Gabriel completamente

Transcrição

Gabriel completamente
GABRIEL
Pelo Espirito Lucas
Psicografia Médium Maria
Prefácio
Doada é a “Terra” para o plantio.
Doado é o corpo físico, apto ao bom cultivo.
Doado é o meio propício ao bom trabalho.
O lavrador, num sopro de vida, desperta a cada manhã.
O Pai misericordioso o abençoa a cada dia. Concede-lhe o sagrado alimento que lhe
sustentará o corpo e abençoa-lhe a água em energia.
Com extrema bondade, o Pai carinhosamente lhe fornece os meios e as ferramentas e,
sorrindo num sol magnânimo, diz-lhe:
- Ide meu filho, e obrai por tua evolução e progresso.
- Ide e obrai por mim amando teus irmãos !
O lavrador inicia mais uma árdua jornada diária – a “Terra” é demasiadamente árida.
Difícil é arar, adubar, e semear!
Inúmeros sentimentos, pensamentos e atitudes incrivelmente daninhos proliferam
impiedosamente a cada instante em seu jardim individual e em seu pedaço de “Terra”.
Por vezes, exausto do árduo e incessante cultivo, recosta-se ao repouso, e adormecido
fica de suas obrigações.
O dia lhe transcorre excessivamente breve e retorna ao lar, no qual encontra o descanso
ao corpo.
Novamente o Pai o recebe piedoso e o indaga ansioso:
- Novamente voltas da “Terra” meu Filho, o teu corpo exausto repousa profundamente.
Arastes, adubastes, e semeastes em teu pedaço da “Terra”?
Mas o filho lavrador, inúmeras vezes se esquece do Pai que o ama.
Não o percebe, não lhe agradece as bênçãos, e tampouco lhe conta o seu dia!
Porém, em extrema bondade e misericórdia, o Santificado Pai respeita-lhe a liberdade do
espírito, e aguarda-lhe paciente o repouso do corpo.
Em infinita oportunidade, na continuidade da evolução de seu filho lavrador, novamente o
Pai Generoso o desperta com um sol magnânimo em mais um dia glorioso, lhe doa a
aptidão ao corpo, lhe concede o sagrado alimento e a água energizada, lhe fornece os
meios e as ferramentas e lhe diz pacientemente:
- Ide meu filho, e obrai em teu pedaço da “Terra”!
Esta obra, “Gabriel”, tem o intuito de mostrar aos irmãos do plano físico que Deus Todo
Poderoso confia continuamente na evolução de seus filhos, concedendo-lhes sempre
uma nova oportunidade na vida física e doando-lhes, em grandiosa benção, os meios
necessários ao seu progresso.
Em “Gabriel”, o Espírito Lucas conta a história de um de nossos irmãos, que teve esta
grandiosa oportunidade, numa época regressa em vosso plano físico.
Reencarnando como um servo de um castelo, numa vida física que lhe possibilitava
engrandecer-se em humildade, resignação e amor para com os seus irmãos, Gabriel
recebia de Deus, Nosso Pai, os meios necessários a redimir-se e corrigir-se dos inúmeros
erros em suas vidas regressas.
Na narrativa da vida reencarnatória do irmão Gabriel, visualizará o leitor a imensa
liberdade e as contínuas e diárias oportunidades que Deus, Nosso Pai, concede em
extrema bondade, viabilizando-nos o progresso e a evolução.
Concluirá, ainda, o querido e amado irmão que, se Deus, Nosso Pai, doa-nos a
continuidade, concedendo-nos sempre um novo despertar para o plantio,.. nunca é tarde
demais para se olhar o nosso pedacinho da “Terra”, e iniciar um paciente plantio de amor.
Efigênio
Setembro de 1996
Gabriel
Pelo Espírito Lucas
I Parte : No Hemisfério da Emoção
“Deus, Nosso Pai, concede-nos os sentimentos para que aprendamos a Amar!”
II Parte : No Hemisfério do Livre-Arbítrio
“Deus, Nosso Pai, concede-nos a liberdade de pensarmos, sentirmos e agirmos!”
III Parte : No Hemisfério da Consequência
“Deus, Nosso Pai, concede-nos a colheita do nosso bom ou mau cultivo!”
IV Parte : No Hemisfério da Reflexão
“Deus, Nosso Pai, concede-nos a pausa necessária à ponderação sobre nossa vida!”
V Parte : No Hemisfério do Arrependimento
“Deus, Nosso Pai, concede-nos a capacidade de reconhecermos nossos erros!”.
VI Parte: No Hemisfério da Redenção
“Deus, Nosso Pai, concede-nos a infinita oportunidade de nos redimirmos!”
VII Parte: No Hemisfério da Regeneração
“Deus, Nosso Pai, concede-nos o auxílio para nos recompormos!”
I Parte : No Hemisfério da Emoção
Gabriel vasculhou a cela, ergueu-se em seu corpo magro e frio e chegou à grade em que
podia ver a vida.
A luz iluminou-lhe o semblante febril, as rugas invadiam-lhe a face jovem e o desfigurava
devido aos inúmeros maus tratos que recebera pela vida.
Quem diria, completara seu trigésimo quinto aniversário e sentia-se velho. Estava
envelhecido pela vida.
No pasto verdejante que avistava da pequena janela, podia ver que a vida continuava
ensolarada no castelo de Brigith.
Podia ver os cavalos de raça negra, imponentes em sua majestade, correndo pelas
campinas.
Lágrimas lhe desceram dos olhos e a face contorceu-se em dor. Como invejava aqueles
bichos tão robustos e tão sadios, que possuíam a força e a vitalidade que ele não mais
possuía. Quis gritar, mas a voz não mais lhe pertencia. Fazia anos que naquela masmorra
não falava com ninguém. Cedeu ao impulso de se sentir cansado, as pernas contorceramse, e pouco a pouco foi se curvando, até cair no chão úmido e fétido de pedra.
Relembrou toda a sua vida, em passado que lhe parecia tão distante, mas que lhe ficava
tão próximo ao olhar por aquela janelinha.
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Trajava túnica branca e corria pelas colinas. Vinte anos de juventude e vivacidade. Sentiase feliz em correr e em sua jovialidade, pulava sobre o pelo negro dos cavalos, que lhe
eram tão amigos, sentia-se voar sobre o manto imensamente verde que se estendia por
sobre aquela terra, tal qual o imenso tapete que cobria o imponente salão do castelo de
Brigith. Quando lá entrava, admirava os enormes lustres de pingentes cristalinos, que
iluminavam todo o salão quando as velas eram acesas ao entardecer.
- Gabriel onde estás?
A voz era meiga e suave, e Gabriel corria a atender o chamado daquela linda jovem que
tanto amava. Avistou-lhe olhar cândido e belo. Pele lisa e rosada. Trajava um belo vestido
de cetim azul, tal qual o céu que cobria aquela propriedade. Olhos negros e cheios de
vida. Mechas douradas, desciam em delicados caracóis sobre os ombros. Falava-lhe:
- Onde estavas Gabriel?
A voz era firme e lhe soava amigavelmente. Fez acentuada reverência diante de Brigith e
beijou-lhe a mão, dizendo-lhe:
- Senhorita Brigith, cuidava de seu cavalo. Desejas cavalgar?
Gabriel, servo da casa desde criança, crescera sempre próximo a Brigith. Ainda que as
posições lhes fossem bem diferentes, a vida lhes era semelhante em jovialidade,
afinidade e extrema amizade. Mas os pais da jovem nobre não gostavam do constante
convívio da filha com os servos e faziam o possível para distanciá-la dos passeios nos
campos, ou da sua ausência do interior do castelo. Mas quando a jovem o chamava, lá
estava prontamente o servo Gabriel, Surgindo no imenso salão, vislumbrando os lustres,
admirando o luxo, e pronto para atender Brigith.
Certo dia, anunciou-se a festa de noivado de Brigith. Prometida em matrimônio desde
menina a um lorde da corte, estava finalmente em idade de casar-se. Quinze anos de
jovialidade e beleza. Gabriel soube da notícia por Manco, seu companheiro nas tarefas e
seu tutor.
- Gabriel, soubeste o que ocorrerá no próximo mês?
- O que ocorrerá Manco?
Manco, olhou-o com seriedade e falou-lhe:
- A senhorita Brigith irá noivar com conceituado nobre escocês. Aqui, deverá chegar
breve.
Gabriel deixou os braços cederem sobre a túnica branca. O raio de sol de sua vida
parecia não mais ser só seu. Sentimentos confusos lhe estrangulavam o peito e tremores
involuntários lhe percorriam o corpo. Precisava ver Brigith. Precisava lhe expor seus
sentimentos, ainda que eles não fossem correspondidos.
Mas as portas de madeira rústica do enorme castelo estavam cerradas. A noite já descia
veloz, em negro cintilante, por sobre as colinas. Teria que esperar amanhecer. A noite
pareceu uma eternidade, não conseguira dormir e ao primeiro raio de sol da manhã,
Gabriel pegou o seu cavalo preferido e cavalgou até a colina, onde ficou a observar
castelo.
O castelo era enorme, mas com a imensa paixão e amor que lhe gritavam em todos os
sentidos, poderia facilmente identificar a pequena janelinha do aposento de Brigith e
saber se já despertara. Ali ficou algumas horas, até que viu a pequena janelinha ser
aberta. Pegou o cavalo e desceu veloz a colina. Aproximando-se das muralhas, olhou
para cima, imitando o assobio de uma ave. Não poderia chamar atenção dos guerreiros,
que protegiam a nobreza defronte ao portal principal.
Brigith, que conhecia o assobio carinhoso de seu fiel amigo, aproximou-se do avarandado
florido de seu aposento, olhou-o sorrindo espontaneamente.
O seu sorriso iluminou a vida de Gabriel e no seu coração, a angústia serenou. Brigith
sussurrou, com medo de ser ouvida:
- Gabriel que fazes aqui? É cedo demais! Se te vêm aqui, o capataz te castigará!
Gabriel olhou-a com ternura, agradecendo-lhe a preocupação e falou-lhe suplicante:
- Brigith preciso muito falar-te. Escovarei o teu cavalo e o deixarei pronto para
cavalgares... Dizei a teu pai, que desejas passear . Atendei-me este pedido!
A jovem sentia-se amedrontada, e com a voz trêmula disse-lhe:
- Gabriel, breve meu noivo virá ao castelo para a festa do noivado. Meu pai não permitirá
o passeio!
- Brigith diz a teu pai, que precisas ir até o lago, ver como estão os potros que nasceram e
ele permitirá!
O semblante de Brigith entristeceu duvidoso, mas sussurrou:
- Gabriel, te prometo que tentarei conseguir seu consentimento, mas acho improvável,
meu amigo.
Gabriel afastou-se então velozmente, dizendo-lhe que a aguardaria no lago. Seu coração
pulsava forte tal qual o galope de seu cavalo. Ambicionava desesperado aquele encontro
e sentia em seu interior que era a única esperança. O sentimento intenso e puro não mais
se continha em seu interior. Chegando ao lago, apeou da montaria e agachou-se no verde
manto, ainda orvalhado. Mirou-se na água e viu o seu reflexo. Era um rapaz saudável e
forte, robustas formas e bonitos traços. A pele lhe brilhava e os olhos amendoados luziam
paixão. Sentiu o rubor lhe invadindo as feições e o sorriso lhe vinha aos lábios rosados,
ao elaborar infantilmente o que falaria a Brigith. Lavou o rosto na água fresca do lago anil
e deitou-se observando as nuvens, que pareciam brincar consigo, fazendo inúmeras
formas e traçados, assemelhando-se á arte de um mestre da pintura desastrado.
