), que permite aos tratados produzirem seus efeitos. E, nisto, estes se assemelham às leis ordinárias, vez que obedecem a processo de aprovação muito semelhante ao processo legislativo daquelas
(CF, art. 61 usque 69).
5.
PACTOS INTERNACIONAIS QUE EXERCEM INGERÊNCIA NO
PROCESSO PENAL BRASILEIRO.
Como se sabe o Brasil é assinante de diversos pactos, tratados e convenções
internacionais. Contudo, interessa-nos, no momento, ressaltar dois dos mais importantes no que tange à sua influência no processo penal brasileiro, quais sejam, o Pacto de São José de Costa Rica e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ou
Pacto de Nova York).
O primeiro foi aprovado pelo decreto legislativo nº27, de 1992 (DO de 28.5.1992)
e promulgado pelo decreto nº678, de 1992. Tal pacto proporciona sensíveis avanços garantistas54 para os direitos penal e processual penal brasileiro, permitindo, não só uma
leitura mais constitucional desses ramos do direito, como também uma visão mais humanista dos mesmos. Isto, aliás, é o que se constata a partir da leitura dos artigos 4º a
9º55, além dos artigos 11, 12, 13, 22, 24, 25, 27, 74, 75, 76, 77 e 7856.
O mesmo se diga acerca do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
– aprovado pelo decreto legislativo nº226, de 1991 (DO de 13.12.1991) e promulgado pelo decreto nº592, de 1992 – que, a exemplo de seu artigo 9º, proporciona a
proteção e extensão dos direitos e garantias da pessoa humana.
54 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. Editorial Trotta. Madri, 2000.
55 O artigo 4º trata do direito à vida, o artigo 5º do direito à integridade pessoal, o artigo 6º da proibição da escravidão e da servidão, o artigo 7º do direito à liberdade pessoal, o artigo 8º das garantias judiciais e o artigo 9º do princípio da legalidade e retroatividade.
56 O artigo 11 versa sobre a proteção da honra e da dignidade, o artigo 12 sobre a liberdade de consciência e de religião, o artigo 13 sobre a liberdade de pensamento e de expressão, o artigo 22 do direito de circulação e de residência, o artigo 24 da igualdade perante a lei, o artigo 25 da proteção judicial, o artigo 27 da suspensão de garantias e os artigo 74 a 78 das disposições gerais e transitórias – assinatura, ratificação, reserva, emenda, protocolo e
denúncia.
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DO CONCURSO PARA A MAGISTRATURA
E A RESERVA DE VAGAS PARA DEFICIENTES
Francisco Antonio de Oliveira
Presidente da 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região.
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho.
1.
DO MANDAMENTO LEGAL
Dispõe o inciso VIII, art. 37 da Carta Magna que “...a lei reservará percentual
dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.”
O objetivo protecionista é louvável, mormente em uma sociedade onde a discriminação não só contra os deficientes mas também contra as mulheres, contra os
negros, contra os menores, etc. dificulta a sobrevivência dessas pessoas. Todavia,
existe uma discriminação maior que é aquela que impede milhões de brasileiros pertencentes à classe média baixa, que hoje já se iguala à camada mais pobre, de terem
a chance de melhorar seu nível intelectual, freqüentando os bancos escolares de
uma universidade e conseguindo um diploma. Os mais afortunados fazem o ensino
fundamental e o ensino médio em escolas particulares de onde, mercê de um preparo mais acurado, conseguem um grau de otimização que possibilita o sucesso nos
vestibulares e ingresso nas melhores universidades públicas, onde o ensino é gratuito. Já os menos afortunados amargam a sua formação básica em escolas públicas gratuitas, com possibilidades mínimas de sucesso em vestibular e ingresso em universidade pública. Amargará mesmo nos estabelecimentos particulares onde o ensino
é caro e na maioria dos casos insatisfatório. Tudo isso refletirá quando o futuro profissional sair a campo para disputar uma vaga no mercado de trabalho.
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Dentro dessa visão projetada, seria forçoso concluir que a proteção ao portador de
deficiência também seria discriminação para com os demais. Isso poderia deixar de existir se vivêssemos num país onde todos tivessem oportunidades reais, onde o ensino fosse excelente e gratuito, mesmo porque este é o país em que se cobram mais impostos.
Entretanto, se pensarmos em um país justo com possibilidades iguais para todos, enveredaremos pelo caminho da utopia; então, busca-se a minimização com espécies de “meias solas”, com tantas proteções à latere da “discriminação” que daqui
a pouco teremos que inventar a proteção da “minoria da minoria discriminada”
2.
DA NORMA SELF EXECUTING
Pergunta que se faz é se o inciso VIII, do art. 37 da Constituição constitui norma auto-aplicável. O próprio inciso, ao acenar com o benefício, alerta que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de
deficiência e definirá os critérios de sua admissão.” Tem-se, pois, que a própria
Constituição deixou expresso que somente por meio de lei se fará a reserva dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e que também a
lei definirá os critérios de sua admissão. Portanto, a conclusão possível é a de que a
referida norma não é auto aplicável.
O direito revela-se em norma contida, não aplicável, aguardando que a lei defina os critérios de sua admissão.
É verdade que o art. 5º, § 2º da Lei nº 8.112/ 90 dispõe, no plano de provimento de cargos públicos que: § 2º
Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se
inscrever em concurso público para provimento de cargos cujas
atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento)
das vagas oferecidas no concurso.
Referida normatização, embora tenha fincado percentual de até 20% das vagas
oferecidas no concurso, não fixou critérios, limitando-se a dizer “cujas atribuições
sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras”. Se a intenção do legislador foi dar imprementabilidade ao dispositivo constitucional, não teve sucesso,
pois fez menos do que devia.
3.
DO CONCURSO
Suponhamos, apenas por amor à argumentação, que o inciso VIII, do art. 37 da
Constituição fosse auto aplicável ou que a Lei nº 8.112/ 90, art. 5º, § 2º houvesse cumprido a finalidade.
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Ainda que assim fosse, não vemos a necessidade de constar-se a reserva do
percentual em edital de concurso; primeiro, porque o portador de deficiência não
está impedido de inscrever-se em concurso: segundo, porque, enquanto não for
aprovado em concurso, a exemplo dos demais candidatos, tem ele mera expectativa de direito; terceiro, porque o fato de constar ou não em edital de concurso não
tem a menor importância. Edital de concurso não cria nem exclui direitos.
Se existir o direito, aprovado em concurso o candidato, aplicar-se-á a lei. O
fato de não constar o benefício em edital não tem o condão de alijar o direito.
Temos, pois, por ociosa qualquer manifestação nesse sentido. O deficiente teria direito à vaga após aprovação em concurso. A aprovação em concurso é um pressuposto.
3.1. Do critério de escolha
A norma constitucional não definiu qualquer critério, pois deixou para a lei. A
Lei nº 8.112/ 90 limitou-se a dizer:
Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se
inscrever em concurso para provimento de cargo cujas atribuições
sejam compatíveis com a deficiência de que são portadores; para
tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas no concurso.
A primeira parte da lei que assegura o direito de inscrever-se em concurso
opera na obviedade (art. 5º, II, CF). A parte in fine seria um direito que se adquire
após a aprovação em concurso.
Não existe critério definido para a aplicação do percentual, após a aprovação
(ver Lei nº 7.853/ 89, art. 1º, caput, §§ 1º, 2º; art. 2º, caput, inc. III, letras “a”, “b”,
“c” e “d”; Decreto nº 3.228/99, art. 39, caput, incisos. I, II, III; art. 40, caput, §§ 1º e
2º; art. 41; art. 42; art. 43, caput, § 1º, incisos. I, II, III, IV, V e § 2º.
Parece, prima facie, impensável a escolha de portadores de deficiência
com média 5,0 (cinco) de aprovação desclassificando candidato com média 7,0
(sete) ou superior. Exemplo: concurso para preencher 30 (trinta) vagas, sendo
06 (seis) vagas para portadores de deficiência. Foram aprovados 18 (dezoito)
candidatos; 16 (dezesseis) com notas que variam entre 7,0 (sete) e 9,0 (nove);
dois portadores de deficiência receberam a nota mínima de 5,0 (cinco). Como
estariam garantidos pelo percentual, passariam na frente de dois candidatos que
obtiveram nota superior.
Obviamente, esse critério conduziria à criação de dois tipos de funcionários:
uns preparados, outros, nem tanto.
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DO MAGISTRADO COMO AGENTE POLÍTICO
Existe uma diferença conceitual entre funcionário público e agente político. A
Magistratura, na qualidade de agente político, regida pela Lei Complementar nº
35/79, forma regime peculiar, razão pela qual não se pode aplicar dispositivo da Lei
nº 8.112/90 em concursos da Magistratura.
Não se nega, com isso, que a Lei nº 8.112/ 90 seja aplicável também aos juízes,
mas desde que os termos aplicados não desprestigiem as regras da Constituição e
do Estatuto da Magistratura (Lei Complementar que somente rende tributo à Constituição) – TRF 1ª Região, Processo nº 199701000051483, DJ 17.11.1997, pg. 97722,
Rel. Juiz Jirair Aram Meguerian.
Todavia, os juízes são agentes políticos e sua carreira deve, em princípio, submeter-se ao Estatuto próprio insculpido na Lei Complementar nº 35/79, recepcionada pela
nova ordem constitucional, fato reiteradamente decidido pela Excelsa Corte.
Também não deve passar despercebido o fato de que a Constituição, ao tratar especificamente da Magistratura de carreira (art. 93, I), faz menção tão-somente
ao concurso público de provas e títulos com a participação da OAB. O comando
contido no art. 37, VIII, CF é de eficácia contida e insere-se no regramento genérico
da Administração Pública.
5.
DA NÃO APLICAÇÃO DA LEI Nº 8.112/ 90 EM CONCURSO DA
MAGISTRATURA
Como vimos até aqui, a Magistratura é regida por Estatuto próprio (Lei Complementar nº 35/79), recepcionada pela atual ordem constitucional. Referido Estatuto, por ter a dignidade de lei complementar, não pode render tributo à lei de hierarquia inferior.
No âmbito do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, decidiu-se que “o princípio que preside a realização de concurso de ingresso na Magistratura é o da ordem
de classificação obtida” (MS 48.016- PE, Pleno, DJ. 10.11.95, pg.77.541, Rel. Juiz Nereu Santos, v.u.).
“Impõe-se ainda recordar que o Estatuto da Magistratura deve ser veiculado
por lei complementar, isto é, a Magna Carta reservou à lei complementar essa matéria e a Lei nº 8.112/ 90 é lei ordinária” (TRF 3ª Região, Processo nº 2002-61. 00.
016592-8- Ação Civil Pública).
Breve análise sobre a legislação que cuidou do assunto aflora claro que todo
o enfoque foi direcionado aos concursos para funcionário público da administração
direta e indireta.
A Lei nº 7.853/89, depois de normatizar de forma genérica no art. 1º, §§ 1º e
2º; no art. 2º, inciso III, letras “a” usque “c”, deixa claro na letra “d” a necessidade de
legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das
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pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de oficinas e congêneres integradas
ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência.
Como vimos, a Lei nº 8.112/ 90, art. 5º, § 2º, não definiu critérios e, portanto,
não atende ao preceito constitucional (art. 37, VIII).
O Decreto nº 3.228/99, que regulamentou a Lei nº 7.835/89, como se verifica
dos arts. 39, 40, 41, 42, 43, respectivos parágrafos e incisos, também não fixou critérios para a escolha, limitando-se a indicar elementos formais referentes ao antes e
ao durante a realização do concurso, v.g. tratamento diferenciado; atestado do grau
de deficiência; tempo adicional para a prova, mediante parecer de especialista; concurso com assistência de equipe multiprofissional que emitirá parecer. Referida
equipe também avaliará a compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência do candidato durante o estágio probatório.
Como se vê, toda a legislação é direcionada ao concurso de funcionário público.
O concurso para a Magistratura é regido por Estatuto próprio, qual seja, a Lei
Complementar nº 35/79, recepcionada pela atual Constituição.
Concurso para preenchimento de cargos de funcionário público e concurso
para preenchimento de vagas na Magistratura são coisas díspares e não podem receber o mesmo tratamento. O arrebanhamento de Magistrados faz-se pela sua classificação em concurso público de provas e títulos, não se levando em conta seja o
candidato portador ou não de deficiência. O que importa é o seu real preparo para
o mister. Os portadores de deficiência são sempre bem-vindos, desde que concorram em igualdade de condições do ponto de vista intelectual. O contrário seria discriminação de próprio portador de deficiência, com a possibilidade de permitir-se
magistrados de categorias diferenciadas.
6.
DAS CONCLUSÕES
Todo e qualquer candidato a concurso é bem-vindo e sempre teve e terá tratamento compatível. Melhor do que exirgir percentuais para deficientes, para negros, para menores, para mulheres (vereadora e deputada), melhor seria que se desse real possibilidade de igualdade, possibilitando o preparo intelectual, oferecendo
para tanto todas as condições necessárias, pois todos são iguais perante a lei, pagam
impostos e sofrem agruras de insucessos na política econômica.
A Magistratura não é simples emprego. Como agente político, deve o candidato demonstrar preparo sólido, não se podendo fazer diferenciação entre o portador
de deficiência e aquele que não a porta, pena de instituirmos duas espécies de magistrados: de 1ª classe e de 2ª classe, o que não deixaria de ser uma forma de discriminação. O art. 37, VIII não é self executing. A Lei nº 8.112/ 90 não atendeu às exigências do inciso VIII, do art. 37 da CF. Ainda que assim não fosse, a Magistratura é
regida por Estatuto próprio – Lei Complementar 35/79. O art. 37, VIII, é de eficácia
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contida à espera de lei que lhe dê implementabilidade. Não vemos razão de ordem
legal para que se conste em edital de concurso da Magistratura a exigência da Lei nº
8.112/ 90. Edital não cria nem extingue direito.
No Processo da Ação Civil Pública (2002.03.00.032995-7), o Tribunal da 3ª Região decidiu que
Os Juízes são agentes políticos e sua carreira deve em princípio
submeter-se ao estatuto próprio que é a LC 35/79.... Impõe-se ainda
recordar que o Estatuto da Magistratura deve ser veiculado por lei
complementar, isto é, a Carta Magna reservou à lei complementar
essa matéria e a Lei nº8.112/90 é lei ordinária.
Por oportuno, também não se pode perder de vista que a Lei nº 8.112/90 é lei
federal e a sua interpretação final é de competência do Superior Tribunal de Justiça
(CF/88, art. 105, III, c).
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DA APLICABILIDADE IMEDIATA COMO A PRINCIPAL
CARACTERÍSTICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Carla Cabogrosso Fialho
Formada em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru, Instituição Toledo de Ensino.
Procuradora Jurídica do Município de Bauru.
Mestranda em Direito Constitucional – Sistema de Garantia de Direitos pela Instituição
Toledo de Ensino, orientada pelo Professor Doutor Vidal Serrano Nunes Júnior.
I.
INTRODUÇÃO
Os direitos fundamentais assumem relevante papel no Estado Democrático
de Direito, vez que tem como objetivo a concretização do princípio da dignidade
humana.
Os direitos fundamentais, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, não são considerados um sistema separado e autônomo no contexto da Constituição. Ao contrário,
eles estão esparsos em todo Texto Fundamental e até em tratados internacionais,
em face do disposto no artigo 5º, § 2º. Por essa diversidade de direitos fundamentais, entende o autor que, em princípio, impede que se estabeleçam critérios abstratos e genéricos que possam demonstrar uma identidade de conteúdo, inclusive no
sentido de uma relação de generalidade e especialidade.1
Entretanto, a maioria dos doutrinadores aponta a existência de características
próprias dos direitos fundamentais. Em geral, o rol delas não é idêntico, mas com
pequenas variações.
1 A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 776/77.
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Nesse contexto, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior apontam as seguintes características para os direitos fundamentais: historicidade, universalidade, limitabilidade, concorrência e irrenunciabilidade.2
Em trabalho dedicado exclusivamente às características dos direitos fundamentais, Walter Claudius Rothenburg aponta as seguintes: fundamentalidade, universalidade e internacionalização, inalienabilidade, indivisibilidade, historicidade,
positividade e constitucionalidade, sistematicidade, interdependência e inter-relação, abertura e inexauribilidade, projeção positiva, perspectiva objetiva, dimensão
transindividual, aplicabilidade imediata, concordância prática ou harmonização, restringibilidade excepcional, eficácia horizontal ou privada, proibição de retrocesso,
maximização ou efetividade.3
Dentre as características apontadas, ganha relevo a aplicabilidade imediata.
Não resta dúvida sobre a necessidade de conferir a máxima aplicabilidade aos
direitos fundamentais, posto que, sem isso, de nada adiantaria o vasto rol proposto
pelos Constituintes.
Como a forma de efetivar o princípio constitucional da dignidade da pessoa
humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, seria inócuo conferir aos direitos fundamentais, especialmente no que concerne a sua eficácia e aplicabilidade, idêntica posição aos demais direitos constitucionais.
Por tal razão, a Constituição Federal de 1988 determinou, em seu artigo 5º, §
1º, a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais.
Contudo, a extensão da expressão “aplicabilidade imediata” é bastante controvertida no contexto doutrinário nacional, em especial quando certos direitos fundamentais são veiculados por normas programáticas.
O presente texto tem como objetivo, de forma singela, apontar algumas das
posições doutrinárias acerca da aplicabilidade imediata, na busca de encontrar aquela que consiga dar eficácia aos direitos fundamentais e, como corolário, a efetiva proteção da dignidade da pessoa humana.
II.
DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E SUA EFETIVIDADE:
Na doutrina pátria, é possível verificar a existência de vários posicionamentos
sobre a aplicabilidade imediata das normas cujo conteúdo expressam direitos fundamentais. Contudo, antes de abordar esse tema específico, mister um breve comentário sobre as normas constitucionais.
José Afonso da Silva discrimina as normas constitucionais, sob o aspecto da
eficácia e aplicabilidade, em três categorias: a) normas constitucionais de eficácia
2 Curso de direito constitucional. 4ª ed., São Paulo: Saraiva,2001, p. 80/83.
3 Direitos fundamentais e suas características. In: Revista de direito constitucional e internacional. São Paulo, n.
30, jan-mar, 2000, p. 146/158.
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plena, b) normas constitucionais de eficácia contida e c) normas constitucionais de
eficácia limitada ou reduzida.4
Segundo o autor, a primeira categoria das normas, desde a entrada em vigor
da Constituição, já produz seus efeitos, incidindo direta e imediatamente sobre a
matéria que lhes constitui objeto. Na segunda categoria, as normas também incidem
imediatamente e produzem (ou podem produzir) todos os efeitos queridos, mas
prevêem meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia contida em certos
limites, dadas certas circunstâncias. Na última categoria, as normas não produzem
seus efeitos imediatamente a sua entrada em vigor, porque o legislador constituinte não estabeleceu sobre a matéria uma normatividade bastante para isso, deixando
essa tarefa ao legislador ordinário.5
Para o estudo da efetividade das normas constitucionais, Luís Roberto Barroso aponta para uma outra classificação. Contudo, segundo o autor, não se trata da
criação de novas categorias, mas da ordenação das já existentes na teoria das normas jurídicas, articulando-as em função do conteúdo e finalidade predominantes.6
Assim, classifica as normas constitucionais em: a) normas de organização, b)
normas definidoras de direitos e c) normas programáticas.7
As normas constitucionais de organização são destinadas à ordenação dos poderes estatais, à criação e estruturação de entidades e órgãos públicos, à distribuição de suas atribuições, bem como à identificação e aplicação de outros atos normativos. As normas constitucionais definidoras de direitos são aquelas que definem os
direitos fundamentais. E, as normas constitucionais programáticas são as que têm
por objeto estabelecer determinados princípios ou fixar programas de ação para o
Poder Público.
O autor define a efetividade das normas adotando o critério da posição jurídica em que se encontram os particulares. Assim, a primeira categoria, sendo
normas definidoras do poder político, é de eficácia plena. Em relação às normas
definidoras de direitos fundamentais, nenhuma dificuldade existe na aplicabilidade daquelas que dispõem sobre liberdades e garantias. O problema maior reside
na aplicabilidade das normas que definem os direitos sociais, posto que, na maioria das vezes veiculadas por normas programáticas. O autor aponta que, em certos casos, é possível invocar uma norma constitucional programática para impor
ao Poder Público determinada obrigação de fazer. Portanto, existiriam algumas
hipóteses que comportam, por parte dos legitimados, a exigibilidade de determinadas prestações positivas.8
4 Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 82.
5 Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 82/83.
6 O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 91.
7 O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 92 e ss.
8 O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 158.
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Há outras classificações tão importantes quanto as apresentadas; contudo,
tornaria o presente texto bastante extenso e distante da sua finalidade, qual seja: o
alcance do § 1º do artigo 5º da Constituição Federal.
III. DA APLICABILIDADE IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
O Constituinte determinou que as normas veiculadoras de direitos fundamentais tivessem aplicação imediata (artigo 5º, § 1º).
A aplicabilidade direta dos direitos fundamentais comporta investigação mais
detida, uma vez que nem todos os direitos constitucionais têm sua plena aplicabilidade, segundo as concepções constitucionais contemporâneas.
Se, todavia, o próprio Constituinte vislumbrou a essencialidade dos direitos
fundamentais e conferiu-lhe expressamente a aplicabilidade imediata de suas normas, resta, então, procurar conferir a máxima aplicabilidade aos direitos fundamentais, tornando-os plenamente eficazes na proteção à dignidade da pessoa humana.
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, tomando-se ao pé da letra a norma da
aplicabilidade imediata para os direitos fundamentais, inexistiriam, nesse campo,
normas não auto-executáveis.9 Em posição extrema, o autor entende que a aplicação
imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tem por limite a natureza das coisas. Isto é, não pode ter aplicação imediata, diga o que disser a
Constituição, uma norma incompleta.10 Como prova disso, o próprio autor lembra
que a Constituição Federal disponibiliza instrumentos para a defesa dos direitos fundamentais diante da inércia dos Poderes Públicos, como o Mandado de Injunção e
a Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão.
No entanto, há aqueles que adotam posição contrária a de Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, no sentido de que todas as normas que definem os direitos os direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata. A existência de mecanismos processuais criados pelo constituinte, como o Mandado de Injunção e a Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão, são colocados à disposição dos indivíduos na
defesa de seus direitos fundamentais, combatendo omissões dos legisladores e órgãos estatais, sendo a prova de que todos os direitos fundamentais possuem aplicabilidade imediata.11
Em comentário à Constituição Brasileira de 1988, Celso Ribeiro Bastos conclui
que o princípio vigorante é o da aplicabilidade imediata, que, no entanto, cede em duas
hipóteses: a) quando a Constituição expressamente refere que o direito acenado só será
exercitável nos termos e na forma da lei; b) quando o preceito constitucional for desti9 Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Vol. 1 – arts. 1º a 43. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 86.
10 Curso de direito constitucional. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 307/308.
11 Nesse sentido, GRAU. Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 3ª
ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 322 e ss.
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tuído de elementos mínimos que assegurem a sua aplicação, é dizer, não pode o vazio
semântico ser tão acentuado a ponto de forçar magistrado a converter-se em legislador.12
As concepções são bastante distintas, desde as mais extremas até posicionamentos intermediários. Contudo, não obstante a existência de posicionamentos extremos, deve-se levar em conta que as normas constitucionais, até mesmo aquelas
definidoras de direitos fundamentais, não raras vezes, dependem de complementação. Por tal razão, mesmo em se tratando de direitos fundamentais, a aplicabilidade
imediata de normas incompletas não poderia ocorrer.
No âmbito dos direitos fundamentais, Canotilho resolve o problema da aplicabilidade imediata dividindo-os em duas categorias distintas: as normas definidoras de liberdades e garantias e as normas sobre direitos econômicos, sociais e culturais.
O jurista português aponta que os direitos, liberdades e garantias são aqueles
cujo conteúdo é essencialmente determinado (ou determinável) ao nível das opções constitucionais, trazendo uma pretensão jurídica individual (direito subjetivo),
razão pela qual a doutrina insiste na sua aplicabilidade direta. E afirma:
“Se as normas constitucionais consagradoras de direitos, liberdades e garantias são dotadas de aplicabilidade directa (o que não
significa ser a mediação legislativa desnecessária ou irrelevante),
então é porque os direitos por elas reconhecidos são dotados de
densidade normativa suficiente para serem feitos valer na ausência de lei ou mesmo contra a lei.”13
Por outro lado, os direitos econômicos, sociais e econômicos são aqueles que
pressupõe uma atuação positiva dos órgãos dos poderes públicos. Contudo, para o
autor, a efetivação desses direitos não deve ser apenas um apelo do legislador. Existe uma verdadeira imposição constitucional, legitimadora, entre outras coisas, de
transformações econômicas e sociais, na medida em que estas forem necessárias
para a efetivação desses direitos. Por tal fato, conclui:
“a inércia do Estado quanto à criação de condições de efectivação
pode dar lugar a inconstitucionalidade por omissão, considerando-se que as normas constitucionais consagradoras de direitos
econômicos, sociais e culturais implicam a inconstitucionalidade
das normas legais que não desenvolvem a realização do direito
fundamental ou realizam diminuindo a efectivação legal anteriormente atingida.”14
12 Comentários à Constituição do Brasil. 2ª vol. – arts. 5º a 17. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 391.
13 CANOTILHO, J. J. Gomes.Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 524.
14 CANOTILHO, J. J. Gomes.Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993, p.545.
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As várias concepções sobre a aplicabilidade imediata demonstram a controvertida questão. Contudo, a aplicabilidade imediata aos direitos fundamentais foi
prevista pelo legislador constitucional, razão pela qual não se pode negar sua existência, nem tampouco reduzir seu alcance.
Com efeito, há normas de direitos fundamentais no Texto Constitucional que
demandam complementação, seja por legisladores infraconstitucionais, seja pelos
administradores, para sua efetiva aplicação.
Não se pode, entretanto, deixar que direitos fundamentais permaneçam inertes, servindo apenas como uma meta ou um programa social. A República Federativa do Brasil tem como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Por isso, o Poder Público deve atuar, de forma a alcançar tais objetivos. Para tanto, mister a concretização dos direitos fundamentais.
Portanto, aos direitos fundamentais se deve conferir a máxima aplicabilidade,
cabendo ao Poder Público atuar concretamente a fim de alcançar a efetivação desses direitos e não os tornar inertes.
IV. CONCLUSÃO:
A busca de soluções acerca da aplicabilidade imediata não deve perder de vista que os direitos fundamentais firmaram-se ao longo da história da humanidade
para a proteção da pessoa humana. Nisso reside a relevância da aplicabilidade imediata dessas normas. Assim, a extensão do preceito contido no artigo 5º, § 1º da
Constituição Federal deve ser a máxima possível.
O alcance do preceito constitucional não pode ser reduzido, como apontam
algumas concepções. Por sua vez, não há como negar a existência de normas programáticas ao longo do texto fundamental, inclusive veiculadoras de direitos fundamentais. Assim, como acertado posicionamento, a norma contida no § 1º do artigo
5º da Constituição Federal impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais.15
Em conclusão, a aplicabilidade e a efetividade das normas constitucionais sobre direitos fundamentais demandam vasta perquirição no mundo jurídico. O problema, contudo, deve ser enfrentado à luz da máxima aplicabilidade dessas normas,
evitando e repudiando qualquer posicionamento jurídico ou conduta que minimizem a aplicabilidade dos direitos fundamentais, em especial por parte dos poderes
públicos.
15 Cf. PIOVESAN. Flávia. Constituição e transformação social: a eficácia das normas constitucionais programáticas e a concretização dos direitos e garantias fundamentais, in Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São
Paulo nº 37 (1992) apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 247.
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V.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JR. Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 4ª ed., São Paulo: Saraiva,2001.
BARROSO. Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas.
3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª vol. – arts. 5º a
17. São Paulo: Saraiva, 1989.
CANOTILHO, J. J. Gomes.Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de
1988. Vol. 1 – arts. 1º a 43. São Paulo: Saraiva, 1990.
_______. Curso de direito constitucional. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
GRAU. Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (Interpretação
e Crítica). 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
PIOVESAN. Flávia. Constituição e transformação social: a eficácia das normas
constitucionais programáticas e a concretização dos direitos e garantias fundamentais, in Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo nº 37 (1992).
ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais e suas características.
In:Revista de direito constitucional e internacional. São Paulo, n. 30, jan-mar, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001.
SILVA. José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998.
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O QUE É REFORMA TRIBUTÁRIA?
Yoshiaki Ichihara
Professor Titular de Direito Tributário das UniFMU
Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau
Atualmente auxiliando na 9ª Câmara de Direito Público do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Mestre e Doutor em Direito de Estado (área de concentração em Direito Tributário)
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.
1
INTRODUÇÃO
A pergunta “o que é reforma tributária?” nem sempre é fácil de ser respondida.
Pretendemos desenvolver um texto que possa responder, pelo menos em
parte, a persistente indagação, já que, analisando o conteúdo de todas as alterações
do sistema tributário, desde 1965 e até hoje, não tem sido outra coisa senão remendos ao sistema jurídico e objetivando sempre um aumento da arrecadação e que resulta em maior carga tributária.
O aumento da carga tributária, sem que o Estado cumpra efetivamente as suas
funções institucionais, só serve para tirar o capital produtivo do mercado, com reflexos negativos à economia, aumento da injustiça fiscal e com a diminuição da credibilidade do Estado.
Partimos, inicialmente, da análise do perfil constitucional do sistema tributário
atual, sua estrutura, divisão das competências e procuramos demonstrar como funciona
o sistema jurídico tributário.
1 O Deputado Federal MARCOS CINTRA é defensor do imposto único no Brasil. A tese é sugestiva, mas existem
óbices intransponíveis nos aspectos econômico e jurídico. Como encontrar um único fato econômico capaz de
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Sendo o Brasil uma República Federativa, não há lugar para o imposto único, como
decorrência de dois óbices: um econômico e outro jurídico.1
No conceito de reforma tributária, só pode ser assim denominado, se for uma
alteração boa para todos os partícipes do sistema: para o fisco, para o contribuinte,
para o consumidor e para o povo em geral.
Os critérios da reforma precisam ser objetivos, deve buscar obstinadamente a
justiça fiscal e social, simplificar o sistema tributário e implantar uma administração
tributária eficaz de combate à sonegação fiscal.
A administração pública precisa de legitimidade para exigir, credibilidade e autoridade moral, através da implementação de critérios justos e de uma administração tributária eficaz.
Por último, apresentamos as nossas conclusões.
2
PERFIL DO SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO ATUAL
Não podemos ignorar que o Brasil é uma República Federativa constituída
pela união indissolúvel dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios
(art. 1∞ da CF/88).2
Quando falamos em República, entenda-se “forma de governo”, e Federativa
quer dizer, forma ou “estrutura do Estado brasileiro”.
Diferente do Estado unitário e, portanto, entenda-se, além do Estado soberano (União Federal), coexistem os Estados-membros, Distrito Federal e Municípios,
todos autônomos (art. 18 da CF/88).
Autonomia significa, no seu aspecto formal, a inexistência de hierarquia entre os
entes políticos, uma vez que, em matéria tributária, a atribuição das competências privativas, em outras palavras, significa divisão material dos tributos, sem possibilidade de
ocorrer uma bitributação, invasão de competência ou uma tributação bis in idem.3
identificar a exteriorização da capacidade econômica? Geralmente, quem estudou sobre a questão aponta a “propriedade”, a “renda” e o “consumo”, entre outros, como fatos exteriorizadores da capacidade contributiva. De outra parte, no plano jurídico, por ser o Brasil uma República Federativa, onde a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e Municípios, sendo todos autônomos, impossível atribuir um único fato como gerador do imposto
único, já que a autonomia deve corresponder a existência de receitas próprias (autonomia financeira), competência legislativa (legislativo próprio), matérias e administração autônoma. Portanto, fica claro a impossibilidade econômica e jurídica da implantação do imposto único no Brasil.
2 MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo : Saraiva,
1990, v. 1, p. 17: “A forma de estado brasileiro é definida como federativa, quer dizer, o Brasil é um Estado federal.
Acrescente-se e sublinhe-se que a Constituição enfatiza ser a federação brasileira formada ‘pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal’.”
3 JOSÉ AFONSO DA SILVA, sobre a autonomia dos Municípios, diz o seguinte: “A autonomia Municipal, assim,
assenta em quatro capacidades: a) capacidade de auto-organização, mediante elaboração de lei orgânica própria; b) capacidade de autogoverno pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às respectivas Câmaras Municipais; c) capacidade normativa própria, ou capacidade de autolegislação, mediante a competência de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar; d) capacidade de auto-administração (administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local.” (O
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Portanto, a competência, no campo da instituição dos tributos da espécie impostos, a Constituição Federal atribuiu: nos arts. 153 e 154 (à União Federal); no art.
155 (aos Estados-membros e ao Distrito Federal) e no art.156 (aos Municípios). A
competência residual ficou reservada à União Federal (art. 154, I, da CF/88).
No caso das taxas e contribuição de melhoria, cujo fato gerador depende
de uma atuação estatal, direta (serviços públicos e exercício do poder de polícia) ou indiretamente referida ao contribuinte (obras públicas que acarretem a
valorização imobiliária), além da atribuição segundo as competências administrativas dos entes federados (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), reservou a competência residual aos Estados-membros e ao Distrito Federal (art. 25, § 1∞, da CF/88).
Os Empréstimos Compulsórios ficaram no campo da competência exclusiva da União (art. 148 da CF/88).
No que se refere às contribuições sociais (arts. 149 e 195 da CF/88), que
englobam
a) contribuições de intervenção no domínio econômico; b) de
interesse das categorias profissionais e econômicas e c) as previdenciárias e de assistência social, com exceção destas últimas, que poderão ser instituídas pela União, Estados-membros,
Distrito Federal e Municípios, as duas primeiras são de competência exclusiva da União Federal.
Com este perfil de sistema tributário, a carga tributária da atividade oficial
e formal, o Brasil, no ano 2001, atingiu 34,36% do PIB (produto interno bruto),
ou seja, maior que os Estados Unidos e o Japão, que atingiram, respectivamente, 28,9% e 26,2%.4
Por último, tanto os Estados Unidos como o Japão estão preocupados em
baixar a carga tributária como instrumento para implementar o desenvolvimento econômico.
3
REFORMA TRIBUTÁRIA: AUMENTO DA ARRECADAÇÃO OU DA
CARGA TRIBUTÁRIA?
Podemos afirmar que, no Brasil, apesar do rótulo reiteradamente utilizado,
desde a grande modificação em 1965, nunca houve reforma tributária no seu
sentido específico e estrito.
Município na Constituição de 1988, RT, p. 8). Este conceito é aplicável a quaisquer entes políticos integrantes da República Federativa do Brasil.
4 Dados extraídos do Balanço Nacional e publicado no jornal O Estado de São Paulo, edição de 16-06-2002.
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O que houve são remendos, sempre com um único objetivo: arrecadar
mais e com o aumento da carga tributária.5
Reformar o sistema tributário, no sentido aqui adotado, significa: aproveitar
os alicerces existentes do atual sistema jurídico e emendar, retificar, melhorar,
aprimorar, implementar o interesse público etc.
O significado é o mesmo de reformar uma casa: aproveitamos a estrutura,
mensurando custo/benefício, melhoramos a utilidade, com o aproveitamento do espaço físico, o conforto, valorizamos o imóvel, isto é, melhorando em todos os sentidos e para todos.
Estas opções e objetivos podemos denominar como sendo POLÍTICA TRIBUTÁRIA.6
A verdadeira reforma tributária deve ser bom para o fisco, para o contribuinte e para os consumidores, enfim, para o povo em geral e para o Brasil.
O Estado constitucional não admite arbitrariedades na tributação e, modernamente, aparece como forma legal e lícita de levar dinheiro aos cofres públicos.7
Concluindo, uma reforma que não seja boa para todos, sem dúvida, não alcançará os objetivos do fisco, uma vez que a “falsa reforma” e com o objetivo apenas de
aumentar a carga tributária, somente aumentará a sonegação, a concorrência desleal
dos maus contribuintes, tendo como resultado final o aniquilamento dos bons, honestos e patrióticos contribuintes.
4
CRITÉRIOS OBJETIVOS DA REFORMA
A reforma tributária no Brasil exige alteração constitucional, pois toda a estrutura do sistema tributário encontra-se no Texto Magno.
Existem limites materiais e formais, somente possíveis de serem alcançados
com uma discussão ampla (Estado Democrático), com o envolvimento de todas as
partes interessadas (do fisco, do contribuinte, das entidades de classe, dos consumidores, do povo etc.).
5 Projeto de Emenda Constitucional n∞ 175/95 e substitutivo do Relator Senador MUSSA DEMES, entre outros,
apenas para exemplificar.
6 Política significa a ação humana voltada para o governo da sociedade. A sociedade existe para o homem e a política deve ser voltada para a busca do bem estar do homem. (Cf. Dicionário de política. T.A. Queiroz - editor, 1998,
p. 424/425).
Por outro lado, a política tributária é a opção estatal visando não só a sobrevivência financeira do Estado, mas a busca do bem-estar social do homem.
7 Já escrevemos: “A autodenominação “Estado Democrático de Direito”, não se pode esquecer, coloca o povo, o
cidadão, como centro e o único detentor do poder”. (Imunidades tributárias. Atlas, 2000, p. 53). Estado de Direito, além de submeter o Estado às próprias leis, na posse de seus agentes, todos se comprometem cumprir a Constituição e as leis do Brasil.
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As discussões devem ser sem radicalizações, através da adoção de critérios e
argumentos objetivos, tendo sempre como pano de fundo o interesse coletivo ou a
defesa do Brasil S/A., como ocorreu no Japão na década de 50/60.8
O Estado deve buscar maior arrecadação, mas a tributação deve ser justa,
transparente, com respeito aos direitos do cidadão e dos contribuintes, enfim, um
modelo que busque como objetivo muitos pagando individualmente menos, mas
que no geral importe em uma maior arrecadação global.
Devemos, principalmente, prestigiar a isonomia e a capacidade contributiva,
no sentido de que quem possui, consome ou ganha mais, sem dúvida, precisa suportar maior carga tributária.
É indispensável que o perfil de uma reforma tributária tenha os seguintes
pressupostos:
a) justiça na carga tributária (respeito à isonomia e a capacidade contributiva);
b) simplificação do sistema tributário (facilidade de cumprimento
dos deveres e das obrigações tributárias, com menor custo para a
administração pública e para os contribuintes); e
c) administração tributária eficaz (combate à sonegação e prestigiando os bons contribuintes).
O pior sistema é aquele utilizado pelo Brasil há décadas: caiu a arrecadação,
aumenta-se a alíquota ou criam-se novos tributos. O objetivo é sempre o mesmo:
arrecadar mais sem importar de quem e como.
Este sistema, por aumentar cada vez mais a concorrência desleal dos maus
contribuintes em detrimento dos bons, no fundo, atinge até o sentimento de brasilidade e de amor à pátria.
Quem não pagava continuará, por maior razão, a não pagar e, quem pagava
religiosamente poderá ser levado a não pagar, até por um instinto e necessidade de
sobrevivência.
Por fim, o fisco quando aumenta a carga tributária, não aniquila os maus, mas
os bons contribuintes e não obtém os resultados desejados, implantando oficialmente um clima de injustiça fiscal, prejudicando a todos: o Brasil e, principalmente,
os bons e honestos contribuintes.9
8 O Japão foi assolado por conflitos sociais entre o trabalho e o capital, na época instigado pelo modelo ocidental.
O sindicalismo japonês é totalmente diferente do ocidente, onde as discussões são sempre dirigidas para a preservação da empresa. Que adianta matar a árvore que fornece sombra e frutos? Esta filosofia decorre do “zen-budismo”.
9 RAFAEL MORENO RODRIGUES, escreve: “Para evitar todos esses descalabros, o único meio verdadeiramente
eficiente é o aperfeiçoamento da administração tributária, que pode levar o poder público a maximizar a arrecadação, na conformidade das disposições legais; reduzir os custos pela racionalização dos serviços; motivar
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LEGITIMIDADE, CREDIBILIDADE, JUSTIÇA E EFICÁCIA
Um bom sistema tributário deve ser funcional.
Mesmo considerando que a obrigação tributária é ex lege, compulsória e decorrente do exercício do poder de império, o levar dinheiro aos cofres públicos
deve ser calcado no princípio da legitimidade.10
A legitimidade ou a legitimação do poder decorre da presença dos critérios da
credibilidade e da justiça.
Quando os contribuintes reconhecem a legitimidade da exação, por entenderem justa a exigência, já que calcados no critério da justiça fiscal, podemos afirmar
que o sistema detém a credibilidade.
A funcionalidade do sistema só se obtém com a eficácia, isto é, funcionalidade do sistema, que só é possível presentes as seguintes características:
a) a legitimidade dos detentores do poder que é o reconhecimento
da autoridade pelos contribuintes e pelo povo em geral (autoridade moral);
b) a justiça fiscal (justiça da tributação), que importe necessariamente em justiça social (respeito à dignidade da pessoa humana e
a erradicação das desigualdades sociais); e
c) os recursos arrecadados forem bem administrados, de forma
transparente, em forma de obras, serviços públicos e ações sociais,
enfim, quando os valores arrecadados retornarem aos contribuintes e ao povo em geral, fechando o círculo do sistema (cumprimento dos fundamentos do Estado brasileiro, justificando o porquê da
existência do Estado).
Apenas para exemplificar, relacionamos algumas distorções evidentes, que importam no descumprimento dos princípios apontados neste trabalho:
a) É possível que na arrecadação do imposto de renda, o montante do imposto pago pelas pessoas físicas seja superior aos pagos pelas pessoas
jurídicas?
o funcionalismo, pela elevação dos objetivos alcançados pelo trabalho de cada um; conscientizar o contribuinte, pela certeza de que todos contribuem na medida da respectiva capacidade contributiva e ainda pelo convencimento de que toda tentativa de evasão tributária será exemplarmente punida”. (Curso de legislação tributária para administradores de empresas. Resenha tributária. 1978, p. 148).
10 Existe uma fundamental diferença entre legalidade e legitimidade. Nem tudo que é legal é legítimo. Uma tributação legítima deve ser justa, isonômica e transparente, isto é, o contribuinte deve ter a certeza de que aquilo que
paga retorna ao povo em forma de obras e serviços públicos.
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b) O imposto de renda pago pela renda do trabalho é muito superior ao pago
pelas rendas de capital, ou seja, do capital especulativo. Não se trata, por
exemplo, de compra de novas ações e/ou quotas sociais, mas de pura especulação.
c) Isenção do capital especulativo que vem do exterior em detrimento do aplicador interno (brasileiro).
d) Desrespeito à seletividade do imposto sobre produtos industrializados, por
exemplo, no caso dos veículos, se comparado a outros produtos mais essenciais ao homem.
e) Algumas imunidades tributárias que não cumprem as suas funções sociais
ou que não resultam no barateamento dos seus produtos ao consumidor
final.
f) Incidência de ICMS inclusive sobre a cesta básica, colocando o Estado como
sócio da miséria ou do pseudo Brasil assistencial.
g) Tributação da Instituições financeiras que, apesar dos privilégios e da política de seu fortalecimento, com a cobrança de juros elevados, a arrecadação do imposto renda neste setor parece ser desproporcional.
h) Necessária a total revisão das políticas de incentivos, entre outros, do “Simples”, da ME -Micro-empresa” etc.
Por último, não é objetivo deste trabalho apontar casuisticamente eventuais
distorções do sistema tributário, mas o de apresentar os princípios e os critérios que
devem nortear a reforma tributária.11
6
CONCLUSÕES
I - Todas as modificações do sistema tributário concretizadas desde 1965, a rigor, não podem ser rotuladas de “reforma tributária”, pois apenas buscou
maior arrecadação e simplesmente importou no aumento da carga tributária.
II - Qualquer tentativa de reforma tributária, não se pode esquecer que o Brasil é uma República Federativa constituída da União Federal, dos Estadosmembros, do Distrito Federal e dos Municípios, todos autônomos, sem relação de subordinação ou hierarquia em matéria tributária, com competências
próprias e privativas, administração própria e autonomia financeira.
III - A carga tributária no Brasil alcançou, em 2001, o patamar de 34,36%. Considerando a qualidade dos serviços públicos prestados, sem dúvida, é elevadíssima, o que resulta na falta de legitimidade da tributação.
11 No nosso entender, se o poder tributante fosse eficaz, com a cobrança de todos os tributos, na medida exata dos
fatos geradores ocorridos, nem mais e nem menos, sem dúvida, quase todos os impostos poderiam ter as suas alíquotas reduzidas pela metade e sem qualquer prejuízo para a receita global.
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IV - Reformar, no sentido aqui adotado, não é apenas aumentar a carga tributária, mas aproveitando-se os alicerces do sistema jurídico atual deve importar em emendar, retificar, melhorar, aprimorar e implementar o interesse público.
V - Uma reforma tributária deve objetivar melhoria nas condições de todos os
partícipes da relação, isto é, para o fisco, para o contribuinte, para o consumidor, para o povo em geral, enfim, seja bom para o Brasil.
VI - O respeito aos direitos fundamentais do indivíduo e do contribuinte, o
respeito ao princípio da isonomia e a capacidade contributiva, devem ser os
alicerces básicos de toda a reforma tributária.
VII - Necessária, para implementar a justiça fiscal da carga tributária, uma simplificação do sistema tributário e objetivando a facilidade de cumprimento
dos deveres e das obrigações tributárias, com menor custo para a administração pública e para os contribuintes, como perfil para nortear os objetivos da
reforma.
VIII - A administração pública eficaz exige o combate à sonegação, prestigiando os bons contribuintes e extirpando do sistema a concorrência desleal dos
maus sobre os bons contribuintes.12
IX - Para a funcionalidade e eficácia do sistema tributário, necessária é a legitimidade da arrecadação (autoridade moral), credibilidade das autoridades
constituídas, implementação da justiça fiscal e social como critérios fundamentais, além de uma administração tributária eficaz, onde todos saibam que
os maus contribuintes serão exemplarmente punidos.
X - Por último, os recursos arrecadados devem ser bem administrados, de forma transparente, com o retorno de boa parte dos valores arrecadados em forma de obras públicas, serviços públicos e ações sociais, fechando o círculo do
sistema.
12 Já escrevemos o seguinte: “A boa administração tributária busca dois objetivos fundamentais: a) para o fisco, a
eficácia da arrecadação, cobrando na medida exata das ocorrências de seus fatos geradores os tributos devidos; e
b) para o contribuinte, a justiça fiscal, porque evita a concorrência desleal dos maus pagadores, possibilitando, inclusive, que o poder tributante diminua a carga tributária”. (Cf. nosso Direito tributario. Atlas, 2001, p. 192).
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TUTELA PENAL DO PATRIMÔNIO GENÉTICO
Luís Paulo Sirvinskas
Promotor de Justiça Criminal em São Paulo.
Mestre em Direito Penal e Doutorando em Direito Ambiental
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Especialista em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP) e
em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público (ESMP).
Professor Associado de Direito Ambiental na Universidade Cidade de São Paulo (UNICID).
Ex-Professor Adjunto de Legislação Tributária nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).
Autor dos livros Tutela penal do meio ambiente e Manual de direito
ambiental, ambos da editora Saraiva, edições 2002.
1.
CONCEITO DE PATRIMÔNIO GENÉTICO, DE ORGANISMO
GENETICAMENTE MODIFICADO (OGM), DE ENGENHARIA
GENÉTICA E DE PROJETO GENOMA
Patrimônio genético é o conjunto de seres vivos que habitam o planeta Terra, incluindo os seres humanos, os animais, os vegetais e os microorganismos. A variedade dos
organismos vivos é que permite a vida do ser humano na Terra. Essa variedade de organismos vivos (elementos animados e inanimados) interage entre si, constituindo o meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Integra o patrimônio genético todos os organismos vivos encontrados na natureza, constituindo a biodiversidade.
Organismo geneticamente modificado (OGM) é o material genético (ADN/ARN)
que tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética (art. 3o., inc. IV,
da Lei n. 8.974/95).
Engenharia genética é a ciência que estuda o patrimônio genético e a biodiversidade existente no meio ambiente, consubstanciado no exercício da “atividade
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de manipulação de moléculas de ADN/ARN recombinante” (art. 3o., inc. V, da Lei n.
8.974, de 05 de janeiro de 1995). ADN (ácido desoxirribonucléico) e ARN (ácido ribonucléico) é o “material genético que contém informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis à descendência” (art. 3o., inc. II, da Lei n. 8.974,
de 05 de janeiro de 1995). Tais moléculas são definidas como sendo “aquelas manipuladas fora das células vivas, mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN
natural ou sintético que possam multiplicar-se em uma célula viva, ou ainda, as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação. Consideram-se, ainda, os segmentos de ADN/ARN sintéticos equivalentes aos de ADN/ARN natural (art. 3o., inc.
III, da Lei n. 8.974, de 05 de janeiro de 1995).
Assim, essa manipulação de genes de diferentes espécies realizada no laboratório pode dar origem a novas espécies animais e vegetais, no primeiro caso, mais
produtivos e, no segundo, mais resistentes às pragas. As informações contidas nas
moléculas são armazenadas e replicadas no interior de outras células, formando-se
uma nova espécie.
O projeto genoma teve por finalidade catalogar todos os genes da espécie humana para armazenar em um banco de dados e, a partir daí, começar as pesquisas
de cada um dos genes que constitui o cromossomo. Tais pesquisas poderão levar à
descoberta da origem de muitas doenças no futuro, bem como a sua manipulação
em laboratório.
2.
BIODIVERSIDADE, BIOPIRATARIA, BIOTECNOLOGIA, BIOÉTICA E
BIOSSEGURANÇA
Biodiversidade ou diversidade biológica é
a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e
outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas
(art. 2o., inc. III, da Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000). Biodiversidade, em outras palavras, é a variedade de “organismos vivos de todas as origens e os complexos ecológicos de que fazem parte: compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistema”.1 Organismo é toda a entidade biológica capaz de reproduzir e/ou de transferir material genético, incluindo vírus, prions e outras classes que venham a ser conhecidas (art. 3o., inc. I, da Lei n. 8.974/95). A biodiversidade é constituída
por um grande número de microorganismos conhecidos e desconhecidos existentes na
1. Convenção sobre diversidade biológica art. 2, in Entendendo o meio ambiente v. 2.
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biosfera. Sua importância para a Humanidade ainda é desconhecida. Cientistas do mundo todo vêm estudando e pesquisando essa riqueza existente na natureza com o objetivo de descobrir a cura para muitas doenças. Foi com essa visão que o legislador constituinte resolveu protegê-la constitucionalmente (art. 225, § 1o., inc. II, IV e V, da CF). Assim, o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado está intimamente ligado aos
direitos fundamentais. O homem só poderá viver no planeta se tiver à sua disposição os
elementos essenciais para sua sobrevivência, como, por exemplo: água potável, ar adequado, solo fértil e alimentos sadios, além de habitação, salário digno, transporte adequado etc. Em outras palavras, o direito ecologicamente equilibrado implica o direito à
vida. Esse direito ao meio ambiente equilibrado abrange os elementos naturais, culturais, artificiais e do trabalho, contribuindo para a existência digna do ser humano no planeta. O que é um dos princípios do Estado Democrático de Direito previsto no art. 1o.,
inc. III, da CF.
Assim, a
deliberada transformação do código genético de plantas, animais ou
microorganismos por meio de engenharia genética já é uma realidade com os denominados produtos transgênicos. O procedimento pretende suprimir atividades de genes ou transferi-los de uma espécie
para outra. Essa transferência permite substituir, acrescentar ou retirar um comando químico ou gene de uma cadeia genética, para
obter um organismo geneticamente modificado (OGM) ou transgênico. Um dos objetivos declarados de tal mudança é obter produtos
mais resistentes e mais adaptados às necessidades humanas. Outro
exemplo de controle sobre o mecanismo da vida é a clonagem, isto é,
a reprodução de espécies a partir de células outras que não os gametas, o que origina espécimes idênticos.2
Biopirataria é a transferência dessa riqueza encontrada na natureza (biodiversidade) para outros países com a finalidade de fabricação de medicamentos sem
o pagamento de royalties ao país onde se descobriu a matéria-prima do citado produto. Tal fato está ligado às questões das patentes3. Diante disso, a Lei n. 9.279/96,
2. Antônio de Pádua Ribeiro, Biodiversidade e Direito. São Paulo, RDA n. 17:17, Ed. Revista dos Tribunais, janeiromarço/2000.
3. Ana Cláudia Bento Graf, citando Sílvia Cappelli, esclarece que a “discussão pública a respeito da possibilidade de patenteamento, em outros países, de produtos desenvolvidos a partir de conhecimentos tradicionais e, de plantas e animais coletados no Brasil, só veio à tona por ocasião da aprovação, pelo Congresso Nacional, da chamada lei de patentes ou de propriedade industrial. Esta lei, apesar de vedar o patenteamento de seres vivos – no todo ou em parte – previu o patenteamento de organismos geneticamente modificados (OGMs) e de processos biotecnológicos oriundos de
plantas e de animais, sem qualquer contraprestação financeira ou tecnológica aos detentores do conhecimento tradicional ou, aos fornecedores da matéria-prima” (RDA n. 18:159, Revista dos Tribunais, abril-junho/2000).
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que disciplina a Lei das Patentes, estabeleceu que os países que utilizarem matériaprima de outro país para a fabricação de medicamentos deverão pagar royalties.
Biotecnologia é a técnica empregada por cientistas, biólogos e engenheiros
na realização de pesquisas em organismos vivos existentes no meio ambiente para
melhoria das plantas e dos animais, tornando-os mais resistentes aos herbicidas, no
primeiro caso, e mais produtivo, no segundo, beneficiando os setores da pecuária,
da agricultura, das indústrias químicas, farmacêuticas etc.
A manipulação desses organismos vivos poderá ocasionar danos ao meio ambiente e à saúde humana. Na área da agricultura, poderá causar o predomínio de determinada espécie sobre outra, prejudicando a biodiversidade existente. Os produtos advindos da manipulação genética é conhecida como Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). As experiências no campo da agricultura têm se desenvolvido muito rapidamente, causando uma certa preocupação para a comunidade científica e para as Organizações Não-Governamentais (ONGs). Muitos estudos indicam
que a liberação desses organismos geneticamente modificados no meio ambiente
poderá causar danos à agricultura e à saúde humana, especialmente porque não
existe ainda nenhum estudo preciso sobre as conseqüências do consumo dos produtos transgênicos pelo homem. Além disso, toda pessoa deve ser informada de
que o produto que esta consumindo é transgênico, indicando, inclusive, a sua composição química. Esses produtos poderão causar efeitos colaterais a uma pessoa
portadora de algum tipo de doença, cujo produto tenha composição química incompatível com o medicamento que esta ingerindo, por exemplo.
Bioética, por sua vez, procura examinar a conduta desses cientistas, pesquisadores, engenheiros, biólogos sobre suas atividades relacionadas a manipulação genética. A bioética é o estudo da moralidade da conduta dos responsáveis por estas
pesquisas dentro das ciências, analisando a licitude de seus atos. Em outras palavras,
a bioética
estuda a moralidade da conduta humana no campo das ciências
da vida. Inclui a ética médica, mas vai além dos problemas clássicos da medicina, a partir do momento que leva em consideração
os problemas éticos não levantados pelas ciências biológicas, os
quais não são primeiramente de ordem médica4.
Assim, o art. 8o., inc. II, da Lei n. 8.974, de 05 de janeiro de 1995, diz ser vedado “nas atividades relacionadas com OGM: II - a manipulação genética de células
germinativas humanas”. É necessário, diante dessa norma, realizar uma fiscalização
efetiva das entidades e dos cientistas que realizam pesquisas com organismos vivos.
4. Leo Pessini e Christian Barchifontaine. Fundamentos da bioética. São Paulo, Ed. Paulus, 1996, p. 11.
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Trata-se, neste caso, de uma questão eminentemente ética e legal a realização de experiências com células humanas.
Biossegurança, por fim, é o conjunto de normas legais e regulamentares que
estabelecem critérios e técnicas para a manipulação genética, no sentido de se evitar danos ao meio ambiente e a saúde humana. Esse conjunto de normas é estabelecido pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e pela Comissão
Interna de Biossegurança (CIBio).
A manipulação genética poderá causar alterações no meio ambiente, especialmente com
o aparecimento de traços patogênicos para humanos, animais e
plantas; perturbações para os ecossistemas; transferência de novos
traços genéticos para outras espécies, com efeitos indesejáveis; dependência excessiva face às espécies, com ausência de variação
genética5.
A biossegurança tem por escopo diminuir ou evitar estes riscos inerentes à
manipulação genética.
3.
BENEFÍCIOS E RISCOS CAUSADOS PELA ENGENHARIA GENÉTICA
A engenharia genética, sem dúvida alguma, será a solução dos problemas que
o homem vai enfrentar neste terceiro milênio. Cuida-se de uma revolução científica
que se iniciou na década de setenta. Hoje o homem conseguiu solucionar muitos
problemas através da manipulação genética. A biotecnologia, por seu turno, tem
sido aplicada nas mais variadas áreas das atividades humanas. O Brasil é o pioneiro
no mapeamento dos principais genes das pragas da lavoura. Estes são alguns dos benefícios que podem trazer a engenharia genética à Humanidade, a saber: produção
de carne mais nutritiva e com menos gordura; aumento da produtividade na lavoura; criação de animais geneticamente modificados para serem utilizados em transplantes sem que haja rejeição; terapia gênica, consistente na retirada de genes humanos defeituosos para serem reparados e recolocado no organismos do paciente;
detecção de enfermidades hereditárias no embrião; aumento da durabilidade de alimentos, como, por exemplo, o tomate; descoberta de vacinas para doenças; produção de bactérias para a produção de insulina; criação de plantas transgênicas resistentes aos herbicidas; criação de animais para a produção de proteínas humanas;
produção de leite mais vitaminados etc.
As técnicas empregadas pela engenharia genética têm por objetivo o barateamento dos alimentos, o aumento da produção de carne com mais proteínas, a
5. M. A. Hermitte e C. Noiville citado por Paulo Affonso Leme Machado. (Op. cit., p. 782).
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redução da agressão ao solo e ao ecossistema, a eliminação do uso de agrotóxicos, o aumento da fixação de nitrogênio do ar pelas plantas, a despoluição dos
rios e mares etc.
São muitas as possibilidades da utilização da engenharia genética, como, por
exemplo, nas indústrias químicas e farmacêuticas, na saúde, na lavoura, na pecuária,
no meio ambiente etc.
A manipulação genética envolve a transferência de genes humanos para animais, entre animais, de animais para vegetais e vice-versa. Cuida-se da manipulação
de moléculas ADN/ARN recombinante.
Todos estes benefícios têm um custo; custo este ainda desconhecido cientificamente. A liberação de OGM no meio ambiente poderá trazer muitos riscos. Estes
riscos são desconhecidos cientificamente, razão pelas quais somente as pessoas jurídicas poderão desenvolver projetos que envolvam a produção de OGM (art. 2o., §
2o., da Lei n. 8.975/95). Tais empresas devem sofrer rígida fiscalização por parte do
Poder Público competente.
Diante desses riscos, indaga-se: “Quais as reais conseqüências, ao longo prazo, das transformações biotecnológicas? Quais os efeitos que, no futuro, poderão
advir das mutações genéticas artificiais, praticadas em laboratório, em animais e
plantas? Quais os riscos que o meio ambiente poderá sofrer com a introdução dessa civilização transgênica ou com a criação de organismos geneticamente modificados? Será que o ser humano teria o direito de alterar geneticamente um vegetal ou
um animal, criando espécies diferentes das existentes, para atender a seus interesses ou a carência de alimentos? Poderia o homem pôr em xeque o que a natureza
levou milhões de anos para construir? Poderia o ser humano saciar sua ganância desafiando a natureza, causando danos ao meio ambiente e às gerações futuras? Seria
possível admitir o transporte de genes de uma espécie a outra? A formação de novas espécies mais resistentes não seria um modo de fazer uma seleção natural artificial? Qual o verdadeiro impacto ao meio ambiente e à saúde produzido pela planta transgênica? Poder-se-ia acatar a criação da vida em laboratório? A terapia gênica
não seria uma forma disfarçada de eugenismo, por conter em seu bojo o melhoramento genético? Como resolver a questão da patentealidade dos OGMs? Não haveria um perigo no aumento da longevidade da vida pelo conserto de genes deletérios, pela cura de determinados tipos de moléculas, pela melhoria da qualidade dos
alimentos, fazendo com que bebês nascidos em 2018 possam viver por mais de cem
anos, estando na adolescência aos 30 e 40 anos de idade, atingindo a maioridade aos
50 e 80 e ficando velhos lá pelos seus 90, 100 e até mais tarde, se herdarem genes
mais resistentes? Isso não levaria à questão de pensar num melhoramento de espaço habitável no globo terrestre, diante do considerável crescimento populacional
provocado pela resistência humana aos azares da vida? Diante dos avanços biotecnológicos, como manter o respeito à dignidade da pessoa humana? Com a identificação de todo o código genético do ser humano, no meio previdenciário e empre-
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gatício, não poderia haver uma discriminação, mediante a seleção dos contratados
de acordo com seus genes?”6.
Como tais indagações estão longe de serem respondidas, incumbe ao Poder
Público, através da criação de mecanismos eficientes de fiscalização, limitar a criação
de novos projetos que possam colocar em risco à Humanidade.
Toda liberação ou descarte de OGM ao meio ambiente deve ser precedida de
prévio estudo de impacto ambiental, adotando-se o princípio da prevenção (precaução ou cautela). Assim, não
é preciso que se tenha prova científica absoluta de que ocorrerá
dano ambiental, bastando o risco de que o dano seja irreversível
ou grave para que não se deixe para depois as medidas efetivas de
proteção ao ambiente. Existindo dúvida sobre a possibilidade futura de dano ao homem e ao ambiente a solução deve ser favorável
ao ambiente e não a favor do lucro imediato – por mais atraente
que seja para as gerações presentes.7
4.
FUNDAMENTO LEGAL
O patrimônio genético é protegido constitucionalmente. Incumbe, nos termos do art. 225, § 1o., inc. II, da CF, ao Poder Público “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético”. Protege-se, neste dispositivo, a biodiversidade e o patrimônio genético do País. Isso não impede a realização de pesquisas
científicas de manipulação genética. Incumbe ainda ao Poder Público exercer um
controle efetivo dessas atividades, concedendo as licenças competentes para as empresas e cientistas. Este dispositivo deve ser complementado pelo inc. V, do § 1o., do
art. 225, da CF que diz incumbir também ao Poder Público exercer o controle sobre
a “produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que
comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Após a permissão da produção de comercialização dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM), o Poder Público deverá exercer um controle especial no que tange à liberação desses produtos no meio ambiente.
Foi com a intenção de se evitar os excessos na área da engenharia genética é
que o legislador regulamentou os inc. II e V do § 1o. do art. 225 da CF, sete anos depois da sua promulgação, com o advento da Lei n. 8.974, de 05 de janeiro de 1995.
6. Maria Helena Diniz. O estado atual do biodireito. São Paulo, Saraiva, 2001, p. 636/637.
7. Paulo Afonso Leme Machado, citado pelo Juiz Federal, Dr. Antonio Souza Prudente, Titular da 6a. Vara da Seção
Judiciária do Distrito Federal, em magnífica decisão prolatada nos autos de processo n. 1998.34.00.027682-0 – j.
26.06.2000, publicada na RDA n. 20:314.
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Essa lei estabelece normas para o uso de técnicas de engenharia genética e da liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados, autorizando o
Poder Executivo criar, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança.
Tal lei foi regulamentada pelo Decreto n. 1.520, de 12 de junho de 1995, que
dispõe sobre a vinculação, competências e composição da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio e pelo Decreto n. 1.752, de 20 de dezembro de
1995, que institui a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio.
5.
ENGENHARIA GENÉTICA E A LEI N. 8.974, DE 05 DE JANEIRO DE
1995
Engenharia genética é a atividade de manipulação de moléculas de ADN/ARN
recombinante (art. 3o., inc. V, da Lei n. 8.974/95). Tais moléculas são “aquelas manipuladas fora das células vivas, mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN
natural ou sintético que possam multiplicar-se em uma célula viva, ou, ainda, as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação. Consideram, ainda, o segmentos de ADN/ARN sintéticos equivalentes aos de ADN/ARN natural” (art. 3o., inc. III,
da citada lei). No dizer de Kevin Bastain, recombinação gênica é a
troca ou adição, biologicamente normal, de genes de diferentes
origens para formar um cromossomo alterado que possa ser replicado, transcrito e traduzido. Genes ou conjunto de genes podem
também ser recombinados no tubo de ensaio para produzir novas
combinações que não ocorrem biologicamemnte8.
A molécula de ADN, no dizer de Albert L. Lehnunger,
é o material cromossômico possuidor da informação genética das
células vivas. O ADN é armazenado e replicado no núcleo ou corpo nuclear da célula. O cromossomo é uma molécula longa e única de DNA que contém muitos genes e funciona no armazenamento e na transmissão da informação genética. Nas células somáticas humanas, há 46 cromossomos9.
Se houver excesso de cromossomos, poderá ocasionar a doença conhecida
por síndrome de Down, se, no entanto, houver ausência, poderá acarretar a doença conhecida por síndrome de Turner (infantilismo genital). Os genes, por sua vez,
8. Apud Paulo Affonso Leme Machado. (Op. cit., p. 781).
9. Apud Paulo Affonso Leme Machado. (Op. cit., p. 782).
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carregam consigo todas as informações genética de determinado indíviduo (fenótipo e genótipo).
Com receio das conseqüências do exercício da engenharia genética, o legislativo resolveu disciplinar essa atividade através da criação da Lei n. 8.974, de 05 de janeiro de 1995. Esta lei regulamentou, como já vimos, o art. 225, § 1o., inc. II e V, da
CF, estabelecendo normas para o uso das técnicas de engenharia genética e da liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados, autorizando o
Poder Executivo criar, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança. O Decreto n. 1.520, de 17 de junho de 1995, dispôs sobre a vinculação, competências e composição da Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança (CTNBio).
5.1. Objetivos da Lei n. 8.974/95
Essa lei tem por objetivo estabelecer normas de segurança e mecanismos de
fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo
geneticamente modificado (OGM), visando à proteção da vida e da saúde humana,
dos animais e das plantas e do meio ambiente (art. 1o., da Lei n. 8.974/95).
A lei procura estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização. Tais normas criam critérios rígidos para a segurança do homem, das plantas e
dos animais, nos casos de construção, cultivo, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte no meio ambiente de organismos geneticamente modificados. Incumbe também ao Poder Público exercer uma fiscalização rígida através das
comissões criadas na esfera federal e estadual, bem como estabelecer critérios técnicos de engenharia genética, limitando a conduta do cientista na manipulação das
moléculas de ADN/ARN.
Liberar é colocar no meio ambiente estes organismos geneticamente modificados, causando modificação do meio ambiente. É a plantação de sementes transgênicas. Descarte, por seu turno, é a disposição dos restos desse material não utilizado no meio ambiente. É o lixo, o refugo não utilizado. Tanto a liberação como o
descarte pode causar danos ao meio ambiente.
5.2. Exercício das atividades de engenharia genética
Vê-se, pois, que as atividades e os projetos inclusive os de ensino, pesquisa
científica, desenvolvimento tecnológico e de produção industrial que envolvam
OGM no Território Brasileiro, ficam restritos no âmbito de entidades de direito público e privado, que serão tidas como responsáveis pela obediência aos preceitos da
lei e de sua regulamentação e pelos eventuais danos ou conseqüências advindas de
seu descumprimento (art. 2o., da Lei n. 8.974/95).
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Assim, as atividades, os projetos, as pesquisas científicas, o desenvolvimento
tecnológico e a produção industrial relacionadas a OGM só podem ser realizados
por entidades de direito público ou privado. Somente as pessoas jurídicas de direito público ou privado podem exercer estas atividades, os quais serão responsáveis
pelos eventuais atos danosos causados ao homem, aos animais, as plantas e ao meio
ambiente.
Entendem-se por atividades e projetos aqueles realizados dentro das instalações próprias ou desenvolvidas em outros locais dentro ou fora do País, sob sua responsabilidade técnica ou científica (art. 2o., § 1o., da Lei n. 8.974/95). Tais atividades
e projetos são vedados a pessoa física enquanto agentes autônomos independentes,
mesmo que mantenham vínculo empregatício ou qualquer outro com pessoas jurídicas (art. 2o., § 2o., da Lei n. 8.974/95).
Para que as entidades possam realizar estas atividades e projetos, precisam de
registro próprio que será concedido pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). O pedido deverá ser instruído com os documentos necessários da
entidade, bem como com os nomes dos cientistas responsáveis pelas atividades e
projetos.
Todas as organizações públicas ou privadas, nacionais ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou projetos deverão exigir o Certificado de Qualidade em Biossegurança (CQB), nos termos do art. 6o., inc. XIX, da Lei n.
8.974/95, sob pena de se tornarem co-responsáveis pelos eventuais danos causados
ao meio ambiente (art. 2o., § 3o., da Lei n. 8.974795).
5.3. Fiscalização e engenharia genética
A fiscalização das entidades que realizam atividades e projetos relacionados
com OGM é dos órgãos competentes do Ministério da Saúde, do Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária e do Ministério do Meio Ambiente,
dentro do campo de suas atribuições, observado o parecer técnico conclusivo da
CTNBio e os mecanismos estabelecidos na regulamentação desta Lei (art. 7o., caput,
da Lei n. 8.974/95).
São atribuições dos Ministérios da Saúde, da Agricultura, do Abastecimento e
da Reforma Agrária e do Ministério do Meio Ambiente:
a) realizar a fiscalização e o monitoramento de todas as atividades e projetos relacionados com OGM; b) expedir registro de produtos contendo OGM; c) expedir autorização de funcionamento de
laboratório, instituição ou empresa que desenvolva atividades relacionadas com OGM; d) emitir autorização para a entrada no
País de qualquer produto contendo OGM; e) manter cadastro das
instituições e profissionais que realizam atividades e projetos rela-
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cionados com OGM; f) encaminhar ao CTNBio todos os processos
relativos a atividades de projetos relacionados a OGM para parecer conclusivo; g) encaminhar para publicação no Diário Oficial
da União as decisões e o parecer conclusivo; h) aplicar as penalidades estabelecidas nos arts. 11 e 12, da Lei n. 8.974/95 (art. 7, incs.
I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX, da Lei n. 8.974/95).
Tais medidas poderão também ser estabelecidas e exigidas pelos órgãos públicos estaduais e municipais com fundamento no art. 24, inc. VI, da CF e art. 30, inc.
I, da CF.
5.4. Registro dos produtos OGM e a autorização para o descarte
Os produtos contendo OGM ou derivados de OGM à serem comercializados
para uso humano, animal ou em plantas, dependerão de prévio registro e a liberação desses produtos no meio ambiente dependerá de autorização.
Para a concessão do registro de produtos e dos seus derivados relacionados a
OGM para a utilização e comercialização dependerá de parecer técnico prévio conclusivo elaborado pela CTNBio e encaminhado ao órgão fiscalizador competente
(art. 2o., inc. XII, do Decreto n. 1.520, de 12 de junho de 1995).
Só depois do parecer conclusivo favorável é que o órgão público fiscalizador
concederá o registro competente.
No entanto, a autorização para a liberação e descarte de OGM no meio ambiente exigir-se-á, se necessário, o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA) e o
seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) de projetos e aplicação que
envolvam a liberação de OGM no meio ambiente, além das exigências específicas
para o nível de risco estabelecido na regulamentação da Lei n. 8.974/95 (art. 2o., inc.
XIII, do Decreto n. 1.520, de 12 de junho de 1995).
Os produtos contendo OGM destinados à comercialização ou industrialização, advindo de outros países, poderão ser introduzidos no país, após parecer prévio conclusivo da CTNBio e a respectiva autorização do órgão fiscalizador competente, observando-se os pareceres técnicos de outros países (art. 8o., § 1o., da Lei n.
8.974/95).
5.5. Restrições das atividades relacionadas com OGM
São expressamente vedadas as atividades relacionadas com OGM que tenha
por objetivo a realização:
a) de qualquer manipulação genética de organismos vivos ou o
manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizados
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em desacordo com as normas previstas na Lei n. 8.974/95; b) a manipulação genética de células germinativas humanas; c) a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se os princípios éticos, tais
como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência, e com
a aprovação prévia da CTNBio; d) a produção, armazenamento
ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como
material biológico disponível; e) a intervenção in vivo em material
genético de animais, excetuados os casos em que tais intervenções
se constituam em avanços significativos na pesquisa científica e no
desenvolvimento tecnológico, respeitando-se princípios éticos, tais
como o princípio da responsabilidade e o princípio da prudência, e
com a aprovação prévia da CTNBio; f) a liberação ou o descarte no
meio ambiente de OGM em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e constantes na regulamentação desta lei (art. 8,
inc. I, II, III, IV, V e VI, da Lei n. 8.974/95).
Note-se, contudo, que as restrições das atividades citadas regem, essencialmente, pelo princípio da ética, dentre outros princípios apontados. Este princípio,
como já vimos, está relacionado com a bioética, a ciência que estuda a moralidade
da conduta humana, in casu, dos responsáveis pela manipulação genética dos organismos vivos.
5.6. Clonagem
Clonagem é o processo genético para a criação de um clone. Clone, por sua
vez, é o conjunto de pessoas, animais ou plantas originadas da multiplicação assexuada.
A lei veda a manipulação de células germinativas humanas (art. 8., inc. II, da
Lei n. 8.974/95). É vedado o clone humano.
Contudo, nada impede o clone de animais ou plantas. Tal experiência já foi
realizada com a conhecida ovelha Dolly.
5.7. Monitoramento das atividades relacionadas com OGM
Como vimos, caberá aos órgãos públicos do Ministério da Saúde, do Ministério
da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária e do Ministério do Meio Ambiente realizar o monitoramento de todas as atividades e projetos relacionados à OGM.
Monitoramento é o procedimento de análise permanente das atividades e
projetos, incluindo as pesquisas científicas, relacionadas a organismos geneticamente modificados (art. 7o., inc. II, da Lei n. 8.974/95).
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6.
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COMISSÃO TÉCNICA NACIONAL DE BIOSSEGURANÇA (CTNBIO)
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) está vinculada ao
Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia.
A CTNBio é composta por membros efetivos e suplentes, designados
pelo Presidente da República, constituído por: a) oito especialistas
de notório saber científico, em exercício na área de biotecnologia,
sendo dois da área humana, dois da área animal, dois da área vegetal e dois da área ambiental; b) um representante de cada um
dos seguintes Ministérios, indicados pelos respectivos Titulares (da
Ciência e Tecnologia, da Saúde, do Meio Ambiente, da Educação e
do Desporto e das Relações Exteriores); c) dois representantes do
Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária,
sendo um da área vegetal e outro da área animal, indicados pelo
respectivo Titular; d) um representante de órgão legalmente constituído de defesa do consumidor; e) um representante de associações representativas do setor empresarial de biotecnologia a ser indicado pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, a partir
de listas tríplices encaminhadas pelas associações referidas, desde
que legalmente constituídas; f) um representante de órgão legalmente constituído, de proteção à saúde do trabalhador (art. 3o.,
incs. I, II, III, IV, V e VI, do Decreto n. 1.520, de 12 de junho de 1995).
Os representantes indicados nas alíneas a, e e f serão indicados pelo Ministro
da Ciência e Tecnologia (art. 3o., § 1o., do citado Decreto).
O mandato dos membros da CTNBio será de três anos, podendo ser reconduzidos uma única vez (art. 3o., § 2o., do citado Decreto)
As deliberações serão tomadas por, no mínimo, 2/3 do total de seus membros
o
(art. 3 ., § 4o., do citado Decreto).
São atribuições da CTNBio:
a) propor ao Presidente da República a Política Nacional de Biossegurança; b) acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico
na biossegurança e em áreas afins, objetivando à segurança dos
consumidores e da população em geral, com permanente cuidado
a proteção do meio ambiente; c) relacionar-se com instituições voltadas para a engenharia genética e a biossegurança em nível nacional e internacional; d) estabelecer normas e regulamentos relativos
às atividades e projetos relacionados a Organismo Geneticamente
Modificado (OGM); e) classificar os OGM segundo o seu grau de ris-
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co definindo o nível de biossegurança, conforme as normas estabelecidas na regulamentação da Lei n. 8.974/95, bem como definir as
atividades consideradas insalubres e periculosas; f) estabelecer os
mecanismos de funcionamento das Comissões Internas de Biossegurança - CIBio, no âmbito de cada instituição que se dedique ao ensino, à pesquisa, ao desenvolvimento e à utilização das técnicas de
engenharia genética; g) emitir parecer técnico conclusivo sobre os
projetos relacionados a OGM pertencentes ao Grupo II, conforme definido no Anexo I da Lei n. 8.974/95, encaminhando-se aos órgãos
competentes; h) apoiar tecnicamente os órgãos competentes no processo de investigação de acidentes e de engenharia genética, bem
como na fiscalização e monitorização desses projetos e atividades;
i) emitir parecer técnico prévio conclusivo sobre qualquer liberação
no meio ambiente de OGM, encaminhando-o ao órgão competente;
j) divulgar no Diário Oficial da União, previamente ao processo de
análise, extrato dos pleitos que foram submetidos à sua aprovação,
referentes à liberação de OGM no meio ambiente, excluindo-se as
informações sigilosas apontadas pelo proponente e assim por ela
consideradas; k) emitir parecer técnico prévio conclusivo sobre registro, utilização e comercialização de produto contendo OGM ou
derivado, encaminhando-o ao órgão de fiscalização competente; l)
exigir, como documentação adicional, se entender necessário, o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA) e seu respectivo Relatório
de Impacto Ambiental (RIMA) de projetos e aplicações que envolvam
a liberação de OGM no meio ambiente, além das exigências específicas para o nível de risco estabelecido na regulamentação da Lei n.
8.974/95; m) emitir Certificado de Qualidade em Biossegurança das
instalações destinadas a qualquer atividade ou projeto que envolva
OGM, previamente ao seu funcionamento ou sempre que houver alteração de qualquer componente que possa modificar as condições
de segurança preestabelecidas; n) recrutar consultores ad hoc quando julgar necessário; o) propor modificações na regulamentação da
Lei n. 8.974/95; p) elaborar e aprovar seu regimento interno no prazo de trinta dias, após sua instalação (art. 2o., incs. I, II, III, IV, V, VI,
VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI e XVII, do Decreto n. 1.520, de
12 de junho de 1995).
Como vimos, a primeira atribuição do CTNBio é estabelecer mecanismos de
funcionamento das Comissões Internas de Biossegurança (CIBio) no interior de
cada instituição que se dedique a manipulação de OGM.
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7.
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COMISSÃO INTERNA DE BIOSSEGURANÇA (CIBIO)
A Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) tem por incumbência adotar as
medidas necessárias de segurança no interior de cada instituição ou entidades que
manipulem OGM e avaliar os eventuais riscos dessas atividades para a comunidade
e para o meio ambiente.
Assim, toda entidade que utilizar técnicas e métodos de engenharia genética deverá criar uma Comissão Interna de Biossegurança (CIBio) e indicar um
técnico principal responsável por cada projeto específico (art. 9o., da Lei n.
8.974/95).
São atribuições da CIBio: a) manter informados os trabalhadores, qualquer pessoa e a coletividade, quando suscetíveis de serem afetados pela atividade, sobre todas as questões relacionadas com a saúde e a segurança, bem como sobre os procedimentos em caso de acidentes; b) estabelecer programas preventivos
e de inspeção para garantir o funcionamento das instalações
sob sua responsabilidade, dentro dos padrões e normas de biossegurança, definidos pelo CTNBio na regulamentação da Lei n.
8.974/95; c) encaminhar à CTNBio os documentos cuja relação
será estabelecida na regulamentação da Lei n. 8.974/95, visando a sua análise e a autorização do órgão competente quando
for o caso; d) manter registro do acompanhamento individual
de cada atividade ou projeto em desenvolvimento envolvendo
OGM; e) notificar à CTNBio, às autoridades de Saúde Pública e
às entidades de trabalhadores, o resultado de avaliações de risco a que estão submetidas as pessoas expostas, bem como qualquer acidente ou incidente que possa provocar a disseminação
de agente biológico; f) investigar a ocorrência de acidentes e as
enfermidades possivelmente relacionados à OGM, notificando
suas conclusões e providências à CTNBio (art. 10., incs. I, II, III,
IV, V e VI, da Lei n. 8.974/95).
8.
DIREITO À INFORMAÇÃO
Ressalte-se que o público tem o direito de receber as informações necessárias
dos riscos que está submetido em caso de liberação ou descarte de OGM ao meio
ambiente, podendo, inclusive, externar seu inconformismo sobre a concessão da autorização, se for o caso.
A liberação e o descarte poderá apresentar riscos à saúde humana, devendo a
CTNBio exigir o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA) e o seu respectivo Re-
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latório de Impacto Ambiental (RIMA) para avaliar os riscos e adotar as medidas adequadas para minimizar ou evitar eventuais danos causados ao meio ambiente.
9.
ALIMENTOS TRANSGÊNICOS
Alimentos transgênicos são aqueles geneticamente modificados no laboratório. Denominam-se sementes transgênicas as que possuem material genético alterado por meio de inoculação de genes provenientes de outros compostos. Transgênicos significa transferência de genes.
Essa modificação genética pode tornar as plantas mais resistentes aos herbicidas ou até às próprias pragas.
Os maiores produtores e exportadores de alimentos transgênicos são o EUA
(74%), a Argentina (15%), o Canadá (10%) e a Austrália (1%). Tais produtos trazem
vantagens e desvantagens. As vantagens são a produção de alimentos mais nutritivos e baratos. Seu cultivo é mais eficiente do que o convencional e poderá ser a solução para abastecer a população mundial. As desvantagens são aquelas advindas do
consumo desses alimentos, podendo causar alergias ou danificar o sistema imunológico humano. As sementes, além disso, poderiam transmitir seu material genético
a outras espécies, gerando “super-pragas”. Os herbicidas, por fim, inoculados nas sementes modificadas poderiam afetar animais e insetos importantes ao equilíbrio do
meio ambiente.
Há notícias ainda que “pesquisa do cientista Arpad Pusztal, Escócia, admitiu
que ratos alimentados com batata transgênica apresentaram problemas. Outra informação: grupo alerta sobre a batata transgênica. Vinte cientistas no Reino Unido não
permitem tal venda. Outra informação: segundo Beatrix Tappeser, representante do
Instituto de Ecologia Aplicada da Alemanha existem cada vez mais provas sobre os
riscos ecológicos e danos à saúde que podem ser provocados por esses alimentos”10.
A despeito da ausência de estudos científicos sérios, a CTNBio concedeu 626
liberações para pesquisas na área de engenharia genética para a soja, milho, algodão, arroz, batata, fumo, cana-de-açúcar, trigo etc11.
A entidade ambientalista Greenpeace fez manifestação em Brasília e o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), juntamente com o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), moveu ação civil pública pedindo a suspensão do pedido de autorização de plantio de soja transgênica no país.
O fundamento foi que a CTNBio não exigiu da empresa (Monsanto) o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA/RIMA), básico para a iniciativa pretendida. Aliado ao
fato da falta de informação segura sobre as conseqüências para a saúde humana e o
10. Geraldo Gomes. Alimentos transgênicos – Riscos – Interesses – Restrições – Genética. Tribuna da Magistratura de julho/agosto de 1999, p. 104.
11. Geraldo Gomes. (Op. cit., p. 104).
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meio ambiente, já que nem os estudos nos países europeus e nos Estados Unidos
chegaram a uma conclusão definitiva12.
10. INFRAÇÕES PENAIS
A engenharia genética vem sendo estudada e pesquisada desde a década de
setenta. É certo ainda que nesses últimos anos as descobertas passaram a ser mais
intensas e constantes. Vê-se, diariamente, notícias, através dos jornais, sobre as mais
variadas descobertas sobre a manipulação genética nas mais diversas áreas. Por
exemplo: na agricultura, nas indústrias químicas, nos setores farmacêuticas etc.
A mais importante pesquisa na área da engenharia genética é, sem dúvida alguma, o projeto genoma. Pretende-se cadastrar todos os genes da espécie humana,
procurando melhorar e evitar doenças no nascimento, detectando os defeitos nos
genes antes de sua utilização. É possível ainda detectar a resistência dos genes e evitar futuras doenças, assim como, o câncer, a síndrome de down etc.
