COMIDA ESLAVA - História da Alimentação
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COMIDA ESLAVA - História da Alimentação
MEMÓRIA, IDENTIDADE ÉTNICA E A “COMIDA ESLAVA” NO CENTRO-SUL DO PARANÁ Neli Maria Teleginski1 Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos Resumo: Este ensaio é um desdobramento do projeto de doutorado: A transmissão das tradições culinárias entre os descendentes de imigrantes eslavos no centro-sul do Paraná, século XX, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Paraná. A pesquisa tem como objetivo compreender o papel da comida (seus significados, representações e sensibilidades) entre os descendentes de imigrantes eslavos – poloneses e ucranianos – na região centro-sul do Paraná. Tecemos aqui algumas reflexões teóricas introdutórias em torno da relação entre comida, memória e identidade étnica. Inferimos que a presença e a valorização de tradições culinárias eslavas no cotidiano dos descendentes e nas diversas festas, comemorações e rituais locais, seja uma via de acesso privilegiada para introduzir questões relacionadas aos processos de construção e reconstrução de identidades étnicas, que dialogam e se alimentam das memórias da imigração ocorrida nessa região do Paraná na passagem do século XIX para o século XX. *** Desde a década de 1870 até meados do século XX, em distintas etapas, chegaram ao Paraná imigrantes oriundos das atuais Polônia e Ucrânia. Um significativo número desses imigrantes passou a viver em “núcleos coloniais” criados a partir de políticas públicas de imigração no Médio Vale do Rio Iguaçu, um território reconhecido por ter concentrado o maior número das colônias oficiais de imigração eslava no estado e pela marcante presença de descendentes aí residentes.2 Algumas dessas colônias foram instaladas nos municípios de Irati, Mallet e Prudentópolis, no segundo planalto paranaense, na região centro-sul do Paraná que constitui o recorte espacial inicial de nossa pesquisa. A presença dos imigrantes no Paraná teve implicações importantes nos sistemas alimentares, ou seja, no conjunto de elementos, produtos, técnicas, hábitos e comportamentos relativos à alimentação. Consideramos que a partir do processo imigratório ocorreu a construção de uma nova identidade alimentar e gastronômica nessa sociedade, derivada do contato de diferentes tradições culinárias e das trocas, negociações, adaptações e inovações 1 Doutoranda em História na Universidade Federal do Paraná. Linha de Pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade: Reflexão e Sentimento na História. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em História e Cultura da Alimentação (Cnpq). 2 LAROCCA JÚNIOR, Joel. (Org.) Casa Eslavo-Paranaense: arquitetura de madeira dos colonos poloneses e ucranianos do sul do Paraná. Ponta Grossa: Editora Larocca Associados, 2008, p. 38-40. 2 alimentares que ocorreram no contexto da formação dessas colônias, quando diferentes grupos de estrangeiros e nacionais passaram a conviver de maneira mais próxima. 3 Conforme antropólogos, sociólogos e historiadores da alimentação, quando uma população emigra traz consigo um conjunto de práticas ligadas à sua alimentação, mesclando ou acrescentando possibilidades e práticas alimentares no novo contexto em que passam a viver, se adequando ao sistema alimentar local, mas interferindo nele a partir dos hábitos que trazem consigo. Nesses contextos relacionais os hábitos e práticas alimentares podem tornarse elementos marcadores de identidades e de fronteiras identitárias.4 Ao citar o exemplo de pessoas que por questões políticas ou econômicas são obrigadas ao exílio, Luce Giard mostra a importância da comida como um dos elementos que subsistem por mais tempo enquanto referência à cultura de origem, se não de maneira cotidiana, ao menos em dias de festas. Para a autora a comida é uma das maneiras de sentir e de representar a pertença a outro solo, a outra cultura.5 Igualmente, Valeri trata da comida de imigrantes como um dos últimos elementos a se desnacionalizar. Compara a relação da comida com a “língua materna”. Nesse caso, fala de uma “alimentação materna”, que são certas dominantes alimentares que resistem à mudança. Argumenta que os emigrantes podem abandonar todas as tradições de seus países de origem, mas permanecem fiéis a algumas tradições culinárias. Para Valeri, a comida, em contextos transnacionais, constitui um dos fortes referenciais do sentimento de identidade no contato com o outro e sua utilização pode tornar-se, de maneira consciente ou inconsciente, um critério de identidade étnica. 6 Como aponta Raul Lody, através da comida os homens vivem também as memórias ancestrais, “um patrimônio cada vez mais valorizado por representar as mais contundentes formas de identificar e manifestar pertencimento a uma cultura, a um povo.” Para o antropólogo, pela comida é possível marcar ou identificar as diferenças em contextos de semelhança e demarcar territórios que auferem e determinam aos grupos ter uma identidade ou identidades. 7 3 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos Santos. História da Alimentação no Paraná. Curitiba: Juruá, 2007, p. 95-118. 4 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998; SILVA, Marilda Checcucci Gonçalves da. O impacto da imigração europeia sobre a produção de alimentos e a culinária do Médio Vale do Itajaí – SC. Disponível em: < http://www.rimisp.org/getdoc.php?docid=6552>. Acesso em 5 de maio de 2012, p. 6. 5 GIARD, Luce. Memórias. In: CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 250. 6 VALERI, Renée. Alimentação. In: ROMANO, Ruggiero (org.) Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, Vol. 16, p. 206. 