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Acordou na masmorra fria. Os membros estavam entorpecidos pela umidade negra do
solo empedrado. Cambaleou até o pequeno canto, que se fazia leito. Mais um dia se fora.
A escuridão vinha invadindo todos os espaços, assim como os pedaços da sua memória.
A refeição do dia continuava intacta sobre lata fina. Podia escutar os roedores, se
aproximando do alimento, com a fome que ele não sentia. O corpo lhe doía e deitou-se, a
pele não mais lhe acolchoava os ossos e estes estalavam sobre o solo, ao tentar se virar.
O frio lhe batia impiedosamente e tremendo em doloridos arrepios, dormiu novamente.
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- Gabriel, não creio que dormes?
O jovem levantou-se num sobressalto, corando.
- Perdoai-me, Brigith, pouco consegui repousar esta noite e o cansaço venceu-me
enquanto te esperava.
Gabriel tentando recompor-se, lhe fez a eventual reverência que faziam os servos aos
seus nobres e estava prestes a beijar-lhe a mão, quando Brigith, puxou a mão sorrindo:
- Deixemos essas reverências para quando me vires no castelo, certo Gabriel?
Sorrindo novamente, se virou para o lago desejando molhar o rosto, mas não poderia
fazê-lo, não poderia sofrer qualquer alteração em seu comportamento e deveria voltar
impecável, como era esperado de uma duquesa. Desejou sentar, mas também não
poderia fazê-lo, pois poderia sujar ou amassar as suas vestes e Lana, a sua ama, poderia
perceber-lhe o desmazelo. Vestia-se com lindo vestido cor de rubi e estava encantadora
aos olhos de Gabriel, que se aproximou. Desejou tocar-lhe, mas conteve-se.
- Gabriel, dizei-me porque me trouxestes aqui.
O jovem indagou-lhe num sopro de voz:
- Vais casar-te Brigith?
Brigith olhou-o carinhosamente, mostrando-se resignada:
- Devo casar-me Gabriel, há muito estou comprometida!
Gabriel olhou-a ansioso.
- Preciso te falar algo, que se aperta contra o meu peito...
- Estás doente, Gabriel?
- Brigith, falo com seriedade e extrema franqueza, deves escutar-me!
Brigith fez um devaneio de preocupação silenciando, permitindo que Gabriel
prosseguisse.
- Brigith, eu gosto muito de você.
- Deixemos de tolices Gabriel, eu também gosto muito de você!
- Não entendes o que te falo Brigith, não desejo que te cases com outro... quero eu,
casar-me contigo!
Brigith enrubesceu e, virando-se novamente para o lago, tentava disfarçar o rubor. Ambos
silenciaram, mas logo Brigith voltou-se num rodopio e sorrindo disse- lhe num sussurro de
voz emocionado e trêmulo:
- Sabes que o que me dizes nos é proibido Gabriel. És mero servo do castelo de meu
pai... eu sou a filha de um nobre. Não poderíamos sequer estar conversando! Sabes o
que ocorrerá se nos virem a sós? Irão castigar-te ou até prender-te na masmorra, Gabriel!
- Pouco me importo comigo, se não puder estar contigo Brigith. Precisava falarte...precisava ver-te...a angústia me corta o peito, tal qual a lamina de uma espada em
tua ausência, e o acalento e a doçura da tua presença, me entorpecem os sentidos. Amote Brigith com o mais puro e sincero dos sentimentos!
Brigith não conseguiu mais conter-se , agindo num forte impulso, abraçou-o. Assim
permaneceram breves instantes, que lhes pareceram uma eternidade. Brigith porém
afastou-se, desculpando-se em olhar terno e correu até o seu cavalo, que lhe fitava
intranquilo.
Gabriel aproximou-se, auxiliando-a na montaria. Não houve mais palavras, somente os
olhares dialogavam o muito que sentiam.
Brigith se afastou em galope apressado e Gabriel ali permaneceu extasiado. Não lhe
existia agora, o desespero em perder aquela que tanto amava, pois sabia que na
reciprocidade do sentimento, já a possuía.
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Gabriel entreabriu os olhos e ali permanecia. Nada se alterava. A tristeza lhe era profana
e o breu lhe era o seu velho companheiro, tal qual o frio que lhe acalentava todas as
noites
Estava demasiadamente acostumado ao seu pequenino quadrado. Poderia facilmente
cerrar o olhos e movimentar-se livremente sem atropelos, ou poderia ainda decifrar na
escuridão, o desenho de cada pedra em sua cela.
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Gabriel despertou do êxtase que sentia, montou em seu cavalo e galopou veloz de volta
ao castelo.
- Onde estivestes Gabriel? Enlouqueces-te? O capataz Philip te procurou a tarde inteira .
Deixastes tuas tarefas por fazer!
Manco parecia muito preocupado e continuou:
- Disse-lhe que havias ido ao bosque procurar lenha, mas asseguro-te Gabriel, que
estranhou tua demora!
Gabriel deitou no feno despreocupadamente e sorriu-lhe.
- De que ris tu Gabriel? Falo-te que terás problemas e ris? Onde estivestes afinal?
- Manco, meu bom amigo, estive eu hoje no paraíso!
O velho senhor estava cada vez mais preocupado e intrigado com a tranqüilidade de seu
tutelado. Gabriel falou-lhe radiante:
- Manco, eu estou amando e sou um homem amado!
Gabriel nada mais falou a Manco, cerrou os olhos e dormiu. Despertou antes que o sol
raiasse e num galope apressado, novamente se colocou a observar á distância o
aposento de Brigith. Precisava vê-la. Deixou o cavalo livre a pastar pelo gramado e
deitou-se de bruços mirando o castelo.
A janela do aposento se abriu e Gabriel despertou de seus pensamentos. "Brigith
acordou..." exclamou radiante. Sentia enorme vontade de gritar seu nome, mas o barulho
do rio, que ali passava, não permitiria que ela ouvisse e tampouco ousaria fazê-lo - seria
rapidamente preso, castigado e enclausurado naquelas masmorras. Gabriel, na verdade,
já era prisioneiro de uma paixão que o dominava.(?)
Aguardou alguns instantes e percebeu que o vulto de Brigith se aproximava da janela. Ali
ela permaneceu imóvel. Talvez, pressentisse que Gabriel a observava. Estava pensativa.
Gabriel assobiou, mas o som, àquela distância, foi engolido pelo vento. Desejou correr,
mas controlou-se. Exasperou-se sem saber o que fazer para se comunicar com ela.
Brigith recolheu-se novamente ao seu aposento e Gabriel, em seu interior, implorava que
não o fizesse, pois novamente as muralhas frias e imponentes os distanciariam. Brigith
porém, não retornou ao avarandado e Gabriel ali permaneceu, prostrado. Esquecido das
horas, ali foi ficando, perdido em seus confusos pensamentos.
Quando o sol já alto ia, resolveu retornar ao celeiro e cumprir com os seus afazeres.
- Onde estavas tu, servo Gabriel? És servo deste castelo e não deves ausentar-te de tuas
tarefas sem autorização!
O capataz esbravejava , olhando-o furioso.
- Responde-me rapaz!
O capataz Philip, parecia extremamente nervoso, estalava o chicote no solo, como
silenciosa ameaça de um superior.
- Responde-me Gabriel, eu te ordeno!
Gabriel permanecia de cabeça baixa, em sinal de respeito e submissão. Não sabia o que
lhe responder. Estava certo, que o castigo viria, talvez trinta ou quarenta chicoteadas, em
campo aberto, para servir de exemplo aos demais servos. Philip estava completamente
irado e disposto a dar o castigo,quando o murmúrio do velho Manco veio em socorro de
Gabriel:
- Que bom que chegastes Gabriel...já vi que fizestes o que te pedi. A lenha que me
trouxestes é da melhor qualidade! Ontem e hoje andastes muito não, valente rapaz?
Philip respirou ofegante, enquanto observava a lenha, que dificilmente fora carregada e
empilhada por Manco, em trabalho árduo aquela manhã. Estava disposta em grandes
pilhas e Philip, sem desconfiar que não fora tarefa de Gabriel, retirou-se contrariado.
Manco se aproximou de Gabriel, colocou-lhe carinhosamente a mão no ombro e falou-lhe
preocupado:
- Meu querido filho, escuta-me, eu te imploro em nome de Nosso Deus...esquece essa
paixão que te consome os dias...ela te levará a uma tragédia!
Gabriel nada lhe contara, porém Manco parecia ciente de tudo o que se passava em seu
interior. Deixou que os joelhos se dobrassem sobre o solo e fitando Manco agradecido,
não conseguiu conter as lágrimas, que desceram velozes em suas faces, contorcidas em
angústia profunda. Balbuciou suplicante:
- O que eu faço, meu velho Manco?
Manco, abaixou-se, secando-lhe as faces com as mãos extremamente calejadas pela
árdua lida diária, e lhe disse, também comovido:
- Escuta-me Gabriel, pede aLorde que te mande para a propriedade de Adredanha, que
fica a alguns dias de viagem, Lá, esquecerás com certeza, este amor tão impossível.
Manco fez uma pausa para observá-lo e carinhosamente prosseguiu:
- Nada me contastes, mas este teu pai de coração sempre esteve vigilante a teus passos,
desejando proteger-te e guiar-te em vida digna, feliz e honrada. Em Adredanha
conhecerás alguma jovem que te faça esquecer a menina duquesa.
Gabriel nada conseguiu falar-lhe. As lágrimas continuavam descendo febrilmente em suas
faces. Ele olhou aquele velho que lhe era tão amigo e colocando a mão no seu ombro,
olhou-o com profundo agradecimento pela ajuda e o imenso carinho, e saiu apressado
para agilizar seus afazeres.
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Gabriel estava sereno, parecia ter desfalecido em mais uma noite fria, naquela pequena
cela. Mas o corpo extremamente emagrecido, despertava para mais um dia de vida.
Ergueu-se do solo com demasiado sacrifício, cambaleando até a janelinha, como sempre
o fazia. Mas algo se alterara na paisagem. Não havia cavalos pastando nas campinas
verdejantes e o cenário estava muito silencioso. Parecia o prenúncio de enorme
desgraça, tal qual imensa tempestade quando se aproxima. Mas o céu estava
incrivelmente azul e o sol ia alto, forte e brilhante. Em sua demasiada fraqueza, tentava
analisar o que ocorria naquela propriedade.
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Os dias transcorreram breves no castelo de Brigith. Gabriel se ocupava com os inúmeros
afazeres e tarefas das quais era incumbido, mas, sempre que podia, ia espiar á distância
o aposento de Brigith. Desejava sempre vê-la despertar. Nunca, no entanto, naqueles
intermináveis dias, tivera oportunidade de nova aproximação, o que o angustiava demais.
Os preparativos para a grande festa de noivado, eram constantes e ininterruptos. Brigith
havia sido enclausurada em um grande cerco de restrições e de cuidados. Estava
aprisionada em seu castelo e nunca mais saíra a passear ou a cavalgar.
Somente os servos do castelo podiam entrar e sair. Os servos do plantio nos campos ou
do trato com os animais, como Gabriel, somente poderiam entrar com ordem do capataz
Philip ou da nobreza.
Gabriel não aceitara o conselho do velho Manco, que lhe pedira que se afastasse da
propriedade e de sua incontrolável paixão. Sentia extrema necessidade de ficar por perto
e ansiava, desesperado, qualquer oportunidade de ver Brigith e poder dialogar com ela.
Esse dia, finalmente chegou.