Pretende-se, inclusive, fazer a clonagem de seres humanos à semelhança dos
animais. No entanto, a manipulação genética e a liberação de organismos geneticamente modificados no meio ambiente pode trazer muitos riscos ainda não conhecidos aos seres humanos, aos animais e as plantas. M. A. Hermitte e C. Noiville afirmam que poderá aparecer
traços patogênicos para os seres humanos, animais e plantas; perturbações para os ecossistemas; transferência de novos traços genéticos para outras espécies, como efeitos indesejáveis; dependência excessiva face às espécies, como ausência de variação genética”.13
É verdade também que a engenharia genética será a solução para o problema
de alimentação da população no futuro e, quem sabe, a erradicação da pobreza (art.
3o., III, da CF).
Foi com a intenção de se evitar os excessos na área da engenharia genética é
que o legislador regulamentou os incisos II e V do par. 1o. do art. 225 da CF, após
sete anos, com a promulgação da Lei n. 8.974, de 05 de janeiro de 1995. Essa lei estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação ao meio
ambiente de organismos geneticamente modificados, autorizando o Poder Executi12. Ana Paula Morato. Comida de laboratório. Revista dos Bancários n. 47, de agosto de 99, p. 22. V. integra da decisão de ação cautelar inominada n. 260/99, processo n. 1998.34.00.02768-8-classe 9200, transladada para os autos
da ação civil pública n. 1997.34.00.036170-4, 6a. Vara Seção Judiciária do Distrito Federal, in O estado atual do biodireito. Maria Helena Diniz, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 593/633.
13. Apud Paulo Affonso Leme Machado. (Op. cit., p. 782).
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vo criar, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança.
Esta lei vedou expressamente a clonagem humana, consoante art. 8o., II da Lei
n. 8.974/95.
Passemos, assim, a fazer algumas anotações ao art. 13, I, II, III, IV e V da Lei n.
8.974/95 que dispõe sobre os crimes relacionados ao patrimônio genético.
Breves anotações aos tipos penais
Art. 13. Constituem crimes:
I - a manipulação genética de células germinais humanas;
V. art. 8o., II, da Lei n. 8.974/95
II - a intervenção em material genético humano in vitro, exceto
para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se os princípios éticos, tais como o princípio de autonomia e o princípio de beneficiência, como a aprovação da CTNBio.
V. art. 8o., III, da Lei n. 8.974/95
Pena - detenção de três meses a um ano.
§ 1o. Se resultar em:
a) incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias
V. art. 129, par. 1o., I, do CP
perigo de vida;
V. art. 129, par. 1o., II, do CP
debilidade permanente de membro, sentido ou função;
V. art. 129, par. 1o., III, do CP
aceleração de parto.
V. art. 129, par. 1o., IV, do CP
Pena - reclusão de um a cinco anos.
§ 2o. Se resultar em:
incapacidade permanente para o trabalho;
V. art. 129, par. 2o., I, do CP
enfermidade incurável;
V. art. 129, par. 2o., II, do CP.
perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
V. art. 129, par. 2o., III, do CP.
deformidade permanente;
V. art. 129, par. 2o., IV, do CP
aborto.
V. art. 129, par. 2o., V, do CP
Pena - reclusão de dois a oito anos.
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§ 3o. Se resultar em morte:
V. art. 129, par. 3o., do CP
Pena - reclusão de seis a vinte anos.
III - a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível.
Pena - reclusão de seis a vinte anos
V. art. 8o., IV, da Lei n. 8.974/95.
IV - a intervenção in vivo em material genético de animais, excetuados os casos em que tais intervenções se constituam em avanços significativos na pesquisa científica e no desenvolvimento tecnológico, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio da
responsabilidade e o princípio da jurisprudência, e com aprovação prévia da CTNBio.
Pena - detenção de três meses a um ano.
V. art. 8o., V, da Lei n. 8.974/95.
V - a liberação ou o descarte do meio ambiente de OGM em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e constantes na
regulamentação desta Lei.
Pena - reclusão de um a três anos.
V. art. 8o., VI, da Lei n. 8.974/95.
§ 1o. Se resultar em:
lesões corporais leves;
V. art. 129, caput, do CP
perigo de vida;
V. art. 129, par. 1o., II, do CP
debilidade permanente de membro, sentido ou função;
V. art. 129, par. 1o., III, do CP.
aceleração de parto;
V. art. 129, par. 1o., IV, do CP
dano à propriedade alheia;
dano ao meio ambiente.
Pena - reclusão de dois a cinco anos.
§ 2o. Se resultar em:
incapacidade permanente para o trabalho;
V. art. 129, par. 2o., I, do CP.
enfermidade incurável;
V. art. 129, par. 2o., II, do CP.
perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
V. art. 129, par. 2o., III, do CP
deformidade permanente;
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V. art. 129, par. 2o., IV, do CP
aborto;
V. art. 129, par. 2o., V, do CP
inutilização da propriedade alheia;
dano grave ao meio ambiente.
Pena - reclusão de dois a oito anos.
§ 3o. Se resultar em morte:
Pena - reclusão de seis a vinte anos.
V. art. 129, par. 3o., do CP
§ 4o. Se a liberação, o descarte no meio ambiente ou a introdução
no meio de OGM for culposo:
Pena - reclusão de um a dois anos.
V. art. 8o., VI, do CP.
§ 5o. Se a liberação, o descarte no meio ambiente ou a introdução
no País de OGM for culposa, a pena será aumentada de um terço
se o crime resultar de inobservância de regra técnica de profissão.
Anotações aos incisos I e II.
Bem jurídico tutelado. É a preservação do meio ambiente, a diversidade biológica e a integridade do patrimônio genético.
Sujeito ativo. Pode ser qualquer pessoa física.
Sujeito passivo. A coletividade.
Co-autoria. É admissível.
Objeto material. É a proteção da vida e da saúde do homem, dos animais e
das plantas, bem como do meio ambiente.
Conduta punível. São cinco as condutas puníveis:
I - constitui crime a manipulação genética de células germinais humanas. Engenharia genética é a “manipulação de moléculas ADN/ARN recombinante” (art. 3o.,
V, da Lei n. 8.974/95). ADN é o ácido desoxirribonucléico e ARN é o ácido ribonucléico (art. 3o., III, da Lei n. 8.974/95). Já células germinais humanas “ou células da
linhagem germinativa são células sexuais ou gametas ou células reprodutivas e contêm a metade do número de cromossomos encontrados nas células somáticas”.14 Assim, constitui crime a manipulação de células humanas (óvulo e espermatozóide).
II - constitui crime a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se os princípios éticos, tais
como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência, com a aprovação da
CTNBio. É vedada “qualquer manipulação genética de organismos vivos ou o mane-
14 Paulo Affonso Leme Machado. (Op. cit., p. 824).
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jo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizados em desacordo com as
normas previstas nesta lei”(art. 8o., I, da Lei n. 8.974/95). CTNBio é a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. Intervenção in vivo é a manipulação da célula viva
no organismo. Não constitui o crime em questão se a intervenção ocorrer para o tratamento de defeitos, desde que respeitados os princípios éticos, o princípio da autonomia e o princípio da beneficência. O princípios éticos são aqueles contidos no
Código de Ética Médica. O princípio da autonomia é aquele que regido pelo livre arbítrio humano. O princípio da beneficência é aquele que não pode causar danos a
coletividade. A necessidade da aprovação prévia da CTNBio, caso contrário o agente incidirá no dispositivo em questão.
Elemento normativo. Exige-se a autorização da CTNBio para a intervenção
em material genético humano (inc. II).
Elemento subjetivo. É o dolo, consistente na vontade livre e consciente de
querer praticar os verbos descritos no tipo penal.
Consumação. A consumação se dá com o efetivo ato de manipulação (I) ou
da intervenção (II).
Tentativa. É admissível.
Classificação. É crime comum, de mera conduta e comissivo.
Pena. A pena é de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.
Formas qualificadas: A pena será de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos)
se resultar em: a) incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta
dias; b) perigo de vida; c) debilidade permanente de membro, sentido ou função;
e d) aceleração de parto. A pena será de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos se
resultar em: a) incapacidade permanente para o trabalho; b) enfermidade incurável; c) perda ou inutilização de membro, sentido ou função; d) deformidade permanete; e e) aborto.
Ação penal. É pública e incondicionada. No tipo penal fundamental, o rito
é o sumário previsto no art. 539 do CPP. Aplica-se, nas hipóteses, o instituto da
transação penal previsto no art. 76 da Lei n. 9.099/95 (Juizado Especial Criminal).
Nas qualificadoras, o rito é o ordinário previsto no art. 394 do CPP. Aplica-se, no
par. 1o., o instituto da suspensão do processo nos termos do art. 89 da Lei n.
9.099/95.
Competência. É da Justiça Estadual.
Confronto. Vide o art. 8o., I e III, da Lei n. 8.974/95, Decreto n. 1.752/95 e Decreto n. 1.753/95.
Anotação ao inciso III.
Bem jurídico tutelado. É a preservação do meio ambiente, a diversidade biológica e a integridade do patrimônio genético.
Sujeito ativo. Pode ser qualquer pessoa física.
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Sujeito passivo. A coletividade
Co-autoria. É admissível.
Objeto material. É a proteção da vida e da saúde do homem, dos animais e
das plantas, bem como do meio ambiente.
Conduta punível. A conduta punível é a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível. Produzir é dar nascimento, criar, gerar ou fazer aparecer. Armazenar é
guardar, recolher ou manter em depósito. Manipulação é preparar, engendrar, forjar ou maquinar. Veda-se, assim, a produção, armazenamento e a manipulação de
embriões para ser utilizado futuramente pelo homem. Trata-se de crime de ação
múltipla ou de conteúdo variado.
Elemento subjetivo. É o dolo, consistente na vontade livre e consciente de
querer praticar uma das condutas descritas no tipo legal.
Consumação. A consumação se dá com a efetiva prática de uma das condutas citadas.
Tentativa. É admissível.
Classificação. É crime comum, de mera conduta e comissivo.
Pena. A pena é de reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
Ação penal. É pública e incondicionada. O rito é o ordinário previsto no art.
394 do CPP.
Competência. É da Justiça Estadual.
Confronto. Vide art. 8o., IV da Lei n. 8.974/95, Decreto n. 1.752/95 e Decreto
n. 1.753/95.
Anotação ao inciso IV
Bem jurídico tutelado. É a preservação do meio ambiente, a diversidade biológica e a integridade do patrimônio genético.
Sujeito ativo. Pode ser qualquer pessoa física.
Sujeito passivo. A coletividade.
Co-autoria. É admissível.
Objeto material. É a proteção da vida e da saúde do homem, dos animais e
das plantas, bem como do meio ambiente.
Conduta punível. A conduta punível é a intervenção in vivo em material genético de animais, excetuados os casos em que tais intervenções se constituam em
avanços significativos na pesquisa científica e no desenvolvimento tecnológico, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio da responsabilidade e o princípio da jurisprudência, e com a aprovação prévia da CTNBio. Este delito é semelhante ao previsto no inciso II. No entanto, procura-se proteger neste tipo penal o material genético de animais. Permite-se, contudo, a intervenção in vivo para o progresso científico desde que se respeite os princípios éticos (Código de Ética Médi-
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ca), da responsabilidade ou da cautela (bom senso) e da jurisprudência (procedimentos administrativos ou judiciais).
Elemento normativo. É a autorização da CTNBio.
Elemento subjetivo. É o dolo, consistente na vontade livre e consciente de
querer praticar a conduta prevista no tipo penal.
Consumação. A consumação ocorre com a efetiva prática da conduta penal.
Tentativa. É admissível.
Classificação. É crime comum, de mera conduta e comissivo.
Pena. A pena é de detenção, de três meses a um ano.
Ação penal. É pública e incondicionada. O rito é o sumário previsto no art.
394 do CPP. Aplica-se, in casu, o instituto da transação penal previsto no art. 76 da
Lei n. 9.099/95 (Juizado Especial Criminal).
Competência. É da Justiça Federal (art. 109, IV, da CF).
Confronto. Vide art. 8o., V, da Lei n. 8.974/95, Decreto n. 1752/95 e Decreto n.
1.753/95.
Anotação ao inciso V
Bem jurídico tutelado. É a preservação do meio ambiente, a diversidade biológica e a integridade do patrimônio genético.
Sujeito ativo. Pode ser qualquer pessoa física.
Sujeito passivo. A coletividade.
Co-autoria. É admissível.
Objeto material. É a proteção da vida e da saúde do homem, dos animais e
das plantas, bem como do meio ambiente.
Conduta punível. A conduta punível é a liberação ou descarte do meio ambiente de OGM em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e constantes na regulamentação desta Lei. Liberar é tornar livre, desobrigar ou livrar. Descarte é rejeitar, jogar ou por de lado. Organismo Geneticamente Modificado (OGM) é
o material genético (ADN/ARN) que tenha sido modificado por qualquer técnica de
engenharia genética (art. 3o., IV da Lei n. 8.974/95). Liberar é permitir a introdução
de OGM no meio ambiente de sementes transgênicas para a plantação ou animais
alterados geneticamente. Descartar é jogar no meio ambiente rejeitos de OGM.
Elemento normativo. Exige-se autorização da CTNBio para a liberação e ou
descarte de OGM no meio ambiente.
Elemento subjetivo. É o dolo, consistente na vontade livre e consciente de
querer praticar o um dos verbos do tipo penal. Admite-se a modalidade culposa.
Consumação. A consumação ocorre coma efetiva prática de uma das condutas descritas.
Tentativa. É admissível.
Classificação. É crime comum, de mera conduta e comissivo.
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Pena. A pena é de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. Se culposo, a pena é de
reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
Formas qualificadas. A pena será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se
resultar em: a) lesões corporais leves; b) perigo de vida; c) debilidade permanente
de membro, sentido ou função; d) aceleração de parto; e) dano à propriedade
alheia; f) dano ao meio ambiente. A pena será de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos
se resultar em: a) incapacidade permanente para o trabalho; b) enfermidade incurável; c) perda ou inutilização de membro, sentido ou função; d) deformidade permanente; e) aborto; f) inutilização da propriedade alheia; e g) dano grave ao meio ambiente. A pena é de reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos se resultar em morte.
Ação penal. É pública e incondicionada. O rito é o ordinário previsto no art.
394 do CPP. Na modalidade culposa, o rito é o sumário previsto no art. 539 do CPP,
aplicando-se o instituto da suspensão do processo previsto no art. 89 da Lei n.
9.099/95 (Juizado Especial Criminal).
Competência. É da Justiça Estadual.
Confronto. Vide art. 8o., VI, da Lei n. 8.974/95, Decreto n. 1752/95 e Decreto
n. 1.753/95.
Jurisprudência.
Não há decisões a respeito nos anais jurídicos.
11. DOUTRINA
Livros: Adriana Diaféria. Clonagem (Aspectos Jurídicos e Bioéticos). São Paulo: Edipro, 1999; Aline Mignon de Almeida. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000; Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria. Biodiversidade e
patrimônio genético (No Direito Ambiental Brasileiro). São Paulo: Max Limonad,
1999; Francisco Vieira Lima Neto. Responsabilidade das empresas de engenharia genética. São Paulo: De Direito, 1997; Jean Bernard. A bioética. São Paulo: Ática, 1994;
José Carlos Tinoco Soares. Tratado da Propriedade Industrial. São Paulo: Jurídica
Brasileira, 1998; José Renato Nalini. Ética Ambiental. Campinas: Millennium ed.,
2001; Leo Pessini e Christian Barchifontaine. Fundamentos da bioética. São Paulo:
Paulus, 1996; Luiz Regis Prado. Crimes Contra o Ambiente. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998; Maria Celeste Cordeiro dos Santos. O equilíbrio do pêndulo a bioética e a lei – Implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998; Maria Helena Diniz. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001; Paulo Affonso Leme
Machado. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1998; Tereza Rodrigues Vieira. Bioética e Direito. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1999; Vladimir Passos
Freiras e Gilberto Passos Freitas. Crimes Contra a Natureza. 6a. ed. São Paulo: RT,
2000. Artigos: Alberto Nobuoky Momma. Rotulagem de plantas transgênicas e o
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agronegócio. São Paulo: RDA 16:153, outubro-dezembro/1999 e Plantas transgênicas. Marketing e realidades. São Paulo: RDA n. 15:114, julho-setembro/1999; Ana
Cláudia Bento Graf. Direito, Estado e economia globalizada: as patentes de biotecnologia e o risco de privatização da biodiversidade. São Paulo, RDA n. 18:153, abriljunho/2000; Ana Flávia Barros-Platiau e Marcelo Dias Varella. Direito e Biodiversidade – O Protocolo Internacional de Biossegurança e as Implicações Jurídicas de sua
Aplicação para o Mundo em Desenvolvimento. Inovações em Direito Ambiental. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000; Ana Paula Morato. Comida de laboratório. São
Paulo, Revista dos Bancários n. 47, ago./99; Antonio de Pádua Ribeiro. Biodiversidade e Direito. São Paulo, RDA 17:17, janeiro-março/2000 e RIPE n. 27:15, dez/99mar/2000; Antonio Silveira Ribeiro dos Santos. Biodiversidade: Desenvolvimento
sustentável. São Paulo, RDA n. 7:94, julho-setembro/1997 e Bioprospecção: importância e aspectos jurídicos. São Paulo, Jornal Tribuna do Direito, outubro/2000, p. 8;
Francisco Eugênio M. Arcanjo. Convenção sobre a diversidade biológica e projeto de
lei do Senado 306/95: soberania, propriedade e acesso aos recursos genéticos. São
Paulo, RDA n. 7:137, julho-setembro/1997; Geraldo Gomes. Alimentos transgênicos
– Riscos – Interesses – Restrições – Genética. São Paulo, Tribuna da Magistratura,
jul.-ago./99; Gisela S. de Alencar. Biopolítica, biodiplomacia e a Convenção sobre a
Diversidade Biológica/1992: evolução e desafios para implementação. São Paulo,
RDA n. 3:82, julho-setembro/1997; José Rubens Morato Leite e Marcelo Dias Varella. Biodiversidade e Instrumentos Jurídicos Relevantes. RIPE-ITE n. 22, ago./nov./98;
Silvia Capelli. Transgênicos: o impacto da nova tecnologia e seus reflexos jurídicos.
Direito Ambiental em Evolução n. 2. Curitiba, Juruá Editora, 2000 e Biotecnologia e
meio ambiente: o conhecimento científico a serviço do planeta e o consumidor. Reflexos jurídicos da biotecnologia vegetal – A situação do Rio Grande do Sul. São Paulo, RDA n. 20:94, out.-dez./2000.
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DA NÃO-INCIDÊNCIA DO ISS SOBRE FRANQUIAS
Eduardo Amorim de Lima
Advogado Tributarista.
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru, ITE, Bauru – SP.
Omar Augusto Leite Melo
Advogado Tributarista.
Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária.
1
INTRODUÇÃO.
A Constituição Federal brasileira estabelece, em seu artigo 156, inciso III, a possibilidade de os Municípios e do Distrito Federal instituírem o imposto sobre serviços de
qualquer natureza - ISS, excetuados os serviços de transporte interestadual e intermunicipal, bem como os serviços de comunicação, que compõem a regra-matriz de incidência do imposto estadual sobre circulação de mercadorias e serviços - ICMS.
Para dirimir esse conflito de competência tributária entre os entes federados,
o artigo 146, inciso I, da Lei Maior, exige que haja abordagem da matéria por via de
uma lei complementar.
Ademais, os serviços que serão atingidos pela tributação municipal do ISS são
aqueles expressamente previstos em lei complementar, a fim de que restem taxativamente prescritas as hipóteses de incidência desse imposto.1
1 O STF tem entendido que a Lista é taxativa, conforme RExt 91.737/MG, 2ª Turma, relator Ministro Décio Miranda,
julgado em 14/11/1980, DJ de 27/08/1981, p. 2.535 e, mais recentemente, RExt 116.121-3/SP, relator Ministro Octávio Gallotti, Plenário, julgado em 11/10/2000, DJ de 25/05/2001, p. 17.
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O atual veículo normativo que rege o alcance da competência tributária dos
Municípios é o Decreto-lei nº 406/68, que traz uma lista dos serviços sujeitos ao ISS.2
Nesse ponto, importante destacar que, não obstante haja expressa previsão
constitucional para que os serviços tributados pelo ISS sejam previstos em lei complementar, existe relativa consonância na doutrina ao afirmar-se que o Decreto-lei nº
406/68 foi recepcionado pela atual Carta Política, com o status de lei complementar.3
Com efeito, por força do artigo 146, inciso III, alínea a, da Lei Maior, compete à lei complementar estruturar os fatos geradores dos tributos e de suas espécies.
É exatamente isso que fez o Decreto-lei nº 406/68, ou seja, estruturou fatos geradores do ISS.
Na mesma linha de raciocínio, a Lei Complementar nº 56/87, posteriormente
ao decreto-lei já mencionado, estabeleceu um rol de serviços tributados pela exação
municipal.
A grande questão que surge é a seguinte: pode o franchising ser tributado
pelo ISS? Em outras palavras: o item 48 da Lista de Serviços do ISS é constitucional?4
É o que se pretende analisar no presente estudo.
2
VINCULAÇÃO DO CONCEITO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO A UMA
OBRIGAÇÃO DE FAZER.
O imposto municipal só pode incidir sobre as prestações de serviços definidos em lei complementar. Portanto, não basta a previsão legal. Mister se faz, também, que se trate efetivamente de uma prestação de serviço.
A prestação de um serviço de qualquer natureza sempre deriva de um contrato,
pelo qual uma das partes se obriga para com outra a fornecer-lhe a prestação de uma
atividade, mediante certa remuneração. Enfim, constitui-se numa obrigação de fazer.
Logo, toda e qualquer obrigação de dar está fora do campo de incidência do ISS.
Portanto, neste instante, é importante estremar a obrigação de dar da obrigação de fazer.
Enquanto na obrigação de dar existe a prestação (entrega) de uma coisa, na
obrigação de fazer encontra-se uma prestação de fato, consoante lição do civilista Silvio Rodrigues.5 Logo, o ISS só poderá tributar as prestações de fato, de atividade.
A propósito, no Recurso Extraordinário nº 116.121-3, relator Ministro Octávio
Gallotti, julgado em 11/10/2000, DJU de 25/05/2001, p. 17, o Plenário do Supremo
2 A lista recebeu uma nova redação por meio da Lei Complementar nº 56/87. Recentemente, a Lei Complementar
nº 100/99 inseriu um novo serviço na lista.
3 A propósito, artigo 34, §5º, do ADCT.
4 Item 48. Agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos de franquia (franchise) e de faturação
(factoring) (excetuam-se os serviços prestados por instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central).
5 Direito Civil, vol. 2, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 33.
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Tribunal Federal adotou este entendimento extraído do Direito Civil, afastando a locação de bens móveis (prevista no item 79 da Lista de Serviços) da incidência do ISS.
Sua ementa foi assim redigida:
TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS –
CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com
a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas
regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância
inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional.
Ou seja, como a locação de bens móveis (exemplo: automóveis, máquinas,
fitas, roupas etc.) gera obrigações de dar (prestação, entrega e devolução de
uma coisa), e não de fazer, tal atividade empresarial está fora do campo de incidência do ISS, uma vez que não se encaixa no elemento material do tipo tributário deste tributo (prestar + serviço).
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, adotada inclusive pela nossa Suprema Corte, por certo, as franquias devem seguir a mesma sorte, caso sejam entendidas como obrigações de dar, e não como autênticos serviços.
Escrevendo a respeito do contrato de locação de serviço, Maria Helena Diniz expressamente consigna que
o objeto desse contrato locatício é uma obrigação de fazer,
ou seja, a prestação de atividade lícita, não vedada pela lei
e pelos bons costumes, oriunda da energia humana aproveitada por outrem, e que pode ser material ou imaterial6. (os grifos
são nossos).
Dessa forma, é preciso, na seqüência, analisar o contrato de franquia, a fim
de se verificar sua natureza jurídica, confrontando se há, nele, uma autêntica
prestação de serviço, ou seja, uma obrigação de fazer, ou, ainda, a prestação de
um fato.
6 Curso de Direito Civil Brasileiro, 3º vol. 12ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 238.
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NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE FRANCHISING
É fundamental analisar, em primeiro lugar, o contrato de franquia, à luz do Direito Privado, pois o conceito de franquia, para fins tributário, precisa ser necessariamente o mesmo, diante da característica de superposição do Direito Tributário,
reconhecida expressamente no artigo 110 do Codex Tributário.7
A Lei nº 8.955/94, que dispõe sobre o contrato de franquia empresarial, determina, em seu artigo 2º que:
Art. 2º Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de
produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso
de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique
caracterizado vínculo empregatício.
Percebe-se, com a leitura do dispositivo legal acima mencionado, que o contrato de franquia se diferencia sobremodo de um simples contrato de prestação de
serviços, mormente quando levado em conta que o franqueado, genuinamente, não
presta serviços ao franqueador, nem este àquele.
Assim, pode-se dizer que o contrato de franquia empresarial é eminentemente um contrato de cessão de direitos, no qual o franqueador cede ao franqueado o
direito de uso de marca ou patente, bem como o direito de uso de know how, por
intermédio do qual auferirá renda.
Para a já citada civilista, Maria Helena Diniz,
franquia ou franchising é o contrato pelo qual uma das partes
(franqueador ou franchisor) concede, por certo tempo, à outra
(franqueado ou franchisor) o direito de comercializar marca,
serviços (p. ex. a hotelaria) ou produto que lhe pertence, com assistência técnica permanente, recebendo, em troca, certa remuneração.8
7 Art 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas
de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
8 Op. cit., p. 534.
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Portanto, não se trata de uma mera obrigação de fazer, de uma prestação de
serviço, mas sim, de um sistema de parceria empresarial, no dizer dessa mesma autora, devidamente embasada no artigo 2º da Lei nº 8.955/94.9
O tributarista José Eduardo Soares de Mello trata a franquia como um autêntico contrato de sociedade, pois não é uma simples prestação de serviços
(fazer), uma vez que a participação na distribuição de bens (mercadorias e serviços), entre franqueador e franqueado, envolve
uma atividade ampla (transferência de tecnologia, imposição de
condutas, cessão de direitos, obrigação de aquisição de quantidade mínimas etc.), evidenciando um objeto participativo entre as
partes.10
Para Fran Martins, o contrato de franquia compreende, simultaneamente,
uma prestação de serviços e uma distribuição de certos produtos,11 o que torna também inviável a incidência do ISS, uma vez que este tributo municipal só pode alcançar as prestações de serviços, individualmente consideradas e detectadas.
Note-se que, de acordo com o artigo 2º da Lei nº 8.955/94, o foco principal do
franchising está em ceder (dar) ao franqueado o direito de uso de marca ou patente. Posteriormente a essa obrigação primordial de dar (a lei fala em associado), vem
a obrigação de distribuir (dar) exclusiva ou semi-exclusivamente produtos ou serviços. Logo, esta última obrigação é mera conseqüência daquela primeira.
Ademais, tão-somente em caráter extraordinário (eventualmente – está destacado no artigo 2º já transcrito) a franquia pode abranger, também, a cessão (dar)
de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador.
A possível obrigação de fazer (e, por conseguinte, prestação de um serviço tributável pelo ISS) dentro no contrato de franquia está apenas implícita nessas obrigações de dar, fazendo parte da execução do contrato, e não da sua natureza ou de sua
constituição. De fato, as obrigações de fazer assumidas pelo franqueador derivam da
própria natureza das obrigações de ceder, estampadas no artigo 2º acima transcrito.
Com efeito, os serviços de supervisão de rede, de orientação e outros prestados ao franqueado, treinamento do franqueado e dos seus funcionários, auxílio na
9 Ibid., p. 535.
10 Aspectos Teóricos e Práticos do ISS. São Paulo: Dialética, 2000, p. 64.
11 O contrato de franquia compreende uma prestação de serviços e uma distribuição de certos produtos, de
acordo com as normas convencionadas. A prestação de serviços é feita pelo franqueador ao franqueado, possibilitando a esse a venda de produtos que tragam a marca daquele. A distribuição é a tarefa do franqueado, que
se caracteriza na comercialização do produto. Os dois contratos agem conjuntamente, donde ser a junção de
suas normas que dá ao contrato a característica de franquia (Contratos e Obrigações Mercantis, 14ª ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1998, p. 490).
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análise e escolha do ponto onde será instalada a franquia (todos explicitamente previstos no artigo 3º, inciso XII, da Lei nº 8.955/94) são obrigações acessórias, situadas
na fase de execução ou implantação da franquia, derivadas daquelas fixadas no artigo 2º da mesma lei, estas sim, inseridas na substância, na natureza jurídica do negócio jurídico celebrado.
Em outras palavras, quem celebra o contrato de franquia está buscando verdadeiramente o direito de uso de marca ou patente, o direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, o direito ao uso
de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional
desenvolvido ou detido pelo franqueador. Apenas acessoriamente (fora, portanto,
do plano de constituição do negócio jurídico) até para fins de concretização efetiva
daqueles desideratos principais, é que o franqueador também oferece alguns serviços discriminados no inciso XII, do artigo 3º, da Lei das Franquias.
Ademais, a remuneração direta ou indireta paga pelo franqueado refere-se às
obrigações ditas principais (de dar), do artigo 2º da Lei de Franquias, deixando sem
base de cálculo uma eventual tributação do ISS sobre os serviços representados pelas obrigações de fazer, acessórias ao contrato de franquia.
O STJ já se posicionou sobre a celeuma, assentando posicionamento semelhante ao aqui sustentado:
TRIBUTÁRIO. ISS. FRANCHISING. DECRETO-LEI Nº 406/68. LEI Nº
8.955/94.
1. Acórdão a quo que julgou improcedente a ação declaratória cumulada com repetição de indébito ajuizada pela recorrente, insurgindo-se contra a cobrança de ISS, ao argumento de não constar na Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei nº 406/68 (art. 79) a
prestação dos serviços de franquia, sendo indevidos os pagamentos que efetuou.
(...)
3. O ‘franchising’, em sua natureza jurídica, é ‘contrato típico,
misto, bilateral, de prestações recíprocas e sucessivas com o fim de
se possibilitar a distribuição, industrialização ou comercialização
de produtos, mercadorias ou prestação de serviços, nos moldes e
forma previstos em contrato de adesão’. (Adalberto Simão Filho,
Franchising, São Paulo, 3ª ed., Atlas, 1988, p. 36/42).
(...)
6. O contrato de franquia é de natureza híbrida, em face de ser formado por vários elementos circunstanciais, pelo que não caracteriza para o mundo jurídico uma simples prestação de serviço, não
incidindo sobre ele o ISS. Por não ser serviço, não consta, de modo
identificado, no rol das atividades especificadas pela Lei n º
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8.955/94, para fins de tributação do ISS.
7. Recurso provido (Recurso Especial nº 222.246/MG, 1ª Turma, relator Ministro José Delgado, julgado em 13/06/2000, DJ de
04.09.2000, p. 123).
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça voltou a julgar favoravelmente aos contribuintes, no REsp 189.225/RJ, 2ª Turma, relator Ministro Francisco Peçanha Martins, julgado em 04/09/2001, DJ de 03/06/2002, p. 169, cuja ementa segue abaixo:
TRIBUTÁRIO – ISS – ‘FRANCHISING’ OU CONTRATO DE FRANQUIA
– D.L. 406/68 – LEI Nº 8.955/94 – PRECEDENTES.
Não sendo o contrato de franquia uma simples prestação de serviço, mas de natureza complexa, não consta no rol das atividades
especificadas pela Lei 8.955/94, para fins de tributação do ISS.
Em obediência ao princípio tributário que proíbe a determinação
de qualquer tipo de fato gerador sem apoio em lei, não incide o ISS
sobre as atividades específicas do contrato de franquia.
Recurso especial não conhecido.
Verifica-se, assim, que nessas duas turmas do STJ, competentes para analisar
os feitos tributários, portanto, já existe uma orientação pacífica quanto à impossibilidade do ISS incidir sobre a franquia. A propósito, no Agravo Regimental lançado no
Agravo de Instrumento – AGA nº 436.886/MG, 1ª Turma, relator Garcia Vieira, julgado em 1º/10/2002, DJ de 28/10/2002, p. 250, a ementa foi resumidamente redigida
da seguinte forma:
TRIBUTÁRIO. ISS. FRANQUIA. NÃO INCIDÊNCIA.
Não incide o ISS em contrato de franquia (precedentes).
Agravo improvido.
Portanto, constata-se que não haverá a hipótese de incidência do ISS, uma vez
que sobejamente demonstrada a inexistência de uma genuína prestação de serviços,
mas sim de uma obrigação de ceder (dar), acumulada, paralelamente, com obrigações
(complementares ou acessórias) de fazer, que visam apenas a concretizar e efetivar as
obrigações primordiais da franquia, previstas no artigo 2º da Lei de Franquias.
Assim, o contrato de franquia fica restrito à hipótese de incidência de um
eventual e futuro imposto federal, criado com fulcro na competência residual do artigo 154, inciso I, da Lei Maior, pertencendo aos Estados e ao Distrito Federal vinte
por cento do produto da arrecadação desse hipotético tributo, em atendimento ao
artigo 157, inciso II, da Carta Constitucional.
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Finalmente, para um maior esclarecimento, vale transcrever as principais obrigações do franqueador, que confirmam a supremacia total das obrigações de dar sobre as obrigações de fazer no contrato em apreço, quais sejam: entregar (obrigação
de dar) ao franqueado a mercadoria, produtos ou serviços; conceder o uso da marca (obrigação de dar) ao franqueado; distribuir (obrigação de dar) os produtos ou
serviços franqueados; transmitir (obrigação de dar) o know-how de implantação e
administração de negócio ou sistema operacional; e assistir permanentemente o
franchisee, nos termos do artigo 3º, inciso XII, da Lei nº 8.955/94 (obrigação de fazer, cuja necessidade decorre das obrigações anteriores).
4
CONCLUSÕES
1) Sobre os contratos de franquia não há incidência do ISS, uma vez que sua
natureza jurídica não é de prestação de serviços, mas sim, de obrigação de dar, conforme na sua lei de regência (Lei nº 8.955/94, artigo 2º).
2) Sem dúvidas, o artigo 110 do Código Tributário Nacional deve ser aplicado
para a exata apreensão, pelo Direito Tributário, do conceito de contrato de franquia,
já sacramentado no direito privado, sob pena de incorrer-se em interpretação inconstitucional (ofensa ao pacto federativo – artigo 60, §4º, inciso I, da Constituição
Federal), originada pela ampliação da competência municipal, em detrimento da
competência residual da União, estampada no artigo 154, inciso I, da Carta Magna.
Com efeito, ao atribuir competência para os Municípios e para o Distrito Federal instituírem o ISS, a Lei Maior se referiu a serviços, a obrigações de fazer, não
competindo a uma lei, ainda que com status de lei complementar, ampliar o alcance dessa expressão, retirando a competência tributária do âmbito constitucional,
pois isto é inadmissível em nosso sistema tributário.
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GENOCÍDIO ECONÔMICO
Giovani Clark
Doutor em Direito/UFMG.
Professor da PUC/MG.
Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico.
Autor do livro “O Município em face do Direito Econômico”, Del Rey, 2001.
A história relata os genocídios cometidos nas guerras pelos povos, como as
dos europeus contra os latino-americanos, quando da invasão daqueles às nossas
terras, chamada de “descoberta”. Milhares de vidas foram ceifadas pelas armas de
fogo no solo abaixo da linha dos trópicos em nome da “civilização”. Também, sobre
o mesmo manto, os africanos foram abatidos como animais ferozes por resistirem
ao exílio e à escravidão na exótica colônia portuguesa.
Em pleno século XXI, tempos pós-modernos, os genócidios não foram extirpados entre os homens. São executados por intermédio das armas de guerra ou via
políticas econômicas que eliminam a crédito ou à vista milhões de pessoas.
O genocídio econômico é executado com uma eficácia espantosa, via políticas
econômicas públicas e privadas, no Terceiro Mundo, as eternas colônias, pelos senhores dos lucros. Evidentemente, em nome da glória do capital nos reservaram as
trevas do inferno, logicamente sem a aquiescência dos deuses.
As radicais políticas econômicas transferem ganhos dos pobres para os ricos,
sejam eles Nações ou indivíduos, via políticas de juros, crédito ou renda, executando uma pilhagem “quase invisível”, através de uma guerra econômica, onde o resultado é a fome, o desemprego e a morte fatal dos vencidos.
A globalização não passa da renovação do pacto colonial em bases pós-modernas. Ela somente impulsiona as asas do pássaro universal da miséria, já que nas tro-
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cas internacionais as Nações em desenvolvimento exportam riquezas e importam
pobreza. Os números explicam o caos global, ou seja, apenas 20% da população da
Terra controla 80% da riqueza produzida.
A democracia passou a ser legitimada pelo dinheiro e os governos são privados (CANOTILLO, 2001). Não é obra da natureza as 800 milhões de bocas famintas
pelo mundo, mesmo o planeta produzindo para 11 bilhões de habitantes, enquanto possui 6 bilhões de ocupantes em 2001 (FREI BETTO, 2001). A Lei Áurea também
não se encontra plenamente em vigor, a ONU calcula mais de 23 milhões de pessoas
realizando trabalho escravo pelo mundo.
No Brasil, a 5º população da Terra, o genocídio é implantado através das ditas
políticas econômicas, norteadas pelos interesses das elites econômicas internacionais
com o beneplácito das nacionais, desvinculadas dos ditames da Carta Magna de 1988.
O “horror econômico” (FORRESTER, 1997), disseminado pelas referidas políticas, foi executado, dentro de uma “Ditadura Pós-moderna” (CLARK, 2002) entre
1994 a 2002, onde o Executivo concentrava os poderes asfixiando o Legislativo e o
Judiciário. O uso abusivo das Medidas Provisórias, mesmo alteradas pela famigerada
Emenda Constitucional n.º 32/2001, comprovam nossa posição.
Como nos idos do Brasil colônia, temos um modelo exportador atrelado às
economias centrais e ao capital transnacional. As ações econômicas da elite desgovernante ignoravam as necessidades nacionais e a massa de excluídos. Não existiu
qualquer política industrial ou agrícola para as pequenas e microempresas, assim
como para os pequenos produtores rurais ou cooperativas, nem, muito menos, incentivos para a ciência e tecnologia. Dependência foi o outro nome da política econômica nacional até ao apagar das luzes de 2002.
É fruto de políticas públicas sucessivas a centralização da produção brasileira
em quatro Estados da Federação, ou seja, aproximadamente 64% daquela, Censo
2001, limita-se a São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e ao Rio Grande do Sul. Essas políticas geram miseráveis por toda parte, sobretudo nas periferias das grandes
cidades, bem como o desequilíbrio regional. Temos um “Imperialismo Interno”(ROCHA, 1997) onde o sudeste é o rei e as demais regiões os súditos. Isto dentro de um
federalismo perverso onde a União concentra recursos e poderes em detrimento da
autonomia dos Estados e dos Municípios.
Os resultados das políticas genocidas são alarmantes no país do verde e amarelo. Segundo a UNESCO, o Brasil está em 3º lugar entre 60 países pesquisados onde
os jovens mais morrem por violência. Gastamos, em média, 4% do PIB com a educação, enquanto o ideal seria aproximadamente 10%, por isso possuímos 62 milhões
de analfabetos com idade acima de 10 anos (CORTELLA, 2001). Obviamente, não se
incluem nos dados os analfabetos tecnológicos.
O Brasil acalenta uma “pedagogia escolar da morte”, quando ostentamos o 7º
lugar em analfabetismo no mundo, em matéria de ensino médio só superamos o Paraguai na América Latina, e o 69º lugar em qualidade de ensino entre 192 Nações
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(CORTELLA, 2001). O Censo de 2000, por sua vez, constata que mais de 16% das residências não possuem banheiros, e as mulheres ganham 30% menos que os homens, em média, mas sustentam uma de cada quatro famílias.
As estimativas ainda prevêem aproximadamente 1 milhão e meio de futuros
brasileiros, por ano, que têm o seu direito de nascer caçado pelo aborto, originando ainda o óbito de mais de 400 mil mulheres. Certamente, milhares de abortos são
executados por motivo econômico.
A concentração de renda no Brasil é estarrecedora. Os 20% dos mais ricos têm
uma renda 24 vezes maior do que os 20% mais pobres. Na Índia, a diferença é de 6
vezes. Não é por capricho do acaso que estamos no penúltimo lugar no ranking de
distribuição de renda. O salário mínimo nacional é o terceiro pior do mundo, na
frente somente de Serra Leoa e Haiti (SIQUEIRA, 2001), e 2/3 dos brasileiros vivem
com uma renda per capita inferior a dois salários mínimos e meio (FREI BETTO,
2000). E pelo índice de desenvolvimento humano (IDH), divulgado pela ONU em
2002, estamos no incômodo 73º lugar em 173 países pesquisados.
Para minorar o abismo social, bastava a transferência de 5% da renda das famílias ricas para os despossuídos, reduzir-se-ia pela metade a pobreza nacional. Senão,
teremos que apresentar, em 20 anos, um desenvolvimento econômico gerador de
renda per capita 55% superior a atual (BARROS, 2002).
O Brasil está entre os três países da Terra que mais produzem desempregados, “seres descartáveis”, juntamente com a Rússia e a Índia (SIQUEIRA, 2001), apesar de estarmos entre as 12 maiores economias planetárias. A população brasileira é
de 170 milhões de pessoas, contudo as duas ultimas décadas perdidas levaram 56
milhões de indivíduos a viverem desumanamente abaixo da linha da pobreza, ou
seja, quase 1/3 da população.
Inexplicavelmente, parece que quando Deus concebeu as férteis terras brasileira criou, concomitantemente, os cartórios de registros de imóveis, reservando a
alguns afortunados quase todas as propriedades rurais em detrimento de uma miserável grande maioria. Atualmente, somos vice-campeões mundiais na concentração de propriedades fundiárias. Segundo o INCRA, aproximadamente 62% dos imóveis rurais do Brasil são improdutivos. Os minifúndios ocupam menos 8% da área
total, representado mais 62% dos imóveis cadastrados, produzindo 70% dos alimentos de nossa mesa, e os latifúndios ocupam 56,7 % da área total sendo menos de 3%
dos imóveis cadastrados.
O minguado dinheiro público deixou de ser aplicado no combate à miséria
para salvar grandes empresas. O BNDES socorre comumente a “competente” iniciativa privada dos setores elétricos, siderúrgico, minerador, sobretudo as empresas
privatizadas pelo Estado, socializando misteriosos prejuízos. Paralelamente, as políticas públicas esmagavam as pequenas e microempresas.
Mesmo com todos os ridículos indicadores sociais fomentados pelas genocidas políticas econômicas pagamos fielmente a dívida externa, que multiplica-se atra-
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vés da magia do anatocismo dos agiotas globais. Devemos 10% da dívida externa do
planeta e é a maior do mundo.
Para colocar fim às políticas exterminadoras, temos que revolucionar o modelo socioeconômico, algo pecaminoso na lógica dos donos dos lucros e de seus veículos de comunicação, propagadores da cultura de anti-mudança e do suposto caos
provocado pela mesma. Estamos inseridos na sociedade da idéia única de glória do
capital, onde nos fazem ter medo de perder o que já perdemos.
As políticas econômicas devem ser executadas de forma democrática, transparente e conforme os anseios das Nações, já que aquelas, sem armas ou lutas corporais, podem aniquilar ou soerguer setores, criar cidades mortas ou prósperas, ampliar ou reduzir diferenças socioeconômicas entre regiões. Aliás, é em virtude delas
que elimina-se povos e etnias, ou ainda inviabiliza-se a procriação de seus bravos sobreviventes. Portanto, elas podem levar à condenação à morte e à não reprodução,
sem a publicação devida e direito de ampla defesa.
A fim de que as políticas econômicas consagrem a eliminação das carências individuais e sociais de nosso povo e do Terceiro Mundo, resultando dignidade humana e soberania as Nações em desenvolvidas, devemos exercer, juntos, o Direito Natural dos povos de resistirem a todas as formas de opressão, inclusive a econômica.
Obviamente, sofreremos com o terrorismo econômico passageiro quando nos rebelamos através do voto.
E para tanto, os povos terceiro-mundistas têm que pressionar internacionalmente, através de seus reais líderes, para o reconhecimento do pagamento da
dívida externa, após auditoria, engordada pelo extorsivo anatocismo. Reivindicar
o fim da cobrança de juros sobre juros causador da espoliação nas economias em
desenvolvimento, bem como a implantação da prática do comércio justo entre as
Nações, deixando assim as ricas de impor preços injustos para as pobres, estabelecendo-se valor adequado aos nossos bens/serviços valorizando-os no processo
de produção.
No plano internacional, devemos ainda exigir a vedação do cassino global que
deixa as economias periféricas vulneráveis e, ainda, o fim da priorização do capital
especulativo em detrimento do produtivo. Lutar pela adoção da Taxa Tobi,ou seja,
a aplicação de imposto sobre as transações financeiras cambiais no mundo a fim de
combater o flagelo social global. Realizar uma cruzada planetária contra a corrupção,
prática inerente ao processo de dominação das econômicas centrais, sem a qual se
torna impossível a dominação da economia por aquelas, já que as elites terceiromundistas “vendem-se”, naufragando as Nações.
No plano nacional, as nossas políticas econômicas devem ser planejadas, respeitar as diferenças locais e regionais, destinadas ao desenvolvimento sustentável,
sem copiar modelos alienígenas, tendo um próprio, buscando a produção de bens
e serviços necessários às massas populacionais desprovidas de dignidade humana.
Esperamos que em 2003 o nosso futuro governo, efetivamente democrático, assim
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atue, inclusive liderando as Nações em desenvolvimento para erradicar com o genocídio econômico e a miséria global.
BIBLIOGRAFIA
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CANOTILHO, J. J. Gomes. Entrevista: A globalização cria governos privados. Jornal
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CARNEIRO, Maria Lucia Fattorelli. Auditoria Cidadã da Dívida. Campanha Jubileu
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CLARK, Giovani. O Município em Face do Direito Econômico. Belo Horizonte. Del
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_______________ A Ditadura Pós-Moderna. Consulex, Brasília, n.º 121, p. 26-28,
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CORTELLA, Mário Sérgio. Entrevista: O educador da esperança. Família Cristã, São
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FÓRUM NACIONAL PELA REFORMA AGRÁRIA E JUSTIÇA NO CAMPO. Comissão
Pastoral da Terra. Acabar com 500 anos de Latifúndio. Goiânia, 23 p.
FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo:
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__________. Por que pagar a dívida externa. Ave Maria, São Paulo, outubro 2000,
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ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e federação no Brasil. Belo Horizonte:
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SIQUEIRA, Jack. Planejamento e Desenvolvimento em Minas. Belo Horizonte. Armazém de Idéias: 2001. 188 p.
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OS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO FORNECEDOR À LUZ DO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR
Isabela Esteves Cury
Advogada
Professora de Direito Constitucional e Instituições de Direito Público e Privado da
União das Escolas Superiores de Cacoal – UNESC em Rondônia
Mestranda da 5ª turma do Curso de Pós-Graduação em Direito
Constitucional da Instituição Toledo de Ensino de Bauru (SP).
Marlene Nunes de Freitas Bueno
Membro do Ministério Público em Goiânia (GO)
Professora de Direito Constitucional nas Faculdades Anhanguera de Goiânia
Mestranda da 5ª turma do Curso de Pós-Graduação em Direito
Constitucional da Instituição Toledo de Ensino de Bauru (SP).
Vera Lúcia Toledo Pereira de Gois Campos
Advogada
Professora de Ética Profissional nas Faculdades Integradas
“Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente
Mestranda da 5ª turma do Curso de Pós-Graduação em Direito
Constitucional da Instituição Toledo de Ensino de Bauru (SP).
1.
INTRODUÇÃO
A sociedade moderna vem se modificando diante de tamanho avanço científico que não pode mais ser ignorado. Sem dúvida alguma, pode-se afirmar que a bio-
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tecnologia é a maior responsável por tantas “novidades” que invadem o nosso cotidiano, fazendo com que a sociedade trilhe uma nova organização social e econômica, gerando em todos uma grande insegurança quanto ao futuro.
Essa insegurança advém das inúmeras conseqüências desconhecidas que tais
produtos e serviços biotecnológicos podem trazer para o mercado econômico, o
meio ambiente e a saúde humana. É claro que muitos benefícios são trazidos para a
sociedade, mas também as mais variadas questões com relação ao impacto da introdução dessas mercadorias ainda não puderam ser respondidas pelos especialistas.
Um dos avanços mais questionados e que já se tornou uma realidade em nossa mesa é o consumo dos alimentos geneticamente modificados, conhecidos também por alimentos transgênicos. A polêmica instaurou-se devido às vozes discordantes de cientistas e de alguns setores da sociedade civil em todo o mundo sobre
o uso da mutação genética em laboratório para a produção de alimento, produto essencial para a sobrevivência do ser humano.
Os adeptos dos alimentos transgênicos afirmam que não há nenhum tipo de
comprovação científica de que tais produtos possam causar algum dano à saúde ou
ao meio ambiente. Alegam, ainda, que o plantio de lavouras geneticamente modificadas causaria uma redução drástica no uso de agrotóxicos. Mas o grande argumento é a questão da fome mundial; pois para estes, a produção de alimentos transgênicos é o único caminho para resolver a questão da fome devido ao crescimento em
progressão geométrica da população.
Os que são contra argumentam que ainda não existe pesquisa científica com
relação aos possíveis efeitos dos alimentos transgênicos na saúde do consumidor e
no meio ambiente. Dessa forma, inconcebível colocar em risco a vida e a saúde dos
seres humanos, bens jurídicos tutelados constitucionalmente, além de estarem sendo feridos os princípios ambientais da precaução e prevenção.
Outro argumento utilizado é o objetivo real e nada humanitário das empresas
detentoras dessa tecnologia, que visam, exclusivamente, ao lucro, pois elas desejam
o ressarcimento de todo o investimento que fizeram em pesquisa e, logicamente,
esse retorno somente virá através do controle da produção alimentícia. Há, ainda, o
aumento da resistência dos microorganismos aos antibióticos, perigo de afetar a
biodiversidade, dentre outros.
Importante salientar o ensinamento do jurista Geraldo de Farias Martins da
Costa1:
Os agentes econômicos somente atuam legalmente no mercado
quando desempenham a função social da empresa, observando os
princípios da defesa da livre concorrência, da defesa do consumi1 COSTA, Geraldo de F. Martins da. A proteção da saúde do consumidor na ordem econômica: direito subjetivo
público. In Revista de Direito do Consumidor; São Paulo: RT; nº 4; p. 134.
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dor, da defesa do meio ambiente e da redução das desigualdades
sociais, na perspectiva de assegurar a todos existência digna (art.
170, incs IV, V, VI e VII, CF).
Diante de tamanha controvérsia, devem os profissionais do Direito debruçarse sobre o assunto, assegurando assim aos consumidores a total proteção de seu
bem-estar físico e psicológico, conforme preceitua o artigo 8º do Código de Defesa
do Consumidor - CDC, já que claramente afirma que é proibido o oferecimento de
produtos e serviços que possam acarretar riscos à saúde ou a segurança dos consumidores, mas tolera os riscos considerados normais e previsíveis desde que as informações sejam prestadas correta e completamente.
2.
A EVOLUÇÃO CIENTÍFICA NA ÁREA DA BIOTECNOLOGIA
Os ilustres professores Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues2 ensinam que já é de longa data que se faz utilização da ciência denominada
biotecnologia. Entretanto, o início dessa ciência, que nos parece tão recente, advém
de muitos anos atrás, provavelmente desde a pré-história.
Porém, relatam que o verdadeiro avanço científico iniciou-se no século passado, em 1865 com o austríaco Johann Gregor Mendel, que enunciou as leis da herança, descobrindo a genética. Apesar de no início ter sido renegado, foi seu trabalho
com as várias espécies de ervilhas que forneceu subsídio para o real surgimento da
engenharia genética.
Mas o verdadeiro auge veio na década de 40 quando se demonstrou que o ácido dexorribonucléico – DNA – é material genético. Logo após, também, James Watson e Francis Crick3 revelaram que o código genético está arquivado na molécula de
DNA4.
Entretanto, Grace Dantas5 relata que foi na década de 80 que realmente começou a se concretizar as experiências com organismos geneticamente modificados. E
Fernando de Assis Paiva6 informa que um dos primeiros organismos transgênicos
úteis para a solução de doenças foi a bactéria Escherichia coli que recebeu o gene
humano para a produção de insulina em larga escala.
2 FIORILLO, Celso A Pacheco e RODRIGUES; Marcelo A. Direito Ambiental e Patrimônio Genético. Belo Horizonte: Del Rey; p.154
3 WATSON, James e CRICK, Francis apud FIORILLO, Celso A Pacheco e RODRIGUES; Marcelo A. Direito Ambiental e Patrimônio Genético. Belo Horizonte: Del Rey; p.155
4 Idem; p. 154
5 DANTAS, Grace. Transgênicos: o que vamos comer no futuro? In Revista Ecologia e Desenvolvimento. Rio de Janeiro; vol 72; p.44
6 PAIVA, Fernando Assis. A Polêmica dos Transgênicos. In Revista Ciência Hoje. Rio de Janeiro, vol. 26, nº 153, p.
64.
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Em 1990, é lançado o Projeto Genoma Humano, visando a identificar os
quase cem mil genes da espécie humana. O Brasil não participou desse seqüenciamento geral, mas como bem informa Duda Teixeira7, o nosso país é um dos
pioneiros na decodificação de genes em patôgenos específicos. Em fevereiro deste ano os cientistas terminaram o sequenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, a causadora do amarelinho, praga que atinge grande parte dos pomares cítricos do país.
3.
CONCEITO DE BIOTECNOLOGIA E ORGANISMO TRANSGÊNICO
O conceito de biotecnologia é amplamente divergente entre os cientistas
devido às várias ciências que com ela mantêm íntimo contato, como por exemplo
a bioquímica, a engenharia química, a matemática e tantas outras.
Há vários conceitos de biotecnologia, mas o mais abrangente é aquele fornecido pela Organization for Economic Cooperation and Development - OECD,
conforme informam Celso A Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues8: A concepção, a otimização e a transposição em grande escala dos processos bioquímicos e celulares para a produção industrial dos compostos úteis e para as
aplicações conexas.
Através desse conceito, consideram-se todos os processos onde o elemento central seja a operação de catalisadores biológicos e não somente a manipulação genética.
Entretanto, necessário se faz mencionar o conceito trazido pela Lei 8.974/95.
Essa lei fornece um conceito extremamente restrito de biotecnologia, ligando esse
termo exclusivamente à manipulação genética.
Diante dessa análise, pode-se concluir que a Lei 8.974/95, também conhecida
com a Lei da Biossegurança, tutela somente a área da biotecnologia que exerça atividade relacionada à manipulação genética, denominada engenharia genética.
A palavra “transgênico” significa transformação, logo é a modificação da estrutura genética de um ser vivo, possibilitando a criação de novos seres vivos. Através
da biotecnologia, existe a oportunidade de isolar genes, e com isso “montar” qualquer tipo de ser vivo. Assim, pode-se fazer com que espécies totalmente diferentes,
sexualmente incompatíveis, possam trocar genes.
Mas, de acordo com a definição da Lei de Biossegurança, em seu inciso IV do
artigo 3º, define-se organismo geneticamente modificado somente aquele organismo cujo material genético tenha sido modificado pela engenharia genética, não incluindo, portanto, os outros métodos e ciências correlatas.
7 Genoma: é só o começo. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 de jun. 2000, 8 p.
8 FIORILLO, Celso A Pacheco; RODRIGUES, Marcelo A. Direito Ambiental e Patrimônio Genético. Belo Horizonte:
Del Rey, p.146.
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Como bem leciona Marcelo Dias Varella, Eliana Fontes e Fernando A N. Galvão da Rocha9:
... não se considera OGM os organismos resultantes de técnicas de
introdução direta de material hereditário nos mesmos, técnicas estas que não envolvam a utilização de moléculas de ADN/ARN recombinantes, como por exemplo, a fecundação in vitro...
Portanto, conclui-se que alimento transgênico é todo aquele produto que possa
ser utilizado para a alimentação humana ou animal, que tenha sofrido alteração em seu
material genético através de processos artificiais decorrentes da engenharia genética.
4.
A LIBERAÇÃO DOS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS PARA CONSUMO
Para serem comercializados, os alimentos transgênicos devem atender a dois
níveis básicos de exigências. Primeiramente, o Estado, mais especificamente o Sistema Único de Saúde – SUS, deve exercer com eficácia seu poder de polícia sanitário,
fiscalizando e controlando a segurança dos produtos alimentícios em geral, conforme preleciona o inciso VI do artigo 200 da Constituição Federal de 1988 – CF/88 e
de forma mais detalhada ainda os resultantes da biotecnologia, e também colaborar
na proteção ambiental, conforme inciso VIII do mesmo artigo.
Reza o inciso VI do artigo 200:
Art. 200 – Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano.
VII -......
VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Dessa forma, é que o Estado exerce seu dever de zelar pela saúde, devendo
enfatizar e priorizar as ações preventivas em todos os entes da Federação, pois o direito à saúde é um direito social subjetivo público de cada cidadão.
Assim, somente após uma série de minuciosas análises laboratoriais de pesquisa é que esses produtos engenheirados poderiam chegar às prateleiras dos supermercados.
9 VARELLA, Marcelo Dias et al. Biossegurança e Biodiversidade: contexto científico e regulamentar. Belo Horizonte: Del Rey; 2001; p. 106-107.
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A respeito do assunto, Geraldo de Farias Martins da Costa10 preleciona:
[...] se o Estado-administração público ou órgãos implementadores destas políticas falham no cumprimento dos seus deveres ou
se omitem na implementação das políticas garantidoras da qualidade de vida [...]; ou se os agentes econômicos provados descumprem as normas emanadas da constituição econômica e social, nasce para os consumidores o direito subjetivo público ao
exercício de suas garantias individuais e coletivas. É o nascimento da pretensão [...] do consumidor [...] em face do agente
econômico ou do estado, a ser exercitada através das ações judiciais previstas no ordenamento jurídico [...].
Outra exigência a ser cumprida, para tornar viável a comercialização é o real e
efetivo cumprimento da legislação consumerista em relação ao direito de informação, estabelecido em vários dispositivos do CDC.
O direito à informação adquire importância ímpar nesse setor de atividade,
haja vista o elevado e desconhecido grau de periculosidade e nocividade desses produtos. Quanto maior o risco ofertado por determinado produto ou serviço ao qual
o consumidor está exposto, maior a transparência exigida do fornecedor.
5.
O DIREITO DE INFORMAÇÃO NO CDC
De acordo com Alcides Tomasetti11, a transparência é uma situação informativa de
compreensão para qualquer pessoa, independente de seu grau de instrução. A transparência é o objetivo a ser alcançado pelo dever de informação, previsto em vários dispositivos do CDC. O modelo da informação transparente tem uma dimensão coletiva.
Portanto, o fornecedor possui o dever de informar e a informação somente
será eficaz quando for transparente, difusa e eficiente.
Novamente Alcides Tomasetti12 ensina com rigor que a insuficiência, a deficiência e a hipereficiência de informação [...] caracterizam infração, pelo fornecedor, do dever legal de cooperar com a difusão eficiente da informação [...].
A obrigatoriedade do Direito à informação repousa sua estrutura lógico-jurídica em princípios, que são os norteadores de todo o CDC, sendo estes também a
base de vários outros direitos assegurados ao consumidor.
10 COSTA, Geraldo de F. Martins da. A Proteção da Saúde do Consumidor na Ordem Econômica: Direito Subjetivo Público. In Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, nº 4; p. 140
11 TOMASETTI, Alcides. O Objetivo da transparência e o regime jurídico dos deveres e riscos de informação nas
declarações negociais para consumo. In Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, nº 4; p. 55.
12 Idem.
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Um dos princípios mais importantes é o Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, assegurado no inciso I do artigo 4º do CDC. É através deste princípio que
verdadeiramente se torna possível a aplicação plena do princípio constitucional da
isonomia.
Outro princípio extremamente importante é o Princípio do Dever Governamental, previsto nos incisos II, VI e VII do artigo 4º do CDC. O Estado, como organizador da sociedade, deve promover a defesa do consumidor, inclusive diante do
próprio Estado, realizando adequadamente o seu poder de polícia, por exemplo.
Além desses princípios, há outros. Porém Vera M. J. de Fradera13 lembra que
o dever de informar advém do princípio da boa-fé do Direito Civil, impelindo ao fabricante constante atualização sobre o produto que está à disposição da população.14
É de fácil percepção que o Direito à Informação é basilar, e um direito fundamental do consumidor, já que é por meio de seu cumprimento sério e efetivo que
a dignidade da pessoa humana será resguardada. Somente um consumidor bem informado terá capacidade para consumir conscientemente produtos que colocam
em risco a sua saúde, exercendo efetivamente a tão almejada cidadania.
As inovações da ciência e o avanço tecnológico, aliados à falta de informação
nas relações de consumo, levam as pessoas a adquirirem bens ou a consumir produtos que sequer se conhece a procedência e os conseqüentes efeitos ocasionados
pelo seu consumo.
O princípio da informação, contido no inciso IV do artigo 4º do CDC, está intimamente ligado à educação e à conscientização de consumidores e fornecedores
quanto aos seus direitos e deveres.
O direito à informação vem resguardado em outros dispositivos do CDC,
como no artigo 6º, inciso III e no artigo 12, que trata da responsabilidade pelo fato
do produto, onde o fabricante tem o dever de fornecer ao consumidor os dados sobre o produto que colocou no mercado, sob pena de considerá-lo defeituoso (defeito de informação).
A ONU e a IOCU, por meio da Resolução nº 32/248, de 1985, reconhecem
como fundamental, entre outros direitos do consumidor, o direito à informação,
que outorga ao consumidor a garantia de conhecimento dos dados necessários para
efetuar escolhas e decisões com consciência.
O direito à informação é direito básico do consumidor e tem estreita relação com o direito à segurança, uma vez que a informação é a única maneira do
consumidor escolher o produto ou serviço que deseja adquirir ou usar de forma
13 FRADERA, Vera M. Jacob de. A interpretação da proibição de publicidade enganosa ou abusiva à luz do princípio da boa-fé: o dever de informar no Código de Defesa do Consumidor.In Revista de Direito do Consumidor.
São Paulo: RT; vol 4; p.176.
14 Idem.
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consciente.
6.
O FORNECEDOR E O DEVER DE INFORMAÇÃO
De acordo com o parágrafo primeiro do artigo 10 do CDC:
Art. 10.
§ 1º O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à
sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento
da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato
imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.
Para efeitos de responsabilização civil, o legislador previu no caput do artigo 12 do CDC diversos tipos de defeitos, dentre eles a hipótese de informações
insuficientes ou inadequadas sobre a utilização e riscos do produto.
No caso dos alimentos transgênicos, o fornecedor teria obrigação de informar ao consumidor sobre as possíveis conseqüências do consumo desse tipo de
alimento, pois os defeitos de informação envolvem a apresentação, informações
insuficientes ou inadequadas sobre o uso e riscos do produto, bem como a publicidade.
O produto que contém esse defeito não oferece as informações suficientes e corretas para seu uso, que deveria vir na própria embalagem ou mesmo por
intermédio da mídia, ele não tem veiculado os dados que o consumidor necessariamente deveria saber para que consiga evitar acidente de consumo.
Para se evitar a ocorrência de defeitos de informação, o fornecedor deveria apresentar instruções sobre o uso correto do produto, modo de conservação,
advertindo os consumidores acerca dos perigos que sua utilização possa causar,
bem como esclarecer onde, quando e como deve ser empregado.
Todas as informações devem ser prestadas no idioma nacional, de forma
clara e precisa para que todos compreendam. Essa orientação deve ser rigorosamente seguida, especialmente dentro da sociedade brasileira que ainda possui
altos índices de analfabetismo.
Por fim, é necessário ressaltar que a obrigação do fornecedor em informar
o consumidor acerca de seus produtos não acaba com a colocação do produto
no mercado, mesmo porque, posteriormente podem ser descobertos defeitos
até então desconhecidos.
Somente o consumidor bem informado poderá optar por consumir, ou
não, os alimentos transgênicos que, a cada dia que passa, mais proliferam no
mercado. Por outro lado, cabe ao fornecedor fornecer as informações necessárias para que o consumidor, conscientemente, possa fazer a sua opção.
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7.
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O FORNECEDOR E O FATO DO PRODUTO COMO CAUSA DE
RESPONSABILIZAÇÃO
Em matéria de responsabilidade pelo fato do produto, é imprescindível que
se faça considerações acerca daquele que deverá ser responsabilizado na hipótese
de fato do produto, especialmente pela grande dificuldade que o consumidor enfrenta no momento de identificá-lo.
O artigo 3º, caput, do CDC conceitua o termo “fornecedor” da seguinte forma:
Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes depersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
(original não grifado)
A definição legal de fornecedor tem sentido amplo, abrangendo todas as personagens que compõem aquela categoria nas relações jurídicas de consumo.
Partindo do pressuposto que fornecedor, como definido no artigo 3º do CDC,
é também aquele que desenvolve a transformação e os alimentos transgênicos nada
mais são do que transformações genéticas desenvolvidas em laboratório, fácil é concluir que, no caso de dano ao consumidor, inegavelmente, cabe a culpa também ao
fornecedor.
No que diz respeito à responsabilidade pelo fato do produto, a expressão
“fato do produto” pode ser entendida como a manifestação danosa dos defeitos de
concepção, fabricação ou informação que causar prejuízo ao consumidor.
Na concepção de Roberto Norris15, o fato do produto é a repercussão externa do defeito do produto e o seu conseqüente dano sobre o consumidor.
A expressão “fato do produto” pode ser entendida como a manifestação danosa dos defeitos de concepção, fabricação ou informação, que ocasionou prejuízo
ao consumidor.
Há ainda de se recordar que cabe ao fornecedor a informação do produto colocado no mercado, e que, a falta dessa informação pode gerar a responsabilização
pelo fato do produto.
8.
DO DANO CAUSADO AO CONSUMIDOR
Os danos decorrentes dos acidentes de consumo podem atingir a incolumidade física, psíquica ou patrimonial do consumidor, na medida em que o dano é uma
15 NORRIS, Roberto. Responsabilidade civil do fabricante pelo fato do produto. Rio de Janeiro: Forense, 1996; p. 40
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lesão aos interesses protegidos por lei que causa prejuízo ao indivíduo. Trata-se de
um dos pressupostos fundamentais para a configuração da responsabilidade do fornecedor.
Qualquer prejuízo no interesse alheio deve ser reparado por quem a ele deu
causa. O CDC garante tal prerrogativa ao consumidor no artigo 6º, inciso VI.
O artigo 12 do CDC considera indenizáveis os mais variados tipos de danos,
desde lesões à saúde física do consumidor, até os danos de ordem psicológica e patrimonial.
Portanto, a concepção legal de dano é ampla e abrange a esfera patrimonial e
mora, independentemente dos danos serem individuais, coletivos ou difusos.
Fica evidente, dessa forma, que o CDC protege a incolumidade física e psíquica do consumidor e que qualquer dano que lesione a vida, a integridade física deste deverá ser reparado.
Há uma expectativa legítima no consumidor de que os produtos colocados no
mercado sejam seguros e o CDC determina que não devem existir riscos à saúde ou
segurança daquele. O que dizer dos alimentos transgênicos colocados no mercado,
sem um mínimo de informações ao consumidor? E, o que é pior, sem praticamente
nenhum conhecimento de suas conseqüências no organismo humano, frustrando
as expectativas de segurança do consumidor? Por isso, qualquer lesão em interesse
tutelado pela lei deve ser reparada.
9.
DA RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR PELO DANO CAUSADO
Nota-se, no Código de Defesa do Consumidor, a efetiva preocupação do legislador em conferir proteção à vida, saúde e à segurança do consumidor contra os riscos provocados pelo fornecimento de produtos ou serviços considerados perigosos
ou nocivos.
A autora Maria Antonieta Zanardo Donato16 muito bem expõe essa preocupação do legislador em proteger o consumidor até mesmo dos riscos provocados pela
colocação no mercado de produtos dos quais são desconhecidas as conseqüências
que poderiam vir a ocasionar danos irreparáveis à vida e à saúde do consumidor:
...demonstra-nos que o legislador não se ateve restrito unicamente
às possíveis reparações dos danos causados ou provocados ao consumidor, mas, ao contrário, visou-se por meio desse dispositivo, a
proteger-se o consumidor contra todos os riscos que poderiam
emanar dos produtos e serviços, antes mesmo, que viesse a ser exposto a esses perigos. A simples exposição do consumidor aos riscos
16 DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais; 1994; p. 205
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provocados pela colocação desses produtos no mercado de consumo mostra-se suficiente para que se lhe outorgue a tutela efetiva.
A simples expectativa de dano, como ocorre no caso dos transgênicos, por si
só já é motivo de preocupação do legislador consumerista.
O aumento na quantidade e variedade de produtos circulando no mercado representou um crescimento nos riscos ao consumidor por conta dos defeitos nos
produtos. Com isso, os acidentes de consumo tornaram-se mais freqüentes e com
resultados mais graves.
No Brasil, o ressarcimento dos danos sofridos pelo consumidor era regulado
pelas normas dos Códigos civil e Comercial, o que não trazia resultados satisfatórios,
pois se baseava na responsabilidade subjetiva.
O legislador pátrio, percebendo a necessidade de regulamentação específica para tais situações, e sob a determinação do artigo 48 do Ato das Disposições
constitucionais Transitórias, promulgou o CDC, que tem por objetivo principal
tutelar os interesses da parte mais vulnerável na relação de consumo, ou seja, o
consumidor.
Nas hipóteses de ocorrência de fato do produto, o CDC determina que os danos
sejam reparados pelo fabricante, independente da verificação de culpa deste, adotando, assim, a responsabilidade objetiva do fabricante pelo fato do produto, que facilita a
obtenção pelo consumidor lesionado de reparação pelos danos sofridos.
Com relação ao fornecedor, o mesmo responde, em regra, independentemente de culpa perante o consumidor porque, segundo Roberto Senise Lisboa17, ao
exercer a sua atividade econômica, assumiu os riscos inerentes à profissão que
desenvolve no mercado de trabalho.
CONCLUSÃO
Na esteira do pensamento de Luiz Otavio O Amaral18, conclui-se que os transgênicos, assim como todas as substâncias ou organismos geneticamente modificados, dadas as iniciais incertezas quantos aos seus efeitos e impactos no meio-ambiente e, principalmente, à saúde humana, devem exigir máxima e antecipada precaução por parte do poder público, quer impedindo sua comercialização enquanto
não houver aquela certeza científica de sua inocuidade, quer impondo, após aquela
certificação, aos interessados em sua exploração econômica, a mais ampla e eficaz
informação ao mercado geral.
17 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001, p. 241
18 AMARAL, Luiz Otavio O. Os transgênicos e o consumidor brasileiro. In Jus Navigandi, nº. 52. Disponível em
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2413>. Acesso em 27.mai.2002.
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O consumidor precisa, deve e tem o direito de saber e reconhecer, de antemão, as diferenças entre os produtos que lhe são ofertados.
Há todo um sistema de defesa e proteção do consumidor brasileiro, pronto,
moderno e eficaz para enfrentar o avançado problema dos transgênicos, restando a
disposição governamental, da sociedade organizada e dos consumidores individuais
para que a lei se faça eqüidade concreta.
Necessário que o consumidor tenha o seu direito resguardado e amparado e,
caso seja lesionado em seu direito, que haja a conseqüente reparação.
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DANO MORAL NO DIREITO DO TRABALHO
BRASILEIRO e a AIDS (HIV)
MAURO CESAR MARTINS DE SOUZA
Advogado
Professor Assist doutor no Deptº. de Planejamento na UNESP e Coordenador do
Mestrado em Direito e Diretor da Faculdade de Direito da UNOESTE
ambas em Presidente Prudente/SP
Mestre em Direito Civil – Doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP
Membro do Instituto do Direito do Trabalho do Mercosul
Autor do livro “Responsabilidade civil decorrente do acidente do trabalho” (Ed. Agá Juris)
www.maurocesar.com
[email protected]
DANO MORAL E A AIDS
Dano moral é aquele de natureza não material que atinge a personalidade, a
esfera íntima, afetiva e valorativa do lesado (ou herdeiros, sucessores), abalando o
sentimento e ocasionando dor emocional, saudade, depressão, mágoa, tristeza, angústia, sofrimento - pretium doloris, preço da dor.
Para Bittar, são considerados como danos morais:
em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da
pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendose, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da considera-
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ção pessoal), ou da própria valoração da pessoa no meio em que
vive e atua (o da reputação ou da consideração social)1.
Esclarece Valle2 que, havendo violação ou ofensa aos danos não-materiais,
com abalo ao estado moral da pessoa, ferindo-lhe os direitos primários, naturais, no
mais profundo de seus sentimentos, enfim, na sua paz de espírito, caracteriza-se a
dor moral.
Daí, de conformidade com Santini3, decorre a certeza de que os sofrimentos
e os sentimentos profundos, com fortes sulcos na alma e no corpo, hão de integrar
a mais completa reparação no que se denomina dano moral... que é de quem fica
sentido.
Entre dano efetivo não material ou mera pena punitiva ao ofensor, Stoco4 fica
com a primeira hipótese, porque considera que a Constituição Federal elevou à categoria de bens legítimos e que devem ser resguardados, todos os bens que são a
expressão imaterial do sujeito. Esses bens compõem o patrimônio subjetivo de uma
pessoa, como a dor, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem que, se agredidos, sofrem lesão ou dano que exige reparação.
O dano moral existe sempre que for afetada a integridade moral do indivíduo,
considerando, além da honra, o nome, as afeições legítimas, a intimidade, a liberdade de ação, o direito moral do autor, etc5.
Como disciplina Cahali6, qualifica-se como dano moral tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está
integrado.
No mesmo sentido, a lição de Melo da Silva7 ao apregoar que danos morais são
lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio
ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, enfatiza o mestre, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor
econômico.
Apesar de não haver maiores conflitos quanto ao que seja dano moral e sua
abrangência de forma geral, é cediço que antes do advento da Constituição de 05 de
outubro de 1988, a questão era muito polêmica, tanto é que na atualidade ainda
1 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 41.
2 VALLE, Christino Almeida do. Dano moral: doutrina, modelos e jurisprudência. 1ª ed., Rio de Janeiro: Aide,
1993, p. 29.
3 SANTINI, José Raffaelli. Dano moral: doutrina, jurisprudência e prática. 1ª ed. Leme: Led, 1997, p. 41.
4 STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 523.
5 AMARANTE, Aparecida. Responsabilidade civil por dano à honra. 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 235.
6 CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20.
7 MELO DA SILVA, Wilson. O dano moral e sua reparação. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 1.
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existem alguns poucos que combatem a indenização por dano moral e/ou a sua cumulação com o dano material, como acontecia anteriormente8.
O Superior Tribunal de Justiça, por meio da Súmula nº 37, pacificou o entendimento sobre a possibilidade de cumulação de indenizações morais e materiais,
desde que oriundos do mesmo fato (cf. retificação no DJ-U de l8/03/1992, p. 3201),
no que é seguido pelos Pretórios Pátrios, não só com base na Carta Magna em vigor
(conforme art. 5o, V e X), mas também com base no ordenamento jurídico infraconstitucional anterior e atual (como por exemplo o Código de Defesa do Consumidor,
Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 6o, VI e VII)9.
Vale trazer a lume, para que sirvam de reflexão, trechos do excelente voto proferido, de certa feita, pelo Desembargador Milton dos Santos Martins:
Sempre atribuímos mais valores às coisas materiais do que as
coisas pessoais e de espírito. Não se indenizam as ofensas pessoais, espirituais, e se indenizam os danos materiais. Quer dizer, uma bicicleta, um automóvel, tem mais valor do que a honra e a boa fama do cidadão. Não se mediria a dor; esta não tem
preço, indigno até cobrar... Tem-se de começar a colocar no
ápice do tudo não o patrimônio, mas os direitos fundamentais
à vida, à integridade física, à boa fama, à privacidade, direitos
impostergáveis da pessoa. O direito é feito para a pessoa. Não se
concebe se queira discutir ainda hoje se indenizável ou não o
chamado dano moral10.
Igualmente, a lição do professor e magistrado paranaense Reis11, no sentido de que os bens de um modo geral devem ser objeto da tutela do Estado, e
dentre eles, como é notório, o patrimônio moral, considerando o valor mais importante de uma pessoa. Afinal, o império da paz social, fruto da fraternidade individual entre os seres humanos, não foi apenas uma mera promessa do Juiz dos
juízes, mas uma sentença definitiva.
Concluindo este preâmbulo e enfocando o assunto sob a óptica trabalhista,
traz-se à colação, o seguinte aresto:
8 Contra a indenização do dano moral autônomo e ou não admitindo sua cumulação com a indenização plena dos
danos patrimoniais, confira-se, entre outros, os julgados contidos nas RT 599/263, 583/277, 581/256, 580/295,
577/286, 575/302, 574/274, 564/264-5, 537/216, 529/246, 505/249, 316/563.
9 Neste sentido, por exemplo, os julgados contidos nas RT 730/205-207-327-361, 728/221, 718/102-270, 712/170,
696/250, 684/63, 683/79, 639/155, 602/180; nas RSTJ 76/257, 71/183-324-343, 69/254, 62/429, 45/143-350, 46/354,
34/284, 33/515.
10 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação cível n. 38.677 da 2a Câmara Cível. Julgado em 29 de outubro de 1981. RJTJRS 91/320.
11 REIS, Clayton. Dano moral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 137.
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O empregador responde pela indenização do dano moral causado ao empregado, porquanto a honra e a imagem de qualquer pessoa são invioláveis (art. 5o, X, da Constituição Federal). Esta disposição assume maior relevo no âmbito do contrato laboral, porque o empregado depende de sua força de trabalho para sobreviver. ‘La indenización tarifada de la Lei de Contrato de trabajo no
excluye una reparación complementaria que signifique un amparo para el trabajador, cuando es agredido en sua personalida’
(Santiago Rubinstein). A dor moral deixa feridas abertas e latentes
que só o tempo, com vagar, cuida de cicatrizar, mesmo assim, sem
apagar o registro. (TRT da 3a Reg., no RO nº 03608/94, ac. da 2a T.,
rel. Juiz Sebastião G. Oliveira, in Síntese Trabalhista 64/78).
Restringindo a abrangência dada pela doutrina e jurisprudência civilista, há
entendimento de que sendo bens protegidos pela Constituição Federal contra o
dano moral apenas a honra, a imagem e a intimidade da pessoa (CF, art. 5º, X),
viola o preceito constitucional a ampliação dos bens juridicamente protegidos,
para abarcar eventual sofrimento psicológico decorrente da contração de doença
profissional12. O posicionamento de que o rol constitucional seria exaustivo é
equivocado, eis que a indenização por dano moral objetiva atenuar o sofrimento,
físico ou psicológico, decorrente do ato danoso, que atinge aspectos íntimos e
sociais da personalidade humana13, mesmo porque sofrimento psicológico abrange a intimidade, o sentimento privado do cidadão. A nova Carta da República conferiu ao dano moral status constitucional ao assegurar, nos incs. V e X do art. 5º,
a sua indenização quando decorrente de agravo à honra e à imagem ou de violação à intimidade e à vida privada. A indenização por dano moral é admitida de
maneira acumulada com o dano material, uma vez que têm pressupostos próprios, passando pelo arbítrio judicial tanto na sua aferição quanto na sua quantificação14. A lesão de ordem moral, envolve conceito inerente ao sentimento. Sofrimento psicológico decorrente da infecção pelo vírus da AIDS por culpa do empregador, faculta ao trabalhador a indenização por dano moral, inclusive cumulada com eventuais danos materiais.
No caso do trabalhador aidético, é cediço que o mesmo tem direito à manutenção do sigilo a respeito da sua condição de saúde, devendo seu empregador, ao
12 Conforme julgado do Colendo TST, no RR nº 483.206, ac. da 4ª T., rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, in DJ-U
de 01/12/2000, p. 800.
13 Conforme julgado do Egrégio STJ, no AGA nº 276.671-SP (199901125502), ac. da 3ª T., rel. Min. Carlos Alberto
Menezes Direito, in DJ-U de 08/05/2000, p. 94.
14 Conforme julgado do Excelso STF, no RE nº 192.593, ac. da 1ª T., rel. Min. Ilmar Galvão, in DJ-U de 13/08/1999,
p. 17.
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tomar conhecimento, abster-se de praticar qualquer ato atentatório à sua dignidade,
inclusive de divulgar o respectivo exame médico.
Como adverte Mendes15, ao modelar o comportamento social, o Direito estabelece que o empregador tem o dever ético de manter em sigilo as informações que
obtiver inerentes à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de seus empregados, especialmente sobre AIDS, uma vez que a veiculação de informações sobre a
doença, sem dúvida, limitará sua liberdade de trabalho, pelos prejuízos que venham
causar na obtenção de novo emprego ou na mantença do mesmo. A divulgação da
doença expõe o ser humano à discriminação e segregação. O empregador que quebra o dever de sigilo, expondo indevidamente a intimidade do empregado, sujeitase à reparação de danos morais.
Outrossim, Bittencourt Santos16 observa que o afastamento discriminatório
pode gerar profunda lesão ao patrimônio subjetivo do empregado. Sentimentos de
incapacitação, de revolta, de desespero, de descrença, de diminuição moral e de
derrota podem tumultuar suas emoções e impor-lhe um desmesurado e insuportável sofrimento, passando a ter, por conseqüência, direito de ser indenizado por ato
atentatório ao seu patrimônio moral.
Também não pode haver tratamento degradante ou vexatório ao trabalhador
portador do vírus HIV, seja na fase admissional, durante o contrato de trabalho, na
rescisão ainda que por justa causa e após o rompimento da relação de emprego, por
parte do empregador, ou ex-empregador, levando ao dano moral.
A discriminação é, sem sombra de dúvidas, a reação social mais grave que
acompanha os portadores ou suspeitos de serem portadores do vírus HIV. São atitudes fundadas no medo irracional das pessoas que integram a sociedade, decorrentes de idéias preconcebidas, que demonstram uma certa insipiência acerca de suas
formas de contágio17. Para coibir tal prática, educar os homens ao respeito mútuo e
reparar o dano ao ofendido, é que existe a reparação por dano moral.
Nesse sentido, o entendimento jurisprudencial:
Comprovada a discriminação ao trabalhador portador do vírus
da imunodeficiência humana (HIV), aplicam-se os preceitos da Lei
nº 9.029/95, com a sua readmissão e o reconhecimento do dano
moral. (TRT da 12ª Reg., no RO nº 10.159/1999, ac. nº 00428/2001
da 1ª T., rel. Juiz C. A. Godoy Ilha, julgado em 18/12/2000);
15 MENDES, Marco Antonio Miranda. Proteção Jurídica Contra a Discriminação do Empregado Com AIDS. Síntese
Trabalhista, nº 142, abril de 2001, p. 116-124, especialmente p. 123.
16 BITTENCOURT SANTOS, Hélio Antonio. Dano Moral e a AIDS no Direito do Trabalho, Informativo Jurídico
Consulex, Brasília: Consulex, ano XIII, nº 48, 06 de dezembro de 1999, p. 3-9, especialmente p. 7.
17 SANTOS, Marco Fridolin Sommer. A AIDS Sob A Perspectiva Da Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 1999,
p. 47.
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Viola o patrimônio imaterial do empregado, o empregador que
tendo ciência de ser o mesmo portador do vírus HIV promove seu
despedimento. Comprovada a conduta discriminatória o dano
moral causado gera o direito à indenização, nos termos do art. 5º,
X da Constituição Federal. (TRT da 2ª Reg., no ac. nº 02990095360
da 10ª T., rel. Juiz Maria Inês Moura Santos Alves da Cunha, in
DOE-SP de 09/04/1999);
O trabalhador, portador do vírus HIV, que passou a ser tratado
pelo superior hierárquico de ‘a coisa’ e ‘estorvo’, em virtude de
doença de que padece, faz jus à indenização por danos morais
sem qualquer margem de dúvidas. É inafastável a repugnância
que nos toma conta quando sabemos existir em nossa sociedade,
muitas vezes próximas ao nosso convívio, pessoas com mentalidade tão medíocre e comportamento tão desumano e pequeno, ocupando cargos e dirigindo vários subordinados. Estes, sim, são portadores dos males do século, a falta de solidariedade e respeito
pelo ser humano. Recurso provido por unanimidade. (TRT da 24ª
Reg., no RO nº 1.594/1997, ac. nº 214/1998 do TP, rel. Juíza Geralda Pedroso, in DJ-MS de 27/03/1998, p. 63).
A competência em razão da matéria para analisar pleito de dano moral do trabalhador com AIDS será da Justiça do Trabalho. A causa de pedir e o pedido demarcam a tutela jurisdicional pretendida, definindo-lhe a competência. Assim, o dano
moral tido como ocasionado pelo empregador, cuja reparação pretende-se obter,
deve ser apreciado pela Justiça do Trabalho, que é competente em razão da matéria
para tal, na forma do que dispõe o art. 114 da Lei Maior:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores,
abrangidos os entes de direito público externo e da administração
pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos
Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham
origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.