7 LODY, Raul. Instalação Nacional do Grupo de Antropologia da Alimentação Brasileira (GAAB): em busca do ethos da alimentação. In: Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre. Disponível em: 3 Ao observarmos as cozinhas dos descendentes de imigrantes poloneses e ucranianos no centro-sul do Paraná atual, nas festas do calendário litúrgico, familiares e mesmo no cotidiano, notamos no sistema alimentar que se aí se configurou a presença de muitos ingredientes e pratos intimamente associados às tradições culinárias da cultura de origem dos imigrantes. Segundo Rudek, Grechinsk e Cardozo, que abordaram a gastronomia eslava em Irati a partir de entrevistas realizadas com descendentes, é comum o consumo de pratos como o charuto de repolho, pastéis cozidos de requeijão, molhos e cremes de à base de leite, canjas de galinha, “geléias” salgadas feitas com carne de porco, ensopados de repolho com carne defumada, carnes defumadas e broas.8 Alguns desses pratos são servidos principalmente em festas de família ou datas comemorativas como certos tipos de pães e broas feitas à base de centeio ou trigo sarraceno como o chleb razowy, strucel ou o kororwaj (em polonês) e korovái (em ucraniano), feitos em formato redondo e decorados com massa em formato de tranças. A paska (em ucraniano) também continua presente na festa de Páscoa, assim como a babka (em ucraniano) que é um pão doce consumido no Natal. As salsichas, linguiças e o lombo de porco defumado - fritos, assados, cozidos ou crus, são consumidos como tira-gostos ou acompanhando outros pratos e são presentes nos festejos religiosos. No dia a dia são preparadas várias receitas de sopas vermelhas de beterrabas, assim como o repolho azedo e molho de raiz forte como krin (hryn em ucraniano, chrzan em polonês). Os pratos a base de batatas como o pierogi (em polonês) ou perohê ou varéneke (em ucraniano), “pastel cozido, de massa amanteigada feito com farinha de trigo e recheado com uma mistura de batata e requeijão, é a receita mais comum entre os descendentes de ucranianos e poloneses”, como informam Grechensk e Cardozo. 9 O repertório gastronômico nas cozinhas da região centro-sul inclui muitos outros pratos como o holoptchi (em ucraniano) ou aluszki (em polonês), um tipo de charuto feito com recheio de carne, miúdos, trigo ou arroz envolvido com folhas de repolho ou couve; kasha (em ucraniano) ou kasza (em polonês) um mingau com quirera de trigo, aveia, milho ou <http://bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/anais/anais_GastronomiaGF.pdf>. Acesso em 28 de março de 2011, p. 75. 8 Broa: palavra derivada do alemão “brot” ou “roggenbrot”. Segundo Filipak é um “pão integral feito com centeio, tatarca (trigo-louco ou sarraceno), milho, muito apreciado pelos descendentes de poloneses, ucranianos, alemães e italianos residentes no Paraná.” FILIPAK, Francisco. Dicionário Socioliguístico-paranaense. Curitiba: Imprensa Oficial, 2002, p. 81. 9 RUDEK, Cláudia M. (org.). A Cultura Ucraniana e Polonesa em Irati. Irati: Gráfica D’art., 2002, p. 18; GRECHENSK, Paula Turra; CARDOZO, Poliana Fabíula. A gastronomia eslava em Irati como possibilidade de atrativo turístico. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. Universidade de La Laguna, Vol. 6, nº 2, p. 361-375. Número Especial, 2008, p. 368. 4 arroz cozidos, entre vários outros que podem ser acompanhados com bebidas artesanais como o fermentado de lúpulo (pivo em polonês ou pevo em ucraniano), mais conhecida como “cerveja caseira”. 10 Compreendemos que a presença dessas e outras tradições culinárias transmitidas e recebidas em diferentes momentos e de diferentes formas nessa sociedade ao longo do século XX e início do XXI, constitui mais que um vestígio gastronômico do período imigratório. Constitui um processo que contribuiu para a formação de um sistema alimentar complexo, com nuances ao longo desse período. Afinal, é também através das tradições que se comunicam questões identitárias entre os descendentes, como a identidade étnica. Essa é uma das dimensões que a comida pode tomar quando se pensa a alimentação não apenas como um ato nutricional ou biológico, mas enquanto um ato cultural, considerando os sistemas alimentares enquanto sistemas simbólicos. Nessa perspectiva, a alimentação torna-se uma categoria de análise histórica para leitura dos processos de construção, reconstrução e afirmação das identidades sociais/culturais. 11 É importante considerar que a cozinha de uma sociedade é construída dentro de um processo histórico e nela se articulam elementos referenciados na tradição buscando construir algo particular, singular e reconhecível.12 Os hábitos e práticas alimentares são delineados dentro de sistemas alimentares que se configuram a partir da confluência de fatores históricos, sociais, econômicos, ambientais, culturais que se estabelecem relacionados com os imaginários, representações, escolhas e classificações. 13 É dentro dessa dinâmica que nasce o gosto alimentar enquanto elemento do aparelho sensorial humano que identifica um sabor através do paladar14, mas também enquanto conduta de preferências e necessidades circunscritas ao habitus de uma sociedade. 15 Os sistemas alimentares ou cozinhas são também sistemas simbólicos e através deles se expressam códigos sociais que atuam nas relações dos homens com a natureza e dos homens entre si. 16 10 Idem. A grafia das palavras é de acordo com o texto original das autoras, que optaram por transcrever o nome dos pratos para o alfabeto latino. 11 MACIEL, Maria Eunice. Uma cozinha à brasileira. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.º 33, p. 2539, janeiro-junho de 2004. 12 Idem, p. 27. 