Era manhã fria e chuvosa. O pasto estava deserto, pois os imponentes cavalos de pura
raça não podiam se molhar. Os afazeres e tarefas haviam sido restritos em função do
mau tempo.
Deitado no feno Gabriel mirava a chuva fina que gotejava cintilante sobre as folhas de
uma frondosa árvore defronte ao celeiro. Percebeu de súbito, a entrada apressada do
capataz Philip, que foi logo ordenando:
- Rapaz, precisamos de lenha no castelo! E é para já!
Raramente Philip lhe chamava pelo nome e dificilmente o incumbia de tarefas no interior
do castelo. Gabriel se encheu de entusiasmo, era a oportunidade que tanto ansiara. O
coração disparou-lhe no peito e as faces enrubesceram rapidamente. Poucas vezes
respondia ao capataz Philip, mas nesse instante, tomado de euforia interior, falou-lhe
prestativo:
- Providenciarei prontamente senhor!
Gabriel se dirigiu á pilha de lenha, e fazendo um enorme feixe, o carregou sobre os
ombros, acompanhando Philip, até o imenso portal do castelo.
A pesada porta rangeu, parecia o reverênciar. Avistou radiante o imenso salão e os
candelabros iluminados, que cintilavam quentes chamas vivas... Sentia-se como em sua
própria moradia, onde o conforto e o requinte lhe pareciam essenciais. Davam-lhe imenso
bem estar.
Caminharam silenciosos até imponente salão de festas e lá, imediatamente, Gabriel
avistou a linda Brigith , sentada próximo a uma dourada harpa. A família estava toda
reunida e ela tocava uma suave melodia. Seu pai, lorde Orlando, sua mãe, a nobre
Joane, e os seus irmãos Arthur e Anderson , pareciam distraídos escutando a musica em
animadas conversas. Gabriel sentiu o corpo estremecer e o feixe de lenha que carregava
rangeu em desequilibro. Percebeu que Philip se afastara, para ir até á cozinha do castelo.
Caminhou até á enorme lareira de pedra e assentou vagarosamente o feixe de lenha.
Desejava ardentemente prolongar aquela tarefa, por uma eternidade. A sala estava
quente e a sua ansiedade parecia aumentar-lhe a temperatura. Sentia enorme vontade de
olhar Brigith, mas não sabia como fazê-lo. Os instrumentos musicais ficavam do lado
oposto á posição onde se encontrava.
- Retira-te já rapaz!
A voz soou áspera e autoritária. Era uma ordem fria de lorde Orlando e deveria obedecer
de imediato.
- Saia rapaz! Os servos do castelo farão o resto do serviço!
Por alguns instantes, Gabriel sentiu os dedos de Brigith tremerem sobre os delicados fios
da harpa e a melodia estremeceu. Ergueu-se e caminhou hesitante. Ao entrar no salão
principal, percebeu rapidamente, que não havia ninguém ali. Estava deserto.
Num impulso, sem pensar no que fazia, subiu correndo a imensa escadaria que o levaria
aos aposentos, no andar superior. Com um raciocínio extremamente veloz, traçou um
desenho do castelo em sua mente e concluiu com absoluta precisão que, seguindo um
dos corredores , ainda que este se mantivesse em penumbra, encontraria facilmente, o
aposento de Brigith. Ficou extremamente surpreso quando entrou num dos aposentos nele havia aconchegante luminosidade e calor suficiente, para afagar o seu peito
ofegante. "Que farei agora?" pensou temeroso. Ciente estava que não haveria muito
tempo para pensar. Ocultou-se sob o cortinado de renda espessa e ali se manteve imóvel,
próximo à janela que lhe era tão conhecida. Permaneceu algumas horas ali imóvel e
sentia que a noite já reinava em todos os cantos daquela propriedade. Suas pernas já
estavam extremamente cansadas, pois há muito se mantinha numa mesma posição
quando escutou um murmúrio no corredor. Sentiu um arrepio de receio lhe percorrer o
corpo quando a porta se abriu rapidamente.- Menina Brigith, agora a senhorita deve
dormir!
- Lana, desejo perguntar-te algo.
Pelas vozes que ouvia, sabia que era Brigith e a serva que lhe servia de ama .
- Senhorita Brigith, irei auxiliá-la a se trocar e enquanto isso conversamos.
A serva encostou a porta e enquanto auxiliava Brigith a se trocar, esta indagou:
- Lana, soubeste algo mais a respeito de meu noivo?
- Nada mais soube senhorita Brigith.
Gabriel mantinha-se imóvel sob o cortinado. Por vezes, sentia-se arrependido do que
havia feito, mas agora não tinha como escapar aquela situação. Escutou o pesado vestido
de Brigith ser retirado e a água que batia na tina ao se lavar. As duas não mais
dialogavam. O silêncio que se fazia no aposento o obrigava a uma maior imobilidade.
Quando Brigith finalmente sentou-se no leito, Lana retirou-se do aposento, despedindo-se
e desejando-lhe boa noite.
O quarto estava agora sob uma luz tênue, pois Lana havia apagado algumas velas no
candelabro antes de sair. Gabriel sentiu que Brigith continuava-se sentada no leito. O seu
coração estava veloz e descompassado. Sentia-se um intruso e receoso em como deveria
agir para não assustá-la. Surgiu-lhe momentaneamente a idéia, de assobiar e assim o fez
em som baixo e brando. Brigith, imediatamente pulou do leito e caminhou hesitante até á
janela próximo onde ele estava. Abriu a janela devagar, para que ninguém no castelo
escutasse, mas não avistando nada, novamente fechou-a e caminhou de volta ao leito.
Gabriel sentia-se demasiadamente confuso. Resolveu assobiar novamente e Brigith
ouvindo-o, manteve-se imóvel onde estava, sem saber ao certo o que fazia, murmurou
duvidosa:
- Gabriel, és tu?
Gabriel imediatamente saiu por detrás do cortinado e ela surpreendeu-se.
- Por Deus querida Brigith, não te assustes, Não encontrei outra forma de poder falar-te.
- Gabriel, estás louco!
Os dois falavam tão baixo e estavam tão receosos da circunstancia, que mais pareciam
cochichos de dois confidentes. Gabriel, que permanecia imóvel próximo á janela,
caminhou até o leito, no qual Brigith se mantinha atônita com tudo o que acontecia. Fezlhe rápida reverência e ajoelhou-se, beijando-lhe as mãos. Fitou-lhe os olhos e por eterno
instante nada disseram. Os olhares silenciosos pareciam gritar a profunda emoção que
sentiam. Com um sobressalto Brigith lembrou-se que Lana poderia voltar.
- Preciso colocar a tranca na porta Gabriel, Lana poderá voltar. Por vezes o faz para ver
se durmo bem!
Gabriel prontamente prontificou-se:
- Deixai que a coloco Brigith!
Gabriel caminhou até á porta e pegando a pesada estaca de madeira rústica, a
atravessou na porta, servindo de impedimento a qualquer passagem. Retornou para
perto de Brigith, que estava extremamente nervosa, e disse-lhe carinhosamente:
- Brigith , perdoai-me o atrevimento, Em atitude intempestiva, não hesitei em fazê-lo.
Precisava ver-te, falar contigo. Na lida do dia a dia, ansiei desesperado uma oportunidade
de te encontrar. Não houve, no entanto, dia que saísses do castelo e não consegui
suportar esta aflição que me vinha ao peito constantemente.
Silenciou, sem saber o que mais lhe falar. Brigith pegou-lhe as mãos grossas e dando-lhe
breve sorriso, balbuciou:
- Gabriel não digas mais nada ! Levanta-te e me dá um abraço, porque a ânsia que tinhas
em ver-me tinha também eu em encontrar-te.
Sem se soltarem as mãos que os uniam, ergueram-se e abraçaram-se. O calor invadialhes as emoções e num longo beijo confirmaram o que sentiam. Não houve mais palavras
e a noite passou imperceptível.
Deitados no leito, finalmente Brigith falou-lhe:
- Gabriel, que faremos agora de nossas vidas ?
- Haverei de casar-me contigo Brigith .
- Sabes tu, meu querido, que não nos é permitido tal coisa!
- Como não Brigith! Não entendes que nos amamos!
- Gabriel, sou a filha de Lorde Orlando, és tu um mero servo deste castelo...que será de
nós !?
- Brigith, nem que eu te leve para além das estrelas, mas sempre serás minha e eu
sempre serei teu. Compreendes o que te digo?
Os dois novamente silenciaram num forte abraço, quando foram abruptamente
interrompidos por apressados passos no corredor. Sobressaltado, Gabriel pulou da cama.
Teria que pensar rapidamente o que faria.
- Brigith abre-me a porta ! Porque a trancastes?
A voz era de Lana, e ainda que o apelo fosse escutado num sussurro, parecia nervosa.
Brigith extremamente desesperada pensou em fingir não escutá-la, mas sentia-se
preocupada com o que fazia a sua serva procurá-la tão tarde da noite.
- Brigith acorda ! Preciso falar-te !
Gabriel , rapidamente recolheu suas roupas, que se encontravam espalhadas próximo ao
leito, e sem se vestir, escondeu-se.
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Na masmorra, Gabriel permanecia na pequenina janela, intrigado com o extremo silêncio
na propriedade. Não havia atividades de lida nos campos. Nenhum sinal de vida. Os
servos não haviam saído para o cultivo. Os cavalos imponentes não coloriam as colinas.
Somente a bela paisagem se mantinha intocável e emudecida. O imenso pasto verdejante
lhe parecia infinito aos olhos. O rio plácido corria tranqüilo a delinear a planície. Sabia que
aquelas águas passavam defronte ao aposento de Brigith, quantas lembranças... O
silêncio imperava e ainda que a fragilidade lhe fosse extrema no corpo demasiadamente
magro, ali permaneceu em pé, tentando compreender aquele dia tão misterioso.
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Brigith vestiu-se depressa e cuidadosamente ajeitou as mantas em seu leito.
Propositadamente, balbuciou como se tivesse acabado de despertar:
- Lana, acalma-te que já estou indo abrir!
Retirou a tranca da porta com dificuldade, e abriu-a, certificando-se que Gabriel,
escondido, não poderia ser visto. Rapidamente a serva Lana entrou corada de aflição e,
temerosa de que alguém a tivesse visto no corredor àquele hora da noite, Pegou a mão
de Brigith e a encaminhou ao leito.
- Senhorita Brigith, sua mão está fria e trêmula...assustei-te? Deixastes a janela aberta?
Brigith sentou-se no leito apreensiva, percebendo que Lana se encaminhava para a
janela, a fim de verificar se estava aberta. Precisava evitar que o fizesse então falou-lhe:
- Lana, a janela está fechada! Minha mão está fria, porque me deixastes apreensiva,
acordando-me tão tardiamente na noite. Vem aqui agora, e conta-me o que te trouxe até o
meu aposento a esta hora em que todos já dormem!
Lana retornou imediatamente. Percebendo a apreensão da jovem, e colocou-se a seus
pés dizendo-lhe amigavelmente.
- Senhorita Brigith, pediste-me que se algo soubesse a respeito de teu noivo, deveria
comunicar-te imediatamente.
- Sim Lana, mas ao deitar-me dissestes que nada mais ouviras sobre ele.
- Soube há pouco, senhorita, que Lorde teu noivo chegará pela manhã. Os guerreiros de
teu pai o avistaram a algumas horas de distância. E vieram logo comunicar o senhor teu
pai.
Brigith, extremamente interessada nas novidades da serva, momentaneamente
esquecera-se que Gabriel, mantinha-se oculto. Implorou-lhe:
- O que mais sabes Lana, contai-me !