§ 1º. Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º. Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições,
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respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.
§ 3º. Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as
contribuições sociais previstas no artigo 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir.
Nesse sentido, o entendimento do STF no Conflito de Jurisdição nº 6.959-6 DF, relatado para o acórdão pelo Ministro Sepúlveda Pertence:
Compete à Justiça do Trabalho julgar demanda de servidores do
Banco do Brasil para compelir a empresa ao cumprimento da promessa de vender-lhes, em dadas condições de preço e modo de pagamento, apartamentos que, assentindo em transferir-se para Brasília,
aqui viessem a ocupar, por mais de cinco anos, permanecendo a seu
serviço exclusivo e direto. À determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução de questões de
Direito Civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo
alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tendo sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho (in
Revista LTr, vol. 59, nº 10, outubro de 1995, p. 1.370).
Igualmente, nessa mesma linha de decisão, têm trilhado os Colendos Tribunal Superior do Trabalho (TST) e Superior Tribunal de Justiça (STJ), tal qual os Tribunais Regionais do Trabalho (TRT`s), nos seguintes julgados:
Processual Civil. Ação de indenização movida por espólio de exempregado em face de demissão do de cujus de forma discriminatória por padecer de AIDS. Competência da Justiça do Trabalho.
Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar ação de indenização por danos morais e materiais, em que é imputado à ex-empregadora tratamento discriminatório pela demissão de empregado portador de AIDS. Recurso especial conhecido e provido. (STJ,
no REsp nº 276.044–MT, ac. da 4ª T., rel. Min. Aldir Passarinho Junior, in DJ-U de 11/12/2000, p. 212);
Competência da Justiça do Trabalho. Indenização por dano moral. A competência da Justiça do Trabalho para dirimir os dissídios motivados pelo dano moral não se estabelece linearmente,
mas, sim, em decorrência da situação jurídica em que se encontra
o trabalhador (período pré-contratual, contratual ou na extinção
do contrato) e do nexo de causa e efeito da lesão perpetrada com
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o vínculo de emprego ou de trabalho. (TST, no RR nº 365.617, ac.
da 4ª T., rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, in DJ-U de
29/06/2001, p. 797);
Competência da Justiça do Trabalho... Assinale-se ser pacífica a jurisprudência desta Corte sobre a competência do Judiciário Trabalhista para conhecer e julgar ações em que se discute a reparação
de dano moral praticado pelo empregador em razão do contrato
de trabalho. Como o dano moral não se distingue ontologicamente do dano patrimonial, pois em ambos se verifica o mesmo pressuposto de ato patronal infringente de disposição legal, é forçosa a
ilação de caber também a esta Justiça dirimir controvérsias oriundas de dano material proveniente da execução do contrato de emprego... (TST, no RR nº 620.720, ac. da 4ª T., rel. Min. Antônio José
de Barros Levenhagen, in DJ-U de 29/06/2001, p. 836);
Aidético. Nos termos do art. 114 da Constituição Federal, é competente a Justiça do Trabalho para julgar ações em que se pede indenização por danos morais originários de atos praticados pelo empregador contra a dignidade do trabalhador durante o pacto laboral.
(TST, no RR 446.047/98.5, ac. da 1ª T., rel. Min. Ronaldo Leal, in Genesis Revista de Direito do Trabalho, nº 85, janeiro de 2000, p. 83);
Competência. Justiça do Trabalho. Indenização por dano moral. A
controvérsia decorre da relação de trabalho, e, nos termos do art.
114 do Estatuto Mandamental, é competente a Justiça do Trabalho
para processar e julgar as ações em que se requer o pagamento de
indenização por dano moral. (TST, no RR nº 425540, ac. da 1ª T.,
rel. Min. Wagner Pimenta, in DJ-U de 15/12/2000, p. 894);
Justiça do Trabalho. Competência. Danos morais. O artigo 114 da
Constituição da República assegura que esta Justiça especializada
é competente para dirimir controvérsias em geral oriundas da relação de trabalho. Assim, a lide entre empregado e empregador referente à indenização por dano moral, cuidando-se também de infração à obrigação acessória implícita de respeito à honra e à dignidade do outro contratante, ou lesão provocada como empregado
ao empregador e vice-versa, em virtude do contrato de trabalho,
também compete à Justiça do Trabalho, ante o comando dos arts.
652, inciso IV, da CLT e 114 da CF. (TST, no ROAR nº 13058, ac. da
SBDI-2, rel. Min. Francisco Fausto, in DJ-U de 08/09/2000, p. 323);
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Competência da Justiça do Trabalho. Indenização por dano moral. A competência da Justiça do Trabalho para dirimir os dissídios motivados por dano moral não se estabelece linearmente,
mas em decorrência da situação jurídica em que se encontra o
trabalhador, nos períodos pré-contratual, contratual e pós-contratual e do nexo de causa e efeito entre a lesão perpetrada e o vínculo de emprego. (TST, no RR nº 524452, ac. da 4ª T., rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, in DJ-U de 10/11/2000, p. 705);
Dano moral. Competência da Justiça do Trabalho. Segundo se extrai do entendimento lançado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal nos autos do Processo nº RE 238737 – SP (decisão publicada
no DJ de 05.02.1999), compete à Justiça do Trabalho dirimir controvérsia acerca de pedido de indenização por dano moral que
guarda pertinência com a relação de emprego. (TST, no RR nº
599271, ac. da 2ª T., rel. Min. José Luciano de Castilho Pereira, in
DJ-U de 01/09/2000, p. 414);
Dano Moral. Indenização. Cabimento. Condenação. Competência da
Justiça do Trabalho. Arts. 5º, X, parágrafo 1o e 114, da CF/88. - Cabível
o ajuizamento de demanda tendente ao recebimento de indenização
por dano moral, compete à Justiça do Trabalho processá-la e julgá-la,
sempre que o dano alegado e comprovado tenha decorrido das relações de trabalho havidas entre as partes, hipótese em que se impõe a
condenação do responsável pelo dano, consoante preconizam as disciplinas contidas nas regras insculpidas no inciso X e no parágrafo
1o, do art. 5o e no art. 114, todos, da CF/88. (TRT 15a Reg., RO nº
3.732/1994, ac. da 5a T nº 2.593/1996, rel. Luís Carlos Cândido Martins
Sotero da Silva, in DOE-SP de 26/02/1996, p. 101);
Competência. Dano moral. Indenização. A Justiça do Trabalho
tem competência para conhecer e julgar pedido de indenização
por dano moral (art. 114 da CF). Posição adotada pelo STF. (TST,
no RR nº 579197, ac. da 4ª T., rel. Min. Milton de Moura França, in
DJ-U de 28/04/2000, p. 453);
Competência. Dano moral. É competência da Justiça do Trabalho,
julgar e processar questões outras provenientes da relação trabalhista, entre as quais, a de indenização por dano moral. (TRT 2ª
Reg., no RO nº 02990328526, ac. da 1ª T. nº 20000297105, rel. Juiz
Plínio Bolivar de Almeida in DOE-SP de 04/07/2000).
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Por haver previsão de cunho constitucional para apreciação de dano moral –
art. 5o, incs. V, X, XI, XXXIV a, XXXV, da Constituição Federal – e sendo a invocação
deste decorrente de relação laboral, conforme asseveram os arts. 8º, parágrafo único, 482 j e 483 e da CLT, o art. 1.553 do Código Civil e o art. 114 da Carta Magna,
considera-se inabalável a competência da Justiça do Trabalho para apreciar reclamação trabalhista quanto ao pleito de danos morais.
Registre-se, que quando em juízo estão litigando as partes do contrato de trabalho, ambas agindo na condição de empregado e empregador, e tendo por objeto
a indenização por dano moral decorrente de alegado ato ilícito patronal, a pretensão de direito material deduzida na reclamatória possui natureza de crédito trabalhista que se sujeita, para os efeitos da contagem do prazo de prescrição, à regra estabelecida no art. 7º, XXIX, da Constituição Federal de 1988, e não à prescrição vintenária prevista no art. 177 do Código Civil18.
Problema existe quanto à determinação do dano moral, mais precisamente a
fixação do quantum, do valor, em relação à indenização dos prejuízos morais suportados pelo trabalhador aidético, diretamente, ou seus familiares no caso de falecimento.
A doutrina e a jurisprudência decidiram, de forma uníssona, que o valor ficará ao arbítrio do magistrado que deverá ter em mente alguns critérios. O Código Nacional de Telecomunicações, por exemplo, diz: “Na estimação do dano moral o juiz
terá em conta notadamente a posição social ou política do ofensor, a intensidade do
ânimo de ofender, a gravidade e a repercussão da ofensa”.
O insigne jurista Aguiar Dias19 preleciona que o arbitramento é, por excelência, o critério de indenizar o dano moral, aliás, o único possível, em face da impossibilidade de avaliar matematicamente o quantitativo pecuniário que satisfaça o pretium doloris, o preço da dor.
Amarante20, ao discorrer sobre a valoração do dano, assevera que seja em
relação ao que é devido (an debeatur), seja no tocante ao quanto é devido
(quantum debeatur) tem-se reconhecido a impossibilidade, na prática, de transposição dos princípios atinentes à indenização dos danos patrimoniais para o
campo dos direitos extrapatrimoniais. Conclui afirmando que há ausência de uma
medida adequada ou um critério aferidor do valor, reduzindo-se a questão ao
puro arbítrio do julgador.
Alguns doutrinadores fixam como elemento balizador a condição social e
econômica da própria vítima. Admitir isso, porém, seria o mesmo que dizer que
o pobre não tem honra. Abrir aos poderosos e aos ricos o direito de satisfazer-se
18 Conforme julgado do C. TST, no RR nº 540.996, ac. da 5ª T., rel. Juiz Convocado Walmir Oliveira da Costa, in DJU de 15/12/2000, p. 1035.
19 AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, v. 2, 1987, p. 754.
20 AMARANTE, Aparecida. Responsabilidade civil por dano à honra. 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 258.
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à custa do sofrimento alheio, de tratar com escárnio e desprezo a honra de um
desafeto de parco poder econômico ou, como no caso presente, de um empregado hipossuficiente por natureza, sabendo que o preço a ser pago em nada lhe
afetaria o patrimônio.
Com sabedoria, porém, a maior parte dos estudiosos da matéria preleciona,
isto sim, que deve o juiz ter em mente a intensidade do dolo ou culpa, a dor suportada pelo lesado e o patrimônio do lesante, de forma que, de um lado, fique aquele
(não pago pela dor, pois isto é impossível) compensado, e de outro, este desestimulado a praticar futuras ações semelhantes.
O insigne jurista Bittar21 dedicou-se com afinco ao estudo do tema. Seus escritos ensinam que se deve levar em consideração as circunstâncias do caso, a gravidade do dano, a situação do lesante, a condição do lesado, preponderando, como
orientação central, a idéia de sancionar o lesado.
Discorrendo sobre a técnica do valor de desestímulo, enfatiza o jurista que
este opera como fator de inibição a novas práticas lesivas, sendo enfático que se trata de valor que, sentido no patrimônio do lesante, possa contribuir para conscientizá-lo de que não deve persistir na conduta reprimida. De outra parte, continua o
consagrado autor, deixa-se para a coletividade exemplo expressivo da reação que a
ordem jurídica reserva para os infratores nesse campo, atingindo a um elemento
que, em nosso tempo, se tem mostrado muito importante para as pessoas que é o
patrimônio. Conclui afirmando que se compensam, com essas verbas, as angústias,
as dores, as aflições, os constrangimentos e as situações vexatórias em geral a que o
agente tenha exposto o lesado com sua conduta indevida.
Filiando-se, de forma clara, ao sistema aberto e não ao tarifado, o jurista é pela
ilimitação da responsabilidade no patrimônio do lesante, uma vez que, na sua opinião, a necessidade absoluta e prioritária de cabal satisfação do interesse lesado nem
sempre pode ser propiciada pelos índices ou valores que o sistema tarifado propicia. Na sua concepção, a tarefa de determinar a quantia devida deve, pois, ser confiada ao magistrado.
Repercussão na esfera do lesado, potencial econômico-social do lesante e circunstâncias do caso devem, pois, segundo Bittar22, influir na definição do valor da indenização, para alcançar resultados próprios: compensação ao lesado e sancionamento ao lesante. Afirma que, em consonância com essa diretriz, a indenização por
danos morais deve traduzir-se em montante que represente advertência ao lesante
e à sociedade de que não se aceita o comportamento assumido, ou o evento lesivo
advindo. Prossegue no sentido de que referida indenização se consubstancia em importância compatível com o vulto dos interesses em conflito, refletindo, de modo
21 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, nº 44, outubro de 1994, p. 24-27.
22 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 41.
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expressivo, no patrimônio do lesante, a fim de que sinta, efetivamente, a resposta da
ordem jurídica aos efeitos do resultado lesivo que produziu. Conclui que a quantia
deve ser economicamente significativa, em razão das potencialidades do patrimônio
do lesante.
Realmente, “o valor atribuído para o dano moral deve atender às condições
tanto de quem paga como de quem recebe, para a própria viabilidade do cumprimento da obrigação”23, isto é,
caberá ao Juiz estabelecê-los caso a caso. Não de forma arbitrária,
mas levando em consideração certos requisitos, como as condições
pessoais do ofendido e ofensor; grau de cultura do ofendido; seu
ramo de atividade, perspectivas de avanço e desenvolvimento no
ramo de atividade que exercia, ou outra que poderia exercer ao
sofrer o dano, e outras que possam eventualmente ser levadas em
conta, como o grau de suportabilidade do encargo atribuído ao
ofensor. Porque não adiantaria estabelecer indenização por demais alta sem que o ofensor possa suportá-la, tornando inexeqüível a obrigação24.
A quantificação25, assim, deve ser fixada segundo o que dispõe o art. 1.553 do
Código Civil, ou seja, por arbitramento, tendo o cuidado de ressaltar, entretanto,
que deve ser feito atentando para a necessidade da vítima e a capacidade do empregador, como justo e compatível com tais parâmetros, apenando o ofensor e não enriquecendo sem causa o ofendido ou seus familiares, relacionando-se a segunda hipótese aos casos de resultado fatal.
Enfim, os valores inerentes à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem
podem ser atingidos por uma atitude discriminatória que o empresário adote em relação àquele que pede trabalho, àquele que já está trabalhando e àquele que já saiu
da empresa. Em tais situações temporais, é possível que atitudes do empregador direto, ou de seus prepostos, provoquem lesões de tal ordem que ensejem o pedido
de reparação do dano moral. O trabalhador deve provar o ato ou omissão discriminatórios, a responsabilidade do empregador e o efeito danoso a seu patrimônio moral para intentar com sucesso em sua postulação26.
23 Conforme julgado contido em JTARS 95/316.
24 Conforme julgado contido em RJTJRS 163/261.
25 Embora não se adote um sistema tarifado, na prática, segundo corrente atual e majoritária do Egrégio STJ - Superior Tribunal de Justiça, a indenização por dano moral vem sendo fixada em quantia única, sobre um valor equivalente a salários mínimos, 100, 200, 300, conforme as circunstância (neste sentido os REsp`s nº`s 124565-MG,
106326-PR, 82205-RJ, 58538-SP, 49542-RJ...).
26 SAMPAIO, Ricardo. AIDS e o Dano Moral. Revista do Direito Trabalhista, Brasília: RDT, ano 4, nº 06, junho de
1998, p. 04-08, especialmente 08.
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Concluindo, verifica-se claramente que há uma grande repercussão do dano
moral e da AIDS sobre o Direito do Trabalho, fazendo com que se verifique a necessidade de sempre se estar pronto para aceitar novas concepções e novos desafios,
especialmente o de se adaptar à viva realidade social e, por conseqüência, aos anseios da sociedade.
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O DEVER DO JULGADOR EM FIXAR O OBJETO DO
LITÍGIO COMO GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA
Cristian de Sales Von Rondow
Mestrando em Direito pela ITE – BAURU/SP
Advogado em Lins/SP.
1.
ACESSO À JUSTIÇA
Hodiernamente, o termo “acesso à justiça” começa a ganhar força e ares de
modernidade na prestação jurisdicional. Não cabe neste estudo tratar da evolução
do termo, mas insta tecer comentários do que seja a sua importância quando falamos em fixar o objeto do litígio numa ação de conhecimento, quando os efeitos da
fixação são espraiados beneficamente no tempo de duração da demanda.
Mauro Cappelletti e Bryant Garth, na célebre obra “Acesso à Justiça” aduzem que
o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido
como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída
de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e
não apenas proclamar os direitos de todos.1
1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988, p. 11-12.
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Para Cappelletti e Garth, o
‘acesso’ não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna
ciência jurídica.2
Nesta linha moderna de raciocínio do que seja “acesso à justiça”, José Cichoki Neto
em sua obra “Limitações ao Acesso à Justiça” assevera que a expressão “acesso à justiça”
permeou-se da idéia de ser o processo um instrumento da jurisdição, com escopos sócio-político-jurídicos perfeitamente definidos.
Essa perspectiva descobre e realça os valores sociais e políticos do
processo, a par dos jurídicos. 3 Essa perspectiva instrumentalista,
ao mesmo tempo em que ressaltou a condição do processo como
instrumento para realização dos direitos através da jurisdição,
projetou seus escopos para além de sua finalidade jurídica; mas
também, revelou o direito substancial como um dos fins alcançados pela atividade jurisdicional.4
Para referido autor,
o princípio da universalidade da tutela jurisdicional é, na atualidade, uma tendência universal que não se pode negar. Daí, a
compreensão do acesso à justiça como ‘acesso à ordem jurídica
2 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988, p. 13.
3 CICHOKI NETO, José. Limitações ao acesso à justiça. 1ª ed., Curitiba: Editora Juruá, 2001, p. 62, apud Cf. DINAMARCO. “A grande guinada metodológica da ciência processual neste século é representada pela tomada de consciência da necessidade de observar todo sistema a partir de perspectivas externas, sendo insuficiente o tradicional
exame introspectivo, pelo ângulo interno. Do século passado para cá, o processualista soube bem definir conceitos
e estruturas harmoniosamente institutos, superando o sincretismo das origens e tornando definitiva a conquista da
autonomia do direito processual... Daí a insatisfação primeiramente demonstrada mediante a busca do substrato
constitucional dos institutos e princípios do processo e, agora, pelo empenho em situar o sistema processual no
contexto das realidades sociais e políticas da nação.” DINAMARCO, Cândido Rangel. Escopos Políticos do processo.
In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Participação e processo. Op. cit., p. 14.
4 CICHOKI NETO, José. Limitações ao acesso à justiça. 1ª ed., Curitiba: Juruá, 2001, p. 62.
5 CICHOKI NETO, José. Limitações ao acesso à justiça. 1ª ed., Curitiba: Juruá, 2001, p. 62, apud, A afirmação é de
Kazuo Watanabe, ao estender o problema do acesso à justiça para além das fronteiras de ser o simples ato de ingresso em juízo: “Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim
viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”. (WATANABE, K. Acesso à Justiça..., Op. cit. p. 128).
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justa’.5 Sob essa ótica, o acesso à justiça não implica somente na
existência de um ordenamento jurídico regulador das atividades
individuais e sociais mas, concomitantemente, na distribuição legislativa justa dos direitos e faculdades substanciais. Assim, no
conceito de acesso à justiça, compreende-se toda atividade jurídica, desde a criação de normas jurídicas, sua interpretação, integração e aplicação, com justiça. É exatamente nesse sentido mais
amplo que deve ser tomada a expressão ‘acesso à justiça’.6
Temos que a plena efetividade do acesso, somente será alcançada quando aos
litigantes lhes for proporcionado “igualdade de armas”, ou seja, “a garantia de que a
conclusão final depende apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito”7. Todavia, estamos
cônscios de que as diferenças entre as partes jamais poderão ser erradicadas, sendo
a perfeita igualdade mera utopia. Assim, fixar o (s) ponto (s) controvertido (s) no
processo de conhecimento traduz atualmente em uma ferramenta de ataque a um
obstáculo ao acesso efetivo à justiça, o tempo; que quando utilizada pode reduzir,
sobremodo, a duração de uma demanda.
1.1 Tempo
Muitas vezes,o tempo passa a ser um inimigo das partes no processo, especialmente àquela que busca no Judiciário o reparo de uma lesão. Tal problema se
verifica não apenas no Brasil, mas em outros países, onde para se obter uma solução judicial é preciso esperar em média de dois a três anos, ou, à, vezes até
mais, por uma decisão exeqüível.8 Não há dúvidas de que um processo que se
prolonga no tempo acarreta não só transtornos psicológicos mas também monetários. Os custos para as partes são aumentados e os economicamente fracos são
impulsionados a abandonar suas causas, ou aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito.9
6 CICHOKI NETO, José. Limitações ao acesso à justiça. 1ª ed., Curitiba: Juruá, 2001, p. 62-63.
7 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988, p. 15.
8 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988, Op. cit., p. 20, apud, Na Itália, por exemplo, “verifica-se que (em 1973) os casos de primeira instância perante um pretor duram 566 dias; aqueles no tribunal de primeira instância tomam 944 dias; e os da Corte de Apelação
de Segunda instância levam 769 dias”. Vigoriti, V., nota supra nº 18, na seção 12. Vide também De Miguel y Alonso,
C. de, nota supra nº 18, na seção IIA2, onde se afirma que na Espanha são necessários cinco anos e três meses para
que se obtenha uma sentença e o julgamento de um recurso à Corte de Cassação.
9 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988, Op. cit. p. 20.
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O ideário, muitas vezes longe de ocorrer, está reconhecido pela Convenção
Européia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais onde
está exarado explicitamente no artigo 6º, parágrafo 1º que a Justiça que não cumpre suas funções dentro de ‘um prazo razoável’10 é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível.11
Visando a derrubar esta visão de “justiça inacessível” os processualistas deixando para um plano secundário as construções de cunho teórico, “passaram a
preocupar-se com um valor fundamental, ínsito à tutela dos direitos, qual seja, a imprescindibilidade da efetividade”.12
José Rogério Cruz e Tucci, citando Marinoni, aduz que
as legislações modernas ‘devem construir procedimentos que tutelem de forma efetiva, adequada e tempestiva os direitos. O ideal é
que existam tutelas que, atuando internamente no procedimento,
permitam uma racional distribuição do tempo do processo’.13
E conclui: “assim, ao lado da efetividade do resultado que deve conotá-la, imperioso é também que a decisão seja tempestiva”.14
Para Cruz e Tucci
o pronunciamento judicial que cumpre com sua nobre missão de
compor uma controvérsia intersubjetiva ou um conflito de alta relevância social no momento oportuno proporciona às partes, aos
interessados e aos operadores do direito grande satisfação. Mesmo
aquele que sai derrotado não deve lamentar-se da pronta resposta do Judiciário, uma vez que, sob o prisma psicológico, o possível
10 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 20-21, apud, Vide, por exemplo, VELU. “La Covention Européenne des Droits de L’Homme et les garanties fondamentales des parties dans le procès civil”, in Fundamental Garantees of the Parties in Civil Litigation,
nota supra nº 1, p. 245, 318-22.
11 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, Op. cit. p. 20-21.
12 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 234.
13 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 235, apud, Cf. Marinoni,
Tutela antecipatócia, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, São Paulo, RT, 1997, p. 20. A efetividade das decisões judiciais, conforme lição de Carnelutti, poderá ser assegurada pelas medidas cautelares, que
constituem antídoto contra a demora do processo (Diritto e processo, Napoli, Morano, 1958, p. 355-6). V., nesse
sentido, Dinamarco, A instrumentalidade do processo, cit., p. 302.
14 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 235.
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e natural inconformismo é, sem dúvida, mais tênue quando a luta
processual não se prolonga durante muito tempo.15
Com a publicação da referida “Convenção Européia”, nasceu o direito ao processo sem dilações indevidas, sendo concebido como um direito subjetivo constitucional, de caráter autônomo, de todos os membros da coletividade (incluídas as pessoas jurídicas) à tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável.16
Cruz e Tucci, citando José Antonio Tomé Garcia, informa que se tem como dilações indevidas
os atrasos ou delongas que se produzem no processo por inobservância dos prazos estabelecidos, por injustificados prolongamentos das etapas mortas que separam a realização de um ato processual de outro, sem subordinação a um lapso temporal previamente fixada, e, sempre, sem que aludidas dilações dependam da vontade das partes ou de seus, mandatários.17
Pondera Cruz e Tucci, ao dizer que
torna-se impossível fixar a priori uma regra específica, determinante das violações à garantia da tutela jurisdicional dentro de um
prazo razoável.
E, por isso, consoante posicionamento jurisprudencial da Corte
Européia dos Direitos do Homem, três critérios, segundo as circunstâncias de cada caso concreto, devem ser levados em consideração para ser apreciado o tempo razoável de duração de um determinado processo. Por via de conseqüência, somente será possível verificar a ocorrência de uma indevida dilação processual a
partir da análise: a) da complexidade do assunto; b) do compor15 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 236.
16 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, cit. 238.
17 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, cit. 238-239, apud, Cf. José
Antonio Tomé Garcia, Proteccion procesal de los derechos humanos ante los tribunales ordinarios, Madrid, Montecorvo, 1987, p. 119; com lastro em José Almagro Nosete. V., ainda, Vicente Gimeno Sendra, Constitución y proceso, Madrid, Tecnos, 1988, p. 144 e ss; Cruz e Tucci, Garantia da prestação jurisdicional sem dilações indevidas
como corolário do devido processo legal, in Devido processo legal e tutela jurisdicional, São Paulo, RT, 1993, p.
104.
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tamento dos litigantes e de seus procuradores; e c) da atuação do
órgão jurisdicional.18
À vista do exposto, reafirmamos a necessidade da fixação pelo julgador do objeto do litígio como garantia do acesso à justiça, uma vez que delimitado o cerne da
lide, delimitado estará as ilações produzidas pelas partes.
2.
OBJETO DO LITÍGIO
Sobre o tema, socorremo-nos na lição de Arruda Alvim, que preleciona haver
no processo, determinados assuntos (pontos) que, se controvertidos, passam a merecer a denominação de questões. Se a solução
destas não influir na existência (ou na inexistência) do exame do
mérito, de questões prévias e preliminares propriamente ditas se
tratará. Como exemplo, tem-se a competência do juízo.
Se, no entanto, da solução da questão depender o “como” será
julgado o mérito (possivelmente procedente ou improcedente),
de questão prévia e prejudicial se tratará. Exemplo expressivo
desta hipótese é a questão da filiação em relação à petição de
herança.19
Para Arruda Alvim,
é na petição inicial que se encontram os elementos para identificar o objeto litigioso, pois o autor é que o fixa. O réu, por sua vez,
fixa os ponto controvertidos de fato e de direito, mas não aumenta o objeto litigioso, salvo se se servir da declaratória incidental ou
de reconvenção (na verdade, nestes casos, haverá duas lides e,
pois, dois objetos litigiosos).
18 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 239, apud, V., a
propósito, Gimeno Sendra, Constitución y proceso, cit., p. 144 e s; José M. Bandres sanches-Cruzat, El tribunal europeu de los derechos del hombre, Barcelona, Bosch, 1983, p. 91. Consulte-se, ainda, a pesquisa intitulada Justice
for all – reducing costs and delay in civil litigation, in Report of a task force, Washington-DC: The Brookings Institution, 1989, p. 11 e s.
19 ARRUDA ALVIM. Manual de Direito Processual Civil, vol. 1 – Parte geral. 6ª ed. rev e atual., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997, p. 409.
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O juiz, ao julgar, aprecia e decide todas as questões que se encontram no processo, mas só sobre o objeto litigioso (lide) é que pesará a autoridade de coisa julgada (v. arts. 468 e 469).20
E conclui: “como o objeto litigioso ou lide é o mérito da ação, deve ser esta
identificada, a fim de que a atividade jurisdicional só seja prestada uma vez em relação à mesma pretensão”.21
Portanto, se o objeto do litígio é o mérito da questão e sendo este, na oportunidade, prevista em lei (tópico a seguir) tão logo identificado e delimitado pelo
julgador, certamente teremos um processo mais célere, e vale ressaltar, sem dilações indevidas.
2.1 Momento da fixação
Entendemos que quando do saneamento do processo (art. 331, CPC) deve o
julgador fixar o objeto do litígio; todavia, inocorrendo a fixação, não há preclusão,
pondendo ser revisto no curso da ação. (A “Reforma do Código de Processo Civil,
DINAMARCO, Ed. Malheiros, p. 132/98.1) (Amaral Santos, Comentários ao CPC, IV,
nº 304, p. 409).
Aduzimos ser este o momento ideal, pois os elementos que incentivaram o
surgimento do Despacho Saneador foram a necessidade da entrega de uma solução
mais rápida dos problemas para cujo desfecho favorável voltava-se o judiciário.22
Para um dos colaboradores do livro precitado em nota, Flávio Pâncaro da Silva, “não se erra ao dizer que sua criação encontra-se intimamente ligada aos princípios da economia e da celeridade processuais”.23
Flávio Pâncaro da Silva, narrando a origem do Despacho Saneador e a forma
com que hoje o mesmo se apresenta, diz ser fruto da
perspicácia e da inteligência de José Alberto dos Reis que, nos alvores do século XX, chancelou o instituto ao qual a doutrina e a jurisprudência chamaram inicialmente de Despacho Regulador do
Processo. Foi ele inserido no Código de Processo Civil de 1939, embora tivesse vindo a lume através do Decreto nº 3, de 29 de maio
20 ARRUDA ALVIM. Manual de Direito Processual Civil, vol. 1 – Parte geral. 6ª ed. rev e atual., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997, p. 410.
21 ARRUDA ALVIM. Manual de Direito Processual Civil, vol. 1 – Parte geral. 6ª ed. rev e atual., São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997, p. 410.
22 SANEAMENTO DO PROCESSO – Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Organizador Carlos Alberto
Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, cit. p. 215.
23 SANEAMENTO DO PROCESSO – Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Organizador Carlos Alberto
Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 215.
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de 1907, por seu art. 9º, e que encerrava uma proposta simplificadora do processo civil e comercial, relativamente às causas de pequeno valor dado, assim, nova concepção ao processo sumário.
A exposição de motivos, justificando a criação e as vantagens do
Despacho incluído após a fase postulatória, mostra a alteração do
sistema de julgamento das nulidades. O legislador outorgou ao
magistrado poderes para conhecer de quaisquer nulidades insupríveis e as supríveis apontadas pelas partes, só anulando ou corrigindo a falha quando a irregularidade fosse elemento preponderante na decisão do litígio. Começava-se a evitar o desperdício de
tempo, de atividade e de dinheiro. A fase da argüição de nulidade
a qualquer tempo, estimuladora de fraude, estava abandonando
o moderno direito processual.24
A fim de comprovar a importância do tema proposto e o momento adequado
em fazê-lo, pode ser visto quanto ao objetivo da fase saneadora, que bem explica Flávio Pâncaro da Silva, dizendo que:
É de chamar-se a atenção, outrossim, o aspecto de relegar-se para
a apreciação da sentença matéria que demande a extinção do
processo sem julgamento de mérito. Tal transferência implica em
desrespeitar-se princípios processuais fundamentais. Se o que vem
contemplado no art. 267, da lei processual, dá fim ao processo sem
apreciação do mérito, não se percebe como possa o magistrado determinar a prática de atos probatórios que interessem apenas ao
julgamento do mérito. Diante de preliminares que abordem as hipóteses do art. 267, deve o juiz apreciá-las na fase saneadora, não
lhe sendo permitido postergá-las para a sentença de mérito, eis que
reconhecida a hipótese de carência de ação, nem o mérito a sentença alcançaria. O julgador que assim procedesse estaria agindo
contra os princípios da economia e da celeridade processuais e
ofendendo, de maneira incompreensível, a mencionada norma legal. O agravo de instrumento proposto contra tal protelação seria,
seguramente, provido pela superior instância.25
24 SANEAMENTO DO PROCESSO – Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Organizador Carlos Alberto
Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 220.
25 SANEAMENTO DO PROCESSO – Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Organizador Carlos Alberto
Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, 233.
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Vicente Miranda, em sua obra “Poderes do juiz no processo civil brasileiro” diz
o seguinte:
merece ser lembrada a seguinte questão levantada pelo juiz e monografista João Batista Lopes: ao valer-se do disposto no art. 284 do
Código de Processo Civil pode o julgador indicar o caminho a seguir?
Responde com propriedade esse mesmo autor: ‘não deve o Juiz,
nesse caso, limitar-se a determinar que o autor emenda a inicial
mas deve esclarecer quais falhas que referida pela apresenta’. Tal
poder baseia-se na natureza instrumental do processo, na verdadeira finalidade e no caráter publicístico do processo.26
3.
A POSTURA DO JULGADOR DIANTE DAS PARTES E DO PROCESSO
A fim de que o tema sai do campo teórico para o prático, entendo ser necessário que o julgador adote uma postura ou participação mais ativa no trato com as
partes e no processo, e menos espectador, ou como diz Dinamarco, saia do “imobilismo do juiz-espectador”27 para que as partes obtenham uma resposta dentro de um
lapso de tempo compatível com a natureza do objeto litigioso.28
Para Dinamarco,
falar em participação significa, no direito processual moderno, falar também no ativismo judiciário, que é a expressão da postura
participativa do juiz – seja através das iniciativas probatórias,
seja da efetiva assunção do comando do processo, seja do diálogo
a que o juiz tradicional se recusa – e principalmente mediante o
profundo envolvimento nos pontos controvertidos e questões que
serão relevantes para o julgamento da causa.29
“‘A consciência repele o Juiz fantoche’, exclamava com razão o Prof. Cândido
Naves”.30
26 MIRANDA, Vicente. Poderes do juiz no processo civil brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 1993, p. 164, apud,
Os poderes do juiz e o aprimoramento da prestação jurisdicional, Revista de Processo, 35:29-30, Ano IX, 1984.
27 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p.
129.
28 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de
1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 236.
29 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p.
129.
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Para o precitado autor, a regra do diálogo, inerente à garantia constitucional
do contraditório em sua feição moderna, integra o chamado ativismo judiciário e
exige que o juiz esclareça as partes sobre os rumos da instrução, conclamando-as a
complementar provas, a fim de que o objeto do litígio seja fixado.31
Para uma atividade jurisdicional célere, é preciso o empenho muito vivo dos
juízes pelo efetivo comando do processo. Quanto maior for o compromisso que
têm com a justiça mais efetiva será a participação destes.32
3.1 Poderes instrutórios
Certo é que, ao exercer o poder instrutório, o juiz despacha e decide com a
finalidade última e essencial de instruir a causa.
Os poderes instrutórios têm por finalidade a instrução da causa. Quando o
juiz fixa no despacho saneador o objeto do litígio, as partes saberão quais as provas
serão pertinentes ao esclarecimento da lide, a fim de que ao término da instrução
esteja o julgador apto a decidir (sentença).
Para Vicente Miranda, ao juiz incumbe: “dirigir a instrução, fixando o objeto da
prova, deferindo ou indeferindo as provas requeridas pelas partes, e controlando a
instrução”.33
Tendo em mira a fixação do objeto do litígio, Dinamarco traz que
entre as atividades das partes em contraditório e as inquisitivas
do juiz, tem-se por muito importante a instrução probatória,
que no processo de conhecimento é vital para a efetividade da
ação ou da defesa, bem como para o correto exercício da jurisdição.34
Para o renomado autor,
o grau de participação do juiz na realização do processo é também “ponto sensível” relativo ao modo de ser deste. Nos sistemas
político-constitucionais marcados pela busca do bem-comum e
30 MIRANDA, Vicente. Poderes do juiz no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 137, apud, Impulso processual e poderes do juiz, Belo Horizonte, 1949, p. 22
31 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996,
cit. p. 249.
32 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996,
cit. p. 272.
33 MIRANDA, Vicente. Poderes do juiz no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 208.
34 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996,
cit. p. 284.
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nos de conotação socialista, o processo recebe influxos publicistas que impõem a presença do juiz atuante. E assim é o nosso
sistema processual da atualidade, onde a todo momento é preciso enfatizar que os juízes são os condutores do processo e o sistema não lhes tolera atitudes de espectador. A escalada inquisitiva, no processo civil moderno, corresponde à crescente assunção de tarefas do Estado contemporâneo, o qual repudia a teoria dos “fins limitados”. É claro que essa tendência publicista
não poderia chegar ao ponto de autorizar o exercício espontâneo da jurisdição, nem de substituir as iniciativas instrutórias
das partes pelas do juiz; mas, para a efetividade jurídica social
e política do processo, algumas mitigações a esse imobilismo do
agente jurisdicional vão sendo estabelecidas.35
Finalizando, coadunamos mais uma vez com o pensamento do Prof. Dinamarco quando diz que “a atitude do juiz curioso diante dos fatos a apurar, constitui fator de boa instrução no processo, portanto, elemento positivo quanto à efetividade
dos seus resultados institucionais”.36
BIBLIOGRAFIA
ARRUDA ALVIM. Manual de Direito Processual Civil, vol. 1 – Parte geral. 6ª ed. rev
e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CICHOKI NETO, José. Limitações ao acesso à justiça. 1ª ed., Curitiba: Juruá, 2001
MIRANDA, Vicente. Poderes do juiz no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva,
1993.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 1996.
MIRANDA, Vicente. Poderes do juiz no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva,
1993.
35 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, cit.
p. 287.
36 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, cit.
p. 288.
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GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO CIVIL – Homenagem aos 10 anos
da Constituição Federal de 1988. Coordenação José Rogério Cruz e Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
SANEAMENTO DO PROCESSO – Estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda.
Organizador Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1989.
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Atividade Agrária
Fábio Maria De-Mattia
Professor Titular no Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo
CAPÍTULO I
Quando nos dedicamos, neste campo da ciência do Direito, ao estudo da chamada atividade agrária, cumpre que se tenha presente uma premissa básica, qual
seja aquela que impõe considerar o ser humano tal como órgão produtivo na medida em que sua atividade fundamental, o trabalho, é o instrumento com o qual se torna possível obter uma produção sempre maior de bens. O órgão (do radical erg =
fazer), assim considerado, não é, pois, apenas um meio de agir, um instrumento
para fazer alguma coisa, não é apenas a engrenagem de uma máquina.
A organização da vida social não se esclarece na criação de um grande organismo produtivo, mas, principalmente, na instauração de relações humanas de cooperação e de colaboração, tornadas necessárias na vida em sociedade. Apenas através do desenvolvimento ordenado de tais relações é que esta vida em sociedade poderá progredir, na realização de fins que transcendam os interesses de cada um e
aprofundando as raízes no seu comportamento prático, dos indivíduos, em suas necessidades materiais e espirituais.1
A idéia de organização, presente nas principais atividades do homem, demonstra também a sua importância quando se estudam aqueles problemas fundamentais,
concernentes aos usos agrícolas do solo e às atividades que lhes são conexas.
1 PALERMO, Antonio. Diritto Agrário, Roma: Casa Editrice Stamperia Nazionale, 1961, p. 61.
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Buscando a sua localização no universo do ordenamento jurídico, verificamos
que a atividade agrária está contida no âmbito da matéria civil, idéia adotada de forma consensual pela melhor corrente doutrinária.2
Constitui-se, pois, em atividade diversa daquela considerada comercial em
sentido amplo, uma vez que as duas atividades apresentam características realmente distintas, apuradas no diverso desenvolvimento do ciclo produtivo de cada uma,
na distinta relação entre investimentos imobiliários e mobiliários, ou ainda nas disposições diferenciadas relativas ao funcionamento do crédito.3
Para que possa ser bem compreendida, a atividade produtiva no setor agrário,
necessita sejam estudadas as causas da evolução dos seus institutos, o dinamismo
que lhes determinou renovação incessante. Tais fatos, assim considerados, acabam
por obrigar o estudioso da matéria a se valer de uma necessária referência histórica
relativa à organização social e individual das relações que dizem respeito a estes institutos.
Para ALFREDO PALERMO, uma vez reconhecida esta realidade, ficam configurados três problemas fundamentais referentes a atividade agrária: I - o estudo da função e posição que devem ser reconhecidas aos sujeitos de direito (individuais e coletivos), que participam de tais atividades; II - o estudo da função e disciplina do objeto de tal atividade (o solo produtivo), as quais devem ser consideradas, seja no
ponto de vista estritamente econômico da produção, seja do ponto de vista político-social e, pois, também, no jurídico; III - a organização dos meios necessários para
desenvolver proficuamente tais atividades, entre as quais devem estar compreendidos sejam os meios materiais (instrumentais, mecânicos), sejam os meios humanos,
as atividades laborativas, consideradas sob o ponto de vista da sua eficiência.
Fixados estes pontos, ANTONIO PALERMO conduz a sua reflexão através de
uma diretriz específica, a qual adotaremos também, na medida em que a nós parece ser a mais aprofundada na avaliação de estrutura da atividade agrária e de sua
classificação.4
Esta diretriz se consubstancia na determinação dos termos genéricos destes problemas fundamentais, com base em elementos ofertados pela experiência.
Isto permite a compreensão não apenas dos aspectos constitucionais da organização e do ordenamento das atividades agrícolas, os quais dizem respeito às estruturas organico-funcionais do ordenamento, mas, principalmente, que se entenda a natureza diversa dos atos criados pelos sujeitos de direito (individuais e
coletivos) quanto ao desenvolvimento concreto das relações, ao dinamismo incessante da realidade social, e à evolução das estruturas e dos institutos, sempre
2 MEGRET, Jean. “Droit Agraire”, 1ª ed., Paris: Librairies Techiques, 1976, t. 1, p. 4 e ss.
3 DE SIMONE, Mario. “Lineamenti di Diritto Agrario” (parte generale), Napoli: Pallerano del Gaudio – Editori, 1970,
p. 85.
4 PALERMO, Antonio. Op. cit. p. 62.
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na busca de sua adaptação às condições mutáveis da consciência coletiva encontrada no plano político jurídico.5
A) Sujeitos individuais e coletivos
O primeiro problema concerne à posição que deve ser reconhecida aos sujeitos (individuais e coletivos), que participam da atividade agrícola.
Para isto, é fundamental a noção de agricultor.
Em sentido técnico, impõe-se precisar que a noção de agricultor tem um significado mais restrito do que a ampla noção de trabalhador agrícola.
Trabalhador agrícola é qualquer pessoa que desenvolva atividade de trabalho
no setor agrícola.
Segundo JEAN MEGRET, somente deve ser considerado como agricultor
aquele que, de uma parte, pratique a cultura da terra com o objetivo de obter uma
produção vegetal ou, então, para alimentar seus animais com os produtos colhidos,
o que sempre será feito no sentido da obtenção de lucro.6
Em sentido mais específico, por agricultor deve-se entender, numa visão corrente, aquele que profissionalmente dedica a sua capacidade e atividade de trabalho
ao cultivo do solo para obter os produtos destinados ao consumo e à transformação, para seu uso próprio ou para serem objeto de troca. A definição ressalta o fim
essencial a que o sujeito de direito se propõe ao exercitar a atividade agrícola.7
As noções de agricultor e de cultivador direto são distintas da noção de trabalhador agrícola subordinado.
A categoria genérica de trabalhador agrícola, dessa forma, compreende não
apenas (1) todos os sujeitos de direito que desenvolvem a sua atividade de forma
autônoma (trabalho exclusivamente individual), mas, também, (2) todos aqueles
que exercem sua atividade nas dependências de outrem, com vínculo de subordinação, inserindo-se em um organismo coletivo - em uma empresa - de cuja titularidade são estranhos (trabalho subordinado), ou (3), associando-se a outro sujeito de
direito, em bases paritárias (trabalho associado, de cooperação).8
O conceito de ruralidade serve para caracterizar, genericamente, a categoria agrícola, partindo de uma acepção primitiva que compreende todos aqueles entregues às
principais operações do cultivo do solo e da criação de animais, conceito esse que assumiu, com o progresso da agricultura, um significado cada vez mais vasto.9
5 Id., ibid. op. cit. p. 62.
6 MEGRET, Jean. Op. cit. p. 5.
7 PALERMO, Antonio. Op. cit. p. 62 e 63.
8 Id., ibid. op. cit. p. 62.
9 Id., ibid. op. cit. p. 63. O ilustre especialista cita, neste particular, a criação de gado, concepção que foi se alargando para alcançar outras categorias, como se verá.
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Voltando ao conceito de agricultor, verificamos que os seus elementos podem ser focalizados sob um tríplice ponto de vista: a) subjetivo; b) objetivo; e c)
teleológico.
Procurando desenvolver, neste capítulo, o aspecto subjetivo do conceito,
verificamos que é importante abordar a noção de profissionalidade, que pode ser
entendida no sentido de atividade que o indivíduo escolheu como sua atividade
ordinária e contínua no mais das vezes com o escopo de sustento (apesar deste não ser a rigor um pressuposto essencial) mas, sobretudo, a serviço das necessidades gerais.10
O conceito de profissionalidade abrange aquela particular posição concernente a quem desenvolve atividade econômica produtiva e é relativa apenas aos que
participem, ainda que em situação de subordinação ou àqueles que atuam com dedicação normal, continuada, habitual e sistemática com energias laborativas, em
exercício da empresa alheia.11
O próprio empresário das pequenas e médias empresas, dirigidas individual e
pessoalmente deverá também ser considerado como um trabalhador e, como tal,
merecedor de assistência sob o plano previdenciário.
Componente da noção de agricultor é também aquele que exerce a atividade
agrícola por conta própria, o que implica sua assunção dos riscos provenientes de
sua atuação.
A atividade deste tipo de agricultor se caracteriza, sobretudo, pela autonomia
que usufrui no exercício de sua capacidade profissional, a qual se revela no poder
de organização técnica dos meios de produção, no poder de direção, de lucrar para
si, etc.12
Por outro aspecto, surgem as relações por efeito das quais o agricultor é investido no uso agrícola do solo, pois, a terra se associa, naturalmente, ao trabalho.
O proprietário não cultivador não se enquadra, pois, no status de agricultor
uma vez que tal condição resulta basicamente por não caracterizar este no exercício
de atividade agrícola, ainda que de diversos modos se possa conceder o uso da terra e que igualmente sejam variadas as formas de relações entre os elementos subjetivos e objetivos que se podem criar nos regimes que reconhecem a autonomia privada e a livre iniciativa.13
Em seguida, verificamos que um outro instituto que se enquadra como sujeito de atividade agrária é a comunhão tácita familiar delineada por se estabelecer, entre os membros de uma família, indivíduos que vivem em comunhão não apenas de
10 Id., ibid. op. cit. p. 63. Neste sentido, o autor cita as lições de LODOVICO BARASSI, FRANCESCO SANTORO-PASSARELLI e PAOLO GRECO, todas em obras especializadas em Direito do Trabalho.
11 Id., ibid. op. cit. p. 64.
12 Id., ibid. op. cit. p. 64 e 65.
13 Id., ibid. op. cit. p. 65.
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teto e mesa, mas também de trabalho e de interesses (e, portanto, de lucros e perdas), conservando indiviso o patrimônio comum, sem obrigação de prestação recíproca de contas.
Neste caso, seu elemento diferenciador é a formação espontânea da relação,
determinada sem acordo expresso e fundamentada na affectio familiaris, mais dirigida ao fim de manter a recíproca assistência familiar ou espiritual dos componentes que a de aumentar os haveres, enquanto que na sociedade prevalecem a affectio societatis e o fim especulativo.14
Daí se ter considerado que, para a existência da comunhão tácita familiar, não
é indispensável a existência originária de um patrimônio familiar comum, sendo suficiente na determinação o surgimento da relação particular, tanto um patrimônio
comum, proveniente de título diverso daquele hereditário, como uma atividade comum de trabalho, cujos lucros confluem na formação de um pecúlio vantajoso, destinado individualmente às necessidades da família e a eventual aquisição de bens no
interesse do consórcio familiar.15
O núcleo familiar que se centraliza em torno da figura do agricultor assume,
inclusive, uma importância particular na disciplina jurídica do arrendamento e da
parceria. Este núcleo familiar atua, desta forma, como um organismo unitário produtivo.
Portanto, quanto à qualificação do agricultor, deve-se afirmar que o elemento
profissionalizante se configura para o trabalhador agrícola, quando este desenvolve
sua atividade em posição de autonomia plena, também por efeito dos particulares
vínculos contratuais assumidos para obter a disponibilidade do fundo.16
Contudo, podem ser verificadas formas mais amplas de organização da agricultura por efeito do fenômeno associativo, que dá lugar às diversas figuras de cooperativas agrárias.17
As cooperativas que interessam à atividade agrária podem ser de várias espécies: cooperativa constituída com escopo de empréstimo para o exercício de
uma empresa; cooperativa de produção e trabalho; cooperativa para o exercício
de empresas agrícolas; cooperativa para o uso e transformação industrial de produtos; cooperativa de consumo, venda e organização de produção; e cooperativa de seguro.
O consórcio real, por sua vez, é uma forma de organização que tem grande
importância em agricultura, constituindo-se entre vários proprietários de terras
que se agregam, não para exercer em comum uma atividade econômica com escopo de lucro, mas para a execução e exercício de obras materialmente incorpo14 Id., ibid. op. cit. p. 69.
15 Id., ibid. op. cit. p. 69.
16 Id., ibid. op. cit. p. 72.
17 Id., ibid. op. cit. p. 72 e 73.
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radas nos objetivos do grupo; não são, empresas agrárias, nem têm o requisito da
comercialidade.18
Nos contratos agrários, onde existem relações associativas há cooperação econômica, que por ser tutelada e disciplinada pela lei é também jurídica, verificandose o escopo de alcançar um resultado produtivo útil.
Os contratos agrários revelam haver, assim, o deslocamento da fase dinâmica
da produção agrícola de um sujeito para outro.
Por fim, cumpre destacar também que nada impede que certos produtos agrícolas não provenham de uma atividade que, sendo certamente agrícola, não seja
qualificada como empresa.
ALFREDO MASSART explica, neste sentido, que é pacífico em doutrina que
com a enumeração analítica o legislador quis evitar a incerteza de que qualquer atividade agrícola pudesse, por uma interpretação errada da norma, ser considerada
como empresa comercial e, por conseguinte, ser submetida à disciplina desta. Não
se podia prever, contudo, sequer hipoteticamente, a existência de empresas calcadas sobre formas particulares de cultivo de vegetais (por exemplo, hidropônicos,
etc.) ou sobre certas técnicas de criação como praticadas hoje.19
PAOLA ERCOLI dedica estudo à análise dos sujeitos empresários agrícolas, inclusive sob o aspecto comunitário, e anota a inserção do artigo 230 bis do Código
Civil Italiano que criou a figura duvidosa da empresa familiar.20
Para concluir, verifica-se que, embora não haja no Direito pátrio uma definição normativa expressa da atividade agrária, tal como existe no Código Civil Italiano
através do seu artigo 2.135,21 será sempre possível ao intérprete ou ao estudioso da
matéria classificar uma atividade como agrária, com base no que indicarem os diplomas legais existentes naquele ordenamento jurídico.
Ainda que não exista no Direito brasileiro uma enunciação objetiva do que
possa ser ou não considerada como atividade agrária, o artigo 92 da Lei n. 4.504 de
1964, o chamado Estatuto da Terra, determina, quando trata do uso ou posse temporária da terra, que:
a posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de
contrato expresso ou tácito, exercido entre o proprietário e os que
nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob a forma de ar18 Id., ibid. op. cit. p. 72 e 74.
19 MASSART, Alfredo. “Sintesis de Derecho Agrario”, 1ª edição, San José, Costa Rica: Editorial Sapiencia – Ediciones Guayacón, 1991.
20 ERCOLI, Paola. Los sujetos empresarios del sector agricola (Evolución hacia nuevas formas de las figuras economico - jurídicas), em ALFREDO MASSART, Sintésis de Derecho Agrario, op. cit. p. 177 e 179.
21 O artigo 2.135 do Código Civil Italiano dispõe: É empresário agrícola quem exercita uma atividade dirigida ao
cultivo do fundo, à criação de gado e às atividades conexas. Entende-se conexas as atividades dirigidas à transformação ou alienação de produtos agrícolas, quando entram no exercício normal de agricultura.
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rendamento rural, de parceria agrícola, agroindustrial ou extrativa, nos termos da lei.
Tal dispositivo legal localiza-se na Seção I, sob o título Normas Gerais, do Capítulo IV, em cujas seções II e III estão regulados os contratos de arrendamento rural e parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa.
CARLOS VATTIER FUENZALIDA atesta, com propriedade, que a inorganicidade formal das normas de Direito Agrário torna mais claro e palpável o fato de não
haver formulado ainda um conceito unitário de agricultura, mas tão somente a referência genérica de três subsetores da economia agrária que possuem uma tipicidade social mais definida historicamente. Estes são, com efeito, a atividade agrária, pecuária e atividade florestal.
CARLOS VATTIER FUENZALIDA conclui que o estudo da atividade agrária
compreende, também, três fases principais no ciclo produtivo da agricultura, representadas pela fase da produção propriamente dita e por suas atividades conexas, de
transformação e alienação dos produtos.22
Na lição de MARIO LONGO, tais fases delimitam, pois, categorias distintas de
atividades agrárias, a primeira destas categorias contendo aquelas que seriam as atividades diretamente agrárias, onde estão compreendidas todas aquelas atividades
empresariais que a lei especificamente considera como, por si mesmas, direta e necessariamente agrárias (agricultura e pecuária, por exemplo).
A segunda categoria, que BASSANELLI chama de atividades agrárias por relação, abrangeria, ao contrário, todas aquelas atividades que não são, em princípio,
agrárias mas que se transformam nestas quando se acham em uma particular relação com uma atividade da primeira categoria (a comercialização e transformação
dos produtos agrícolas, por exemplo).23
CLASSIFICAÇÃO DAS ATIVIDADES AGRÁRIAS
Já ressaltamos, no capítulo anterior, que o conceito de agricultura pode ser
analisado sob três ângulos: o subjetivo, o objetivo e o teleológico. Estudada a perspectiva subjetiva passemos então à análise do seu elemento objetivo, que corresponde à classificação propriamente dita da atividade agrária.
Inicialmente, é necessário que se tenha em mente, como pressuposto desta
classificação, o sentido que a terra assume para os agricultores, tal como um bem de
produção e um instrumento de trabalho. Assim, devem ser determinadas regras estáveis e sistemáticas, capazes de alcançar a clara identificação do que realmente se22 FUENZALIDA, Carlos Vattier. Concepto y tipos de empresa agraria en el derecho español, 1. ed., Leon: Editora
do Colegio Universitario de Leon: 1978, p. 100 e s.
23 LONGO, Mario. Profili di Diritto Agrario, 1. ed., Torino, G. Giappichelli, 1951, p. 180 e s.
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jam estas atividades agrárias, no intuito principalmente, de garantir aos agricultores
a possibilidade do exercício normal de sua profissão.24
Reconhecendo este pressuposto como verdadeiro, ANTONIO PALERMO continua o seu fundamental estudo da classificação das atividades agrárias asseverando,
com razão, que a investigação relativa à função e à posição dos sujeitos (individuais
e coletivos), participantes do uso agrícola da terra, deve ser completada com a indicação dos diversos tipos de atividades próprias da agricultura.25
De fato, o problema maior, colocado pelas ciências econômicas diz respeito,
em essência, à relação entre dois conceitos, os de natureza e de organização,
idéias que deverão ser consideradas a partir de seus significados específicos.
Por natureza, entende-se o complexo sistema de elementos e de forças
naturais que agem numa relação de cooperação, de antagonismo e de influência
recíprocas, determinando a formação, o desenvolvimento ou a perda dos produtos do solo.
Por organização, entende-se aplicação racional e ordenada, feita conforme
métodos e técnicas próprias da ciência das culturas agrícolas, das forças humanas e
de trabalho (manual e intelectual), destinadas a favorecer a produção agrícola e a
utilização e transformação dos produtos.26
Com base nestas noções básicas, é possível formular as características que
qualifiquem uma determinada atividade como agrária, ainda que por vezes o enunciado de uma definição expressa não tenha sido objeto de preocupação de alguns
ordenamentos jurídicos (tais como o brasileiro e o francês), devendo então se valer
o intérprete daqueles diplomas legais e dispersos que regulam situações agrárias
sem a sistemática de um código.27
Um exemplo deste trabalho de qualificação é, dentre as situações verificadas no Direito pátrio, a Súmula 196 do Supremo Tribunal Federal, a qual desconsidera os reflexos da ocorrência de uma atividade agrária quando dispõe sobre a
condição atribuída ao empregado de empresa industrial ou comercial, o qual
ainda que reconhecidamente venha a exercer qualquer atividade agrária, terá a
sua classificação profissional determinada pela mera verificação da categoria do
seu empregador.28
Por outro lado, a classificação das atividades condiciona-se por outra circunstância específica, qual seja a referente aos limites naturais que são impostos à produtividade do solo, além dos quais qualquer gasto de energia de trabalho e capitais
resultaria anti-econômico.
24 MALÉZIEUX, Raymond. Droit Rural, 1. ed., Paris: Presses Universitaires de France, 1973, p. 21 e ss.
25 PALERMO, Antonio. Op. cit. p. 79.
26 Id., ibid. op. cit. 79.
27 MEGRET, Jean. Droit de l’explotation agricole, 1. ed., Paris: Lavosier, 1990, p. 11 e ss.
28 ALMEIDA, Paulo Guilherme. Temas de Direito Agrário, 1. ed., São Paulo: LTr, 1988, p. 103.
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Verifica-se facilmente, portanto, a preponderância deste fator natural, com relação ao qual as forças humanas devem se adaptar, reconhecida a relação de estreita interdependência entre um elemento e outro.29
Esta dependência das condições climáticas e das leis biológicas de produção
determina o caráter aleatório desta atividade, conseqüência também de sua referida
e intensa vinculação com a terra.30
Tal elemento natural assume, destarte, uma função de importância no plano
institucional, ao determinar quais as formas mais adequadas de relações e de instrumentos contratuais necessários para o desenvolvimento dinâmico das próprias relações. Certo é, pois, que erraria quem quisesse sustentar a possibilidade de reformas
legislativas dos institutos de Direito Agrário, prescindindo das considerações sobre
as condições naturais.31
Isto posto, verificamos poder encontrar, neste primeiro modelo de classificação proposta, três espécies fundamentais de atividades nas formas organizativas
mais elementares da agricultura, dirigidas à produção, à transformação e à troca.32
Iniciemos com o exame das atividades diretamente dirigidas à produção direcionadas aos diversos produtos e aos diversos ciclos de produção. Nesta categoria
de atividades, podemos distinguir: 1) atividades dirigidas ao preparo da terra e das
culturas (alqueive, aradura, construção de canais de irrigação, obras de beneficiamento das terras); 2) semeadura, implantação de cultivo de árvores, estrumação);
3) o desenvolvimento completo do ciclo de produção impõe trabalhos complementares do solo e no cultivo, como a poda, até o momento da colheita, e a conservação dos produtos. Ainda nesta fase, pode-se impor a necessidade de uma primeira
transformação dos próprios produtos, o que pode ser executado no próprio âmbito da unidade produtiva de menor importância.33
O segundo grupo de espécies de atividades, referente aos processos de transformação dos produtos constitui-se da prática mais ou menos imediata, efetuada por parte do produtor ou de terceiros. Tais processos podem apresentar uma maior ou menor complexidade na sua realização, abrangendo desde as formas elementares até trabalhos de grande envergadura efetuados por conjuntos industrias independentes.34
Nesta fase, enquadram-se os trabalhos dirigidos à extração do princípio útil do
produto, através de procedimentos próprios a cada um (centrifugação, concentração, fermentação, distilação, etc.), ou atividades destinadas ao acabamento dos próprios produtos.
29 PALERMO, Antonio. Op. cit. p. 79.
30 MEGRET, Jean. Op. cit. p. 12.
31 PALERMO, Antonio. Op. cit. p. 79.
32 Id., ibid. op. cit. p. 80.
33 Id., ibid. op. cit. p. 81.
34 Id., ibid. op. cit. p. 81 e 82.
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O terceiro grupo, por usa vez, engloba as atividades dirigidas à troca de produtos, atividades estas que podem dar lugar a formas particulares de contratações,
freqüentemente reguladas pelos costumes locais ou da praça.
Os problemas surgidos neste último grupo de atividade agrária são complexos. A troca de produtos agrícolas interessa ao plano interno e ao plano internacional, o que implica salientar que o sistema econômico baseado na liberdade de troca
parte do ponto de vista dúplice: livre luta concorrencial internamente e o livre comércio a nível externo, vez que o princípio da livre concorrência tem grande importância no setor agrário, pois permite a livre localização da produção e da indústria,
ao mesmo tempo que favorece a eliminação das unidades produtivas insuficientes e
improdutivas.
O livre mercado possibilita, além disso, o entendimento entre as organizações
produtivas para alcançar defesa eficaz de preços e a inserção de produtos no mercado, ainda que admita, em períodos de depressão econômica e de maior desequilíbrio de produção, intervenções protetoras e integrativas do Estado, como, por
exemplo, aquelas que se concretizam em impostos alfandegários, cotas, estoques
obrigatórios, etc.35
Através desses mecanismos, sempre excepcionais numa economia de mercado, pode-se estabelecer o equilíbrio entre produção e consumo, além de assegurar
a aquisição de produtos de primeira necessidade.36
As atividades relativas à transformação e alienação de produtos representam
as atividades conexas, já referidas no enunciado do artigo 2.135 do Código Civil Italiano e presentes nos sistemas de produção agrária de todos os países.
Deve-se destacar, outrossim, que estas atividades, para que possam ser efetivamente consideradas conexas, não produzem, em virtude da própria natureza da idéia
de conexão, uma mutação na natureza jurídica da atividade sobre a qual opera, qual
seja a de produção de bens efetivamente “agrários”. Determina-se, isto sim, a sujeição
da própria atividade às normas que regulam o exercício da empresa agrária.37
Quanto ao primeiro grupo de atividades agrárias - das atividades dirigidas à
produção - temos dentre seus tipos aquele referente ao cultivo da propriedade rural, onde podem ser feitas distinções conforme a natureza diversificada dos produtos. Neste sentido, os autores costumam classificar do seguinte modo: 1) culturas
herbáceas (por exemplo, cerealicultura, a plantação de leguminosas, forragem); 2)
culturas arbóreas (vinicultura, cultivo de oliveiras com produção anual, plantações
destinadas à obtenção de madeira); 3) floricultura.38
35 Id., ibid. op. cit. p. 82.
36 Id., ibid. op. cit. p. 82.
37 MASI, Pietro. Le attività connesse, capítulo da obra coordenada por NATALINO IRTI, Diritto Agrario Italiano 1.
ed., Torino: UTET, 1978, p. 89 e ss.
38 PALERMO, Antonio. Op. cit. p. 84.
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Quanto ao segundo tipo de atividade agrária de produção, temos a silvicultura, a qual também é uma atividade técnica de cultivo, sendo dirigida à manutenção
do bosque, da mata, da floresta na sua eficiência produtiva, através de exploração
normal e racional que não implica, necessariamente, a periódica substituição das
plantas. Assinale-se que os autores ilustres da pioneira e relevante contribuição jusagrarista italiana elaboraram a classificação das atividades agrárias partindo do artigo 2.135 do Código Civil daquele país, tido como base sólida para todas as elaborações posteriores.
O terceiro tipo é aquele relativo à criação de animais. Inicialmente, face ao
modelo italiano, falava-se em criação de gado, posição hoje superada pela moderna
referência aos animais destinados ao corte, para obtenção de leite e lã, e aqueles de
tração, ainda que exercida fora do âmbito da empresa agrária.
A criação de gado, enquadrada como atividade típica de agricultura, pode se
servir não apenas de pastos naturais, como também daqueles artificiais em rotação
com outras culturas, atividade esta sempre considerada intimamente ligada ao cultivo do solo.
Por outro lado, não se pode considerar como atividade agrária nem industrial
a criação de animais de peles ou de valor particular, ou seja, aquelas atividades zootécnicas com usos absolutamente estranhos, sob o ponto de vista técnico-econômico, às tradicionais atividades de exploração agrícola do solo (por exemplo: para a
produção de soros, vacinas e outros produtos medicinais, etc.39
A criação de cavalos de corrida pode igualmente ser objeto de indagações, devendo-se avaliar se essa atividade, de caráter acessório, estaria abrangida, em sentido quantitativo e econômico e não qualitativo, no complexo da empresa.
Completando o quadro, cumpre mais uma vez analisar as atividades agrárias
dirigidas à transformação e alienação de produtos, quando estas se inserem no exercício normal da agricultura e são atividades agrícolas.
O critério da normalidade surge como fator integrativo e específico da conexão (objetiva) entre as atividades agrícolas, tendo particular importância para fins de
disciplina legislativa para regular empresas.40
Sob o ponto de vista mais geral, pode-se afirmar que as atividades de transformação e de alienação são agrárias se ligadas, com fortes vínculos de correção, para
com a empresa agrária, no sentido de que estas atividades devem ser destinadas a
servir à utilidade da própria empresa.
As considerações desenvolvidas em relação às diversas fases da produção e da
transformação dos produtos valem para esclarecer o âmbito da atividade agrária e
para evidenciar os limites entre esta e a atividade industrial.41
39 Id. Ibid. op. cit. p. 85.
40 Id. Ibid. op. cit. p. 85.
41 Id. Ibid. op. cit. p. 85 e 86.
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Neste particular, verifica-se que a doutrina e jurisprudência tomaram em consideração diversos tipos de critérios para circunscrever os limites entre atividade
agrária principal e as atividades conexas.
Uma abordagem refere-se ao critério da necessidade e considera como agrárias todas as atividades necessárias ao desenvolvimento das atividades típicas, a saber: a agricultura, silvicultura, criação de animais e as atividades conexas - essas são
sempre exercidas pelo agricultor - mas podem dar lugar a indústrias autônomas, às
quais não pode ser estendido o regime particular das empresas realmente agrárias.
Trata-se, fundamentalmente, de matéria mutável, conseqüência da contínua
evolução das formas fundamentais das atividades agrárias, das afinidades normalmente desenvolvidas pelo agricultor, mas também, em relação ao processo dos métodos e das técnicas, pela ampliação das disposições legislativas.42
Por sua vez, o critério da normalidade implica dever-se estabelecer uma relação necessária entre a empresa, considerada na sua entidade (subjetiva e objetiva),
e as atividades que esta desenvolve nos setores típicos da atividade agrária, com
atenção para o conjunto único e incindível do ciclo de trabalhos desenvolvidos pelo
empresário agrícola para alcançar os produtos imediatos e diretos da terra e tirar os
benefícios nos moldes próprios da agricultura.43
Obviamente, o método de cultivo, o ciclo produtivo, a natureza das culturas,
a transformação e a conservação dos produtos, a sua colocação no comércio devem
ser considerados em relação à extensão e potencialidade do organismo produtor e
à sua aparelhagem e organização no ponto de vista técnico, sobre o qual influi a preparação e a capacidade profissional do empresário e de seus colaboradores e empregados.
A determinação do que se insere no âmbito da atividade agrária exige observar aquilo em que normalmente atua quem se denomina agricultor, em um período
histórico e numa determinada zona.
O critério da acessoriedade vale utilmente para integrar o critério da normalidade, no sentido de que a atividade de transformação e de alienação dos produtos
é individualmente complementar à atividade fundamental de produção agrícola e
pode se servir de sistemas e de métodos que devem, necessariamente, ser considerados em relação aos perfis típicos da empresa.44
O critério da prevalência prevê que se a atividade de transformação ou de
alienação dos produtos agrícolas assume, no quadro empresarial, posição de preva42 Id. Ibid. op. cit. p. 86 e 87.
43 Id. Ibid. op. cit. p. 88. Sobre a importância do critério da normalidade se manifestam GIORGIO SCHIANO DI
PEPE, “Impresa agricola e agrarietà”, in L’impresa agricola, Milano: Giuffrè Editore, 1978, p. 157; MARIO GHIDINI,
“Lineamenti dell’ Diritto della impresa”, 2ª ed., rev. e at., Milano: Dott. A Giuffrè Editore, 1978 e como já noticiado; PIETRO MASI, “Le attività connesse”, capítulo da obra “Diritto Agrario Italiano”, coordenada por NATALINO
IRTI, 1ª edição, Torino, UTET, 1978, p. 99.
44 Id. Ibid. op. cit. p. 88.
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lência, de modo a aparecer evidente que o fundo some à indústria, como o meio
para o fim, exorbita-se dos limites de uma atividade acessória de produção e se cria
uma atividade comercial ou industrial verdadeira e própria.45
Após tal enunciado de critérios, podem ser considerados como exemplo de
atividades conexas: a floricultura; a criação de coelhos desenvolvida em fundos rústicos dos quais o empresário retira os alimentos para os animais; a criação do bichoda-seda, que usufrua de adequadas culturas de amoreira; a transformação do leite
em queijo, do trigo em farinha, da oliva em óleo, etc. Contudo, as mesmas operações assumem caráter industrial constituem-se em objeto das atividades de organizações autônomas, ou seja, quando, em substância, nenhuma utilidade funcional e
instrumental essas empresas retirarem do solo destinado ao uso agrícola.46
Analisados os critérios, podemos finalmente elencar características que facilitam o enquadramento de uma determinada atividade como agrária ou atividade industrial.
Nas atividades industriais, prevalece, sobretudo, o uso das máquinas, de energias motrizes, de complexos processos de produção com o emprego de meios químicos, além de uma forte concentração de trabalhadores no posto de trabalho. No
trabalho agrário, por sua vez, se desenvolve em condições materiais e de ambiente
bem diferentes, com o emprego prevalecente de energias laborativas individuais nas
várias e diferentes operações de cultivo.47
Todavia, é preciso reconhecer que se vão estendendo, no campo agrícola,
também os métodos de organização técnica inicialmente afeitos somente à indústria
com o intuito de se obter uma exploração mais racional e integral exploração dos
recursos da terra, com o emprego de máquinas, e energias motrizes em prejuízo da
mão de obra humana.
Surgem, com isto, dificuldades na determinação das normas aplicáveis. Quanto ao risco profissional, por exemplo, este deverá estar coberto pelo seguro industrial quando houver organização sistemática do trabalho dirigida a qualquer espécie
de produção, independentemente de sua importância e do número de pessoas que
disto participam vez que sempre que é feito uso de máquinas incide um risco genérico, gerando a obrigação de seguro para os infortúnios industriais.48
Com base no disposto pela legislação nacional, RAYMUNDO LARANJEIRA,
bem representando a doutrina agrarista nacional que tratou do tema, sustenta, com
razão, que a atividade agrária é gênero, devendo ser assim também interpretada no
Brasil. Seriam suas espécies, na visão do eminente agrarista, a atividade agrária de
produção, a atividade agrária de conservação dos recursos naturais renováveis e a
45 Id. Ibid. op. cit. p. 88.
46 Id. Ibid. op. cit. p. 88.
47 Id. Ibid. op. cit. p. 89.
48 Id. Ibid. op. cit. p. 89 e 90.
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atividade agrária de experimentação e pesquisa. Reconhecendo a existência daquelas referidas atividades conexas, acrescenta o autor que “estritamente vinculada a estas encontramos, também, a atividade complementar da atividade agrária, que cultiva o fluxo de circulação dos produtos da terra.49
Segundo esta classificação, o primeiro grupo das atividades agrárias é composto também por aquelas de produção, onde se visa a obtenção de gêneros de consumo ou matéria prima; trata-se, pois, de atuação num setor primário da economia,
que se destina a obtenção de produtos para atender às exigências básicas do agricultor ou as de terceiro, bem como promover o aproveitamento de outros materiais
que sirvam ao preparo de outros bens. Complementando, RAYMUNDO LARANJEIRA, esclarece que, todavia,
a atividade agrária de produção não se limita aos misteres do referido setor econômico primário, pois é suscetível de enveredar
pelo setor secundário, o de beneficiamento ou transformação de
matéria prima. No primeiro caso, nos deparamos com a atividade
produtiva agrária por excelência, que se desdobra nos tipos tradicionalmente conhecidos de exploração rural: lavoura, pecuária,
hortigranjearia, extrativismo e exploração florestal. Na segunda
hipótese, não encontramos exemplo de exploração agrária típica,
e sim de produção rural atípica: a agroindústria.50
Verifica-se, outrossim que as atividades mais típicas se desenvolvem em imóvel rural, sendo que prevalecente o critério da destinação, tanto pode se localizar em
área rural como urbana.
Como primeira operação de exploração rural típica, temos a lavoura, que
pressupõe as tarefas de semeadura ou plantio e os tratos suplementares, se compatíveis com a colheita. Noutra face, compreende as
culturas permanentes e as temporárias, consoante ofereçam uma
produção mais ou menos duradoura ou imponham uma renovação imediata de cultivo, após cada resultado.
Quanto às culturas de renovação imediata de plantação, trata-se daquelas que
se caracterizam pela transitoriedade.51
A segunda atividade referida é a pecuária, que tem por objeto a “criação de
animais, que devam ser objeto de uma avaliação econômica gerando produtos
49 LARANJEIRA, Raymundo. Op. cit. p. 68.
50 Id. Ibid. op. cit. p. 68 e 69.
51 Id. Ibid. op. cit. p. 69 e 70.
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para a alimentação e subprodutos necessários à confecção de gênero diferente,
como vestimentas de couro, farinha de osso, lã”. A pecuária propriamente dita só
abrange espécimes de grande e médio portes, já que as de pequeno porte integram
a sub-categoria de exploração granjeira.52
A terceira atividade - a hortigranjearia ou hortifrutigranjeira,
é, uma atividade propícia às pequenas glebas, mais próximas aos
centros urbanos, onde atende às necessidades alimentares mais
imediatas. Abrange os cuidados com animais de acanhados tamanhos, aves de toda sorte, domésticas ou domesticáveis, até insetos,
como a abelha. Abarca, ainda, os vegetas - normalmente de fácil
perecimento - como os produtos hortícolas, e se liga, ainda a certas variedades de plantas frutíferas e floríferas.53
A quarta atividade - o extrativismo - englobaria
o apanho, captura ou extração de produtos de origem vegetal ou animal, que jamais puderam ser tratados ou cultivados antes da própria
obtenção........ os produtos obtidos da atividade extrativista são produtos silvestres, nativos, oferecidos prontos ao homem pela natureza, sem
maiores labores para este, senão da apropriação em si mesma. Representa, em suma, aquela atividade desempenhada pelo agricultor ou
extrator, que se concretiza na coleta, extração ou captura de produtos
vegetais ou animais, gerados espontaneamente pela natureza e em
cujo ciclo biológico não incidiu a intervenção humana.54
Sustentam, com efeito, neste particular, que
é irrecusável conferir essência rural ao mister de obtenção de produtivos nativos, seja à conta de intuito alimentar, seja à conta das
vantagens do mercadeio, desde que se conduza com regularidade
pelo próprio detentor do imóvel onde são conseguidas as presas.
Sendo, nestes termos, bens sujeitos, de utilização econômica, produtos da terra, de um fundus certas parcelas da fauna silvestre ou
agrícola devem ser consideradas como objeto de atividade agrária, na forma da exploração rural típica.
52 Id. Ibid. op. cit. p. 70.
53 Id. Ibid. op. cit. p. 70 e 71.
54 Id. Ibid. op. cit. p. 71 e HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Atividade extrativa (parte especial), em Revista de Direito Civil. Imobiliário, Agrário e Empresarial, v. 34, São Paulo: RT, 1985.
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Para RAYMUNDO LARANJEIRA:
Em certas circunstâncias, porém, as atividades extrativas não se
enquadram, juridicamente, como atividades agrárias de produção. Há determinados produtos selváticos que, longe de deverem
ser fruídos pelo homem, merecem, antes, que sejam considerados,
máxime para que se evite a extinção da espécie, para que se preserve a sua raridade ou beleza. No entanto, nem por isso perdem
a sua conotação agrária ou rural pois, embora saindo do âmbito
da atividade agrária de produção, passam para o âmbito da atividade agrária de conservação dos recursos naturais renováveis,
que é outra espécie de atividade agrária estudada pelo Direito
Agrário, através dos princípios e leis relativas à proteção, à flora e
à fauna silvestres.55
Agraristas nacionais valem-se, portanto, como argumento para a inclusão desta classe de atividade dentre as agrárias, das características próprias e peculiares do
meio ambiente, encontradas no Brasil e distintas do existente na Europa, o que implicaria o dever de busca de um tratamento doutrinário e legislativo mais flexível, capaz de responder a estas mesmas peculiaridades.56
A quinta atividade agrária de produção é a exploração florestal, ou seja, a utilização de florestas que o Estatuto da Terra, no artigo 4º, parágrafo único, letra a determina seja racional, realizando-se mediante planejamento adequado.57
Para LARANJEIRA: “Em se considerando a massa florestal, implicando a existência de vegetação de médio e grande portes, tratada racionalmente, saímos de
idéia do extrativismo para a de silvicultura”.58
Verificamos, também, o reconhecimento neste modelo de classificação, de
outra espécie de tais atividades de produção: a exploração rural atípica - a agroindústria. Adentramos, desta forma, no setor secundário da economia, qual seja o que
se ocupa do beneficiamento e transformação de matéria prima.
Inicialmente, cumpre reafirmar que a atividade agroindustrial também é de produção, originando bens que têm a sua utilidade específica e vinculados ao setor secundário, uma vez que pressupõe o uso de insumos de primeira produção, a matéria prima.
“A agroindústria é fenômeno que ocorre para a especificação dos frutos
55 Id. Ibid. op. cit. p. 71.
56 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Atividade extrativa (parte geral), Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, v. 33, São Paulo: RT, 1985, p. 80 e 81.
57 LARANJEIRA, Raymundo. Op. cit. p. 72.
58 Id. Ibid. op. cit. p. 72.
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da terra, isto é, para conseguir outra espécie ou dar nova característica aos
produtos primários.” É, em suma, atividade industrial com a presença do elemento agrariedade, tal como ocorre na confecção de sacos, preparo de vinho em
que utilizam frutos agrários. Tais produtos devem pressupor, assim a necessária
conotação rural”.59
RAYMUNDO LARANJEIRA pondera que
mesmo aproveitando produtos rurais típicos, uma indústria é
tão suscetível de ser classificada agrária como não sê-lo. Tudo
está a depender da maneira com que se engate o vínculo entre
a atividade de produção, que é rural, por essência, e a atividade de produção secundária, que é a industrial, propriamente
dita.60
Há, ainda, um outro requisito para se configurar a atividade agroindustrial: a existência de uma dupla conexão com o setor primário “usar a matériaprima típica agrária e exercitar-se nos mesmos limites fundiários onde ela foi
originalmente conseguida”.61 Baseia-se esta verificação no fato de só “a terra,
elemento que vai municiar os frutos de que a atividade industrializante se
vale, somente ela se apresenta dotada de essência agrária típica.” esta é a
premissa”.62
Mais um tipo de atividade agrária referida por alguns agraristas, sobretudo
brasileiros, talvez em face do Estatuto da Terra e da Constituição Federal é aquela
referente à conservação de recursos naturais.
RAYMUNDO LARANJEIRA por, exemplo,
destaca a existência de determinados atos no mundo rural, que se
praticam com vistas, diretamente, a preservar os produtos colhidos
em regular atividade agrária de produção; outros que revelam
cuidados indiretos para beneficiá-los, no próprio processo produtivo. Os primeiros podem indicar preocupação com a sanidade
dos frutos rurais, como o combate às pragas e doenças, o armazenamento, a silagem. Os segundos podem induzir tarefas básicas,
como a valorização regional, como os planos de feitura de açudes
públicos, canais de irrigação.63
59 Id. Ibid. op. cit. p. 73.
60 Id. Ibid. op. cit. p. 73.
61 Id. Ibid. op. cit. p. 73.
62 Id. Ibid. op. cit. p. 74.
63 Id. Ibid. op. cit. p. 78.
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E continua: “Assim, a conservação dos recursos naturais é uma incumbência ínsita no atendimento da própria atividade agrária da produção, estranhando a tarefa adjutória de estímulo e resguardo dos frutos da terra”.64
A legislação nacional vigente a respeito da preservação de recursos naturais foi
elaborada a partir de 1965: Código Florestal, Lei número 4.771, de 15 de setembro
de 1965, Código de Caça, Lei número 5.197, de 3 de janeiro de 1967 e Código da
Pesca, Decreto-Lei número 221, de 28 de fevereiro de 1967.
O Estatuto da Terra permite, por sua vez, a desapropriação de terras para que
nestas se criem áreas de proteção à flora, à fauna e a outros recursos naturais.
Por fim, o terceiro tipo de atividade agrária é a de pesquisa e experimentação,
a qual atua também a partir da atividade agrária de produção e da atividade agrária
de conservação dos recursos naturais renováveis. Sua previsão legal encontra-se no
artigo 10 do Estatuto da Terra quando dispõe:
O Poder Público poderá explorar, direta ou indiretamente, qualquer imóvel rural de sua propriedade, unicamente para fins de
pesquisa, experimentação, demonstração e fomento, visando ao
desenvolvimento da agricultura, a programas de colonização ou
fins educativos de assistência técnica e de readaptação.65
Em conclusão, verifica-se que a classificação das atividades agrárias, tal como
demonstram os exemplos e as referências citadas, estabelece-se a partir de uma enumeração exemplificativa e não taxativa. Com base nos critérios aludidos e nas relações entre as diversas atividades, torna-se possível identificar os elementos característicos das atividades agrárias principais, de suas atividades conexas, bem como de
eventuais atividades atípicas, consideradas agrárias em face das conseqüências do
próprio regramento dos temas e institutos do Direito Agrário, dependentes, sobremaneira, de uma legislação especial e dispersa.66
64 Id. Ibid. op. cit. p. 79.
65 Id. Ibid. op. cit. p. 82.
66 MASI, Pietro. Op. cit. p. 104 e ss. que estuda as atividades atípicas.
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ALIMENTOS DECORRENTES DO PARENTESCO,
DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL
Ruth Maria Junqueira de Andrade Pereira e Silva
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo -PUC-SP
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo dissertar sobre alimentos decorrentes do
parentesco, do casamento e da união estável. Tendo em vista a imensa abrangência do tema e as inúmeras obras que já foram lançadas a este respeito, entendemos ser mais proveitoso se nos detivermos mais longamente nas alterações realizadas pelo novo Código Civil - pela Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002
-, que entrou em vigor onze de janeiro de 2003, mercê do que discorreremos
mais brevemente sobre o que podemos chamar de teoria geral dos alimentos.
O ser humano, ao contrário dos outros animais, necessita de maiores cuidados por um longo período de tempo na infância e, depois, na velhice, sendo
certo que se os pais não alimentarem o recém-nascido ele fatalmente morrerá.
As pessoas longevas também podem perder as forças para trabalhar e se sustentar, necessitando do auxílio de seus descendentes. Assim, a fim de proteger o
direito à vida, o Estado tornou obrigatório o dever de sustento entre pais e filhos menores e a obrigação alimentar entre descendentes e ascendentes e colaterais até o segundo grau.
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Pontes de Miranda ensina que a palavra alimentos na linguagem comum “significa o que serve à subsistência animal” e juridicamente compreende “tudo o que
é necessário ao sustento, à habitação, à roupa”.1
Yussef Cahali afirma que o ser humano, por ser carente desde a sua concepção, é incapaz de produzir o necessário para a sua sobrevivência e, por isto, tem o
direito de ser nutrido por seus responsáveis. Devido a isto define vulgarmente a palavra alimentos como: “tudo aquilo que é necessário à conservação do ser humano
com vida”.2
Sílvio Rodrigues define alimentos como “a prestação fornecida a uma pessoa,
em dinheiro ou em espécie, para que possa atender às necessidades da vida”.3
Sílvio Venosa ensina que “alimentos, na linguagem jurídica, possuem significado bem mais amplo do que no sentido comum, compreendendo além da alimentação, também o que for necessário para a moradia, vestuário, assistência médica e
instrução”.4
Moura Bittencourt sustentava que:
A idéia de alimentos, na técnica jurídica, prende-se a relação que
obriga uma pessoa a prestar à outra o necessário para sua manutenção e, quando o credor for menor, também o necessário para
sua criação e educação. Tanto pode consistir em pensão pecuniária como em espécie, mediante o fornecimento de hospedagem e
sustento.5
Por fim, ressaltamos que o Código Civil Francês no art. 203 usa os vocábulos
alimentar, manter e educar (“nourrir, entretenir et élever”) para definir o que são
alimentos, enquanto Código Civil Português, no art. 2003, estatui que é o indispensável ao sustento, habitação e vestuário e à educação se o alimentando for menor.6
Facilmente deduzimos que a obrigação alimentar faz parte dos direitos individuais, privados, mas que adquire caráter público por se fundamentar no direito à vida,
esta talvez seja a melhor explicação para o novo Código Civil ter tornado irrenunciável
o direito a alimentos, quando a jurisprudência caminhava em sentido contrário.