13 CARNEIRO, Henrique. Comida e Sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 2. MACIEL, Maria Eunice. Identidade Cultural e Alimentação. In: CANESQUI, Ana Maria (org.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, p. 49. 14 SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A comida como lugar de História: a dimensão do gosto. Revista História: Questões e Debates. Curitiba, nº 54, p. 103-124, janeiro-junho de 2011. 15 BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org). Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 82-83. 16 MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com BrillatSavarin? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, n. 16, p. 145-156, dezembro de 2001, p. 150. 5 Luce Giard enfatiza a íntima relação entre comida e cultura mostrando que o ato alimentar, além de manter a máquina biológica do nosso corpo, concretiza um dos modos de relação entre as pessoas e o mundo.17 Para Fischler o homem se alimenta de carne, vegetais e também do imaginário. Argumenta que ato alimentar, diferente do vestuário e dos cosméticos que ficam em contato com nosso corpo, ultrapassa a barreira oral e torna-se parte de nossa própria substância. E quando o homem incorpora os alimentos, satisfazendo seus apetites, desejos ou prazeres, também se nutre do imaginário, de múltiplos significados e partilha representações coletivas. 18 Essa interação entre natureza e cultura é também exemplificada pelo antropólogo Roberto DaMatta quando estabelece a distinção entre alimento e comida. O alimento refere-se a algo universal e geral. Mas quando se fala em comida se define um domínio e coloca a questão em foco, pois para ele, “comida não é apenas uma substância alimentar, mas também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se”. 19 A preparação, a combinação de elementos, a composição de um prato é o ato cultural de transformação do alimento em comida através da culinária e a cozinha de uma sociedade representa a complexidade do ato alimentar. Portanto, a comida implica também em valorações simbólicas que concorrem nas escolhas do que uma sociedade vai considerar o que pode ou não ser comestível. As opções e proibições alimentares variam de acordo com a sociedade à qual pertencem os homens e através da comida podem ser percebidas as interações sociais, ambientais, crenças, normas e valores que dão significados à ação social. 20 Para Collaço, etnia e exclusão, distinção e classe, geração, classe e gênero, são todas identidades presentes na comida. Algumas predominam em certos momentos, mas seguem presentes nas memórias e moldam representações em torno da comida e do comer. As escolhas alimentares, portanto, também expressam a posição de um indivíduo na sociedade e a cozinha de um grupo é a expressão de suas identidades. Mais que um ato de sobrevivência comer é um ato cultural e comunica muito sobre a sociedade que se deseja analisar, assim como a linguagem. 21 Pensar a comida como linguagem foi uma das principais contribuições de Levi Strauss à antropologia, com a qual os historiadores da cultura alimentar dialogam constantemente. 17 GIARD, Luce. Op. cit. p. 250. FISCHLER, Claude. L’Homnivore. Paris: Éditions Odile Jacob, 1993. 19 DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 46-47. 20 MENASCHE, Renata; MACIEL, Maria Eunice. Alimentação e Cultura, Identidade e Cidadania: O Brasil Tem Fome De Que? Disponível em: <http://www.brazilbrasil.com/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=228>. Acesso em 10 de maio de 2012. 21 COLLAÇO, Janine Helfst Leicht. Sabores e Memórias: cozinha italiana e construção identitária em São Paulo. Tese (Doutorado em Antropologia Social). USP, São Paulo, 2009, p. 15. 18 6 Nas pesquisas de Mary Douglas e Marshall Sahlins a idéia da comida enquanto código e sistema de comunicação também está presente. Maciel explica que a cozinha (e a culinária) é um “vetor de comunicação, um código complexo que permite compreender os mecanismos da sociedade à qual pertence, da qual emerge e a qual lhe dá sentido”. 22 Ao comparar a comida com a linguagem Montanari esclarece que essa analogia não atua apenas no plano “técnico-estrutural, mas também nos valores simbólicos dos quais ambos os sistemas são portadores”, pois: [...] exatamente como a linguagem, a cozinha contém e expressa a cultura de quem a pratica, é depositária das tradições e identidades de grupo. Constitui, assim, um extraordinário veículo de auto-representação e de comunicação: não é apenas instrumento de identidade cultural, mas talvez seja o primeiro modo para entrar em contato com culturas diversas, já que consumir o alimento alheio parece mais fácil – mesmo que apenas na aparência – do que decodificar-lhe a língua. Bem mais que a palavra, a comida auxilia na intermediação entre culturas diferentes, abrindo os sistemas culinários a todas as formas de invenções, cruzamentos e contaminações. 23 Na mesma passagem o autor argumenta também que a cozinha é o lugar da identidade e das trocas. Uma dúplice noção perpassa o texto para ponderar sobre a relação entre a alimentação e a dinâmica das identidades, que constantemente se modificam e se redefinem para se adaptar a novas situações. 24 Collaço aponta freqüentemente que a comida fala de identidade, mas alerta que ela não é identidade per se, ou simples expressão cultural de um povo, grupo ou território, mas que se trata de um elemento extremamente maleável que suscita representações em distintos planos. É uma referência de cultura com mobilidade. Portanto, assim como a identidade, a comida é relacional e pode prestar-se a diferentes interpretações. Dessa forma, as tradições alimentares são marcadas por mudanças constantes e são acionadas pelos grupos como expressão de identidade e como marcadores de fronteiras, revelando também as posições que os diferentes grupos ocupam em contextos relacionais. 