- Senhorita Brigith, soube ainda que vêm duas carruagens : numa vem o teu noivo e na
outra os pais dele. Os acompanham na viagem alguns serviçais a cavalo e algumas
carroças com mantimentos e baús de vestes.
Brigith apertando os dedos contra a palma de sua mão sentia-se angustiada e apreensiva,
e somente então se lembrou de Gabriel.
- Era só isto Lana?
A jovem serva lhe fez um rápido meneio afirmativo e Brigith olhou-a agradecida:
- Agradeço-te Lana. És-me sempre tão fiel e amiga! Agora deves ir, não desejo que te
vejam aqui a estas horas!
Lana levantou-se, fez-lhe uma reverência e caminhou para sair. Mas antes que o fizesse
voltou-se e indagou-lhe curiosa:
- Senhorita, porque trancastes a porta? Nunca o fazes !
Com extrema astúcia, Brigith falou-lhe delicadamente:
- Não sei o que houve, mas ouvi barulhos e tive receio!
- Senhorita Brigith, não te inquietes tanto, o castelo é moradia extremamente segura.
Dorme tranqüila!
Lana fez-lhe nova reverência e saiu. Tão logo o fez, Brigith imediatamente se apressou a
recolocar a tranca na porta. Quando se voltou, percebeu que Gabriel a observava
angustiado.
- Devo ir Brigith . Não posso me tardar mais aqui, a noite é veloz e logo amanhecerá.
- Gabriel, peço-te que não te vás ainda. Temos tanto a conversar!
Gabriel pegou-a delicadamente no colo, com imenso carinho e colocou-a deitada no leito,
deitando-se ao seu lado.
- Gabriel o que faremos?
O servo colocou-lhe os dedos sobre a sua boca, pedindo-lhe que nada mais falasse. E ali
se deixaram ficar, preocupados mas felizes com todo o amor que sentiam
II Parte : No Hemisfério do Livre Arbítrio
A madrugada já surgia forte quando Gabriel acordou assustado. Sentiu que Brigith, ao seu
lado dormia profundamente. Trajou-se rapidamente e vendo que não havia movimento no
corredor, tirou a tranca da porta e saiu, fechando-a vagarosamente. Caminhou veloz pelo
corredor ainda escuro, como se desejasse voar. Desceu a imensa escadaria e alcançou o
salão principal. Não poderia sair por ali, naquele portal, já que sempre se mantinham
alguns guerreiros em vigília. Facilmente alcançou a copa e de lá, sem dificuldade, teve
acesso aos fundos do castelo.
Aproveitou-se da madrugada, ainda escura, e rastejou para que a guarda não o visse.
Conseguiu alcançar o celeiro sem problemas e quando se aproximava do feno, uma mão
tocou-lhe quente no ombro , assustando
- Onde estivestes meu filho? De onde voltas tão tardiamente? Onde dormistes Gabriel,
está quase amanhecendo!
A voz de Manco, saia trêmula e apreensiva.
- Manco meu bom amigo, me dê um abraço.
Gabriel voltou-se, abraçando fortemente aquele homem, que lhe era como um pai.
- Nada me perguntes Manco, preciso muito de tua ajuda!
Manco prontamente falou-lhe:
- Que desejas tu Gabriel ?
- Preciso que me consigas duas cordas grandes de laço, um lenço negro, um chapéu de
palha, e um facão.
-Por Deus Gabriel o que desejas tu fazer com isto?
-Confia em mim Manco, auxiliai-me no que te peço, pois a minha vida e a minha felicidade
dependem disto.
Manco ainda que desconfiasse de suas intenções, não lhe negaria o auxilio, e apressouse a conseguir o material.
Enquanto Manco se empenhava na tarefa que lhe fora incumbida, Gabriel aproximou-se
de um forte cavalo, e balbuciou-lhe baixinho:
-Serás veloz como uma águia e forte como a mais valente das feras...
Alisou-lhe o pelo negro e o animal relinchou, como que ciente do que Gabriel lhe pedia.
Gabriel aproximou-se do feno e sob este tirou um grande arco, que confeccionara
cuidadosamente, e também um grande numero de flechas, arduamente trabalhadas no
fogo, nos seus momentos de folga.
Em poucos instantes, Manco apareceu ofegante, trazendo-lhe o material que pedira.
Gabriel rapidamente sem nada lhe dizer, pegou os pertences e os colocou na montaria.
Montou colocando habilmente o lenço negro sobre a face e o chapéu de palha sobre os
cabelos, tomando cuidado para escondê-los.
Olhou Manco, assombrado com o que via e disse-lhe:
-Não temas, Manco! Voltarei quando o sol estiver alto. Se Philip aparecer diz-lhe que fui
ás colinas, pegar algumas ervas para ti. Confio em ti amigo!
Dizendo isto, Gabriel galopou velozmente margeando o rio, para que não fosse visto
pelos guerreiros. Após alcançar as colinas, as transpôs em velocidade contínua até
alcançar a estrada. Estava convicto de que não poderia viajar pelo caminho aberto, e
rapidamente se ocultou na vegetação, margeando a estrada.
Já estava clareando, quando ouviu a aproximação dos viajantes. Acariciou o cavalo
ofegante, agradecendo-lhe o esforço, e apeou da montaria. Estavam a algumas horas do
castelo. Gabriel ocultou-se na vegetação e observou os viajantes que se aproximavam.
Quatro guerreiros vinham na frente ,em seguida as duas carruagens e, atrás, os sete
servos e as carroças. O trotar dos cavalos dos viajantes era lento, possivelmente por
estarem em final de viagem e para que os nobres pudessem repousar um pouco.
Gabriel lembrou-se que somente os guerreiros andavam armados e estes seriam o alvo
de suas atenções, ainda que não intencionasse matá-los.
Gabriel tinha um coração bom, Nunca se desentendera com os seus companheiros de
lida e nunca discutira com ninguém. Seria incapaz de ferir quem quer que fosse. Mas
agora com certeza, faria qualquer coisa para evitar aquele noivado.
Agindo impulsivamente e ardilosamente manipulado por sua paixão, novamente retomou
a montaria e alcançou a estrada um pouco adiante. Apeou rapidamente do cavalo e
pegando uma das cordas, laçou um pequeno arbusto numa das margens da estrada.
Puxou-o para que se vergasse até á outra margem e lá amarrou a corda fortemente em
outra arvore mais robusta. "Isto lhes atrasará o percurso" , pensou. Achando-o, no entanto
insuficiente, com agilidade e muita força recolheu galhos, pedras e troncos em meio á
vegetação e com estes obstruiu melhor a passagem naquela parte da estrada. Procurou a
copa de uma arvore frondosa onde pudesse se ocultar sem ser visto, mas da qual
pudesse ver e fazer mira. Logo encontrou lugar apropriado e acomodando-se em um
galho, sustentou o arco e preparou a primeira flecha a ser arremessada. Havia ocultado o
cavalo na vegetação e ali ficou imóvel, aguardando que os viajantes surgissem. Não
tardou a que estes se aproximassem. Os guerreiros astutos verificaram a obstrução da
estrada e prontamente ergueram as suas espadas, cientes de que poderia ser uma
emboscada. Mas como não ocorria qualquer ataque, após alguns segundos, concluíram
ter sido uma mera brincadeira de crianças e ordenaram aos serviçais que liberassem o
caminho, retirando os obstáculos, Enquanto isto ficaram em alerta sobre suas montarias.
Repentinamente, um belo jovem saiu da segunda carruagem indagando sonolento:
-Porque paramos ?
Um dos guerreiros cavalgou prontamente até o jovem, explicando-lhe :
A estrada está obstruída com alguns galhos e pedras, que os serviçais já retiram -Senhor
Lorde, é prudente que não se exponha.
Gabriel na copa da frondosa arvore, com seu arco em perfeita mira, recordou-se das
palavras de Lana: “Uma carruagem leva os pais...a outra leva Lorde" ...Sim, aquele era o
pretenso noivo de Brigith. Gabriel segurou firmemente o arco e fazendo mira aLorde,
atirou rapidamente a primeira flecha.
A flecha rápida e certeira feriu o peito do jovem, que caiu imediatamente. O guerreiro que
estava próximo a si, apeou da montaria para auxiliá-lo e gritou aos demais:
-É uma emboscada, precisamos sair daqui!
Os outros guerreiros, atônitos, tentavam verificar em meio á vegetação de onde provinha
o ataque. Gabriel imediatamente desferiu nova flecha que, novamente, foi certeira em seu
alvo, e atingiu Lorde no pescoço. Os guerreiros sentiram-se impotentes, e não conseguiu
visualizar o inimigo. Amedrontados com o misterioso ataque, colocaram o jovem Lorde na
carruagem e como os servos já haviam desobstruído a estrada, ordenaram retirada de
fuga. Lorde havia se ferido com seriedade e precisavam alcançar breve o castelo para
que pudesse ser socorrido. Quando escutaram os gritos dos servos, os pais do jovem,
sem saírem de sua carruagem, indagavam suplicantes para que os guerreiros
esclarecessem o que ocorria, mas não havia tempo para respostas.
Mal sabiam eles, que seu único filho, agonizava. Duas flechas lhe atravessavam o peito e
o pescoço, em sérios ferimentos.
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Gabriel começava a ficar extremamente preocupado. O sol já alto ia e nenhum movimento
ainda existia nos campos. Um pressentimento assustador sufocou-lhe a respiração "E se
todos se foram...Como ficaria ali abandonado naquela masmorra fria...sem água...sem
alimento..." Caminhou até á porta com dificuldade, estava demasiadamente fraco e
debilitado. Juntou as forças que ainda possuía e gritou em voz que lhe saiu rouca e fraca.
Alguém aí ? Preciso de ajuda !
Mas as respostas não lhe vinham, como não tinham vindo todos aqueles anos em que
implorava um diáogo. Caminhou novamente até á janelinha e ali permaneceu imóvel e
angustiado.
Alguém aí? Respondam pelo amor de Deus!
Até o forte sol majestoso parecia lhe negar qualquer informação. Os campos verdes, o rio,
as colinas, pareciam todos cúmplices de uma trama terrível.
Sua vida naqueles anos na masmorra parecia infindável, mas tinha o alento e o conforto
de ver que a vida prosseguia na propriedade. Mas agora tudo era tão estático e a vida
parecia tão inexistente.
As lágrimas desceram-lhe às faces sujas e não teve forças de erguer as mãos para secálas.
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Gabriel esperou tranqüilamente que os viajantes se afastassem definitivamente, então
desceu da árvore. Recolheu a corda, que os servos ali haviam deixado largada, ainda
entrelaçada no arbusto, pegou o cavalo e montando-o afastou-se em direção oposta ao
castelo, a caminho das enormes colinas. Aproximando-se de um grande rio, apeou da
montaria e permitiu que o cavalo saísse a pastar livremente. Com imenso pesar, jogou
nas águas correntes o seu arco e as flechas que trouxera consigo. Tirou o lenço do rosto
e o chapéu que lhe aprisionavam os cabelos e ali também os jogou. Guardou consigo as
cordas e a faca, necessário seria devolvê-las a Manco. Estava exausto. Retirou as roupas
e banhou-se. Somente então, deitou-se para repousar um pouco. Olhou o céu, o sol já ia
a meia distância e por isto não poderia dormir. Após descansar um pouco, ergueu-se e
montou, continuando o longo caminho para as colinas, onde pegaria as ervas para
Manco.