Em relação ao direito francês, Alain Bénabent afirma que a obrigação alimentar é de ordem pública, porque ela não concerne apenas aos interesses privados do
1 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, p. 253.
2 Yussef Said Cahali. Dos Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2002, p. 15.
3 Silvio Rodrigues. Direito civil: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 6, p. 418.
4 Sílvio Venosa. Direito civil: direito de família. São Paulo: Atlas, 2002, vol. 6, p. 358.
5 Edgard de Moura Bittencourt. Alimentos. São Paulo : Editora Universitária de Direito, 4ª ed., 1979, p. 11.
6 O art. 203 do Código Civil Francês estabelece que: “Les époux contractent ensemble, par le seul fait du marriage,
l’obligation de nourrir, entretenir et élever leurs enfants”.
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alimentando, mas igualmente ao interesse geral: “L’obligation alimentaire est d’ordre public, car elle ne concerne pás seulemnet lês intérêts prives du créancier,
mais également l’intérêt general”.7
Além disto, o tema alimentos se envolve com o que entendemos por família
ou entidade familiar, outro conceito que ao logo do tempo sofreu profundas modificações.
Classicamente, a família, célula básica da sociedade, era composta de pai e
mãe casados entre si conforme a legislação civil e filhos. A Constituição Federal, em
seu art. 226, § 4º concedeu status jurídico à família monoparental, ou seja, a formada por pai ou mãe e filhos. O mesmo ocorreu com a união estável, a qual a Constituição também reconhece como entidade familiar, art. 226, § 3º. Seguindo este mesmo caminho, a legislação infraconstitucional (Leis 8.971/94 e 9.278/96) e agora o
novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002) não poderiam deixar de incorporar a mesma
tendência e passa a legislar sobre união estável, tendo, inclusive, o novo Código dedicado um título especial a seu respeito (Livro IV, Título III).
A doutrina tem entendido que as normas relacionadas com a obrigação alimentar são de ordem pública tendo em vista que fazem parte de um dos direitos essenciais da personalidade (direito à vida), o que na definição de Cahali8 pode ser
considerado um interesse de natureza superior e, não apenas egoístico-patrimonial,
que se poderia qualificar como um interesse público familiar.
Analisando a evolução doutrinária acima resumida, podemos facilmente vislumbrar a grande importância da obrigação alimentar e a infinidade de questões jurídicas
que a envolve, por estar intrinsecamente relacionada com o direito à vida e com a concepção de família. Só por isto, já teríamos razão suficiente para estudarmos tema de tamanha importância para o ser humano. Além disso, vivemos um período de grandes
alterações nos valores sociais, nas relações sociais e nas legislações que lhe são pertinentes, o que torna mais instigante o estudo e as relações sobre os alimentos.
Por fim, cumpre observar que, como a Lei 10.406 entrou em vigor em 10 de
janeiro de 2003, trataremos ao longo deste trabalho o Código Civil de 1916, como o
antigo Código Civil, e o Código Civil de 2002, como o Código em vigor.
1.
HISTÓRICO
Segundo Áurea Pimentel, nos primórdios da civilização não havia regra jurídica impositiva da prestação alimentícia, a qual era prestada como cumprimento de
um dever moral, sendo concedida pietatis causa.9
7 Alain Bénabent. Droit civil: la famille. 10ª ed. Paris: Litec, 2001, p. 485.
8 Yussef Said Cahali. Dos Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2002, p. 34.
9 Áurea Pimentel Pereira. Alimentos: no direito de família e no direito dos companheiros. Rio de Janeiro: Renovar,
1998, p. 2.
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No direito romano várias eram as causas que ensejavam a obrigação alimentícia: convenção das partes; testamento; relação de patronato e tutela. Mas, a doutrina é pacífica no sentido de que, nos primórdios da legislação romana, as relações familiares não geravam obrigação alimentar. Isto se deve à forma de constituição da
família romana: centrada no pater familias. O único vínculo existente entre os integrantes do grupo familiar era o derivado do pátrio poder. 10
Não se sabe exatamente a partir de que momento os laços familiares tornaram-se causa da obrigação alimentar no direito romano, mas se presume que isto
ocorreu a partir do momento em que a estrutura familiar romana começou a se alterar. Sabe-se que, certamente, no direito de Justiniano, as relações de parentesco
já ensejavam a obrigação alimentícia.
Conforme lição de Yussef Cahali, o direito canônico ampliou consideravelmente a obrigação alimentar, inclusive na esfera das relações extrafamiliares.11
No que concerne ao Brasil, a obrigação alimentar já era prevista nas Ordenações Filipinas, que tiveram aplicação em nosso país. O assento 09.04.1772 previa que
cada um deveria garantir e prover a sua própria subsistência, mas estabelecia algumas exceções como nos casos de descendentes legítimos e ilegítimos, ascendentes,
irmãos e outros consangüíneos.
Na Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas, há vários dispositivos
concernentes à obrigação alimentícia.
O Código Civil de 1916 previa, nos artigos 231, III e IV; 233, IV e 396 a 405 a
obrigação alimentar decorrente das relações de parentesco. Depois disto, várias outras leis esparsas foram editadas sobre os alimentos como: a Lei 8.971/94 que “regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão” e a Lei 9.278/96 que regula
o § 3º do art. 226, da Constituição Federal, o qual eleva a união estável entre o homem e a mulher à condição de entidade familiar.
Por fim, O Código Civil vigente, apesar das inúmeras falhas que possui,
muitas devido ao longo período de latência do anteprojeto e do projeto, traz
boas alterações no que se relaciona à matéria, como, por exemplo, o art. 1.704,
o qual permite que o cônjuge declarado culpado pela separação receba os alimentos indispensáveis à sua sobrevivência. Mas, isto será visto mais detalhadamente mais à frente.
2.
CLASSIFICAÇÃO
Vários são os critérios adotados pelos doutrinadores a fim de classificar a obrigação alimentícia. Procuraremos enumerar os mais importantes e interessantes.
10 Yussef Said Cahali. Dos Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2002, p.41/42.
11 Ibid., p. 45.
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2.1 Quanto à natureza: naturais ou necessários e civis ou côngruos
Quanto à natureza, os alimentos podem ser naturais ou necessários, ou seja,
restringem-se apenas ao necessário para a manutenção das necessidades básicas de
uma pessoa.
Alimentos civis ou côngruos incluem mais que o justamente necessário à sobrevivência. Têm o escopo de manter o status de vida do alimentando, a sua condição social. Devem abranger necessidades de caráter intelectual, moral e o lazer, obviamente sempre sob o postulado do binômio necessidade/possibilidade.
Esta não é uma classificação de caráter meramente doutrinário, tanto que o
Código Civil vigente dela se utiliza nos arts. 1.694, § 2º e 1.704, parágrafo primeiro,
como veremos mais à frente.
A nomenclatura necessários ou côngruos adveio do Código Chileno, art. 323,
além de ser a usada pelo venezuelano Lopes Herrera.12
2.2 Quanto à causa jurídica: legais, voluntários ou indenizatórios
Três são as causas jurídicas que podem fazer com que uma pessoa torne-se alimentante de outra (alimentando): a lei, a vontade das partes ou a prática de um ato
ilícito.
Legítimos são os alimentos devidos em decorrência de uma obrigação legal, a
qual pode advir do parentesco, casamento ou união estável. Apenas esta espécie de
alimentos faz parte do direito de família, portanto é a única que nos interessa no
presente trabalho.
Yussef Cahali esclarece que
Voluntários são os que se constituem em decorrência de uma declaração de vontade, inter vivos ou mortis causa; resultantes ex dispositione hominis, também chamados obrigacionais, ou prometidos ou deixados, prestam-se em razão de contrato ou de disposição de última vontade, pertencem, pelo que, ao Direito das Obrigações ou ao Direito das Sucessões, onde se regulam os negócios jurídicos que lhes servem de fundamento.13
Indenizatórios visam a reparar o dano ex delito por alguém causado. Previstos
nos arts. 1.537, II e 1.539 CC/16 ou 948, II e 950 CC/02, integram o direito das obrigações.
12 F. Lopes Herrera. Derecho de familia. Caracas: Universidad Católica, 1970, p. 123.
13 Yussef Said Cahali, op. cit., p. 22.
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2.3 Quanto à finalidade ou quanto ao montante
Yussef Cahali, aproveitando os ensinamentos de Limongi França, classifica
como provisionais, provisórios ou in litem os alimentos que são concedidos para a
manutenção do suplicante e de sua prole na pendência de processo. Têm o escopo
de manter o requerente até o final da lide e de cobrir as despesas desta.
O mesmo autor distingue como sendo regulares ou definitivos aqueles estabelecidos pelo juiz na sentença ou mediante acordo das partes.14
O Professor Nelson Luiz Pinto propõe uma classificação diferente. Para ele, no
que concerne à finalidade, os alimentos dividem-se em regulares (aqueles que suprem todas as necessidades do alimentando, de forma “permanente”) ou provisionais (aqueles que suprem as necessidades básicas do alimentando, de forma temporária). Já no que concerne ao montante os alimentos dividiriam-se em definitivos ou
provisórios, já que o mesmo varia conforme sejam fixados definitivamente ou provisoriamente.15
Por outro lado, Carlos Roberto Gonçalves classifica os alimentos em relação à
finalidade em: definitivos (ou regulares) e provisórios e provisionais.16 Definitivos
são os alimentos de caráter permanente, estabelecidos pelo juiz na sentença ou em
acordo de partes, devidamente homologado, ainda que sujeitos a eventual revisão.
Provisórios seriam os fixados liminarmente no despacho inicial proferido na ação de
alimentos, de rito especial estabelecido pela Lei 5.478/68, sendo necessária a prova
pré-constituída da relação de casamento, companheirismo ou parentesco, para que
se tenha direito a esta espécie de alimentos. Provisionais seriam os determinados
em medida cautelar preparatória ou incidental e destinam-se a manter o suplicante
durante a tramitação da lide principal, por exemplo, durante a ação de investigação
de paternidade o requerente interpõe ação cautelar de alimentos provisionais.
Como toda cautelar faz-se necessária a prova do periculum in mora e do fumus
boni iuris, sendo que dependem da análise objetiva e subjetiva do juiz, já que não
há prova definitiva da relação de parentesco, mas apenas indícios.
Por fim, nunca é demais lembrar a lição de Pontes de Miranda o qual ensinava que:
Alimentos provisionais são os que se destinam a prover às despesas
da causa e sustento do alimentário no decurso do litígio (alimenta
14 Limongi França. Manual de Direito Civil II. São Paulo: Editora RT, 1972, p. 297, apud Yussef Said Cahali. Dos Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª ed., 2002, p. 27.
15 Conteúdo retirado das aulas ministradas pelo Professor Nelson Luiz Pinto no curso de Direito de Família I, integrante do programa de pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no segundo semestre de 2002.
16 Carlos Roberto Gonçalves. Direito de família 2. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 132.
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in litem); têm por fim habilitar o autor com os meios de realizar o
seu direito. Os alimentos provisionais, ou pendente a lide, compreendem: a) o necessário à mantença, roupa, remédios etc; b) o
necessário para a procura e produção das provas na causa de que
se tratar; c) as custas e mais despesas regulares feitas em juízo; d)
honorários dos advogados; e) a execução da sentença. Tais alimentos são prestados à medida que se fazem necessários, ou são
arbitrados, e, nesse caso, o alimentário não pode pedir mais do
que aquilo que se arbitrou.17
3.
DEVER DE SUSTENTO E OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
Dever de sustento e obrigação alimentar não são expressões exatamente sinônimas.
Entre os pais e filhos menores, cônjuges e companheiros existe dever de sustento e de mútua assistência (CC/02 arts. 1.566, III e IV e 1.724). A obrigação alimentar é fundada no parentesco (art. 1.694, CC/02), sendo circunscrita aos ascendentes,
descendentes e colaterais até o segundo grau, com reciprocidade.18
Arnoldo Wald salienta que a obrigação de sustento abrange a educação e criação dos filhos (384 CC/16) e a mantença da família (art. 233, CC/16, em relação ao
marido e 277, CC/16, em relação à esposa), sendo muito mais ampla que a de fornecer alimentos nos casos de parentesco. Assim, os pais não têm em relação aos filhos menores, apenas o dever de fornecer-lhes o que for essencial para a sua sobrevivência, mas sim o de prover a todas as suas necessidades, de acordo com as possibilidades econômicas do momento e a sua situação social.19
A Professora Maria Alice Lotufo ensina que:
O dever de sustento dos filhos menores implica para o pai e a mãe
uma obrigação incondicionada, pois independe da necessidade
daqueles, sendo representada pelo dever que ambos genitores têm
de bem criá-los, educá-los e protegê-los. Mesmo ganhando pouco,
não se isentam dessa obrigação porque o dever de sustento não
está ligado às possibilidades econômicas do devedor como ocorre
com a obrigação alimentar caracterizada no art. 397 do CC. Também, diferentemente dessa obrigação ela não é recíproca, quer dizer não existe dever de sustento dos filhos em relação aos pais,
mas, apenas, uma obrigação alimentar que resultará da combi17 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Tomo 9. 1ª ed., Campinas: Bookseller,2000, p. 257.
18 Carlos Roberto Gonçalves. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 134 e 135.
19 Arnoldo Wald. O novo direito de família. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 44 e 45.
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nação do binômio necessidade-possibilidade, por estarem ligados
pelo vínculo de parentesco.20
Tal distinção fica evidente na ementa da apelação número 000.226.360-6/00
do TJMG - Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
ALIMENTOS - FILHO MAIOR - OBRIGAÇÃO E NÃO DEVER DE SUSTENTO - PRESSUPOSTOS. Sendo de duas modalidades os encargos legais a que se sujeitam os genitores em relação aos filhos,
quais sejam dever de sustento e obrigação alimentar, aquele deixa de existir com a cessação do pátrio poder (por maioridade ou
emancipação), enquanto que esta, não se sujeitando a nenhuma limitação temporal, depende, no entanto, da comprovação
dos pressupostos da necessidade do alimentando e das possibilidades do alimentante.
Após a maioridade, se os filhos ainda necessitarem de alimentos passam a ter
direito a obrigação legal alimentar e não mais ao dever de sustento, condicionada ao
binômio possibilidade/necessidade. Vale observar que o novo Código Civil reduziu
para a idade de 18 anos o início da capacidade civil; assim, o dever de sustento dos
pais passa a subsistir até aos 18 anos e não mais até aos 21 anos. Ocorre que a jurisprudência tem entendido que os pais têm obrigação de prestar alimentos ao filho
maior, que tenha até 24 anos, se este for estudante e não tiver como se sustentar. O
limite de 24 anos tem sido usado para se evitar que o menor se torne um estudante eterno. Desta forma, conclui-se que a redução da idade da maioridade civil não
terá influência no que concerne aos alimentos devidos pelos pais aos filhos.
Ressalte-se que o art. 1.694, CC/02, reforça a posição jurisprudencial já existente de que os alimentos também devem atender os gastos dos filhos com educação.
Demonstramos tal posicionamento através da transcrição da ementa do acórdão AI 599175098, de 24/06/1999, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o
qual teve por relator o Desembargador Breno Moreira Mussi:
ALIMENTOS PROVISIONAIS - FILHA ESTUDANTE UNIVERSITÁRIA E
MAIOR DE IDADE - OBRIGAÇÃO ALIMENTAR - Aos pais cabe a obrigação de prestar alimentos a seus filhos, na maior partes dos casos, até a maioridade. Se estudantes universitários tal obrigação é
dilatada, continuando enquanto durar o curso, considerado, no
20 Maria Alice Zaratin Lotufo. Curso avançado de direito civil. vol. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 289.
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entanto, o binômio, necessidade/possibilidade. Agravo improvido.
Segredo de justiça. (TJRS - AI 599175098 - RS - 8ª C.Cív. - Rel. Des.
Breno Moreira Mussi - J. 24.06.1999).
Neste sentido, também decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais no agravo nº 000.241.524-8/00, julgado em 13 de setembro de 2001, cujo relator foi o Desembargador José Francisco Bueno - Ementa:
Alimentos. Pretensão exoneratória. Implemento de maioridade do
alimentando. Liminar. Inviabilidade. Milita em favor do credor
dos alimentos a presunção do perigo da demora. Além disso, o simples implemento da maioridade civil não implica, necessariamente, na cessação do direito de se ver assistido, mormente se permanece na condição de estudante. Desfecho do litígio que desafia ampla instrução probatória. Agravo provido.
Ao longo deste trabalho passaremos a usar a expressão obrigação alimentar
para nos referirmos tanto ao dever de sustento como a obrigação alimentar propriamente dita.
4.
CARACTERÍSTICAS
Passamos agora a analisar as principais características da obrigação alimentar.
Antes de qualquer coisa, frisamos que o Código Civil vigente inovou ao estabelecer
a transmissibilidade hereditária da obrigação alimentícia e, ao proibir a renúncia a
qualquer espécie de alimentos, mesmo os devidos entre cônjuges, como veremos
neste capítulo.
a) Direito personalíssimo
O objetivo da existência da obrigação alimentar é o de permitir que o alimentando possa sobreviver. Como já ressaltamos na introdução deste trabalho, é um direito individual privado, que adquire contornos de direito público por estar ligado
ao direito fundamental à vida. Por isto, o direito a alimentos é personalíssimo, ou
seja, sua titularidade não passa a outrem.
No que concerne ao direito italiano, anota21 Massimo Bianca que o direito a
alimentos é estritamente pessoal, é um direito inerente ao titular enquanto voltado
a satisfazer um interesse imediato da pessoa.22
21 “Esso è cioè un diritto inerente al titolare in quanto volto a soddisfare un interesse immediato della persona”.
22 C. Massimo Bianca. Diritto civile. vol 2. 3ª ed., Milão: Giuffrè editore, 2001, p.426 e 427.
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b) Transmissão hereditária da obrigação alimentícia
O Código Civil vigente pôs fim à polêmica gerada pela lei do divórcio sobre a
transmissibilidade ou não da obrigação alimentícia aos herdeiros do devedor. Estabelece o art. 1.700: “A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do
devedor, na forma do art. 1.694”.
O Código Civil de 1916 preceituava, no art. 402, exatamente o oposto: “A obrigação de prestar alimentos não se transmite aos herdeiros do devedor”. Ou seja, a
morte do devedor extinguia a obrigação alimentar, podendo ser cobrado de seus
herdeiros apenas as prestações vencidas e não pagas.
Com a promulgação da Lei 6.515/77, a regra da intransmissibilidade que era
pacífica no direito pátrio passou a ser questionada e a doutrina dividiu-se em relação ao assunto. O art. 23 da referida lei dispõe que: “A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.796 do Código Civil”.
A maior parte da doutrina interpretou restritivamente o art. 23, ou seja, entenderam que como o referido artigo estava inserido na lei do divórcio deveria abranger apenas as situações pertinentes à referida lei. Assim, a transmissibilidade estaria
circunscrita apenas às situações derivadas da separação entre os cônjuges e não
abrangeria os alimentos decorrentes do parentesco.
Neste sentido, Yussef Cahali afirmava que: “... a exceção da transmissibilidade cuida especificamente dos alimentos (em favor do cônjuge ou da prole), convencionados
ou impostos como efeito da separação judicial (por analogia admissível, do divórcio)...”.23
Diante desta interpretação, o mencionado autor entendia ser possível a transmissibilidade da pensão concedida ao filho em razão da separação judicial de seus
genitores aos herdeiros do cônjuge-genitor. Entretanto, o mesmo autor admitia que
esta situação não possui interesse jurídico, já que, aberta a sucessão, os filhos tornam-se herdeiros necessários. Situação diversa ocorreria se o filho ilegítimo, ainda
não reconhecido, impetrasse ação de investigação de paternidade cumulada com
pedido de alimentos contra o espólio. O Professor Yussef entende que, neste caso,
não poderia haver a transmissibilidade da obrigação aos herdeiros do genitor, pois
a preexistência da separação judicial ou do divórcio constituiria pressuposto essencial para a transmissibilidade da obrigação.24
Houve quem entendesse que o art. 23 da Lei 6.515/77 dizia respeito apenas às
prestações vencidas, não tendo nada de inovador. Ou seja, apenas explicitava que as
prestações vencidas se transmitiam.
Neste sentido, transcrevemos a ementa da apelação cível nº 238.760-1 julgada
em 28 de março de 1995, do TJSP - Tribunal de Justiça de São Paulo, cujo relator foi
o Desembargador Flávio Pinheiro:
23 Yussef Said Cahali. Dos Alimentos. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 83.
24 Yussef Said Cahali, op. cit., p. 82.
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Sentença - Liquidação - Aplicação dos índices do IPC - Admissibilidade. Alimentos - Morte do alimentante - Intransmissibilidade da
obrigação - Inteligência dos artigos 23 da Lei n. 6.515, de 1977, e
402 do Código Civil - Obrigação personalíssima que se extingue
com a morte do devedor de alimentos - Recurso parcialmente provido. Respondem os herdeiros do devedor apenas pelos débitos alimentares do próprio de cujus, vale dizer, os vencidos até sua morte e obedecidas as forças da herança.
Em sentido contrário, Theotonio Negrão transcreve o art. 402, CC/16 apenas
em nota de rodapé, por entender que o mesmo foi totalmente revogado pela lei do
divórcio. Sustenta que a Lei 6.515/77 não dispõe apenas sobre a separação judicial e
divórcio, porque também “dá outras providências”, com diz sua ementa; estatui sobre regime de bens, reconciliação, homologação de sentença estrangeira, autorização para casar, sucessão e filiação ilegítima.25
Maria Alice Lotufo também já afirmava que o art. 402 CC/16 teria sido ab-rogado pelo art. 23 da lei do divórcio. Considera que:
... alimentos são devidos a quem necessita, seja em razão do vínculo do matrimônio, seja do parentesco, e uma vez que os herdeiros tenham aceitado a herança, nada mais justo que sejam sucessores na obrigação alimentar, não só em relação às prestações
atrasadas, mas também em relação às que se vencerem, nos limites das forças daquela.26
Agora, com a entrada em vigor da Lei 10.406/02 não há mais dúvidas de que a
regra é a transmissibilidade passiva da obrigação alimentar, ou seja, morto o devedor de alimentos esta obrigação transmite-se aos seus herdeiros. No entanto, outra
polêmica surge: a transmissão desta obrigação deve respeitar ou não os limites da
herança recebida pelos herdeiros.
O art. 23 da lei do divórcio era claro neste sentido ao fazer remissão expressa
ao art. 1.796, CC/16, entretanto o art. 1.700, CC/02 remete o interprete ao art. 1.694,
CC/02, o qual, ao contrário do art. 1.796, nada preceitua a respeito dos herdeiros
não serem obrigados a efetuar pagamentos que fossem maiores do que o quantum
recebido na herança.
Entendemos que os herdeiros não são obrigados a efetuar pagamentos
maiores do que a quantia por eles recebidas na herança, mesmo porque a regra
do antigo art. 1.796 continua expressa no Código Civil de 2002, mas no art.
25 Theotonio Negrão. Código Civil e legislação civil em vigor. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 126.
26 Maria Alice Zaratin Lotufo. Curso avançado de direito civil. vol. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 292.
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1.997. Entretanto, por falta de clareza do art. 1.700, CC/02, certamente haverá
discussão a este respeito.
Outro ponto de dissenso será sobre a possibilidade ou não da transmissão de
alimentos ainda não estabelecidos, ou seja, que a época da morte do devedor ainda
não constituíam uma obrigação para o mesmo. Pergunta-se: poderia potencial credor de alimentos interpor ação contra os herdeiros após a morte do potencial devedor? Entendemos que não. Seria interpretar de forma excessivamente ampla o art.
1.700, CC/02.
Esta é a lição do Prof. Yussef Cahali:
Parece-nos inadmissível a ampliação do art. 1.700 no elastério do
art. 1.694, para entender-se como transmitido o “dever legal de alimentos”, na sua potencialidade (e não na sua atualidade), para
abrir ensachas à pretensão alimentar deduzida posteriormente
contra os herdeiros do falecido parente ou cônjuge.27
No direito francês, como anota Alain Bénabent, a regra é a intransmissibilidade ativa (no caso de morte do credor de alimentos) e passiva (no caso de morte do
devedor) da obrigação alimentar. Entretanto, excepcionalmente, a lei admite a
transmissibilidade da obrigação passiva, apenas nas seguintes situações: os herdeiros do cônjuge morto devem alimentos ao cônjuge sobrevivente (Cód. Civil francês
art. 207); aquele que paga alimentos a um filho natural, conforme definição do art.
342 e seguintes do Cód. Civil Francês, quando morto o dever se transfere os seus
sucessores conforme as regras do art. 207-1, e, por fim, em caso de divórcio, o cônjuge inocente tem direito a uma pensão a qual pode ser reclamada dos herdeiros do
cônjuge alimentante.28
c) Dívida divisível e não solidária
A obrigação alimentar pode ser dividida entre as várias pessoas que são obrigadas a prestá-la. Assim, guardada a ordem da sucessão, se os ascendentes não puderem arcar com toda a obrigação ela também recairá sobre os descendentes, conforme os arts. 1696 a 1.698, CC/02.
Doutrina e jurisprudência já se posicionavam neste sentido antes do advento do Código Civil vigente, apesar de que não existia regra expressa sobre o
assunto.
Desta forma, sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos cada
uma responderá pela sua quota parte, pois a obrigação é divisível e não solidá27 Yussef Said Cahali, op. cit., p. 95.
28 Alain Bénabent. Droit civil: la famille. 10ª ed. Paris: Litec, 2001, p. 485 e 486.
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ria. O todo não poderá ser cobrado de uma só pessoa, pois cada um é responsável apenas pela sua parte.
O quantum que cada devedor de alimentos está obrigado a pagar é estabelecido levando-se em conta as condições sócio-econômicas do alimentante e do alimentando (binômio necessidade/possibilidade). Se, em havendo vários obrigados;
a prestação pudesse ser cobrada inteiramente de apenas um deles, o binômio seria
quebrado.
Além disto, vale frisar que a solidariedade não se presume: resulta da lei ou da
vontade das partes.
A inovação que o Código Civil de 2002 traz a respeito da matéria encontra-se
no art. 1.698 e, em nosso entender, o legislador não a deveria ter feito.
Prevê o art. 1.698, CC/02 a possibilidade de proposta a ação contra um dos devedores, serem os outros chamados a integrar a lide.
O grande risco deste dispositivo legal é o de tornar ainda mais lenta a ação de
alimentos, e, sem trazer benefícios aparentes, pois se o todo não pode ser cobrado
de cada devedor em separado, já que a obrigação não é solidária, qual a vantagem
de obrigar a parte a colocar todos os responsáveis no pólo passivo da demanda. O
credor de alimentos poderia perfeitamente ingressar com a ação contra um dos responsáveis, receber a parte da obrigação que lhe fosse pertinente e, posteriormente
ingressar com a ação contra o outro ou outros obrigados. Tal procedimento não
causaria prejuízo a quem quer que fosse e poderia agilizar o processo.
Além disto, Francisco José Cahali salienta que o legislador civil fez uma incursão indevida no direito processual “... ao prever causa específica de intervenção de
terceiro no processo, e, o que é pior, sem identificar o respectivo instituto processual, requisitos e efeitos desta intervenção”.29
Concordamos com o referido autor e apenas anotamos que entendemos ser
o caso de chamamento ao processo.
d) Impenhorável, Incompensável e Incessível
O crédito alimentar é impenhorável, incompensável e não pode ser cedido
devido à sua natureza e a sua finalidade que é mantença das condições mínimas de
vida do alimentando. O mesmo é indisponível.
Admitida a cessão ou a compensação de dívidas, o alimentando poderia morrer à míngua. Pelo mesmo motivo, não pode ser penhorado.
Neste sentido dispõe o art. 1.707 CC/02: “Pode o credor não exercer, porém
lhe é vedado renunciar o direito de alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”.
29 Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira (coords). Direito de família e o novo Código Civil. 2ª ed., Belo
Horizonte: Del Rey, 2001, p. 198.
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Em relação à impenhorabilidade, deve-se ressaltar que o que é impenhorável
é o crédito e não os bens que com ele foram comprados, por exemplo, o carro que
foi comprado com o crédito alimentício é passível de ser penhorado.
Em relação ao direito italiano, anota30 Massimo Bianca que o direito aos alimentos não pode ser cedido devido à característica da estrita personalidade, mas admite-se, segundo distinção jurisprudencial, que o alimentando possa ceder o direito ao objeto da prestação, definida em uma dada soma de dinheiro.31
e) Não transacionável
Por ser indisponível e personalíssimo, o crédito alimentar não pode ser objeto de juízo arbitral ou compromisso de arbitragem.
No que concerne às prestações pretéritas, entendemos que é possível a transação quanto ao seu valor e forma de pagamento. Neste sentido, Sílvio Venosa explica que: “O quantum dos alimentos já devidos pode ser transigido, pois se trata
de direito disponível”.32
f) Irrepetível
Os alimentos provisionais ou definitivos são irrepetíveis, ou seja, o devedor
não tem direito a sua restituição, mesmo que comprovado que o credor não tinha
direito a recebê-los. Isto advém do fato de serem essenciais para a mantença das
condições de vida do alimentando e da impossibilidade do mesmo de devolver o
que foi consumido.
A fim de melhor explicitar a matéria, transcrevemos ementa de agravo de instrumento julgado pelo TAPR - Tribunal de Alçada do Paraná - número 170625000,
em 21 de maio de 2001:
Agravo de Instrumento. Ação de Indenização. Acidente de veículo.
Alimentos provisórios. Tutela antecipatória. Indeferimento. DECISÃO ACERTADA. 1. Para a obtenção da tutela antecipada, cumpre
ao postulante além da demonstração do “fumus boni juris” e do
“periculum in mora”, o preenchimento dos requisitos do art. 273 do
Código de Processo Civil. 2. Não havendo prova inequívoca para o
convencimento da verossimilhança da alegação é de rigor o inde30 “Con riguardo al carattere della stretta personalità si spiega l’ espressa incedibilità del diritto agli alimenti (4471,
1260 cc) mentre appare ammissibile, secondo la distincione giurisprudenciale, che l’ alimentando possa cederei l
diritto avente ad oggeto prestazione arretrate, definite in una data somma di denaro”.
31 C. Massimo Bianca. Diritto civile. vol 2. 3ª ed., Milão: Giuffrè editore, 2001, p. 427.
32 Sílvio Venosa. Direito civil: direito de família. São Paulo: Atlas, 2002, p. 366.
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ferimento da tutela antecipatória. 3. A determinação de pensionamento, mesmo em caráter provisório, depende da demonstração
inequívoca de que o réu agiu com culpa para a ocorrência do acidente, esta matéria depende de amplo debate na instrução probatória, fato que afasta a existência de prova inequívoca da alegação. 4. Além disso, os alimentos são incompensáveis e irrepetíveis.
AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.
Tal característica também é reconhecida pela jurisprudência italiana como demonstra Massimo Bianca: “La giurisprudenza ha ravvisato negli alimenti legali
anche il carattere della irripetibilità”.33
g) Irrenunciável
Doutrina e jurisprudência caminhavam no sentido de permitir a renúncia dos
alimentos devidos entre cônjuges, sendo a súmula 379 do STF considerada em desuso. Referida súmula preceituava que: “No acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser pleiteados ulteriormente, verificados os pressupostos legais”.
Seguindo esta tendência, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação Cível n. 11.350-4, julgada em agosto de 1996, pela possibilidade da renúncia de
alimentos devidos entre cônjuges:
Ementa RECURSO - Apelação - Razões não assinadas pelo Advogado do autor - Irrelevância - Assinatura aposta na petição que capeou o apelo - Recurso conhecido. ALIMENTOS - Obrigação alimentar - Ex-mulher - Renúncia quando da separação consensual - Pedido posterior - Inadmissibilidade - Súmula n. 379 do Supremo Tribunal Federal que não mais prevalece - Orientação consagrada
pelo Superior Tribunal de Justiça - Recurso não provido. É válida
e eficaz a cláusula de renúncia a alimentos em separação judicial, não podendo o cônjuge renunciante voltar a pleitear seja
pensionado. SUCUMBÊNCIA - Ônus - Beneficiário da justiça gratuita vencido na ação - Custas e honorários de Advogado - Verbas devidas - Exigibilidade, entretanto, condicionada à forma do artigo
12 da Lei Federal n. 1.060, de 1950 - Recurso não provido.
Ementa Oficial: Alimentos - Renúncia pela mulher ao ensejo de separação consensual - Eficácia - Súmula n. 379 do Supremo Tribu-
33 C. Massimo Bianca. Diritto civile. vol 2. 3ª ed., Milão: Giuffrè editore, 2001, p. 427.
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nal Federal, que não mais prevalece, ante a orientação que veio a
ser consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça - Autora que,
ademais, não comprovou justificar-se a pretendida insubsistência
da renúncia - Ação de alimentos julgada improcedente em Primeiro Grau, improvido o apelo da demandante.
Na contra-mão deste entendimento inova o Código Civil vigente ao estabelecer no art. 1.707: “Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar ao direito de alimentos...”. Como o legislador não fez qualquer ressalva a respeito da possibilidade de renúncia dos alimentos em se tratando daqueles devidos entre cônjuges deve-se entender que estes também são irrenunciáveis.
h) Imprescritibilidade
O direito a alimentos é imprescritível, ou seja, a qualquer momento aquele que
deles necessitar pode demandar de quem tem o dever de prestá-los. Mas, as prestações
alimentícias prescrevem, pelo Código Civil de 2002, em dois anos, art. 206 § 2º; o Código Civil de 1916 estipulava que prescreviam em cinco anos, art. 178, §10, I. A prescrição atinge cada prestação isoladamente, mas não a pretensão aos alimentos.
Adotou o legislador esta sistemática, pois a qualquer momento o credor de
alimentos pode deles necessitar e, por isto, o direito a alimentos deve ser imprescritível. Mas pode vir a não exercer o seu direito, sem que isto se torne um ônus
para o devedor de alimentos, por isto a prescrição pode recair sobre as prestações vencidas.
5.
PRESSUPOSTOS DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
A obrigação alimentar pertencente ao direito de família possui dois pressupostos: vínculo de parentesco, casamento ou companheirismo entre alimentante e
alimentando e a comprovação do binômio necessidade/possibilidade.
Prescreve o art. 1.694, § 1º, CC/02, antigo art. 400 CC/16, que: “Os alimentos
devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da
pessoa obrigada”.
A doutrina traduz tal artigo pelo binômio necessidade (de quem pleiteia alimentos) possibilidade (do devedor de alimentos de arcar com as prestações sem
comprometer o necessário para a sua sobrevivência ou de sua família).
Agiu bem o legislador ao não estabelecer parâmetros rígidos de fixação do
quantum da pensão alimentar, pois com isto o juiz pode analisar caso a caso e fixar
a quantia que entender mais justa. Além disto, a qualquer momento as partes podem pleitear a alteração da quantia fixada, desde que comprovada mudança da situação financeira do alimentante ou do alimentando.
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Por fim, conforme preceitua o art. 1.701, CC/02, antigo art. 403 CC/16, o alimentante, ao invés de pagar a pensão em pecúnia, pode hospedar e sustentar o menor, sem prejuízo de prestar o necessário à sua educação.
Silvio Rodrigues salienta que esta prerrogativa não é absoluta, podendo o juiz
determinar o contrário, em casos de incompatibilidade entre o alimentário e o alimentante seria inconveniente ordenar que aquele fosse hospedar-se na casa deste.34
6.
ALIMENTOS DECORRENTES DO PARENTESCO
6.1 Dever dos pais em relação aos filhos menores
O dever dos pais de alimentar os filhos além de estar previsto na Constituição
Federal (art. 229) é uma obrigação moral e mesmo natural no sentido de preservação da espécie, não decorrendo do casamento, mas do simples fato de ser pai.
O Código Civil atual ressalta tal dever nos arts. 1.566, VI e 1.634, I; o qual já
era expresso nos arts. 231, VI e 384, I, CC/16.
É importante observar que o dever de sustento dos filhos independe dos pressupostos da obrigação alimentar, ou seja, mesmo que o filho dele não necessite continua a ser dever do pai sustentá-lo. Não subsiste o binômio possibilidade/necessidade.
Já nos manifestamos a respeito da redução da capacidade civil e sua implicação ao dever ao alimentos. Portanto, apenas frisamos que hoje este dever persiste
até aos dezoito anos, quando se adquire a maioridade civil. Mas, em se tratando de
filho maior estudante, sem condições de se manter, os pais continuam a ter o dever
de alimentá-lo até aos 24 anos.
Questão controvertida envolve o nascituro: já teria ele o direito a alimentos,
ou apenas o adquire com o nascimento com vida?
Concordamos com a argumentação de Pontes de Miranda no sentido de que:
A obrigação de alimentar também pode começar antes do nascimento e depois da concepção (Código Civil, arts. 397 e 4º), pois antes de nascer, existem despesas que tecnicamente se destinam à
proteção do concebido e o direito seria inferior à vida se acaso recusasse atendimento a tais relações inter-humanas solidamente
fundadas em exigências da pediatria.
Apenas frisamos que o autor refere-se aos artigos do Código Civil de 1916, os
quais foram repetidos no Código Civil de 2002, conforme os arts. 1.696 e 2º.35
34 Silvio Rodrigues. Direito civil: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. 6, p. 426.
35 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2000, p. 261 e 262.
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Arnaldo Rizzardo salienta que é possível se conceder até mesmo os alimentos
provisionais desde que presentes os requisitos próprios, como o fumus boni iuris
e a certeza de quem é o pai, a fim de se garantir uma adequada assistência pré-natal
ao concebido.36
Silvio Venosa também defende o dever de prestação alimentícia ao nascituro,
sob o fundamento de que a lei ampara a concepção.37
Em sentido contrário, Yussef Cahali sustenta que o exercício dos direitos do
nascituro está condicionado ao seu nascimento com vida, e, portanto, exclui a possibilidade de se pedir alimentos em favor do nascituro contra o indigitado pai. Observa que os valores necessários à sua manutenção comporiam de modo indireto os
valores da pensão deferida à esposa.38
Não concordamos como Prof. Yussef Cahali, pois seria difícil resolver a situação da namorada que engravida do namorado, e, portanto não tem direito a
alimentos.
Inova o legislador ao prever no art. 1.694, § 2º, a possibilidade da perquirição de culpa também nos alimentos decorrentes de parentesco. Desta forma, torna-se possível a diminuição da pensão alimentar ao indispensável à subsistência
se a necessidade do filho em receber alimentos resultar de culpa sua. Podemos
exemplificar com a situação do filho que por desídia sua repita várias vezes durante o ensino médio, fundamental ou superior. O pai seria obrigado a fornecerlhe apenas o indispensável à sua sobrevivência. A prática com certeza nos fornecerá outros exemplos.
Prevê o art. 1.703, CC/02 que “Para manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção dos seus recursos”. Não só os separados judicialmente, como também os divorciados e os que nunca foram casados
entre si.
Totalmente anacrônico é o art. 1.705, CC/02, por estipular que o filho havido fora do casamento pode acionar o genitor. A Constituição federal, art. 227, §
6º, bem como, o ECA, art. 20, preceituam que os filhos havidos ou não da relação
do casamento, ou por adoção têm os mesmos direitos e proíbem quaisquer designações discriminatórias. Portanto, é óbvio que os filhos havidos fora do casamento podem acionar o seu genitor para pleitearem alimentos. Devemos entender que a existência deste artigo deve-se à demora na aprovação do projeto do Código Civil.
Pensamos serem estas as principais inovações em relação ao dever dos pais
em relação aos filhos menores.
36 Arnaldo Rizzardo. Direito de Família. Rio de Janeiro: Aide, 1994, v. 1., p. 711.
37 Sílvio Venosa. Direito civil: direito de família. São Paulo: Atlas, 2002, p. 370.
38 Yussef Said Cahali, op. cit., p. 533.
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6.2 Outras relações de parentesco que ensejam alimentos
Da relação de parentesco decorre o dever dos pais de alimentar os filhos maiores de idade, já que os mesmos não estão mais sujeitos ao dever de sustento, salvo a
hipótese, já mencionada, do filho maior, estudante e sem condições de se manter.
Segundo dispõe o art. 1.696, CC/02 ou 397 CC/16: o direito à prestação de alimento é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes. O art. 1.697,
CC/02, ou art. 398 CC/16, completa a disposição acima mencionada ao estabelecer que
na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes aos irmãos, assim, germanos como unilaterais.
Ou seja, pais e filhos devem alimentos reciprocamente, na falta destes os ascendentes passam a ser devedores na ordem de sua proximidade e os descendentes na ordem de sua sucessão. Por fim, se faltarem os devedores anteriormente referidos a obrigação recai sobre os irmãos, germanos ou unilaterais.
Desta forma, o filho só poderá pedir alimentos ao avô se o pai não tiver condições de prestá-lo, qualquer que seja o motivo, e o pai só poderá pedir alimentos ao
neto na falta do filho.
O art. 1.698 do Código Civil em vigor torna expressa a orientação jurisprudencial
de que se o parente que deve alimentos, em primeiro lugar, não estiver em condições
de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato.
Assim, se o pai não for capaz de arcar totalmente com a quantia necessária para cumprir a obrigação alimentar em relação ao filho deverá ser chamado o avô para completar tal quantia, e assim por diante.
Como já ressaltamos anteriormente, o referido artigo criou uma causa de intervenção de terceiros ao prever que: sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, intentada a ação contra uma delas as outras poderão ser chamadas a integrar a lide.
Na ocasião, manifestamos nossa crítica a este artigo, por entendermos desnecessária tal
intervenção que só tumultuará o feito.
Ë importante frisar que o rol dos parentes devedores de alimentos estabelecido pelo Código Civil é taxativo, ou seja, outros parentes não podem ser considerados devedores através de interpretação analógica. Neste sentido, Silvio Venosa observa que:
desconhece nossa legislação a possibilidade, presente no direito
comparado, de serem acionados sogros, genros ou noras para
prestarem alimentos. No direito brasileiro, na linha colateral, só os
irmãos podem ser acionados. Tal obrigação jamais se estende aos
afins.39
39 Sílvio Venosa. Direito civil: direito de família. São Paulo: Atlas, 2002, p.371.
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Assim, na linha colateral, a obrigação não ultrapassa o segundo grau.
Em relação à adoção, ressaltamos que, conforme o art. 1.628 do Código Civil
em vigor, as relações de parentesco se estabelecem não só entre o adotante e o adotado, como também entre aquele e os descendentes deste e entre o adotado e todos os parentes do adotante. Portanto, não mais prevalece a regra de que na adoção pelo Código Civil o parentesco resultante da adoção limitava-se ao adotante e o
adotado (art. 376, CC/16). Mesmo porque já entendíamos que, por força da isonomia constitucional, todos os irmãos adotivos ou não deveriam ser tratados da mesma forma.
Desta forma, como afirma a Professora Maria Alice Lotufo, os irmãos adotivos,
entre si, e os consangüíneos e adotivos devem alimentos reciprocamente, na falta
dos outros parentes.40
Inova o Código Civil de 2002 ao prever a culpa como elemento importante na
fixação dos alimentos devidos entre parentes, como já havíamos dito em relação aos
alimentos devidos aos filhos menores.
O art. 1.694, § 2º, estabelece que os alimentos serão apenas os indispensáveis
à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia. Por exemplo, o irmão necessita dos alimentos, pois não se fixa em qualquer emprego devido ao seu temperamento ruim, neste caso os alimentos deverão apenas
suprir o indispensável à subsistência.
Em suma: os irmãos consangüíneos ou adotivos são devedores de alimentos reciprocamente, desde que inexistam ascendentes ou descendentes que possam prestálos, sendo que se o alimentando concorreu com culpa para vir a necessitar dos alimentos, esta deverá ser levada em consideração ao se mensurar a quantia dos mesmos.
7.
ALIMENTOS DECORRENTES DO CASAMENTO
O novo Código Civil, em consonância com a igualdade estabelecida entre homens e mulheres pela Constituição Federal, não mais separa em capítulos diferentes os deveres da mulher e do marido face ao casamento. A mútua assistência continua a ser dever de ambos os cônjuges, art. 1.566, III, CC/02, 231, III, CC/16 e neste dever está incluso o dever de alimentos. Mas, não só da mútua assistência se extrai o dever de alimentos no casamento, o art. 1.694, CC/02 é expresso ao permitir
que os cônjuges possam pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem. O legislador do novo Código fez questão de colocar os alimentos como um dos efeitos
patrimoniais do casamento.
Duas foram as principais mudanças introduzidas pelo Código Civil de 2002 em
relação aos alimentos decorrentes do casamento: a culpa pelo divórcio deixa de ser
40 Maria Alice Zaratin Lotufo. Curso avançado de direito civil. vol. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 288.
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um empecilho para que o cônjuge culpado receba alimentos do cônjuge inocente,
se deles necessitar; e estabeleceu que os alimentos são irrenunciáveis, mesmo os
decorrentes do casamento, ao contrário do posicionamento que a doutrina e jurisprudência mais modernas defendiam.
7.1 Proibição de renúncia aos alimentos
Já nos manifestamos a respeito dos alimentos serem irrenunciáveis ao tratarmos das características dos mesmos. Entretanto, entendemos ser importante frisar
a possibilidade do cônjuge vir a necessitar dos alimentos após o acordo de separação, e, portanto, pleiteá-los ulteriormente. Mas, entendemos que, se os cônjuges já
estão divorciados e no acordo de divórcio não se estabeleceu o exercício da obrigação alimentar esta não mais poderá ser estabelecida posteriormente, pois o divórcio
encerra definitivamente o vínculo conjugal. Esta posição também é defendida pelo
Professor Francisco José Cahali.41
Observamos que o art. 1.708, CC/02, preceitua que o dever do alimentante
de prestar alimentos cessa com o casamento, união estável ou concubinato do credor de alimentos, bem como se este vier a ter procedimento indigno em relação ao
devedor.
Intrigante questão é saber o que significa este procedimento indigno. Devemos levar em consideração que o adultério não mais é empecilho para que o cônjuge adúltero receba alimentos, como veremos mais à frente, portanto a vida sexual
do cônjuge credor de alimentos não deve ser levada em consideração para se conceituar procedimento indigno.
Nossa sugestão para o estabelecimento deste standard jurídico seria a aplicação analógica dos casos em que é possível revogar a doação por ingratidão. Ingrato é o que não reconhece os benefícios que recebeu, segundo o dicionário
eletrônico de Aurélio Buarque de Holanda. No caso, o alimentando comporta-se
indignamente em relação ao alimentante ao não reconhecer o benefício que recebe deste.
Os casos de revogação de doação por ingratidão estão previstos no art. 557,
CC/02, ou art. 1.183, CC/16, e são os seguintes: atentar o donatário contra a vida do
doador ou cometer crime de homicídio doloso contra ele; ofender fisicamente, injuriar ou caluniar o doador e se recusar a ministrar alimentos ao doador que necessitava, podendo fazê-lo.
Analogamente podemos entender que se comporta indignamente o alimentando que atenta contra a vida do alimentante; ou o ofende fisicamente; ou o injuria; ou o calunia.
41 Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira (coods). Direito de família e o novo Código Civil. 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.
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Outra questão polêmica que certamente dividirá a jurisprudência será sobre a
eficácia das cláusulas de renúncia da pensão alimentícia fixada em acordo judicial de
separação homologado antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002.
Yussef Cahali demonstra que, sendo as normas que regulam a obrigação alimentar de ordem pública, são elas retroativas e, portanto, atingem as situações nascidas sob a vigência da lei antiga, que não se consumaram.42
Desta forma, os cônjuges separados judicialmente podem reclamar um do
outro os alimentos que vierem a necessitar, sendo inválida qualquer cláusula em
sentido contrário.
7.2 Alimentos e a culpa pela separação
Tormentosa tarefa do magistrado sempre foi a determinação de quem foi o
culpado pela separação. Muitas vezes, o motivo pelo qual se imputa a alguém a
culpa pela separação, por exemplo, um adultério, é apenas a conseqüência de um
relacionamento que já se findou há muito tempo. Dificilmente existe apenas um
culpado pela separação, por isto, em boa hora, a doutrina e a legislação mais recentes têm procurado amenizar a importância em se determinar o culpado pela
separação.
Este tem sido um movimento verificado em todo o mundo. Na Itália, após a
reforma de 1975, o art. 151 do Código Civil passou a permitir a separação pela ruptura da vida em comum; anteriormente só se permitia a separação fundada em grave violação dos deveres conjugais ou grave condenação penal.43
No Brasil, em um primeiro momento, a jurisprudência passou a permitir que
o cônjuge declarado culpado pela separação ficasse com a guarda dos filhos menores, se isto fosse o melhor para as crianças.
Em matéria de alimentos, a regra continua a ser a de que na separação litigiosa o cônjuge inocente e desprovido de recursos deve receber alimentos do cônjuge
culpado como dispõe o art. 1.702, CC/02. Tal regra em nada diferencia o que já preconizava o art. 19 da lei do divórcio.
A inovação está na exceção criada pelo parágrafo único do artigo 1.704 do
atual Código Civil.
Prevê o referido dispositivo legal que se o cônjuge declarado culpado pela separação vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de pres-
42 Yussef Said Cahali, op. cit., p. 356/358.
43 Estabelece o art. 151 do Código Civil italiano: “La separazione può essere chiesta quando si verificano, anche indipendentemente dalla volontá di uno o di entrambi i coniugi, fatti tali da rendere intollerabile la prosecuzione della convivenza o da recare grave pregiudizio allá educazione della prole”. A separação pode ser requerida quando se
verificar, independentemente da vontade de um dos cônjuges, fatos tais que tornem insuportável a continuidade
da convivência ou tragam grave prejuízo à educação da prole. (tradução livre do autor)
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tá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los,
devendo o juiz fixar apenas o indispensável para a sua sobrevivência.
Ou seja, o cônjuge declarado culpado pela separação poderá vir a receber alimentos do outro se as seguintes premissas se concretizarem: a) necessidade do cônjuge culpado; b) ausência de ascendentes, descendentes ou irmãos que possam
prestar os alimentos e c) inaptidão para o trabalho.
Ressalte-se que a culpa continua a ter alguma relevância, pois o juiz deverá fixar como alimentos apenas o necessário para a sobrevivência do alimentando; se o
cônjuge fosse inocente o juiz deveria fixar o necessário para que o alimentante vivesse de modo compatível com a sua condição social. Aqui está a utilização prática
da distinção entre alimentos necessários e côngruos.
Perante a legislação anterior, entendia-se que se ambos os cônjuges fossem considerados culpados pela separação não haveria qualquer obrigação alimentar a ser prestada por eles, face à compensação de responsabilidades. Entretanto, como o novo Código Civil permite, em algumas hipóteses, que o cônjuge declarado culpado requeira alimentos do inocente, não há por que proibir que isto ocorra quando ambos são considerados culpados, desde que preservadas as mesmas hipóteses legais já mencionadas.
Francisco Cahali considera significativa e positiva a modificação introduzida
no atual sistema.44 Entretanto, esta não é a posição do Professor Álvaro Vilaça que
afirma existir uma inversão de valores na permissão que o Código estabelece do
cônjuge culpado poder pedir alimentos ao inocente. Ressalta que não cabe o Código fazer justiça social.45
Acreditamos que, em relação aos alimentos decorrentes do casamento, estas
eram as principais considerações a serem feitas.
8.
ALIMENTOS DECORRENTES DA UNIÃO ESTÁVEL
A legislação sobre união estável muito variou ao longo do tempo. A Constituição Federal de 1988; as Leis extravagantes 8.971/94 e 9.278/96 e agora o Código Civil de 2002 foram os principais marcos desta transformação.
Antes da Constituição Federal de 1988, a companheira possuía apenas o respaldo da súmula 380 do STF, a qual preconizava que: “comprovada a existência de
sociedade de fato entre concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
Não se concedia qualquer espécie de direito a alimentos sobre o argumento
de que a lei era expressa em relação aos que deveriam recebê-los (parentes e cônjuges) e não admitia analogia.
44 Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira (coods). Direito de família e o novo Código Civil. 2ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.202.
45Álvaro Vilaça Azevedo. Anotações sobre o novo Código Civil. Revista do Advogado, ano XXII, nº 68, 2002, p. 18.
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No máximo, a companheira poderia receber uma indenização por serviços
prestados, sendo tratada analogamente como a uma empregada e não como a uma
esposa.
Com o advento da Constituição Federal, a situação da companheira melhorou
um pouco, em virtude do art. 226, § 3º, ter reconhecido a união estável entre homem e mulher, como entidade familiar.
Observamos que temos usado o termo companheira por ser ela, na maioria das
vezes, a parte hipossuficiente da relação, e por isto, a que necessita de alimentos. Mas,
com a igualdade entre homens e mulheres é perfeitamente possível que o companheiro ou marido venha a necessitar e requerer alimentos da companheira ou esposa.
Uma vez que a Constituição reconheceu que a união estável era uma espécie
de família, apesar de não tê-la igualado ao casamento, já que expressamente ressalta que a lei deve facilitar a sua conversão em casamento, muitos doutrinadores passaram a entender que com a dissolução da mesma o companheiro necessitado teria
direito a alimentos, sendo o art. 226 auto-aplicável.
Por outro lado, ainda havia vozes importantes que afirmavam que a relação de
companheirismo não despertava o direito a alimentos já que “o concubinato não
cria um estado civil nem modifica a condição jurídica das pessoas” como insistia Yussef Cahali.46
A Lei 8.213/91, que dispõe sobre os benefícios da previdência social, acenou
com uma mudança neste quadro ao outorgar direito à pensão previdenciária ao
companheiro sobrevivente.
Entretanto, apenas em 1994, com a Lei 8.971, passou a não haver mais qualquer dúvida de que a companheira tinha direito a alimentos. Dispunha o art. 1º da
referida lei
A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei
5.478, de 25.07.1968, enquanto não constituir nova união e desde
que prove a necessidade. Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira,
separada judicialmente, divorciada ou viúva.
A lei fez questão de estabelecer como requisitos a ausência de impedimentos
matrimoniais, um lapso temporal mínimo de existência do relacionamento, a fim de
demonstrar a sua estabilidade, bem como a existência real de necessidade daquele
que vier a pleitear alimentos.
46 Yussef Said Cahali, op. cit., p. 200.
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Portanto, em um primeiro momento, para que os companheiros tivessem direito a alimentos, era necessário que tivessem convivido por um lapso temporal mínimo de cinco anos ou tivessem prole em comum. Tal requisito gerou inúmeras injustiças, pois se tivessem convivido há quatro anos e onze meses e não tivessem filhos não teriam direito a alimentos. Com o requisito temporal definido em lei não,
era possível que o magistrado analisasse as particularidades de cada caso para, então, julgar se retratava ou não de união estável.
Percebe-se, através da leitura do art. 1º da referida lei, que não há qualquer
menção ao elemento culpa como um empecilho para a fixação dos alimentos. Portanto, o convivente, mesmo que tivesse sido o culpado pela dissolução da união estável, poderia requerer alimentos do outro, caso necessitasse. Entretanto, esta posição não era pacífica. Apesar da lei não se referir expressamente sobre a culpa, autores renomados, como Francisco José Cahali, entenderam que seria necessária a discussão da culpa a fim de se apurar a obrigação alimentar, afirmando que a companheira não poderia ter mais direitos que a esposa, que, à época, se fosse culpada
pela separação não teria direito a alimentos.47
Observe-se que a referida lei permitiu que os companheiros utilizassem o procedimento estabelecido na Lei 5.478/68, que é bem mais célere e permite a concessão de alimentos provisórios. Ocorre que, para isto, é necessária a prova do parentesco, casamento, ou agora união estável. Provar a existência de parentesco ou casamento é tarefa fácil, mas a união estável exige toda uma dilação probatória, pois
não há uma certidão capaz de comprová-la. Portanto, era praticamente impossível
prová-la celeremente.
Em maio de 1996, é promulgada a Lei 9.278 que derrogou a Lei 8.971/94 apenas no que era com esta incompatível. Esta última não foi ab-rogada, por regular em
grande parte matéria diferente da 9.278.
A Lei 9.278/96 define união estável, em seu art. 1º, como a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Desta forma, a lei de 1996 revogou a exigência do lapso temporal específico de cinco anos ou a existência de prole ao exigir para a configuração da união estável que esta
seja duradoura. Tal mudança beneficiou os conviventes, pois permite que o juiz analise a
situação fática concreta para determinar se trata ou não de união estável, sem que seja
obrigado a impor um limite temporal fixo, o qual pode gerar inúmeras injustiças.
Além de duradoura, a convivência deve ser pública e contínua, ou seja, conhecida pela sociedade da qual fazem parte os conviventes; os quais devem parecer
como se casados fossem. A continuidade impede que o relacionamento seja marcado por interrupções, as quais abalam a estabilidade da união estável.
47 Francisco José Cahali. União estável e alimentos entre companheiros. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 97-107.
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Por fim, o elemento mais importante para se determinar a existência de uma
união estável é totalmente subjetivo e, por isto mesmo, o mais difícil de ser comprovado. Os conviventes devem ter o objetivo de constituir uma família.
O art. 2º da Lei 9.278/96 instituiu a assistência moral e material recíproca
como direito e dever dos conviventes e acrescenta, no art. 7º, que uma vez dissolvida a união estável a assistência material será prestada por um dos conviventes ao
que dela necessitar, a título de alimentos.
Ressalte-se que o direito a alimentos só nasce com rompimento da convivência e será, nesse momento, que se deverá verificar qual a lei em vigor, pois
será esta que deverá ser aplicada. Se o rompimento ocorreu após 29 de dezembro de 1994, data da promulgação da Lei 8.971 esta será a lei a ser aplicada, mas
se ocorreu após 10 de maio de 1996 deve ser aplicada a Lei 9.278. As uniões que
se romperam antes destas leis não são por elas tuteladas face ao princípio da irretroatividade das leis previsto no art. 6º da lei de introdução do Código Civil.
Prevê o art. 6º, LICC que: “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
A polêmica em se permitir que o convivente culpado pela dissolução da união
estável requeresse alimentos do outro continuou após a edição da Lei 9.278/96, uma
vez que esta não foi clara a este respeito.
Entendemos que, como a Lei 9.278/96 não foi expressa ao exigir que só o convivente inocente pudesse requerer alimentos, como fez no casamento, não se poderia exigir tal requisito por analogia a este, principalmente quando a tendência mais moderna
é abolir a culpa como elemento carregado de importância na separação conjugal.
Entretanto, alguns autores entenderam que o vocábulo rescisão sugeriria a
idéia de culpa.
Também discordamos do posicionamento de João Baptista Villela para o qual:
“Dada a circunstância de o casamento ter na Constituição precedência sobre a união
estável, todas as vantagens deferidas a esta, por lei ordinária, supõe-se extensivas
àquele, se não a tiver por outro título”.48 Assim, como a culpa não é empecilho para
a concessão de alimentos na união estável, também não mais deveria ser no casamento, pela aplicação da “cláusula de maior favorecimento”.
Ressalte-se que só o fato do Código Civil em vigor procurar regrar a união estável já é uma inovação importante. É certo que o faz de forma tímida, dedicando
apenas cinco artigos ao instituto, mas acreditamos que seja propositadamente, a fim
de respeitar o caráter mais informal que a união estável sempre teve em relação ao
casamento.
O artigo 1.723, CC/02, reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradou48 João Baptista Villela. Alimentos e sucessão entre companheiros: apontamentos críticos sobre a Lei 8.971/94. Revista IOB, nº 7/95, 04/1995, p. 119.
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ra e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Esclarece o parágrafo
primeiro que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos matrimoniais enumerados no art. 1.521, com exceção do previsto no inciso VI, no caso
da pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
Portanto, o Código Civil continua a exigir os mesmos requisitos da Lei
9.278/96: convivência pública, contínua e duradoura e objetivo de constituição de
família. Entendemos ser louvável que a exigência de cumprimento de um decurso
de prazo mínimo para se configurar a união estável foi retirada do projeto do Código Civil.
Não podemos deixar de ressaltar que as pessoas casadas, mas separadas de
fato, agora não estão impedidas de constituírem união estável.
Quanto aos alimentos, o art. 1.694, CC/02, é expresso ao determinar que os
companheiros podem pedi-los uns aos outros, provando que deles necessitem para
viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender as necessidades de sua educação.
Uma vez que a obrigação alimentar entre companheiros está prevista no capítulo pertinente a alimentos, sem qualquer distinção em relação à obrigação alimentar devida pelos cônjuges ou parentes, aplica-se aos companheiros as mesmas disposições previstas para estes.
Em relação à culpa, o Código Civil pôs fim a esta polêmica ao permitir que o
cônjuge declarado culpado requeresse alimentos do inocente, caso necessitasse e
não tivesse parentes, nem aptidão para o trabalho (art. 1.704, parágrafo único,
CC/02). Analogamente o companheiro considerado culpado também pode pedir alimentos, como já se interpretava na vigência da Lei 9.278/96.
Assim, aplica-se a obrigação alimentar devida pelos companheiros o que já foi
dito a respeito da obrigação devida pelos cônjuges, por isto, apenas enumeraremos
as principais características.
São as seguintes:
a) O valor fixado a título de alimentos deve obedecer ao binômio possibilidade/necessidade; sendo que se o companheiro estiver em situação de necessidade por culpa sua os alimentos devem ser apenas os indispensáveis
à sua subsistência (art. 1.694, CC/02);
b) O direito a alimentos é recíproco entre os companheiros;
c) Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na condição financeira de
quem os supre, ou na de quem os recebe o encargo poderá ser majorado
ou diminuído (art. 1.699, CC/02);
d) Com a morte do companheiro alimentante, a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos seus herdeiros, conforme análise feita ao tratarmos
das características da obrigação alimentar (art. 1.700, CC/02);
e) Os companheiros têm direito a requerer alimentos provisionais de acordo
com a lei processual (art. 1.706, CC/02);
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f) Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar ao direito de alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação,
penhora ou transação (art. 1.707, CC/02). Ou seja, o crédito alimentar é irrenunciável, incompensável, impenhorável, incompatível com cessão ou
transação e irrepetível;
g) O dever de prestar alimentos cessa com o casamento, união estável ou concubinato do credor de alimentos ou se este tiver procedimento indigno
em relação ao devedor (art. 1.708, CC/02).
9.
CONCUBINATO E UNIÕES HOMOSSEXUAIS
Interessante notar que o Código Civil faz questão de diferenciar união estável de concubinato. Segundo o art. 1.727, CC/02, constituem concubinato as
relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de se casar, salvo
o impedimento do art. 1.521, VI, que por, força do art. 1.723 constitui união estável. A definição de união estável encontra-se no art. 1.723, CC/02, como já salientamos e a grande diferença com o concubinato está no fato do casal não estar impedido de se casar, salvo a situação de um dos companheiros já ser casado, mas estar separado judicialmente ou de fato o que também não impede a
configuração da união estável.
É enfático o Código Civil em vigor ao preceituar que entende por concubinato as relações entre o homem e a mulher, e, portanto, não abrange relações homossexuais. Assim, temos quatro categorias de relacionamentos: casamento, união estável, concubinato e relacionamentos homossexuais. Entendemos que, sob a proteção
do direito de família, estão apenas o casamento e a união estável.
O Código Civil procurou apenas definir o que seria uma relação concubinária para diferenciá-la da união estável e do casamento, mas em nenhum momento quis conceder ao concubino o direito a alimentos ou as prerrogativas do
direito de família. Os impedimentos matrimoniais devem ser respeitados, pois
existem por fortes razões morais e/ou biológicas, portanto não é certo conceder
qualquer benefício aos que são impedidos de se casarem.
Defendemos que, tanto as relações concubinárias como os relacionamentos homossexuais, devem ser julgados na esfera cível, tendo os seus integrantes
apenas direito a receberem a parte do patrimônio que ajudaram a construir,
como em uma sociedade de fato. Isso porque o Código também não pode permitir o enriquecimento sem causa.
Por fim, cabe ressaltar que mesmo o projeto de lei, que disciplina a união
civil entre pessoas do mesmo sexo, em tramitação na Câmara dos Deputados,
Lei 1.151/95, não faz qualquer menção à instituição da obrigação alimentar decorrente deste tipo de união.
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10. CONCLUSÃO
Podemos afirmar que as principais inovações trazidas pelo Código Civil de
2002, em matéria de alimentos, foram as seguintes:
1- Estabelece o art. 1.700, CC/02, a transmissibilidade da obrigação alimentar aos herdeiros do devedor, quando da morte deste. Agora, é clara a lei
que esta transmissão ocorre independentemente da origem da obrigação
alimentar (casamento, união estável ou parentesco); antes, parte da doutrina entendia que só era transmissível a obrigação que tivesse por causa a
separação judicial devido a uma interpretação restritiva do art. 23 da Lei
6.515/77;
2- O art. 1.698, CC/02, torna expressa a regra de que se a pessoa que a lei
estabelece como sendo o devedor de alimentos não puder arcar inteiramente com a prestação, poderão ser chamados outros parentes para complementar a quantia;
3- A inovação do art. 1.698, CC/02, está na possibilidade de, uma vez intentada a ação contra um dos devedores de alimentos, serem os outros co-devedores chamados a integrar a lide. Estabelece o Código Civil vigente uma
forma de intervenção de terceiros que mais tumultuará do que ajudará o
bom desenlace da ação;
4- Caminhava a jurisprudência no sentido de permitir a renúncia dos alimentos devidos entre cônjuges, mas na dicção do art. 1.707, CC/02, tal interpretação não poderá mais ser aplicada. Isto porque o referido artigo
proíbe qualquer tipo de renúncia a alimentos, sem fazer qualquer ressalva
quanto à possibilidade desta ser feita pelos cônjuges;
5- O Código Civil de 2002 diminuiu o prazo de prescrição das prestações
alimentícias para dois anos conforme o art. 206, § 2º; na vigência do Código Civil de 1916 este prazo era de cinco anos, art. 178, § 10, I;
6- Inova o legislador ao prever, no art. 1.694, § 2º, a possibilidade da perquirição de culpa também nos alimentos decorrentes de parentesco. Desta forma, torna-se possível a diminuição da pensão alimentar ao indispensável à subsistência se a necessidade do alimentando em receber alimentos resultar de culpa sua, independentemente da obrigação alimentar resultar do parentesco, casamento ou união estável;
7- O art. 1.694, CC/02, é expresso que os cônjuges e companheiros podem
pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem, não sendo mais necessário se inferir que este é um dever derivado da mútua assistência;
8- Em matéria de alimentos, a regra continua a ser a de que, na separação
litigiosa, o cônjuge inocente e desprovido de recursos deve receber alimentos do cônjuge culpado como dispõe o art. 1.702, CC/02. Mas, o parágrafo único do art. 1.704 inova ao permitir que o cônjuge declarado culpa-
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do receba os alimentos indispensáveis à sua sobrevivência, caso venha a
necessitar e não tenha parentes em condições de prestá-los, nem aptidão
para o trabalho;
9- Acompanhando a Constituição Federal e as Leis 8.971/94 e 9.278/96, o
Código Civil de 2002 não poderia deixar de reconhecer a união estável
como entidade familiar (art. 1.723) e dedicar-lhe a sua proteção. É certo
que procurou não intervir exageradamente no referido instituto, dedicando-lhe apenas cinco artigos, talvez até de forma proposital a fim de preservar o caráter informal da união estável. Mas, só o fato do Código Civil ter
legislado sobre a união estável já configura notável avanço;
10- Só as pessoas que não estão impedidas de se casarem podem formar
união estável, salvo aqueles que são separados judicialmente ou de fato.
Estes estão impedidos de se casar (art. 1.521, VI), mas a lei permite que
constituam união estável (art. 1.723);
11- Em nada diferenciou o Código Civil vigente o direito de alimentos dos
cônjuges do direito dos companheiros; muito pelo contrário, fez questão
de prevê-los no mesmo dispositivo legal (art. 1.694), portanto possuem as
mesmas características;
12- Importante ressaltar que o Código Civil procura diferenciar união estável de concubinato, art. 1.727, CC/02. Constituem união estável apenas o
homem e a mulher que não estão impedidos de se casar, salvo a exceção
do art. 1.723, § 1º; e constituem concubinato o homem e a mulher que estão impedidos de se casar;
13- Também é importante observar que o Código fez questão de frisar que
união estável e concubinato são relações que envolvem um homem e uma
mulher, e, portanto, não abrangem relações homossexuais;
14- Por fim, salientamos que tanto as relações concubinárias como as homossexuais não estão protegidas pelo direito de família, devendo ser julgadas na
esfera cível. Seus integrantes não têm direito a alimentos, mas apenas à divisão do patrimônio formado no transcorrer do relacionamento. O Código Civil apenas definiu concubinato com o fim de diferenciá-lo da união estável;
mas em nenhum momento transparece que o legislador gostaria de conceder algum benefício aos integrantes de relações concubinárias.
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INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO N. 4489 DE
28/11/2002 POR MACULAR O PROCESSO LEGISLATIVO
PLASMADO NA LEI SUPREMA E INFRINGIR DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO – OPINIÃO LEGAL
Miguel Reale,
Professor Emérito da Universidade de São Paulo,
em cuja Faculdade de Direito foi Catedrático
de Filosofia do Direito.
Ives Gandra Martins,
Professor Emérito da Universidade Mackenzie,
em cuja Faculdade de Direito foi Titular
de Direito Constitucional.
CONSULTA
Consulta-nos a ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECÇÃO DE
SÃO PAULO, por intermédio de seu eminente presidente, Dr. Carlos Miguel Aidar,
sobre possíveis vícios de legalidade e constitucionalidade, direta ou reflexa, do Decreto nº 4489 de 29 de novembro de 2002, que, sem processo administrativo em andamento, permite à Receita Federal ter acesso indiscriminado as informações bancárias de todos os contribuintes brasileiros, que mantenham contas ou aplicações financeiras nas instituições monetárias ou que utilizem cartões de crédito e movimentem valores acima de 5 mil reais por mês.
Em seu questionamento, pergunta a entidade, de início, se o decreto seria ilegal
em face da Lei Complementar 105/01 e indiretamente inconstitucional não ensejando
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a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade, por força da jurisprudência conformada pelo Pretório Excelso1, ou se constituiria ato normativo autônomo, desrelacionado da referida Lei Complementar (nada obstante a referência, no texto, ao mencionado diploma2), o que permitiria suscitar o controle concentrado.
Pergunta, outrossim, se o referido decreto macula o sistema jurídico constitucional e, se o fizer, em que parte.
Em forma de mera opinião legal, em face da urgência requerida, passamos a
responder as duas questões formuladas.
RESPOSTA
Em relação ao cabimento de controle concentrado quanto a ato normativo,
tem o Supremo Tribunal Federal decidido que:
“A Constituição da República, em tema de ação direta, qualificase como o único instrumento normativo revestido de parametricidade, para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal. Ação direta e ofensa frontal
a Constituição. O controle normativo abstrato, para efeito de sua
válida instauração, supõe a ocorrência de situação de litigiosidade constitucional que reclama a existência de uma necessária relação de confronto imediato entre o ato estatal de menos positividade jurídica e o texto da Constituição Federal. Revelar-se-á processualmente inviável a utilização da ação direta, quando a situação de inconstitucionalidade -que sempre deve transparecer
imediatamente do conteúdo material do ato normativo impugnado -depender, para efeito de seu reconhecimento, do prévio exame
1 Na ADIMC 1883/CE (D.J. 27/11/98) em que foi relator o Ministro Maurício Corrêa decidiu o STF que: “EMENTA:
Medida Cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Provimento n. 8, de 4/8/98, da Corregedoria Geral
de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Condição da ação: Possibilidade jurídica do pedido.
1. Cabe ação direta de inconstitucionalidade para verificar a ocorrência de ofensa ao princípio constitucional
da reserva legal ou de usurpação de competência legislativa por um dos entes federados quando o ato normativo impugnado tem por base dispositivo constitucional, sendo, pois, autônomo.
2. Não cabe ação direta quando o ato normativo questionado, hierarquicamente inferior à lei,
deve ser confrontado diretamente com a legislação ordinária e só indiretamente com a Constituição pois, nesse caso, cuida-se de ilegalidade e não de inconstitucionalidade. Precedentes.
Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida em face da ausência da possibilidade jurídica do pedido
ficando prejudicado o pedido cautelar” (grifos nossos).
2 O enunciado do Decreto 4489/02 está assim redigido: “Decreto n. 4489, de 28/11/2002 – Regulamenta o art. 5º
da Lei Complementar n. 105, de 10/01/2001, no que concerne à prestação de informações à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, pelas instituições financeiras e as entidades a elas equiparadas, relativas
às operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços”.
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comparativo entre a regra estatal questionada e qualquer outra
espécie jurídica de natureza infraconstitucional O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que se acha materialmente vinculado poderá configurar insubordinação administrativa aos comandos da lei. Mesmo que desse vício jurídico resulte um desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta
Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade meramente reflexa ou oblíqua, cuja apreciação
não se revela possível sem sede jurisdicional concentrada”3.
Em outras palavras, sempre que a inconstitucionalidade é reflexa, o veículo da
ação direta não é aquele apropriado a afastar a mácula à lei suprema.
Não ocorre tal impedimento, se o ato normativo do Executivo tiver a pretensão de ostentar luz própria e autonomia em relação ao regime jurídico, que
repele4.
O citado Decreto, nada obstante referir-se à lei complementar –referência inconseqüente— cuida de matéria fora do âmbito da mencionada lei e não se apresenta como violador desse diploma –ele também de duvidosa constitucionalidade—,
pois versando sobre matéria diversa do objeto de qualquer outro texto legislativo.
A Lei Complementar n. 105/01, como determina seu enunciado, está voltada
às instituições financeiras, ao sigilo que devem guardar e à possibilidade da Receita
Federal quebrá-lo, em “casos de lavagem de dinheiro e sonegação fiscal”, sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário.
3 ADIMC 1347/DF, Relator Ministro Celso de Mello, DJ. 05/09/95.
4 Decidiu o STF que: “ADI 1282/SP
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. SEPULVEDA PERTENCE
Publicação:
Julgamento: / / -Tribunal Pleno
EMENTA: I. Ação direta de inconstitucionalidade: idoneidade do objeto: decreto não regulamentar.
Tem-se objeto idôneo à ação direta de inconstitucionalidade quando o decreto impugnado não é
de caráter regulamentar de lei, mas constitui ato normativo que pretende derivar o seu conteúdo
diretamente da Constituição. II. Ação direta de inconstitucionalidade: pertinência temática. 1. A
pertinência temática, requisito implícito da legitimação das entidades de: classe para a ação direta de inconstitucionalidade, não depende de que a categoria respectiva seja o único segmento social compreendido no âmbito normativo do diploma impugnado. 2. Há pertinência temática entre
a finalidade institucional da CNTI - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria -e o decreto questionado, que fixa limites à remuneração dos empregados das empresas estatais de determinado Estado, entre os quais é notório haver industriários. III. Ação direta de inconstitucionalidade: identidade do objeto com a de outra anteriormente proposta: apensação.
Partes : REQTE. : CONFEDERACAO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA INDÚSTRIA
REQDO. : GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO” (grifos nossos) (site do STF – Internet).
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Seus artigos 1º a 4º cuidam do sigilo a ser mantido pelas instituições mencionadas e pelo Banco Central e os artigos 5 e 6 disciplinam a forma pela qual, em casos de indícios de sonegação, podem os agentes fiscais rompê-lo.
Com efeito, leiam-se os seguintes artigos:
“Art. 1º caput: As instituições financeiras conservarão sigilo
em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.
...
§ 3º Não constitui violação do dever de sigilo:
I. a troca de informações entre instituições financeiras, para fins
cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco, observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo
Banco Central do Brasil;
II. o fornecimento de informações constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito, observadas as normas
baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central
do Brasil;
...
V. a revelação de informações sigilosas com o consentimento expresso dos interessados;
...
Art. 2º caput: O dever de sigilo é extensivo ao Banco Central
do Brasil, em relação às operações que realizar e às informações
que obtiver no exercício de suas atribuições.
....
Art. 3º Serão prestadas pelo Banco Central do Brasil, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelas instituições financeiras as informações ordenadas pelo Poder Judiciário, preservando o seu caráter sigiloso mediante acesso restrito às partes, que delas
não poderão servir-se para fins estranhos à lide.
....
§ 3º Além dos casos previstos neste artigo o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários fornecerão à Advocacia-Geral da União as informações e os documentos necessários à
defesa da União nas ações em que seja parte.
Art. 4º O Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários, nas áreas de suas atribuições, e as instituições financeiras fornecerão ao Poder legislativo Federal as informações e os documentos sigilosos que, fundamentadamente, se fizerem necessários ao
exercício de suas respectivas competências constitucionais e legais.
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§ 1º As comissões parlamentares de inquérito, no exercício
de sua competência constitucional e legal de ampla investigação, obterão as informações e documentos sigilosos de que necessitarem, diretamente das instituições financeiras, ou por intermédio do Banco Central do Brasil ou da Comissão de Valores Mobiliários.
§ 2º As solicitações de que trata este artigo deverão ser previamente aprovadas pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Senado
Federal, ou do plenário de suas respectivas comissões parlamentares de inquérito” (grifos nossos).
Os artigos 5 e 6 vinculam-se de forma umbilical, visto que cuidam de exceções à guarda do sigilo pelo sistema financeiro —é ele o verdadeiro guardião
do sigilo bancário— em casos em que se justifique a pretendida informação.
Tanto é que o artigo 3º § 1º só admite que o sigilo bancário do próprio
agente fiscal seja quebrado mediante autorização judicial, embora o do contribuinte possa ser rompido, sem a referida autorização, como se vê da seguinte
dicção:
“§ 1º Dependem de prévia autorização do Poder Judiciário
a prestação de informações e o fornecimento de documentos sigilosos solicitados por comissão de inquérito administrativo destinada a apurar responsabilidade de servidor
público por infração praticada no exercício de suas atribuições,
ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido” (grifos nossos).
Não é o caso de nos determos a comentar o curioso dispositivo redigido
em causa própria pela Secretaria da Receita Federal, que protege os agentes governamentais, cujos atos devem ser por força do artigo 37 da C.F., públicos
(moralidade e publicidade são princípios fundamentais da Administração), e
desprotege os contribuintes, cuja privacidade é garantida pela Carta da República (artigo 5º, inciso X), mas que resta desguarnecida pela referida Lei Complementar n. 105/01, ao afastar, nesta hipótese, a serena intervenção do Poder
Judiciário5.
5 Os artigos 37 caput e 5º incisos X e XII da lei suprema estão assim redigidos: “Art. 37 A administração pública
direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:... ”;
“Art. 5º - X. são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
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A aética postura de classificar brasileiros em cidadões de 1ª e 2ª classe adotada pela Lei Complementar n. 105/01 já está sendo discutida em ADIN proposta junto a Suprema Corte pela Confederação Nacional do Comércio.
Ora, se o Decreto, que estamos examinando pudesse ser considerado regulador da LC 105/01, à evidência, hospedaria uma contradictio in terminis, visto que
todos os agentes fiscais, que estão assegurados, pelo artigo 3º § 5º da L.C. n. 105/01,
a terem seu sigilo quebrado apenas mediante autorização judicial, já teriam esta garantia afastada, em face da obrigação que o decreto impõe às entidades bancárias de
prestar informação à Receita Federal de suas movimentações.
Em outras palavras, se nos processos investigatórios o sigilo já estaria quebrado, por que solicitar ao Poder Judiciário autorização para obter informações que a
própria Receita já estaria de posse, por força do mencionado Decreto6?
Nitidamente, os dois atos normativos versam matérias distintas e desvinculadas uma da outra. O primeiro (L.C. n. 105/01), admite a quebra do sigilo bancário
em casos de suspeita de sonegação ou lavagem de dinheiro, em havendo processo
administrativo (sem autorização judicial se o investigado for cidadão não exercente
de cargo ou função pública e com autorização judicial se se tratar de agente público, o investigado). O primeiro declara, ainda, que o sigilo bancário pertine às instituições financeiras e ao Banco Central. O segundo (Decreto n. 4489/2001) determina que, as instituições financeiras sejam substituídas pela Receita Federal, que se
transforma na entidade de guarda do sigilo bancário.
Graficamente, o Secretário da Receita Federal Adjunto, Dr. Jorge Rachid, explicitou o que pretende o Decreto:
...
XII. é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (grifos nossos).
6 O próprio § 4º do artigo 1º da L.C. n. 105/01 é outra exceção a quebra de sigilo sem autorização judicial e ainda aqui em caso de suposta sonegação. Está assim veiculado: “§ 4º A quebra de sigilo poderá ser decretada,
quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes:
I -de terrorismo;
II- de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
III -de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material
destinado a sua produção;
IV- de extorsão mediante seqüestro;
V- contra o sistema financeiro nacional;
VI -contra a Administração Pública;
VII -contra a ordem tributária e a previdência social;
VIII -lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores;
IX- praticado por organização criminosa” (grifos nossos).
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“O sigilo bancário não está sendo quebrado, ele só está sendo
transferido para a Receita Federal”7.
Estamos perante manifesto sofisma, porque é esta transferência para a Receita que perpetra a ilícita quebra de sigilo.
Mais do que isto, o segundo diploma impõe –sendo pois autônomo seu
campo de atuação legislativa—, que não apenas nas hipóteses de investigações
sobre lavagem de dinheiro ou de sonegação, poderão os agentes fiscais quebrar
o sigilo bancário, mas em qualquer hipótese. Trata-se, nitidamente, repetimos,
de diploma legislativo distinto, que alarga, consideravelmente, a área coberta
pela L.C. n. 105/01, com independência e autonomia, o que transcende a mera
ilegalidade para ingressar na inconstitucionalidade direta e manifesta.
A referência, portanto, ao artigo 5º da L.C. n. 105/01, na canhestra tentativa de iludir o Poder Judiciário de que se trataria de mera regulamentação de um
artigo de lei subordinado ao artigo 6º do mesmo diploma e que poderia ser regulado, em seu limitado campo de atuação, não resiste à constatação de que pretendeu a Receita Federal criar instrumento próprio de quebra de sigilo bancário,
não constante da L.C. 105/01, instituindo novo regime jurídico paralelo àquele
veiculado pelo ato legislativo de 2001, que permitira a quebra do sigilo bancário
ao sistema financeiro e ao Banco Central, sem autorização judicial, somente em
casos de sonegação ou lavagem de dinheiro.
Estão os artigos 5º (caput) e 6º da L.C. 105/01 assim redigidos:
“Art. 5º O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as
instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários
de seus serviços”;
“Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão
examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e
aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais
exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
7 Jornal do Commercio, 30/11/2002, p. A-2.
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§ único. O resultado dos exames, as informações e os documentos
a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada
a legislação tributária” (grifos nossos).
À nitidez, as informações a que se refere o artigo 5º dizem exatamente respeito às hipóteses dos artigos 1º §§ 3º, 4º e 6º, visto que, de outra forma, não se justificaria sua menção, pois a quebra já estaria permitida, SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL, para todas as operações bancárias8.
Parece-nos, portanto, que se trata de ato normativo autônomo, o que vale dizer, passível de ser afastado do universo jurídico, via controle concentrado de constitucionalidade, por violar de forma direta princípios fundamentais da Carta da República.
Com efeito, rezam os incisos X e XII do artigo 5º da Constituição Federal que:
“Art. 5º....
X. são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;
....
XII. é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
8 O Ministro Maurício Corrêa elenca a tradição brasileira de quebra do sigilo bancário apenas com autorização judicial: “A jurisprudência desta Corte, consolidada e cristalizada a partir do julgamento dos citados MS n.
1.047-SP e n. 1.959-DF, é rica em precedentes que nunca deIxaram de entender que o sigilo bancário é um direito individual não absoluto, podendo ser rompido somente em casos especiais onde há prevalência do interesse
público e, mesmo assim, por determinação judicial. Além dos dois cItados, anoto os seguintes precedentes que
de alguma forma, abordam o tema: RHC n.O 31.611, Rel. designado Min. AFRÃNIO COSTA, j. em 25/07/51, in DJU
de 28/09/53, pág. 2.880 (apenso ao n. o 222); MS n. o 2.172, Rel.. Min. NELSON HUNGRIA, j. em 10/07/ /53, in DJU
de 05/01/54; RMS n. o 2.574-MG, ReI. Min. VILLAS BOAS, j. em 08/07/57, in RTJ 2/429; RMS n. o 9.057-MG, Rel. Min.