25 Quando se fala em tradições culinárias de grupos étnicos é necessário considerar que elas podem constituir um sinal diacrítico eleito por determinado grupo na construção de sua etnicidade e demarcação de fronteiras nas relações interétnicas. Nessa perspectiva é possível considerar que a presença das tradições culinárias entre os descendentes de imigrantes eslavos pode ser um elemento ou critério de pertencimento a 22 MACIEL, Maria Eunice. Uma cozinha à brasileira. Op. cit. p. 26. MONTANARI, Massimo (Org.). O mundo na cozinha: história, identidades, trocas. São Paulo: Estação Liberdade/Senac, 2009, p. 11. 24 MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Senac São Paulo, 2008. 25 COLLAÇO, Janine Helfst Leicht. Sabores e Memórias. Op. cit., p. 15. 23 7 um grupo étnico. A comida assume papéis importantes na elaboração das memórias coletivas e torna-se um dos sinais diacríticos de identidade étnica, entre outras manifestações de identidade social que os indivíduos utilizam e reivindicam para se autodefinirem perante os ‘outros’.26 Entre as diferentes formas de identidade coletiva, a identidade étnica é orientada para o passado, aquele no qual se representa a memória coletiva. 27 Em nosso trabalho concordamos com Seyferth quando afirma que os grupos de imigrantes no Brasil converteram-se historicamente em grupos étnicos a partir de uma série de perspectivas micro e macro-históricas.28 Zanini explica que frequentemente as identidades étnicas são construídas em contextos de imigração e que devem ser analisadas de forma situacional, contextualizada, sem generalizações, que podem ser danosas.29 Entendemos que os descendentes também se constituem enquanto “grupos étnicos” e constroem sua identidade étnica uma vez que atribuem a si mesmos uma origem distinta e uma identificação específica e se reconhecem e são reconhecidos dessa forma, conforme propôs Fredrick Barth. 30 Na perspectiva de Barth um grupo étnico é um tipo de organização social na qual os agentes envolvidos utilizam suas diferenças culturais para construir ou afirmar suas individualidades diante de outros grupos com os quais estão em contato ou em processo de interação social. A pertença étnica ocorre através de processos de inclusão e exclusão que estabelecem limites entre os membros e os não-membros de um grupo. O fato de ser descendente de imigrantes não caracteriza um grupo étnico, mas conforme aponta Seyferth, o “principal critério para a definição de grupo étnico nos estudos mais recentes é a identidade étnica, fundamental na noção de etnicidade (que enfatiza os aspectos positivos de pertencer a um grupo étnico)”. Na produção de identidades étnicas a partir da comunicação cultural entre diferentes grupos, se estabelecem as fronteiras étnicas que podem ser mais ou menos fluídas.31 As identidades étnicas somente se mobilizam com referência a uma alteridade. Segundo Streiff, a etnicidade implica a organização de 26 SEYFERTH, Giralda. Grupo étnico. In: Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986b, p. 530-532; ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Italianidade: pertencimento, reivindicações e negociações identitárias na região central do Rio Grande do Sul, Brasil. Revista Visões. Disponível em: <http://www.fsma.edu.br/visoes/ed03/3ed_artigo5.pdf.> Acesso em 15 de maio de 2012. 27 LAPIERRE, Jean-William. Prefácio. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: UNESP, 1998, p. 13. 28 SEYFERTH, Giralda. Imigração e Cultura no Brasil. Brasilia: EDUNB, 1990. SANTOS, Mirian Oliveira; ZANINI, Maria Catarina C. Comida e simbolismo entre imigrantes italianos no Rio Grande do Sul (Brasil). Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008. 29 _______. As memórias da Imigração no Rio Grande do Sul. Mneme – Revista de Humanidades, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, vol. 11, nº 27, 2010, p. 27. 30 BARTH, Frederik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. 31 SEYFERTH, Giralda. Grupo étnico. Op. cit. 8 agrupamentos dicotômicos Nós/Eles. As fronteiras enfatizam a pertença étnica e podem ser representadas através de diversos sinais como a língua, a vestuário, a religião, alimentação, entre outros.32 É nesse aspecto que inferimos que a comida, referenciada nas tradições culinárias dos imigrantes eslavos, pode tornar-se um emblema ou símbolo de pertencimento étnico para os descendentes de imigrantes “poloneses” ou “ucranianos”. Grupos étnicos que foram construídos em contextos relacionais a partir do processo imigratório, nos quais muitos descendentes reivindicam seu pertencimento e procuram se distinguir diante dos demais. E quando se trata dos poloneses e ucranianos e a relação desses dois grupos entre si, é necessário considerar também os processos de homogeneização e diferenciação que esses grupos experimentaram na sociedade paranaense, que segundo Andreazza, foi um longo processo. 33 Por muito tempo os imigrantes ucranianos e poloneses foram comumente tratados como pertencendo a um mesmo grupo e foi grande o esforço para se diferenciarem uns dos outros. Por procederem de regiões geográficas próximas foram direcionados também para os mesmo núcleos coloniais ou núcleos coloniais adjacentes, sem que se levasse em conta que não possuíam uma única tradição e tinham na bagagem diferenças histórico-culturais significativas, muitas delas reconstruídas no contexto das colônias. Andreazza explica que o grupo dos “rutenos” também não se tratava de um grupo homogêneo, mas constituído por famílias de diferentes aldeias, com códigos culturais distintos, os quais muitas vezes tornaram-se motivo de tensões. No entanto, a semelhança linguística, a comunhão de algumas tradições e práticas religiosas contribuiu para que construíssem seus significados de pertencimento étnico buscando se diferenciar dos poloneses e dos demais grupos. 