Os viajantes finalmente chegavam ao castelo de Lorde Orlando. Os guerreiros
prontamente apearam das montarias e caminharam na direção dLorde, que os aguardava
defronte á entrada principal do castelo. Fazendo breve reverência um dos guerreiros, lhe
falou aflito:
-Senhor Lorde Orlando, enorme problema tivemos em sua propriedade. Lorde Henri II
encontra-se muito ferido.
Lorde Orlando não conseguia compreender o que o guerreiro lhe dizia. Nunca havia tido
qualquer acidente em sua propriedade e muito menos nas proximidades do castelo. As
duas carruagens aproximaram-se do grande portal e um dos serviçais rapidamente abriu
a porta de uma delas, e em reverência curvou-se. Da mesma saiu um casal
extremamente elegante e requintadamente trajado. Mas as fisionomias apresentavam
extremo cansaço pelos inúmeros dias de viagem e apreensão pelo incidente na estrada,
que ainda não compreendiam. Outros serviçais imediatamente auxiliaram a carregar
Lorde Henri II, que se encontrava completamente ensangüentado. Este, ainda consciente,
olhou ao redor e vendo os seus pais perdeu os sentidos. O sangue lhe jorrava intenso dos
ferimentos e o assombro foi geral por parte de todos que o viam, principalmente de seus
pais desesperados.
Lorde Orlando, perplexo com tudo, amparou o Duque Henri I e a sua esposa Duquesa
Celestine, e os encaminhou ao mesmo aposento para onde o jovem ferido era levado.
Somente ali estes puderam averiguar a gravidade do estado de seu filho. No imenso
salão de festas, o murmúrio havia silenciado, o que deveria ser um encontro agradável e
festivo, agora se tornara um momento de assombro entre a vida e a morte.
Lorde Orlando rapidamente ordenou ao capataz Philip que chamasse o velho Manco,
pessoa conceituada no castelo por seus dons de cura. E Philip sem demoras pôs-se a
caminho do celeiro.
-Manco onde estás?
O velho inquietou-se com o chamado de Philip, temendo que fossem más notícias do seu
menino Gabriel.
-Aqui estou Senhor Philip! Em que posso lhe ser útil?
-Manco apressa-te, precisas acompanhar-me, temos problemas no castelo.
Manco nada mais indagou, mas deu forte suspiro de alivio, ciente de que não eram
problemas relacionados a Gabriel.
Rapidamente acompanhou Philip até o castelo e de lá até os aposentos onde se
encontrava Henri II. Reverenciando humildemente a nobreza que ali se encontrava,
aproximou-se do leito onde estava o jovem. Observou que aquele nobre esvaia em
sangue. O silêncio no aposento somente era interrompido pelo respirar asfixiado dele e
pelos soluços de sua mãe Celestine. Manco cuidadosamente tateou os ferimentos.
Petrificado ficou por alguns segundos, ao reconhecer aquelas flechas. Gabriel, o seu
menino havia sido o autor daquele imenso sofrimento. Tentou se restabelecer da imensa
dor que agora também o asfixiava. Desejava afastar de si os pensamentos terríveis que
lhe vinham á mente, “Poderiam os guerreiros do Duque Henri I ter matado Gabriel? Talvez
Gabriel também se esvaísse em sangue em algum canto daquela propriedade". Os
pensamentos assustadores rapidamente lhe foram interrompidos.
-Então velho, que podes fazer por meu filho?
Manco despertou novamente para os ferimentos, seria necessário tirar as flechas que
ainda se encontravam cravadas no peito e pescoço. O jovem mantinha-se sem sentidos.
-Senhor Duque, preciso tirar imediatamente estas flechas para tentar estancar o sangue
que jorra e somente então poderemos tratar os ferimentos.
O Duque Henri I olhou-o em desconfiança, mas o médico do castelo havia se ausentado e
somente Manco poderia tentar salvar seu filho. Um dos guerreiros já cavalgava até á
propriedade de Adredanha para trazer o médico de volta, mas eram longos dias de
viagem. O Duque hesitante olhou para Lorde Orlando, que indagou a seu servo:
-De que precisas Manco?
Manco olhou Lorde Orlando sempre humilde e falou-lhe:
-Preciso de faca pequena e muitos panos limpos e úmidos. Será necessário rasgar-lhe a
roupa, para que não se mova o corpo demasiadamente.
Lorde Orlando imediatamente ordenou a dois serviçais que tirassem as vestes do jovem
com extremo cuidado. A Duquesa Celestine aos prantos foi retirada do aposento e
acompanhada ao salão de festas onde se encontravam todos aflitos. Os serviçais
terminaram de rasgar as vestes do jovem. O corpo robusto, mas delicado, parecia perder
a vida a cada instante que passava. Outro serviçal trouxe a Manco uma bacia metálica,
contendo água e panos limpos. E também lhe entregou um pequeno punhal.
No aposento permaneceu somente Manco, um serviçal, o Duque Henri I e Lorde Orlando.
Manco, com um pequeno gesto, pediu aos nobres que se distanciassem um pouco do
leito e com as suas mãos leves fez um pequeno corte no peito do jovem e extraiu a flecha
intacta. Desejava poder sumir com aquela prova do crime do seu menino, mas não tendo
como fazê-lo, deixou-a cair na bacia metálica. Olhou então o pescoço do jovem. Como
poderia tirar a flecha que se encontrava atravessada próximo á nuca? Novamente, com
as mãos muito leves, cortou a extremidade pontuda e depois num rápido e preciso
movimento puxou a outra extremidade. Os ferimentos, livres das flechas, liberavam o
sangue com maior impulso. Manco apressou-se a estancar o sangue com os panos
úmidos.
Apreensivo falou:
-Preciso de minhas ervas!
Lorde Orlando imediatamente prontificou-se:
-Dizei Manco, onde encontrá-las, e pedirei a Philip que lá vá prontamente.
-Senhor Lorde, perdoai-me a ousadia, mas eu mesmo precisarei escolhê-las. Enquanto lá
vou com brevidade, necessário que um serviçal se incumba de trocar os panos com
freqüência até que volte.
Lorde Orlando consentiu que Manco saísse, ainda que se mostrasse demasiadamente
apreensivo com a demora nos cuidados do jovem. Manco retirou-se do aposento e
desceu a longa escadaria apressado. Tinha algumas ervas no celeiro, mas essas não
seriam suficientes, e há muito Gabriel não as colhia nas colinas. O ensinara desde
pequeno, onde procurá-las e para que serviam... onde estaria o seu aprendiz?
Lorde Orlando pediu que te acompanhasse Manco, para que não te demores.
Era Philip que se aproximava de Manco próximo ao portal do castelo. O velho hesitou
temeroso com aquela companhia. Com certeza Philip indagaria por Gabriel.
Entraram no celeiro e Manco suspirou aliviado ao ver Gabriel escovando seu cavalo com
tranqüilidade. Sentiu enorme impulso de abraçá-lo e abençoá-lo por encontrá-lo bem e
vivo. Mas ao mesmo tempo desejava lhe recriminar o crime e lhe indagar porque fizera
aquele absurdo com um jovem tão bonito e tão cheio de vida. Não ousaria dizer aos
nobres, mas por sua enorme experiência, aquele jovem não sobreviveria aos enormes
ferimentos e á grande perda sangüínea. Gabriel caminhou em sua direção dizendo-lhe
astutamente:
-Manco, trouxe-te as ervas que precisavas, demorei um pouco porque foi muito difícil
encontrá-las na vegetação.
Manco olhou-o friamente, desejando puni-lo.
-Gabriel, temos um enfermo no castelo, e elas chegaram-me em proposital hora!
Gabriel prontamente as entregou a Manco e o velho rumou apressadamente para o
castelo na companhia de Philip. Gabriel vendo-os se distanciarem, suspirou aliviado e,
exausto, deitou-se no feno e dormiu.
Manco trabalhou arduamente, amparando a vida daquele jovem, ainda que soubesse que
não poderia salvá-lo. Aplicava continuamente as ervas nos ferimentos e o sangue havia
sido estancado, mas a fragilidade do jovem era enorme.
Como o rapaz dormia mais sereno, os nobres se retiraram um pouco do aposento e
foram-se encontrar com os outros no salão de festas. Lorde Orlando falou-lhes:
- Lamentável o acontecimento em nossa propriedade, haveremos de descobrir os
criminosos. Lorde Henri II repousa mais sereno. Oremos a Deus para que se restabeleça.
Todos mantiveram-se em silêncio. A Duquesa Celestine continuava inconsolável, sendo
amparada por Joane. Brigith alheia a tudo se postara na janela, desejando ver o servo
Gabriel. Queria lhe contar o que ocorrera, ainda que presumisse que já soubesse através
de Manco. Sabia que o velho cuidara de Gabriel desde que a sua mãe morrera após o
parto, e que seu pai era desconhecido na região.
Num outro lado do salão se encontravam Duque Henri I, Lorde Orlando, e os filhos Arthur
e Anderson. Treinados em estratégias de defesa e ataque, tentavam concluir uma lógica
para o ataque que havia acontecido na estrada. Inúmeras indagações eram formuladas.
Porque somente um dos viajantes havia sido ferido? Porque o ataque não havia atingido
os guerreiros? Se fossem salteadores o teriam feito, mas não chegavam a conclusão
alguma. Lorde Orlando juntou alguns de seus guerreiros e ordenou-lhes que
vasculhassem a estrada e todos os arredores do castelo, temia pela segurança de sua
família e de seus convidados. O sol já ia alto quando todos finalmente se reuniram em
refeição rápida e silenciosa.
No aposento, Manco tratava os ferimentos de Henri II continuamente. A respiração do
rapaz estava cada vez mais lenta.
Manco, muito preocupado com as flechas que ainda se encontravam na bacia metálica,
pediu a um serviçal que o auxiliasse a limpar o aposento. Com cuidado extremo, trocaram
as mantas sujas do leito e agora o jovem Lorde repousava em leito limpo e alvo. Pegaram
a bacia com os panos e as flechas e Manco pediu aos serviçais que jogassem tudo fora,
inclusive as muitas ervas que já haviam sido usadas.
O dia passou veloz e Manco sentia-se extremamente cansado. A noite já cobria toda a
propriedade quando o Duque Henri I entrou no aposento indagando-lhe:
-Como está meu primogênito?
Manco levantou-se fazendo breve reverência.
-Fiz tudo o que pude pelo jovem Lorde, agora somente Deus poderá auxiliá-lo Senhor
Duque.
O Duque olhou o filho imóvel no leito e ordenou:
-Podes retirar-te velho, desejo ficar a sós com meu filho.
Manco prontamente obedeceu, retirando-se do aposento, e então o Duque Henri I
aproximou-se do leito, ajoelhou-se e chorou. A dor daquele pai tinha que ser discreta e
sutil, os nobres deveriam agir com total força e insensibilidade. Por isto pedira para ficar
sozinho, por que somente então poder prantear o imenso sofrimento que compartilhava
com o seu primogênito.
O seu filho, por alguns instantes, entreabriu os olhos, esboçou um sorriso forçado e num
suspiro profundo perdeu a vida física. Manco, ciente de que não tardaria o desenlace,
prostrou-se na entrada e aguardava o chamado do nobre.
O Duque, da imensa dor que sentia, ergueu-se em ira e amaldiçoou o agressor. Pediu a
um serviçal que ali também estava na porta, para avisar Lorde Orlando do falecimento de
seu filho, e este o fez comunicando a todos no salão.
O castelo ficou negro tal qual a noite escura. A tarefa de Manco havia finalizado e
imediatamente foi dispensado por Lorde Orlando. Apressou-se em ir ao celeiro, tinha
muito a falar com Gabriel.