GONÇALVES DE OLIVEIRA, j. em 13/09/61, in RTJ 20/84; RMS n. o 15.925-GB, Rel. Min. GONÇALVES DE OLIVEIRA,
j. em 20/05/66, in RTJ 37/373; AG n. o 40.883-GB, Rel. Min. HERMES LIMA, j. em 10/11/67, in DJU de 06/ /03/68; RE
n. o 71.640-BA, Rel. Min. DJACI FALCÃO, j. em 17/09/71, in RTJ 59/571; RE n. o 82.700-SP, Rel. Min. XA VIER DE ALBUQUERQUE, j. em 11/11/75, in RTJ 76/655; MS n. o 21.172-AM, Rel. Min. SOARES MUNHOZ, j. em 27/09/78, in DJU
de 20/10/78; RE n.o 94.608-SP, Rel. Min. CORDEIRO GUERRA, j. em 06/04/84, in RTJ 110/196; AG (AgRg) n.o 115.4691/SP, Rel. Min. RAFAEL MAYER, j. em 28/11/86, in DJU de 12/12/86; H C n. o 66.284-MG, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, j. em 24/ /05/88, in RTJ 127/891; H C n. o 67.913-SP, rel. p/o ac. Min. CARLOS VELLOSO, j. em 16/10/90, in RTJ
134/309; PET n. o 577 (Questão de Ordem)-SP, rel. Min. CARLOS VELLOSO, j. em 25/03/92, in RTJ 148/ /366; AGRINQ
n.o 897, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, j. em 23/11/94, in DJU de 24/10/95” (grifos meus). (MS 21729-4-DF, Revista
Dialética n. 1, 1995, p 21/22).
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Até mesmo a Lei Complementar n. 105/01 padeceria do vício maior que
pode macular um diploma legislativo, ou seja, o vício da inconstitucionalidade, ao
substituir a imparcialidade do Poder Judiciário pelo interesse do agente fiscal da
Receita, na sua pessoal visão de cobrador de tributos, no rompimento do sigilo
bancário.
O Egrégio Supremo Tribunal Federal já assentou que o sigilo bancário é expressão do direito de privacidade, cujas prerrogativas estão asseguradas nos retrocitados incisos X e XII do art. 5º da CF.
Ainda que não exista entre os Ministros consenso sobre estar o fundamento
constitucional, que dá respaldo ao sigilo bancário ubicado no inciso X ou XII do art.
5º da CF, prevaleceu o entendimento de que o inciso XII está voltado a proteger comunicação de dados vedando a sua interceptação por qualquer meio tecnológico,
enquanto a proteção aos próprios dados, relacionados à privacidade, decorreria do inciso X, como se vê do seguinte trecho da ementa do MS 23.4521 RJ (Tribunal Pleno):
“O sigilo bancário, o sigilo fiscal e o sigilo telefônico (sigilo
este que incide sobre os dados/registros telefônicos e que não se
identifica com a inviabilidade das comunicações telefônicas) –
ainda que representem projeções específicas do direito à intimidade, fundado no art. 5 X da Carta Política – não se revelam oponíveis, em nosso sistema jurídico, às Comissões Parlamentares de Inquérito, eis que o ato que lhes decreta a quebra traduz natural
derivação dos poderes de investigação que foram conferidos
pela própria Constituição da República, aos órgãos de investigação parlamentar.
As Comissões Parlamentares de Inquérito, no entanto, para decretarem, legitimamente, por autoridade própria, a quebra
do sigilo bancário, do sigilo fiscal e/ou do sigilo telefônico,
relativamente a pessoas por elas investigadas, devem demonstrar,
a partir de meros indícios, a existência concreta de causa provável que legitime a medida excepcional (ruptura da esfera de intimidade de quem se acha sob investigação), justificando a necessidade de sua efetivação no procedimento de ampla investigação
dos fatos determinados que deram causa à instauração do inquérito parlamentar sem prejuízo de ulterior controle jurisdicional
dos atos em referência (CF, ar, 5, XXXV)” (grifos nossos e cópia do
acórdão em nosso poder)).
Deixou claro, outrossim, o Pretório Excelso, que não se trata de direito absoluto, e sim relativo, podendo ser afastado diante de um interesse público maior,
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por quem esteja legitimado a tanto pela Constituição e que tenha o dever
de imparcialidade.
Reconheceu, efetivamente, que, nessa matéria, somente não existe reserva de
jurisdição, porque o art. 58 § 3º da CF outorga às Comissões Parlamentares
de Inquérito poderes investigatórios semelhantes aos do Judiciário, como
se vê do seguinte trecho da ementa do MS 23.652-3 (Tribunal Pleno):
“O princípio constitucional da reserva de jurisdição – que
incide sobre as hipóteses de busca domiciliar (CF, art. 5, XI), de interceptação telefônica (CF art. 5, XII) e de decretação da prisão,
ressalvada a situação de flagrância penal (CF art. 5º, LXI) – não
se estende ao tema da quebra do sigilo, pois, em tal matéria, e
por efeito de expressa autorização dada pela própria
Constituição da República (CF art. 58, § 3º), assiste competência à Comissão Parlamentar de Inquérito, para decretar, sempre
em ato necessariamente motivado, a excepcional ruptura dessa esfera de privacidade das pessoas” (grifos nossos e acórdão em
nosso poder).
Assim, exceção às CPIs, para as quais são inerentes poderes próprios
de investigação judicial por outorga constitucional, não podem outros órgãos, poderes ou entidades não autorizados pela Lei Maior, quebrar o sigilo bancário e, pois, afastar o direito à privacidade independente de autorização
judicial, a pretexto de fazer prevalecer o interesse público, máxime quando não
têm o dever de imparcialidade por serem PARTE na relação mantida com
o particular.
Por tais fundamentos, o Supremo Tribunal Federal negou ao Ministério Público o poder de quebrar o sigilo bancário independente de autorização
judicial, no RE 215.301-0/CE, com base em lapidar voto do Ministro Carlos Velloso, de que se destaca o seguinte trecho:
“Pode o Ministério Público, portanto, presentes as normas do inc.
VIII, do art. 129 da C.F., requisitar diligências investigatórias e requisitar a instauração de inquérito policial, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. As diligências
investigatórias e a instauração de inquérito policial deverão ser
requisitadas, obviamente, à autoridade policial.
Ora, no citado inc. VIII, do art. 129, da C.F., não está escrito que poderia o órgão do Ministério Público requerer, sem
a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de alguém. E se considerarmos que o sigilo
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bancário é espécie de direito à privacidade que a Constituição consagra, o art. 5º, inc. X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria a ação do Ministério
Público para requerer, diretamente, sem a intervenção da
autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de
qualquer pessoa.
No voto que proferi na Petição 577-DF, caso Magri, dissertei a respeito do tema (RTJ 148/366), asseverando que o direito ao sigilo
bancário não é, na verdade, um direito absoluto – não há, aliás,
direitos absolutos – devendo ceder, é certo, diante do interesse público, diante do interesse social, diante do interesse da justiça, conforme, esclareça-se, tem decidido o Supremo Tribunal Federal. Todavia, deixei expresso no voto que proferi no MS 21.729-DF,
por se tratar de um direito que tem status constitucional, a
quebra não pode ser feita por quem não tem o dever de imparcialidade. Somente a autoridade judiciária, que tem o
dever de ser imparcial, por isso mesmo procederá com cautela, com prudência e com moderação, é que, provocada
pelo Ministério Público, poderá autorizar a quebra do sigilo. O Ministério Público, por mais importantes que sejam
as suas funções, não tem obrigação de ser imparcial. Sendo parte – advogado da sociedade – a parcialidade lhe é
inerente. Então, como poderia a parte, que tem interesse
na ação, efetivar, ela própria, a quebra de um direito inerente à privacidade, que é garantido pela Constituição?
Lembro-me de que, no antigo Tribunal Federal de Recursos, um
dos seus mais eminentes membros costumava afirmar que “o erro
do juiz o tribunal pode corrigir, mas quem corrigirá o erro do Ministério Público?” Há órgãos e órgãos do Ministério Público,
que agem individualmente, alguns, até, comprometidos
com o poder político. O que não poderia ocorrer, indago,
com o direito de muitos, por esses Brasis, se o direito das
pessoas ao sigilo bancário pudesse ser quebrado sem
maior cautela, sem a interferência da autoridade judiciária, por representantes do Ministério Público, que agem individualmente, fora do devido processo legal e que não
têm os seus atos controlados mediante recursos?”(grifos nossos)9.
9 D.J. 28/05/99.
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Aliás, sublinha a Suprema Corte que, mesmo o Judiciário há de agir com extrema moderação, ao autorizar a providência excepcional de ruptura da esfera de privacidade individual – o que se impõe, também, à quebra de sigilo determinada pela CPI – fazendo-o exclusivamente se: a) existirem pelo menos elementos mínimos a indicar a possibilidade de prática delituosa, de sua autoria e materialidade; b) a medida for pertinente para atender ao interesse público e c) se não houver outro meio para revelar a verdade material.
Outros arestos do STF hospedam a mesma linha do eminente Ministro Carlos
Mário Velloso:
MINISTRO MARCO AURÉLIO:
1) MS 21.729-4:
“Em última análise, tenho que o sigilo bancário está sob proteção
do disposto nos incisos X e XII do artigo 5º da Constituição Federal.
Entendo que somente é possível afastá-lo por ordem judicial”. (grifos na transcrição)10
MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE:
1) PETIÇÃO 577:
“O eminente Relator enfatizou a relatividade do direito ao
sigilo bancário; mas, existente, esse direito não pode ser
desconhecido, sem demonstração do interesse público que
a ele se superponha juridicamente, de modo a possibilitar
a devassa pretendida, o que não vejo no caso. Certo, à primeira vista, tendo a não dar relevo decisivo à existência ou não
de um indiciamento formal do titular da conta que se pretende
examinar. Mas, se, indo além na transigência, puder dispensar
provas ou algum elemento de prova da suspeita, o mínimo a exigir será que autoridade policial, sob sua responsabilidade, informe ao Tribunal, ao menos sobre a relação de pertinência entre
a prova pretendida, com as informações bancárias, e o objeto das
investigações em curso” (grifos nossos)11.
2) MS 23.452-1-RJ:
“Quanto à quebra de sigilo bancário, fiscal e dos dados telefônicos,
10 Apud Parecer GQ 110, de 09 de setembro de 1996 da AGU, in, RDDT 14108.
11 Questão de Ordem - DF, RTJ 148/366.
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também acompanho, em suas linhas gerais, o brilhante voto do
eminente Relator. Entendo tratar-se de sigilos relativos que
podem ser quebrados, observado o due process of law, por
determinação judicial, extensível, em princípio, ao âmbito
dos poderes das comissões parlamentares de inquérito”
(grifos nossos)12.
MINISTRO CARLOS VELLOSO:
1) PETIÇÃO 577 (Questão de Ordem)-DF:
“O sigilo bancário protege interesses privados. É ele espécie de direito à privacidade, inerente à personalidade das
pessoas e que a Constituição consagra (CF, art. 5º, X), além
de atender “a uma finalidade de ordem pública, qual seja,
a de proteção do sistema de crédito” registra Carlos Alberto
Hagstrom, forte no magistério de G. Ruta (“Lê Secret Bancaire em
Droit Italien”, Rapport, pág. 17; Carlos Alberto Hagstrom, “O sigilo
Bancário e o Poder Público”, Rev. De Direito Mercantil, 79/34).
Não é ele um direito absoluto, devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse da justiça, do interesse social, conforme, aliás, tem decidido esta Corte (RMS nº
15.925-GB, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira, RE nº 71.640BA, Relator Ministro Djaci Falcão, RTJ 59/571; MS 1.047, Relator Ministro Ribeiro da Costa, Rev. Forense 143/154; MS 2.172, Relator Ministro Nelson Hungria, DJ de 5-01-54; RE nº 94.608-SP, Relator Ministro Cordeiro Guerra, RTJ 110/195). Esse caráter não absoluto do
segredo bancário, que constitui regra em direito comparado, no
sentido de que deve ele ceder diante do interesse público, é reconhecido pela maioria dos doutrinadores (Carlos Alberto Hagstrom, ob. cit., pág. 37; Sérgio Carlos Covello, “O Sigilo Bancário
como Proteção à Intimidade”, Rev. Dos Tribs., 348/27; Ary Brandão
de Oliveira, “Considerações Acerca do Segredo Bancário”, Rev. de
Dir. Civil, 23.114, 119). O Segredo há de ceder, entretanto, na
forma e com observância de procedimento estabelecido em
lei.
...
As exceções ao sigilo bancário estão, basicamente, nos parágrafos
do art. 38 da Lei nº 4.595, de 31-16-64. As novas disposições que vieram com as Leis 8.033, de 12-4-90, e 8.021, de 12-4-90, no ponto em
12 DJ 12.05.2000.
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que alteram normas inscritas na Lei 4.595, de 1964, seriam inconstitucionais, para alguns, dado que esta última, a Lei nº 4.595, de
1964, teria sido recepcionada, pela Constituição de 1988, como lei
complementar, tendo em vista o disposto no art. 192 da Lei Maior
(Carlos Alberto Hagstrom, ob. cit., págs. 52/53). Não é hora, entretanto, de debatermos o tema. Fiz o registro apenas em reforço da
afirmativa anterior, no sentido de que as exceções ao sigilo bancário estão, basicamente, nos §§ do art. 38 da Lei 4.595/64.
Na verdade, pode o Judiciário requisitar, relativamente a
pessoas e instituições, informações que implicam quebra
do sigilo (Lei 4.595/64, art. 38, § 1º). A faculdade conferida
ao Judiciário, pressupõe, entretanto, que a autoridade judiciária procederá com cautela, prudência e moderação,
virtudes inerentes à magistratura, ou que os magistrados
devem possuir”. (grifamos)
VOTO (ADITAMENTO)
“Em primeiro lugar, para dizer que tenho o sigilo bancário
como espécie de direito à privacidade, que é inerente à
personalidade das pessoas, já que não seria possível que a
vida destas pudesse ser exposta a terceiros. Isto está inscrito no inc. X do art. 5º da Constituição: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Faço residir, portanto, no inciso X, do art. 5º, da Constituição, o sigilo bancário, que tenho como espécie do direito à
privacidade.
Sem segundo, quero deixar claro que não tenho o direito ao sigilo
bancário em termos absolutos. Aliás, esta é a regra, em direito
comparado. Assim o é na Itália, na legislação da Suíça, na jurisprudência e na doutrina alemã. Quer dizer, o segredo bancário
deve ser entendido em termos relativos. O Supremo tribunal, aliás,
assim tem entendido, conforme ressaltei no meu voto, indicando
precedentes.
...
...: é que sustento que o segredo bancário somente pode ser
afastado diante, por exemplo, de um procedimento criminal ou de um inquérito policial formalmente instaurado,
em que haja indiciamento do acusado, com a indicação do
delito praticado, com, pelo menos, um início de prova relativamente à autoria e à materialidade. Sem sito, sem que o
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indivíduo em relação ao qual pretende-se a quebra do sigilo bancário, esteja, pelo menos, formalmente indiciado – no caso não
há, ainda, o indiciamento formal, tampouco o acusado foi ouvido
– não me parece possível o deferimento da medida requerida”
(grifos nossos)13.
MINISTRO CELSO DE MELLO:
1) PETIÇÃO 577 (Questão de Ordem)-DF
“A tutela jurídica da intimidade constitui – qualquer que seja a dimensão em que se projete – uma das expressões mais significativas
em que se pluralizam os direitos da personalidade. Trata-se de valor constitucionalmente assegurado (CF, art. 5º, X), cuja proteção
normativa busca erigir e reservar, em favor do indivíduo – e
contra a ação expansiva do arbítrio do Estado – uma esfera de
autonomia intangível e indevassável pela atividade persecutória
do Poder Público, apta a inibir e a vedar o próprio acesso dos
agentes governamentais.
...
A quebra do sigilo bancário – ato que, por si só, revela extrema
gravidade jurídica – situa-se nesse contexto, em que valores contrastantes – como o princípio da autoridade, de um lado, e o postulado das liberdades pública, de outro, guardam, entre si, nítidas relações de tensão dialética.
Impõe-se, portanto, que os agentes da persecutio criminis, submetam-se à atuação moderadora e arbitral do Poder Judiciário,
cujos órgãos, ponderando os interesses que se antagonizam, permitam, ou não, o acesso das autoridades policiais às informações
concernentes às operações, ativas e passivas, realizadas pelas pessoas sob investigação com as instituições financeiras.
A relevância do direito ao sigilo bancário – que traduz, na concreção do seu alcance, uma das projeções realizadoras do direito à intimidade – impõe, por isso mesmo, ao Poder Judiciário,
cautela e prudência na determinação de ruptura da esfera de privacidade individual, que o ordenamento jurídico, em norma de
salvaguarda, pretendeu submeter à cláusula tutelar de reserva.
Sem elementos fundados de suspeita, como a existência concreta
de indícios idôneos e reveladores de possível autoria de prática de-
13 RTJ 148/366.
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lituosa, não há como autorizar a disclosure das informações
bancárias reservadas”. (destaques no original)
VOTO (DILIGÊNCIA)
“A decisão a ser proferida por esta Corte deve revelar-se emblemática dos novos tempos: é preciso acentuar, de vez, que simples indiciados ou suspeitos de práticas delituosas não mais constituem meros objetos de investigação, mas erigem-s, como convém a uma Sociedade fundada no princípio da liberdade, à irredutível condição jurídica de reais sujeitos de direitos – e de obrigações, também
– na esfera pré-processual da persecução penal.
O rigor desta Corte, no presente caso, tem um claro sentido: o de
indicar à autoridade policial o seu dever de incondicional e
permanente submissão a certos postulados básicos inscritos na
Lei e na Constituição da República” (destaques no original)14.
2) Inquérito nº 897 (AgRg) DF:
“Sabe-se que a tutela jurídica da intimidade constitui – qualquer
que seja a dimensão em que se projete – uma das expressões mais
significativas em que se pluralizam os direitos da personalidade.
Trata-se de valor constitucionalmente assegurado (CF, art. 5º, X),
cuja proteção normativa busca erigir e reservar, em favor do indivíduo – e contra a ação expansiva do arbítrio do Estado – uma
esfera de autonomia intangível e indevassável pela atividade persecutória do Poder Público.
...
A quebra do sigilo bancário – ato que, por si só, revela extrema gravidade jurídica – só deve ser decretada, e sempre em
caráter de absoluta excepcionalidade, quando existentes
fundados elementos de suspeita que se apõem em indícios idôneos, reveladores de possível autoria de prática delituosa por parte daquele que sofre a investigação penal realizada pelo Estado.
A relevância do direito ao sigilo bancário - que traduz, na concreção do seu alcance, uma das projeções realizadoras do direito à intimidade - impõe, por isso mesmo, cautela e prudência ao Poder Judiciário na determinação da ruptura da esfera de privacidade individual, que o ordenamento jurídico, em norma de salvaguarda, pretendeu submeter à cláusula tutelar de reserva constitucional
(CF, art. 5º, X)”. (destaques no original)15.
14 RTJ 148/366.
15 DJ 24.03.95, pg. 171.
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3) MS 23.619-1 DF:
“É preciso, pois, Senhor Presidente, insistir na advertência – já
formulada pelo Plenário desta Suprema Corte (MS 23.452-RJ,
Rel. Min. CESLO DE MELLO) – de que a função de investigar não
pode resumir-se a uma sucessão de abusos e nem deve reduzir-se
a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem
desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O
inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformarse em instrumento de prepotência e nem converter-se em meio de
transgressão ao regime da lei.
Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que
não podem e não devem ser transpostos pelos órgão, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público,
quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados
do dever de respeitarem os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a
instauração do procedimento estatal (inquérito parlamentar,
investigação policial ou processo judicial)” (grifos no original)16.
MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA:
1) MS 21.729-4:
“Senhor Presidente, os 17 (dezessete) precedentes aqui examinados
ou apenas mencionados permitem extrair com segurança a doutrina desta Corte firmada no transcorrer de quase cinqüenta anos,
sendo de se notar que ela está calcada em dois princípios fundamentais: o primeiro diz que o direito ao sigilo bancário é um direito individual, mas não absoluto, porque cede diante do interesse público; o segundo princípio informa que a violação do sigilo bancário só é permitida no interesse da justiça e por determinação judicial” (grifos na transcrição)17.
MINISTRO ILMAR GALVÃO:
1) MS 21.729-4:
“Também tenho por certo que toda pretensão à quebra do sigilo bancário – salvo a exceção prevista no art. 58, § 3º, da
Constituição, relativa às Comissões Parlamentares de Inquérito,
16 DJ 07.12.2000.
17 Apud Parecer GQ 110, de 09 de setembro de 1996 da AGU, in, RDDT 14108.
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que têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciais – haverá de passar pelo crivo do Poder Judiciário, incumbindo a este verificar, observadas as cautelas do devido processo legal e do direito à ampla defesa, se está ela apoiada em
motivo revestido da relevância necessária a justifica-la” (grifos
na transcrição)18.
MINISTRA ELLEN GRACIE NORTHFLEET:
1) ACR 1999.04.01.112402-3/SC:
“O sigilo bancário é um direito protegido constitucionalmente, decorrente do direito à privacidade inerente à personalidade (Constituição Federal, artigo 5º, inciso X). Todavia, é pacífico o entendimento da jurisprudência pátria no sentido de que não se trata de
um princípio absoluto.
Assim sendo, havendo indícios da prática de um delito, tem o Judiciário não só o poder, como também o dever de autorizar sua quebra, em conformidade com os dispositivos da Lei nº 4.595/64.
Impõe-se, portanto, a verificação da presença, no caso em tela, dos
requisitos essenciais para a realização da diligência requerida
pelo parquet, quais sejam a existência de elementos de prova mínimos de autoria do delito ou de sua materialidade ou elementos
fundados de suspeita, com a existência concreta de indícios reveladores de possível autoria de prática delituosa.
Ademais, é mister que haja uma relação de pertinência entre a
prova pretendida, com as informações bancárias, e o objeto das
investigações em curso, a fim de que reste induvidoso que a providência requerida é indispensável ao êxito das investigações.
...” (grifos nossos)19.
Todo o sistema nacional foi, portanto, alçado em garantia à privacidade, tendo o Poder Judiciário temperado o rigor absoluto do sigilo de dados, assegurando
ao Fisco o poder de quebrá-lo mediante autorização judicial, com o que o sonegador não se protege contra a Fazenda Pública, mas o bom contribuinte é protegido
contra o agente fiscal menos consciencioso.
Em sucessivas decisões, consagrou, portanto, a intervenção do Poder Judiciário, como o guardião dos direitos e garantias constitucionais. Até porque trata-se de
Poder Neutro e Imparcial, que não protege nem o sonegador, nem o Fisco arbitrá18 Apud Parecer GQ 110, de 09 de setembro de 1996 da AGU, in, RDDT 14108.
19 Trib. Reg. Fed. 4ª Reg. Porto Alegre, a. 11, n. 36, p. 43-428, 2000.
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rio, estando melhor qualificado para definir, em cada caso, se é ou não possível a
quebra do sigilo20.
Esta é a razão por que pende de julgamento a ADIN (2390-D CNC) contra a
Lei Complementar n. 105/01, que objetivou afastar o Poder Neutro e Imparcial, que
é o Judiciário, para outorgar ao Erário, interessado em obter “superávits orçamentários primários”, a qualquer custo, mesmo com agravos à Constituição, o direito sem
limites de quebra do sigilo bancário, sempre que considere suspeita a ação de qualquer contribuinte.
Ora, o novo Decreto, no dizer das autoridades fiscais, pretendeu substituir a
guarda de dados bancários, transferindo-a à Receita Federal, visto que enumera, nos
artigos 3º e 4º, operações dos correntistas cujo somatório, se atingir R$ 5.000,00
quanto às pessoas físicas ou 10.000 reais quanto às jurídicas, permitir-lhe-á o acesso
amplo, indiscriminado e sem controle do Poder Judiciário, em todas as instituições
financeiras do país, aos dados de todos os contribuintes brasileiros21.
20 O Ministro José Delgado, em artigo escrito para o III Colóquio Internacional de Direito Tributário do Centro
de Extensão Universitária – CEU e da Universidade Austral, realizado em Buenos Aires, Argentina (2001) defende que: “Em conclusão, a adoção de um sistema, para a quebra do sigilo bancário, em que o poder Judiciário
seja o árbitro dos pedidos da Administração pública, não é somente mais justo, mas, consegue impor maior credibilidade à atuação fiscal e presta homenagem, com intensa potencialidade, aos princípios democráticos consistentes na guarda da segurança jurídica, do respeito aos direitos fundamentais do cidadão, nesse rol incluídos os à privacidade e à intimidade. Além disso, torna mais respeitável a relação entre fisco e contribuinte, valorizando, portanto, a opção do Estado pelo regime democrático” (ed. IOB/Thomson, 2001, p. 68).
21 Os artigos 3º e 4º estão assim redigidos: “Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se montante global
mensalmente movimentado:
I- nos depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança, o somatório dos lançamentos a crédito efetuados no mês;
II- nos pagamentos efetuados em moeda corrente ou cheque, o somatório dos lançamentos a débito vinculados
a tais pagamentos no mês;
III- nas emissões de ordens de crédito ou documentos assemelhados, o somatório dos lançamentos a débito vinculados a tais emissões no mês;
IV- os resgates em conta de depósito à vista e a prazo, inclusive de poupança, o somatório dos lançamentos a
débito vinculados a tais resgates no mês;
V- nos contratos de mútuo e nas operações de desconto de duplicata, notas promissórias ou outros títulos de crédito, o somatório dos valores lançados a crédito e o somatório de valores lançados a débito, no mês, em cada
conta que registrar as operações do usuário;
VI- nas aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável:
a) em operações no mercado à vista, o somatório das aquisições e o somatório das vendas realizadas no mês;
b) em operações no mercado de opções, o somatório dos prêmios recebidos e o somatório dos prêmios pagos no
mês, informados de forma segregada, relativos a todos os contratos de opções, inclusive os de opções flexíveis;
c) em operações no mercado de futuros, o somatório dos ajustes diários ocorridos no mês, relativos a todos os
contratos do usuário;
d) em operações de swap, o somatório dos pagamentos e o somatório dos recebimentos ocorridos no mês, informados de forma segregada, relativos a todos os contratos do usuário;
VII- nas aplicações em fundos de investimento, o somatório dos lançamentos de aplicações realizados no mês,
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Uma pessoa que ganhe salário mínimo e que, durante anos a fio, tenha economizado centavos, chegando a possuir uma caderneta de poupança pouco superior a 5.000 reais, se quiser dela retirar seu investimento, para efeito, por exemplo,
de adquirir algum bem duradouro, passará a estar nas malhas dos novos “guardiões”
do sigilo bancário, que são os agentes fiscais da Receita Federal, os quais, diga-se de
passagem, não primam pela eficiência na preservação das informações recebidas
dos contribuintes. Recentemente, mais de um milhão de contribuintes tiveram suas
declarações expostas em bancas de jornais da cidade de São Paulo, por quebra de
sigilo da Receita, até hoje não tendo, o Senhor Secretário, descoberto os culpados
pelo vazamento desses dados, passíveis de utilização por seqüestradores interessados em saber o patrimônio de suas futuras vítimas, a fim de estipularem o preço do
resgate, segundo noticiário da imprensa.
A medida instituída pelo decreto em comento, transforma todo o contribuinte brasileiro, por mais honesto que seja, em figura idêntica a do sonegador ou do
narcotraficante, visto que se a L.C. 105/01 permite apenas, nestes casos, a quebra de
sigilo, o novo Decreto declara que tal sigilo é automaticamente rompido, em face
apenas do montante objeto da movimentação bancária. À nitidez, o Decreto nivelou
todos os contribuintes brasileiros àqueles que a L.C. n. 105/01 tinha por violadores
da legislação tributária ou penal.
individualizado por fundo; VIII- nas aquisições de moeda estrangeira, o somatório das compras efetuadas no
mês, em moeda nacional, pelo usuário:
IX- nas conversões de moeda estrangeira em moeda nacional, o somatório das vendas efetuadas no mês, em
moeda nacional, pelo usuário:
X- nas transferências de moeda estrangeira e outros valores para o exterior, o somatório, em moeda nacional,
dos valores transferidos no mês pelo usuário, contemplando todas as modalidades, independente do mercado
de câmbio em que se operem;
XI- nas aquisições ou vendas de ouro, ativo financeiro, o somatório das aquisições e o somatório das vendas realizadas, no mês, pelo usuário;
XII- nas operações com cartão de crédito, o somatório dos pagamentos efetuados pelos titulares dos cartões e o
somatório dos repasses efetuados aos estabelecimentos credenciados, no mês;
XIII- nas operações de arrendamento mercantil, o somatório dos pagamentos efetuados pelos arrendatários no
mês, referentes a cada contrato.
§ 1º As transferências de valores para o exterior, quando decorrentes de lançamentos a crédito efetuados pelo
banco depositário em contas tituladas por residentes ou domiciliados no exterior, deverão ser informadas de
forma segregada das demais modalidades, nos termos do inciso X do caput, exceto quando os recursos provierem de venda de moeda estrangeira ou diretamente de outra conta da mesma espécie.
§ 2º As informações relativas a cartões de crédito serão apresentadas, nos termos do inciso XII, de forma individualizada por cartão emitido para o usuário.
Art. 4º Para o cumprimento do disposto no art. 3º, as instituições financeiras poderão desconsiderar as informações relativas a cada modalidade de operação financeira em que o montante global movimentado no mês
seja inferior aos seguintes limites:
I - para pessoas físicas, R$ 5.000,00 (cinco mil reais);
II - para pessoas jurídicas, R$ 10,000,00 (dez mil reais)”.
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É inegável que o decreto outorga à Receita Federal poderes de possível utilização arbitrária. A Receita Federal, repetidas vezes, adota postura arbitrária. As ações
que tem perdido em juízo são prova da ilegalidade das teses que vem sustentando,
motivo pelo qual, no curso destes anos, não poucas vezes os “futuros guardiões do
sigilo fiscal” violaram a lei tributária e a Constituição, “exigindo” o que não poderiam
exigir.
Parece-nos, o diploma mencionado, portanto, violador, de forma manifesta e
totalitária, de direitos fundamentais do cidadão. E cria elemento de intranqüilidade,
inclusive para os bons contribuintes, que não mais terão a proteção do mais técnico e justo dos Poderes.
Não sem razão, o eminente Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio de Mello, declarou:
a) “A Constituição preserva a privacidade, inclusive no tocante a dados, e
só abre uma exceção, quando a quebra do sigilo é decretada por ato de
órgão eqüidistante e não me consta que a Receita preencha esta condição”;
b) “O Supremo admitiu uma exceção à regra, segundo a qual o juiz pode
autorizar a quebra do sigilo apenas na hipótese em que há atuação do
Ministério Público, órgão voltado à defesa da sociedade, um órgão eqüidistante, que visa à verdade real, mesmo assim quando estão envolvidos
recursos públicos”;
c) “Temos em jogo algo que é importantíssimo, que é o primado do Judiciário, ou seja, a Carta só abre a exceção quando a quebra é feita por órgão eqüidistante”;
d) “A Fazenda Pública é parte da relação jurídica substancial em jogo”22.
Na Constituição Federal, os direitos à privacidade e sigilo de dados foram
colocados não só para evitar o arbítrio, mas também para dar segurança aos cidadãos trabalhadores e à livre iniciativa, que leva, apesar da Receita Federal, o
país para frente.
O decreto pune os bons contribuintes deles retirando qualquer garantia, visto que sempre dependerão dos humores da fiscalização, pródiga em ofertar à lei distorcida interpretação. É que o Fisco –até por dever de ofício— sempre tem por “suspeitos” todos os cidadãos.
Nesta perspectiva, o Decreto, sobre assustar os bons contribuintes, levará o
mau contribuinte a buscar alternativas, não sendo despiciendo lembrar que, na Argentina, quando o imposto sobre o cheque chegou a 1,25 pesos houve brutal desin-
22 Jornal O Estado de São Paulo, Caderno de Economia, 03/12/2002, p. B-4.
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termediação bancária, com os “pacotaços” de moeda viva servindo de meio de pagamento e as empresas de segurança substituindo as instituições financeiras 23.
E, certamente, provocará fuga de recursos para o mercado paralelo, com real
prejuízo à economia do país.
Parece-nos, pois, de evidente e manifesta inconstitucionalidade esta transferência da guarda do sigilo bancário para a Receita Federal, passando a dispor de informações, que, apenas em caso de suspeita de práticas ilícitas contra contribuintes
e mediante autorização do Poder Judiciário, poderia obter.
Fere, portanto, o Decreto n. 4498/02 os artigos 5º, incisos X e XII e 59 da
Constituição Federal, visto que entre os diplomas com poder normativo autônomo,
não se encontra o decreto, cujo espectro de ação é apenas regulamentar24.
Tal violência pode ser sustada pelo Poder Judiciário, pela via do controle concentrado, eis que, a nosso ver, trata-se de “ato normativo autônomo” eivado de inconstitucionalidade direta e não apenas reflexa.
Em face, todavia, de haver promessa do Ministro Pertence de levar a julgamento, no início de Fevereiro, a ADIN ajuizada contra a L.C, n. 105/01 (que o decreto diz
“regulamentar”), talvez seja preferível, por ora, não ingressar com ação direta de inconstitucionalidade, mas sim com mandado de segurança coletivo em prol da classe para evitar, de imediato, os efeitos danosos do referido Decreto, assim como sugerir que outras entidades de classe, representativas dos mais variados segmentos
da sociedade, adotem o mesmo procedimento.
S.M.J.
São Paulo, 10 de Dezembro de 2002.
23 O XXV Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária – CEU, aberto com conferência magna do ilustre Ministro MOREIRA ALVES, concluiu sobre a quebra do sigilo bancário sem autorização como segue: “3) O sigilo bancário do contribuinte é cláusula pétrea? É constitucional a possibilidade de quebra desse sigilo mediante autorização judicial? É compatível com a Constituição norma que autorize a quebra de sigilo por decisão exclusiva de autoridade administrativa, independente de autorização judicial?
PROPOSTA DA COMISSÃO DE REDAÇÃO APROVADA EM PLENÁRIO
1ª parte: O sigilo bancário do contribuinte é cláusula pétrea da C.F.
(131 votos)
2ª Parte: É constitucional a possibilidade de quebra desse sigilo mediante autorização judicial.
(125 votos)
3ª Parte: Não é compatível com a Constituição norma que autorize a quebra do sigilo por decisão exclusiva de
autoridade administrativa, independente de autorização judicial.
(143 votos).
COMISSÃO 1
O sigilo bancário é cláusula pétrea. Por não ser absoluto, admite a possibilidade de quebra, condicionada à autorização judicial. Não é, portanto, compatível com o texto constitucional emenda ou norma infraconstitucional que outorgue à autoridade administrativa o poder de, sem autorização judicial, violar o sigilo bancário.
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(Primeira parte: por maioria, 74 votos, a Comissão entendeu que o sigilo é cláusula pétrea, vencidos 3 participantes).
(2ª Parte: Por maioria, 75 votos, a Comissão entendeu que a norma não pode deferir à administração o poder
de, independentemente, de autorização judicial, quebrar o sigilo bancário, vencidos 2 participantes).
COMISSÃO 2
A questão da inviolabilidade refere-se aos sigilos:
1) da correspondência e da comunicação telegráfica;
2) de dados (dentre os quais se insere o bancário);
3) da comunicação telefônica.
O sigilo bancário é cláusula pétrea. Duas correntes se apresentam:
a) não se admite a quebra do sigilo bancário, em qualquer hipótese. Apenas é possível e, mediante determinação judicial, a quebra do sigilo da comunicação telefônica, nas hipóteses e na forma da lei e para os fins de investigação criminal e para instrução processual penal.
(23 votos).
b) o sigilo bancário do contribuinte é cláusula pétrea, por se inserir dentre os direitos e garantias individuais
contemplados no art. 5º, X e XII, da CF, compreendendo o direito à intimidade, à privacidade e ao sigilo de dados e decorre do direito à liberdade e à segurança.
Os referidos direitos não são absolutos, podendo ser quebrados, em face do interesse público e no interesse da
sociedade, por ordem judicial decorrente de pedido que apresente motivação concreta. Por mais valioso que
seja um direito individual, ele não pode servir de escudo para práticas ilícitas que ofendam os mencionados interesses.
Em nosso ordenamento jurídico, a quebra do sigilo bancário somente poderá ser feita pelo Poder Judiciário, que
é competente para estabelecer os limites entre os direitos do contribuinte e o interesse da autoridade administrativa.
(22 votos).
É incompatível com a C.F. qualquer norma que autorize a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da
autoridade administrativa, independente de autorização judicial.
(UNÂNIME).
A C.F. legitima a posição de investigador da CPI.
A quebra do sigilo bancário é reserva de ato jurisdicional.
COMISSÃO 3
1ª Parte: É cláusula pétrea.
(12 votos a favor – 12 contra – 2 abstenções).
Não é cláusula pétrea.
(12 votos a favor – 12 contra – 2 abstenções).
2ª Parte: É constitucional.
(UNÂNIME – 26 VOTOS).
3ª Parte: Não.
(23 a favor – 2 contra – 1 abstenção)” (Tributação na Internet, Pesquisas Tributárias – Nova Série 7, ed. CEU/Ed.
Revista dos Tribunais, 2001, 424/426).
24 O artigo 59 da C.F. está assim redigido: “O processo legislativo compreende a elaboração de: I. emendas à
Constituição; II. leis complementares; III. leis ordinárias; IV. leis delegadas; V. medidas provisórias; VI. decretos
legislativos; VII. resoluções.
§ único. Lei Complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”.
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As Aposentadorias
Parlamentares e a Constituição1
Um Exercício de Hermenêutica Constitucional
Marcílio Toscano Franca Filho
Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da Paraíba
Mestre (UFPB/1999) e Doutorando em Direito (Universidade de Coimbra)
Ex-Professor do Departamento de Direito Público da UFPB
Ex-Estagiário do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (Luxemburgo)
Ex-aluno da Universidade Livre de Berlim (Alemanha)
PARECER
Constitucional, Administrativo e Previdenciário. Aposentadoria
Parlamentar Precoce. Inconstitucionalidade. Ofensa à Moralidade Administrativa, Às Regras Gerais Constitucionalmente Estabelecidas e à Iniciativa do Poder Executivo. Precedente desta Corte de
Contas e Ausência de Pronunciamento do STF em Sede de Controle Concentrado de Constitucionalidade. Impossibilidade de acumulação de proventos de Deputado Estadual e de Procurador do
Estado. Denegação do Registro ao Ato Aposentatório.
1 O presente parecer reproduz, com ligeiras alterações, a manifestação que o autor proferiu nos autos de um processo de aposentadoria de ex-parlamentar estadual submetido ao julgamento do Tribunal de Contas da Paraíba para
efeitos de registro (TCE/PB). Como o ato aposentatório fora editado bem antes da EC 20/98, as alterações constitucionais decorrentes da “Reforma da Previdência” mereceram apenas consideração periféricas ao longo do texto.
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1. Ao não tomar conhecimento da ADIn nº 512-PB, no ponto que
aqui se discute, o plenário do Supremo Tribunal Federal nunca
chegou a apreciar a constitucionalidade (o mérito) das aposentadorias dos ex-deputados estaduais paraibanos em cotejo com o texto original da CF/88. O entendimento da Corte Suprema tem sido
sempre no sentido de que resta prejudicado (sem julgamento de
mérito) o exame concentrado de constitucionalidade ante a superveniência de novo texto constitucional incompatível com o texto infraconstitucional cuja constitucionalidade se pretendia examinar. O exame difuso e concreto, porém, resta sempre salvaguardado.
2. A aposentadoria parlamentar precoce, aos oito anos de mandato, ofende objetivamente o princípio constitucional da moralidade
administrativa posto que denota uma contradição entre os fins do
instituto da aposentadoria (solidariedade social com quem já não
deve mais trabalhar) e os fins alcançados pelo legislador estadual
(remuneração sem trabalho a quem se encontra em pleno gozo
das capacidades laborais). O argumento da existência de previsão
semelhante em outros ordenamentos jurídicos é pífio, pois, diante
da constatação óbvia da inexistência de uma “moral universal”,
nem tudo que é moral no exterior é moral no Brasil. E vice-versa.
3. A competência legislativa concorrente em matéria previdenciária (art. 24, inc. XII, CF/88) exige obediência compulsória às regras
gerais estabelecidas já na própria Constituição (art. 25 CF/88). Assim, o antigo §2º do art. 40 da CF/88 não poderia servir de fundamento para modalidade de aposentadoria por tempo de serviço
não prevista no esquema geral do primitivo caput do art. 40. As
únicas exceções previstas na CF/88 seriam as estabelecidas por lei
complementar, na forma do §1º do art. 40 da CF/88, com a redação anterior à Reforma da Previdência. A diferença entre as espécies legislativas referidas no §1º (lei complementar) e no §2º (lei
ordinária) comprovam a diversidade de objetivos do legislador
constituinte originário: a primeira institui exceções à aposentadoria por tempo de serviço, a segunda apenas regulamenta hipóteses
aposentatórias já previstas.
4. Por afronta à iniciativa privativa do Governador do Estado nas
matérias contidas no art 61, § 1º, II, “c”, da Carta Federal, padece
de inconstitucionalidade formal, ainda, o dispositivo constitucional estadual, oriundo de proposta parlamentar, que se refere aos
servidores públicos estaduais, sua aposentadoria ou vantagens financeiras.
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5. A acumulação de proventos somente é permitida quando se tratar de cargos, funções ou empregos acumuláveis na atividade, na
forma permitida pela Constituição Federal e conforme o leading
case do Supremo Tribunal Federal (RE-163204/SP, Rel. Min. Carlos
Velloso, DJU 31-03-95, p. 7779). Se é expressamente defeso pela
Constituição Estadual o exercício simultâneo de mandato de Deputado Estadual com o de cargo de Procurador do Estado, logicamente, pois, a percepção conjunta de proventos decorrentes do
exercício destes mesmos cargos é também vedada.
6. O Plenário desta Corte de Contas já firmou precedente sobre a
inconstitucionalidade da criação de modalidade de aposentadoria não prevista no Texto Magno (Processo TC 1786/86).
7. Recomendação de que se negue o registro ao ato aposentatório.
Cuida-se de processo advindo da eg. Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba
relativo à aposentadoria parlamentar voluntária do ex-Deputado (...), aos 11 anos,
09 meses e 15 dias de mandato, para fins de registro nesta eg. Corte de Contas.
Em sua manifestação técnica, a d. Auditoria, após examinar a documentação
encartada aos presentes autos, opinou pela regularidade do ato aposentatório
com a majoração dos cálculos proventuais.
É o breve relatório. Passo a opinar.
I.
Instada a apresentar os subsídios técnicos necessários ao exame do ato aposentatório ora apreciado, a Auditoria do Tribunal de Contas da Paraíba mencionou o julgamento “do mérito” (sic), no âmbito do Supremo Tribunal Federal, de Ação Direta de
Inconstitucionalidade que versava sobre as aposentadorias parlamentares paraibanas.
Com efeito, a ADIn nº 512-PB, proposta em 1991 pelo Partido Comunista do Brasil,
tinha por objeto a declaração de inconstitucionalidade do art. 270, parágrafo único, da
Constituição Estadual da Paraíba2, sob o argumento de que o aludido dispositivo feriria
os princípios da moralidade e da autonomia dos municípios.
Conforme se lê na Revista Trimestral de Jurisprudência do STF (nº 140, p.
430 e ss.), o Relator da ADIn, ínclito Ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática datada de 03 de julho de 1991, ordenou a suspensão liminar da vigência do referido dispositivo constitucional estadual, assim argumentando:
2 Art. 270. O titular de mandato eletivo ou função temporária estadual ou municipal, terá direito a aposentadoria proporcional ao tempo de exercício, nos termos da lei.
Parágrafo único. O benefício a que se refere o caput deste artigo será concedido àquele que contar com, pelo
menos, oito anos de serviço público em qualquer das funções mencionadas.
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Concedi a cautelar, porque como está a Lei é possível a um ex-deputado, que não tenha ainda trinta anos de serviço, que tenha
apenas exercido dois mandatos - oito anos - aposentar-se, obtendo
a denominada aposentadoria precoce.
Em 20 de fevereiro de 1992, ao apreciar a liminar concedida, o Tribunal
Pleno, entretanto, decidiu por maioria3 não referendá-la, restaurando parcialmente a eficácia do art. 270, parágrafo único, da CE/89. Decidiu a nossa Suprema Corte
suspender a eficácia apenas da expressão “ou de função temporária” contida no caput do art. 270 da CE/89.
A liminar é um meio processual clássico de proteção jurisdicional provisória que visa apenas assegurar a efetividade da tutela jurisdicional definitiva. A
medida liminar é um provimento cautelar admitido na legislação processual cuja
função é neutralizar os riscos de que a duração do processo torne irrealizável ou inútil o resultado da demanda. De tal raciocínio decorre que a concessão de liminar exige: 1º) a previsão de que a tutela principal com determinado conteúdo será prestada; e 2º) a ameaça de prestação não efetiva dessa mesma tutela. Estes são os requisitos específicos para a concessão de liminares, que, tradicionalmente, assumem a
denominação de fumus boni juris e periculum in mora, respectivamente. A liminar visa a garantir o processo, ou melhor, o direito da parte a um processo eficaz. Assim, por meio da concessão ou denegação de liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade não se faz nenhum julgamento antecipado do mérito da
demanda, mas apenas avalia-se a presença simultânea da relevância do fundamento jurídico e da possibilidade de resultar ineficaz a prestação jurisdicional se concedida somente ao fim da demanda. Conclui-se, portanto, que a denegação da liminar
na ADIn 512-PB não importou em nenhuma repercussão na questão de fundo
da ação, a (in)constitucionalidade do parágrafo único do art. 270 da Constituição do
Estado.
A 03 de março de 1999, após, portanto, o advento da Reforma Constitucional da Previdência, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade4, julgou
prejudicada (sem julgamento de mérito) a ADIn nº 512-PB no que toca aos parlamentares estaduais da Paraíba e, neste ponto, dela não tomou conhecimento,
em razão do art. 270 e seu parágrafo único da Constituição Estadual da Paraíba terem sido implicitamente revogados pela Emenda Constitucional Federal nº 20,
de 15 de dezembro de 1998, que aboliu a aposentadoria por tempo de serviço, per3 Entenderam negar referendo à liminar concedida os Ministros Sepúlveda Pertence, Paulo Brossard, Sydney
Sanches, Neri da Silveira e Otávio Galloti. Referendaram a liminar os Ministros Marco Aurélio (Rel.), Ilmar Galvão, Carlos Veloso e Celso de Mello. O Ministro Célio Borja declarou-se impedido e o Ministro Moreira Alves
estava ausente.
4 Ausente o então Presidente, Min. Celso de Mello; presidiu o julgamento o Min. Carlos Velloso.
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mitindo-a, apenas, por contribuição. Nesse particular, aquele acórdão do Supremo
Tribunal Federal mereceu a seguinte ementa:
CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE - MUDANÇA
SUPERVENIENTE DO TEXTO CONSTITUCIONAL. Possível conflito de
norma com o novo texto constitucional resolve-se no campo da revogação, não ensejando o controle concentrado de constitucionalidade. AUTONOMIA MUNICIPAL - TITULAR DE MANDATO ELETIVO - APOSENTADORIA - DISCIPLINA. Compete ao município a regência normativa da aposentadoria dos respectivos servidores, incluídos, considerado o sentido lato, os agentes políticos. Inconstitucionalidade de preceito estadual por invasão da autonomia municipal. (STF,
ADIn 512-0/PB, Rel. Min. Marco Aurelio, DJU de 18.06.2001, g. n.)
Do voto do eminente Min. Marco Aurélio, relator do processo, colhem-se os
fundamentos jurídicos que impediram o julgamento definitivo de mérito sobre as aposentadorias dos ex-deputados estaduais paraibanos. In verbis:
Quanto à regência estadual, verifica-se normatividade decorrente da
Emenda Constitucional nº 20 discrepante da anterior. Hoje a aposentadoria linear proporcional não mais subsiste. Destarte, tenho por
prejudicada a ação, no particular, ante a mudança ocorrida e a
jurisprudência segundo a qual possível descompasso entre a norma
legal e a constitucional superveniente resolve-se no campo da revogação. Por tal razão, conheço desta ação direta de inconstitucionalidade apenas no ponto em que se ataca a expressão contida no artigo 270 “ou municipal”. (p. 09 nos originais, g. n.)
Ao acompanhar unanimemente o voto do preclaro Ministro Relator, o plenário do
Supremo Tribunal Federal nunca chegou a apreciar a constitucionalidade das aposentadorias dos ex-deputados estaduais paraibanos na ADIn nº 512-PB em cotejo com o
texto original da Constituição Federal de 1988. Aliás, o entendimento da nossa Suprema
Corte tem sido sempre no sentido de que resta prejudicado o exame concentrado de
constitucionalidade ante a superveniência de novo texto constitucional incompatível
com o texto infraconstitucional cuja constitucionalidade se pretendia examinar. A racionalidade dessa postura hermenêutica é simples e irrefutável:
O controle de constitucionalidade em tese, por via de ação direta, não
se destina à tutela de situações jurídicas individuais. Sua finalidade
principal é a de assegurar a supremacia da Constituição e a conseqüente conformação de toda a ordem jurídica. Disso resulta que só
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deve caber o controle de constitucionalidade, em via principal, perante Constituição em vigor. Fugiria ao desiderato de guarda da Constituição a possibilidade de se pronunciar, em tese, a inconstitucionalidade de uma norma em face de Constituição anterior, já revogada.5
Assim, uma vez promulgado um novo texto constitucional não é mais possível ao
Supremo Tribunal Federal prosseguir no controle em tese e concentrado da constitucionalidade, pela via da Ação Direta, restando admissíveis às partes interessadas,
porém, todas as demais formas processuais de controle concreto e difuso. Disso resulta que o julgamento sem mérito da ADIn 512, no ponto que aqui se discute, não
tem o condão de produzir quaisquer efeitos sobre os julgamentos desta Corte de Contas a respeito dos atos aposentatórios de ex-deputados estaduais paraibanos.
II.
Neste instante, o eg. Tribunal de Contas do Estado da Paraíba se põe diante
de um caso concreto: apreciar, para fins de registro, a legalidade de ato concessório de aposentadoria do ex-Deputado (...), conforme ordena a Constituição Federal
(art. 71, III, c/c art. 75) e a Lei Orgânica desta Corte (art. 1º, VI). Apreciar a legalidade de certo ato administrativo significa examinar a sua conformidade com o sistema
jurídico vigente ao tempo de sua concessão e, sobretudo, apreciar-lhe a adequação em relação às normas constitucionais então em vigor, afinal a inconstitucionalidade é a espécie mais conspícua de ilegalidade.
Conforme já expressei em artigo doutrinário6, não resta dúvida de que ao Tribunal de Contas não cabe, por absoluta incompetência, declarar a inconstitucionalidade de lei. Entretanto, há que se distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de norma inconstitucional, pois essa é obrigação de
qualquer Tribunal ou órgão de qualquer dos Poderes do Estado7. A melhor doutrina é unânime em reconhecer a competência do Tribunal de Contas para negar
aplicação a norma que entenda inconstitucional. O Prof. Themístocles Brandão
Cavalcanti, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, foi enfático neste sentido:
Outra indagação é se o Tribunal de Contas pode deixar de aplicar
um ato por inconstitucional. A resposta não me parece ser outra senão afirmativa. Tecnicamente, o processo de aplicação da lei con5 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 91.
6 FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. Os Tribunais de Contas e o Controle da Constitucionalidade. Boletim de Direito Administrativo. n. 9, p. 705-706, 2001.
7 Conforme dicção do próprio STF, no Recurso de Mandado de Segurança nº 8.372-Ceará, Rel. Min. Pedro Chaves,
julgado em 11.12.61.
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duz à verificação da constitucionalidade, e, portanto, verificado o conflito com a Constituição, deve esta prevalecer.
Exerce o Tribunal de Contas o controle de constitucionalidade usando apenas da técnica da interpretação que conduz à valorização da
lei maior. Neste ponto tem aplicado o princípio da supremacia da
Constituição. Não pode, entretanto, anular o ato, nem anular a lei,
mas apenas deixar de aplicá-la por inconstitucional.
Ao poder Judiciário cabe a competência privativa de declarar a
inconstitucionalidade, mas qualquer dos poderes responsáveis
pela aplicação de uma lei, ou de um ato, pode deixar de aplicálos quando exista um preceito constitucional que com eles conflite de maneira ostensiva, evidente. Privativo do Poder Judiciário é
considerar inválido o ato ou a lei em face da Constituição.8
Mais recentemente, o Prof. Ricardo Lobo Torres, renomado financista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ao se referir ao controle da legalidade
exercido pelos Tribunais de Contas também asseverou:
O controle da legalidade implica ainda o da superlegalidade,
ou seja, o da constitucionalidade das leis e atos administrativos.
(...) A inconstitucionalidade das leis in abstracto não a decretam
o Tribunal de Contas nem os órgãos de controle externo ou interno, posto que, além de não exercerem função jurisdicional, limitam-se a apreciar casos concretos. Mas a inconstitucionalidade
dos atos administrativos pode ser reconhecida in casu pelos órgãos encarregados do controle, que se negarão a
aprová-los ou a dar quitação aos responsáveis, alinhandose com a lei e a Constituição. (...) A declaração incidental da
inconstitucionalidade tornou-se evidente no texto de 1988, mercê
da possibilidade de controle da legitimidade.9
Acompanhando o mesmo entendimento, o ex-Conselheiro do Tribunal de
Contas do Estado de São Paulo, Dr. José Luiz de Anhaia Mello, em primoroso livro
dedicado ao tema10, assim fez observar:
8 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. O Tribunal de Contas - Órgão Constitucional: Funções próprias e funções
delegadas. In: Revista de Direito Administrativo. n. 109, jul/set 1972, p. 8.
9 TORRES, Ricardo Lobo. O Tribunal de Contas e o Controle da Legalidade, Economicidade e Legitimidade. In:
Revista de Informação Legislativa. a. 31, n. 121, jan/mar 1994, p. 266-267.
10 MELLO, José Luiz de Anhaia. Da Competência do Tribunal de Contas para Negar Aplicação a Leis Inconstitucionais. São Paulo: Saraiva, 1965.
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(...)Quando um órgão da Administração se indispõe contra uma ‘lei’
inconstitucional, deve-se considerar que ele se põe ao lado, em defesa
da Constituição. Esse o ponto que deve ser repisado para que não se
furtem de assim agir aqueles que, num dado momento, e à vista de
suas funções, devam atuar. (...) De fato, se a ‘lei’ inconstitucional é um
abantesma jurídico, se não existe, não deve um Tribunal tratá-la
como elemento hábil, sob pena de dar efeitos jurídicos a algo nulo e
não simplesmente anulável. (...) O Tribunal de Contas tem pois o poder-dever de negar cumprimento a leis flagrantemente inconstitucionais.
Ao lado da caudalosa doutrina, o próprio Supremo Tribunal Federal, ao editar a
Súmula 347, reconheceu que “o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. Diante de tantos argumentos, inexiste dúvida acerca do poder-dever de que dispõe o
TCE/PB para, ao julgar, para fins de registro, a legalidade do ato de aposentadoria do exDeputado (...), negar aplicação à norma que afronte a Constituição. Passo, pois,
ao exame da (in)constitucionalidade do ato aposentatório em cotejo com a redação da
Carta Magna anterior à Reforma da Previdência.
III.
O presente processo cuida da aposentadoria especial precoce concedida
aos parlamentares estaduais paraibanos através de plano de previdência parlamentar instituído pela Lei Estadual 5.23811, de 24 de janeiro de 1990, que veio regulamentar a lacuna técnica do art. 270 da Constituição do Estado, de 05 de outubro de
1989, cuja redação dispõe, in verbis:
Art. 270 - O titular de mandato eletivo ou de função temporária, estadual [ou municipal]12, terá direito a aposentadoria proporcional ao tempo de exercício, nos termos da lei.
Parágrafo único - O benefício a que se refere o caput deste artigo
será concedido àquele que contar com, pelo menos, 08 (oito) anos
de serviço público em qualquer das funções mencionadas.
O sistema previdenciário proposto pela Lei Estadual 5.238/90 pode ser sintetizado pelas seguintes diretrizes básicas:
• Competia ao Instituto de Previdência do Estado da Paraíba (IPEP) adminis11 Revogada pela Lei Estadual 6.718, de 12 de janeiro de 1999, em consonância com a EC 20/98.
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trá-lo, na forma de seu regulamento, e ao Tesouro Estadual destinar os
recursos complementares necessários ao respectivo custeio (art. 3º, parágrafo único).
• Os benefícios básicos concedidos eram a aposentadoria, a pensão e o auxílio funeral (art. 2º).
• O período de carência, contado a partir da data em que o deputado assume o exercício do mandato (art. 6º), é de 96 contribuições mensais (oito
anos) para a concessão de aposentadoria voluntária (art. 7º, II).
• O valor da aposentadoria é proporcional aos anos de contribuição e calculado à razão de 1/24 por ano, não podendo ser inferior a 50% do salário de contribuição (art. 11).
Das disposições daquela norma legal pode-se inferir que o plano de previdência parlamentar instituído não era concedido por instituto previdenciário privado
(próprio dos parlamentares), custeado unicamente pelas contribuições compulsórias e voluntárias dos seus filiados e pela renda auferida de seu patrimônio. O plano
adotado pelos parlamentares paraibanos era, sim, um plano público, com participação obrigatória do erário público no seu custeio. Ademais, vê-se que, aos oito
anos de mandato, qualquer deputado estadual paraibano poderia se aposentar com
proventos proporcionais, nunca inferiores a 50% do salário de contribuição, e,
aos vinte e quatro anos, com proventos integrais.
Ao julgar um caso análogo ao dos presentes autos, o col. Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo se pronunciou pela total inconstitucionalidade da norma
instituidora de aposentadoria especial a parlamentar, aos oito anos de mandato. Do
referido acórdão13, da lavra do insigne Desembargador Leite Cintra, pode-se extrair
lição magistral, aplicável à hipótese tratada nos presentes autos:
Ementa: INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal. Aposentadoria Especial para Vereador. Carência de apenas 8 anos de contribuição, com repasse de verba pública para cobrir déficit técnico.
Inadmissibilidade. Requisitos específicos que não podem ser alterados pela legislação ordinária. Artigo 40 da Constituição da República. Violação ao princípio constitucional da moralidade administrativa. Sentença Confirmada. Recursos não provido.
[Voto:] (...) A Lei Municipal nº 1.132, de 04.01.1977, autorizou a Câmara Municipal de Moji Mirim a realizar convênio com o IPESP
[Instituto de Previdência do Estado de São Paulo] para extensão a
12 Único trecho da norma estadual considerada inconstitucional no julgamento da ADIn 512-PB, por afrontar a autonomia municipal.
13 Apelação Cível 193.482-1, São Paulo, Rel. Des. Leite Cintra, 09.12.93.
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seus vereadores das disposições da Lei nº 951, de 14.01.1976, alterada pela Lei nº 1.002, de 16.06.1976, que instituiu a Carteira de
Previdência dos Deputados à Assembléia Legislativa do Estado de
São Paulo, com o objetivo de assegurar a pensão mensal aos deputados e vereadores do Estado de São Paulo e pensão mensal aos
seus dependentes (fls. 172).
Pelo referido sistema previdenciário, o parlamentar ou ex-parlamentar interessado se aposenta com apenas oito anos de contribuição à Carteira de Previdência, bastando, para tanto, o exercício efetivo de um único mandato parlamentar, de quatro anos.
É manifesta a inconstitucionalidade desse regime especial de aposentadoria, como já anotado no parecer do Prof. Celso Bastos, encartado nos autos às fls. 44/62.
De fato, compete à União legislar sobre previdência social, nos termos do inciso XII do art. 24 da Constituição Federal. Aos Estados e
Municípios a competência, concorrente, é de caráter supletivo, sujeitando-se às normas gerais traçadas pela União.
Conforme leciona Hely Lopes Meirelles, os requisitos para a aposentadoria, tais como estabelecidos na Constituição, não podem
ser alterados pela legislação ordinária.
No mesmo sentido, Adilson de Abreu Dallari assegura a taxatividade das normas constitucionais federais, sendo certo que as Constituições Estaduais não poderão criar novas aposentadoria especiais de qualquer natureza, a qualquer titulo ou motivo.
As regras gerais para aposentadoria estão traçadas no art. 40 da
Constituição da República. As exceções, no caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas, somente
poderão ser estabelecidas por lei-complementar, conforme dispõe
o parágrafo 1º do art. 40 da Lei Magna.
Por essa razão, a Lei nº 951/76, que estabeleceu a pensão parlamentar após a carência de apenas oito anos de contribuição, efetivamente criou regime especial incompatível com o sistema previdenciário estatuído pela Lei Maior, conforme assentado na declaração de voto vencedor do Eminente Desembargador José Osório,
na Ação Rescisória nº 101.711-1, julgada pela Colenda Oitava Câmara desse Egrégio Tribunal de Justiça.
Segundo ainda o Eminente Juiz, não existe justificativa racional
para o desigual tratamento jurídico, ou seja, para a precocidade
da aposentadoria, pois a atividade de deputado e vereador não é
excepcionalmente penosa e desgastante para justificar, racional e
logicamente, o encurtamento do prazo. Não está em jogo a re-
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levância (que é inegável) da atividade parlamentar para
toda a sociedade e para a vida democrática. O que tem
que ser levado em conta são as condições de dureza, de sofrimento, de perigo, de insalubridade, como está implícito,
mas evidente, no art. 103 da Constituição da República de 1967, no
parágrafo 1º do art. 94 da Constituição Estadual de 1969, e explicito no parágrafo 1º do art. 40 da Constituição da República de
1988 (fls. 410/411).
Por último, os atos impugnados, à evidencia, são lesivos à moralidade administrativa, erigida à categoria de principio
constitucional, consagrado no art. 37 da Lei Maior. Por essa razão, são passíveis de anulação, como fundamento autônomo, por
esta via adequada de ação popular, nos termos do art. 5º, LXXIII,
da Constituição Federal.
A moralidade administrativa, doutrina Hely Lopes Meirelles, constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata - diz Hauriou, o
sistematizador de tal conceito - da moral comum, mas sim de uma
moral jurídica, entendida como o conjunto de regras de conduta
tiradas da disciplina interior da Administração.
Por considerações de direito e de moral, o ato administrativo não
terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética
da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto... A
moral comum é imposta ao homem para a sua conduta externar
a moral administrativa é imposta ao agente publico para sua conduta interna, segundo as exigências da instituição a que serve e a
finalidade de sua ação: o bem comum.
A atuação parlamentar de legislar em causa própria, por sua iniciativa, editando a lei municipal que autorizou o convênio com a
Carteira de Previdência, instituindo o benefício de aposentadoria
especial, no curto prazo de oito anos de contribuição, com repasse de verba publica para cobrir déficit técnico, obviamente que
desvia do bem comum colimado pela Administração ao
mesmo tempo em que ofende o principio constitucional da
moralidade administrativa.
Ainda do mesmo acórdão paulista pode-se extrair brilhante ensinamento da
Declaração de Voto Vencedor do Des. Godofredo Mauro:
A moralidade administrativa foi maculada de forma indelével
pela lei municipal. Como consta da lição do saudoso mestre Hely Lo-
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pes Meireles “...o ato administrativo não terá que obedecer somente à
lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição porque nem
tudo que é legal é honesto...” citado pela I. Procuradoria (fls. 427).
Assim, é de todo inadequada a situação dos legisladores municipais,
que, olvidando-se do dever maior que comete seus mandatos e que
consiste na busca do “bem comum”, usam-no para cumular vantagens individuais, em detrimento dos municípios que representam.
Em suma, conforme o abalizado entendimento do eg. Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, duas ordens de argumentos maculam a aposentadoria precoce dos parlamentares estaduais com o estigma da inconstitucionalidade: em primeiro lugar, a afronta ao princípio da moralidade administrativa e, em segundo
lugar, a afronta à gramática constitucional do instituto da aposentadoria, prevista na redação original do caput art. 40 da Constituição Federal de 1988.
IV.
Sobre a ofensa à moralidade administrativa, importa destacar desde logo
que a concessão dessa forma de aposentadoria precoce aos parlamentares em
outros ordenamentos jurídicos – ao que parece na Alemanha, Dinamarca, Suécia, Israel, Estados Unidos e França – nunca a tornará conforme a moral administrativa brasileira. O argumento segundo o qual a aposentadoria precoce é legítima porque concedida em outros ordenamentos é falacioso. Ora, a moral, justamente por
ser um produto humano e cultural, varia histórica e geograficamente nas diferentes sociedades. É, portanto, impossível uma moral universal – a moral diz respeito a cada povo, em cada época. Essa é a lição do eminente professor e filósofo espanhol, naturalizado mexicano, Adolfo Sánchez Vázquez, catedrático da Faculdade
de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México:
Se por moral entendemos um conjunto de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos numa comunidade social
dada, o seu significado, função e validade não podem deixar de variar historicamente nas diferentes sociedades. Assim como umas sociedades sucedem a outras, também as morais
concretas, efetivas, se sucedem e substituem umas às outras. Por
isso, pode-se falar da moral da Antiguidade, da moral feudal própria da Idade Média, da moral burguesa na sociedade moderna
etc. Portanto, a moral é um fato histórico e, por conseguinte, a
ética como ciência da moral, não pode concebê-la como dada
de uma vez para sempre, mas tem de considerá-la como um aspecto da realidade humana mutável com o tempo. Mas a moral é
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histórica precisamente porque é um modo de comportar-se de um
ser – o homem- que por natureza é histórico, isto é, um ser cuja característica é a de estar-se fazendo ou se autoproduzindo
constantemente tanto no plano de sua existência material, prática, como no de sua vida espiritual, incluída nesta a moral.14
À guisa de exemplo, poderiam ser citadas aqui diversas outras condutas que,
tanto quanto a aposentadoria parlamentar precoce, embora morais na Alemanha,
na Dinamarca, na Suécia, em Israel, nos Estados Unidos ou na França, são amorais
ou mesmo imorais no Brasil. Aborto, casamento entre homossexuais, circuncisão
obrigatória, pena de morte, ablação feminina, descriminalização das drogas e eutanásia são apenas alguns dos muitos temas polêmicos.
E por que a aposentadoria precoce dos parlamentares estaduais é objetivamente imoral no Brasil? Ora, a natureza da aposentadoria no ordenamento jurídico brasileiro, longe de ser uma benesse, uma mordomia ou uma sinecura, é a garantia retributiva da inatividade remunerada reconhecida àqueles que já prestaram
longos anos de serviço ou se tornaram incapacitados para as suas funções a fim
de resguardar a eficiência do serviço público. Fundada na solidariedade social,
a natureza da aposentadoria é a de amparar aquele que já trabalhou durante muitos anos ou já não pode mais trabalhar. A aposentadoria precoce, ao fim de oito
anos de mandato, estatuída pela Assembléia Legislativa paraibana refoge àquelas nobres finalidades do instituto aposentatório, configurando uma flagrante contradição entre os fins alcançados pelo legislador (remuneração sem trabalho a quem
se encontra em pleno gozo das capacidades laborais) e os fins visados pelo instituto (solidariedade social com quem já não deve mais trabalhar) – daí a sua objetiva imoralidade. Ao ser concedida precocemente àqueles que ainda gozam de plenas faculdades para o trabalho a aposentadoria parlamentar paraibana ofende às
próprias razoabilidade e racionalidade do instituto da aposentadoria.
Nesse mesmo diapasão é a lição magistral do Min. Themístocles Brandão Cavalcanti repetida em precedente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
(...) 2 - “O instituto da aposentadoria é, antes de tudo, uma conquista social, fundada em um princípio de justiça que não permite o
abandono na miséria, depois de velhice ou da invalidez, daquele
que prestou o seu serviço ao Estado” (Themístocles Cavalcanti), e não
um meio de ganhar mais do Estado, num país em que o desemprego alcança taxas altíssimas. (...) (TRF 1ª Região, MS 94.01.26062-1/DF,
Rel. Des. Fed. Tourinho Neto, DJ 19/12/1994, p. 73862)
14 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 25.
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Configurada a radical contradição entre os fins alcançados pelo legislador
estadual e os fins visados pelo instituto da aposentadoria, inegável se torna a imoralidade do instituto por afronta à razoabilidade. Nesse diapasão, o sempre digno Supremo Tribunal Federal assegurou lição indelével:
O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa
está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz
fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da
proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas
cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do “substantive due process of law” - acha-se vocacionado a
inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de
suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta
obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do
“substantive due process of law” (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração
normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador. (Supremo Tribunal Federal, ADIMC1407/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24-11-00, p. p. 86)
V.
Quanto à afronta à gramática constitucional do instituto da aposentadoria,
importa destacar que, na redação original da Constituição Federal de 1988 (art. 40
e seus parágrafos15) já constavam quais as hipóteses em que se davam as aposenta15 Art. 40. O servidor será aposentado:
I - por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrentes de acidente em serviço, moléstia
profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei, e proporcionais nos demais casos;
II - compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço;
III – voluntariamente:
a) aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e aos trinta, se mulher, com proventos integrais;
b) aos trinta anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, e vinte e cinco, se professora, com
proventos integrais;
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dorias dos servidores e as respectivas exceções (como constam ainda hoje). As aposentadorias previstas constitucionalmente eram as seguintes:
1. Aposentadoria por invalidez permanente;
2. Aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade;
3. Aposentadoria voluntária aos trinta e cinco anos de serviço, se homem, e
aos trinta, se mulher, com proventos integrais;
4. Aposentadoria voluntária aos trinta anos de efetivo exercício em funções de
magistério, se professor, e vinte e cinco, se professora, com proventos integrais;
5. Aposentadoria voluntária aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte
e cinco, se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo;
6. Aposentadoria voluntária aos sessenta e cinco anos de idade, se homem,
e aos sessenta, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de
serviço.
A competência para legislar sobre previdência social está insculpida no art. 24,
inc. XII, da Constituição Federal16, que a arrola entre as matérias que se submetem à
competência legislativa concorrente dos entes federativos, ou seja, à União compete
estabelecer as normas gerais da matéria e aos Estados compete suplementá-las.
Neste tipo de competência, não se permite nunca dispensar ou alterar tudo aquilo
que a Constituição já estabeleceu como condições de eficiência, moralidade e aprimoramento do Estado brasileiro, ou seja, o cometimento de tal competência ao Estado-membro não autoriza, todavia, à Assembléia Estadual elaborações legislativas em
c) aos trinta anos de serviço, se homem, e aos vinte e cinco, se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo;
d) aos sessenta e cinco anos de idade, se homem, e aos sessenta, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço.
§1º - Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, “a” e “c”, no caso de exercício de
atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.
§2º - A lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários.
§3º - O tempo de serviço público federal, estadual ou municipal será computado integralmente para os efeitos
de aposentadoria e de disponibilidade.
§4º - Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios
ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei.
§5º - O benefício da pensão por morte corresponderá à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido, até o limite estabelecido em lei, observado o disposto no parágrafo anterior.
16 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
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desacordo com os princípios constitucionais atinentes à matéria, pois a estes deve
obediência o legislador infraconstitucional. Destarte, não podem ser desconsideradas
as disposições constitucionais acerca do tema, sob pena de tornar inaplicável a legislação estadual. Nesse ponto, a Constituição Federal é clara:
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis
que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
Com referência à competência concorrente, prevista no art. 24 da Constituição Federa é incontornável o magistério de Raul Machado Horta, in verbis:
As Constituições federais passaram a explorar, como maior amplitude, a repartição vertical de competências, que realiza a distribuição de idêntica matéria legislativa entre a União Federal e os
Estados-membros, estabelecendo verdadeiro condomínio legislativo, consoante regras constitucionais de convivência. A repartição
vertical de competências conduziu à técnica da legislação federal
fundamental, de normas gerais e de diretrizes essenciais, que recai
sobre determinada matéria legislativa de eleição do constituinte
federal. A legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro
que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de
normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais. A Lei
Fundamental ou de princípios servirá de molde à legislação local.
É a Rahmengesetz, dos alemães; a Legge-cornice, dos italianos; a
Loi de Cadre, dos franceses; são as normas gerais do Direito Constitucional Brasileiro17
In casu, as normas mais gerais sobre a matéria previdenciária já estavam inscritas no próprio caput do antigo art. 40 da CF/88, caberia ao legislador estadual observá-las ao dar concretude à sua competência concorrente (vinculação do
legislador). Na linha desse exato entendimento, o advogado e consultor jurídico
José Roberto de Andrade, em parecer publicado no respeitado Boletim de Direito
Municipal18, ensinou:
A aposentadoria é, pois, um direito inteiramente regulado pela
Constituição. Esse é o modo de ver tranqüilamente aceito pela
17 HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 366.
18 ANDRADE, José Roberto L. de. Carteira de Previdência de Vereadores e Prefeitos: Não há como se considerar
constitucional. In: BDM - Boletim de Direito Municipal. Out./94, p. 555-7.
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doutrina. Veja-se, nesse sentido, o que nos ensina o eminente Prof.
Hely Lopes Meireles:
‘Os requisitos para a aposentadoria, tais como estabelecidos na Constituição, não podem ser alterados pela legislação ordinária. Somente quanto ao tempo de serviço para a aposentadoria (e também) para a reforma, transferência para a inatividade e disponibilidade), tendo em vista a natureza do serviço, se permitem exceções, assim mesmo através de lei complementar, consoante dispõe o art. 40, § 1º, da Constituição. (...). (In
Direito Administrativo Brasileiro, 1988, p. 387).
(...) Daí a conclusão do eminente jurista, endossando a lição de
Temístocles Cavalcanti, no sentido de que as disposições constitucionais sobre a matéria constituem mesmo ‘um código de
direitos e obrigações que devem ser respeitados pelos Estados e municípios (e também pela União) em suas leis ordinárias’.
Assim, a Constituição não só está acima de qualquer outra lei vigente no país, mas também revoga todas as leis e disposições que
lhe são contrárias. Por conseguinte, em face do exposto, não há
como opinarmos pela constitucionalidade da Carteira de Previdência de Vereadores e Prefeitos.
Desde 05 de outubro de 1988, portanto, as aposentadorias admitidas no
ordenamento jurídico pátrio eram aquelas da redação primitiva do caput do art.
40 da Constituição Federal. Nessa direção, o eminente Min. Marco Aurélio bem
salientou:
O preceito da Carta do Estado da Paraíba não se restringe à disciplina da aposentadoria em cargo ou função temporária. Extravasa tal campo para cogitar da aposentadoria proporcional
ao tempo de serviço. No particular, ao primeiro exame, o preceito discrepa de princípio constante da Lei Básica Federal. (Revista Trimestral de Jurisprudência do STF, nº 140, p. 431)
As exceções previstas às aposentadorias por tempo de serviço o constituinte
tratou logo de especificar: lei complementar poderia estabelecer exceções no
caso de exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas
(art. 40, §1º). Outras exceções seriam inadmissíveis. Até mesmo as aposentadorias
em cargos ou empregos temporários, previstas na redação original do § 2º do
citado art. 40, teriam que obedecer às linhas de força descritas no caput e nos seus
incisos iniciais, afinal, como ensina a melhor técnica hermenêutica, o parágrafo é
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tão só uma disposição marginal e secundária que segue o e depende do caput
do artigo. Essa lição elementar mas olvidada de interpretação e redação legislativas
é extraída do clássico compêndio de Hésio Fernandes Pinheiro:
“Paragraphus em latim e paragrapheus em grego é palavra composta de para (ao lado) e graphein (escrever). Assim, pela sua própria etimologia, vê-se que parágrafo não é escrita principal e,
sim, acessória, marginal, complementar do trecho escrito
onde figura. (...) Estando o parágrafo intimamente relacionado
com o artigo e sendo ele, sempre, uma conseqüência deste, é lógico que se faça depender o seu assunto diretamente do assunto daquele. Por isso, para a redação dos parágrafos, existem também regras próprias, não muitas, é verdade, mas que devem ser observadas. Vejamo-las: (...) 3ª Regra – A regra fundamental, o princípio, nunca deve ser enunciado em parágrafo.”19
À vista de tais argumentos é fácil concluir que as linhas de força, os princípios gerais, as balizas estruturantes das aposentadorias por tempo de serviço
dos agentes públicos já estavam inscritas no caput do art. 40. No seu §1º estavam
as únicas exceções admitidas (exercício de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas – o que, obviamente, não caracteriza a atividade parlamentar).
O §2º do art. 40 nunca autorizou outras exceções além daquelas previstas no §1º,
de modo que mesmo as aposentadorias em cargos ou empregos temporários
deveriam guardar obediência ao esquema lógico do caput, conforme o disposto
no art. 25 CF/88. Foi com esse entendimento que opinei favoravelmente à concessão de registro à aposentadoria do ex-Deputado Egídio Silva Madruga, que detinha
36 anos e nove dias de mandato, tempo mais que suficiente para a concessão do
benefício (Processo TC 6977/95, Parecer nº 106/98).
Se essa não fosse a hermenêutica pretendida pelo constituinte originário
de 1988 não teria ele exigido “lei complementar” para as exceções previstas no
§1º20 do art. 40 original e “lei ordinária” para as possíveis exceções do §2º21 do
mesmo artigo. Seria uma incongruência prever espécies legislativas distintas
para excepcionar a mesma coisa – a aposentadoria por tempo de serviço prevista no caput. A diferença entre espécies legislativas já demonstrava desde logo
que os objetos de ambas as normas eram distintos: a primeira cuidaria de exceções ao tempo de serviço necessário para a aposentadoria, a segunda de re19 PINHEIRO, Hésio Fernandes. Técnica Legislativa. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, p. 99 e 103.
20 §1º - Lei complementar poderá estabelecer exceções ao disposto no inciso III, “a” e “c”, no caso de exercício
de atividades consideradas penosas, insalubres ou perigosas.
21 § 2º - A lei disporá sobre a aposentadoria em cargos ou empregos temporários.
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gular hipóteses já previstas de aposentadoria. Daí uma espécie legislativa mais
complexa e duradoura no §1º (lei complementar) e uma outra mais simples e
mutável no §2º (lei ordinária).
Nesse mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal assentou, ainda sob a vigência da Constituição anterior:
1. Somente Lei Complementar, de iniciativa exclusiva do Presidente da República, pode estabelecer exceções às regras de aposentadoria, compulsória ou voluntária, constantes do art. 101, II e
III da Constituição, haja vista o disposto no seu art. 103. 2. A legislação ordinária pretérita, institutiva de aposentadorias
especiais, reduzindo o limite de idade para a aposentação, compulsória ou voluntária, está implicitamente revogada, a partir
da vigência do texto constitucional inserto na Emenda n. 1, porque com ele incompatível. Recurso extraordinário conhecido e
provido. (STF, RE-100596/DF, Rel. Min. Rafael Mayer, DJU 08-06-84,
p. 9261)
Outro argumento que se poderia utilizar para justificar a aposentadoria precoce é o de que os Deputados, como agentes políticos que são, não se submeteriam às regras gerais da redação original do art. 40 da CF/88, que se referia apenas a
“servidor”. Tal argumento também é pífio, afinal “servidor público” é uma expressão ampla, usada nos textos ora examinados de forma a abranger todos os agentes públicos, inclusive os agentes políticos.
Já demonstrei alhures22 que, entre os métodos clássicos de interpretação jurídica, Savigni já distinguia o gramatical, o sistemático e o histórico. Na competente
proposição de Karl Larenz, citada pelo eminente Prof. Luís Roberto Barroso23, a interpretação gramatical, também chamada de literal, semântica ou filológica,
“consiste na compreensão do sentido possível das palavras, servindo esse sentido
como limite da própria interpretação”. Segundo aquele método hermenêutico
deve-se examinar cada um dos termos normativos para que se possa compreender
o espírito da Lei. Apesar de constituir importante ferramenta de interpretação legal,
o método gramatical não pode ser exercido com um rigor técnico absoluto, pois
dessa forma corre-se o rico de distorcer o conteúdo da norma.
Tomando-se por marco inicial de nossa argumentação esse modelo de interpretação gramatical para o referido art. 40 da CF/88, não há como se negar que o
dispositivo constitucional fala tão somente de servidores públicos. De fato, para
22 FRANCA FILHO, Marcílio Toscano. A Lei Camata e a Remuneração dos Prefeitos e Vereadores. In: Boletim de
Direito Municipal. v.15, n.6, jun. 1999, p. 340 e ss.
23 BARROSO, op. cit., p. 119.
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a doutrina administrativa, as categorias jurídicas do agente político e do agente administrativo nunca se confundiram. Nesse sentido, a lição do mestre Hely Lopes
Meirelles24 é esclarecedora:
“Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e
quase judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência. (...) Nesta categoria se encontram os chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus auxiliares imediatos (Ministros e Secretários de Estado e
Município); os membros das corporações legislativas (Senadores,
Deputados e Vereadores); os membros do Poder Judiciário (Magistrados em geral); os membros do Ministério Público (Procuradores
da República e da Justiça, Promotores e Curadores Públicos); os
membros dos Tribunais de Contas (Ministros e Conselheiros); os representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com
independência funcional no desempenho de atribuições governamentais, judiciais ou quase-judiciais, estranhas ao quadro do servidor público.
Agentes administrativos são todos aqueles que se vinculam ao Estado ou às suas entidades autárquicas e fundacionais por relações
profissionais, sujeitos à hierarquia funcional e ao regime jurídico
único da entidade estatal a que servem.”
Resta observar entretanto que a moderna hermenêutica constitucional, embora partindo sempre da interpretação gramatical, tende atualmente a valorizar outros modelos interpretativos, baseando-se para tanto em importantes contribuições de doutrinadores lusos (Jorge Miranda e Gomes Canotilho) e germânicos
(Konrad Hesse, Friedrich Müller, Otto Bachoff). É uma constatação óbvia que “a linguagem diz sempre algo mais do que o seu inacessível sentido literal, que já se
perdeu desde o início da emissão textual”25.
A interpretação gramatical, apesar de importante referencial teórico, se exercitada com um rigor absoluto, é um perigoso reducionismo técnico que muitas
vezes corre o risco de distorcer o espírito da norma. Não resta dúvida que a linguagem constitucional, sobretudo com a democratização dos processos constituintes, perdeu muito do rigor conceitual necessário à clareza e à objetividade de um
texto jurídico-científico. As Cartas contemporâneas, dado o amplo debate que as
cercam, se conquistam muito em direitos e garantias, perdem demais em rigor vo24 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: RT, 1991, p. 69.
25 ECO, Umberto. In: Les Limites de l´Interprétration, apud BARROSO, op. cit., p. 01.
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cabular e precisão técnica. A esse respeito o Prof. Uadi Lamêgo Bulos já se pronunciou com firmeza:
Tanto a linguagem do constituinte como a linguagem do legislador infraconstitucional possuem o traço da naturalidade, ambas entremeadas, aqui e acolá, de termos técnicos. Isso ocorre por
duas razões. A primeira, foi enfatizada por Paulo de Barros Carvalho, ao notar que ‘os membros das Casas Legislativas, em países
que se inclinam por um sistema democrático de governo, representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são médicos, outros
bancários, industriais, agricultores, engenheiros, advogados, dentistas, comerciantes, operários, o que confere um forte caráter de
heterogeneidade, peculiar aos regimes que se queiram representativos. E podemos aduzir que tanto mais autêntica será a representatividade do Parlamento quanto maior a presença, na composição de seus quadros, dos inúmeros setores da comunidade social’.
A segunda razão consiste em que as leis, no sentido mais lato do
termo, não são redigidas de uma maneira clara, deliberadamente, pois, para serem aprovadas, devem satisfazer compromissos de
forças antagônicas, interesses de variadíssima gama. Isto gera vaguidades, ambigüidades e imprecisões.26
Com tais argumentos é fácil concluir que nem sempre o termo contido num dispositivo normativo se apresenta com sua acepção técnico-jurídica. Portanto, a interpretação que excepciona a aposentadoria precoce do parlamentar estadual dos princípios gerais contidos no art. 40 da CF/88 afigura-se equivocada, mesmo porque se
a intenção do legislador constituinte era separar os agentes políticos teria que o fazer
não só em relação aos representantes do Legislativo, mas também a Ministros e Secretários de Estado e Município, aos membros do Poder Judiciário, aos membros do Ministério Público, aos membros dos Tribunais de Contas, aos representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com independência funcional no desempenho de
atribuições governamentais, judiciais ou quase-judiciais, estranhas ao quadro do servidor público. Diante de tantas exceções o controle da moralidade e das finanças públicas, fim maior da norma constitucional em tela, restaria fracassado.
Esse, aliás, foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento
da já mencionada ADIn 512-0/PB: “Compete ao município a regência normativa
da aposentadoria dos respectivos servidores, incluídos, considerado o sentido lato, os agentes políticos“ (DJU de 18.06.2001).
26 BULOS, Uadi Lamêgo. Teoria da Interpretação Constitucional. In: Revista de Direito Administrativo. n. 205,
jul./set. 1996, p. 23-64.