34 Considerando o aspecto dinâmico das identidades, o que se verifica atualmente, após mais de um século de convivência entre os descendentes de poloneses e ucranianos é que as fronteiras se confundem, que os mecanismos de identificação são parecidos e que as relações iterétnicas são aceitas. Contudo, a presença de alguns elementos representativos para ambos os grupos ainda persistem e revelam indícios de resistências à homogeneização.35 Entre esses indícios podemos mencionar a língua, rituais religiosos como o Natal e a Páscoa, a culinária e as festas. Especialmente nas festas ocorre a valorização das origens étnicas dos moradores dos municípios do centro-sul do Paraná. Nelas encontramos importantes rituais de comensalidade 32 POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Op. cit. ANDREAZZA, Maria Luiza. Paraíso das delícias: um estudo da imigração ucraniana. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 85-87. 34 Idem. 35 RAMOS, Odinei Fabiano. Ucranianos, poloneses e “brasileiros”: fronteiras étnicas e identitárias em Prudentópolis/PR. Dissertação (Mestrado em História). UNISINOS, São Leopoldo, 2006, p. 101-103. 33 9 nos quais muitos pratos da culinária eslava são recriados. Dessa forma, é imprescindível considerar a função da comida entre os descendentes no processo de produção da etnicidade. Como revelam Santos e Zanini, a etnicidade reside nos domínios do imaginário e dos discursos e nem sempre necessita materializar-se, mas verifica-se o quanto as materializações tornam-se importantes para reavivar códigos, atitudes e valores entre os indivíduos.36 Essas materializações se revestem de um caráter simbólico e representam determinado grupo étnico devendo ser inteligíveis aos demais grupos em interação.37 Por isso entendemos que para os imigrantes eslavos e seus descendentes as tradições culinárias constituem um dos elementos de sua memória coletiva, que desperta ou reafirma uma identidade étnica. Corner argumenta que “o ato alimentar evoca a memória e produz identidade” e quando se trata de cozinha étnica, ela se relaciona também com a memória coletiva, que seleciona o que considera um valor. 38 Michel Pollak, amparado em Maurice Halbwachs, afirma que diversos pontos de referência estruturam a memória e a insere na memória da coletividade à qual pertencemos. Entre esses pontos de referência estão as tradições culinárias. Tais como os monumentos, (enquanto lugares de memória em Pierre Nora), os patrimônios arquitetônicos, as personalidades e outras referências, elas são indicadores empíricos da memória coletiva que também define o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamentando ou reforçando os sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais. 39 Halbwachs, inserido na tradição metodológica durkheimiana, dedicou-se a pensar sobre os “quadros sociais da memória” que consiste em considerar a memória individual atrelada ou dependente do relacionamento com a memória dos grupos nos quais o indivíduo está inserido – família, escola, igreja, entre outros grupos de convívio. A memória é uma leitura do passado construída no presente, que faz sentido para o presente.40 Pollak também argumenta que a memória é um fenômeno coletivo e social, submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes, mas que na maioria das memórias há marcos relativamente invariáveis como no caso de acontecimentos regionais, dos quais nem sempre a 36 SANTOS, Mirian Oliveira; ZANINI, Maria Catarina C. Comida e simbolismo entre imigrantes italianos no Rio Grande do Sul (Brasil). Op. cit., p. 258. 37 TEMPASS, Mártin César. “Quanto mais doce melhor”: um estudo antropológico das práticas alimentares da doce sociedade Mbyá-Guarani. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Porto Alegre, UFRGS, 2010. 38 CORNER, Dolores Martin Rodriguez. A gastronomia como fator identitário. Lembranças e silêncios dos imigrantes espanhóis na cidade de São Paulo (1946-1965). Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005, p. 25. 39 POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 3-15, 1989, p. 3. 40 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. 10 pessoa participou, mas que marcaram profundamente uma região ou sua população. Para ele essa “memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de indentificação”. E quando se trata de uma memória herdada ocorre uma ligação muito estreita entre memória e o sentimento de identidade: “a memória é um elemento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou um grupo em sua reconstrução de si”. 41 A memória coletiva é responsável por manter a identidade coletiva. Para Le Goff “os esquecimentos e silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva [...]”. Isso implica no fato da memória ser utilizada enquanto instrumento e estratégia de poder, de luta pela dominação da recordação e da tradição.42 Para Bosi “a memória da pessoa é amarrada à memória do grupo; e esta última à esfera da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade.” E por meio das tradições a memória é controlada, enquadrada. 43 A tradição é uma das múltiplas formas de inserção do passado no presente através de um processo de conservação/inovação.44 A tradição remete a um passado atualizado no presente e nela se incorpora também uma parte do imaginário.45 São elementos culturais presentes nos costumes ou nos fazeres que são herança do passado, portanto um produto do passado que continua a ser aceito e atuante no presente. É também aprendizagem e reapropriação. 