Encontrou Gabriel dormindo profundamente no feno, inocente como a mais pura das
crianças. Manco sentia-se profundamente infeliz. Ele o educara carinhosamente e o
doutrinara na lei maior de amor a Deus e a todos os seres.
Sentou-se próximo a ele e tateou-lhe os cabelos dourados. Gabriel revirou-se e entreabriu
os olhos. Olhou a profunda tristeza no olhar de seu velho amigo e tutor e balbuciou ainda
sonolento:
-Manco... Perdoa-me !
Manco nada lhe disse, simplesmente olhava-o implorando explicações.
-Não compreendes Manco, Brigith não poderia casar-se com aquele Lorde. Precisava
atrasar a cerimônia. Ela é minha!
Então Gabriel narrou pausadamente a noite que passara com Brigith. Manco
inconformado falou-lhe com voz trêmula em compaixão:
-Agistes cego de amor...não, isto não poderá chamar-se de amor. Agistes cego de paixão
meu bom Gabriel. Conseguistes o que ambicionavas, não só atrasastes a cerimônia, mas
eliminastes esta possibilidade definitivamente.
Gabriel não conseguia compreender e Manco num sussurro balbuciou:
-Matastes o noivo!
Dando uma pausa para controlar a imensa dor que lhe dificultava a fala continuou:
-Esqueces-te tu, no entanto Gabriel, que haverá outros noivos? Matarás a todos? Te
perdoará Brigith quando souber de teu ato tão intempestivo??
Gabriel perante as circunstancias que Manco lhe apresentava, por alguns instantes
sentiu-se culpado. Lembrou-se do jovem forte e sadio a quem tirara a oportunidade á
vida. Mas não estava arrependido. Não intencionara matá-lo, mas finalmente Brigith
estava livre temporariamente de um compromisso de matrimônio. Teria enorme tempo a
encontrar soluções para seu amor. Abraçou Manco carinhosamente e lhe disse:
-Perdoa-me amigo, amanhã saberei como agir.
Ambos ficaram pensativos. Gabriel dormiu com brevidade enquanto o velho Manco se
amargurava com a cumplicidade num ato tão criminoso de seu menino
**********************************************************
O sol havia declinado sua majestade. Gabriel, impotente, ainda se segurava nas grades
da pequena janelinha. No trigésimo quinto ano de vida suas forças lhe pareciam
insuficientes a sustentar-lhe o corpo magro. Deixou-se ceder e ajoelhou-se no chão de
pedra, sempre tão frio e tão fétido. Amparou o rosto envelhecido pelos quatro anos ali
enclausurado em maus tratos. Sentia-se desfalecer pela fraqueza que lhe arrebatava o
corpo. Parecia enlouquecer na solidão persistente, que sofria todos os dias. O alimento
que lhe chegava era insuficiente e a água era insalubre. Mas agora, nem a insuficiência
de alimento lhe fazia falta. Acostumara-se com o pouco. Mas sentia imensa sede. Os
lábios ressecados rasgavam-se freqüentemente, trazendo-lhe dor. No corpo as crostas se
sobrepunham, sentia-se sujo. Por vezes quando observava o pasto verdejante da
pequena janelinha, o rio lhe trazia enorme necessidade de banhar-se. Nos quatro anos
que ali estava por vezes lavava o rosto com a água insalubre que lhe era dada a beber.
Outras vezes quando a chuva abençoava a propriedade, expandia as palmas através das
grades e com imensa dificuldade banhava-se um pouco. Desejaria haver chuva todos os
dias, mas o clima na região era árido e raramente isto ocorria. Freqüentemente os
roedores, que compartilhavam a pequena masmorra, em visitas constantes e noturnas,
vinham-lhe roer as crostas de sujeira que se espalhavam pelo corpo. Isto não mais lhe
incomodava, e sentia-se agradecido porque o auxiliavam. As feridas eram freqüentes e se
revezavam continuamente numa reação de cura e dor tão inexplicável. Os cabelos
dourados e extremamente ondulados da juventude, haviam se tornado um emaranhado
duro e sujo. A barba e bigode também haviam crescido em demasia, o incomodando com
coceiras. Não mais sentia o mau cheiro que exalava nele e no ambiente, acostumara-se.
No entanto, olhando-se, sentia imensa lástima do ser que se tornara. Fazia enorme força
para manter-se acordado, para perceber qualquer movimento no castelo. Mas o silêncio
se mantinha absoluto e assustador, a extrema fraqueza o venceu, e ele adormeceu.
Quando a noite já ia alta, despertou abruptamente com o trotar de cavalos se
aproximando do castelo. Levantou-se com dificuldade, e na escuridão, viu vultos a galope
e em grande quantidade. Por alguns instantes esqueceu a debilidade de seu corpo,
passou a língua nos seus lábios desejando umedecê-la e assim poder gritar, mas não
conseguiu. A voz não lhe obedecia. Escutou enorme barulho de lâminas afiadas que se
debatiam em guerrilha. Assombrado percebeu que o castelo estava sendo atacado.
**********************************************************
Os dias passaram silenciosos no castelo de Lorde Orlando. Gabriel não vira mais a jovem
Brigith, ainda que sempre a esperasse despertar no seu posto de observação.
Podia ver quando a janela de seu aposento se abria, mas a esperança de vê-la se
frustrava sempre. Soubera através de Manco, que os nobres haviam desistido de tentar
compreender o ataque e a morte de Henri II ficara sem explicações razoáveis.
Manco, que sempre fora pessoa alegre e expansiva, havia se tornado silencioso e triste.
Pouco conversava com Gabriel, somente respondendo-lhe algumas indagações.
Naquele dia o Duque Henri I e a esposa Duquesa Celestine viajariam de retorno á sua
propriedade na corte. Aprontaram-se as carruagens e as bagagens foram colocadas nas
carroças. O Duque saiu do castelo sem cerimônias, acompanhado da esposa, e
acomodou-se nas carruagens após breve meneio de despedidas com os rostos. Pouco
havia a ser dito. Aquela propriedade havia lhes sido sinônimo de desgraça e sentiam-se
desejosos de deixá-la. Nela haviam perdido o seu único filho, Henri II, o seu herdeiro. Não
mais havia esperanças de substituí-lo, há muito esperavam a benção de novos filhos e
agora a Duquesa Celestine em idade avançada não mais poderia conceber.
Deixavam para trás a esperança da continuidade do nome de família, para quem
deixariam seus títulos. Ali deixavam , no castelo de Lorde Orlando, a alegria da família, os
ideais, os objetivos. Sentiam-se furtados de toda a felicidade.
Lorde Orlando os olhava deprimido. Naqueles intermináveis dias de luto não soube como
consolar-lhes tamanha perda. Desejava poder apagar todo o trágico acontecimento,
sentia-se impotente a auxiliá-los. Acenou constrangido, desejando-lhes um bom retorno. E
num imenso silêncio ainda fúnebre os convidados partiram.
Quando os viajantes sumiram na estrada, Lorde Orlando entrou no grande salão e
acomodou-se próximo a seus familiares, dizendo-lhes:
-Sinto-me exausto com esta enorme tragédia. Foram inúmeros dias de suplício e dor para
todos. Não consigo compreender o que houve como poderei punir culpados?
Respirou profundamente, observando a esposa Joane que o observava silenciosa, e os
filhos Anderson, Arthur e Brigith. E depois continuou:
-Falarei imediatamente a Philip para providenciar a nossa viagem, iremos passar uma
temporada na propriedade de Adredanha. Somente assim nos libertaremos um pouco de
tão trágico acontecimento.
Sua esposa Joana, fez-lhe um meneio de concordância, e Lorde Orlando olhou pensativa
para a filha Brigith, que se encontrava extremamente pálida, dizendo:
-Em Adredanha poderei reafirmar novo compromisso de matrimônio para nossa filha
Brigith. Está com quinze anos e não podemos mais atrasar uma união.
Lorde Orlando levantou-se e caminhou até um dos vitrais. Todos se mantinham
silenciosos escutando-o
-Há muito não retorno á propriedade de Adredanha. Haverá muito a ser feito por lá.
Retiro-me para dar as ordens a Philip. Providenciem vossas bagagens. Iremos pela
manhã.
Prontamente Lorde saiu em caminhar apressado. Brigith não conseguia erguer-se, sentiase atônita e temerosa com os dizeres de seu pai.
Haviam se passado dezesseis dias desde a noite que passara com Gabriel. Sentia-se
saudosa de seu rosto e de seu olhar. O coração pulsava-lhe forte nas doces lembranças.
Sentia enorme vontade de vê-lo, os longos dias de luto tinham sido restritos a orações de
vigília, raramente saíra de seu aposento. E agora não tardariam a ir para uma propriedade
que ficava a muitos dias de viagem.
Sentia-se fraca e febril. Olhou os seus irmãos mais novos que dialogavam animadamente
sobre o retorno a uma propriedade que já conheciam. Ela, no entanto, nunca lá fora.
Olhou também para sua mãe, sempre pensativa e distante ou inúmeras vezes ausente do
convívio familiar. Falou-lhes:
-Não escutaram o que o Senhor vosso pai falou? Deverão recolher-se a vossos
aposentos e escolher com vossos serviçais o que desejam levar na viagem.
Brigith num impulso encheu-se de coragem e pediu-lhe:
-Senhora minha mãe, gostaria imensamente de poder sair um pouco. Sinto falta do verde,
do lago... Não poderia cavalgar um pouco?
A mãe a olhou carinhosamente.
-Poderás sair um pouco minha filha, mas deverás levar teus irmãos contigo. No entanto
não devem se demorar, a refeição não tardará a ser servida.
Anderson e Arthur sentiam-se felizes pela boa idéia de sua irmã. Teriam liberdade
temporária. Aproximaram-se radiantes de Brigith. Anderson com seus treze anos de
idade, era um rapaz alto e robusto e Arthur com seus dez anos de idade, era um rapaz
alto, mas franzino.
Os três saíram da sala, despedindo-se da mãe que novamente recolhia-se ao seu
aposento. A nobre dama pensava o que seria de si ou de seu esposo se fosse um dos
seus filhos o atingido e isto lhe deu enorme aperto no peito. Colocou-se em oração,
agradecendo a Deus a benção dos filhos amorosos e do marido carinhoso. Sentia que
nada lhe faltava e era feliz.
Na entrada do castelo, Brigith respirou profundamente. Avistou as colinas, as campinas
verdejantes e o rio que corria veloz. Respirou profundamente o ar puro que lhe chegava
numa brisa fresca. Os seus irmãos apressaram-se a pedir aos serviçais que lhe
trouxessem os cavalos. Iriam até o lago. Um dos serviçais entrou apressado no celeiro:
-Manco, os meninos desejam passear. Providenciem os cavalos para levá-los até o lago.
-Gabriel, que ali também estava pensativo, deu um sobressalto.
Devemos providenciar que montarias?
-O cavalo do Senhor Anderson, do Senhor Arthur e da Senhorita Brigith!
Gabriel imediatamente colocou-se a selar as montarias. O coração pulsava-lhe
fortemente. Sentia enorme saudade de Brigith, mas como falar-lhe a sós na companhia
dos irmãos? Manco observava-o silencioso e quando o servo se afastou falou-lhe:
-Gabriel, escuta bem o que te falo, agistes mal, feristes e matastes um semelhante,
trouxestes a desgraça e dor a pais inconsoláveis, Eu fico te observando e percebo que
não te arrependestes. Sou como um pai para ti, eduquei-te e criei-te carinhosamente.