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VI.
Do fato de os agentes políticos estarem incluídos no conceito lato de servidores públicos – segundo a própria dicção do STF – decorre uma outra inconstitucionalidade que macula as aposentadorias parlamentares precoces, agora de natureza formal: dispositivo constitucional estadual, oriundo de proposta parlamentar, referente aos servidores públicos estaduais, sua aposentadoria ou vantagens financeiras, afronta a iniciativa privativa do Governador do Estado nessas matérias,
à luz do disposto no artigo 61, § 1º, II, “c”, da Carta Federal27.
De forma mais completa tem-se: no plano estadual, é exclusiva do Governador a iniciativa das leis complementares que possam introduzir exceções às regras estabelecidas quanto ao tempo e à natureza do serviço para aposentadoria,
reforma, transferência para inatividade e disponibilidade, no pertinente ao funcionalismo publico estadual. Também sobre esse tema é clara a jurisprudência da nossa corte constitucional:
Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Constituição do Estado de
São Paulo, § 8º do art. 126, introduzido pela Emenda Constitucional nº 1, de 20/12/1990. Direito de aposentadoria aos ocupantes de
cargos em comissão, em igualdade de condições com os demais servidores. 3. Cerceamento da competência do Poder Executivo
para enviar projetos de lei que versem sobre regime jurídico de servidores, estabilidade e aposentadoria. 4. Incabível, por emenda constitucional, nos Estados-membros, dispor o Poder Legislativo sobre espécie reservada à iniciativa
privativa do Poder Executivo, a teor do disposto no art. 61, § 1º,
II, letra “c”, da Constituição Federal. 5. Ação direta de constitucionalidade julgada procedente. Declarada a inconstitucionalidade
do § 8º do art. 126, da Constituição do Estado de São Paulo, introduzido pela Emenda Constitucional nº 1, de 20.12.1990. (STF, ADI
582/SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJU 11-02-00, p. 20)
SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS - TITULARES - APOSENTADORIA - INSTITUIÇÃO - ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS
TRANSITÓRIAS DE CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - CONFLITO COM A
LEI BÁSICA FEDERAL. A criação do direito a aposentadoria dos ti27 Art. 61. (...)
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: (...)
II - disponham sobre:
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
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tulares das Serventias Judiciais e Extrajudiciais mediante norma
transitória de Constituição Estadual vulnera a regra segundo a
qual os Estados organizam-se e regem-se pelas respectivas
Constituições e leis que adotarem, observados os princípios
que decorrem da Lei Básica Federal. A autonomia das Assembléias Constituintes Estaduais está ligada à estrutura e
organização do Estado, não alcançando o tratamento de
situações individualizadas, especialmente quando afaste o
princípio de que cabe ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis que disponham sobre servidores, regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, bem como reforma e transferência de militares para a inatividade. Ao discrepar desse contexto, mostra-se
inconstitucional o artigo 82 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias do Estado do Rio de Janeiro, no que contemplou com
aposentadoria, considerados proventos iguais a sessenta por cento
dos vencimentos dos juízes de direito, aqueles que fossem, a época,
os titulares das Serventias. Artigos 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, 25 e 61, inciso II, alínea “c” da Constituição Federal de 1988. (STF, ADI 139/RJ, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO, Rel. Acórdão Min. MARCO AURELIO, DJU 05-06-92, p. 8427)
Por tudo que foi exposto, fica claro que o parágrafo único do art. 270 da Constituição do Estado da Paraíba era inconstitucional frente ao que estatuía a redação
original da CF/88. Do mesmo modo inconstitucional era a Lei Estadual 5.238, de
24 de janeiro de 1990, que veio regulamentar a lacuna técnica daquele dispositivo estadual. Não resta dúvida, pois, que o eg. Tribunal de Contas da Paraíba deve negar
aplicação às referidas normas, não concedendo o necessário registro ao ato aposentatório em questão e advertindo para a imediata interrupção do seu pagamento. Ao
proceder dessa maneira, essa Corte de Contas protege o erário público.
VII.
Esta não será a primeira vez que o TCE/PB nega aplicação a norma inconstitucional que cria uma aposentadoria precoce. O Tribunal Pleno, ao apreciar o Processo TC 1786/86, na sua 645ª Sessão Ordinária, em 16.03.86, decidiu, à unanimidade,
negar aplicabilidade à Emenda Constitucional Estadual nº 36, de 08 de novembro de
1985, por vício de inconstitucionalidade. Coincidentemente, a referida EC 36/85 tinha por objeto a criação de aposentadorias especiais (precoces) para membros do
Ministério Público Estadual, da Procuradoria Geral do Estado e da Advocacia de Ofício.
Acerca do julgamento daquele processo colhe-se da ata da referida sessão:
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Passando à classe de Processos Diversos o Exmo. Sr. Presidente anunciou o de nº 1786/86 que trata de exame da constitucionalidade da
Emenda nº 36 à Constituição do Estado da Paraíba, de 08.11.85. Relator: Conselheiro Luiz Nunes Alves. Ao relatar o feito S. Exa. disse que
a Presidência, ao tomar conhecimento da Emenda nº 36 à Constituição do Estado da Paraíba achou por bem determinar que a Douta
Procuradoria Geral examinasse a matéria. Em seguida, S. Exa. procedeu a leitura do texto da referida Emenda Constitucional objeto do
Processo e também, do minucioso parecer emitido pela Douta Procuradoria Geral, baseado em ampla jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF e que concluiu ser a Emenda nº 36, de 1985, inconstitucional uma vez que estabelece nova hipótese de aposentadoria não prevista na Constituição Federal. Concedida a
palavra ao Procurador Geral para se pronunciar oralmente em relação ao feito, S. Exa. disse que, em princípio, ratificava integralmente o bem elaborado parecer emitido nos autos de autoria do Procurador Wilson Aquino e lido, na íntegra, pelo Conselheiro Relator.(...)
Devolvida a palavra ao Relator para o voto, S. Exa. disse que naquele Processo não se discutia se as pessoas beneficiadas pela Emenda
Constitucional nº 36 deviam ou não aposentar-se aos 30 e aos 25
anos, a exemplo do que ocorre com outras categorias, como é o caso
do Magistério Público conforme disposto na Constituição Federal.
Acrescentou que a respeito da matéria havia farta jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal e mencionada nos autos, a indicar que os
Estados não poderão modificar o preceito constitucional de
modo a ampliar as hipóteses previstas na Carta Magna. Afirmou que a Presidência da Corte, em boa hora encaminhou a matéria à Douta Procuradoria Geral para estudo e emissão do Parecer a
respeito do assunto. Após estudo e discussão do problema em reunião
do dia anterior com o Dr. Procurador Geral chegou-se a conclusão
de que embora existisse no Processo um bem fundamentado parecer,
falecia competência ao Tribunal para pronunciar-se acerca da matéria. Procurou-se então detectar a tramitação de Processo de aposentadoria ajustado à matéria. Ante a inexistência de feito da espécie, a posição a ser adotada pelo Tribunal seria negar a aplicabilidade à Emenda Constitucional, ou seja, negar o registro de aposentadoria que tramitar no Tribunal. Todavia teria
que se distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e inaplicabilidade de lei inconstitucional pois esta é a obrigação de qualquer Tribunal ou de qualquer dos poderes do Estado. Concluindo,
disse que considerando a repercussão que possa advir de Atos baixa-
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dos pelo Poder Público com base naquela Emenda nº 36/85 votava
no sentido do Tribunal representar perante S. Exa. o Dr. Procurador Geral da República a cerca da inconstitucionalidade
da referida Emenda à Constituição do Estado da Paraíba.(...) Foi em seguida proclamada a decisão do Tribunal - aprovado, à unanimidade, o voto do relator.
Em desacordo com o precedente acima citado, porém, na sessão plenária de
24 de maio de 2001, o eg. Plenário do Tribunal de Contas da Paraíba concedeu o
registro a uma aposentadoria parlamentar precoce (Acórdão APL-TC 353/2001),
reconhecendo-a como constitucional. Nessa altura, estava eu licenciado das minhas atividades no Ministério Público.
Deve ser uma missão institucional permanente desta eminente Corte de
Contas apaziguar a sua própria jurisprudência revolta, contrastante ou desarmônica, de modo a buscar uma hermenêutica coerente para todo o Direito estadual
que aplica. A configuração dessa divergência jurisprudencial entre duas manifestações deste col. Tribunal já constituiria motivo bastante e suficiente para uma novo
pronunciamento seu – sobretudo se considerarmos que, ao contrário do que pareceria indicar o mais recente daqueles acórdãos (Acórdão APL-TC 353/2001), inexiste efeito vinculante nos julgamentos desta Corte. Mas, como se viu até o momento, ainda há razões de sobra para um novo pronunciamento meritório: esta eg.
Corte nunca chegou a se posicionar, nem em sessão plenária nem tampouco em
sessão fracionária, sobre os novos argumentos levantados pelo Ministério Público
na presente manifestação.
VIII.
Como se não bastassem todos os argumentos elencados até o momento, a
aposentadoria ora analisada é ainda fulminada pela inconstitucionalidade pelo motivo de o ex-Deputado Estadual (...) já gozar de uma outra aposentadoria, no cargo
de Procurador do Estado.
Assim, a aposentadoria agora pretendida por (...), na qualidade de ex-Deputado Estadual, é também inconstitucional por ir de encontro ao que rezava o art.
37, inc. XVI, antes de ser modificado pela EC 19/98, senão vejamos:
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários:
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos privativos de médico;
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Em julgamento histórico o Supremo Tribunal Federal, ao decidir o RE
163204-6, relatado pelo culto Min. Carlos Velloso, a respeito do dispositivo constitucional acima transcrito, assentou o seguinte entendimento:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVENTOS E VENCIMENTOS: ACUMULACAO. C.F. art. 37, XVI, XVII. I. A acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida
quando se tratar de cargos, funções ou empregos acumuláveis na atividade, na forma permitida pela Constituição.
C.F., art. 37, XVI, XVII; art. 95, parágrafo único, I. Na vigência da
Constituição de 1946, art. 185, que continha norma igual a que
está inscrita no art. 37, XVI, CF/88, a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal era no sentido da impossibilidade de acumulação de proventos com vencimentos, salvo se os cargos de
que decorrem essas remunerações fossem acumuláveis. II. Precedentes do STF: RE 81.729-SP, ERE 68.480, MS 19.902, RE 77.237SP, RE 76.241-RJ. III. - R.E. conhecido e provido. (Supremo Tribunal
Federal, RE-163204/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU 31-03-95, p.
7779)
O ilustre Ministro Carlos Velloso, nos autos do Recurso Extraordinário acima
indicado, fundamentou o seu entendimento da seguinte forma, inteiramente aplicável in casu:
(...)Verifica-se, portanto, que as disposições inscritas nas Constituições de 1946, art. 185, e de 1988, art. 37, XVI, são iguais. Por muito
tempo, discutiu-se sob o pálio da CF/46, no Supremo Tribunal Federal, se seria possível a acumulação de proventos da aposentadoria com vencimentos de cargo público. A jurisprudência da Corte
Suprema, a princípio, foi vacilante. Todavia, dá notícia o eminente Min. Xavier de Albuquerque, no voto que proferiu no RE 81.729SP, que quando do julgamento dos ERE 68480 e do MS 19.902, o Plenário pôs “termo à hesitação das Turmas, manifestada em acórdãos discrepantes, que a acumulação de proventos e vencimentos
somente era permitida, mesmo no regime da Constituição de 1946,
quando se tratasse de cargos, funções ou empregos legalmente acumuláveis na atividade” (RTJ 75/325). O acórdão do citado RE
81.729-SP, julgado em 05.09.75 e relatado pelo Sr. Min. Xavier de Albuquerque, ficou assim ementado:
“1) Acumulação. A de proventos e vencimentos somente era permitida, mesmo no regime da Constituição de 1946, quando se tratas-
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se de cargos, funções ou empregos legalmente acumuláveis na atividade. Não se podendo reconhecer, no caso, tal direito, dispensase a indagação sobre se sobreviveria ele à Constituição de 1967. 2)
A estabilidade do art. 177, § 2º, da Constituição de 1967 pressupõe
investidura regular no cargo, função ou emprego de que se tratar.
3) Recurso extraordinário não conhecido.” (RTJ 75/324)
(...) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, portanto, interpretando norma constitucional - art. 185 da Constituição de
1946 - igual à que está inscrita no art. 37, XVI, da Constituição de
1988, era no sentido de que a acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida quando se trate de cargos legalmente
acumuláveis na atividade.
Esse sempre foi, aliás, o meu entendimento.
Quando nomeado para esta Corte, ocupava o cargo de Ministro do
Superior Tribunal de Justiça, com cerca de trinta e cinco anos de
serviço. À época, existia parecer do Consultor-Geral da República,
aprovado pelo Presidente da República, no sentido da licitude da
acumulação de vencimentos com proventos. Não acolhi a sugestão
de alguns no sentido de aposentar-me no cargo de Ministro do STJ
e empossar-me no cargo de Ministro do STF. Requeri, expressamente, exoneração do cargo de ministro daquela Corte. Isto porque, repito, sempre entendi que a acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida quando se trate de cargos legalmente acumuláveis na atividade.
Tenho como acertada a lição do professor Ivan Barbosa Rigolin, a
dizer que “o que se proíbe é o duplo ganho, mas é exatamente isso
que parece interessar ao servidor aposentado que volta a ocupar
posto público, e nesse sentido entendemos, a partir da nova Carta,
proibida tal acumulação, se remunerada”. (“O servidor Público
na Constituição de 1988”, Saraiva, 1989, p. 159).(...)
Não procede a afirmativa no sentido de que a Constituição apenas
veda a acumulação de cargos públicos. Que a Constituição é expressa no estabelecer tal acumulação, não há dúvida. Partir dessa
proibição para a afirmativa no sentido de que a Constituição permitiria a acumulação de proventos com vencimentos, é ir longe demais. O que deve ficar esclarecido é que deveria ser expressa a permissão excepcional, a acumulação de proventos com vencimentos,
dado que a proibição está implícita na vedação expressa. É que os
proventos decorrem sempre de um cargo exercido na atividade. Se
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a regra é a proibição de acumulação, a permissão, que é a exceção, há de ser expressa, há de ser escrita. Escrevendo sob o pálio da
Constituição de 1946, esclareceu o professo Haroldo Valadão:
“Se tivesse em vista fazer tais exceções, deveria a Constituição ter
usado outra locução que não acumulação de quaisquer cargos
ou, a manter esta, deveria ter excetuado, expressa e declaradamente, os subsídios, os proventos da inatividade e os soldos qual fez
para o magistério e os cargos técnico-científicos, conservando a
mesma redação na regra geral, redação que constantemente
abrangeu os casos apontados, redação de significado conhecido
no país, e não abrindo para estes disposição especial, quis, por certo, o constituinte de 1946 permanecer firme com a orientação dominante do direito pátrio no assunto.” (Haroldo Valadão, Parecer,
20.05.48, RDA 15/304,335)
É que, no magistério do professor Valadão, “vedando a acumulação de quaisquer cargos, foi o texto constitucional o mais amplo,
usando a palavra ‘acumulação’ sem restrições, a abranger e impedir, portanto, todas as formas de acumulação, e, assim, quer de
exercício quer de remuneração” (ob. e loc. cits., p. 336). Como já
acentuamos, e a lição é, ainda, do Prof. Valadão, “a aposentadoria e a reforma são dadas, também, num certo cargo ou num determinado posto, sendo o funcionário inativo, professor aposentado da Faculdade X, Ministro aposentado do Tribunal J, contra-almirante reformado, general reformado, etc. É que a aposentadoria e a reforma acham-se, também, ligadas diretamente ao cargo
ou ao posto do inativo, como direito ou vantagem dele conseqüente. Os aposentados são funcionários públicos de uma categoria especial, são funcionários inativos.” (ob. e loc. cits., p. 339).
De fato. A aposentadoria encontra disciplina na Constituição e nas leis dos servidores públicos. A Constituição estabelece os casos de aposentadoria e o tempo de serviço necessário à sua obtenção (CF, art. 40), estabelecendo, mais, que
“os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos
serviços em atividade, sendo também estendidos aos inativos
quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos
servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a
aposentadoria, na forma da lei.” (art. 40, § 4º). No que concerne
aos servidores federais, a Lei 8.112/90, disciplina a aposentadoria
nos artigos 185, § 1º, 186 a 195. Os servidores públicos aposentados
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não deixam de ser servidores públicos: são, como bem afirmou Haroldo Valadão, servidores públicos inativos. A proibição de acumulação de vencimentos com proventos decorre, na realidade, de
uma regra simples: é que os vencimentos, que são percebidos pelos
servidores públicos ativos, decorrem de um exercício atual do cargo, enquanto os proventos dos aposentados decorrem de um exercício passado. Ambos, entretanto, vencimentos e proventos, constituem remuneração decorrente do exercício - atual ou passado - de
cargos públicos, ou de empregos e funções em autarquias, empresas públicas, sociedades de economia e fundações mantidas pelo
Poder Público (CF, art. 37, XVI e XVII, art. 40). Por isso mesmo, essa
acumulação de vencimentos e proventos incide na regra proibitiva, porque ambos - vencimentos e proventos - constituem remuneração decorrente do exercício público. E a Constituição, no art. 37,
XVI, ao estabelecer “que é vedada a acumulação remunerada de
cargos públicos”, observadas as exceções por ela previstas, está justamente vedando a acumulação remunerada decorrente do exercício de cargos públicos.
Registre-se, de outro lado, o elemento histórico, a conspirar contra a
tese dos acumuladores. Em trabalho que escreveu sobre o tema, o
Prof. Caio Tácito anotou que “as acumulações remuneradas nasceram no Brasil, como herança recebida da corte portuguesa, na qual
o privilégio de poucos monopolizava os empregos públicos”, e que
“Barbalho mostrou, em página célebre, como a acumulação remunerada era fruto originário do validismo palaciano” (“Comentários
à Constituição Federal Brasileira”, 1902, p. 339). (Caio Tácito, “Acumulação de Cargos na Constituição do Brasil”, RDP 7/16). Já no Império, procurou-se impedir o duplo ganho no serviço público. Proclamada a República, a proibição foi constitucionalizada (CF/1891, art.
73). Os interesses, entretanto, lembra Caio Tácito, eram enormes.
Surgiram, então, as exceções mas o Supremo Tribunal Federal, “em
inúmeros acórdãos, declarou, repetidamente, a inconstitucionalidade das acumulações remuneradas”, lembra o ilustre publicista. Não
obstante as exceções que os acumuladores sempre imaginavam, na
1ª República, muita vez com sucesso, certo é que, a partir de 1930
“voltaria, porém, a mentalidade de saneamento de mal secular. O
decreto nº 19.576, de 08.01.1931, estabelece norma severa contra as
acumulações remuneradas, tornando-as ilícitas, salvo, temporariamente, as funções de magistério, ou deste com cargo técnico ou científico”, esclarece o autor. (...)
Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento.
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Note-se que esse posicionamento do augusto Supremo Tribunal Federal não
é único nem tampouco isolado, mas sim faz parte de torrencial corrente jurisprudencial, da qual se podem extrair alguns outros precedentes:
A acumulação de proventos com vencimentos somente é possível
quando se tratar de cargos acumuláveis na atividade. Precedente. (STF, AGRRE-245200/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CORR A, DJU
02-03-01, p. 7)
A acumulação de proventos e vencimentos somente é permitida
quando se tratar de cargos, funções ou empregos acumuláveis na
atividade, na forma permitida pela Constituição. Precedente do
Plenário RE 163.204. Entendimento equivocado no sentido de, na
proibição de não acumular, não se incluem os proventos. RE
141.734-SP. (STF, RE-141376/RJ, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA)
ACUMULAÇÃO - PROVENTOS - VENCIMENTOS. Na dicção da ilustrada
maioria, entendimento em relação ao qual guardo profundas reservas, a Carta de 1988 somente viabiliza a acumulação de proventos
e vencimentos quando envolvidos cargos, funções ou empregos acumuláveis na atividade (Recurso Extraordinário nº 163.204-6-SP, relatado pelo Ministro Carlos Velloso, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 31 de março de 1995). Convicção pessoal colocada
em plano secundário visando à uniformização de tratamento. (STF,
RE-197699/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJU 17-09-99, p. 58)
Não é lícita a acumulação de proventos e de vencimentos relativos a cargos não acumuláveis na atividade. Precedente do Tribunal Pleno: RE 163.204, D.J. de 31-3-95. (STF, RE-189717/DF, Rel.
Min. OCTAVIO GALLOTTI)
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVENTOS E VENCIMENTOS: ACUMULAÇÃO: IMPOSSIBILIDADE. C.F.,
art. 37, XVI e XVII. I. - A acumulação de proventos e vencimentos
somente é permitida quando se tratar de cargos, funções ou empregos acumuláveis na atividade, na forma permitida pela
Constituição Federal, artigo 37, incisos XVI e XVII, artigo 95, par.
único, inciso I. II. - Precedentes do STF: RE 163.204-SP, Velloso, Plenário, 09.XI.94; MS 22.182-DF, M. Alves, Plenário, 05.04.95; RE
198.190-RJ, Velloso, 2ª Turma, 05.03.96. III. - R.E. conhecido e provido. (STF, RE-185582/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO)
ACUMULAÇÃO. A de proventos e vencimentos somente era permitida, mesmo no regime da Constituição de 1946, quando se tratasse de cargos, funções ou empregos legalmente acumuláveis na
atividade. Não se podendo reconhecer, no caso, tal direito, dispen-
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sa-se a indagação sobre se sobreviveria ele a Constituição de 1967.
(STF, RE-81729/SP, Rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, DJU 19-0975, p. 6739)
Infere-se dos muitos precedentes do Supremo Tribunal Federal que a acumulação, salvo as exceções previstas, quer seja de vencimentos, vencimentos e proventos, ou somente de proventos, enseja grave mácula aos princípios regentes
da nossa Constituição Federal, sobretudo – e novamente – aos da legalidade e
moralidade. Ora, as acumulações são originariamente “fruto do validismo palaciano e desde o Império, assim como, ao depois, na República, tem-se feito tentativas, embora nem sempre exitosas, de combater as acumulações remuneradas,
sendo este o objetivo perseguido: o de proscrever o duplo ganho, salvo para as exceções previstas.” 28
Já indiquei acima que o instituto da aposentadoria, na bela dicção do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, “não é um meio de ganhar mais do Estado”. À luz
de tal afirmação, faz-se curial, e é aqui o ponto fundamental para a não concessão
do registro à aposentadoria ora analisada, relembrar que a percepção simultânea
de vencimentos decorrente do exercício do cargo de Procurador do Estado e os
vencimentos relativos à titularidade de mandato legislativo não está inserida no
rol das exceções de acumulação remunerada de cargos permitidas constitucionalmente na redação original do art. 37, inc. XVI (já citado).
A Constituição do Estado da Paraíba reproduz o texto original da CF/88
no seu art. 30, inc. XX, dispondo que somente pode haver acumulação remunerada de cargos públicos nas hipóteses de dois cargos de professor, um cargo de professor com outro técnico ou científico e de dois cargos privativos de médico. Portanto, e conforme jurisprudência pacífica e dominante do STF, a acumulação
de proventos somente é autorizada pelo ordenamento jurídico pátrio se os cargos
de que decorrem tais proventos forem acumuláveis na atividade. In casu, o
cargo de Procurador do Estado e o de titular de mandato de Deputado Estadual não
se inscrevem nas exceções previstas pelo legislador constituinte. Desta feita, é terminantemente proibido o vislumbre de tal hipótese de acumulação.
Especificamente no caso de mandato de Deputado Estadual a Constituição da Paraíba dispõe em seus arts. 31, I; 56, I, b, verbis:
Art. 31. Ao servidor público, em exercício de mandato eletivo,
aplicam-se as seguintes disposições:
I – tratando-se de mandato eletivo federal ou estadual, ficará
afastado do cargo, emprego ou função.
28 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Acumulação de proventos – Remuneração de cargos – Constituição de 1988.
Boletim de Direito Administrativo. n.º 9, p. 595, 1997.
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Art. 56. Os Deputados Estaduais não poderão:
I – desde a expedição do diploma:
b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam admissíveis ‘ad nutum’, nas entidades
constantes da alínea anterior.”
Vê-se, pois, que os titulares de mandato legislativo terão que observar certos
impedimentos ditados pela Lei Maior Estadual. A esses impedimentos dá-se o
nome de incompatibilidades, que nada mais são que a interdição para o parlamentar da possibilidade deste vir a acumular o mandato legislativo com certas situações que ele ocupava antes de sua eleição ou que adquire após ela. A respeito
do instituto da incompatibilidade assevera com grande propriedade o mestre
pernambucano Pinto Ferreira:
Múltiplas são as causas que deram origem à consagração do instituto de incompatibilidade. Em primeiro lugar, domina a regra da
impossibilidade material de realização simultânea das funções
parlamentares com outras funções públicas. Há o problema do
tempo, da necessidade de dedicação às atividades legislativas, vendando praticamente o bom cumprimento da vida parlamentar.
Em segundo lugar, a incompatibilidade exerce um efeito altamente moralizador e consagra a independência do Legislativo. Ela é
indispensável a fim de proibir que os membros do Poder Legislativo, pelo seu prestígio e influência, possam adquirir vantagens pessoais e econômicas, favorecendo os seus interesses. Teriam necessariamente de negociar o seu voto, em manobras escusas e indecorosas, que lhes permitissem a fruição de vantagens e favores ofertados. O poderia beneficiar-se com a concessão de favores, dados
aos legisladores, evitando assim a fiscalização destes sobre a administração. A autonomia e a independência do Poder Legislativo estão, desse modo, vinculados naturalmente a um sistema severo de
determinação de incompatibilidades.
É essa a razão pela qual as Constituições ou as leis ordinárias prescrevem o seu sistema de incompatibilidades, as quais deverão sempre decorrer de disposições ou normas jurídicas expressas.”29
Com relação ao cargo de Procurador do Estado, em que já é aposentado o
ex-Deputado (...), a Constituição Estadual da Paraíba dispõe da seguinte forma:
29 FERREIRA. Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 3º Vol. São Paulo: Saraiva, p. 4, 1992.
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Art. 136. Aos Procuradores de Estado é vedado:
I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo público efetivo, exceto um de magistério.
Desta feita, é expressamente defeso o exercício simultâneo de mandato de
Deputado Estadual com o de cargo de Procurador do Estado por manifesta
proibição constitucional. Logicamente, pois, a percepção conjunta de proventos
decorrentes do exercício destes mesmos cargos é também vedada.
De ver-se que a Emenda Constitucional nº 20/98, que instituiu a Reforma Previdenciária, não alterou em nada esse modelo. Com efeito, o art. 40, § 6º, da
Constituição, com a redação determinada pela referida emenda, foi claro ao proibir a percepção de mais de uma aposentadoria, ressalvados os casos de acumulação
permitida. O art. 40, § 6º, da CF/88 afirma in verbis:
§ 6º Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumuláveis na forma desta Constituição, é vedada a percepção de
mais de uma aposentadoria à conta do regime de previdência
previsto neste artigo.
Além de fazer regra geral da proibição de se acumular aposentadorias, a
Reforma Constitucional da Previdência também tornou regra geral a impossibilidade de se acumular proventos com vencimentos. É o que passou a determinar o
art. 37, § 10, da Constituição reformada:
§ 10. É vedada a percepção simultânea de proventos de
aposentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42 e 142
com a remuneração de cargo, emprego ou função pública,
ressalvados os cargos acumuláveis na forma desta Constituição, os
cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre
nomeação e exoneração.
Ao ponderar a respeito desse dispositivo constitucional, o ilustre doutrinador
Alexandre de Moraes aclarou o seu conteúdo:
“Note-se que, mesmo na hipótese excepcional onde a emenda constitucional n.º 20/98 permitiu a acumulação de proventos de
aposentadoria com a remuneração de cargo, emprego e função (art. 37, § 10) não será possível a percepção de mais de uma
aposentadoria à conta do regime previdenciário do art. 40 da
Constituição Federal.”
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Uma vez constatada a acumulação inconstitucional da aposentadoria de exDeputado com a aposentadoria de ex-Procurador do Estado, a irregularidade deve
logicamente ser sanada com a extinção da aposentadoria precoce em mandato eletivo nunca com a extinção da aposentadoria no cargo efetivo.
IX.
Com esteio em todas essas afrontas à ordem jurídica, é de se registrar outrossim que são impertinentes quaisquer alegações a respeito de direito adquirido ou de ato jurídico perfeito, com base no argumento de que a aposentadoria fora concedida regularmente já que seu titular havia cumprido os requisitos previstos à época.
Em tempo algum, porém, teve o interessado configurado a seu favor direito adquirido ou ato jurídico perfeito, posto que as normas ensejadoras da
concessão da aposentadoria especial, o art. 270 da Constituição Estadual e a lei estadual regulamentadora do referido artigo, constituíam afronta aos dispositivos
constitucionais então vigentes acerca do regime de aposentadoria. Um ato nulo
não é apto a produzir direito adquirido nem não adquirido30. O STF já se
pronunciou a esse respeito em diversas ocasiões. Vejamos:
ATO JURÍDICO PERFEITO – DIREITO ADQUIRIDO – CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A existência de ato jurídico perfeito, a desaguar em
direito adquirido, pressupõe a formalização em harmonia com
a ordem jurídica constitucional. (STF – Segunda Turma AGRAG-155772 / SP - Relator Min. MARCO AURELIO Publicação: DJ
27-05-94 PP-13177).
MANDADO DE SEGURANÇA. MAGISTRADO DO DISTRITO FEDERAL.
DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO QUE, NO PROCESSO DE SUA APOSENTADORIA, EXCLUIU, DO CÁLCULO DOS PROVENTOS, O TEMPO DE SERVIÇO PRESTADO À ENTIDADE PARTICULAR E A VANTAGEM PREVISTA NO ART. 184, INC. II, DA LEI N.
1.711/52. Inexistindo lei autorizadora de contagem de tempo de
serviço em atividade particular, para efeito do cálculo de adicional por tempo de serviço, não há falar-se em direito adquirido ao
cômputo da aludida vantagem nos proventos de aposentadoria. O
deferimento dos adicionais, na atividade, foi ato nulo, insuscetível de gerar direito. (STF – Pleno – MS 21722 / DF – Relator
Min. Ilmar Galvão – Publicação DJ 18-03-94 PP 05151).
30 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. amp. atual. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 219.
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Destarte, tisnado que estava do vício odioso da inconstitucionalidade, como
amiúde explicitado, o ato concessório da aposentadoria especial é nulo, não sendo
apto a gerar qualquer efeito jurídico que importe direito adquirido. O repúdio ao
ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da
Constituição. Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em
conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica. O reconhecimento da validade
de uma norma inconstitucional - ainda que por tempo limitado - representaria
uma ruptura com o princípio da supremacia da Constituição.
A norma inconstitucional não pode criar direitos, nem impor obrigações,
de modo que tanto os órgãos estatais como o indivíduo estão legitimamente autorizados a negar obediência às prescrições incompatíveis com a Constituição.
X.
ISTO POSTO, considerando que até o momento o interessado permanece
alheio à discussão travada nestes autos, opina este representante do Ministério Público, em preliminar, pela notificação do ex-Deputado Estadual (...), preservandose, assim, as garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
Quanto ao mérito, à luz do diferendo jurisprudencial existente nesta Corte e com fundamento na inconstitucionalidade material e formal da aposentadoria parlamentar precoce por ofensa à moralidade administrativa, às regras gerais
constitucionalmente estabelecidas e à iniciativa legislativa do Poder Executivo, opina o Parquet pela NÃO CONCESSÃO do necessário registro à aposentadoria do exDeputado (...), cessando-se imediatamente o seu pagamento.
É como opino.
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segundo tribunal de alçada civil 5ª câmara
apelação com revisão nº 616.898-0-9
Manoel de Queiroz Pereira Calças
Juiz do Segundo Tribunal de Alçada Civil, 5ª Câmara, em São Paulo Capital.
Doutor em Direito.
Professor da Faculdade de Direito de Bauru – ITE.
Comarca: Mogi das Cruzes
Apelante: Finasa Leasing Arrendamento Mercantil S/A
Apelado: Paulo Renato Cavalca Arantes
VOTO Nº 6304
“Arrendamento mercantil. Revisão contratual. Alteração da política governamental cambial. Teoria da imprevisão. Fato superveniente. Onerosidade excessiva. Código de Defesa do Consumidor.”
“A abrupta alteração da política cambial promovida pelo governo federal em período de estabilização da moeda em face do “Plano Real” é fato extraordinário e imprevisível que autoriza a revisão do contrato de leasing com base na teoria da imprevisão, sendo de rigor o afastamento da indexação cambial e a adoção de indexador interno.”
“A alteração da política governamental cambial feita após a celebração do contrato de arrendamento mercantil que liberou o
câmbio e, como conseqüência, causou a abrupta alta das contraprestações atreladas ao dólar americano é fato superveniente cau-
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sador de onerosidade excessiva para o consumidor, que autoriza
a revisão da cláusula contratual que prevê a variação cambial
para a adoção de indexador nacional. Inteligência do artigo 6º,
inciso V, do CDC.”
“O risco da captação de moeda no exterior com custos mais baixos
e sua aplicação no mercado interno, com ganhos mais elevados e
mediante operações de hedging deve ser suportado pelas arrendadoras, que no exercício de sua atividade primária, têm responsabilidade objetiva, na ótica da teoria do risco do negócio.”
“O Código de Defesa do Consumidor se aplica ao contrato de arrendamento mercantil, já que inserido na prestação de serviço de
natureza financeira prestado pela arrendadora em favor do arrendatário que, na condição de consumidor, firma contrato de
adesão.”
VISTOS
1.
Trata-se de ação de revisão contratual promovida por PAULO RENATO CAVALCA ARANTES em face de FINASA LEASING ARRENDAMENTO MERCANTIL S.A., alegando, em síntese, que, em julho de 1997, celebrou com a requerida, contrato de
arrendamento mercantil de veículo, pelo prazo de vinte e quatro meses, convencionando-se que as prestações mensais seriam atualizadas pela variação cambial. A partir de janeiro de 1999, por força da mudança da política cambial praticada pelo Governo Federal que causou abrupta e extraordinária desvalorização da moeda nacional em face do dólar americano, não teve mais condições de continuar a cumprir o
contrato, pois os valores exigidos pela arrendante tornaram-se excessivos, destacando que em dezembro de 1998 pagou a prestação com base no dólar a R$1,206 e em
fevereiro a prestação será calculada com o dólar cotado a R$ 1,57, isto é, com um
aumento superior a 60% em período de inflação negativa. Com fundamento na teoria da imprevisão e na velha cláusula rebus sic stantibus, com amparo na doutrina
reproduzida na exordial, pede a intervenção do Judiciário na economia doméstica
do contrato para ser determinada sua revisão e restaurada sua comutatividade. Invoca ainda o artigo 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor que arrola
como direito básico: “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”, para afirmar que, diante do fato superveniente, consistente na alteração da política cambial do governo brasileiro, que elevou a cotação
do dólar americano em mais de 60% em poucos dias, está caracterizada a hipótese
autorizativa da revisão da cláusula contratual para que a arrendatária possa pagar as
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parcelas vencidas a partir de janeiro de 1999 nos mesmos valores de dezembro de
1998, com a correção monetária pelo INPC. Pede o provimento da ação, deferida a
revisão do contrato para que a arrendatária possa pagar as prestações vencidas a partir da alteração da política cambial com o indexador do INPC, além dos encargos sucumbenciais.
A respeitável sentença de fs.65/75, relatório adotado, julgou a ação procedente e determinou o cálculo das prestações vencidas a partir de de janeiro de
1999 à razão de R$ 1,32 por dólar americano, nos termos da banda cambial máxima fixada pelo Banco Central e as prestações subseqüentes deverão ser atualizadas pela variação do INPC/IBGE, condenando a requerida nos encargos perdimentais, inclusive honorária de 10% sobre o valor atualizado da causa.
Inconformada, apela a requerida, invocando a aplicação da regra do pacta
sunt servanda, que dá espeque ao princípio da força vinculante dos contratos,
verberando contra a possibilidade do Judiciário intervir na economia doméstica
dos contratos, lembrando o postulado da liberdade de contratar. Afirma que o
contrato de leasing não está protegido pelo Código de Defesa do Consumidor,
pois inexiste relação de consumo na hipótese, não sendo a arrendadora fornecedora, nem o arrendatário consumidor, sendo inviável, portanto, a revisão com
supedâneo no artigo 6º, inciso V da legislação consumerista. Destaca a ausência
dos elementos doutrinários exigidos para a aplicação da teoria da imprevisão ao
caso em exame. Afirma que demonstrou a origem dos recursos aplicados nos
contratos de leasing por captação no exterior, sob o regime da Resolução 63/Bacen, pelo que, foi atingida pela alta da moeda norte americana da mesma forma
que o arrendatário, ressaltando a legalidade da operação em moeda estrangeira
e da indexação cambial, na dicção do artigo 6º, da Lei n. 8.880/94 e artigo 9º da
Resolução n. 3.309/96 do BACEN, afirmando ainda a ilegalidade da utilização de
índice de preços como cláusula de reajuste nas operações financeiras, ativas ou
passivas, conforme Circular 2.463/94, pelo que, a apelante esta ao abrigo do artigo 160, I, do Código Civil, tendo celebrado o contrato de leasing sob a égide
da legislação que o regulamenta, mercê do que, postula o provimento do apelo
e a inversão do julgado monocrático. (fs. 78/108).
Recurso regularmente processado, preparado, com resposta.
Relatados.
2.
Destaque-se, primeiramente, que a pretensão de revisão contratual deduzida
pela arrendatária veio fundada na Teoria da Imprevisão e no Código de Defesa do
Consumidor.
A matéria é, efetivamente, exclusivamente de direito, formulada a pretensão
de ser aplicada a teoria da imprevisão derivada da cláusula rebus sic stantibus e a re-
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gra do artigo 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, que reconhece como direito básico do consumidor a revisão de cláusula contratual que em razão de fato superveniente torne-se excessivamente onerosa.
A questão fática posta nos autos é pública e notória. Desde 1994, com a implantação do Plano Real o Governo Federal adotou o dólar americano como uma
das âncoras do plano econômico, estabelecendo o sistema de bandas cambiais, pelo
qual controlava, no âmbito doméstico, o valor da moeda norte-americana. Implementada por vários anos a política econômica governamental, com sucessivos pronunciamentos das mais altas autoridades monetárias do país, entre as quais, o Presidente da República e o Presidente do Banco Central no sentido de que o “real” não
seria desvalorizado perante o “dólar”, em janeiro de 1999, o Governo Federal promoveu abrupta alteração de tal política, ensejando forte desvalorização da moeda
nacional, causando crise financeira de graves proporções, atingindo empresários,
instituições financeiras e particulares que tinham obrigações vinculadas à variação
cambial. Tal mudança da política cambial afetou diretamente os arrendatários que
haviam celebrados contratos de leasing com prestações indexadas à moeda norteamericana, sendo esta a causa do pedido de revisão do contrato sub judice.
Notório ainda o fato de que, a saída de cena do Governo Federal na fixação
das bandas máxima e mínimas do dólar americano, sob o pretexto de liberar o mercado das peias oficiais causou a elevação dos valores das prestações dos contratos
de leasing indexados à moeda norte-americana. Tal afirmativa decorre do fato de
que a última cotação oficial do dólar válida para janeiro de 1999, antes da mudança
da política cambial, foi de R$ 1,32 por dólar, que, dias após a alteração daquela política, foi cotado no mercado livre em mais de R$ 2,00. Tal fato, em curto espaço
temporal, causou o aumento de mais de 50% do valor das prestações dos contratos
de leasing, num quadro econômico em que os índices de inflação interna praticamente permaneceram inalterados.
Diante de tal quadro fático, pediu o arrendatário o reconhecimento de estar
ele sob a proteção da teoria da imprevisão e do Código de Defesa do Consumidor
e, assim, ser titular do direito de revisão da cláusula contratual que prevê o atrelamento dos valores devidos à moeda norte-americana, sob o argumento de que a
modificação da política cambial do Governo brasileiro caracterizou fato imprevisível
e extraordinário, autorizador do restabelecimento da comutatividade contratual,
bem como se enquadra como fato superveniente causador da excessiva onerosidade de suas obrigações, o que também autoriza a revisão da cláusula onerosa, sob o
prisma do Código de Defesa do Consumidor.
A r. sentença acolheu integralmente a demanda, aplicou o Código de Defesa
do Consumidor, afirmando que referida legislação incide nos contratos de leasing,
que têm caráter financeiro, consubstanciado em financiamento de bens e serviço
massificado ofertado aos consumidores em geral, configurando-se em contrato de
adesão, destacando ainda que, mesmo que não incidisse na hipótese a legislação
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consumerista, a pretensão seria acolhida sob o enfoque da teoria clássica da imprevisão. Por fim, fixou a prestação vencida em janeiro de 1999 com base no dólar americano cotado em R$ 1,32 e as demais prestações subseqüentes com atualização pela
variação do INPC.
A pretensão revisional, no que concerne ao afastamento da vinculação das
prestações à variação cambial da moeda americana e a adoção de um indexador nacional foi, data venia, corretamente concedida, sendo certo que, tanto sob a ótica
da vetusta teoria da imprevisão, bem como pela aplicação do Código de Defesa do
Consumidor, a hipótese era mesmo de procedência da ação.
Em relação à invocada teoria da imprevisão, cumpre, inicialmente lembrar
que, classicamente, sob a égide do liberalismo, os contratantes, ao se vincularem
por um contrato, se obrigam a cumpri-lo integralmente, tornando o avençado lei entre as partes, incidindo a velha parêmia do pacta sunt servanda. No século XIX o liberalismo atinge o seu apogeu com a integral aplicação do laissez-faire, que não
permitia ao Estado intervir nas relações econômicas estabelecidas livremente entre
as pessoas, sendo vedada qualquer interferência estatal no âmbito doméstico do relacionamento contratual, mesmo em hipóteses nas quais se configurasse como injusta a relação contratual. Aplicava-se, com rigor, o velho princípio do pacta sunt
servanda e o inadimplemento contratual justificava a execução coativa judicial das
obrigações contratuais, sendo totalmente despicienda qualquer defesa que se sustentasse na desigualdade das partes ou nos prejuízos que uma das partes suportaria
em face da rigorosa e objetiva exigência de sua contraprestação.
Durante tal período da história do direito contratual, enfatizava-se a ampla liberdade de contratar, derivada do princípio da autonomia da vontade, proclamando-se que as pessoas podiam agir livremente, celebrando, ou não, qualquer espécie
de contrato, nele inseridas quaisquer espécies de cláusulas, vedando-se a intervenção do Judiciário no âmbito interno dos contratos, mesmo que, a execução da avença causasse prejuízos aparentemente injustificados a uma das partes contratantes.
No início do século passado, período denominado de liberalismo contemporâneo, os juristas constatam que a igualdade política que a ordem jurídica assegurava não correspondia à igualdade econômica, pois, com o desenvolvimento do capitalismo, e o surgimento de grandes empresas, ao se insistir na igualdade das partes
contratantes, olvidava-se o grande desnível econômico das partes, circunstância que
podia gerar enormes injustiças, ensejando a desproporcionalidade das prestações
convencionadas.
RONALDO PORTO MACEDO JR., faz a seguinte assertiva:
Conforme salientado, a idéia básica do direito contratual do século XIX incorpora a idéia do Estado liberal, no qual o direito maximiza a liberdade dos indivíduos, favorece a autoconfiança e assume uma postura neutra frente determinadas desigualdades so-
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ciais. O quadro conceitual básico do direito contratual clássico
fica fixado pelas escolhas individuais, no âmbito das quais o direito deve desempenhar um papel de agente facilitador das transações. Conforme é freqüentemente observado pela bibliografia sobre
contratos, inclusive a mais tradicional, diversos problemas que
emergem em casos concretos para este sistema contratual liberal
clássico irão questionar o âmbito da liberdade de escolha e a responsabilidade dos agentes contratantes nas transações econômicas. Tais questionamentos colocarão em cheque a idéia de sistema
puro e bem definido, em torno do qual se estrutura o direito contratual clássico. Não obstante a permanência do sistema, ainda
que com um crescente número de exceções e modificações, reflete
a necessidade de preservar a sistematicidade e legitimidade de um
modelo de pensamento doutrinário fechado e integrado. A doutrina da integralidade e a idéia de sistema jurídico legal racional
ajudam a manter a legitimidade do direito, à medida que este é
apresentado como um sistema neutro, isento de valores, imunes à
política e organizado por um conjunto de princípios que podem
ser legitimados tanto racionalmente como pela tradição e rotinização das ações dos operadores do direito. Em outras palavras, o
sistema contratual liberal mantém sua hegemonia à medida que
oferece elementos para a ampliação da legitimidade do exercício
do poder organizado em termos de dominação burocrática racional formal e também mediante mecanismos de dominação tradicional. (Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor, Ed. Max
Limonad, 1998: 47/48).
A teoria clássica dos contratos, portanto, não tinha condições mais de ser aplicada nos moldes tão bem sintetizados na tese acima reproduzida. Os juristas começam a
perceber que o princípio da não intervenção do Estado, de forma absoluta, não pode
ser aplicado integralmente às relações contratuais e começam a defender a intervenção
estatal no regramento contratual, sugerindo a edição de normas de ordem pública regulatórias com o objetivo de limitar a autonomia da vontade em favor do interesse coletivo. Sustenta-se a possibilidade da intervenção judicial nos limites internos dos contratos, permitindo-se a mitigação de seus efeitos, modificando-os ou liberando a parte
contratante prejudicada, na busca de uma justiça contratual.
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA afirma que:
A idéia intervencionista ganha corpo e atinge três aspectos principais:
A) Às vezes o legislador impõe a contratação, como no caso de definir como delito contra a economia popular a sonegação de mer-
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cadorias ou a recusa de vender (Lei n. 1.521/51), ou como naquele outro de conceder ao locatário de prédio urbano a prorrogação
de aluguel.
B) Outras vezes institui cláusula coercitiva, definindo direitos e deveres dos contratantes, em termos insuscetíveis de derrogação, sob
pena de nulidade ou punição criminal, como no contrato de trabalho (CLT, art. 9º), ou no de venda de terrenos em prestações, em
que é vedada a cláusula de rescisão de pleno iure do contrato (DL
nº 58/37).
C) Em outros casos, concede a lei ao juiz a faculdade de rever o
contrato, e estabelecer condições de execução, coativamente impostas, caso em que a vontade estatal substitui a vontade dos contratantes, valendo-se a sentença como se fosse a declaração volitiva do interessado”. (Instituições de Direito Civil, Ed. Forense, vol.
III, 1978:26).
Atualmente, pode-se citar como exemplos de intervenção judicial nos contratos as hipóteses previstas no artigo 19 da Lei nº 8.245/91, que prevê a revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado. A renovação judicial dos contratos de locação não residenciais, prevista no artigo 51 da Lei nº 8.245/91 é outra
hipótese em que a autonomia da vontade do locador cede diante da intervenção do
Judiciário que, pode, renovar compulsoriamente o contrato locatício.
Conclui-se, portanto, que o princípio da força obrigatória dos contratos, configurado na antiga afirmativa de que o contrato é lei entre as partes, pedra angular
sobre a qual se assenta a segurança das relações contratuais, que vigorou de forma
absoluta durante cerca de dois séculos, e que proibia a intervenção do juiz para rever cláusulas contratuais ou exonerar uma das partes das obrigações convencionadas, gradualmente foi sendo abrandado e não incide mais com a marca da imperatividade absoluta.
O dogma clássico do pacta sunt servanda é relativizado, sendo aplicado com
mitigações, sem, no entanto, perder sua importância como base de segurança sobre
a qual se assenta a teoria dos contratos e a obrigatoriedade do cumprimento das
obrigações livremente pactuadas na forma da legislação positiva.
Este é o ensinamento de FÁBIO ULHOA COELHO, in verbis:
A cláusula pacta sunt servanda, no entanto, não tem aplicação absoluta, posto que se encontra limitada por uma outra cláusula,
também implícita em certos contratos, que possibilita a sua revisão
diante de alterações econômicas substanciais que surpreendem
uma das partes contratantes durante a execução do avençado.
Trata-se da cláusula rebus sic stantibus, que sintetiza a teoria da
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imprevisão. Segundo esta cláusula, se uma das partes contratantes
tiver a sua situação econômica alterada em virtude de fatores imprevisíveis e independentes de sua vontade, e em função desta alteração o cumprimento do contratado acabar se revelando excessivamente oneroso para ela, então será possível a revisão das condições em que o contrato foi estabelecido. (Manual de Direito Comercial, Ed. Saraiva, 1999:402-403).
A Teoria da Imprevisão adotada pelo direito positivo francês, configurou o coroamento da evolução da revisão judicial dos contratos, iniciada com a velha cláusula da rebus sic stantibus, que foi aperfeiçoada pelas teorias da pressuposição de
Windischeid e da superveniência de Giusepi Osti.
A cláusula da rebus sic stantibus passa a ser considerada como implícita aos
contratos, significando que, nos contratos de duração prolongada, chamados de trato sucessivo, ou de obrigações diferidas no tempo, o cumprimento da obrigação se
condiciona à persistência da mesma situação fática existente ao tempo da celebração da avença. Havendo modificação da situação de fato, resultante de circunstância imprevisível, com a conseqüente oneração excessiva de uma das partes e o benefício injustificado para a outra, pode-se desvincular o prejudicado, permitindo-se
também a alteração de cláusula, restabelecendo-se a equação econômica-financeira
da relação contratual.
Os autores modernos que se debruçaram sobre o tema, com pequenas divergências de pouca relevância prática, proclamam a integral aplicação da teoria da imprevisão.
Sustenta-se que não se pode mais falar em cláusula tácita, mas sim, em teoria da
imprevisão, fundamentada na eqüidade e boa-fé, o que obriga a análise dos acontecimentos novos de forma objetiva, de molde a se aferir a manutenção da equivalência das
prestações, marca inconfundível dos contratos comutativos. Dessarte, se os acontecimentos novos alteram a equação econômico-financeira do contrato firmada no início da
avença, alteração esta que extrapola os limites da previsão do contratante médio, o contrato tem o potencial de causar graves prejuízos em detrimento de uma das partes e, via
de conseqüência, o favorecimento injustificado da outra. Ocorrendo tais circunstâncias,
impõe-se, por princípio de eqüidade, a revisão do contrato. (Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, Imprensa Nacional, 1943:201, Darcy Bessone, Do Contrato – Teoria Geral, Saraiva, 4a. edição, 1997:222).
Destaca-se ainda que a teoria da imprevisão só pode ser aplicada aos contratos convencionados para o futuro, os chamados de trato sucessivo, de longa duração ou de prestação diferida, tal qual já estabelecia a velha cláusula “R.S.S.”.
Concluindo o exame, ainda que de forma perfunctória, da doutrina a respeito
da teoria da imprevisão e sua aplicabilidade aos contratos é possível sintetizar os
fundamentos modernos autorizadores da revisão judicial dos contratos.
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Relativizou-se o princípio da força obrigatória dos contratos, abandonando-se
a idéia do dogma absoluto do pacta sunt servanda, ou da irretratabilidade dos contratos. Demonstrada a alteração da situação de fato que existia ao tempo em que o
contrato foi firmado e a nova situação fática em vigor quando da execução da prestação, de forma anômala e imprevisível, tornando sobremodo onerosa a prestação,
é possível aplicar-se a teoria da imprevisão. O acontecimento, portanto, tem que ser
extraordinário e imprevisível. A teoria só incide, porém, nos contratos de trato sucessivo ou de prestações diferidas. (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, RT, vol. III, 1978:141)
Além disso, é preciso que a alteração imprevisível do estado de fato, cause extrema dificuldade para a parte adimplir sua obrigação. A eqüidade exige que a modificação do estado de fato cause onerosidade excessiva para uma das partes e enriquecimento injustificado para a outra, o que autoriza ao judiciário rever as cláusulas
contratuais e restabelecer a equação econômica do contrato.
Inobstante tal entendimento, não se pode olvidar que a teoria da imprevisão
tem sua origem na velha cláusula do direito canônico, da rebus sic stantibus, e independentemente de se afirmar que tal cláusula é tácita ou implícita, na verdade, o
que fundamenta a revisão judicial dos contratos é a eqüidade, somada à boa-fé, que
sempre deve ser prestigiada na interpretação dos contratos, bem como o princípio
que veda o enriquecimento ilícito. A soma de todos esses antigos postulados do direito, autoriza sustentar-se a legitimidade da revisão dos contratos e o reconhecimento da relativização do vetusto dogma do pacta sunt servanda. Anota-se ainda
que a teoria da imprevisão só pode ser aplicada aos contratos de execução diferida
ou de trato sucessivo, e que tenham a marca da comutatividade. Pode-se afirmar,
dessarte, que a revisão tem por objetivo garantir a justiça comutativa dos contratos
e, por isso, afasta-se sua aplicação dos contratos aleatórios, nos quais o risco e o imponderável integram a manifestação de vontade dos contratantes. (cf. Coelho,
1999:403; em sentido contrário: Bessone, 1997:223). A alteração da situação de fato
existente ao tempo em que o contrato foi celebrado e a nova situação concretizada
quando da execução da prestação tem que ser de tal ordem, anômala, extraordinária, e, além de imprevisível, deve causar o desequilíbrio, quebrando a equivalência
das obrigações. Busca-se, em suma, com a revisão do contrato o restabelecimento
da equivalência substantiva entre os contratantes. A onerosidade excessiva para uma
das partes e o conseqüente enriquecimento indevido do outro, pode ocorrer, inclusive nos contratos especulativos ou celebrados entre os empresários.
A jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça tem deferido a revisão dos contratos com fundamento na teoria da imprevisão, conforme se verifica pelas ementas a seguir reproduzidas:
O princípio – pacta sunt servanda – deve ser interpretado de acordo com a realidade sócio-econômica. A interpretação literal da lei
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cede espaço à realização do justo. O magistrado deve ser crítico da
lei e do fato social. A cláusula rebus sic stantibus cumpre ser considerada para o preço não acarretar prejuízo para um dos contratantes. A Lei de locação fixou prazo para a revisão do valor do aluguel. Todavia, se o período, mercê da instabilidade econômica,
provocar dano a uma das partes, deve ser desconsiderado. No
caso dos autos, restara comprovado que o último reajuste do preço ficara bem abaixo do valor real. Cabível, por isso, revisá-lo judicialmente (REsp. 177.018-MG, Rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 20.08.98).
Resp. Comercial.Contrato. A prestação contratual, em havendo expressão econômica, deve mantê-la durante a avença. Caso contrário, haverá enriquecimento ilícito para uma das partes. Leis subseqüentes à avença, visando a conservar o valor, devem ser levadas
em consideração. O pacta sunt servanda deve ser compatilizado
com a cláusula rebus sic stantibus (REsp. 128.307-MG, Rel. Ministro
Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 11.11.97).
Celebrado o contrato de promessa de compra e venda, com prestações diferidas, sem cláusula de correção monetária, durante o
tempo de vigência do plano cruzado, quando se esperava debelada a inflação, a superveniente desvalorização da moeda justifica
a revisão do contrato, cuja base objetiva ficou substancialmente
alterada, para atualizar as prestações de modo ao refletir a inflação acontecida depois da celebração do negócio (REsp. 135.151-RJ,
Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, j. 08.10.97).
Revisão Judicial. Pacta sunt servanda não pode ser entendido literalmente. Algumas vertentes, inconformadas com a escola da exegese de origem francesa, com o pluralismo sistêmico-funcional, o
humanismo-dialético, o neo-marxismo jurídico-ortodoxo e o normativismo dialético, buscam, através da norma, realizar valores.
Invoque-se a velha cláusula rebus sic stantibus. O aluguel, nesse
contexto, deve expressar o valor locatício para evitar enriquecimento sem justa causa. Urge recusar reverência eclesiástica à literalidade da lei (REsp. 67.226-SP, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, j.
21.10.95, DOU 18.12.95, p. 44.647).
Teoria da imprevisão. Aplicabilidade, mesmo à mingua de texto expresso, posto que exigência de eqüidade. Necessidade, entretanto, de que se apresentem todos
os seus pressupostos. Entre eles, o de que os fatores imprevisíveis alterem a eqüivalência das prestações, tal como avaliadas pelas partes, daí resultando empobrecimento sensível de uma delas com enriquecimento indevido da outra. Inexiste razão
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para invocar essa doutrina quando, em contrato de mútuo, tendo o mutuário dificuldade de cumprir aquilo a que se obrigou, em virtude de prejuízos que sofreu.
Não há de falar em desequilíbrio das prestações nem em enriquecimento injustificável do mutuante (REsp. 5723- MG, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, RSTJ 23/329).
Examinando-se a pretensão de revisão do contrato de arrendamento mercantil sub judice, sob o enfoque da teoria da imprevisão, entendo, data venia dos que
perfilham posicionamento diverso, que estão presentes os pressupostos doutrinários e jurisprudenciais que autorizam a revisão dos contratos de leasing como o que
está sendo examinado nestes autos.
Assim é que, a partir da edição da Medida Provisória nº 542, de 30 de junho
de 1994, que foi convolada na Lei nº 9.060, de 29 de junho de 1995, diplomas legais
que implementaram o Plano Real com o objetivo primordial de debelar a violenta inflação que assolava nosso País e lograr a estabilização da moeda nacional. A implementação do “Plano Real” veio fundamentada em ampla propaganda oficial em que
ressaltava que não haveria desvalorização da moeda perante o dólar americano, cujo
valor seria controlado pelo Banco Central através da fixação das bandas cambiais,
mínima e máxima.
Durante mais de quatro anos, as bandas cambiais oficialmente fixadas mantiveram a estabilidade da moeda perante o dólar americano, sendo também mantida
em níveis mínimos a inflação, fato que encorajou a realização de contratos com prestações continuadas ou diferidas em valores atrelados à variação cambial.
Porém, com a abrupta mudança da política financeira praticada pelo Governo
Federal, ocorrida em janeiro de 1999, quando o Banco Central deixou de fixar as
bandas mínima e máxima do dólar americano, houve a conhecida crise que abalou
a economia nacional, pois, o repentino aumento da cotação da moeda norte americana causou a enorme elevação das prestações dos contratos atrelados ao dólar. A
imprensa especializada anotou que em 13 de janeiro de 1999 o dólar foi cotado a R$
1,3193 e em 03 de março de 1999 sua cotação atingiu o valor de R$ 2,1647 (fonte:
Banco Central).
Entendo que tal fato, originário do governo federal, é de ser considerado imprevisível e excepcional, pois, diante das diversas manifestações oficiais que as bandas cambiais seriam controladas pelo Banco Central, a inesperada e abrupta modificação das regras a respeito de matéria de tão grande importância, não era mesmo
previsível para o cidadão comum.
Houve, portanto, modificação da situação fáctica que existia no momento da
celebração do contrato de leasing por fato que se considera imprevisível e extraordinário, diante das condições econômico-financeira-políticas vigentes ao tempo da
contratação. Tal mudança causou o aumento inesperado do preço das contraprestações a serem pagas pelos arrendatários, comparando-se a indexação cambial com
a variação dos índices de preços internos, gerando grandes dificuldades para o
adimplemento das obrigações. Outrossim, arrendamentos mercantis são contratos
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de trato sucessivo, normalmente com prazo de 24 a 36 meses, cuja execução é diferida no tempo, sendo, também, contratos marcados pela comutatividade, fatos que
dão suporte à aplicação da teoria da imprevisão.
Poder-se-ia argumentar, porém, que as arrendadoras não tiveram, em contrapartida, um enriquecimento ilícito ou injusto com a mudança da política governamental, pois, em tese, elas teriam buscado recursos no exterior, conforme autorização do Banco Central, para aplicá-los nos contratos de leasing, o que, também em
tese, as obrigaria a cumprir os contratos oriundos de captação no exterior na mesma moeda internacional, circunstância que impediria a invocação da teoria da imprevisão.
No entanto, as notícias da imprensa oficializada que se seguiram, demonstraram que a modificação da política cambial brasileira trouxe lucros inimagináveis para
as instituições financeiras, conforme se verifica pela reportagem de capa da revista
“Isto é Dinheiro”, edição de 8 de agosto de 2.001, denominada: “O Fabuloso Lucro
dos Bancos”, “Como Itaú, Bradesco & Cia. construíram a mais espetacular safra de
resultados da história financeira do País”, demonstrando a reportagem que em nenhum país do mundo há outro sistema bancário com tanta rentabilidade como o
brasileiro, ficando bem demonstrado que os lucros abusivos obtidos pelo sistema financeiro nacional advieram da alta do dólar (pág. 77/78). No mesmo sentido, as matérias publicadas no jornal “O Estado de São Paulo”, sob os títulos: “Bradesco tem
lucro recorde acima de R$ 1 bi” e “Itaú lucra R$ 1,457 bilhão no 1º semestre”
(31.07.2001, Caderno de Economia “B”, pág.B7 e em 01.08.2001, pág. B7).
Não se pode olvidar ainda que as instituições financeiras que buscam moeda
no exterior para aplicar no mercado interno, sempre estão amparadas por operações de hedging, que as protegem contra a variação cambial, mercê do que, o risco
que as arrendadoras assumem quando atuam em sua atividade empresarial é mínimo. O hedge consoante o Dicionário de Administração de Risco Financeiro é
o termo utilizado com freqüência para indicar uma posição, ou
combinação de posições, que reduz determinado tipo de risco, geralmente à custa do retorno esperado. Em geral, o hedge é realizado por meio de operações que praticamente se compensam, eliminando grande parte do risco (Gary L. Gastineu e Mark P. Kritzman, BM&F, Brasil, tradução de Ana Rocha, 1999).
Impõe-se, portanto, reconhecer que estão presentes os pressupostos da teoria da imprevisão, calcada na secular regra canônica da rebus sic stantibus, sendo de
rigor o restabelecimento da justiça comutativa do contrato, permitindo-se, portanto, a reengenharia contratual, revendo-se a cláusula que estabelece a equivalência
cambial e adotando-se um indexador nacional, de molde a permitir ao arrendatário
cumprir com suas obrigações.
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Tal entendimento já foi adotado por esta Colenda 5a. Câmara, em aresto relatado pelo eminente Juiz Francisco Thomaz, cuja ementa é a seguinte:
Arrendamento mercantil. Revisão contratual. Reajuste das prestações atreladas à variação cambial. Admissibilidade. Incidência
da teoria da imprevisão.
A liberação do câmbio, no estágio em que se encontrava a economia brasileira, pós Plano Real, conjuntamente com as especulações derivadas do mercado de capitais, nacional e internacional,
evidenciam uma conjunção de fatores imprevistos e extraordinários ao conhecimento do homem médio, autorizando a aplicação
da teoria da imprevisão ao caso sub examine (Apelação com Revisão n. 603.529-0/8, Franco da Rocha).
No mesmo sentido, aresto relatado pelo ilustre Juiz Moura Ribeiro, da 4a. Câmara desta Corte de Justiça:
Sempre haverá lugar para a aplicação da teoria da imprevisão
quando o desequilíbrio contratual decorrer de acontecimento não
controlável e não imaginável, de que é exemplo a ação governamental sobre o câmbio (Apelação com Revisão n. 608.569-0/8).
3.
Examina-se, agora, a pretensão, sob o enfoque do Código de Defesa do Consumidor.
Impende, como premissa inicial para se julgar este recurso, decidir se o Código de Defesa do Consumidor se aplica ao contrato de leasing.
Em que pese, inicialmente, ter perfilhado o posicionamento de que o Código
de Defesa do Consumidor só se aplicaria, excepcionalmente aos contratos de leasing, curvo-me ao entendimento majoritário deste Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e também já adotado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no
sentido de se submeter o contrato de arrendamento mercantil ao Código de Defesa do Consumidor.
O artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor estabelece que
fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados,
que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação,
construção, transformação, importação, exportação, distribuição
ou comercialização de produtos ou prestações de serviços. Pará-
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grafo 1º: “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou
imaterial. Parágrafo 2º: “Serviço é qualquer atividade fornecida
no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as
de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,
salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. (grifei).
As arrendadoras têm por objetivo celebrar contrato de arrendamento mercantil, também denominado de “leasing financeiro”, estando, portanto, expressamente enquadradas como fornecedoras de serviços de natureza financeira ou
de crédito.
Outrossim define o artigo 2º da Lei n. 8.078/90 que “consumidor é toda
pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.
O arrendatário, portanto, é consumidor final da prestação de serviços de arrendamento financeiro ou de crédito.
Esta Corte de Justiça tem proclamado, majoritariamente, a incidência do
Código de Defesa do Consumidor nos contratos de arrendamento mercantil.
Confira-se:
No contrato de arrendamento mercantil incide o Código de Defesa do Consumidor. É direito básico do consumidor, garantido précontratualmente por força da expressa previsão legal (art. 6º,V, do
CDC), a possibilidade dele vir a postular a revisão de cláusula contratual que entenda onerosa. Em homenagem a tal direito, não se
pode fechar as portas do Judiciário ao consumidor, sob o argumento do princípio pacta sunt servanda que haverá de ser sopesado na ação principal (Rel. Juiz Moura Ribeiro, RT.768/270).
Sendo o arrendamento mercantil negócio jurídico de natureza
mista, tem por objeto locação ao lado da venda e compra do bem,
e não desfrutando ele de legislação especial que o discipline, submete-se às regras do Código de Defesa do Consumidor, porquanto
a aquisição de produto é típica relação de consumo, nos termos
dos arts. 2º e 3º, desse diploma (Rel. Juiz Vieira de Moraes, Ap.
c/Rev.nº 520.133, São Vicente, j. 15.5.98),
Arrendamento mercantil. Leasing. Código de Defesa do Consumidor. Pessoa jurídica. Fornecedora de serviços de natureza financeira. Consumidor. Aquisição ou utilização do produto ou serviço
como destinatário final. Caracterização. Necessidade para sua
aplicação.
Entidade financeira de arrendamento mercantil é fornecedora
porque presta serviço de natureza financeira. Se o arrendatário é
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o destinatário final, o contrato submete-se ao Código de Consumidor (Rel. Juiz Celso Pimentel, Ap. c/Rev. nº 553.465-00/4, 4a. Câmara, j. 09.09.1999).
O Código de Defesa do Consumidor tem aplicação às relações derivadas de contrato de arrendamento mercantil, pois é um contrato de natureza mista, de locação, de compra e venda e de mútuo
bancário e que constitui uma relação de consumo (Rel. Juiz Amorim Cantuária, RT.783/331).
No mesmo sentido: Apelação 520.018, 4a. Câmara, rel. Juiz Celso Pimentel,
j.15.6.98; Apelação 528.399, 4a. Câmara, rel. Juiz Celso Pimentel; Apelação 552.691,
9a. Câmara, rel. Juiz Eros Piceli, j. 18.8.99; Apelação 533.570, 5a. Câmara, Rel. Juiz
Laerte Sampaio, j. 02.02.9; Apelação 521.402, 8a. Câmara, rel. Juiz Milton Gordo, j.
10.09.98; AgIn 531.213, 9a. Câmara, rel. Juiz Claret de Almeida, j. 24.06.98).
Na doutrina, o escólio de LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES, eminente
Juiz do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e Professor de Direito do
Consumidor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é categórico no
sentido da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de leasing, in verbis:
Não é certo, na nossa opinião, afirmar taxativamente que não se
aplica o CDC nos contratos de leasing. Toda e qualquer relação de
consumo que se estabeleça entre consumidor (art. 2º) e fornecedor
(art. 3º), na qual se negociem produtos (par. 1º do art. 3º) e serviços (par. 2º do mesmo artigo, com suas exceções – gratuidade e decorrência de relação trabalhista), está abrangida na sistemática
do CDC e por ele protegida.
É claramente exemplificativo o parágrafo 2º do artigo 3º que define serviço, posto que afirma que “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo”. Quando, na segunda parte desse parágrafo, a lei se utiliza do advérbio “inclusive” para especificar os serviços de “natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, ela só o faz de modo exemplificativo e como para se
prevenir da resistência do setor bancário à aplicação da lei protecionista.
Por isso, não temos dúvida em afirmar que o CDC atinge, sim, os
contratos de arrendamento mercantil.
Além disso, inobstante o caráter complexo e especial da operação
de leasing, com pagamento de aluguéis, opção de compra ao final
etc., não há dúvida que seu uso no mercado é caracterizado, especialmente no Brasil, como verdadeira operação de financiamento
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de bens. É, também, serviço de massa tipicamente oferecido ao
consumidor, com todas as suas características próprias: contrato
de adesão, publicidade massiva, taxas homogêneas, créditos aprovados por tabelas objetivas de score e outras”. (autor citado, O Código de Defesa do Consumidor e sua Interpretação Jurisprudencial, Saraiva, São Paulo,1997, p.180).
Anote-se ademais, que mesmo quando a arrendatária celebra contrato de arrendamento tendo como objeto bem destinado às suas atividades empresariais, ainda assim aplica-se o Código de Defesa do Consumidor. Neste ponto, alterando meu
posicionamento anterior, adotei o que proclama o Colendo Superior Tribunal de
Justiça, no sentido de que o uso do bem arrendado na atividades comerciais da arrendatária não afasta a regência da relação pela lei consumerista.
O contrato de arrendamento mercantil está subordinado ao regime do Código de Defesa do Consumidor, não desqualificando a relação de consumo o fato do bem arrendado destinar-se às atividades comerciais da arrendatária (REsp. n. 235.200-RS, j. 24.10.2.000,
3a. Turma, relator Min. Carlos Alberto Menezes Direito
Adota-se, assim, o entendimento majoritário que aplica o Código de Defesa
do Consumidor aos contratos de arrendamento mercantil mercê do que, analisa-se
a pretensão deduzida pelo apelante que pede a revisão da cláusula contratual que
prevê a atualização do valor das prestações do leasing pela variação cambial, sob o
fundamento de que, em razão da mudança da política governamental, (fato superveniente), os valores a serem pagos pela arrendatária tornaram-se excessivamente
onerosos, na dicção do artigo 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor arrola no artigo 6º, inciso V, como direito básico do consumidor a “revisão de cláusulas contratuais que, em razão de fatos
supervenientes, tornem-se excessivamente onerosas.”
Tal norma legal inovou o direito positivo brasileiro ao prever, expressamente,
a possibilidade do consumidor, especialmente em casos de contrato de adesão, pedir a revisão de cláusula contratual que, em face de fato superveniente, cause a onerosidade excessiva do contrato. Constata-se que tal direito supera a possibilidade de
revisão fundada na teoria da imprevisão, pois, não exige mais que o fato seja imprevisível e excepcional, bastando que ocorra fato superveniente implicador da onerosidade excessiva do contrato.
Cláudia Lima Marques ao dissertar sobre o tema afirma:
A norma do art. 6º do CDC avança ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra da
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base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a
destruição da relação de equivalência entre prestações, ao desaparecimento do fim essencial do contrato. Em outras palavras, o
elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual, que agora apresenta a
mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado
de simples fato superveniente, fato que não necessita de ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não foi. Neste sentido a conclusão n. 3 do II Congresso Brasileiro de Direito do
Consumidor – Contratos ano 2.000, com o seguinte texto: “Para
fins de aplicação do art. 6º, V, do CDC não são exigíveis os requisitos da imprevisibilidade e a excepcionalidade, bastando a mera
verificação da onerosidade excessiva” (autora citada, Contratos
no Código de Defesa do Consumidor, 3a. edição, RT, pág. 413).
A hipótese albergada nos autos adapta-se perfeitamente à previsão legal autorizativa da revisão do contrato, pois, foi ele celebrado quando vigorava política governamental que estabelecia o controle do dólar americano, fundada nas bandas máxima e mínima a serem fixadas pelo Banco Central, havendo enfáticos pronunciamentos oficiais no sentido de que não haveria desvalorização da moeda nacional
frente à moeda americana. Posteriormente, com a mudança da política cambial que
o Governo Federal implementou, abruptamente, em janeiro de 1999, que deixou o
valor do dólar americano flutuar livremente, de acordo com as leis do mercado, fato,
portanto, superveniente à contratação do leasing, houve grande aumento no valor
das prestações a serem pagas pelos arrendatários, sendo público e notório que a alta
das prestações superou em mais de 50%, quando a inflação da moeda brasileira era
mantida em níveis reduzidos.
A onerosidade excessiva ficou evidente, sendo certo também que mesmo passados mais de dois anos da alteração da política cambial, a cotação do dólar norteamericano continua a subir, tornando ainda mais aflitiva a situação de todos os que
têm prestações contratuais atrelados à moeda americana.
Anote-se ainda que:
Esta Colenda 5a. Câmara já decidiu casos similares ao presente, tendo entendido que em face da incidência do Código de Defesa do Consumidor aos contratos
de arrendamento mercantil, mesmo quando o bem arrendado seja usado na atividade empresarial da arrendatária, legítima se mostra a revisão de cláusula contratual
que estabeleça o reajuste das prestações pela variação cambial, uma vez a alteração
da política governamental cambial causou a onerosidade excessiva das prestações
suportadas pelos arrendatários.
Confira-se:
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A norma do art. 6º, inciso V do Código do Consumidor ao aceitar
como fundamento para a revisão das cláusulas contratuais, a
onerosidade excessiva pela superveniência de fato novo ocorrido
após a conclusão do contrato, não pressupõe como condição legitimadora da ação revisional, ao contrário da teoria da imprevisão, seja ele imprevisível e excepcional. Logo, a pública e notória
elevação da cotação do dólar ocorrida em janeiro de 1999, enquadrando-se neste conceito de onerosidade excessiva, permite ao arrendatário de contrato de leasing, como destinatário final da relação de consumo, a revisão do indexador das prestações contratadas, substituindo o dólar americado pelo INPC. (Apelação c/Rev.
nº 594.881-0/6, Santos, eminente rel. Juiz Oscar Feltrin).
No mesmo sentido o voto relatado pelo eminente Juiz Francisco Thomaz,
na Apelação com Revisão n° 603.529-0/8, de Franco da Rocha:
Arrendamento mercantil. Revisão contratual. Reajuste das prestações atreladas à variação cambial. Admissibilidade. Incidência do
Código de Defesa do Consumidor. Risco que deve ser assumido
pela arrendadora em captar recursos no exterior, ao custo mais
baixo, injetando-o no mercado interno.
A legislação consumerista, ao contrário da teoria da imprevisão,
para que se possibilite a revisão de cláusulas contratuais, não exige a ocorrência de um fato imprevisto pelas partes, ou que seja extraordinário, bastando que, no curso do contrato de prestações
continuadas (ou diferido), as obrigações do consumidor se tornem
excessivamente onerosas (artigo 6º, V, CDC), modificando o ambiente em que pactuada a avença. Ademais, o risco pela captação
de recursos mais baratos no exterior, injetando-o no mercado interno, deve ser suportado pela arrendadora, em razão de ser exercida por essas instituições, precipuamente, a atividade financeira,
sujeitando-se estas aos percalços da economia interna.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça já apreciou a questão da mudança da política cambial brasileira em face da crise cambial em relação a contrato de
leasing sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor em julgado pioneiro, que
deferiu a pretensão do arrendatário de modificar a cláusula cambial, conforme Recurso Especial n. 268.661-RJ, julgado em 02.08.2001, por maioria de votos, relatado
o aresto pela eminente Ministra NANCY ANDRIGHI, assim ementado:
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Revisão de contrato. Arrendamento mercantil (leasing). Relação
de consumo. Indexação em moeda estrangeira (dólar). Crise cambial de janeiro de 1999. Plano Real. Aplicabilidade do artigo 6, inciso V, do CDC. Onerosidade excessiva caracterizada. Boa-fé objetiva do consumidor e direito de informação. Necessidade de prova
da captação de recurso financeiro proveniente do exterior.
O preceito insculpido no inciso V do artigo 6º do CDC dispensa a
prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a
demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o
consumidor.
A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira
que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da
crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas.
A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando
o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da
variação cambial, pela prestação do consumidor indexada em
dólar americano.
É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado de capitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu direito de informação
(art. 6º, III e 10 “caput”, 31 e 52 do CDC).
Incumbe à arrendadora se desincumbir do ônus da prova de captação de recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade de cláusula de correção
pela variação cambial. Esta prova deve acompanhar a contestação (art. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao
consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela, sob pena de violar o art. 6º da Lei n. 8.880/94).
Na doutrina, cuidando exatamente da questão do leasing e da variação cambial, em pioneiro e precioso trabalho, o Juiz do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de
São Paulo, Luiz Antonio Rizzatto Nunes, já advertia:
...Uma das mais marcantes características da legislação protecionista do consumo é a de ter reconhecido e trazido até nós a res-
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ponsabilidade objetiva do fornecedor (arts. 12, 13, 14, 18, 19, 20,
etc.). Tal ônus tem como fundamento a Teoria do Risco do Negócio, ou seja, o empresário é livre para explorar o mercado, mas o
risco desse empreendimento é totalmente seu.
O mercado de consumo não pertence ao fornecedor, mas sim à sociedade e por isso ao explorá-lo, tem ele que respeitar os limites legais e assumir o risco de sua pretensão. Não pode ele, por exemplo,
através de cláusula contratual repassar o risco de sua atividade
para o consumidor. Se da exploração decorrer lucro é legítimo
que o fornecedor com ele fique, mas se vier prejuízo ele também é
seu. Não é permitido que de nenhuma forma, o risco de perda seja
passado e sequer repartido com o consumidor.
Pois bem. Já há vários meses os bens de consumo de alto preço, especialmente automóveis, vinham sendo “vendidos” através do sistema de leasing. As melhores ofertas eram as que fixavam o preço
com baixos juros mais variação cambial. Ora, o controle do câmbio pelo Governo Federal dava a garantia que não haveria mudanças bruscas na relação cambial, mesmo que a política de bandas pudesse fixar em patamares elásticos as variações. E se existissem aqueles que pudessem prever algum tipo de solavanco no setor, por certo eles jamais seriam os consumidores, que, leigos, não
têm qualquer tipo de informação a respeito. Apenas os técnicos no
assunto poderiam trabalhar com esse tipo de projeção. Tanto é assim, que muitas empresas estavam seguradas contra uma eventual
subida repentina do dólar. E, claro, os agentes financeiros que forneciam no mercado as transações de leasing sabiam muito bem do
risco, especialistas que são no assunto.
Seguindo, então, o que está estabelecido no sistema da lei 8078, é
de se colocar claramente que as cláusulas contratuais que previam que todo ônus da variação cambial seria suportado pelos
consumidores que assinaram contratos de leasing são nulas de
pleno direito. Em primeiro lugar porque como já o dissemos não
pode o fornecedor transferir o risco de sua atividade ao consumidor. Além disso e como decorrência, em parte, da teoria do risco
da atividade, o CDC estabeleceu normas de garantia contra os
abusos que eventualmente se pretendessem praticar contra o consumidor, conforme se verá a seguir. Mas, antes consigne-se uma situação concreta insustentável: a malfadada “flutuação” do dólar
nada mais é do que fruto da especulação (aliás, reconhecida pelo
próprio Governo Federal), que permite que os agentes financeiros
fixem unilateralmente, a seu bel prazer, quanto querem ganhar.
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Não havendo indicador oficial seguro do valor da moeda corrente, deixou-se nas mãos do credor dizer quanto o devedor pagará.
E isso é um absurdo.
E, neste ponto, é importante repetir nota n. 4 do autor:
A situação aqui narrada vale ainda que os fornecedores venham
alegar que os fundos para a efetivação do financiamento são tomados em dólar no exterior. Não só porque, como se disse, o financiador tinha, como tem, modo de se garantir contra oscilações
bruscas, como essa atividade comercial primária é de sua responsabilidade e risco. E essa argumentação não serve mesmo que respaldada em normas do Banco Central permitindo a operação. É
que tais normas são de hieraquia inferior à lei ordinária e, obviamente, não produzem efeito no que com ela colidirem.
E prossegue o eminente magistrado:
Mas, o CDC tem previsão expressa exatamente para esse estado de
coisas. Além da nulidade já apontada da cláusula contratual que
pretende que o consumidor assuma o risco da transação primária: tomada de dólares com repasse pela responsabilização pela
variação cambial, a lei expressamente declara nulas as cláusulas
contratuais que acarretem em concreto situação de exagero e desequilíbrio, taxando-as de abusivas.
Assim, também por essa disposição normativa, a cláusula contratual que permite o uso da variação cambial é nula, pois estabelece vantagem iníqua, abusiva e que coloca o consumidor em desvantagem exagerada (art. 51, IV e parágrafo 1º, I a III), é incompatível com o princípio da equidade (art. 51, IV) e viola o sistema
da lei 8.078 (art. 51, XV).
Mas ainda que assim não fosse, poderia o consumidor pleitear a
modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes
que as tornem excessivamente onerosas (art. 6º,V). (Revista Boletim Informativo, BIS, nº 1, Março/99, Saraiva).
Convém anotar, ainda, que mesmo se considerando a alteração da política
cambial brasileira, a imprensa tem noticiado que os conglomerados financeiros bra-
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sileiros vêm obtendo crescentes lucros. A Revista “Isto é Dinheiro”, de 8/8/2.001 tem
como reportagem de capa “O fabuloso lucro dos bancos”, destacando que Bradesco, Itaú e outras instituições financeiras batem recorde atrás de recorde em seus últimos balanços e exibem os mais fabulosos resultados da história do setor no País”
sendo o terceiro ano consecutivo em que os bancos brasileiros obtém lucros expressivos, superando, em muito a rentabilidade dos bancos estrangeiros, constando da
reportagem a assertiva de um especialista em consultoria bancária que afirma: “Acho
difícil que haja outro sistema no mundo com essa rentabilidade”. Um dos entrevistados, ao responder a pergunta: “De onde veio tanto dinheiro?, afirmou “No geral,
a alta do dólar foi um empurrão ladeira acima”. (publicação citada, pág. 77).
Assim, a revisão dos contratos de arrendamento mercantil para o fim de se
adotar como indexador um índice nacional em substituição ao dólar americano
nada mais é do que a realização da justiça contratual, permitindo que os arrendatários que se viram surpreendidos pela alteração da política cambial brasileira que causou a onerosidade excessiva das prestações convencionadas logrem cumprir seus
contratos e, a final, possam exercer a opção de compra dos bens arrendados, pagando um valor justo, sendo certo também que, tal fato, não trará qualquer prejuízo aos
banqueiros-arrendadores, garantidos por hedge e compensados com lucros astronômicos e reiterados que derivaram, exatamente, da alta do dólar.
Assim, de se concluir que a r. sentença decidiu adequadamente a pretensão
posta em juízo, perfilhando o entendimento doutrinário e jurisprudencial acima reproduzido que autoriza a aplicação, tanto da clássica teoria da imprevisão, fundada
na velha regra da rebus sic stantibus, como a revisão da cláusula contratual que em
razão de fatos supervenientes as tornem excessivamente onerosas, prevista no Código de Defesa do Consumidor, mercê do que, de rigor a manutenção da r. sentença hostilizada.
Convém anotar, por derradeiro, que não tem qualquer pertinência a alegação recursal, no sentido de que o contrato deve ser mantido inalterado, sob a
ótica do artigo 160, I, do Código Civil, haja vista que foi celebrado sob a égide
da Lei n. 8.880 e da Resolução ns. 2.309/96 e Circular n. 2.463/94, ambas do BACEN. Isto porque, em relação ao artigo 160, I, do Código Civil, trata-se de disposição que se refere a ato ilícito, e, em momento algum, se disse que houve ilicitude na contratação, mas sim, que a cláusula que transfere o risco objetivo do
fornecedor ao consumidor é nula, sendo certo, no entanto, que na hipótese vertente, o apelado ao invés da nulidade da cláusula, pediu sua revisão e modificação. Outrossim, a afirmativa de que as normas do Bacen determinam que os contratos de leasing celebrados com recursos provenientes do exterior devem ter
cláusula de variação cambial e, ainda proíbem o uso de índices de preços, o que
justificaria a manutenção da indigitada cláusula, obviamente, não pode ser acolhida em virtude da inferioridade hierárquica de tais normas administrativas em
face do Código de Defesa do Consumidor.
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Ademais, causa espécie que a apelante afirme ser ilícita a utilização de índice
de preços na atualização das prestações dos contratos de leasing quando se verifica
pelo contrato sub judice que na cláusula 6, está previsto que na falta, extinção ou
desuso do indexador do reajuste monetário adotado, (cambial) serão aplicadas pela
arrendadora as seguintes taxas/indexadores: Taxa AMBID, IGPM/FGV, Taxa da ANDIMA, INPC/IBGE, IPC-r, ou outras taxas a serem estabelecidas pelas autoridades
competentes (f.8 da cautelar em apenso).
Assim, ao afastar-se a variação cambial, pelos motivos acima expostos e se adotar o INPC/IBGE como índice atualizador, o julgador se limitou a usar um dos índices expressamente previstos no contrato de arrendamento, inexistindo, obviamente, qualquer ilegalidade em tal decisão.