46 Para Hobsbawm tradição é um conjunto de práticas fixas, repetidas de uma mesma forma e que remetem a um passado real ou imaginado. Para o autor, um dos aspectos mais fortes da tradição é a sua característica invariável.47 Entretanto, concordamos com Montanari ao argumentar que as tradições são conservadoras, mas não estáticas. As tradições são sensíveis às mudanças e influências externas. São sempre fruto de uma série de inovações e de adaptações.48 Para Gimenes as tradições são os “saberes-fazeres transmitidos entre gerações e cujos significados, dentro da própria lógica da dinâmica cultural, podem ser 41 POLLAK, Michel. Op. cit. p. 2-5 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 46; 442. 43 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979, p. 18. 44 PRANDI, Carlos. Tradição. In: ROMANO, Ruggiero(org). Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1984, v. 16, p. 166. 45 CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 122. 46 Tradição. In: SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2006, p. 405-406. 47 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 910. 48 MONTANARI, Mássimo (org.). O mundo na cozinha. Op. cit., p. 12. 42 11 alterados ou adaptados, sem que se percam, no entanto, determinadas características e conteúdos que garantam seu reconhecimento como tal”. 49 Reinhardt argumenta que a perpetuação dos hábitos alimentares no cotidiano ou em festividades pode estabelecer uma tradição culinária, permitindo que o indivíduo se sinta inserido em determinado contexto familiar ou sociocultural, reafirmando sua identidade por meio da memória que a comida desperta. Para a autora, “as comidas que hoje denominados ‘tradições culinárias’ são aquelas que eram feitas por motivos práticos específicos, porém hoje são reproduzidas, tendo significados simbólicos, despertando sentimentos e emoções”. Portanto, por tradição culinária a autora compreende também as práticas alimentares que são cercadas de ritos e significados. 50 Para Candau, uma tradição tem sua força quando confere aos membros de um grupo “o sentimento de compartilhamento de sua própria perpetuação enquanto tal”.51 As lembranças revividas asseguram uma continuidade fictícia ou real entre o passado e o presente satisfazendo também uma “lógica identificadora no interior do grupo, mobilizando deliberadamente a memória autorizada de uma tradição”. Para o autor, “o ato da memória que se manifesta no apelo à tradição consiste em expor, inventando se necessário, ‘um pedaço do passado moldado às medidas do presente’ de tal maneira que possa se tornar uma peça do jogo identitário”. 52 No caso dos rituais de memórias de imigrantes a tradição passa por legitimações – incorporações ou rejeições da novidade – amparadas em idéias de conservação da herança ou reinterpretação de usos “ancestrais” para que não se torne uma tradição vazia, vulnerável, descolada da vida do grupo. Assim, o “fazer de acordo com a tradição” é tanto “respeitá-la sem muitas alterações, como acomodá-la ou mesmo recriá-la”. 53 A transmissão é que faz uma tradição deslocar-se temporalmente, dando-lhe um sentido de ligação com o passado. Por isso, consideramos que os conceitos de tradição, identidade e memória são indissociáveis à análise que empreendemos. Tradição não é um conceito fixo, imutável. Memória e identidade também “podem perfeitamente ser negociadas [...] são valores disputados em conflitos sociais” e devem ser articulados no interior das dinâmicas culturais vivenciadas pelos grupos em análise.54 E são múltiplas as memórias e 49 GIMENES, Maria Henriqueta Sperandio Garcia. Cozinhando a tradição: festa, cultura e história no litoral paranaense. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008, p. 54. 50 REINHARDT, Juliana. Dize-me o que comes e te direi quem és: alemães, comida e identidade. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007, p. 105. 51 CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. Op. cit., p. 121. 52 Idem, p. 122. 53 Idem, p. 122-124. 54 POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 5. 12 identidades que podemos encontrar presentes na comida, entre elas a memória coletiva da imigração e a construção de uma identidade étnica. É importante considerar que os processos de construção e reconstrução de identidades étnicas que ocorrem no interior de diferentes grupos recebem influências de políticas públicas locais e transnacionais, da imprensa, da igreja, de associações, da produção literária e acadêmica, entre outras que contribuem para o “trabalho de enquadramento da memória” visando a formação de memórias da imigração, valorizações de grupos étnicos e suas tradições, que contribuem para uma “rearrumação da memória do próprio grupo”, selecionando os símbolos, os agentes autorizados a falar pelo grupo e reforçando o sentimento de pertencimento.55 Conforme Zanini, quando se trata de uma memória da imigração deve-se levar em conta uma memória coletiva que está sendo compartilhada e também uma memória da colonização que é pesquisada e divulgada por diversos agentes como intelectuais, escritores e ativistas. A construção de memórias individuais que se entrelaçam à memória coletiva é usada como instrumento que evidencia as diferenças e a colonização torna-se um processo continuado que se expande dos domínios geográficos para outros campos enquanto as negociações identitárias também reivindicam maior visibilidade e valor social dos grupos. 