Não deve um homem almejar objetivos aniquilando os do próximo. Estás errado e temo
por ti. Compreende o mal que fizestes e redime-te de tua culpa reparando-o, e pedindo
perdão a Deus, por atos tão impensados e injustificáveis.
Gabriel parecia não ouvir nada do que lhe dizia Manco. Estava distante em seus
pensamentos, mas Manco ignorando continuou:
-Em tua persistência em conduta errada meu filho, prevejo desgraça e imenso sofrimento
para ti.
Gabriel voltou-se contrariado e dizendo hostilmente:
-Manco, eu a amo. É a mulher da minha vida. Como posso eu permitir que se case com
outro?
-Não precisavas matar por isto! Se ela te amar como a amas, haverá de largar o titulo e a
riqueza para acompanhar-te Gabriel!
-Falas de fuga, velho?
-Digo-te Gabriel, que o mais sensato é fugir e assumir o vosso amor distante, do que se
rebelar contra o mundo e matar todos que ambicionem separar-vos. Se te ama igual me
dizes, o aceitaria.
-Pensarei no que me dizes Manco, mas deixai-me com meus afazeres que tenho muita
pressa.
Gabriel novamente entregou-se a seus pensamentos, cuidando velozmente dos animais.
Rapidamente os cavalos eram encaminhados ao castelo.
Gabriel avistou Brigith e sentiu que o corpo lhe estremeceu. Ainda vestia o negro, mas os
cabelos cacheados realçavam-lhe a beleza assim como a pele extremamente clara.
Sentia enorme vontade de correr e abraçá-la. Aproximando-se os olhares se entrelaçaram
em cumplicidade e amor fiel. Com a ajuda dos servos, os três nobres montaram. Em
extrema angústia a vontade de falar-lhe o estrangulava e sabia que a jovem também
desejava fazê-lo, o vira em seus olhos.
Vendo-os distanciarem-se sem a companhia de serviçais, Gabriel rapidamente dirigiu-se
ao celeiro. Montou num veloz cavalo e afagou-lhe carinhosamente o pelo. Manco
prontamente tentou evitar que saísse:
Gabriel não vás, precisas dominar os sentimentos e não ser dominado por eles!
Mas Gabriel não desejava escutá-lo, e saiu vagarosamente do celeiro percebendo que os
três nobres já se distanciavam nas colinas. Um serviçal correu em sua direção e falou-lhe:
-Gabriel, aonde vais?
Gabriel respondeu-lhe prontamente.
-Irei ás colinas pegar algumas ervas para Manco.
O serviçal manteve imóvel próximo a si:
-Philip ordenou que preparem a viagem da família para amanhã cedo. Irão para a
propriedade de Adredanha . Necessário que se aprontem as três carruagens e duas
carroças.
Gabriel sentia-se irritado com a presença do serviçal, que lhe dava ordens. Indagou
enfurecido:
-Quem vai?
O servo humilde prosseguiu:
-Vão todos da família, alguns servos do castelo e alguns guerreiros.
Gabriel explicou-lhe que não se demorava e colocou-se em galope apressado sob os
olhares de Manco e do servo. Sentia uma enorme ira invadir-lhe o corpo. Indagava-se
porque todos intencionavam separá-lo de seu grande amor. Porque não poderia vive-lo
com serenidade? Rapidamente Gabriel avistou os três e reduziu o galope para não ser
visto. Aproximavam-se do lago. Chegando lá, os rapazes e apearam das montarias e
sentaram-se próximos ao lago. Brigith parecia triste e tensa, também havia apeado mas
andava continuamente de um lado para o outro. Gabriel resolveu também apear da
montaria, e se ocultar em alguns arbustos.
Os pensamentos lhe vinham velozes e confusos. Sabia que precisava adiar aquela
viagem. Percebeu que os rapazes haviam se levantado e distanciavam-se dos cavalos,
assim como Brigith.
Rapidamente e sem pensar nas conseqüências, Gabriel se aproximou do cavalo de
Anderson e soltou-lhe a cela. Retornou para trás dos arbustos e lá permaneceu. Brigith
caminhava silenciosamente próximo aos irmãos que brincavam continuamente.
O sol já alto ia quando os três resolveram retornar ao castelo para a refeição. Montaram
nos seus cavalos e Anderson não percebeu a cela solta.
Gabriel também montou, mas foi em sentido oposto subindo as colinas para pegar as
ervas que lhe eram a desculpa aquele tempo ocioso. Brigith, e Arthur desciam as colinas
num galope apressado, quando perceberam que Anderson era violentamente
arremessado para longe do cavalo.
A forte queda o fez rolar consecutivamente no campo verdejante. O cavalo, livre do peso,
continuou veloz em direção ao castelo. Brigith, extremamente assustada, cavalgou com
Arthur em direção do irmão. Apeou da montaria com agilidade e abaixou-se próximo a
Anderson.
-Estás bem Anderson?
O rapaz, esguio e robusto, se encontrava inconsciente e completamente contorcido.
Brigith desesperou-se.
-Arthur, depressa vá até o castelo e chame o senhor nosso pai. Eu ficarei aqui com
Anderson.
Enquanto Arthur fazia com brevidade o que lhe pedira, Brigith sentiu que as lágrimas lhe
afloravam intensas nas suas feições. Sentia que seu irmão não estava bem.
Logo chegou o seu pai, acompanhado de Arthur e Philip.
-O que houve minha filha ?
Eu não sei senhor meu pai, ele caiu do cavalo, rolou varias vezes no campo e agora não
acorda.
Lorde Orlando aproximou-se do filho Anderson, que se mantinha desacordado e
contorcido e passou-lhe a mão no rosto dizendo:
-Responde-me meu filho... Acorda !
Porém o jovem, não mostrava qualquer sinal de vida. Então Lorde,com auxilio de Philip, o
colocou cautelosamente no dorso de um dos cavalos. O menino Arthur aguardaria alguém
lhe pegar, enquanto Brigith, Lorde, Philip e Anderson desciam as colinas num galopar
lento.
No castelo Anderson foi imediatamente levado aos seus aposentos. Brigith correu a
abraçar a sua mãe e contar-lhe o acontecido. Lorde Orlando colocou o filho no leito e
ordenou a Philip que trouxesse o médico que já chegara há alguns dias de Adredanha.
Philip logo retornou com o médico, um senhor de imponente porte. Após explicar-lhe o
acontecimento, o médico colocou-se a examinar cautelosamente o adolescente. Os
arranhões eram dispersos nos braços e face, mas eram-lhe superficiais. Não havia lesões
maiores aparentes. Balbuciou:
-Nenhum mal maior parece ter ocorrido, tragam-me os sais.
Imediatamente um servo o atendeu, entregando-lhe um pequeno vidro. Com o liquido o
médico fez Anderson despertar.
-Sentes-te melhor rapaz?
Anderson olhou ao redor meio confuso e Lorde Orlando aproximou-se dele preocupado.
-Tivestes uma grande queda meu filho, caístes do cavalo, lembras-te?
Anderson falou meio entorpecido.
-Sim senhor, meu pai, lembro-me da queda, mas não sei por que ocorreu!
-Sentes-te bem meu filho? Algo te dói?
-O corpo não me dói, somente sinto enorme dor na face.
O médico tentando não mostrar sua estranheza, falou-lhe:
-Arranhastes tua face, por isto sentes dor... Mas os braços estão igualmente feridos, nada
sentes?
Anderson olhou-o confuso e dirigindo-se ao pai falou:
-Nada sinto meu pai, nada mais me dói!
Mas logo o rapaz se assustava também quando observou que o pai lhe segurava a mão e
não o sentia, nem mesmo conseguia movimentá-la.
-Senhor meu pai, eu também não consigo mover minha mão!
O médico concluiu que ocorrera problema com os ossos. Pouco a pouco foi tocando o
corpo do jovem abaixo do pescoço e ele nada sentia. A sensibilidade lhe estava restrita ao
rosto e pescoço. Anderson não poderia mais mover-se.
O médico angustiava-se em como contar isto ao Lorde e àquele jovem tão cheio de vida.
Encorajou-se e chamou Lorde Orlando, dizendo-lhe baixo para que Anderson não
escutasse:
-Lamento dizer-lhe Senhor Lorde Orlando, mas tudo me leva a crer que seu filho nunca
mais se movimentará. Do pescoço para baixo está completamente paralisado. Creio que
quebrou os ossos da espinha dorsal na queda.
Lorde atônito esbravejou:
-Que dizes tu? Não posso crer! Meu filho não mais andará! Estás errado!
-Senhor Lorde, sei que é difícil aceitar, mas o senhor mesmo poderá verificar isto.
Lorde Orlando completamente transtornado, ordenou que Philip tirasse o médico do
aposento e que lhe trouxesse Manco.
-Que há senhor meu pai... Porque discutias com o médico? Já estou bem!
Anderson tentava compreender a ira de seu pai, enquanto Philip caminhava apressado ao
celeiro.
-Onde está Manco? Indagou o capataz a Gabriel que acabara de retornar com as ervas e
agora tirava as celas dos cavalos dos nobres.
-Manco está próximo as carruagens limpando-as para a viagem da nobreza.
Philip rapidamente caminhou até avistá-lo e gritou:
-Manco, Lorde manda chamar-te urgente.
O capataz estava nervoso e gesticulava muito. Manco ouvindo-o correu em sua direção.
-Que deseja senhor Philip.
Lorde ordenou que te levasse ao aposento do menino Anderson. Leva tuas ervas.
Manco entrou no celeiro apressado e lá recolheu as ervas sob o olhar curioso de Gabriel.
E saiu apressadamente rumo ao castelo em companhia de Philip.
Gabriel então olhou a cela do cavalo de Anderson em suas mãos e suspirou aliviado,com
certeza o menino Anderson havia se ferido e isto com certeza lhes atrasaria a viagem
como havia planejado.
Manco chegou aos aposentos de Anderson, olhou o menino robusto no leito, percebeu-lhe
a face e os braços feridos.
-Senhor Lorde, desejas que cuide dos ferimentos?
Lorde Orlando angustiado suplicou-lhe:
O médico já aqui esteve observando meu filho Anderson. Disse-me que o meu
primogênito não pode mais andar, ou movimentar o corpo. Quero que me digas que isto é
um enorme equivoco, um absurdo!
Anderson, que agora escutara o motivo do nervosismo de se pai, balbuciou assustado:
- Senhor meu pai, sinto-me bem. Posso levantar-me para que não te irrites mais!
Mas Anderson contorcia a face e o pescoço, mas o corpo mantinha-se inerte.
Ambicionava movimentar os braços, as mãos, os dedos, mas o corpo não lhe obedecia.
Tentou erguer as pernas, sentar-se, mas o comando mental não lhe era suficiente.
Anderson sentindo-se impotente repentinamente entrou em convulsiva crise de choro.
Manco aproximou-se:
-Que um dos serviçais pegue estas ervas e lhe faça rapidamente um chá com elas.
Lorde ordenou que assim fosse feito e Manco continuou.
-Necessário é que se acalmem! Agora cuidaremos dos ferimentos.
A voz de Manco saia ternamente fraternal e solidária com a circunstância, e isto trazia
enorme paz, apesar do momento ser extremamente doloroso e deprimente.
Anderson chorava ininterruptamente e Lorde Orlando prostrara-se numa poltrona.
Compreendia agora a grande verdade. Seu próprio filho atestara a sua incapacidade de
movimentar-se. O servo retornou com o chá e Manco deu para que Anderson bebesse
boa quantidade deste. Colocou o restante em outra xícara e ofereceu ao Lorde para que
também o tomasse, o que o nobre aceitou prontamente.