3.
Isto posto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.
MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS
Juiz Relator
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Centro de
pós-Graduação
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IGUALDADE ENTRE O HOMEM E A MULHER E OS
DIREITOS E DEVERES DO CASAMENTO
Mestre: Magaly Bruno Lopes
Orientador: Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira
LOPES, Magaly Bruno. Igualdade entre o homem e a mulher e os direitos e
deveres do casamento. Dissertação (Mestrado em Direito) - Instituição Toledo de
Ensino. Bauru, 2002. Desde a Antiguidade, ocupa a mulher uma posição de subserviência em relação ao marido. Valores religiosos e sócio culturais insculpiram-se na
tradição jurídica indo-européia, herdada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Nesta dissertação, mostra-se a evolução histórico-social dos direitos da mulher no direito de família e a influência dos diplomas internacionais. Analisa-se, ademais, o princípio constitucional da igualdade, e o critério adotado para a determinação das desigualdades admissíveis pela Constituição Federal de 1988. Estuda-se, também, a
questão da igualdade entre o homem e a mulher e os direitos e deveres no casamento, sempre sob o foco do artigo 5°, I e art. 226, § 5°. Vários dispositivos do Código
Civil de 1916 e de outros comandos infraconstitucionais, conclui-se, não foram recepcionados, importando em sua derrogação, eis que em frontal desacordo com os
preceitos de índole igualitária da Carta Maior. Direitos e deveres decorrentes do casamento devem ser conferidos simetricamente ao marido e à mulher. Entre outras
questões disso decorrentes, a gestão do lar conjugal deve ser efetivada por ambos
os consortes. O pátrio poder é substituído pelo poder familiar, exercido igualmente pelo pai e pela mãe. O novo Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003,
adapta a normatização infraconstitucional ao Texto de 1988.
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natureza jurídica do mandato político
Mestre: Carlos Eduardo Boiça Marcondes de Moura
Orientador: Vidal Serrano Nunes Júnior
A idéia deste trabalho é reunir no mandato político sua estrutura jurídica. Isso
porque, a plêiade de normas que organizam e conferem funcionalidade ao pleno
exercício do mandato, estão alocadas no plano Constitucional. Na linha de tais perspectivas, o tema é apresentado desde a iniciação das atividades políticas na sociedade, os vínculos entre o indivíduo e o Estado, num conjunto de valores que alimentam a democracia. O Poder é enfocado enquanto instrumento dessa faceta política
e jurídica do Estado Democrático Social de Direito. As novas dimensões e perspectivas do mandato político são enfrentadas com a finalidade de familiarizar todas fases que devem ser percorridas, no contexto da igualdade do voto e liberdade de expressão, para que o candidato possa alcançar o mandato pela indiscutível soberania
popular e exercê-lo com legitimidade. O desenvolvimento da pesquisa, centra-se,
notadamente, no sistema organizacional político brasileiro, dimensionado pela natureza, dimensão, controle, legitimidade e eficácia do mandato político.
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a pessoa portadora de deficiência e o seu
direito de locomoção
Mestre: Silvia Araújo Silva
Orientador: Luiz Alberto David Araujo
A presente dissertação trata da pessoa portadora de deficiência e o seu direito de locomoção e busca enfatizar as barreiras encontradas no meio social que dificultam o seu deslocamento e a sua integração na sociedade. A pessoa portadora de
deficiência goza de direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, tais como: direito à igualdade, à saúde, ao trabalho, ao transporte, à vida familiar, à educação especial, à aposentadoria, ao lazer e o direito à eliminação de barreiras arquitetônicas
urbanísticas, na edificação, nos transportes e nas comunicações. Goza também de
interesses especiais derivados de sua especial condição, mantém relações peculiares
com a família, sociedade, escola e com o Estado e requer uma prática social menos
segregacionista e preconceituosa. A história nos mostra que a sociedade e o próprio
Estado sempre procuraram meios para excluir a pessoa portadora de deficiência
através do rechaço, abandono, extermínio, exclusão do meio social, punição, mecanismo de exílio e de purificação do meio urbano. Diante desse contexto, foi quase
nula a conscientização sócio-cultural e do legislador sobre a pessoa portadora de deficiência e praticamente nula a adaptação dos locais possivelmente freqüentados por
essas pessoas. No Brasil, o tratamento específico às pessoas portadoras de deficiência é tema recente e não foi objeto de preocupação dos nossos legisladores em textos constitucionais anteriores. Por fim, a promoção da acessibilidade das pessoas
portadoras de deficiência não é tema que surgiu com a Lei nº 10.098/00. Anteriormente a essa lei, a Constituição Federal de 1988, a fim de garantir o acesso adequa-
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do às pessoas portadoras de deficiência, determinou a construção dos logradouros
e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo,
bem como, a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos coletivo atualmente existentes. Assim, os direitos das pessoas portadoras de deficiência previstos no texto constitucional são viabilizados pelo direito de locomoção e exigem providências concretas dos entes federativos.
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a tutela específica da ação popular como
garantia do acesso à justiça
Mestre: Marco Antonio Ragazzi
Orientador: Flavio Luis de Oliveira
O presente trabalho procura demonstrar a inefetividade das sentenças tradicionais para a tutela dos direitos difusos criados pelo advento da Lei n. 8.078/90,
bem como possibilitar uma reflexão sobre o ato lesivo como requisito para propositura da ação popular, objetivando à proteção do patrimônio público ou entidade de
que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Referida proteção pode ser efetuada por qualquer cidadão,
utilizando-se da tutela antecipada dada a urgência da prestação jurisdicional, visando sempre à prevenção contra o ilícito, podendo ser pela via inibitória ou preventiva executiva. O presente estudo procurará demonstrar, ainda, a utilização da tutela
antecipada em caso de ocorrência de ilícito sem que haja ocorrido o dano, bem
como sua remoção imediata e inibição a novas ocorrências. E, por fim, a possibilidade de utilização da ação popular com pedido de tutela antecipada, quando já tenha
ocorrido o ilícito e o dano, pleiteando-se o ressarcimento pelo equivalente monetário ou na forma específica, sempre visando à proteção a estes bens.
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DA NACIONALIDADE BRASILEIRA Hipóteses de
Aquisição e Perda
Mestre: Daniela Ribeiro Coutinho Santos
Orientador: Flavio Luis de Oliveira
Este trabalho tem como objeto principal estudar e analisar de forma aprofundada a nacionalidade da pessoa física em seus diversos aspectos, sem, contudo, ter
a pretensão de esgotar o tema. A par de nossa inclinação pessoal -uma vez que referido tema sempre nos interessou -não se pode deixar de reconhecer a relevância jurídica do tema exposto. Afirma-se ao longo do texto, que se trata de um assunto que
condiciona o reconhecimento de vários direitos fundamentais do homem. Ao final
deste século, com o fenômeno da criação de blocos -políticos e principalmente econômicos -, a nacionalidade parece, numa rápida observação, um instituto condenado à extinção. No entanto, tal afirmação resulta de um enfoque superficial, pois ao
se fazer uma análise mais criteriosa, verifica-se que o instituto da nacionalidade aparece agora, no final do século XX, revigorado com a onda crescente de nacionalismos, até porque para pertencer a determinados blocos, é necessário possuir a nacionalidade, deste ou daquele Estado. O mundo atual ainda necessita imperiosamente do instituto em questão, para viabilizar a vida em sociedade, estruturada em
Estados. E da nacionalidade que ainda decorre o reconhecimento de vários direitos
fundamentais do homem, e daí, poder-se afirmar, também, que a nacionalidade é
em muitos Estados um pré-requisito para o exercício inclusive destes mesmos direitos. Tendo em vista este objetivo, procurou-se abordar o tema nacionalidade face às
novas disposições constitucionais de 1988 com as alterações pela Emenda Constitucional de Revisão n° 3/94. Assim, após a conceituação e discussão sobre a natureza
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jurídica deste instituto, segue-se a evolução legislativa do mesmo, esclarecendo-se
que, dada a sua relevância - haja vista ser a nacionalidade disciplinada desde a Constituição Imperial de 1824 - optou-se por fazer um escorço histórico da nacionalidade brasileira ao invés de analisá-la sob o enfoque do Direito comparado. Em seguida, este trabalho analisa o fundamento e a base da nacionalidade, bem como discorre de forma primordial sobre as diversas formas de aquisição da nacionalidade brasileira, definindo e diferenciando os brasileiros natos e naturalizados e, ainda sobre
as hipóteses de perda da nacionalidade. Finalmente, é de se esclarecer que tal trabalho foi realizado com o fim específico de pesquisar e analisar a nacionalidade brasileira, limitando-se ao máximo seu exame ao objeto proposto, motivo pelo qual evitou-se na medida do possível, outros assuntos, que embora correlatos ao tema, reclamavam uma análise e consideração mais profundas e específicas.
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a efetivação do controle de
constitucionalidade na justiça
binária brasileira
Mestre: Renato Siqueira de Pretto
Orientador: Luiz Alberto David Araujo
Tendo em vista a hodierna situação política brasileira, que, constantemente,
vem passando por reformas constitucionais, somada à fúria legiferante do Poder Legislativo, seja ele federal, estadual ou municipal, e do Poder Executivo, especialmente através da edição de medidas provisórias, a instabilidade jurídica formou-se no panorama nacional. Conseqüentemente, o assunto tratado ganha conotação, porquanto voltado à defesa e à efetividade da Constituição Federal, lei maior no plano federal, e das Constituições estaduais, leis magnas na esfera local. Nesse contexto, revela-se a importância do tema, onde se procura resguardar a supremacia da norma jurídica hierarquicamente superior – a Constituição – sobre as demais normas inferiores – leis infraconstitucionais. Partindo dessa premissa, esta tarefa buscou elucidar,
de forma prática, a realização da fiscalização de constitucionalidade, por meio do sistema difuso e do sistema concentrado, nos planos da Justiça Federal e da Justiça Estadual. Partindo-se, então, da idéia de controle de constitucionalidade, percorreu-se
a sua história internacional, desde a sua efetivação pelo justice Marshall, e nacionalmente, através da análise das Constituições Federais brasileiras, trazendo-se, numa
primeira etapa, o seu modo de cumprimento na esfera federal. Acostaram-se, desse
modo, no decurso da atividade, comentários a respeito de todas as hipóteses de
controle reservado no Brasil, sobretudo sob a ótica jurídica e prática das decisões do
Supremo Tribunal Federal, sem se olvidar, por óbvio, das consultas doutrinárias
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acerca do tema. Por seu turno, na segunda fase do trabalho, buscou-se, também de
forma não exaustiva, evidentemente, realizar um estudo específico da fiscalização de
constitucionalidade por meio da jurisdição constitucional estadual, é dizer, através
de seu cumprimento pelos Tribunais de Justiça, destacando-se várias peculiaridades
nessa hipótese de controle.
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o concurso público e seus requisitos à
luz da constituição federal
Mestre: Rafael Siqueira de Pretto
Orientador: Luiz Alberto David Araujo
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispensou ao concurso público importância e normatização destacáveis. A importância dimana da natureza eminentemente democrática e conciliadora dos princípios do igual acesso à
função pública e do ingresso pelo mérito, preceitos alicerces e inspiradores da seleção e da admissão de pessoal na Administração Pública. Já a normatização explícita
e específica demonstra atenção e compromisso do constituinte com a excelência da
atividade administrativa. Idêntica deferência merecem os requisitos exigidos para a
investidura em cargos e empregos públicos providos através de concurso público,
que, de um lado, justificam-se pela incessante perseguição da qualidade da atividade administrativa, e, de outro, não podem impedir injustamente o ingresso do cidadão no quadro funcional da Administração Pública. Presta-se a dissertação, destarte,
a investigar a disciplina do concurso público e de seus requisitos à luz da Constituição Federal. Para tanto, o ponto de partida é uma breve reflexão das finalidades do
Estado e do perfil da Administração Pública. Na seqüência, como é de todo inconcebível a materialização de qualquer atividade administrativa independentemente
da vontade humana, parte-se para as formas e critérios de seleção e admissão de
pessoal na Administração Pública, itinerário que engloba o exame de expedientes
utilizados antigamente, do direito estrangeiro e dos antecedentes históricos brasileiros. Depois, esquadrinha-se o disciplinamento normativo do concurso público na
hodierma Constituição Federal. Discorre-se, também, sobre os princípios da legali-
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dade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, igualdade e razoabilidade, na qualidade de norteadores constitucionais da Administração Pública e pressupostos de intelecção do exame de compatibilidade de algumas exigências editalícias,
ilustrando-se, quando conveniente e necessário, farta elucidação doutrinária e jurisprudencial. Requisitos denominados de básicos e extraordinários são destrinçados
em separado. Ainda, aquilata-se o princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário, notabilizando os instrumentos processuais mais importantes e utilizados, e o papel do
Ministério Público. Por derradeiro, compendia-se as temáticas laboradas em juízos
objetivos que designam as ilações ultimadas ulteriormente à investigação científica
e prática desenvolvida.
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o princípio da dignidade da pessoa humana
como fundamento da proteção
constitucional da família
Mestre: Edinês Maria Sormani Garcia
Orientador: Margareth Anne Leister
A partir de uma verdadeira reconstrução de um sistema jurídico, inspirada nas
diretrizes constitucionais e decorrente do progresso tecnológico e principalmente
das transformações do meio econômico e social, foram reformulados alguns princípios básicos do Direito de Família. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, irradiase para todo o ordenamento jurídico, e assim sendo, tal princípio tornou-se base
para as modificações advindas da Constituição Federal de 1988 na seara do Direito
de Família, já que é a famí1ia o primeiro ambiente do ser humano. A família, instituição com aspectos patriarcais e patrimoniais, obediente ao rigor religioso, fundada apenas no casamento sofreu radicais modificações através de uma evolução histórica até que se chegasse na família atual, voltada ao indivíduo que dela faz parte e
sua realização como pessoa. O tema desenvolvido é palpitante e demonstra que a
matéria comporta aspectos que geram acaloradas discussões e firmes decisões dos
Tribunais na busca de respostas aos avanços e anseios da sociedade em constante
evolução.
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controle jurisdicional do conteúdo dos
desenhos animados infantis em busca da
efetivação do direito ao respeito à criança
Mestre: Helton Laurindo Simoceli
Orientador: Luiz Alberto David Araujo
O desenho animado é o mais característico programa de televisão direcionado ao público infantil oferecido pela programação da televisão aberta nacional, portanto seu conteúdo e a busca de um controle de sua qualidade devem levar à efetivação do direito ao respeito, consubstanciado no direito à integridade
física, moral e ética da criança, direito este incluso no rol dos Direitos Fundamentais Difusos. Tal assunto é relevante para o aperfeiçoamento e preservação
da democracia nacional, visto que objetivamos a paz e a harmonia entre nosso
povo e entre os povos. Desta forma, a violência que permeia tal programação incute na mente infantil valores e padrões de comportamento que não coadunam
com os princípios previstos em nossa Carta Maior, bem como prejudicam o pleno desenvolvimento moral, ético e psicológico da criança, levando assim ao descumprimento do, já referido, direito ao respeito. Desta forma, pretendemos demonstrar que o controle jurisdicional de tal programação não só é válido para as
empresas produtoras e transmissoras de tais espetáculos, como é obrigação do
Estado que detém a competência para legislar sobre o assunto, bem como demonstrar que tal controle de qualidade não se choca com outros princípios
constitucionais, como o da vedação da censura prévia e da liberdade de expressão. Cabe para a preservação de tal direito inerente à criança, a utilização da
Ação Civil Pública, prevista na Lei 7.347/85, conforme denota-se de seu conceito
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e de previsão expressa do Código de Direito do Consumidor, conquanto instrumento adequado para o resguardo de direitos fundamentais difusos e coletivos,
no caso em tela, das crianças.
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aspectos da procriação humana assistida
Mestre: Eliane de Melo Labriola Ferreira
Orientador: Margareth Anne Leister
Os aspectos jurídicos e metajurídicos da procriação humana assistida foram
estudados. Aspectos médicos, genéticos e psicológicos foram também apresentados
por serem de grande relevância. Uma revisão do panorama legislativo internacional
abrangendo todas as técnicas de procriação assistida e seu fundamento legal foi feita. A situação do embrião pré e pós-implantatório foi discutida, fazendo-se um alerta para a falta de proteção na legislação brasileira. Sugestões são apontadas para o
estabelecimento de limites na utilização das técnicas e intervenções para a procriação humana assistida e para elaboração de legislação específica.
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a dignidade da pessoa humana e o idoso
Mestre: Fábio José de Souza
Orientador: Margareth Anne Leister
O presente estudo sobre a dignidade da pessoa humana, diante da importância que o tema exige, foi realizado sob a inspiração do artigo 1°, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.
O trabalho desenvolveu-se com reconhecimento à condição humana, valorizando a
dignidade humana, uma vez que esta foi reconhecida como fundamento do Estado
Democrático de Direito. demonstrando a necessidade de favorecer a inclusão dos
indivíduos com igualdade, concedendo-lhes o mínimo vital necessário, para que estejam integrados à sociedade com justiça e solidariedade, com enfoque para as pessoas idosas. O autor se propôs a demonstrar que a pessoa humana foi contemplada
concretamente, elevada ao plano de princípio norteador no ordenamento jurídico
pátrio, a merecer sempre sua inserção sem distinção de gênero na legislação e deixar um estímulo para que a doutrina, na medida do possível, adote a mesma postura. Apresenta, ainda, a proposta de retirar o limite de idade aos 60 anos, atribuído
pelo legislador, para que o ser humano seja considerado ou não idoso.
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controle da constitucionalidade e sua
evolução no direito brasileiro
Mestre: André Libonati
Orientador: Luiz Alberto David Araujo
Em breves linhas, buscou-se estudar neste pequeno texto dissertativo, a importância da instituição de mecanismos direcionados à fiscalização constitucional da
atividade desempenhada pelos diversos órgãos e agentes do Poder Público (Legislativo, Executivo e Judiciário), cujo objetivo precípuo é fazer com que a Constituição
(um poder constituinte, orginário) seja observada pelos Poderes Políticos da Nação
(formas de poder derivadas da Constituição mesma e, por essa exata razão, por ela
limitada).
De ínicio, a abordagem leva em consideração a importância universal e atual
do tema, mas não deixa de mencionar o relevo da Constituição enquanto norma
fundamental, mormente quanto à instituição de mecanismos direcionados à fiscalização da constitucionalidade das resoluções públicas.
Também são abordados diversos momentos da história, em que podem ser
observadas as primeiras tentativas de instituir mecanismos direcionados à solução
da desconformidade constitucional dos atos estatais. Dada nossa própria origem republicana, cujas influências do Direito Constitucional norte-americano não se pode
negar, pareceu também necessário tecer comentários mais profundos sobre a evolução histórica daquela nação, ganhando especial destaque o caso Marbury versus
Madison, de 1803.
Por fim, é apresentada uma síntese sobre os principais sistemas de controle
de constitucionalidade e o caminho evolutivo trilhado pelo legislador constitucional
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brasileiro até que fosse alcançado o desenho apresentado pela Lei Fundamental de
1988, a atual Constituição do Brasil. Somente após esse momento são tomadas conclusões definitivas acerca dos caminhos tomados pelo legislador brasileiro, em especial as últimas alterações promovidas pelo legislador ordinário.
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princípio constitucional fundamental da
dignidade da pessoa humana
Mestre: Flademir Jerônimo Belinati Martins
Orientador: Margareth Anne Leister
Esta dissertação pretende estudar a expressa inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito em que ela se constitui, bem como as conseqüências
jurídicas que esta inovação produziu. Embora outras Constituições brasileiras mencionem a dignidade da pessoa humana, foi a de 1988 a primeira a tratá-la na qualidade de princípio fundamental. Todavia, apesar da relevância histórico-cultural da
dignidade da pessoa humana, o princípio não logrou alcançar plena normatividade,
principalmente em função de seu forte conteúdo axiológico. Analisou-se a noção de
dignidade da pessoa humana no pensamento ocidental, bem como as razões de sua
expressa inclusão em boa parte das Constituições mundiais a partir de meados do
século passado, para, finalmente, chegar-se ao princípio fundamental na Constituição de 1988, tal qual previsto no art 1º, inciso III. Demonstrou-se que a dignidade
da pessoa humana consiste no ‘valor fonte’ do sistema constitucional, conferindolhe unidade axiológico-normativa, de tal forma que a concretização do princípio funciona como parâmetro de aferição de legitimidade da República e do Estado Democrático de Direito. Por fim, observou-se que a dignidade da pessoa humana apresenta-se como uma cláusula aberta para incorporação de novos direitos ao rol constitucional já existente e que, na qualidade de princípio fundamental, ela desempenha
funções que a diferenciam dos demais princípios constitucionais. Dessa forma, conclui-se que não somente é possível, mas essencialmente necessário, dotar o princí-
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pio da dignidade da pessoa humana de plena normatividade. Do mesmo modo, conclui-se que, apesar de sua polissemia, o que acaba por dificultar eventual tentativa
de conceituar o princípio, a dignidade da pessoa humana efetivamente constitui
qualidade inerente de cada pessoa humana que a faz destinatária do respeito e da
proteção tanto do Estado, quanto das demais pessoas, impedindo que ela seja alvo
não só de quaisquer situações desumanas ou degradantes, como também garantindo-lhe direito de acesso a condições existenciais mínimas. Mas, por outro lado, a
dignidade implica considerar que a pessoa humana é chamada a ser responsável não
somente por seu próprio destino, mas também pelos das demais pessoa humanas,
sublinhando-se, assim, o fato de que todos possuem deveres para com a sua comunidade.
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a saúde na federação brasileira
Mestre: Claudia Pereira de Aguiar Guimarães
Orientador: Regina Maria Macedo Nery Ferrari
Esta dissertação aborda o tema da saúde no âmbito da federação brasileira.
Tem como principais objetivos: a apreciação das atribuições de cada ente federativo nos cuidados com a saúde; a análise do Sistema Único de Saúde e a sua compatibilização com o pacto federativo brasileiro; o exame do papel do Estado na prestação de serviços de saúde e a defesa da municipalização dos serviços de saúde como
o caminho adequado na busca de uma melhor qualidade de vida da população brasileira. As conclusões mais importantes do estudo foram: a) todos os componentes
da federação têm competência em matéria de defesa da saúde, mas o município
ocupa papel de destaque, por ser a instância federativa mais próxima dos cidadãos,
tendo melhores condições de conhecer suas necessidades; b) a previsão constitucional do Sistema Único de Saúde é bastante criativa, pois estabelece uma política
pública baseada na unidade, porém executada de forma descentralizada; c) o Sistema Único de Saúde consegue conciliar a autonomia dos entes federativos com a unidade da política nacional de saúde; d) a municipalização, adotada como principal estratégia da descentralização do sistema de saúde, serviu para ampliar os espaços de
participação da sociedade na gestão pública e revelou-se o melhor caminho rumo
ao aprimoramento dos serviços de saúde. Embora ainda não se tenha alcançado a
situação desejada, os resultados positivos do processo revelam ser possível superar
os obstáculos existentes.
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o direito constitucional ao trabalho e a
condição de presidiário no brasil
Mestre: José Roberto Martins Segalla
Orientador: Regina Maria Macedo Nery Ferrari
Não há, no momento, nem nunca houve em momento algum da vida em sociedade, algo mais preocupante do que a segurança pública. Nenhum sonho de
grandeza, nenhuma busca ambiciosa pelo progresso, pelo crescimento, pelo desenvolvimento social, pelo alcance de valores pessoais está imune ao calafrio produzido pelo temor de que tudo isto, ou qualquer coisa disto, possa não resistir a um ato
arbitrário de desapossamento. Perder o que se estima ou necessita ter, de maior ou
menor valor, seja a vida ou um bem material qualquer, pela mera vontade de alguém
que, ao invés de obter o que quer pelo caminho de luta e sofrimento que os demais
trilham, opta por meio mais fácil, é o grande medo que desassossega a todos. Medidas preventivas e repressivas de toda ordem são tomadas, coletiva e individualmente, para proteção geral. Na esteira das providências repressivas, desponta a punição
aos que cometem a ação agressora. Dentre as punições, sobreleva a de segregação
do ofensor. Porém, banido do seio da sociedade, o que fazer com ele? A expectativa é de que o período de isolamento, o malfeitor se ressocialize. Como isto se dá?
Dentre as várias maneiras de cuidar do criminoso no interior do cárcere, buscando
recuperá-lo, escolheu-se para ser aqui examinado o propósito de educá-lo ou reeducá-lo pelo valor social do trabalho honesto, mostrando o modo como os demais
perseguem suas aspirações de convivência harmônica e melhoria social. Este estudo, pois, destina-se a procurar conhecer a teoria e a prática da reconstrução moral
do delinqüente encarcerado através dos valores sociais do trabalho, base, aliás, de
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edificação do próprio Estado brasileiro. Para tanto, buscou-se, de início, resgatar a
idéia jurídica do trabalho em si, procurando primeiramente conhecê-lo como norma constitucional. Do estudo da Constituição e das normas, chegou-se, por fusão,
ao conhecimento das normas constitucionais, e destacou-se, dentre estas, as programáticas, abrigo constitucional do direito ao trabalho. Na seqüência, armou-se a estrutura com a apreciação dos direitos fundamentais, em especial os sociais, e, mais
especialmente ainda, o direito social do trabalho. Para isto, foi preciso lançar-se um
olhar ao passado, procurando identificar as origens desses direitos para melhor
compreendê-los agora. Para se chegar ao tema, necessário se fez conhecer-se o sistema prisional brasileiro, principalmente aquele ligado ao cumprimento de pena
atrás das grades. Para tanto, desenhou-se um quadro tão real quanto o possível.
Após isto, chegou-se à questão dominante. Foi feito, então, um estudo geral de
como se dá, na teoria e na prática, a promoção da pretensão de ressocialização do
prisioneiro pelo trabalho. De tudo o que foi pesquisado e anotado, lançou-se, por
fim, considerações conclusivas, condimentadas com a ousadia da propositura de algumas sugestões críticas. Eis aqui o resumo de que se verá a seguir.
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CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO
Ricardo da Silva Bastos
Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito de Bauru - ITE
Membro do Núcleo de Pesquisa Docente
1.
INTRODUÇÃO
Procuraremos abordar, neste breve estudo, as idéias lançadas, por Miguel Reale, sobre o direito subjetivo, apresentando, posteriormente, algumas considerações
a respeito.
O direito positivo, como sistema de normas jurídicas, constitui-se, ao mesmo
tempo, como estrutura lógico-formal e emanação e fundamento dos direitos. Para
Miguel Reale, “direito positivo é um sistema orgânico de preceitos ou disposições
que se destinam aos membros de uma convivência visando à realização de suas finalidades comuns fundamentais.”1
Nesta propositura, Reale indica e resume seu significado complementando
dialeticamente os dois fatores construtores do direito positivo: o de um sistema
de normas como fundamento de todos os direitos subjetivos. Tal expressão, embora sendo em si mesmo lógica, acarreta inúmeros conflitos doutrinários, o que
podemos contemplar através dos sucessivos posicionamentos históricos das várias escolas, influenciados, é certo, pelos vários pensamentos filosóficos a respeito do Direito.
A discussão doutrinária reside na concepção da origem do direito, partindo-se
do ponto de vista do ordenamento jurídico (positivista) ou do próprio direito natural.
1 Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 13ª ed., p. 247.
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Diante disso, é interessante notar que o mesmo termo direito pode ser utilizado em diversos pontos de vista, que é certo se completam, mas não se confundem. Neste ponto, Tércio2 aponta que “o inglês tem duas palavras diferentes para
enunciar os dois termos: law (direito objetivo) e right (direito subjetivo)”, demonstrando, portanto, tanto o complexo das normas, de um sistema, quanto as prerrogativas ou a legitimidade da conduta humana.
O que nos importa, mais diretamente, neste estudo, é o direito visto como outorga à pessoa humana, ou seja, a condição de satisfação de um interesse e a que título, partindo das diversas teorias formuladas.
O problema é que, no estágio atual do direito, a satisfação de um interesse
não pode ser apreciada dentro de uma ótica individualista, enquanto fundamento
do direito, mas sim, em consonância, com os objetivos comuns da coletividade, objetivos estes que foram sendo descobertos e revistos no curso da história.
Reale apresentou preocupação com o desvendamento da consistência da
“possibilidade que têm as pessoas físicas e jurídicas de ser, de pretender, ou de agir
com referência ao sistema de regras jurídicas em um determinado país.”3
O estudo do direito subjetivo pressupõe a afirmação de que as pessoas são as
destinatárias da norma. Mas pergunta-se: o ordenamento jurídico simplesmente
emite comando permissivo a que se faça o que a lei não proíba, ou, ao contrário, traça perfeitamente os limites dos direitos outorgados? Diversas teorias, ao longo da
história do direito têm procurado esclarecer estas dúvidas, consistindo tais estudos,
na realidade, tentativa de explicar o conteúdo do direito subjetivo.
2.
NORMA JURÍDICA.
A norma, considerada como imperativo condicional, na medida em que realiza uma proposição hipotética, completa-se na conduta individual. Tércio Sampaio
Ferraz Jr., conclui seu pensamento a respeito dizendo que a norma é o “critério fundamental de análise”, referindo-se à interpretação do cientista do direito quanto aos
fatos sociais e o mundo científico.4
Miguel Reale, partindo do pressuposto, neste ponto com Kelsen, de que a
norma emite uma proposição hipotética, conclui definindo-a como “uma estrutura
2 Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., Atlas, p.146. O autor sintetiza bem esta diferença ao dizer que “A distinção parece exigida pela ambiguidade da palavra direito, o que já foi discutido anteriormente. A dicotomia pretende
realçar que o direito é um fenômeno objetivo, que não pertence a ninguém socialmente, que é um dado cultural,
composto de normas, instituições, mas que, de outro lado, é também um fenômeno subjetivo, no sentido de que
faz, dos sujeitos, titulares de poderes, obrigações, faculdades, estabelecendo entre eles relações. Assim, quando falamos no direito das sucessões significamos algo objetivo, quando mencionamos o direito à sucessão de um herdeiro, mencionamos algo que lhe pertence.”
3 Idem, p. 247.
4 Tércio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, Técnica, Decisão, Dominação, 2ª ed., Atlas, p. 102.
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proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve
ser seguida de maneira objetiva e obrigatória.”
Embora consinta com o esquema de fato-tipo (tatbestand/fattispecie) e preceito, como momentos da estrutura da norma, ressalta o elemento axiológico na formação normativa, onde, na realidade o legislador valora os fatos e comportamentos
humanos..
Norma é sinônimo de dever?
Para Luigi Ferri, o direito subjetivo é apenas atribuição normativa decorrente
da imposição de um dever, entendimento este baseado na doutrina de Kelsen. A
norma para esta doutrina seria tão-somente impositiva de dever, sendo os direitos
subjetivos decorrentes deste dever. O valor para Ferri estaria subentendido no próprio comportamento, mas em decorrência do próprio dever. Não difere, neste aspecto, da proposição hipotética, mas somente no fato de ser a norma de qualquer
forma sinônimo de imposição de um dever. 5
Portanto, o direito subjetivo não pode ser visto como exercício de poder, mas
decorrência da permissão normativa, a ter criado contrário dever.
De certa forma, poderíamos dizer, se a norma emite direitos e deveres – sem
a preocupação em absorver ou não a opinião de Ferri – o titular do direito subjetivo não fica em estado de supremacia em relação ao titular do dever, mas estado de
submissão à norma.
Portanto, seu poder é uma delegação do próprio ordenamento jurídico, o
qual, através de uma situação fática, faz incidir um comando a alguém, em relação a outra pessoa. Este direito, portanto, deverá, em contrapartida, ser exercido para satisfação (evidentemente, além do interesse do titular do direito) dos
objetivos previstos no próprio ordenamento jurídico (em suma, fundados no valor da pessoa humana).
Isto já serve como prenúncio a funcionalização e socialização do direito subjetivo.
3.
CORRENTES DOUTRINÁRIAS.
No estudo do direito subjetivo, pode-se perceber claramente as tendências
doutrinárias estreitamente ligadas com o contexto histórico-científico, revelando,
5 Luigi Ferri, tradução de Luis Sancho Mendizábal, Madrid, p. 110. Entretanto, Pietro Perlingieri, em Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional, ed. Renovar, trad. De Maria Cristina De Cicco, p.120, defende
posição contrária, quando diz que “da norma se originam contemporaneamente, sem qualquer precedência lógica,
direitos e deveres. Só existe um direito na medida em que existe um correlato dever e só existe, uma obrigação e
um dever na medida em que existem interesses protegidos que se substanciam no adimplemento daquela obrigação e daquele dever. Apenas por simples comodidade de exposição trata-se, por exemplo, antes do direito subjetivo e depois da obrigação, porque somente falando da relação, isto é, da relação entre a situação dita ativa e a situação dita passiva, poder-se á colher a exata relevância de uma e de outra.”
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como é natural no Direito, as diversas inclinações, ora a posições estritamente formais, ora voltadas para a compreensão jusnaturalista.
Embora se saiba que as teorias de Windscheid (teoria da vontade) e Ihering (teoria do interesse) não satisfazem à concepção presente do direito subjetivo, a falsa compreensão de seu fundamento, por vezes, leva o intérprete à aceitação, ora de uma, ora de outra teoria.
Entender o direito subjetivo como poder da vontade, reduzindo a questão
no âmbito restrito do “poder do querer”, em evidente exaltação das idéias individualistas do direito romano, contraria a experiência jurídica contemporânea.
Parece-nos que, na verdade, confunde-se aqui o “direito” com o “impulso”
de seu titular, olvidando-se que não é a vontade que sustenta seu direito, mas a
própria norma, que o cria.
Miguel Reale aponta alguns obstáculos à teoria da vontade, como o fato de
que, embora, por vezes, não haja vontade, há o direito. Ou seja, o direito subjetivo não nasce com a vontade do titular, embora possam ambas coexistir. Ocorre que o impulso do titular, fundado na norma, é revelador de seu direito. Mas
não que a sua vontade – ou impulso - seja o seu direito, porque pode haver direito sem vontade.
A vontade não poderia servir de fundamento ou ser confundida mesmo
com o conteúdo do direito subjetivo. A defesa do elemento volitivo como fundamento do direito subjetivo não explica a origem e a finalidade do direito.
De fato, a visão individualista e formal característica do século XIX atribui
uma tal concepção aos direitos, constituindo a vontade como critério caracterizador do direito subjetivo, estando tal premissa em consonância com o liberalismo econômico da época.
Admite-se, assim, o direito subjetivo, como a vontade juridicamente protegida. Ou seja, parte-se do individual para o geral, quase que atribuindo à norma
o caráter de “endosso da vontade”.
Miguel Reale comenta que
essa compreensão do direito subjetivo em termos da vontade
constitui, por assim dizer, uma percepção imediata do problema, ligando-se, no fundo, a uma velha crença, à de que o homem, logo ao nascer, já é senhor ou titular de “direitos naturais”, inerentes à sua personalidade, independentemente do
fato de serem estes reconhecidos ou não pelo Estado.
Atualmente, o sentido do direito difere essencialmente desta concepção. A
vontade, longe de ser o fundamento do direito subjetivo, perde sua importância,
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exatamente em razão de ser o direito subjetivo um comando da norma autorizador
de um comportamento, mas com uma função social.6
Portanto, a vontade, o interesse estritamente privado, o individualismo, não
encontram lugar no conceito, ou melhor, no fundamento do direito subjetivo.
Ihering defendeu a tese do direito subjetivo como “interesse juridicamente
protegido”.
Segundo sua teoria, a norma jurídica serviria para dar proteção ou condição
de subsistência ao interesse, núcleo da relação jurídica, que é o direito subjetivo.
A crítica empenhada contra esta teoria, na realidade, não difere da anterior,
pois limitar o direito subjetivo ao interesse é correr o risco de – na sua ausência –
contemplar um direito subjetivo como expressão do desinteresse. Ademais, o termo
“interesse” é por demais vago e indeterminado, o que dificulta um exato conhecimento.7
A doutrina de Jellinek reuniu as teorias do interesse e vontade, formulando
uma terceira, eclética, sendo direito subjetivo “o interesse protegido enquanto atribui a alguém um poder de querer.”8
Reale, no entanto, embora admitindo que a teoria eclética seja nos dias de
hoje a mais aceita como explicação do fenômeno “direito subjetivo”, afirma que sobre ela pesam as mesmas críticas das teorias de Windscheid e Jhering.
4.
O DIREITO SUBJETIVO PARA MIGUEL REALE
O que se percebe, através das diversas teorias formuladas a respeito do direito subjetivo na história, basicamente, é a presença da antítese do jusnaturalismo
com o positivismo.
As primeiras teorias, da vontade e do interesse, expressam, na realidade, as
idéias do direito natural ínsito ao homem, em estado de independência e anterioridade com o ordenamento jurídico. Ou seja, antes mesmo do nascimento contratualmente, daquilo que se denominou Estado, o homem já carregava, em sua bagagem cultural, direitos inerentes, arraigados no seu ser, os quais, por esta razão, estão destacados daqueles nascidos com o Estado.9
Neste ponto, Kelsen presta relevante esclarecimento, na medida em que
associa o direito subjetivo diretamente ao direito objetivo, vinculando-o pertinentemente, atribuindo ao último a designação de fonte de validade de todos os
direitos.
6 Fernando Noronha, O Direito dos Contratos e seus Princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça
contratual), Saraiva, 1994, São Paulo.
7 Miguel Reale, ob. cit., p. 252.
8 Idem, p. 253.
9 O Positivismo Jurídico, Norberto Bobbio, Ícone Ed., 1999, São Paulo.
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Miguel Reale, embora ressaltando a importância – de uma certa forma histórica – das concepções formais do direito subjetivo – não enquadra seu pensamento em nenhuma das tais, por serem eminentemente reducionistas, ora relevando
apenas a realidade normativa, ora apenas o fato como responsável por caracterizar
o fenômeno jurídico, ainda que constante o elemento axiológico.
É claro que o direito subjetivo, sob a ótica positivista, é, sobremodo, individualista, na medida em que opera uma reação de simples caracterização tipológica,
não tendo qualquer compromisso com a função do Direito.10
A visão individualista do direito definitivamente não serve às exigências da
sociedade moderna, onde o bem-estar da coletividade impera sobre os interesses particulares. A noção de direito subjetivo, quase como sinônimo de “privilégio” marca um sentido ultrapassado do que realmente se deve entender por “direito subjetivo”.11
O direito subjetivo, para Miguel Reale, deve ser estudado a partir da “realizabilidade jurídica”, ou seja, segundo “uma visão antecipada dos comportamentos efetivos, aos quais é conferida uma garantia”.12
Assim, a norma seria a “antecipação” dos futuros comportamentos possíveis,
havendo, portanto, inteira correlação entre a pretensão concreta, a partir da sua previsão abstrata.
Nas palavras de Reale “em virtude do princípio da realizabilidade, só podemos
dizer que uma regra de direito prevê, in abstrato, uma pretensão ou uma atividade,
se, em algum momento da vida social, puder ocorrer alguma ação ou pretensão efetivas que representem a atualização da mesma regra in concreto.
A partir desta análise, Reale distingue aquilo que denominou “situação subjetiva” de “direito subjetivo”, sendo o último, espécie da primeira.
Direito subjetivo surgiria então, “quando a situação subjetiva implica a possibilidade de uma pretensão, unida à exigibilidade de uma prestação ou de ato de outrem”. Reale estabelece em sua teoria a “pretensão como conexão entre o modelo
normativo e a experiência concreta”. 13
10 Importante contribuição aqui presta o Prof. Cláudio de Cicco, em sua obra Direito: Tradição e Modernidade, em
precisa abordagem histórica do direito e sua função social: “A passagem de uma idéia individualista a uma idéia comunitária não se operará dentro de uma dogmática jurídica rigidamente legalista, como outrora a da Escola de Exegese e seus sucessores da década atual, mas, propõe Luhmann, “pela formulação de conceitos, de modo funcional,
na dogmática, não mais consistente na simples conservação de elementos essenciais, mas no controle da descontinuidade de um ordenamento auto-substitutivo” E: “esta modificação leva necessariamente a uma formação funcional dos conceitos, a um mais elevado grau de abstração e a uma reflexão sobre a referência ao sistema e sobre a função para o sistema da dogmática”.
11 Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos.
12 Op. cit., p. 256.
13 Op. cit, p. 257. Ver também Orlando Gomes em Introdução do Direito Civil, 14ª ed., Forense, Rio de Janeiro, p.
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A constituição do direito subjetivo surgiria, portanto, com os elementos antecipação/previsibilidade e realizabilidade concreta. Seria constatação normativa, abstrata, de antecipação da experiência na norma, e ao mesmo tempo a própria realização daquilo que foi previsto pelo ordenamento por meio da pretensão do que é devido.
Reale conclui, reunindo os elementos essenciais do problema, dizendo que
“direito subjetivo é a possibilidade de exirgir-se, de maneira garantida, aquilo que as
normas de direito atribuem a alguém como próprio”.
Segundo a teoria tridimensional, a norma é o sentido ou resultado do fato
axiologicamente considerado. Toda regra jurídica, pois, há de potencializar ou antecipar abstratamente as condutas.
Formula, assim, sua teoria sobre direitos subjetivos, baseado em dois momentos distintos de sua atuação: o da norma e o da conduta.
4.1. Primeiro momento: da previsão normativa
O primeiro momento do direito subjetivo estaria ligado à abstração normativa, enquanto previsão de um comportamento futuro, criação esta, segundo Reale,
fruto da experiência de fato, considerando-se o fator axiológico (culturalismo) como
propiciador do nexo fato-norma. Assim, na criação do tatbstand, antecipar-se-ia
comportamentos típicos, os quais, verificados, caracterizariam definitivamente os
chamados direitos subjetivos. Evidentemente que tal previsibilidade normativa deverá estar marcada pela realizabilidade dos comportamentos.
Tal construção pode ser demonstrada bastante simplificadamente pelos termos:
a) norma;
b) realizabilidade garantida pela regra genérica e abstrata;
c) possibilidade de pretender ou fazer algo;
d) antecipação dos comportamentos efetivos;
e) previsibilidade tipológica da pretensão.
4.2. Segundo momento: da experiência concreta
A experiência concreta apresenta a concatenação, a tipificação do fato à norma. Significa pertinência e garantia específicas, esta pelo fato da conduta contar com
a autorização do próprio ordenamento jurídico.
O direito subjetivo existiria, portanto “quando a situação subjetiva implica a
possibilidade de uma pretensão, unida à exigibilidade de uma pretensão ou de um
ato de outrem.”14
14 Op. cit., p. 257.
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Assim temos:
PRETENSÃO
DEVER
Tensão – proporcionalidade diante da norma
Poderíamos, num gráfico, demonstrar, de certa forma uma síntese de sua
teoria:
PRIMEIRO MOMENTO: DA PREVISÃO NORMATIVA
PRETENSÃO
DEVER
SEGUNDO MOMENTO: DA EXPERIÊNCIA CONCRETA
Para Miguel Reale, “o direito subjetivo vive da complementaridade desses dois
elementos e com eles se confunde, consubstanciando uma proporcionalidade entre
pretensão e garantia”15.
5.
CRÍTICA
Reale formulou sua teoria sobre o direito subjetivo com base na teoria tridimensional do direito, construindo a norma segundo a relevância do fato apreciado
valorativamente (axiologicamente). Assim, foi possível antecipar comportamentos, a
partir da experiência jurídica antes valorada (dialética de complementaridade).16
Mas, desta forma, o direito subjetivo apresentado como comportamento a seu
objeto de tipificação legal (mesmo que esta norma tenha conteúdo axiológico) não
acaba por reduzi-lo, ao contrário da essência do pensamento de Reale, ao formalismo lógico-formal, retornando-se ao positivismo Kelseniano?
Na realidade, a colocação da teoria de Reale de direito subjetivo, com um primeiro momento, o normativo, da realizabilidade antecipada do comportamento e o segundo, do comportamento propriamente dito, o qual seria exatamente o fato típico, não
difere, em essência, da teoria negativista de Kelsen, que prega a inexistência do direito
subjetivo, não existindo mais que a simples emanação ou autorização do próprio ordenamento jurídico, vale dizer, a existência, somente de um direito objetivo.
15 Op. cit., p. 258.
16 Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, Saraiva.
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A única diferença entre ambos estaria na apreciação da criação da própria norma, quando que, para Reale, há a presença de uma apreciação axiológica. Estaria resolvido aí, o problema axiológico, na gênese da norma, quando pela dialética de
complementaridade, o valor a compõe.
Como bem expõe Maria Helena Diniz17, em consonância com nossa exposição, a norma deve corresponder a uma finalidade de justiça, evidentemente, à luz
de sua época, já que o conceito de justiça deve ser apreciado sob aspecto histórico.
Assim,
a norma jurídica deve ser sempre uma tentativa de realização de
valores (utilidade, liberdade, ordem, segurança, saúde etc), visando à consecução de fins necessários ao homem e à sociedade. Realmente, se a norma jurídica objetiva atingir um certo propósito, ela
é um meio de realização desse fim, encontrando nele sua justificação. Sua finalidade é implantar uma ordem justa na vida social.
A justiça, apesar de não se identificar com qualquer desses valores,
é, diz Miguel Reale, condição primeira de todos eles, a condição
transcendental de sua possibilidade como atualização histórica.
Ela vale para que todos os valores valham. A justiça, que compendia todos os valores jurídicos, é a ratio juris, ou seja, a razão de ser
ou fundamento da norma, ante a impossibilidade de se conceber
uma norma jurídica desvinculada dos fins que legitimam sua vigência e eficácia.
Mas a simples caracterização de pertinência de um comportamento a um preceito, ainda que estabelecido a partir de uma apreciação de valor das condutas humanas anteriores, não é suficiente para estabelecimento de diferencial do formalismo Kelseniano.
Nos termos atuais, o valor deve integrar também o comportamento (segundo
momento), e não tão-somente o primeiro (da norma). Sua inclusão propicia a caracterização da funcionalização do direito subjetivo, tendo em vista que os comportamentos para serem legítimos devem preencher os interesses do bem-comum considerados constitucionalmente.
Sendo a norma expressão do dever-ser, atribuindo e impondo comportamentos – ainda que permissivamente –, a conduta humana deve sofrer um juízo de valoração, para que haja correlação dos fins sociais estabelecidos na própria norma,
pois os direitos subjetivos perderam o caráter individualista retrógrado, para exercerem a função determinada aos interesses sociais.
17 Compêndio de introdução à ciência do direito, Saraiva, 11ª ed., 1999, p. 394.; Miguel Reale, Fundamentos do direito, 3ª ed., RT.
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Função social significa atribuição de determinados fins, selecionados como
fundamentais na constituição do Estado. Tais objetivos estão presentes não somente na norma, mas nas diversas situações subjetivas. Embora o direito subjetivo se
manifeste como pretensão, o seu exercício não é incompatível com a função, ou
com a atribuição de valorização da pessoa humana.
O interesse do Estado, portanto, nos comportamentos particulares, gera a denominada publicização dos direitos privados. Assim, em contrapartida, os direitos
não podem ser exercidos arbitrariamente, em atendimento, somente, à origem da
pretensão. Ao contrário, devem, ao mesmo tempo, procurar satisfazer a função social de respeito e consideração à pessoa humana.
Há de se indagar, é verdade, se a finalidade ou os atributos do direito devem
influenciar na sua conceituação. Se se inserem na sua caracterização, mas não deveriam constar de sua definição.
Metodologicamente, é importante o apontamento de tais aspectos, mas podese perguntar: será que, afinal, não seria o direito subjetivo o poder de realização de
interesse próprio, ainda que atendendo aos princípios de funcionalização e socialização, chamados limites externos?
Pietro Perlingiere, no entanto, critica esta apressada conclusão, afirmando
que os “limites externos” do direito subjetivo já fazem parte de sua essência,
pois
no vigente ordenamento não existe um direito subjetivo – propriedade privada, crédito, usufruto, etc – ilimitado, atribuído ao exclusivo interesse do sujeito, de modo tal que possa ser configurado
como entidade pré-dada, isto é, preexistente ao ordenamento e
que deva ser levada em consideração enquanto conceito, ou noção, transmitindo de geração em geração. O que existe, é um interesse juridicamente tutelado, uma situação jurídica que já em si
mesma encerra limitações para o titular.18
As teorias da vontade e do interesse, ao contrário, numa visão simplesmente
dogmática, não estariam de todo equivocadas, mas somente no aspecto do extremo
individualismo a que acabam propondo, próprios de sua época.
Cláudio de Cicco19 faz, neste particular, interessante colocação, com Luhmann, quando diz que
o direito positivo, também para a dogmática, vale sem ser discutido, exatamente porque pode ser mudado. A importância
18 Perfis do Direito Civil Introdução do Direito Civil Constitucional, Renovar, trad. de Maria Cristina De Cicco, 1997.
19 Direito: Tradição e Modernidade, cit., p.171.
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desta conclusão de Luhmann explica a metodologia que preferimos seguir nesta obra: não discutimos o Direito Positivo, das
várias épocas antigas, como da Era Moderna in se, mas apenas
nos limitamos a estudar por quais razões ele valia, sem ser discutido.
O fato é que o direito subjetivo deve ser visto como um instrumento para realização ou cumprimento de objetivos. Estes podem ser, primariamente, individuais,
mas nunca se limitam aos tais.
O que há de concreto, na verdade, utilizando as palavras de Perlingieri20, é
uma “situação jurídica complexa”, onde o interesse também cede lugar a concomitantes deveres, que ora são impostos na própria lei, ora de comportamento obrigatório, como a boa-fé objetiva, nos contratos.
O que não podemos aceitar é a simplicidade da tipificação como essência conceitual do direito subjetivo, dada a imprescindibilidade da funcionalidade como elemento não mais externo e limitador, mas motivador e, portanto, nuclear do seu próprio ser enquanto ser.
A construção realizada por Miguel Reale, enquanto gênese positiva do direito
subjetivo é de grande valia, mas não satisfaz, na medida em que abstrai da causa seu
objetivo maior, a função da aplicação direta de princípios e comandos constitucionais e infraconstitucionais.
A construção científica de Miguel Reale, é certo, do direito subjetivo, a partir
de uma pretensão como vínculo entre o modelo normativo e a experiência concreta, certamente encontra total correspondência na experiência jurídica, sendo completa enquanto apresentação da estrutura de um modelo formal. Entretanto, omite
uma expectativa social na utilização do direito que, se antes era apenas dado externo, passa na atualidade a ser considerado elemento intrínseco.
A aplicação dos princípios constitucionais, no direito subjetivo ocorre, genericamente, na consideração do valor máximo da pessoa humana, tão apregoado no
século XX em diante, não podendo um direito ser exercido sem a respectiva observância, como na hipótese do uso da propriedade, que deve satisfazer aos preceitos
construídos ao longo da história, para o bem comum.
Se é certo que a Constituição Federal exige que cumpra a propriedade a
sua função social, não é menos certo que a própria lei opere uma série de limitações e exigências em prol da coletividade. Mas a função social, não obstante o
esforço legal, não se limita à tipificação legal, devendo o titular do direito de
20 Perfis, cit., p. 121. Perlingieri comenta que “na maior parte das hipóteses, o interesse faz nascer uma situação
subjetiva complexa, composta tanto de poderes quanto de deveres, obrigações, ônus. É nesta perspectiva que se
coloca a crise do direito subjetivo. Este nasceu para exprimir um interesse individual e egoísta, enquanto que a noção de situação subjetiva complexa configura a função de solidariedade presente ao nível constitucional.”
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propriedade satisfazer, ou ao menos não atentar contra, a toda e qualquer necessidade social, no momento do exercício de seu direito, ou de faculdades a ele
ligadas, não lhe sendo lícito exercê-los arbitrariamente.
BIBLIOGRAFIA:
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Cordeiro Leite dos Santos;Brasília: UnB.
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Gioele Solari. Coleção Elementos de Direito, São Paulo: Ícone,1995.
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UMA INSÓLITA IMPUTAÇÃO DE “FAVORECIMENTO
PESSOAL” (ART. 348 DO CP)i
Marcelo Cury
Advogado em Bauru-SP.
Pós-Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino.
Assessor do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP em Bauru – TED X.
Não é novidade que, para uma boa parte de nossos Tribunais, o advogado é
dispensável à administração da Justiça, inclusive no campo penal. De fato, como
anotado por Adauto Suannes,2 tem-se entendido que a presença do defensor no
interrogatório é dispensável (STJ, RT 721/534), que a defesa prévia é dispensável
(STF, RT 695/408), que a intimação do defensor da data da audiência que se realizará no Juízo deprecado é dispensável (TARS, RT 614/364; STJ, RT 716/517), que as
alegações finais são dispensáveis (TARS, RT 596/408; TJSP, RT 683/305), que a interposição de recurso contra a sentença condenatória é dispensável (TACrimSP, RT
650/284; STJ, RT 676/362), que as razões de recurso são dispensáveis (TARS, RT
678/369; TACrimSP, RT 676/309), que as contra-razões do recurso são dispensáveis
(STF, RT 730/442), que os embargos infringentes são dispensáveis (STF, RT 629/383;
STF, RT 719/536) e que a atuação em revisão criminal é dispensável (STF, RT
731/523; STF, RT 699/407). E isso porque a Constituição Federal, em seu art. 133, diz
que o advogado é indispensável. Imagine-se se ela dissesse ser ele dispensável!3
1 Texto produzido em janeiro de 2002.
2 “O ativismo judicial”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 27, p. 348-50 (julho/setembro de 1999).
3 Op. cit., p. 350.
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Após mais de uma década de exclusivo e ininterrupto exercício da Advocacia, e pensando já ter, em alguns casos, me espantado o suficiente com a jurisprudência nacional,4 eis que me deparo com v. julgado do E. Tribunal Regional
Federal da 4ª Região, em que se cometeu aos advogados estranho – a palavra certa é inacreditável – “dever”.
Trata-se de caso em que a C. 1ª Turma daquela Corte de Justiça, por maioria
de votos, concedeu ordem de habeas corpus impetrada em favor de uma advogada
que não auxiliou oficial de justiça a citar sua cliente em uma ação penal (!), e que,
por isso, tivera instaurado contra si inquérito policial para apuração do crime de “favorecimento pessoal” (CP, art. 348),5 sendo esta a ementa oficial:
Não comete o crime de favorecimento pessoal (CP, art. 348) a
advogada que não auxilia o oficial de justiça a citar seu cliente em ação penal, porque o delito em análise pressupõe ajuda
ao infrator para evitar sua prisão e não auxílio para dificultar
sua citação.
Já a ementa do voto vencido tem o seguinte teor:
A dificuldade em se encontrarem os réus, somada à conduta da advogada que
procura o oficial de justiça pedindo informações sobre o processo no qual seus
clientes são indiciados, mas omitindo-se a oferecer solução que levasse à efetivação
das citações, são indícios mínimos necessários para instauração de inquérito policial
para apuração do delito previsto no art. 348 do CP.6
4 Confesso que julgados como os seguintes geram, em meu espírito, profundo desalento: “Regime prisional. Recolhimento em modalidade mais rigorosa que a fixada na sentença, em virtude de embaraços de cunho administrativo na expedição da guia de recolhimento já requisitada – Constrangimento ilegal – Inocorrência.” (TACrimSP,
Revista de Julgados do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo nº 44/330; destaquei); “É inadmissível
o processamento de recurso interposto pelo defensor do réu que renunciou ao direito de apelar, resolvendo-se o
conflito, de modo geral, em favor deste último, diante da possibilidade de haver desconstituição do causídico para
outorga de mandato a outro, não afrontando tal entendimento o princípio constitucional da ampla defesa (...).”
(TACrimSP, Tribuna do Direito nº 95, “Caderno de Jurisprudência”, p. 283; destaquei); “Prisão provisória. Prisão em
flagrante. Não há irregularidade se comunicação à família é feita tardiamente. Não há nulidade na nomeação de
um policial como curador, se não demonstrado o prejuízo para a defesa. Pode o condutor, além de ser ouvido
como testemunha, compor o número previsto no art. 304, parágrafo 2º, do CPP.” (STJ, Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 35/328; destaquei).
5 “Art. 348. Auxiliar a subtrair-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é cominada pena de reclusão:
Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, e multa. § 1º Se ao crime não é cominada pena de reclusão: Pena –
detenção, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, e multa. § 2º Se quem presta o auxílio é ascendente, descendente,
cônjuge ou irmão do criminoso, fica isento de pena.”
6 TRF da 4ª Região – HC 97.04.53391-8/RS – 1ª T. – J. 04.11.1997 – DJU 03.12.1997. In: Revista dos Tribunais nº
752, p. 729-32 (junho de 1998). A ementa oficial também se acha publicada no Boletim AASP nº 2244, “Pesquisa Monotemática – Crimes contra a Administração da Justiça”, p. 223, também se referindo ao julgado Julio Fabbrini
Mirabete em seu Código Penal Interpretado (São Paulo: Atlas, 1999, p. 1896).
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Extrai-se do corpo do voto vencido o que segue:
A certidão do oficial de justiça esclarece que foi criado óbice ao
cumprimento do mandado. Se tal fato chegou a caracterizar crime, só a investigação o dirá. O mínimo indício de atividade delituosa justifica a investigação, sob pena de o Estado esvaziar seu
poder persecutório.7
No mais, adotando as razões do parecer do MPF, também sustentou o i. juiz
vencido que “o simples indiciamento policial não constitui constrangimento ilegal
de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais.”8
Não pretendo me ocupar com o voto vencido. Creio, com a devida vênia, não
ser necessário.
O que me chamou a atenção foi um certo “juízo ético” sustentado nos votos
vencedores, conquanto baseados estes, na questão de fundo, na melhor doutrina e
jurisprudência, que esclarecem que o elemento material do crime de favorecimento pessoal é “auxiliar alguém que cometeu um crime a subtrair-se à ação da autoridade”, dando “asilo ou fugida ao delinqüente”, impedindo o agente “que a autoridade prenda ou detenha o autor de crime, quer frustrando o flagrante, quer obstando
a prisão preventiva ou oriunda de condenação” (Magalhães Noronha. No mesmo
sentido: Heleno Cláudio Fragoso, Nelson Hungria e Celso Delmanto).9 No
mais, o delito em questão é comissivo e o que se imputou à advogada foi conduta
omissiva (ou seja, “não ter apontado solução para que a citação se realizasse”; sic),
já tendo o E. Tribunal de Justiça de São Paulo decidido naquele sentido (RT 378/99)
e o E. Tribunal de Alçada Criminal do mesmo Estado proclamado: “a lei não pune o
auxílio para iludir as investigações da autoridade, frustrando a ação policial que visava ao esclarecimento da autoria; só se pune a assistência prestada com finalidade de
subtrair o autor de crime da ação da autoridade, para evitar sua detenção, ou condução coercitiva” (RT 591/358).10 11
7 Loc. cit., p. 730.
8 Loc. cit., p. 731; destaquei.
9 Loc. cit., p. 730 e 732 (trechos dos votos vencedores).
10 Id., ibid.
11A meu ver, a norma do art. 348 do Código Penal, a rigor, refere-se ao auxílio a “autor de crime”. Ora, à luz da Constituição Federal de 1988, somente com o trânsito em julgado de sentença penal condenatória é que alguém pode ser
tido como culpado (art. 5º, LVII), vale dizer, até esse momento ninguém pode ser tido como “autor de crime”. Pode
até ser considerado autor de fatos que se querem criminosos, e que somente poderão ser tidos como criminosos se
comprovados após o devido processo legal (CF, art. 5º, LV). Mas a lei penal é clara: não fala em autor de fatos; fala
em autor de crime. Assim sendo, refere-se a lei não ao auxílio de indivíduos presos, mas de indivíduos presos já condenados definitivamente. É certo que Nelson Hungria não pensava assim (Comentários ao Código Penal. 2ª ed.
Rio: Forense, 1959, v. IX, p. 506). Porém, o notável penalista escreveu sob a luz de outra Constituição.
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De fato, apesar da correta solução que deu à espécie, ao conceder o HC para
trancar o inquérito policial instaurado contra a advogada, consignou o i. juiz prolator do primeiro voto vencedor, ao divergir do colega que o denegava:
Com a devida vênia, assim não penso. A ação da advogada pode
não ser leal. Pode, mesmo, consistir em infração disciplinar a ser apurada pela OAB. Porém, não importa em infração ao art. 348 do CP,
porque este pressupõe ordem de prisão.12
Já no outro voto vencedor, concluiu a i. juíza que o subscreveu:
Pode se ter como não modelar a conduta da paciente, mas, certamente, não foi além do antiético, e, com certeza, não acolhida na
disciplina do art. 348 do CP, restando seu procedimento como impróprio e inadequado ao compromisso de seu grau, matéria sem interesse do Juízo criminal.13
Tais assertivas, data venia, são de causar pasmo, nivelando-se mesmo, em termos de excentricidade, ao voto vencido, pois enquanto neste se concebeu uma espécie de “dever legal” do advogado (ou seja, não auxiliar oficial de justiça a citar o
próprio cliente numa ação penal autorizaria investigação criminal contra o advogado), segundo aquelas o “dever” teria natureza “ética” – ou seja, não auxiliar oficial
de justiça a citar o próprio cliente numa ação penal configuraria infração aos estatutos da OAB...
Alguns comentários são irresistíveis. Absolutamente irresistíveis.
Observe-se, desde logo, que não se sabe de onde se tirou que a conduta da
advogada que figurou como paciente no habeas corpus seria desleal, configurando
infração disciplinar a ser apurada pela OAB, ou antiética, porque imprópria e
inadequada ao compromisso de seu grau.
Realmente, sobre não configurar a conduta da advogada (conduta omissiva,
lembre-se) qualquer infração penal, o que felizmente é incontroverso na doutrina e
na jurisprudência (com a graça de Deus, ainda é), não se vislumbra também qualquer infração administrativa por parte da mesma, no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil.
De fato, as infrações disciplinares e respectivas sanções estão previstas no art.
34 da Lei Federal nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), e não se vê em nenhum dos
vinte e nove incisos, e nem no parágrafo único daquele dispositivo, “infração” como
a cogitada no acórdão em comento.
12 Loc. cit., p. 730; destaquei.
13 Loc. cit., p. 732; destaquei.
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Já no Código de Ética e Disciplina da OAB, os deveres dos advogados estão arrolados no art. 2º (e respectivo parágrafo único, com nove incisos) usque 7º, e neles também não se enquadra o imaginado procedimento impróprio e inadequado
ao compromisso do grau.
Aliás, o que configura infração disciplinar, nos termos do art. 34, inciso VII, do
Estatuto da Advocacia, é violar, sem justa causa, o dever de sigilo profissional. Este,
no dizer de Paulo Luiz Netto Lôbo, é, ao mesmo tempo, direito e um dever (direito ao silêncio e dever de se calar), que, possuindo natureza de ordem pública, estabelecido no interesse geral, como pressuposto indispensável ao direito de defesa,
estende-se às confidências do cliente, às do adversário, às dos colegas, às que resultam de entrevistas para conciliar ou negociar, às
de terceiras pessoas, feitas ao advogado em razão de sua profissão
e, também, aos colaboradores e empregados.14
Como assinala Gisela Gondim Ramos, de modo geral
a obrigação de manter segredo abrange tudo quanto o profissional venha a tomar conhecimento, em razão de seu cargo ou profissão, sob a condição de não ser revelado, ou de não lhe ser permitido utilizar sem expressa e prévia autorização. No caso do advogado, esta condição já está implícita na natureza própria de
suas funções, prescindindo, assim, de qualquer manifestação expressa.15
Assim, é abrangido pelo sigilo profissional não apenas o que o cliente confia
ao advogado, “mas tudo que lhe chegue ao conhecimento em conseqüência do
exercício profissional.” E também não importa, prossegue a mesma autora, “a forma como lhe chegue a informação, seja diretamente pelo cliente, de viva voz, seja
através de documentos, ou por terceiros.”16
Bem por isso é que o Código de Ética e Disciplina, a cujos deveres estão os
advogados obrigados a cumprir rigorosamente,17 dispõe:
O sigilo profissional é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito, salvo grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o
14 Comentários ao Estatuto da Advocacia. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 54; destaquei.
15 Estatuto da Advocacia. Comentários e Jurisprudência Selecionada. 2ª ed. Santa Catarina: OAB/SC, 1999, p.
369; destaquei.
16 Id., ibid.
17 Lei 8.906/94, art. 33, caput.
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advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredo, porém sempre restrito ao interesse
da causa.” (art. 25); “O advogado deve guardar sigilo, mesmo em
depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar a depor como testemunha em processo no qual
funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado
ou solicitado pelo constituinte. (art. 26); e “As confidências feitas ao
advogado pelo cliente podem ser utilizadas nos limites da necessidade da defesa, desde que autorizado aquele pelo constituinte. Parágrafo único. Presumem-se confidenciais as comunicações epistolares entre advogado e cliente, as quais não podem ser reveladas
a terceiros.” (art. 27).18
Ora, se mesmo em depoimento judicial o advogado pode/deve guardar sigilo
sobre fato que envolva um cliente, que se dirá da prestação de informações a terceiros extrajudicialmente?
De se concluir, portanto, que o juízo esposado nos votos vencedores, naquele particular, só podem ser fruto de criação intelectual, pois em nenhuma lei do Brasil se vê o “dever ético” que teria o advogado em auxiliar oficial de justiça a citar o
próprio cliente em ação penal.
É certo, repita-se, que andou bem a C. Turma julgadora ao deferir, ainda que
por maioria, a ordem impetrada, em termos de trancar o insólito, incrível mesmo,
inquérito policial instaurado contra a advogada,19 que mais não fez, a bem da verdade, que seguir à risca as normas éticas inerentes à sua profissão. Mas não creio que
se trate de decisão que se deva comemorar, data venia.
É que talvez para alguns a instauração de inquérito policial à apuração de crime contra a Administração da Justiça – sobretudo se inexistente, sequer em tese
(caso do acórdão em exame) – não constitua qualquer constrangimento ilegal.20 Par18 Destaquei.
19 É claro que o advogado pode ser sujeito ativo do crime de favorecimento real, desde que no fato, como ensina
Damásio E. de Jesus, “estejam presentes as elementares da definição legal.” (Código Penal Anotado. 10ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 1009). Disso decorre que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito – inclusive juiz,
promotor e oficial de justiça. Tenho o inquérito instaurado contra a referida advogada como incrível porque sequer em tese restara configurado o delito – como, aliás, reconhecido nos votos vencedores.
20 Aliás, a “jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais” a que se alude no voto vencido, segundo a qual “o simples indiciamento policial não constitui constrangimento ilegal” (loc. cit., p. 731), refere-se – parece-me óbvio – a
delitos em tese, o que, como se viu, não era o caso. De fato, diz-se num dos julgados colacionados pelo i. juiz vencido: “É pacífica a jurisprudência no Pretório Excelso no sentido de não configurar constrangimento ilegal o indiciamento em inquérito policial quando verificada a existência de crime em tese nos fatos investigados” (loc. cit., p.
731; destaquei).
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ticularmente, considero-a sumamente infamante. Todavia, mesmo reconhecida a inviabilidade do inquérito infamante – após não se sabe quanto tempo – porque nenhum fato delituoso havia a se apurar, a advogada ainda recebeu a pecha de desleal
e antiética – justamente porque obedeceu o Código de Ética e Disciplina da OAB!21
Entenderem alguns que o advogado é dispensável à administração da justiça,
de acordo com a jurisprudência citada no início, é juízo lamentável que se espera,
um dia, seja revisto, dando-se, enfim, guarida a mandamento constitucional expresso, valendo lembrar que a Lei Federal nº 8.906/94 é a “lei” “nos termos” da qual se
aplica o art. 133 da Carta Magna.
Agora, transformar-se o advogado em “ajudante de oficial de justiça”, isso,
realmente, já é demais.
21 Curioso, aliás, que no segundo voto vencedor, onde se entendeu que a conduta da advogada paciente do HC
“não foi além do antiético”, consta a seguinte lição de Nelson Hungria, referido por Alberto Silva Franco et alii:
“(...) o próprio advogado pode ser réu de favorecimento, posto que a defesa não deve ultrapassar os limites éticojurídicos. Certamente o advogado não pode revelar o paradeiro de seu constituinte (sob pena de incorrer até
mesmo na sanção cominada à violação de segredo profissional), mas não pode levar seu patrocínio ao extremo
de facilitar, materialmente, a fuga ou ocultação dele” (destaquei). Não se compreende, portanto, o “juízo ético” firmado no referido voto vencedor, pois se aquela lição doutrinária legitimava efetivamente o trancamento do inquérito, em hipótese alguma – data venia – autorizava a conclusão final de sua i. subscritora.
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A FILIAÇÃO COMPROVADA DE ROBERTA
Ricardo Ribeiro Velloso
Advogado Criminalista
Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra-Portugal
Pós-Graduado em Direito Empresarial pela FGV-SP
Orientador do Núcleo de Desenvolvimento Acadêmico-OAB/SP
Professor da Universidade Bandeirante-UNIBAN
[email protected]
O famoso caso do menino Pedrinho, de Goiás, volta a ser notícia com a recente informação de que Roberta, também filha da Sra. Vilma, é na verdade, Aparecida,
a filha de outra mulher, subtraída numa maternidade em Goiânia.
Tal certeza foi possível, em razão da atuação da Polícia Civil de Goiás, que coletou, sem o conhecimento de Roberta, material que possibilitou a realização de
exame de DNA, com a finalidade de comprovar sua verdadeira filiação.
Problema não haveria se não fosse por uma declaração de Roberta, que negou
ceder material para a feitura do exame, não desejando a realização da comprovação
de sua filiação.
Neste ponto, nos deparamos com duas questões cruciais para o entendimento da discussão, primeiro a busca de provas essenciais por parte da polícia para a caracterização de novo delito supostamente praticado por Vilma, de outro, a manifestação expressa da vontade de Roberta em não ceder material para a realização do
exame.
Através de um estratagema, o delegado, utilizando-se da saliva encontrada em
“bitucas” de cigarro consumidos por Roberta, dentro do prédio da delegacia, realizou o exame de DNA.
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Não houve violência, não houve coação, simplesmente o delegado, utilizandose de astúcia, conseguiu a coleta do material necessário, sem o conhecimento de
Roberta.
Enquanto todos os outros meios de prova, dentro de um inquérito policial,
são objetivos, a perícia é o único subjetivo, porquanto depende exclusivamente do
objeto, ou, como no caso em tela, da pessoa.
O crime pelo qual a Sra. Vilma está sendo investigada deixou vestígio, qual
seja, a pessoa de Roberta, que supostamente foi retirada da maternidade.
Assim sendo, esse delito poderia ser verificado através de exame de corpo de
delito, entendendo-se tal, como todo o conjunto de elementos do ato delituoso, e
a criança subtraída, hoje mulher, é um desses elementos.
Esse tipo de perícia é considerado extrínseco, uma vez que é realizada, não no
meio em que o crime foi realizado, mas sim em elemento que pode servir como prova de um crime.
Para o caso em tela, a perícia é de suma importância para o deslinde do caso,
uma vez que mesmo que a Sra. Vilma confessasse o crime, ainda assim seria necessário o exame para se comprovar a filiação.
A polícia utilizou-se dos meios que tinha disponível para chegar a comprovação do delito, buscando-se, acima de tudo, a comprovação da filiação.
Mas essas considerações se dão a respeito da prova em si, para a obtenção do resultado de se comprovar a materialidade do delito. Contudo, e quanto à manifestação de Roberta que se negou a ceder material para a realização do
exame?
A justificativa da polícia é que não invadiu a privacidade de Roberta para conseguir o material, esse foi coletado através de objetos abandonados por ela própria.
Entretanto, quando Roberta obsta a coleta do material para exame, ela está dizendo, em outras palavras, que é contrária à utilização de qualquer material biológico seu, para tal fim.
Embora as “bitucas” tenham sido deixadas no cinzeiro, a carga biológico-genética contida nelas estavam vinculadas à sua manifestação de vontade, ou seja, mesmo fora de seu corpo, ainda faziam parte dele, portanto, material não autorizado sua
utilização no exame.
Em um paralelo, a lei não obriga a vítima de estupro a realizar o exame de corpo de delito, dessa forma respeitando a vontade da vítima, mesmo que com isso se
percam provas essenciais para indicar o autor do fato.
Da mesma forma, mesmo que o material coletado não o tenha sido à força, diretamente do corpo de Roberta, deveria ter sido respeitada sua vontade, e não se
ter realizado o exame.
Roberta não era investigada, no máximo poderia ser considerada vítima, e
como tal tem o direito de ver prevalecer sua vontade, inclusive porque diz respeito a preceito Constitucional de proteção a intimidade e privacidade.
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Dessa forma, o exame realizado maculou o Inquérito Policial e deve ser ignorado nos autos, viciando todas as provas obtidas através dele, uma vez que se trata
de prova ilícita, pois afronta dispositivo legal constitucional.
Não podemos aceitar procedimentos escusos, que busquem provas a qualquer custo.
Em um passado não muito longínquo, sofremos com instituições que, na busca de criminosos, utilizavam-se da tortura, espionagem, coação e toda sorte de abusos para a obtenção das provas necessárias. A busca da Justiça, por qualquer meio,
é um retorno a essa época, que devemos lutar para que nunca mais retorne.
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ASPECTOS SÓCIO-AFETIVOS DO RECONHECIMENTO
JUDICIAL DA PATERNIDADE
Tatiana Cima Grave Cima
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru – ITE, em 2002.
INTRODUÇÃO1
Após assistir a vários programas de televisão onde se discutia a paternidade,
clamou nosso interesse o fato de mães se que migram à mídia querendo comprovar
a paternidade de seus filhos. Surgiram, então, dúvidas a respeito de como a sociedade e a Justiça lidavam com essa situação.
Lamentavelmente, essas mães deparavam com a rejeição dos supostos pais
de seus filhos, causando enorme sofrimento a essas crianças. Muitas chegavam
com a certeza que determinado homem fosse o pai biológico de seu rebento, e
saiam do tal programa com a desilusão de que aquele não era realmente o pai
biológico.
Outros, compareciam com a certeza de que encontrariam seu pai de sangue, mas defrontavam-se com a rejeição desse. E a expressão daqueles rostos angelicais demonstrava o quanto essa rejeição transformava-se em uma dor inimaginável.
Algumas crianças que hoje são adultos passaram anos tendo certeza de que o
suposto pai era realmente o seu pai biológico.
1 Monografia apresentada à Banca Examinadora da Instituição Toledo de Ensino de Bauru, em 12 de dezembro de
2002, como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Maria Isabel Jesus Costa Canellas.
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Por outro lado, nos deparamos, também, com o pai de afeto, isto é, aquele
que, mesmo sabendo não ser o progenitor da criança, a ama, às vezes até mais que
o pai biológico.
E a pergunta que mais nos instigava era: como o lado psíquico de todos os
personagens desse drama real se comportava na medida em que, diante desse novo
fato, aqueles seres humanos confrontavam novas experiências, normalmente traumáticas.
E as indagações mais comuns eram: como é para o reconhecido defrontar-se
com um pai com o qual nunca teve contato emocional? E o pai biológico que acaba
de “ganhar” um filho, quais suas angústias e expectativas?
Em caso de reconhecimento de filiação não-matrimonial, como a família de
ambas as partes comportam-se emocionalmente diante desse novo fato? Muitas
eram as perguntas e poucas eram as respostas.
O Direito preocupou-se muito com o reconhecimento biológico dos nossos
filhos, porém se esqueceu de perguntar-lhes como se sentiam e o que esperavam da
Justiça.
A pesquisa para esta monografia foi um tanto quanto complicada, pois a respeito desse assunto são poucas as obras publicadas no país.
Os trabalhos iniciaram-se com uma longa conversa com a professora orientadora deste trabalho. Após, a pesquisa desenvolveu-se com visitas à Internet, o que
não rendeu frutos necessários para o presente trabalho.
Os trabalhos de pesquisa caminharam com livros e revistas publicadas pelo IBDEFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), os quais, como demonstram,
preocupam-se muito com o assunto em tela.
Com o decorrer dessas leituras, foram extraídas opiniões próprias a respeito
do tema.
Além dessa leitura especializada, foram entrevistadas algumas pessoas que
passaram por essa situação, e uma psicóloga para tratar do lado emocional dos mesmos, isto é, para desvendar o que o Direito deixou obscuro.
Esta monografia tem como finalidade demonstrar que, para a família do novo
milênio, os nossos filhos não devem apenas ser reconhecidos judicialmente e sim
amados e amparados.
Um dos pressupostos do Direito de Família é unir a família, porém para que
isso ocorra é necessária a conceituação da nova família e, principalmente, dar ênfase aos laços emocionais que entrelaçam o grupo familiar.
1.
FAMÍLIA
Derivado do latim família, de famel (escravo doméstico), para Clóvis Beviláqua, “família é o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade”.
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Já para os romanos, família era um conjunto de pessoas submetidas ao poder
de um cidadão independente, no qual se compreendiam todos os bens que às mesmas pertenciam, ou seja, era sinônimo de patrimônio.
1.1. Estruturação jurídica
No Direito de família, família é definida como reunião de pessoas ligadas entre si pelo vínculo de consangüinidade, de afinidade ou de parentesco, estabelecida
através da sociedade conjugal (matrimônio civil).
A família pode ser natural ou substituta. A primeira é definida pelo artigo 25
do ECA, como sendo a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus
descendentes.
Descreve o artigo 26 do ECA que os filhos havidos fora do casamento, desde
que reconhecidos, também formam a família natural.
Já a família substituta ocorre quando se coloca uma criança ou adolescente
mediante guarda, tutela ou adoção em outra entidade familiar que não natural (artigo 28, ECA).
Existem requisitos para a concessão de pedidos de colocação e procedimento para deferimento dos mesmos, previstos nos artigos 165 a 170 do ECA.
1.2. Estruturação psíquica
O conceito de família, diante da estruturação psíquica diverge bastante da estruturação jurídica. Isto porque do ponto de vista psíquico, família é conjunto de
pessoas de ordem biológica ou não, unidas por laços afetivos, e não apenas pessoas
ligadas por vínculos de consangüinidade.
A estrutura psíquica de uma família produz mais efeitos em uma criança do
que a estrutura jurídica. Um velho ditado conhecido por todos aqui pode ser citado
“não basta ser pai, tem que participar”. Quem já não ouviu este ditado e no mesmo
momento concordou com ele.
Qual a importância de apenas dizermos que temos uma família e quando realmente necessitamos dela, o pai ou a mãe está ausente para amparar aquele filho.
Neste momento, indagamos, qual a importância apenas do reconhecimento
judicial? Questão que terá sua resposta no prosseguimento desta pesquisa.
1.3. A família e o Direito
A família, sendo a célula básica de toda e qualquer sociedade, está totalmente
ligada ao Direito.
O estudo da família no Direito sempre esteve vinculado ao casamento, o que
a distingue em legítima ou ilegítima.
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A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 17, dispõe
que “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado”.
Com o advento da Constituição de 1988, o conceito de família ampliou-se,
não estando mais estritamente ligado ao casamento. Em seu artigo 226, a Carta
Magna passou a reconhecer “como entidade familiar à comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes, bem como a união estável entra homem e mulher”.
O Estado começou a proteger as famílias brasileiras que não fossem constituídas pelo casamento, propriamente dito, com a revolução sexual das décadas de 60
e 70.
Por imposição de uma nova cultura, o texto constitucional impôs que o direito legislasse sobre a família que não era oriunda do casamento civil.
A Carta Magna de 1988, em seu artigo 226, parágrafo 3º, dispõe sobre a proteção à união entre um casal como entidade familiar. Este artigo retrata muito bem
a entidade familiar atual.
O Direito sempre legislou sobre a estruturação familiar com o interesse de
mantê-la para que toda pessoa possa existir como cidadão e laborar para a construção de si mesmo e das relações com outras pessoas. Pois, como já dissemos, a família é a base de toda e qualquer sociedade.
Já dizia Chico Buarque “Com açúcar e com afeto, fiz seu doce predileto para
você parar em casa”. Como essa frase demonstra, a família é o pilar de toda estruturação psíquica de qualquer indivíduo que constitui a sociedade. Portanto, esse
processo social e psíquico remete ao Direito.
2.
FILIAÇÃO
O vocábulo “filiação” advém do latim filiatio, que é relação de parentesco que
se estabelece entre os pais e o filho, na linha reta, gerando a condição de filho, decorrente do vínculo civil ou consangüíneo, e gerando várias conseqüências no campo jurídico1.
A filiação tanto pode ser paterna como materna. Porém, a doutrina usa o termo paternidade para ambos os casos.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, os filhos adotivos e os filhos
havidos fora do casamento possuem os mesmos direitos que os advindos de uma
relação matrimonial, conforme dispõe o artigo 227, § 6º da Lei Maior.
Parentesco em linha reta corresponde às pessoas que descendem uma das outras, nos termos do artigo 330, do Código Civil: “São parentes, em linha reta, as pes-
1 Edmilson Villaron Franceschinelli, Direito de paternidade .p. 13.
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soas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e ascendentes”. Como exemplos, podemos citar avô e neto, bisavô e bisneto, entre outros.
O estado de filiação é a situação que se encontra a pessoa na qualidade de filho, vinculando essa pessoa à família de seus ascendentes, e criando obrigações jurídicas.
A filiação pode ser classificada, didaticamente, em matrimonial e não matrimonial. É como veremos a seguir.
2.1. Filiação matrimonial e não-matrimonial
A filiação matrimonial é aquela que se origina na constância do casamento dos
pais, ainda que anulado ou nulo, como está disposto nos artigos 338 e seguintes do
atual Código Civil.
No entanto, a concepção pode ocorrer antes da celebração do casamento,
sem deixar de ser uma filiação matrimonial, e o nascimento após o matrimônio.
Presume-se serem concebidos na constância do casamento filhos nascidos
180 (cento e oitenta) dias após o estabelecimento da convivência conjugal ou dentro de 300 (trezentos) dias após a dissolução do casamento, com base no artigo
1.597, I, II do novo Código Civil.
A filiação será matrimonial se o filho nasceu após a dissolução ou anulação da
sociedade conjugal, mas tendo sido concebido durante este.
O Código Civil assenta a filiação com presunções, fundadas em probabilidade.
No seu artigo 338, dispõe que se presumem matrimoniais os filhos concebidos na
constância do casamento de seus pais. Esta presunção é relativa ou juris tantum,
pois a prova contrária é limitada, já em relação a terceiros é absoluta, pois ninguém pode contestar a filiação de outrem, sendo que a ação para esse fim é privativa do pai2.
O Código Civil brasileiro presume que pai é aquele que o casamento demonstra; portanto, pai é o marido, até que seja produzida por ele próprio ou pelo próprio filho prova em contrário. Chamada de presunção pater is est, que se destina a
preservar a paz familiar.
Em seus artigos 338 e 339, o Código Civil trata dos períodos mínimo e máximo
de gestação viável para a presunção de paternidade. Por exemplo, se o filho nascer 300
(trezentos) dias, a contar da morte do marido, não haverá presunção de legitimidade,
e aos herdeiros caberá o direito de propor a ação impugnativa de paternidade.
A presunção de paternidade não ocorrerá se o filho nascer 180 (cento e oitenta) dias antes de se completar a convivência conjugal. Porém, não poderá ser con-
2 Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro – Direito de família .p. 376
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testada em duas hipóteses: se o marido antes do casamento já sabia da gestação, ou
lavrou termo de nascimento sem contestar a paternidade. Nestes casos, a presunção
de paternidade é absoluta.
A presunção de que trata o artigo 338 do Código Civil é juris tantum. A prova em contrário admitida é limitada, devendo-se provar, de acordo com o inciso I –
“que o marido achava-se impossibilitado de coabitar com a esposa nos primeiros
cento e vinte um dias, ou mais, dos trezentos que houveram precedido ao nascimento do filho.”
Já o inciso II, do artigo 340, do atual Código Civil dispõe “que a esse tempo estavam os cônjuges legalmente separados”.
Dentre as hipóteses de impossibilidade física de coabitação que o homem
deve provar, encontra-se a impotência sexual, que a lei exige que seja absoluta, ou
seja, que persista durante todo o tempo, em relação a qualquer mulher. Somente
existe presunção pater is est, se houver convivência do casal, que pode ser residencial ou em um motel.
Nosso código mostra-se rigoroso em relação à presunção de paternidade, pois
se o marido não possuía nenhuma impossibilidade de manter relações sexuais com
a esposa, mesmo provando adultério praticado pela mulher, a paternidade não será
excluída. A jurisprudência já vem amenizando tal questão.
Comprova-se a filiação matrimonial através:
A) Da certidão do termo do nascimento, inscrito no registro Civil,
baseado no artigo 1.603 do C.C vigente. e o artigo 50 e seguintes da
Lei n. 6.015/73.