56 Alguns exemplos desse enquadramento da memória na sociedade paranaense podem ser identificados em ações que se intensificaram na segunda metade do século XX, buscando valorizar e “dar visibilidade” aos grupos étnicos, contribuindo para o “resgate” das suas tradições entre elas as tradições culinárias, fortalecendo as identidades étnicas e a posição de alguns grupos. Antes disso, durante o Estado Novo, as manifestações públicas de identidade étnica dos imigrantes europeus no Brasil foram severamente repreendidas pelo governo de Getúlio Vargas. Larocca explica que: No campo cultural, foi só a partir dos anos da década de 1960, com a crise dos diversos modernismos – da arte, da economia, da política – que surgiu campo propício para o resgate da tradição (à qual se refere, mais uma vez, o pós-moderno) e a consideração da diversidade, permitindo reconhecer e valorizar a contribuição eslava à cultura do Paraná. É dessa época a divulgação da história dos bairros poloneses (Pilarzinho, Abranches, Santo Inácio, etc) e ucranianos (Bigorrilho, Campo Comprido) de Curitiba. Surgiu o filão cultural de raiz étnica, através da construção de parques temáticos (Bosque do Papa e Parque Tingui, no caso dos eslavos), que foram criticados por algumas de suas licenças arquitetônicas. 57 55 Idem, p. 7. SANTOS, Mirian Oliveira; ZANINI, Maria Catarina. As memórias da Imigração no Rio Grande do Sul. Op. cit. p. 26-27; 32. 57 LAROCCA JÚNIOR, Joel. (Org.) Casa Eslavo-Paranaense. Op. cit., p. 32. 56 13 Em 1993, na ocasião das comemorações dos 300 anos de fundação da cidade Curitiba, diversos grupos étnicos de origem européia foram homenageados pela prefeitura com monumentos e memoriais por sua contribuição para a formação da população local. Foi nesse contexto de comemorações e homenagens, por exemplo, que o bairro de Santa Felicidade tornou-se “oficialmente” o “Bairro Italiano de Curitiba”. Nele foi instalado um “Portal Étnico” e um Memorial da Imigração Italiana. As políticas públicas municipais reforçaram a presença de uma “boa e farta comida italiana”, tornando o bairro um dos referenciais do turismo gastronômico na cidade. Através do slogan “Curitiba Terra de Todas as Gentes” e com um discurso de convivência harmônica a municipalidade homenageou também os poloneses, alemães, ucranianos e japoneses, enquanto outros grupos foram “esquecidos”. 58 Em 1995, coincidindo com as comemorações do centenário da imigração ucraniana no Paraná foi inaugurado o Memorial Ucraniano no Parque Tingui, em Curitiba. O parque abrigou a réplica da Igreja São Miguel Arcanjo, uma igreja em estilo bizantino construída pelos imigrantes em 1899 na Serra do Tigre, no município de Mallet.59 Em 1980 a família Pianoski doou à municipalidade uma casa feita de troncos pelos primeiros imigrantes poloneses que chegaram ao Paraná. Em homenagem à visita do Papa João Paulo II e à “comunidade polonesa” a casa, juntamente com outras trazidas de colônias na região de Curitiba, foram transferidas para o “Bosque do Papa” constituindo assim o memorial polonês.60 Esses memoriais e a valorização das práticas culturais, consideradas como aquelas que foram trazidas pelos imigrantes, também constroem discursos em torno da imigração eslava no Paraná e produzem etnicidade entre os descendentes. A religião representa importante função na preservação de algumas tradições culinárias e na construção de identidades étnicas entre os imigrantes e descendentes. No caso da região centro-sul do Paraná, a religião desempenhou e continua desempenhando um papel fundamental, especialmente quanto à preservação de muitas tradições culinárias, observadas (e degustadas) nas festas do calendário litúrgico. 58 KLUGE, Maria Fernanda Maranhão. “O Vêneto não pode morrer!” Um estudo sobre restaurantes, rituais e (re) construção da identidade italiana em Santa Felicidade. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). UFPR, Curitiba, 1996, p. 1- 2; 142. 59 BORUSZENKO, Oksana. Os Ucranianos. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, vol. 22, out. 1995, p. 42. Trata-se de uma igreja de madeira, recentemente restaurada e tombada como patrimônio histórico e arquitetônico do Paraná. 60 Texto disponível em: <http://www.casadamemoria.org.br/index_publicacoes.html>. Acesso em 23 de maio de 2012. 14 Seyferth mostra que no sul do país, as igrejas católicas e protestantes e também as escolas étnicas, fomentaram uma consciência étnica entre os descendentes de imigrantes.61 No Paraná, tanto os poloneses católicos quanto os ucranianos católicos do rito oriental e os ortodoxos, nutriam um profundo sentimento religioso, transmitido em grande parte aos descendentes. Em seus rituais natalinos, pascais e cerimônias de casamento, alguns pratos são cuidadosamente preparados pelas mulheres nos dias que antecedem essas festas e são portadores de simbologias religiosas e representações relacionadas com as práticas agrárias e os vínculos com a natureza. Boruszenko também afirma que as tradições culturais dos imigrantes ucranianos eram assistidas pelas igrejas e associações. A pesquisadora explica que a Páscoa é uma das tradições da Ucrânia que os descendentes mais cultivam. Para essa celebração ocorre a confecção das pêssankas, ovos coloridos pintados a mão com símbolos e significados peculiares para serem presenteados como um talismã, além da paska, repleta de sentidos: Cuidado todo especial é dedicado ao pão que tem o nome de “Paska”. Quanto mais crescido e ornamentado com a própria massa, maior orgulho de quem o faz. No Domingo de Páscoa, após a liturgia da ressurreição, geralmente celebrada de madrugada, ao repicar de todos os sinos da igreja, os fiéis depositam em torno da igreja as cestas com “paskas”, “pêssankas” e outras iguarias caseiras especialmente preparadas para a ocasião, as quais são aspergidas com água benta pelo sacerdote, acompanhado pelo sacristão e pelo coral da paróquia. 