B) Por qualquer meio admitido em direito, caso o registro falte
porque os pais não o fizeram ou porque se perdeu o livro ou se o
termo de nascimento for defeituoso, desde que haja começo da
prova por escrito, oriunda dos pais, conjunta ou separadamente;
ou que existam presunções resultantes de fatos já certos.
A filiação não-matrimonial é a que decorre de relações extraconjugais, sendo
que esses filhos são classificados “didaticamente” como:
A) Naturais, que descendem de pais sem qualquer impedimento
matrimonial no momento de sua concepção.
B) Espúrios, que descendem de união de homem e mulher que, ao
tempo da concepção, possuíam impedimento matrimonial. Os filhos espúrios podem ser divididos em: adulterinos (artigo 183, VI
do C.C.), os que nascem de casal impedido de casar em virtude de
casamento anterior, resultando de adultério (duplo adultério, homem e mulher casados; adultério a patre, homem casado e mulher
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livre ou solteira; adultério a matre, mulher casada e homem livre
ou solteiro); incestuosos filhos nascidos de homem e mulher que
diante de parentesco natural, civil ou afim, não podiam convolar
núpcias na época de sua concepção. (artigos 183, I a V do C.C.).
Com a Constituição Federal de 1988, não se pode mais usar tal classificação,
como já expusemos anteriormente.
2.2. O texto do novo Código Civil
O novo Código Civil brasileiro traz poucas alterações no campo da paternidade. A modernidade convive conosco todos os dias, porém o novo código não acompanha tal fato.
Em seu dispositivo 1.592, a relação de parentesco em linha transversal ou colateral é limitada até quarto grau. “São parentes em linha colateral ou transversal,
até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem
uma da outra”.
Já o parentesco em linha reta não sofreu nenhuma mudança.
O novo código omitiu em relação à união estável no que se trata de parentesco. Sendo que a solução de tal questão ficará a cargo da jurisprudência e da
doutrina.
O dispositivo 1.596 do novo Código Civil que trata de filiação absorveu o disposto no artigo 227 da Constituição Federal, com relação aos direitos iguais e da
proibição das designações discriminatórias dos filhos havidos ou não fora na constância do casamento.
A presunção de paternidade sofreu um pequena mudança, os incisos III, IV, e
V do artigo 1.597 tratam dos filhos havidos por fecundação artificial homóloga, embriões excedentários e de inseminação artificial heteróloga.
No tocante à impotência, só houve a troca de “presunção da legitimidade do
filho” por “presunção da paternidade”.
Caso a mulher contraia novo casamento a presunção pater is est mantém-se
em relação ao primeiro marido.
Nada se inovou com relação à prova de filiação nem a sucessão processual
dos herdeiros.3
A expressão “filho ilegítimo” passa a ser tratada como “filho havido fora do casamento”.
A nova codificação silencia sobre “pai afetivo” e “pai biológico”. Pois filiação
não é apenas uma descendência biológica, e sim construção de laços afetivos.
3 Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Direito de família e o novo código civil.p. 82
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O legislador enfocou, somente, os aspectos biológicos, como a “certeza científica”, e esqueceu o quanto é importante o “pai de coração” e não o “pai biológico”,
que só cumpre suas obrigações impostas pelo sistema jurídico. E as cumpre, simplesmente, pelo fato de temer que sua prisão seja decretada por falta do pagamento da pensão alimentícia.
Realmente, o legislador poderia ter incluído essa opção, fazendo-se uma prova semelhante, por exemplo, à posse do “estado de filho”.
3.
RECONHECIMENTO DO FILHO
Reconhecimento é o ato pelo qual se declara filiação havida fora dos laços matrimoniais. É um ato declaratório, pois visa a estabelecer uma relação de parentesco
entre os progenitores e os filhos, ou seja, a prole. Tendo como conseqüência efeitos jurídicos.
É impossível dupla filiação, ou seja, caso haja o reconhecimento por parte
de uma pessoa, não é possível que outra reconheça a mesma prole como sendo
sua, só será permitido novo reconhecimento se anular o primeiro por erro ou
falsidade.
3.1. Possibilidade do reconhecimento dos filhos
Perante nosso atual Código Civil, os filhos havidos na constância do casamento não precisam ser reconhecidos. Já os havidos fora dos laços matrimoniais não são
beneficiados pela presunção legal de paternidade, pois mesmo tendo o vínculo biológico, falta o vínculo jurídico.
O reconhecimento necessita de capacidade, pois se trata de um ato jurídico
em sentido estrito. Os menores de dezesseis anos, bem como os loucos não podem
fazer o reconhecimento. Já os relativamente incapazes são autorizados a praticar tal
ato jurídico. Porém, há dúvida se devem ou não ser assistidos, somente na hipótese
de reconhecimento ser efetuado por escritura pública.
3.2. Modos de reconhecimento
O reconhecimento pode ser voluntário ou judicial. O reconhecimento voluntário, segundo Antônio Chaves,” é o meio legal do pai, da mãe ou de ambos revelarem espontaneamente o vínculo que os liga, outorgando- lhe, por essa forma, o
status correspondente”.4
Esse ato é exclusivamente de iniciativa do pai ou da mãe.
4Antônio Chaves, Filiação Ilegítima. p. 290.
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Em caso de filho já falecido, o reconhecimento é permitido quando aquele possui descendente, sendo que esses devem permitir o reconhecimento, é o
que dispõe o artigo 1.609 do novo Código Civil e o artigo 26 da lei n. 8.069/90.
A vontade de reconhecer um filho é um ato irretratável e irrevogável5, inclusive se feito em testamento.
Já o reconhecimento judicial é o que resulta de sentença proferida em
ação interposta para esse fim, pelo filho, como dispõe o artigo 1.606 do novo
Código Civil.
3.3. Conseqüências do reconhecimento
O reconhecimento produz efeitos ex tunc, por retroagirem até o dia do nascimento do filho ou mesmo de sua concepção.6
Suas conseqüências são:
A) Estabelecer liame de parentesco jurídico entre pais e filhos.
B) Impedir que o filho, reconhecido por um dos cônjuges, resida
no lar conjugal sem a anuência do outro (artigo 1.611 do novo
C.C.).
C) O filho reconhecido que não residir com o progenitor tem direito a alimentos e educação custeados, por quem fez o reconhecimento.
D) Em caso de filho menor, este estará sujeito ao poder familiar,
como dispõe a Lei n. 5.582/70 e o art. 1.616 do novo C.C.
E) O filho reconhecido tem direito à pensão alimentícia (art. 1.694
do novo C.C.).
F) O filho reconhecido tem legitimidade para requerer herança ou
nulidade de partilha.
4.
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
O não reconhecimento voluntário do filho proporciona a esse o reconhecimento forçado, através de ação de investigação de paternidade. Esta possui natureza declaratória é imprescritível.
Com base no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA (lei n.
8.069/90), a pretensão par essa ação é direito personalíssimo e indisponível.
A sentença que declara a paternidade produz efeitos ex tunc, pois retroagem
à data do nascimento (artigo 366 do Código Civil).
5 Maria Helena Diniz, Direito Civil Brasileiro – Direito de Família, p. 394.
6 idem, p. 409.
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Mesmo sendo imprescritível a pretensão de obter o reconhecimento da
paternidade, o direito de herança prescreve em vinte anos, a contar do momento em que foi reconhecida paternidade, para uns -já para outros, a contar da
morte do pai.
O artigo 7º, da Lei n. 8.560/92, dispõe que sentença proferida no juízo de primeiro grau, que declara a paternidade, deverá fixar alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido.
4.1. Ação de investigação de paternidade
A ação de investigação de paternidade processa-se em rito ordinário. A legitimidade ativa é do filho. Em caso de incapacidade, esse será representado por sua genitora.
Já a legitimidade passiva é do suposto progenitor ou seus herdeiros, ou legatários, tendo a possibilidade de ser cumulada com petição de alimentos ou herança.
A Lei n. 8.560/92, também, permite que o Ministério Público venha a ajuizar a
referida ação como parte. Tendo ele, pois, legitimação extraordinária.
Se o autor falecer no curso da lide, seus herdeiros continuarão a ação, salvo
se julgado extinto o processo. Em caso de morte antes do ajuizamento da ação, para
alguns doutrinadores, faltaria aos seus sucessores legitimidade ativa para a propositura da ação.
O artigo 363 do atual Código Civil autoriza a propositura da referida ação, devendo o requerente provar um dos seguintes fatos:
A) Que ao tempo da concepção sua mãe estava concubinada com
o suposto pai.
B) Que a concepção coincidiu com o rapto de sua mãe pelo pretendido pai, ou de suas relações sexuais com ela.
C) Que existe escrito daquele a quem se atribui à paternidade, reconhecendo-a expressamente.
Dentre as provas para a comprovação da paternidade, estão: a posse do estado do filho; prova testemunhal; exame prosopográfico, que consiste na ampliação
de fotos do autor e réu justapondo-se uma com a outra, para a localização de semelhanças; exame de sangue de grupo sangüíneo; exame de DNA (ácido desoxirribonucléico), devendo ser recolhidos para tal, material genético da mãe, filho e suposto pai; exame odontológico.
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4.2. Ação de investigação de paternidade entre a verdade biológica e a verdade afetiva
A atual legislação está totalmente voltada para o reconhecimento judicial da
verdade biológica, não se importando com a verdade afetiva, a qual já demonstramos ser mais valorativa para nossos filhos.
A nossa codificação apenas quer impor uma espécie de multa (a obrigatoriedade do reconhecimento) para aquele que não planejou um filho. Ou, ainda, uma
espécie de vingança que procura amores que já são inexistentes.
Do nosso ponto de vista, ao ser julgada uma ação de investigação de paternidade, a autoridade judiciária deveria ater-se primeiramente ao histórico afetivo do
requerente e, posteriormente, as consequências que esse reconhecimento vai propiciar.
Afeto é uma manifestação espontânea, oriunda de um impulso. Sentimento
que nos traz paz, alegria, e principalmente nos acalenta.
O sentimento definido como afeto, jamais deve ser tarifado, obrigado, imposto. Pois, tudo que é imposto nos traz sentimentos ruins, forçados.
5.
PATERNIDADE
Paternidade deriva do latim paternitas, de pater (pai), em sentido jurídico, é
laço que une o pai ao filho. Porém como veremos a seguir, esse laço que une o pai
ao filho pode ser biológico (pai de sangue) ou afetivo (pai de afeto).
5.1. Pai de sangue
Na origem do sangue, pai é o homem que através de seu espermatozóide
transmite ao seu descendente suas características genéticas.
Conhecer o pai biológico é conhecer sua árvore genealógica. O Estado não se
pode omitir quanto ao direito do ser humano de reconhecer e ser reconhecido
como filho de determinada pessoa.
Vemos todos os dias, ao nosso redor, crianças e adultos que almejam descobrir seus pais de sangue. Pois no decorrer da vida notamos quanta falta nos faz um
pai para curar nossas feridas, para nos dar refúgio.
Mesmo não tendo um contato diário com seus progenitores, o ser humano
precisa saber sua origem. A figura paterna, mesmo distante, nos acalenta, pois sabemos que de algum maneira não estamos sós no mundo.
Está escrito no coração de cada ser humano a necessidade de saber sua origem, um anseio de conhecer a si mesmo melhor, por meio de sua raiz genética.
Principalmente, na idade escolar, uma criança tem orgulho de dizer aos colegas de
classe “meu pai” fez aquilo ou “meu pai” trabalha com tal coisa, entre outras frases.
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A expressão acima proporciona à criança o sentimento de orgulho e a sensação de proteção. Portanto, é dever do Estado indicar aos seus cidadãos quem
são os verdadeiros pais. Porém, é preciso ensinar aos nossos filhos como lidar
com tal situação.
5.2. Pai de afeto: afetividade na filiação
Pai de afeto ou pai de coração é aquele que ensina uma criança, a qual chama de filho, os caminhos da vida, as desilusões, alegrias.
O verdadeiro pai é aquele que estende a mão ao filho, quando esse se machuca, vibra quando esse vence obstáculos, comemora vitórias.
Enfim, o pai verdadeiro é aquele que participa da vida do filho e não aquele que apenas empresta suas características genéticas. De que adiantariam essas
características genéticas se não houvesse alguém para assistir a parte psíquica do
ser humano em evolução.
Com a evolução da medicina genética, confere-se paternidade consoante
exames laboratoriais, como o exame de DNA, considerando-se confissão ficta a
recusa em a ele submeter-se.
Baseando-se nessa evolução, isto é, do ponto de vista estritamente genético, o doador anônimo de sêmen é pai. Logo, não se poderia considerar pai o marido cuja mulher foi inseminada com sêmen doado por terceiro. Portanto, também não se poderia considerar pai aquele que adotou uma criança, por não possuir condições biológicas para procriar.
5.3. A negação da paternidade consentida
Entende-se que o marido, após ter consentido na inseminação artificial,
utilizando o sêmen de outro homem, não pode requerer ao juízo a negação de
sua paternidade.
O foco da questão está no fato que, se no momento da inseminação o marido coabitava com a mulher e sua esterilidade levou-a à inseminação com o sêmen de outro homem, o marido torna-se pai por consentimento. No Brasil, ainda, não temos norma expressa sobre o caso.
O consentimento, nesse caso, há de ser emitido por palavras, não sendo
necessário documentação. Contudo, o silêncio não declara a aceitação da inseminação artificial.
Há de se ressalvar, entretanto, que a inseminação sem o consentimento do
homem possibilita negação da paternidade.
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6.
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RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE
O reconhecimento da paternidade, como já foi mencionado anteriormente,
pode ser voluntário ou judicial.
Neste capítulo, iremos tratar dos fatos sociais, afetivos e psicológicos após o
reconhecimento.
6.1. Aspectos sociais
O reconhecimento de um filho oriundo de um relacionamento não-matrimonial provoca impacto perante a sociedade.
Em uma Ação Negatória de Paternidade, onde a prova de inexistência de paternidade era o exame de DNA, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná julgou a
ação improcedente por se tratar de uma paternidade sócio-afetiva. Sendo que o pai
de afeto reconheceu o filho por quarenta anos, e em torno deste filho construiu-se
uma personalidade, sua imagem, sua história de vida.
Perante a sociedade, esse filho era conhecido como filho de “fulano de tal”.
Decorridos quarenta anos, o pai sócio-afetivo resolveu negar judicialmente sua paternidade, mediante comprovação da inexistência da paternidade através do exame
de DNA.
6.2. Aspectos afetivos
Logo após o reconhecimento judicial da paternidade, o reconhecido cria expectativas em relação ao pai que acaba de conhecer, as quais, normalmente, não
correspondem à realidade afetiva do pai.
Do ponto de vista paterno, o “pai novo” não sabe como se comportar diante
de um filho que não era esperado.
A relação torna-se, ainda, mais tensa quando este pai já possui um matrimônio com outra mulher, a qual não é a progenitora do reconhecido. Cria-se, então,
uma situação muito mais complicada. Como a esposa irá comportar-se perante um
filho de seu esposo advindo de uma relação extraconjugal?
Com raras exceções, as esposas não aceitam este novo filho no seu convívio
familiar com medo de perder o amor de seu marido, dificultando, cada vez mais, relação entre pai e filho.
Já reconhecido, sente-se rejeitado tanto pelo pai quanto pela esposa de seus
meio-irmãos. Por sua vez, sua mãe, percebendo a rejeição de seu filho pela família
do pai da criança, fica rancorosa e acaba afastando o reconhecido do convívio com
seu pai.
Afeto constitui a matéria-prima fundamental para as relações de filiação, adequada à formação moral e psíquica de todo ser humano.
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Portanto, o reconhecimento judicial da paternidade sem afeto pode levar a
criação de pessoas insensíveis aos vínculos familiares.
Muitas vezes, ouvimos a frase “os filhos são o espelho dos pais” Essa frase nos
faz raciocinar que pessoas, sem vínculos afetivos, futuramente, terão pensamentos
de que constituir família acarreta, apenas, obrigações, cobranças.
CONCLUSÃO
Finalmente, chegamos à parte mais conclusiva de nosso trabalho, o significado de todas horas gastas em pesquisas bibliográficas e pesquisas de campo.
Com o desenvolvimento deste trabalho, vimos o quanto é importante o papel
de nossas famílias em nossas vidas. Pessoalmente, aprendi a valorizar muito mais
meus pais e perceber o quanto é bom ter demonstrações de afeto.
Aliás, até essa pesquisa, não sabia o real sentido dessa palavra que, diariamente, passa desapercebida por nós.
Afeto não precisa ser dado por quem nos concebeu, sim por aqueles que estão ao nosso lado em todos os momentos. Afeto não é tarifado. Não pode ser imposto. Deve ser espontâneo, livre de obrigações.
Ação de investigação de paternidade é muito dolorosa para todos os lados. A
suposta idéia de ter um pai cria muitas ilusões na mente do requerente.
Caso consiga passar a próxima fase desse processo doloroso, chega-se ao tão
sonhado reconhecimento judicial da paternidade. E o reconhecido acha que nesse
momento sua vida irá transformar-se em um “mar de rosas”.
Pensa que terá um pai presente, carinhoso, espontâneo, e poderá a partir de
agora comemorar o dia dos pais, dizer para os colegas de escola com o peito estufado, “meu pai”.
Formou-se na mente do reconhecido um mar de ilusões. Para ele, todos os
seus sonhos tornaram-se reais. A justiça também sonhou como o reconhecido.
Porém, o agora filho de fulano de tal desperta para a realidade. E depara-se
com a vida real, que nem sua mãe, nem o juiz explicou como seria.
A Justiça esqueceu-se do sentido real de ser pai, de ter uma família. O afeto ficou de lado nesse litígio.
Muitos podem pensar se o suposto pai não for coagido a reconhecer seu filho, jamais o fará de livre e espontânea vontade.
Como então unir o pai de sangue e seu filho sem coagi-lo? Pergunta para os
dias correntes quando se é infiel aos seus amores, quando se reconhece uma criança sem lhe questionar o que sente em relação ao suposto pai.
Em minha opinião, seria necessário, antes do reconhecimento da paternidade, um período de experiência entre pai e filho, para propiciar um possível vínculo
afetivo. A justiça deveria oferecer acompanhamento para as famílias envolvidas no
processo em questão.
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Além disso, quando ficasse comprovado que a interposição da ação se deu por
interesses econômicos, a ação deveria ser julgada improcedente, como já é decidido por alguns juízes.
Para meu aprendizado de vida, concluí que pai é aquele que cria. Família é
aquela que divide momentos bons e ruins. E obrigar alguém a amar um filho só traz
experiências tristes, podendo criar adultos infelizes.
A Justiça precisa estar alerta a todos esses fatores. Pois, afinal, só procuramos
a felicidade.
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da bioética ao biodireito: a filiação em face
da inseminação artificial heteróloga
Viviane Hanshkov
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru – ITE, em 2002.
INTRODUÇÃO1
O avanço da biotecnologia é fato notório e mundial. Com ele, também evoluíram as discussões éticas acerca das questões decorrentes desse progresso, como,
por exemplo: engenharia genética, doação de órgãos, clonagem, reprodução humana assistida, etc. A ética e, mais tarde a bioética e o biodireito, tornaram-se os alicerces para a tomada de decisões e formação de diversos posicionamentos, tendo, por
fim, a preservação da dignidade humana.
A reprodução humana assistida enseja questões polêmicas acerca de filiação,
paternidade e direitos da personalidade. Faz-se necessário avaliar, nesse sentido, as
vantagens e os inconvenientes advindos das pesquisas científicas, envolvendo os direitos inerentes à filiação. Enfocando a inseminação artificial heteróloga, é fácil perceber que existem muitos inconvenientes a serem analisados, principalmente no
que diz respeito ao anonimato do doador. Muito embora o Direito se esforce para
acompanhar a evolução das demais ciências, especialmente da Medicina, ainda se
mostra precário e extemporâneo às questões decorrentes desse tipo de procedimento médico. A legislação é insuficiente e, quando muito, inexistente.
1 Monografia apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito de Bauru, da Instituição Toledo de Ensino, em 26 de novembro de 2002, como exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da doutora Maria Isabel Jesus Costa Canellas.
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O interesse pelo tema se deve a essa inércia do Direito frente a assuntos e fatos ocorridos já em grande escala em nossa sociedade. A inseminação artificial heteróloga é, hoje, comumente procedida em clínicas de reprodução humana, sem que
haja qualquer norma legal e cogente inibindo os excessos, proibindo as simulações
e fraudes e punindo as irregularidades e infrações.
A Metodologia usada neste trabalho foi a bibliográfica, tendo em vista apresentar as diversas posições e opiniões acerca do assunto, bem como levantar a própria
história da inseminação artificial no decorrer do tempo.
O trabalho foi dividido em 3 capítulos, a fim de possibilitar ao leitor uma
visão clara e definida do tema. No primeiro capítulo, temos uma análise do que
é Bioética, quais são os seus princípios e sua posição diante da procriação humana artificial, bem como do Biodireito, haja vista que são os alicerces fundamentais para um estudo ético do tema, pois tratam especialmente da preservação da dignidade humana. No segundo capítulo, temos um estudo direcionado
à inseminação artificial heteróloga, em seus aspectos éticos, psicológicos, religiosos e jurídicos, e também uma análise do Direito Comparado referente ao
tema e da legislação existente no Brasil relacionada ao assunto. No terceiro capítulo, enfocamos o objetivo nuclear do trabalho, ou seja, os direitos da filiação
envolvidos neste tipo de procedimento, as vantagens e desvantagens que esta
técnica de reprodução artificial oferece, tendo em vista, precipuamente, resguardar e proteger os direitos inerentes à filiação.
O tema não só é polêmico, como também relevante à própria formação da
sociedade. Por isso, contamos hoje com um material cada vez mais rico em contéudo e análise crítica, o que veio a facilitar o nosso trabalho de pesquisa.
1.
BIOÉTICA E BIODIREITO
O que é bioética? Uma ética da vida? Uma proteção da vida humana?
Não é tão simples falarmos de bioética, uma vez que ela envolve um conjunto de conceitos que, por serem extremamente ligados ao ser humano, passam constantemente por mudanças, influenciadas pela cultura de uma nação, pela religião da
época, pela inevitável globalização.
Conceitos como moral, ética, valor, não podem ser definidos de forma desconectada à atual biotecnologia, em razão da própria perplexidade e do impacto social
que provocam.
E o biodireito? Onde entra nessa história? Qual o papel reservado ao biodireito frente ao progresso científico?
É indiscutível a necessidade de passar da bioética ao biodireito mas, como disse com acerto o respeitável professor Eduardo de Oliveira Leite:
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“A formalização da Bioética ao Biodireito tem por risco a própria
vida”.1
A solução é o meio termo, é a razoabilidade e o bom senso. Arriscamos ser
este o caminho sustentável dessa formalização, ou, ao menos, ser uma tentativa de
responder às indagações aqui propostas.
1.1 Evolução histórica
“Bioética é a parte da Ética, ramo da filosofia, que enfoca as questões referentes à vida humana”.2
A bioética procura refletir de maneira multidisciplinar as questões referentes
à vida e ao ser humano. “Pessoa” e “dignidade”são alicerces da bioética, que pode
ser definida como o estudo da conduta humana, que examina de forma sistemática
tais condutas, conforme os valores e princípios morais. É a ética das biociências, que
tem por fim a preservação da dignidade humana, dos princípios e valores da conduta humana, da sobrevivência do ser humano e do planeta.
Embora muito discutida recentemente, surgiu na década de 70, por um cientista americano chamado Van Reslaer Potter, que, em 1971, escreveu o livro “Bioética – Um Ponte para o Futuro”. Pioneiro na área, sua preocupação recaía sobre a sobrevivência da espécie humana, sustentada por conceitos éticos que tornaram-se
marco para a discussão sobre o tema. No mesmo ano, André Hellegers também fez
uso do termo “bioética”, e a denominou como uma ética da vida, mais precisamente, da vida humana e acreditou que ela seria capaz de combinar a ciência e a ética,
ou seja, haveria uma fusão das ciências biológicas e sociais com as éticas religiosas e
seculares.
Destarte, Potter enfocasse a contribuição da biologia na discussão, atualmente vários segmentos da sociedade têm se mobilizado em discutir o assunto. E o Direito, como ciência que é, não ficou à margem desse processo. Ganhou prefixo e
tenta, apesar da lentidão, acompanhar as inovações das ciências biomédicas, da engenharia genética, da embriologia e das altas tecnologias aplicadas à saúde e, ainda
tem como missão, garantir a segurança, ou seja, salvar o homem da dúvida, da vida
sem limites e sem regras. Se a preocupação do “pai” da bioética era com a sobrevivência da espécie humana estaria, então, o biodireito preocupado com a sobrevivência da própria sociedade?
Conforme Judith Martins Costa enfatiza:
1 Eduardo de Oliveira Leite, Procriações artificiais e o Direito, p.11.
2 Marco Segre, Bioética, p.23.
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“O papel do Direito não é o de cercear o desenvolvimento científico, mas, justamente o de traçar aquelas exigências mínimas que
assegurem a compatibilização entre os avanços biomédicos que
importam na ruptura de certos paradigmas e a continuidade do
reconhecimento da Humanidade enquanto tal, e, como tal, portadora de um quadro de valores que devem ser assegurados e respeitados”.3
Para Regina Fiuza Sauwen,
“(...) ao âmbito da bioética, integra-se também o biodireito. Este é
uma área do direito relativamente nova que, dentre outras metas,
tem o compromisso primordial de, através de normatização adequada, manter a real validade da principal divisão do Código Civil: Direito das Pessoas e Direito das Coisas, isto é, as pessoas deverão ter
mantida a sua dignidade, não sendo tratadas como coisas”.4
É bem verdade que o biodireito é fruto das novas ocorrências biotecnológicas e
se apresenta como estrutura e operação de nova ordem do Direito que tem por fim a
proteção da vida humana, bem como a resolução e a preservação de direitos.
A bioética deixou de ser uma questão de ética biomédica, uma simples tradução da expressão em inglês Bio (medical) ethics. Hoje, pretende abordar os temas
enfocados pela sociedade contemporânea, uma vez que, reúne em suas discussões
éticas, morais e jurídicas, profissionais de todas as áreas, sejam eles biomédicos, biólogos, médicos, juristas, filósofos ou cientistas. Convalida essas discussões, a intenção da bioética, que nada mais é do que a sobrevivência da própria vida humana, a
dignidade e o valor da vida diante do futuro. Preocupa-se, principalmente, com a delimitação e determinação dos limites éticos para as práticas de pesquisa e técnicas
científico-biológicas que estão interferindo no ciclo natural da vida, ou seja, desde a
sua concepção até a morte. Permanecer inerte ao conhecimento seria ético? Como
usar o conhecimento? Cabe à bioética responder estas questões? Segundo o Manual
de Bioética, de Elio Sgreccia:
“é preciso elaborar uma ‘ciência’ da sobrevivência”5
Os chamados Centros de Bioética, hoje, estão espalhados por todo
o mundo, como, por exemplo: EUA, Espanha, França, Inglaterra, Itália, etc.
3 Judith Martins Costa, Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção do biodireito, ps. 13-30.
4 Regina Fiuza Sawen, O Direito in vitro: da bioética ao biodireito, p.47.
5 Elio Sgreccia, Manual de bioética, p.24.
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No Brasil, os de maior destaque, estão localizados em São Paulo, Paraná e Distrito Federal.
A bioética, portanto, não pode preocupar-se apenas em solucionar os problemas bioéticos, mas deve conduzir à aquisição de hábitos éticos e de qualidade de vida, bem como deve ser um estudo deontológico, que proporcione diretrizes morais para o agir humano diante dos dilemas que se levantam em torno
de tantos direitos como a vida e a morte, o futuro gerado artificialmente, a liberdade da mãe, a doação de órgãos, a pesquisa científica, a preservação dos direitos das gerações futuras.
1.2 Bioética, biodireito e humanismo jurídico
Reconhecendo enfaticamente o respeito à dignidade humana, a bioética e
o biodireito passam a ter um sentido humanista, estabelecendo um vínculo com
a justiça.
A bioética é uma discussão relevante, mas desde que imbuída das mesmas
intenções que a ética filosófica, a saber, o fomento da virtude, do respeito à dignidade humana, do caráter e da felicidade.
Os direitos humanos referem-se à dignidade do homem e à preservação da
sua integridade física e moral, bem como à plena realização e desenvolvimento
de sua personalidade. A bioética e o biodireito andam de mãos dadas com os direitos humanos e por isso não podem fingir não ver as tentativas e os procedimentos da biotecnociência de alimentar as injustiças contra a pessoa humana,
disfarçadas de instrumentos condutores da modernidade e do progresso, declarando ter em vista o bem comum da humanidade.
Não poderão, bioética e biodireito, admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela o direito a uma vida digna. O respeito
à vida humana digna, paradigma bioético, deve estar presente na ética e no ordenamento jurídico de todas as sociedades humanas. Os interesses e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado da sociedade ou da ciência.
Qualquer ato que ferir a dignidade humana deverá ser repudiado por contrariar os princípios ético-jurídicos dos direitos humanos, seja uma importante pesquisa científica ou uma mera consulta médica. Tomemos este último caso como exemplo, sabemos que para compreender um paciente é necessário autoconhecimento,
conhecimento de outra experiências, temperamento, nuances da personalidade,
sentimentos e idéias e, principalmente, respeito. O acesso ao mundo humano requer capacidade para entender a experiência dos outros de maneira solidária. Se o
médico se limita a fatos registrados publicamente e a generalizações atestadas, necessariamente omite avaliação de um vasto número de pequenas e constantes alterações e, então, o respeito à dignidade da pessoa fica comprometido. Assim sendo,
quanto mais sensíveis e conscientes forem os profissionais, mais estarão corretos.
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Essa questão é abordada de maneira taxativa por Maria Helena Diniz:
“(...) as intervenções científicas sobre a pessoa humana que possam atingir sua vida e a integridade físico-mental deverão subordinar-se a preceitos éticos e não poderão contrariar os direitos humanos.”6
Todos os seres humanos, os operadores e aplicadores do direito e, especialmente, os médicos, os biólogos, os geneticistas e os bioeticistas devem intensificar,
bem como incentivar sua luta em prol do respeito da dignidade humana, sem comodismos e com muita ousadia e coragem, para que haja efetividade dos direitos
humanos.
O início podem ser os estudantes, aos quais devem ser ensinados o raciocínio
moral idôneo, bem como as virtudes do respeito, consideração, imaginação, simpatia e compaixão, pois estes são os instrumentos morais de que precisarão para tratar bem das doenças, empreender novas pesquisas e elaborar novos projetos de lei.
A consciência destes é a maior conquista da humanidade, por ser o único caminho para uma era mais justa, solidária e voltada para o respeito da liberdade e dignidade da pessoa humana. A bioética e o biodireito devem participar ativamente
dessa conquista, pois são instrumentos fundamentais para a recuperação de valores
humanos.
1.3 Dos princípios fundamentais da Bioética
Marco Segre, atual coordenador do Núcleo de Bioética da Universidade de
Brasília, esclarece que a bioética é uma discussão aberta para todos os segmentos da sociedade. Apresenta os três pontos principais que definem a base conceitual da bioética: o respeito ao pluralismo moral; a multidisciplinaridade e a
secularidade.7 No caso do pluralismo, os estudiosos procuram respeitar as individualidades de cada cultura, credo ou raça. Quando essas divergências se acentuam, são formados comitês de bioética, compostos por pessoas das comunidades (médicos, padres, sociólogos) que discutem até chegar a um denominador
comum. A multidisciplinaridade é caracterizada pela busca de conceitos e informações em outras disciplinas, como Direito, Sociologia, para maior embasamento de suas teses. A secularidade trabalha com a idéia de que a bioética não é canônica, mas sim laica.
O objetivo da discussão bioética não é estabelecer regras ou dar uma opinião
formada e sim trazer assuntos polêmicos como aborto, reprodução assistida, clona6 O Estado atual do biodireito, p.20.
7 Marco Segre, Bioética, p.19.
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gem, eutanásia à luz da discussão e ponderar sobre os pontos positivos e negativos
de cada situação.
A bioética tem como princípios fundamentais a beneficência, a autonomia e a
justiça. A beneficência está calcada no dever de fazer o bem, no máximo de benefícios e mínimo de malefícios, tendo como base de seu trabalho a moralidade da saúde e bem estar e a compaixão social8; a autonomia, na liberdade de opção do indivíduo pelo que lhe é mais benéfico, no consentimento livre e esclarecido do indivíduo, tendo como base a moralidade da autonomia, bem como o respeito mútuo9; e
a justiça, na igualdade de tratamento, na relevância social e destinação sócio humanitária da pesquisa.
Nos Estados Unidos, a bioética atual também tem teorias de contrato social,
bem apropriadas para o entendimento entre profissionais poderosos e público exigente e informado. Pelo contrato social, podemos procurar um médico porque nos
machucamos, mas, no relacionamento estabelecido, nunca poderíamos baixar a
guarda. Isso explica por que o princípio da autonomia ocupa lugar privilegiado na
bioética comtemporânea.
O desafio é captar princípios relevantes, colocá-los em ordem e reconciliá-los
onde houver conflitos, tendo em vista uma solução ética satisfatória. É essencial que
existam regras que guiem comportamentos e princípios que sirvam como árbitros
quando as mesmas sejam conflitantes.
A bioética não só pode, como deve criar limites morais e éticos para as pesquisas científicas, não visando a proibi-las, mas tendo em vista, garantir o bem-estar
e a sobrevivência digna e de qualidade do homem no planeta.
O conflito entre a ciência e as normas é antigo. O embate agora se dá entre
o conhecimento, a ética e a dignidade do homem, uma vez que valores como a integridade da vida, respeito, solidariedade e o livre arbítrio são introduzidos nos trabalhos científicos. Os bioeticistas têm como tarefa, recompor a harmonia entre a ética, a economia e a política.
Algumas questões são contundentes para a bioética, como por exemplo, a capacidade humana de interferir nos processos da vida tornando-a artificial; o início e
o fim da vida humana; a influência teológica importante para as reflexões de bioética, no que se refere à uma cosmovisão antropológica.
1.4 Atuação da bioética e do biodireito na procriação artificial
O biodireito pode ser definido como um conjunto de normas esparsas, que
tem como objeto, as atividades biotecnológicas, e como finalidade, a preservação da
integridade e dignidade do ser humano, frente ao progresso científico. Haja vista,
8 H. Tristam Engelhardt Jr., The Foundations of Bioethics, p.124.
9 Ibid, p.123.
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que o dano é a lesão de qualquer bem jurídico e inclui-se aqui, o dano genético, que
provoca mutações lesivas aos seres vivos e interfere diretamente nas variações hereditárias.
Para alguns pensadores, as novas biotecnociências suscitam uma violenta controvérsia acerca da noção de liberdade, pois a habilidade de interferir nas mutações
biológicas é vista como a liberdade de operar a morte da pessoa.
Os textos dos regulamentos de conduta são insuficientes, inadequados ou, até
mesmo, inexistentes. Sendo assim, o ilustre professor Eduardo de Oliveira Leite indaga se “a liberdade de pesquisa é absoluta ou relativa?”10
Além do mais, enfatiza muito bem o professor Eduardo, quando diz assertivamente que
“(...) o ser humano – pessoa ou coletividade – se tornou objeto de
manipulação e passou a ser, a partir de agora, projeto e não mais
somente sujeito de direito.”11
Haja vista que a Constituição Federal tem como um de seus fundamentos, que
o homem é sujeito dos poderes e das relações de domínio, não sendo, portanto, objeto ou projeto dos poderes.
A liberdade de pesquisa e de investigação científica é amparada pela Constituição, em seu art. 206, II, mas tal liberdade está centrada na relação entre a ética e
a ciência, e levanta mais uma questão: será que tudo que é possível para a ciência é
também possível para a ética?
Apesar de proclamar a liberdade da atividade científica como uma das garantias dos direitos fundamentais, a Constituição assegura outros valores e bens jurídicos como a vida, a integridade física e psíquica, a privacidade e outros. Havendo
conflito entre a livre expressão da atividade científica e outro direito fundamental da
pessoa humana, a solução ou o ponto de equilíbrio deverá ser o respeito à dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, também previsto na
Constituição Federal.
É justamente quando os limites éticos são insuficientes, que recorremos aos
limites jurídicos que têm como função elaborar modelos, estabelecer limites, construir teorias jurídicas que sirvam de orientação.
A bioética tornou-se importante aliada do Direito, na medida em que problematiza as questões, que abre pistas em situações imprevisíveis, como a inseminação
em mulheres solteiras, a polêmica questão do anonimato na inseminação heteróloga, a tão discutida barriga de aluguel, etc. O Direito, que é uma realidade feita por
homens, é um produto de colaboração ativa desses homens. Deve, por sua vez, in10 Eduardo de Oliveira Leite, op. cit., p.133.
11 Ibid., p.141.
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tervir nas práticas biomédicas regulamentado-as, legitimando-as ou, se preciso for,
proibindo-as e, para isso, o Direito Comparado e o Direito Internacional adquirem
importância fundamental, pois neste mundo globalizado e conectado, o intercâmbio de experiências é de extrema importância para solucionar os problemas desta
ordem, que afetam todas as sociedades só que em graus diferentes. O crescente desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, em todo o mundo, está fazendo com que a noção de família passe por profundas reformas devido a vários fatores de ordem científica, moral e social. Os principais são, sem dúvida, as técnicas de
inseminação e fertilização assistidas e engenharia genética. Está surgindo, portanto,
uma “nova família” e o Direito não pode desconsiderar tal fato.
O biodireito é um instrumento que possibilita cuidar das conseqüências trazidas pelas inovações biotecnológicas e não deve, por sua vez, se perceber como uma
área isolada e auto-suficiente, mas sim conectada às diversas áreas do conhecimento humano, bem como ao mundo em geral.
Ao passo que a bioética estabelece os limites morais do agir científico no campo da vida, o biodireito deve fixar os limites jurídicos da prática social no campo da
biotecnologia. Várias são as causas que justificam o surgimento do biodireito, como:
os direitos do homem salvaguardados pela Declaração dos Direitos do Homem, que
levou à uma reflexão filosófica sobre esses direitos; o avanço biomédico e o progresso científico que carecem de limites e fronteiras para que não lesem a dignidade do
ser humano; a insuficiência ou inadequação da legislação referente a essas pesquisas científicas.
Fica evidente, portanto, que precisamos elaborar um estatuto jurídico da vida
humana, que tenha como interesse primordial a proteção da vida humana em todos
os seus estágios e manifestações, de modo a preencher o vazio jurídico em que se
encontra o nosso Direito, no enfrentamento dos problemas abordados pela bioética contemporânea, principalmente no que diz respeito às soluções criadas para a
questão da infertilidade.
1.5 Da reprodução humana assistida
A história da humanidade revela que a esterilidade sempre foi considerada um fator negativo dentro da sociedade. A mulher estéril era vista como um
ser que devia ser banido do convívio social. Para os judeus, representava um verdadeiro castigo de Deus. A fecundidade se vincula à noção de bem e a esterilidade à noção de mal.
Com a invenção do microscópio, no final do século XVI (em 1590), a esterilidade conjugal foi importante objeto de estudo da ciência. No século XVII, foi
admitida pela primeira vez que a esterilidade não era só feminina, mas também
masculina. Assim, novos horizontes abriram-se ao problema da esterilidade humana.
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A década de 70 foi um marco decisivo às descobertas de técnicas de procriação artificial. Cientistas realizaram estudos sobre fertilização in vitro com óvulos humanos, formação de embriões com transferência para o útero, coleta de óvulos e,
enfim, em 1978 na Inglaterra, nasceu o primeiro bebê de proveta.
A partir daí, muitas técnicas foram desenvolvidas, dentre as principais podemos destacar as inseminações artificiais homóloga e heteróloga, a fertilização in vitro e as mães de substituição (barriga de aluguel). Todas essas possibilidades de procriar artificialmente permitiram ao casal ter filhos quando quiserem e escolher o momento da chegada da criança esperada.
A procriação artificial está inserida num contexto médico, científico e sócio-cultural, próprio de sociedades industrializadas. Mas, os maiores conflitos e desafios, decorrentes desta nova realidade, está no âmbito jurídico, pois ela desestabiliza o equilíbrio
do Direito, provocando diversidade de opiniões e convergência sobre pontos essenciais.
1.5.1 Fertilização in vitro
A fertilização in vitro é uma técnica capaz de reproduzir artificialmente o ambiente da trompa de Falópio, onde a fertilização ocorre naturalmente e a clivagem
prossegue até o estágio em que o embrião é transferido para o útero.12
Inicialmente, foi indicada e realizada em mulheres com obstrução irreversível
ou ausência tubária bilateral. Esses são os casos de indicação absoluta da FIV. Mas
existem as indicações relativas, como nos casos de oligozoospermia, falha do tratamento cirúrgico tubário, esterilidade sem causa aparente (idiopática), esterilidade
imunológica e endometriose.
TÉCNICAS
INDICAÇÕES MÉDICAS
ORIGEM DOS GAMETAS
FIV
Esterilidade tubária feminina
Hipofertilidade masculina
Endometriose
Esterilidade inexplicada
óvulo da esposa
+
espermatozóide do marido
FIV + DOAÇÃO
DO ESPERMA
Esterilidade tubária feminina
+
Esterilidade masculina
óvulo da esposa
+
espermatozóide de um doador
FIV + DOAÇÃO
DE ÓVULO
Esterilidade feminina por
ausência de óvulos
Doenças hereditárias
óvulo de uma doadora
+
espermatozóide do marido
Fonte: Eduardo de Oliveira Leite, Procriações artificiais e o Direito, p.42.
12 Eduardo de Oliveira Leite, op. cit., p. 41.
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As primeiras tentativas da FIV tiveram início no século XIX (em 1878), mas foi
em 1944 que ela começou, quando dois biologistas obtiveram quatro embriões normais a partir de mais de uma centena de óvulos humanos colhidos nos ovários e colocados em presença dos espermatozóides.
O processo compreende várias etapas: indução da ovulação, punção folicular
e cultura de óvulos, coleta e preparação do esperma e, finalmente, inseminação e
cultura de embriões. A FIV pode ser homóloga, quando a crianca é nascida dos gametas do casal, após fecundação in vitro e transferência no útero materno; e heteróloga, quando a criança nasce após fecundação in vitro pelo esperma do marido,
de um óvulo doado e implantado no útero da mulher, ou criança nascida após fecundação in vitro de um óvulo estranho ao casal e de um espermatozóide igualmente estranho.
A criança resultante de uma FIV não apresenta complicações genéticas ou
médicas que poderiam comprometer seu desenvolvimento e normalidade, salvo, contudo, as possibilidades de gestações gemelares ou múltiplas (três ou mais
crianças).
Considerando-se que a vida é gerada fora do útero materno, ou melhor, não
há fecundação natural, a FIV, em todas as suas fases, é acompanhada de muita expectativa e perplexidade.
1.5.2 As mães de substituição
A prática de se apelar às mães de substituição é ancestral. A substituição da
mãe pode se realizar em nível meramente afetivo, por exemplo, a mulher que empresta seu corpo para carregar o filho que será de sua irmã, como também pode ter
caráter comercial, implicando em pagamento pelo uso do corpo e, daqui, surge a
expressão “barriga de aluguel”.
No Brasil, esta forma de reprodução humana vem prevista no artigo 1º da Resolução nº. 1358/92 do Conselho Federal de Medicina.
O procedimento de empréstimo do útero pode se dar de duas formas:
a mãe portadora – é aquela que apenas ‘empresta’ seu útero. Trata-se de uma mulher fértil no útero da qual se reimplanta um ou
vários embriões obtidos através da fecundação in vitro, a partir
dos óvulos e dos espermatozóides do casal solicitante. Ela é, pois,
tão-somente, mãe portadora.
a mãe de substituição – além de emprestar seu útero, dá igualmente seus óvulos. Trata-se de uma mulher fértil que será inseminada com o esperma do marido da mulher que não pode conceber. Se ela engravidar, ela garantirá a gravidez de um criança que
é, geneticamente sua, e, após o parto, a dará ao casal. Ou seja, no
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caso da mãe de substituição, a mãe é, ao mesmo tempo, genitora
e gestante.13
A necessidade do ato sexual para provocar uma gravidez de substituição foi
eliminada com a utilização da inseminação artificial, em que a mulher é inseminada
com o esperma do marido da mulher que recorreu ao procedimento ou de um doador anônimo, contando com os progressos da fecundação in vitro, em que a mulher que “empresta” o seu útero é apenas portadora.
TÉCNICAS
MÃE DE
SUBSTITUIÇÃO
INDICAÇÕES MÉDICAS
ORIGEM DOS GAMETAS
Esterilidade feminina
por impossibilidade de
gestação
FIV a partir
dos gametas do
casal
Óvulo da esposa
+
espermatozóide do marido
Esterilidade feminina por
ausência de óvulos e
impossibilidade de
gestação
Doação de óvulo
+
IA com esperma
do casal
Óvulo de uma doadora
+
espermatozóide do marido
Fonte: Eduardo de Oliveira Leite, op.cit., p.43.
1.5.3 Inseminação artificial
A primeira inseminação artificial humana ocorreu na Idade Média. Por volta de 1890, começou a ser realizada a inseminação heteróloga em seres humanos.
Diz-se homóloga, a inseminação artificial realizada com sêmen proveniente
do próprio marido e heteróloga, quando feita em mulher casada com sêmen de
um doador (um terceiro) ou, ainda, quando a mulher não é casada.
As causas da esterilidade são diversas, mas as mais freqüentes são a ausência completa de espermatozóides (azoospermia), ou quando a produção de espermatozóides é alterada (azoospermia secretória).
13 Eduardo de Oliveira Leite, op. cit., p. 68.
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TÉCNICAS
INDICAÇÕES MÉDICAS
ORIGEM DOS GAMETAS
IAC
(INSEMINAÇÃO
HOMÓLOGA)
Hipofertilidade
Perturbações das relações sexuais
Esterilidade secundária após
tratamento esterilizante
óvulo da esposa
+
espermatozóide do marido
IAD
(INSEMINAÇÃO
HETERÓLOGA)
Esterilidade masculina definitiva
Doenças hereditárias
óvulo da esposa
+
espermatozóide de um doador
Fonte: Eduardo de Oliveira Leite, op.cit., p.44.
Para a penetração de um só espermatozóide, são necessários, no mínimo,
20.000.000 de espermatozóides/ml ejaculado e com boa mobilidade. Com cinco
milhões de espermatozóides móveis por milímetro, a fertilidade ainda é uma incógnita.
A fim de se evitar o risco da consangüinidade, limita-se a cinco o número
de crianças, para cada doador, nascidas em famílias diferentes. No Brasil, a Resolução 1.358/92 reduziu a duas gestações, de sexos diferentes, para cada doador
numa área de um milhão de habitantes.
As inseminações podem ser feitas com esperma congelado, ou segundo o
método antigo com esperma fresco do doador, colhido e injetado imediatamente. É feita por meio do depósito do esperma preparado dentro da vagina, em volta do colo, dentro do colo, dentro do útero, ou dentro do abdômen.
A inseminação intracervical consiste no depósito no colo do útero do esperma contido em um capilar. O capilar é retirado do azoto líquido, um pouco
antes da inseminação, e reaquecido rapidamente. Introduz-se o capilar na seringa de inseminação e a extremidade da seringa permite o escoamento do esperma até o muco endocervical. A operação dura dois minutos.
Durante um mesmo ciclo, utiliza-se para cada mulher o esperma de um só
doador.
Existem, porém, outras técnicas de inseminação como a intravaginal, realizada por meio de uma seringa plástica usando todo o esperma e a intrauterina,
em que o colo uterino é deixado de lado e o líquido seminal é injetado diretamente dentro da cavidade uterina.
Em nível eminentemente médico, na decisão por uma inseminação artificial, intervêm sempre dois parâmetros fundamentais: 1) a idade da mulher que,
depois dos 30 anos, torna-se menos fértil; 2) a duração da infertilidade sob controle médico. A infertilidade é considerada irreversível após 4 anos de tentativas
frustradas.
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A inseminação artificial homóloga não tem encontrado muitas objeções, entretanto a heteróloga continua provocando dúvidas, divergências de opiniões e interrogações de ordem ética, psicológica, religiosa e jurídica, por ser dependente de
um terceiro na intimidade do casal.
2.
A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA
A técnica da inseminação assistida é a técnica mais antiga, tendo percorrido
um longo processo de desenvolvimento. Pode ser considerada como um auxílio
dentro do processo natural de fecundação humana.
Tanto no processo natural, quanto na inseminação artificial, pode ou não
ocorrer a fecundação. Do ponto de vista ético, não há de se levantar questionamentos sobre o momento em que se começa a vida.
Contudo, na inseminação heteróloga surgem muitos questionamentos, ainda
não totalmente assentados, que se refletem no âmbito ético, psicológico, religioso
e, enfim, no âmbito jurídico.
Como a normatização a respeito é precária, as questões ficam em aberto, à
espera do bom senso do julgador.
2.1 Aspectos éticos
As procriações artificiais quebraram nossos conceitos sobre modos de concepção e estruturas de parentesco. A medicina transformou o corpo em objeto de exploração e este perdeu sua qualidade de sagrado. A ética tornou-se o caminho para descobrirmos as respostas e soluções para as questões que decorrem desses procedimentos
de reprodução medicamente assistida. Como reflexão dialética e dinâmica que é, deve
encarar as interrogações decorrentes da procriação artificial, tendo em vista a dignidade do ser humano e a salvaguarda do interesse da futura criança.
Não é simples de se resolver quem pode recorrer a uma procriação artificial,
uma vez que o direito de se ter um filho é incontestável e absoluto.
A primeira regra que se impõe é a do consentimento, que varia de acordo com
o tipo de tratamento previsto e se formaliza através de um documento escrito obtido antes do início do tratamento. A segunda regra é a da gratuidade, pois o corpo
deve permanecer fora do comércio, a procriação artificial só pode existir na medida
em que ocorre doação. Em decorrência disto, surge a regra do anonimato, que funciona como uma garantia da autonomia e da expansão da família.
Tratando-se de inseminação artificial heteróloga, a primeira experiência que
se tem notícia foi em 1884, realizada na Grã-Bretanha. Atualmente, é mais desenvolvida nos Estados Unidos e na França.
No Brasil, embora a legislação insista em desconhecer sua validade, a inseminação heteróloga é praticada, bem como outras formas de procriação artificial em
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Centros no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro, todos funcionando
de forma isolada, conforme suas próprias convicções. Apesar do silêncio da lei, a
doutrina já se manifestou favorável a ambas as inseminações.
A introdução de um terceiro na relação do casal é a primeira questão polêmica que surge na inseminação artificial com doador (IAD). Tal hipótese é repreendida moralmente, independente de qualquer justificativa. Alguns até entendem tratarse de adultério da mulher, entretanto não são relevantes, visto que a receptora não
deverá conhecer a identidade do doador e nem o doador irá conhecer a identidade
da receptora. Além do mais, o consentimento do marido é marca de estabilidade do
casamento.
Uma outra questão que se apresenta é referente à ausência de laços da criança com o marido da mulher inseminada, ou seja, biologicamente não há ligação entre os dois. Contudo, se apenas os laços biológicos forem levados em consideração,
a adoção estaria em total desvantagem frente à IAD, pois não haveria laços nem com
o pai, nem com a mãe. Daí a importância das orientações psicológicas, propostas pelos Centros na França, para dar suporte aos pais no sentido de absorverem a idéia
de que a evolução familiar está centrada antes nas relações afetivas do que nas de
caráter biológico.
O avanço biotecnológico criou a possibilidade de suprir a incapacidade de ter
filhos e a ausência de sanção oficial não impedirá essas técnicas de reprodução artificial de continuarem se propagando.
2.2 Reflexos religiosos e psicológicos
A inseminação artificial heteróloga é uma imitação da paternidade natural.
Hoje, na França, existem vinte bancos de esperma, espalhados em quase todo
o território. Foi criada uma Federação que colocou como princípio que a doação
deve ser gratuita e benévola, uma vez que antes de sua criação, as inseminações
eram praticadas na clandestinidade, por homens solteiros e pagos para doar. Agora,
a doação só é aceita se proveniente de homem casado com, no mínimo, um filho
normal e com consentimento da esposa. Aos casais solicitadores de esperma, é imposta uma entrevista com médico psiquiatra.
A descoberta da esterilidade atinge o casal não só psicologicamente mas também socialmente, pois o que ocorre é uma reprovação em cadeia, começando por
uma pessoa, depois o casal e a família e, mais tarde, a sociedade inteira e, até mesmo, sua religião.
A Igreja Católica, inicialmente, desconheceu a extensão das novas tecnologias
de intervenção sobre o processo de procriação humana, manifestando total repúdio
às novas experiências. Se para a Igreja Católica a procriação artificial é moralmente
ilícita, para os protestantes ela se revela somente como um parênteses da evolução
técnica. A inseminação artificial é considerada, pela Igreja, contrária ao direito e à
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moral. A inseminação heteróloga é contrária à unidade do casamento, pois o recurso aos gametas de uma terceira pessoa viola o compromisso recíproco dos cônjuges
e ofende a vocação comum dos esposos chamados à paternidade e à maternidade.
Para o catolicismo, a inseminação heteróloga é condenada. A esterilidade conjugal é
vista pela doutrina católica sob uma ótica fatalista, na mais pura tradição medieval.
A igreja protestante, com relação à inseminação heteróloga, apresenta uma
posição mais evoluída, baseada na possibilidade criada pela ciência de superar a esterilidade, devendo, porém, sempre ser praticada com a anuência do marido e da
mulher. Quanto à igreja anglicana, em sua tendência majoritária, aceita a inseminação artificial homóloga, mas rejeita a heteróloga, por considerá-la uma ruptura do
casamento, uma vez que viola a união exclusiva do homem e da mulher.
O judaísmo se opõe fundamentalmente à prática da inseminação artificial,
pois a mulher judia, cujo marido é estéril, não pode se submeter a uma inseminação com o esperma de um terceiro. Atualmente, a inseminação heteróloga vem ganhando apoio de alguns rabinos franceses e americanos que tem-se manifestado favoráveis a tal procedimento, desde que haja um comum acordo entre marido e mulher e que o doador não seja judeu.
A igreja muçulmana submete-se rigorosamente aos ensinamentos do Alcorão
e a inseminação artificial não é uma via islâmica de procriação.
Para atingir o desejo de ter filhos, o casal se depara com duas opções, ou recorre à inseminação ou parte para a adoção. Por sua vez, na inseminação artificial
heteróloga, a criança apresentará cinqüenta por cento do código genético do casal
e isto responde uma questão de foro íntimo.
É relevante reconhecer que o caminho percorrido pela inseminação artificial
heteróloga é pleno de dilemas, recuos, nem sempre pautado em vitórias e na maioria das vezes, longo e doloroso. O início, após a decisão, é o período de maiores
questionamentos em que a mulher se comporta com grande sentimento de obediência em relação ao médico.
A procriação artificial é, por parte das mulheres, um ato de coragem, desprendimento, renúncia e esforço. Para os homens, a existência de uma terceira pessoa,
o doador, faz aumentar a perda de estima de si, fazendo com que se considerem inferiores aos outros e “menos” homens. O fantasma do rival e do adultério está sempre presente entre o casal, causando um certo constrangimento. Por isso, a aceitação do doador é um grande desafio.
Outro medo vivido pela futura mamãe é o de gerar uma criança com defeito congênito, uma vez que o anonimato do doador faz crescer esse medo de ter
um filho com defeito físico. Além disso, é muito comum, o medo de que a criança os abandone para procurar seu verdadeiro pai biológico. Não bastassem esses
fantasmas, ainda resta para o casal enfrentar um desafio crucial, quanto à revelação da verdade para a criança, pois é necessário evitar-se uma revelação traumatizante. Dizer a verdade e saber a verdade é fundamental para o relacionamento
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dos pais com o filho. Há, contudo, argumentos contrários e favoráveis em relação
à revelação: o risco de traumatizar a criança; a rejeição pela família dos avós paternos e pela sociedade; o risco da informação por um terceiro; a necessidade de
se conhecer a realidade; enfim, há uma infinidade de argumentos para se querer
ou não, contar a verdade.
Na França, foi elaborada uma orientação psicológica, realizada de forma sistemática por psicólogos e psiquiatras, com o objetivo de propor uma eventual ajuda
e um excelente recurso para prevenir possíveis desentendimentos no relacionamento entre pais e filhos.
Em pesquisas recentes, ficou constatado que estas crianças, por serem tão desejadas e esperadas, apresentavam um desempenho superior à média normal, porém não foram avaliados os riscos referentes ao desenvolvimento afetivo e intelectual. Ficou constatado também que a atitude das mães frente à criança é de superproteção, e a dos pais, de ansiedade e intenso investimento.
A orientação psicológica se apresenta como um excelente recurso oferecido
aos casais e um meio de prevenir possíveis dificuldades no relacionamento entre
pais e filhos.
2.3 Reflexos jurídicos
Em nível jurídico, os progressos científicos oriundos da biologia, da genética
e da técnica aplicada à reprodução humana, não atingem somente o casamento propriamente dito, mas afetam a filiação que cria o vínculo entre a criança e seus pais.
A filiação não se funda somente nos laços de sangue, mas também na vontade da
aceitação dos filhos, ou seja, existem duas verdades, a verdade biológica e a verdade do coração, que é a filiação vivida.
Diante disso, qual é a filiação de uma criança concebida por meio da inseminação artificial heteróloga? Essas verdades coincidem com a verdade jurídica, no estabelecimento da filiação?
Uma coisa é certa, a vontade desempenha um papel fundamental no estabelecimento do vínculo da filiação. Entretanto, esses questionamentos ainda não foram objeto de uma legislação específica e o direito positivo atual tem-se revelado insuficiente. Apesar da evolução das descobertas científicas e do avanço das técnicas
médicas e, ao contrário de certos elementos do corpo humano, como o sangue e a
retirada de órgãos que já se encontram regulados por legislação específica, o sêmen
e os óvulos ainda não foram objeto de regulamentação e disciplina legal.
Uma das preocupações jurídicas em relação à inseminação heteróloga diz respeito aos impedimentos matrimoniais, uma vez que são inúmeros os riscos que a
consangüinidade é capaz de criar aos futuros descendentes. Sendo assim, há sempre a possibilidade de que os futuros cônjuges, concebidos graças à inseminação heteróloga, sejam meio-irmão, ou meia-irmã, sem o saber.
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Esse risco só pode ser evitado com a criação de mecanismos de controle governamental, capazes de fiscalizar e limitar a ação dos bancos de esperma. Nesse
sentido, a atuação do governo francês é digna de ser analisada, pois foi elaborada
uma política em que há uma limitação na utilização de esperma, sendo apenas 5 gravidezes, com o objetivo de reduzir ao máximo o risco da consangüinidade. Esses parâmetros de controle existem também em outros países do mundo europeu, onde
o risco de casamentos entre consangüíneos fica reduzido a nada.
Quanto à doação de esperma, somente pode ser alienado gratuitamente. A
gratuidade garante o altruísmo da doação e afasta a possibilidade de comercializações financeiras. Entende-se, por analogia, que o sêmen se enquadra na categoria de
“órgãos e tecidos”.
Tanto o médico, quanto o banco de esperma podem ser responsabilizados pelos danos que vierem acarretar ao doador se, por exemplo, seu esperma for misturado ao de outros doadores por imperícia ou negligência do médico, ou seu anonimato for revelado por imprudência do banco de esperma.
A mulher casada, que recebe o esperma de um doador anônimo, apenas substitui o do marido estéril, porém com sua anuência. Se praticada contra a vontade ou
na ignorância do marido, o ato poderia ser qualificado como injurioso.
Com relação ao consentimento, embora seja um ato dramático para o marido,
ele é necessário para afirmar sua vontade de ser pai, ao menos, no sentido afetivo.
O consentimento marital deve ser expresso e inequívoco. Quanto à união estável,
embora calcada em situação fática, merece igualmente reconhecimento na esfera da
procriação assistida e, por conseqüência, na inseminação heteróloga, visto que a
Constituição Brasileira reconhece-a como entidade familiar. Os companheiros, contudo, deverão provar de forma inequívoca sua situação de fato para posteriormente
atingir a inseminação. A Resolução brasileira prevê o consentimento em formulário
especial e por escrito, mas nada diz sobre a data de sua entrega. Deve ser arquivado
no Centro de Reprodução, antes da concepção da criança e só é válido para um nascimento.
Um outro setor dentro do Direito de Família, que pode gerar algumas situações conflitantes é o referente aos direitos e deveres dos cônjuges. Aqui entra, novamente, a questão do consentimento obrigatório do marido para a realização da
inseminação heteróloga, pois se uma mulher se submete a tal procedimento sem a
anuência de seu marido, está cometendo uma falta grave capaz de legitimar uma
ação de separação litigiosa, bem como uma ação negatória da paternidade. É o que
dispõe expressamente a Lei do Divórcio, em seu artigo 5º, cujo texto garante que
a separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges quando for imputado
ao outro conduta desonrosa ou qualquer outro fato que implique grave violação
dos deveres do casamento e, portanto, a realização da inseminação artificial heteróloga sem o consenso marital é tida como injúria grave ao marido, ensejando motivo para uma ação de separação, visto que o ato é ofensivo à honra, à respeitabili-
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dade e à dignidade do cônjuge. Porém, a injúria grave pode ocorrer por parte do
homem que, ao saber que sofre de uma esterilidade irreversível e não querendo revelar à sua mulher, incita-a a se submeter ao procedimento de inseminação e, durante o procedimento, seu esperma é substituído pelo de um terceiro ou simplesmente misturado ao seu, com total desconhecimento por parte de sua esposa. Nesta hipótese, a mulher pode ingressar com um pedido de separação judicial litigiosa, bem como pode exigir indenização por dano físico e moral contra a clínica ou
o médico que realizou a operação. Vale dizer, que o Código Brasileiro de Ética Médica em seu artigo 68, estabelece ser vedado ao médico praticar fecundação artificial sem que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos
sobre o procedimento.
2.4 Aspectos legais
As questões éticas e jurídicas criadas pelas procriações artificiais não interessam somente aos países ricos e industrializados, mas também aos países não industrializados e pobres, pois devido aos meios de comunicação excepcionalmente rápidos e eficientes, a possibilidade de se procriar artificialmente se espalhou pelo mundo global e as diversas técnicas de procriação medicamente assistida vêm provocando as mesmas dúvidas e situações conflituosas, em diversos centros de estudo e de
realização de tais procedimentos.
Surgem, então, diferentes posturas e diferentes leis que derivam de questões
econômicas, influências de tradições, dos usos e costumes, religiões e ideologias dominantes. Contudo, os problemas levantados por estas conquistas científicas se refletem de modo comparável.
As diferentes legislações acerca das procriações artificiais são heterogêneas e
mutáveis e apesar da prática destas técnicas ser admitida pelos países, o Direito permaneceu inerte, aguardando, talvez, um consenso internacional.
2.4.1 A abordagem do tema no Direito Comparado
Foi nos Estados Unidos que se desenvolveu a inseminação artificial heteróloga. A primeira foi realizada em 1953 e, a partir de 1964, trinta Estados já adotaram
uma legislação regulamentando as conseqüências sobre a filiação da IAD (Inseminação Artificial com Doador), limitando o seu uso às pessoas casadas. A American Medical Association e a American Fertility Society recomendam que esses métodos
sejam utilizados somente por casais estéreis. Dos vinte e oito Estados que adotaram
uma legislação regulamentando as conseqüências da inseminação heteróloga sobre
a filiação, quinze prevêem que o consentimento do marido deve ser dado diante de
um médico, e quatro outros Estados impõem que o consentimento seja dado explicitamente.
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Embora a American Medical Association e a American Fertility Society sejam
favoráveis ao anonimato da doação, não dispõem expressamente sobre a matéria, o
que não torna explicitamente proibida a sua remuneração.
A inseminação artificial heteróloga e a maternidade de substituição provocam
conseqüências no estabelecimento da filiação norte-americana. Quanto à IAD e à paternidade, em vinte e oito Estados americanos a lei dispõe que, se o marido consentiu com a inseminação de sua mulher, será o pai legal e não poderá, mais tarde, negar a paternidade. Nos outros Estados, a presunção legal de paternidade existe em
favor do marido.
Segundo análise do ilustre professor Eduardo de Oliveira Leite, o panorama
do direito europeu é bastante diferente. Enquanto na Alemanha e na Suécia a legislação tende a frear o desenvolvimento das práticas de procriação artificial, as leis espanholas e britânicas são relativamente permissivas.14
O mais importante documento alemão que trata das procriações artificiais
continua sendo o Relatório Benda. As legislações alemãs advindas posteriormente
têm suas raízes nos princípios do Relatório. Este não admite qualquer lei que garanta o anonimato dos doadores e, sendo assim, toda criança tem o direito de pesquisar a identidade de seu pai biológico e Estado algum pode se opor a esta busca da
verdade. Segundo a disciplina legal alemã, a inseminação com doador não é proibida de maneira absoluta, apenas é autorizada em condições restritas, ou seja, como
tratamento de esterilidade de um casal casado. A inseminação heteróloga só pode
ser realizada pelo médico após o consentimento expresso (escrito) do marido, formalizado diante do notário. A doação de esperma é gratuita e sua coleta e conservação está limitada às instituições médicas que praticam esse tipo de inseminação. A
conservação do esperma do doador também está limitada a dois anos e proibi-se ao
médico a utilização de esperma de doador já falecido.
Na Suécia, a inseminação artificial heteróloga surgiu na década de 20, mas foi
nos anos 80 que a atividade experimentou sua acentuada evolução. A doação de esperma também é gratuita e o número de doadores é limitado. A doação é de casal
para casal, ou melhor, o casal fértil doa para o casal estéril.
A primeira manifestação de interesse em legislar sobre a matéria ocorreu no
final dos anos 40, mas foi em 1981 que o governo sueco nomeou uma comissão chamada, “Comissão sobre Inseminações”, encarregada de estudar as questões relativas
à procriação artificial. Essa Comissão produziu inúmeros relatórios discutidos por
diversas instituições, mas foi em 1985 que entrou em vigor a nova lei sobre inseminação artificial. Sendo assim, de acordo com o novo texto legal, é inequívoca a necessidade do consentimento escrito do marido, ou companheiro, que poderá ser revogado até o momento da realização da inseminação. Depois ele será o responsável
legal dessa criança, de forma irrevogável. O doador não assume nenhuma responsa14 Eduardo de Oliveira Leite, Procriações artificiais e o Direito, p. 275.
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bilidade em relação à criança. A IAD não foi permitida em mulheres celibatárias e lésbicas.
Conforme a lei, a IAD somente pode ser realizada em hospitais públicos sob
a responsabilidade de médicos especialistas em ginecologia e obstetrícia. Quanto ao
direito de averiguar a identidade do pai biológico, os legisladores tomaram como
ponto de partida o bem da criança e os dados do doador ficam anotados no hospital e podem ser averiguados pelo jovem, após uma entrevista com uma assistente
social.
Em 1988, foi votada na Espanha a “Lei sobre técnicas de reprodução assistida”
e, segundo suas disposições, a doação de esperma é gratuita, se formaliza por um
contrato escrito entre doador e o Centro autorizado, é também anônima, mas fica
garantido aos filhos o direito de obter informações sobre os doadores. O doador deverá ter mais de 18 anos e somente as mulheres maiores de 18 anos podem recorrer a estas técnicas de reprodução. Contudo, se for casada, necessitará do consentimento, consciente e formal, do marido. Após o consentimento e realizada a fecundação, marido e mulher estarão impedidos de impugnar a filiação da criança.
A situação da França, no que se refere à legislação, é muito parecida com a realidade italiana, ou seja, muitas propostas já foram apresentadas, mas não foi formado um
corpo ou comissão coerente e definitivo, como ocorreu na Suécia e na Espanha.
Com o desenvolvimento de novos Centros de reprodução, instalou-se o que
hoje é chamado de “Sistema CECOS”, reunido em uma Federação. Cada Centro tem
sua autonomia de organização e gestão e a harmonização e coerência são garantidas
pela Federação. O CECOS francês representa a normatização existente sobre a matéria, cujos princípios são considerados por todas as propostas legislativas atuais.
São princípios clássicos como a gratuidade da doação, a exigência da prévia paternidade do doador, a noção de doação do casal fértil para o casal estéril, e o anonimato do doador.
O CECOS tende a recusar a inseminação em casos como o da mulher que pretende ter um filho sem pai, ou daquela que é homossexual. A maioria dos especialista da infância não acha conveniente encorajar a mulher que pretende criar uma família monoparental, ou incentivar um projeto de filiação, no qual a criança já nasce
meio órfão.
Paralelamente à limitação dos poderes dos médicos, o legislador francês restringiu o poder do paciente de solicitar assistência médica à procriação, uma vez que
o Código da Saúde Pública limitou o benefício aos casais heterossexuais, casados ou
tendo vida comum de, no mínimo, dois anos de existência. O fundamento da intervenção estatal é o interesse da criança.
O direito francês, diante da ausência de disciplina legal, que se arrasta há mais
de uma década, impõe-se a necessidade de um texto legal específico, coerente, homogêneo e apropriado aos progressos da ciência, frente à impossibilidade da jurisprudência abranger toda essa realidade de forma inequívoca com o direito positivo.
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2.4.2 A jurisprudência acerca da inseminação heteróloga
Podemos encontrar várias posições jurisprudenciais acerca da inseminação artificial heteróloga.
No Tribunal de Pádua, na Itália, por exemplo, em 1959 julgou-se culpada de
adultério uma mulher casada que se submeteu à inseminação heteróloga sem consentimento de seu marido. Culpada de adultério, a sentença de primeiro grau
(7/11/1958) a absolveu.15 A parte vencida, porém, recorreu e teve provido seu apelo por decisão do mesmo Tribunal, em sessão de 15/02/1959, nos seguintes termos:
“A fecundação artificial de mulher casada com sêmen de pessoa
diversa do marido e sem o seu consentimento constitui adultério.”16
Na Argentina, adotou-se a mesma posição adotada pelos italianos, afirmando que
“(...) também deve reputar-se adultério a inseminação artificial,
concebida pela mulher, com um sêmen estranho ao de seu marido, a menos que haja consentimento deste.”17
Um julgamento prolatado em 30 de junho de 1976, pelo Tribunal de Grande Instância de Nice, na França, desencadeou uma violenta reação da opinião
pública: o marido que, em razão de sua esterilidade absoluta, consentiu na inseminação de sua mulher, com esperma de um doador; o Tribunal em questão lhe
reconheceu o direito de rever seu consentimento, permitindo-lhe propor uma
ação negatória de paternidade, ação que, sendo procedente, lhe abriria a possibilidade de ingressar com o pedido de divórcio por falta grave da esposa. Assim
se declarou o Tribunal:
“Por esses motivos, declara admissível e fundamentada a ação negatória de paternidade proposta por Claude A..., declara que este
último não é o pai da criança prenominada Joël, cuja esposa deu
à luz à..., em 30 de março de 1973, declara, ainda, que em conseqüência esta criança não poderá usar o nome de A..., ordena a
averbação do presente julgamento na margem da certidão de nas15 Apud., Eduardo de Oliveira Leite, Procriações Artificiais e o Direito, p. 370.
16 Ibid., p.370. “La fecondazione artificiale di donna conjugata com seme di persona diversa dal marito e senza il di lui consenso cosntituisce adulterio.” (Tradução livre da autora). Ibid., p.370.
17 “ (...)también debe reputar-se adulterio la inseminación artificial, aceptada por la mujer, com un semen extraño
a su marido, a menos que media consentimento de este.” (Tradução livre da autora). Ibid., p.370.
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cimento da criança, (da qual certidão) nenhuma expedição não
poderá ser feita sem conter a citada retificação.
Em 30 de junho de 1976. Tribunal de Grande Instance, primeira
Câmara, M.M. Petit, vice-PR, Berdah et Jouhand, advogados.”18
A argumentação do Tribunal se socorreu dos seguintes argumentos: a vontade do marido não pode estabelecer a filiação de uma criança; quanto à autorização
que ele deu à esposa, não poderia ser considerada uma renúncia ao exercício da
ação negatória de paternidade, contrariando os artigos 311-319 do Código Civil francês; não lhe seria proibida a ação em virtude da regra nemo auditur propriam turpitudimem allegans (A ninguém é dado alegar a própria torpeza), pois não justifica
visualizar na inseminação heteróloga um elemento de torpeza.
Um outro julgamento chocou a opinião pública, mas desta vez, na Suécia. Em
1983, um marido exigiu, em relação a seu divórcio, a declaração do Supremo Tribunal Sueco, que ele era o pai de um menino concebido pela inseminação heteróloga
e sua demanda foi aceita. O resultado foi que a criança ficou sem pai legal e o marido desobrigou-se do pagamento de pensão alimentícia a partir do divórcio.
Posteriormente a esta decisão, vários casos parecidos se apresentaram aos tribunais suecos, levando diversos segmentos sociais a demonstrarem uma reação,
pois entenderam como injusta e abusiva a decisão prolatada. Dessa forma, foi criada a Comissão sobre Inseminação, tendo em vista elaborar uma legislação sobre o
assunto.
Com efeito, é evidente que sem uma previsão legal específica, abrimos um largo caminho para as mais variadas decisões jurisprudenciais, uma vez que os próprios tribunais e juízes buscam, da melhor maneira possível, adaptar o Direito, lento e extemporanizado, à realidade de uma medicina “apressada” e evoluída.
2.4.3 Normas deontológicas existentes no Brasil
No Brasil, a Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina é a única disposição sobre reprodução humana assistida, apresentando-se como alternativa de uma legislação estrita.
Determina a Resolução que as técnicas de reprodução passam, necessariamente, pelos canais competentes da medicina.
Em seu item I, dispõe que as técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana; entretanto, a
Resolução equivocou-se, pois a inseminação artificial não foi desenvolvida para aten-
18 Eduardo de Oliveira Leite, op. cit., p.228.
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der a um interesse egoístico de particulares, ou de um grupo da sociedade. Melhor
seria se a Resolução tivesse disposto que “toda mulher casada pode ser receptora
das técnicas de RA”, visto que a legitimidade deste recurso repousa na intenção natural de ter filhos, como decorrência natural da relação matrimonial, ou da entidade familiar.
Em seu item II, determina expressamente a necessidade do consentimento do
marido ou do companheiro para a realização do procedimento. A resolução assegura também a gratuidade da doação e o anonimato dos doadores. Previu, de forma
cautelosa, o consentimento tanto dos doadores, quanto da paciente ou do casal infértil. A forma solene de obtenção do consentimento formulário especial e por escrito, permite verificar as condições nas quais se realiza a doação e favorece a confiança e transparência indispensáveis nestas operações. Talvez a Resolução devesse
tratar a qualidade do doador, bem como seu consentimento, em seção própria.
Finalmente, a questão social da possibilidade de evitar o risco da consangüinidade, prevista na seção IV, inciso 5, dispõe que na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador tenha produzido mais que duas
gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de habitantes.
A Resolução tenta, na medida do possível, disciplinar algumas situações. Todavia, as normas deontológicas não podem substituir a lei, pois somente ela é garantidora dos direitos inalienáveis da pessoa, somente a lei civil assegura o bem comum das pessoas pelo reconhecimento e defesa dos direitos fundamentais, sem
perder de vista a dimensão da dignidade humana e garante segurança aos pais e,
principalmente, à criança.
Estas normas são destituídas de cogência, vinculam todos os membros da profissão, mas são destituídas de juridicidade, pois não abrem espaço a reais recursos
perante a ordem jurídica.
“Um paciente pode até questionar a conduta de um médico perante o Conselho Federal de Medicina, por exemplo, mas a queixa formalizada produzirá, no máximo, uma sanção de ordem disciplinar: repreensão, suspensão temporária ou, excepcionalmente, exclusão do quadro médico”.19
É necessária uma legislação específica, dotada de cogência, tratando de todos
os aspectos acerca da procriação artificial, pois, conforme vimos, a Resolução não se
preocupou em preservar a família, considerando o matrimônio ou a vida comum,
em que o desejo de ter filhos está impedido pela infertilidade, visto que uma mulher solteira pode se submeter ao processo de inseminação e gerar um filho sem pai,
19 Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, Biodireito: ciência da vida, os novos desafios, p.110.
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quando já se sabe que o legislador tem interesse de garantir à criança a família formada de pai e mãe. É evidente que se trata de uma regra deontológica, de manifesto interesse de uma categoria profissional.
Nem tampouco se preocupou com a questão de homossexuais que, ao estabelecerem uma vida em comum, vêem nas técnicas de reprodução artificial uma esperança de criarem um filho juntos, muito embora a nossa legislação ainda não
aprove esta união.
Sendo assim, as normas existentes, além de precárias, representam um certo
perigo ao próprio Direito que não pode se impor por si só nesta esfera, e também
à sociedade que não encontra segurança neste vazio jurídico.
2.4.4 Da previsão legal no Novo Código Civil brasileiro
O Código Civil atual em nada dispõe sobre a inseminação artificial, seja homóloga ou heteróloga, bem como sobre os filhos havidos por tais meios de reprodução artificial. O Novo Código Civil, ou melhor, Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002,
que entrará em vigor a partir de 11 de janeiro de 2003, faz uma discreta menção sobre o assunto.
O seu artigo 1.597 prevê que os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido, presumem-se concebidos
na constância do casamento. Isto quer dizer que, a presunção pater is est justae
nuptiae demonstrant, baseada sobre a dupla presunção de coabitação e de fidelidade da mulher, desempenha um papel relevante para o estabelecimento da paternidade do filho havido dentro do casamento, por força do qual presumem-se filhos do
marido aqueles havidos na constância do casamento, ou seja, a presunção estabelece a paternidade pelo simples fato do nascimento.
Sendo assim, havendo prévio consentimento do marido para a realização da
inseminação com esperma de doador, não há de se falar em negatória da paternidade depois da operação. Neste caso, é impossível o cabimento do artigo 1.601 do
novo código, que prevê o direito do marido de contestar a paternidade dos filhos
de sua mulher, pois o seu consentimento prévio à inseminação é irrevogável.
Conforme dispõe o artigo 1.603, a prova da filiação continua sendo a certidão
do termo de nascimento, registrada no Registro Civil e em nada se diferencia com
relação aos filhos concebidos pela inseminação artificial.
Embora o assunto seja polêmico e provoque tantos conflitos, o Novo Código
Civil perdeu a oportunidade de lhe oferecer um capítulo especial e específico, deixando-nos à espera de uma próxima vez...
2.4.5 Do projeto de lei em trâmite no Brasil
Reza nossa Constituição Federal de 1988, in verbis:
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“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”20
O artigo constitucional é claro, não pode haver qualquer tipo de discriminação à pessoa humana, independente de sua condição, ou sua opção de vida.
Dispõe o artigo 5º, caput, da Lei Magna vigente, in verbis::
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade (...)”
Veda-se, portanto, qualquer tipo de discriminação, pois todos são iguais perante a lei. Na elaboração do projeto de lei, pelo Senador Sebastião Viana, abordando a reprodução humana assistida, pensou-se em pessoas solteiras e inférteis, sem
se deter no mérito da opção sexual de quem quer que seja. Mas o projeto não permite qualquer pessoa ter um filho por essa técnica. Ela só deverá ser orientada em
benefício daqueles com infertilidade comprovada, cuja tentativa de tratamento, por
pelo menos um ano, não tiver obtido êxito. Ele trata da liberdade de um cidadão obter recursos para ter um filho, quando julgue de direito e esteja em condições psicossociais, analisadas pelos diversos profissionais envolvidos tais como psicólogo e
assistente social, e não apenas o médico, e tenha passado pelo crivo da fiscalização
do Ministério Público e do Juizado. Esse é o modelo de serviço que se quer implantar no Brasil.
Na hipótese de um casal de mulheres homossexuais solicitar a inseminação artificial, sendo férteis, o projeto restringe esse direito.
No Brasil, há ainda o problema de discriminação social em relação ao acesso
à reprodução assistida, visto que o SUS não financia. A Constituição estabelece a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, mas lamentavelmente isso não
é cumprido. Essa matéria é normativa, restrita ao Ministério da Saúde que cadastra
os procedimentos médicos. Deveríamos ter ministérios mais sensíveis ao direito do
cidadão brasileiro de constituir família e ter filhos.
Em relação aos embriões, a França não quer legislação, porque a sociedade
respeita muito a função fiscalizadora das comissões de ética dentro das unidades
hospitalares ou de saúde. Aqui no Brasil, o papel fiscalizador é fragilizado pela estrutura dos conselhos, falta de confiança nas Comissões de Ética, nos Comitês de Ética
20 Constituição Federal, art. 3º, inciso IV.
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em Pesquisa e no Conselho Nacional de Ética em pesquisa. Isso gera a necessidade
de legislar sobre um aspecto que talvez não precisasse de legislação se os comitês
de ética fossem mais atuantes.
A Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia e as sociedades de Reprodução Humana e de Reprodução Assistida estão preocupadas com a criação de algum tipo de controle, pois quando sabem que alguns profissionais se excedem, a
maior dificuldade reside exatamente na ausência de poder punitivo, por não haver
amparo na lei.
O Senador Viana respeita a opinião científica, mas vê a situação pelo lado social: milhares de crianças deixam de ser adotadas no país. Por que ter um grande
banco de embriões e não uma política de adoção, estabelecida dentro das clínicas,
que estimule a paciente que não obteve sucesso na gravidez? Talvez seria melhor
mostrar que ela pode recorrer a uma adoção ao invés de insistir na técnica de reprodução. O projeto se preocupou em criar um componente mais solidário na sociedade, estimulando casais à adoção.
Outra questão abordada pelo projeto é a quebra do sigilo do doador, para dar
à criança o direito de conhecer o pai biológico. Esse ponto foi trabalhado com muita convicção pelo Senador Viana.
Ele afirma que todos os pareceres de psicólogos apontam que quanto mais
cedo a criança obtiver informação sobre seus pais biológicos, melhor se adapta ao
núcleo familiar. Há também doadores padrão, como ocorre nos EUA, onde existem
clínicas que pagam US$ 500 por doação de sêmen de atletas campeões de basquete, dentro das universidades americanas. Não seria correto adotar esse procedimento, pois há risco de incesto. Outro ponto importante abordado pelo Senador são as
doenças genéticas. Como vamos restringir o direito de a pessoa nascida por esse
processo conhecer o “pai” doador quando cresce? Por isso defende o direito da
criança saber quem é o doador.
Vale dizer que, implicitamente, a identificação acabaria com o doador no país,
prejudicando, mais uma vez, pacientes inférteis. A identificação deste tipo de doador difere da identificação por razões médicas, no caso dos transplantes.
Percebemos que o projeto de lei tem pontos positivos, como também negativos, mas se trata de uma tentativa de regulamentar um assunto tão difundido em
nossa realidade e causador de conflitos jurídicos.
3.
A FILIAÇÃO EM FACE DA INSEMINAÇÃO HETERÓLOGA
As definições de filiação estabelecidas pela doutrina quer no direito estrangeiro, quer no direito pátrio, nos dão a exata dimensão do papel produtivo do homem
e das conseqüências decorrentes em nível social e jurídico. No contexto natural, envolve a paternidade propriamente dita e a maternidade, ou seja, as figuras de um homem e uma mulher, premissas de que é resultante a filiação. Muito embora os avan-
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ços da medicina tenham conseguido obter a concepção em laboratório, não podem
fugir dessa triangularidade.
As noções de filiação e parentesco andam juntas e geram um conjunto de
obrigações, prerrogativas e vantagens, principalmente na esfera jurídica.
A filiação materna é estabelecida mais comodamente, basta haver uma identidade entre a mulher que teve o parto, o parto e a criança daí oriunda. Costuma-se
dizer que, em princípio, nunca há dúvida quanto à filiação materna, vale dizer, mater semper certa est.
“a maternidade poderá ser declarada, provando o parto.”21
Porém, o mesmo não se pode dizer da paternidade, haja vista que o desenvolvimento da inseminação artificial reduziu bastante a fronteira carnal-voluntária, levando os juristas a tratar da filiação em proveito de uma paternidade de intenção,
ou seja, em proveito de uma verdade sócio-afetiva.
A evolução médico-científica comprovou que a verdadeira paternidade não
pode ficar reduzida à simples autoria genética da descendência, mas é de extrema
relevância o papel do pai no cotidiano da criança, na garantia de seus direitos da personalidade, enfim, no seu desenvolvimento como ser humano.
“A questão da inseminação heteróloga, dependendo da contribuição genética de um terceiro, alheio ao núcleo familiar, redimensiona a filiação não mais em torno de presunções legais ou verdades biológicas, mas favorece o consentimento do marido; aquilo
que a Resolução nº 1358/92 chamou acertadamente de concordância ‘de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado’. (Princípios Gerais, II, 1 e 2).”22
O consentimento, aqui,

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