62 As festas religiosas, familiares e as datas comemorativas funcionam como lugares de enquadramento da memória, selecionando o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. Constituem assim, lugares de memória63 e de produção de etnicidade. 64 No contexto das festas é possível identificar o papel dos “guardiões da memória” ou os “guardiões das tradições”, que agem na preservação de objetos e saberes do passado e dos antepassados, desempenhando um papel decisivo na produção, circulação, consumo e legitimação das narrativas. No caso da transmissão das tradições culinárias, as mulheres ocupam lugar de destaque, especialmente as mulheres mais velhas. São elas as guardiãs desses saberes, dessa memória. As tradições culinárias são práticas alimentares que não residem apenas dos domínios da vida privada, mas no saber fazer transmitido pelas mãos femininas que levam seus conhecimentos para reuniões comunitárias, para festas e diversas 61 SEYFERTH, Giralda. As identidades dos imigrantes e o melting pot nacional. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 6, n. 14, p. 143-146, Nov. 2000, p. 155. 62 BORUSZENKO, Oksana. Os Ucranianos. Op. cit., p. 1; 9; 33. 63 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP, n. 10, 1993. 64 SCHNEIDER, Claídes Rejane. Comida, História e Culturas nas festas gastronômicas de Francisco Beltrão – PR (1996-2010). Tese (Doutorado em História). UFPR, Curitiba, 2012. 15 comemorações, contribuindo também para a construção de uma memória coletiva e de uma identidade étnica.65 Agentes como a imprensa, as secretarias municipais de cultura ou ações relacionadas ao turismo vislumbram no patrimônio alimentar meios de fomentar o “desenvolvimento” local. Dessa maneira, as práticas culinárias tradicionais, herdadas ou inventadas, ou os chamados “pratos típicos”, considerados como aqueles que podem melhor reapresentar uma região ou os grupos étnicos, concorrem para a construção de uma cozinha regional, que se relaciona aos processos históricos e ao contexto cultural dos grupos. Essa cozinha e seus pratos tornam-se símbolos destinados a representar diferentes grupos, tornando-se também parte dos discursos que expressam pertencimentos.66 Os processos de patrimonialização e apropriação dos bens culturais de um grupo, visando sua salvaguarda ou proteção também reafirmam as identidades locais, regionais, nacionais ou étnicas, além de concorrer para sua valorização econômica. 67 Partindo dessas inquietações iniciais, consideramos que a escolha da “comida polonesa” e da “comida ucraniana”, ou ainda de uma “comida eslava”, seja uma possibilidade instigante para pensar questões relacionadas à construção de identidades na região centro-sul do Paraná, especialmente a construção de identidades étnicas. Ao longo da pesquisa, essa abordagem permitirá introduzir novas questões como a produção de etnicidade e relações interétnicas a partir do tema da alimentação. Com base em estudos antropológicos, sociológicos e pesquisas no campo da História e Cultura da Alimentação, compreendemos que a comida representa um veemente sinal diacrítico utilizado pelos sujeitos para expressar sua identidade étnica. A problemática das tradições alimentares se insere em nosso estudo por sua peculiaridade de portar uma memória coletiva, que participa ativamente nos processos de construção de identidades. Em nossa pesquisa, memória, identidade e tradição são conceitos indissociáveis. Tendo em vista que a comida é um dos símbolos frequentemente acionado pelos descendentes em seu cotidiano, em suas festas, rituais religiosos e de comensalidade, ela pode operar fortemente como um dos emblemas de pertencimento a um grupo étnico. A comida constitui também uma narrativa da memória coletiva, na medida em que determinados pratos 65 MORAIS, Luciana Patrícia de; GIMENES, Maria Henriqueta S. G. Vozes femininas, saberes culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária. Caderno Espaço Feminino, vol. 19, n. 01, Jan/Jul. 2008, p. 356. 66 HERNÁNDEZ, Jesús Contreras. Patrimônio e Globalização: o caso das culturas alimentares. In: CANESQUI, Ana Maria (org.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, p. 129. 67 Álbum Arte e Gastronomia do Paraná. Curitiba: Solar do Rosário, 2005, p. 80-95. 16 passam a ser apropriados, apreciados, fruídos por toda a comunidade, não apenas pelos descendentes, tornando-se parte de um patrimônio coletivo. Ao ser evocado, valorizado e até mesmo inventado, esse patrimônio é por vezes explorado por diferentes iniciativas políticas, turísticas e midiáticas, enquanto estratégia de desenvolvimento local ou regional, contribuindo também para os processos de construção e transformação dessas identidades. Agradecimentos À Professora Dra. Ana Paula Vosne Martins e aos colegas da turma do Seminário I pelas críticas e sugestões elaboradas durante o debate desse projeto. Ao Professor Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos pela orientação na produção desse ensaio e à nossa convidada, Professora Dra. Oksana Boruszenko, pela gentileza de ler e debater o texto. Referências bibliográficas Álbum Arte e Gastronomia do Paraná. Curitiba: Solar do Rosário, 2005. ANDREAZZA, Maria Luiza. Paraíso das delícias: um estudo da imigração ucraniana. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. BORUSZENKO, Oksana. Os Ucranianos. Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, vol. 22, out. 1995. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011. CANESQUI, Ana Maria (org.) Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 2. 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