Os seus olhos também estavam repletos de lágrimas e Manco sentiu enorme piedade do
pai que daquele dia em diante veria seu primogênito dependente de todos. Anderson com
uma boa quantidade de chá finalmente dormiu e Lorde sentiu-se mais forte e ergueu-se,
precisava caminhar até o salão para contar a infelicidade aos demais familiares que
aguardavam notícias
A maldição parecia estar naquele castelo, primeiro Henri II, noivo de Brigith, fora atacado
misteriosamente e falecera. Agora seu filho, o seu sucessor, caíra do cavalo e só teria
vida em sua cabeça.
Enquanto Lorde Orlando contava amargurado o que acontecera aos seus familiares, no
quarto Manco aproveitava a ausência do nobre para indagar ao servo:
-Sabes o que aconteceu?
-Sim, Manco. O menino Anderson caiu do cavalo, rolou varias vezes na colina e acordou
aqui. Agora não se movimenta mais.
-Sabes por que caiu?
Não Manco, mas disse um outro servo, que viu a cela solta quando o cavalo se aproximou
do castelo.
Manco entristeceu, não desejava acreditar que seu menino Gabriel tinha algo a ver com o
acidente. Acabou de limpar os ferimentos e ausentou-se do aposento, pedindo ao servo
que ali ficasse de vigília. Manco apressou-se a descer a enorme escadaria.
Podia ouvir em meio ao silêncio do salão o choro angustiado dos nobres. Saiu
apressadamente porque aquela tristeza lhe fazia grande mal. Somente um nome vinha a
sua cabeça: Gabriel. O sol já declinava na propriedade quando Manco caminhou receoso
até o celeiro. Avistou Gabriel deitado no feno.
-Não mais vão viajar Manco, Anderson feriu-se?
-Como sabes que Anderson se feriu? Que fizestes Gabriel? Que monstro te tornastes?
-Nada fiz Manco. Eu precisava evitar que viajassem! Estás nervoso porque feriu um pé?
Ou foi um braço?
Manco prostrou-se na ironia, sentou-se no feno e chorou.
-Não me digas Manco, que morreu também?
Manco nada mais disse em sua dor deitou-se no feno e ficou encolhido na dor imensa que
sentia e na enorme piedade que sentia de Anderson e daquela família.
Gabriel sentiu-se angustiado, sem compreender a dor de Manco. Caminhou até o castelo
e nele ficou sabendo do destino de Anderson. Compreendia agora a angústia de Manco e
o seu sofrimento.
Desejava ardentemente falar-lhe, não pretendera o feri-lo tanto, só retardar a viagem.
Correu ao celeiro, onde admitira sua culpa tão irônica e friamente a seu tão grande amigo.
Olhou Manco imóvel no feno, aproximou-se, ainda uma lágrima molhava-lhe a face... Ele
a secou com seus dedos e murmurou:
-Perdoai-me Manco, não foi minha intenção causar-lhe tanto mal.
Mas o Manco não mais podia ouvi-lo. Na dor de pai, mas na paz de uma vida honrada e
digna ,ele desligara-se de seu corpo envelhecido.
Gabriel, percebendo seu falecimento, debruçou-se sobre seu corpo e chorou
convulsivamente pela perda de pessoa que lhe era tão querida.
Passaram-se inúmeros dias de dor, no qual o castelo novamente parecia vestir-se de
negro na infelicidade de todos. Mas novamente a vida expandia continuidade. No castelo
todos agora enfrentavam com seriedade e brandura a nova vida de Anderson e o
aceitavam como um desígnio de Deus.
Um forte servo viera da propriedade de Adredanha para estar sempre ao seu lado,
auxiliando-o em tudo que necessitasse. Anderson tornara-se um rapaz rancoroso e
deprimido. Mergulhava em pensamentos e se frustrava com a vida que não podia ter.
Freqüentemente agredia o servo, mas este o compreendia e lhe perdoava as agressões,
sempre gentil e prestativo. Um verdadeiro amigo, que desejava vê-lo bem e tentava de
todas as formas fazer a sua vida mais feliz. O servo Job sabia ler e diariamente lia-lhe
longas estórias tentando distraí-lo. Também o carregava até uma poltrona que fora
colocada próximo á janela, para que pudesse ver dali a vida no campo. Mas isto parecia
deixar-lhe mais deprimido e irritado.
Anderson somente se acalmava e apresentava mais serenidade quando Brigith o visitava
em seu aposento, então sorria triste e exclamava:
-Querida Brigith, porque demorastes tanto ?
Brigith emagrecera em demasia. A face se apresentava cada dia mais magra e pálida.
Passara-se um mês do fatídico acidente de Anderson, e neste período a jovem vivera
exclusivamente para lhe dar atenção. Conviver com seu irmão e suas enormes limitações
a deixava amargurada e triste. Sentia pouca necessidade de alimentar-se e não mais
ansiara sair a passeios. Frustrava-se em desejar ardentemente erguê-lo daquele leito e
devolver-lhe os prazeres de sua juventude, mas não poder fazê-lo. Parecia que a vida de
Brigith havia se enclausurado nas limitações de seu irmão tão querido. Por vezes pensava
no servo Gabriel, mas esse sentimento proibido lhe feria em enorme sentimento de culpa.
Conformar-se-ia com o destino que o seu pai determinasse para si, tal qual Anderson
deveria se conformar com o que Deus havia lhe determinado.
Gabriel no celeiro agia como uma violenta fera enjaulada. Caminhava de um lado para o
outro impacientemente. Desde a morte de Manco não tivera mais com quem conversar e
compartilhar a sua angústia e o imenso sofrimento de se manter distante daquela que
tanto amava. Havia se passado um mês e meio desde que passara a noite com Brigith,
mas em suas lembranças o acontecimento se repetia em constantes e ternas imagens
que lhe ampliavam a extrema saudade. Fizera tudo para tê-la mais próxima, mas a vida
os tinha distanciado ainda mais. Sem os privilégios que lhe eram concedidos, em função
de ser o tutelado do conceituado Manco, Gabriel passou a ser tratado como um servo
igual aos demais. Philip fazia questão de distanciá-lo cada vez mais do castelo impondolhe trabalhos nos campos de cultivo. Não mais era o rapaz dócil e meigo. Tornara-se um
adulto nervoso e hostil que repudiava todos os seus companheiros de lida. Sabia através
dos servos do castelo, que Brigith dedicava os seus dias a Anderson, e enciumado
amaldiçoava-o.
Desejava-lhe a morte, para que Brigith novamente voltasse aos seus passeios e somente
assim poderiam se encontrar. A imensa paixão o destruía.
O tempo passou impiedoso e cruel sobre os sentimentos do servo Gabriel. Aproximavase o inverno. O vento frio soprava violentamente em todas as direções. As colinas se
esbranquiçavam com uma névoa fina. Os animais haviam sido recolhidos e a lida nos
campos se tornava mais restrita. Maior era o tempo ocioso e a solidão aumentava para
Gabriel. Quatro meses intermináveis tinham se passado desde aquela noite com Brigith,
parecia-lhe uma eternidade sufocante.
Despertava para os dias na ânsia de que surgisse uma oportunidade de vê-la e
adormecia em febris pesadelos. Via-se em árduas lutas corporais com Henri II que o
acusava de assassino. Podia ver-lhe a face jovial, o corpo másculo, mas frágil com as
chagas que provocara. Nos sonhos sempre o derrotava e saia vencedor, então Brigith
surgia sorridente, mas não conseguia tocá-la. Acordava freqüentemente nervoso e irado.
-Gabriel acorda!
A voz que o despertava de seus pensamentos, era grossa, mas amigável.
Gabriel estou atrapalhando?
Gabriel surpreso rapidamente ergueu-se do feno onde se deitara para pensar
melancólico, e observou o rapaz robusto.
-Conheces-me Gabriel?
Sim, sei que és o servo que veio da propriedade de Adredanha para servir Anderson.
-Chamo-me Job.
O silêncio imperou por alguns instantes no celeiro. O servo Job parecia timidamente
encabulado em dizer-lhe algo. Gabriel prontificou-se a dialogar, desejava saber notícias
de Brigith.
-Que desejas Job?
O rapaz robusto sentou-se comodamente no feno e falou a Gabriel que também se
sentava a seu lado.
-Gabriel, soube que aprendestes com o velho Manco as artes de curar.
Gabriel sentia-se intrigado mas mostrou-lhe indiferença.
-Sim Job, sei fazê-lo. No entanto sabes que no castelo tem o médico que de todos tem
cuidado com primor, desde o falecimento de meu tutor.
-Sei disto Gabriel, mas necessito de teu auxilio.
Gabriel mostrou-se irritado.
-Porque não vais ao médico, porque o temes?
-Acalma-te Gabriel. Não sou eu quem deseja teu auxilio, preciso ajudar alguém que se
sente mal.
O servo Gabriel ficou ainda mais incomodado. A figura esbelta de Anderson surgia-lhe
na mente. Com certeza Job ali tinha vindo para pedir auxilio para este.
-Porque não vais tu ao médico Job, e lhe pedes auxilio para essa pessoa?
-Gabriel, não poderei fazê-lo. Sente-se frágil em demasia, tem náuseas e vômitos, por
vezes tem vertigens e desmaia, tem receio que seus pais tomem conhecimento de suas
indisposições porque não deseja deixá-los preocupados...
Gabriel havia se levantado e caminhava de um lado para o outro impacientemente. Faloulhe Job suplicante:
-Se seu pai, Lorde Orlando, souber do mal que sente, se preocupará em demasia, por isto
vim aqui pedir-te auxilio. Consegue-me, por favor, algumas ervas que lhe façam sentir-se
melhor nas indisposições e eu lhe farei o chá, assim não te darei mais trabalho
Gabriel parou pensativo próximo a um cavalo e lhe alisou o pelo negro macio. Concluía
rapidamente que Anderson sentia-se mal e não desejava preocupar seus pais, por isto
havia enviado seu servo ali. Sentia que lhe era a oportunidade que a vida lhe ofertava de
afastá-lo definitivamente de Brigith. Falou convicto:
-Te ajudarei Job. No entanto preciso ir às colinas para pegar mais ervas. Quando
escurecer virás aqui e eu te darei o chá. Com certeza tomando-o, pela manhã estará bem
melhor.
Job sentiu-se profundamente satisfeito e agradeceu, saindo a caminho do castelo.
Gabriel, da simpatia e amizade que apresentara a Job, alterou complemente o semblante,
mostrando-se vil e sarcástico em seus pensamentos. Montou rapidamente e saiu rumo às
colinas, onde colheu algumas ervas. Retornando finalmente ao celeiro as colocou num
balaio, e em suas mãos permaneceram somente aquelas que usaria para fazer o chá.
Estas eram restritamente usadas em animais enfermos para matá-los se sofrimento.
Gabriel caminhou vagarosamente até á lenha, acendeu-a, e enchendo um pequeno tacho
com água a colocou para ferver. Meticulosamente inseriu as ervas e sorriu satisfeito.
Quando o chá ficou pronto Gabriel cuidadosamente ocultou-o próximo ä lenha para que
nenhum cavalo ousasse bebê-lo.
O frio era enorme e resolveu fazer um chá de hortelã para si e sentou-se no feno a
degustá-lo. Os pensamentos eram velozes em sua mente, logo o servo Job surgiria para
pegar o chá que lhe havia prometido, prontamente o levaria para Anderson, e este o
tomaria todo ansioso por melhorar de sua indisposição.
Finalmente pela manhã não haveria mais empecilhos aos passeios de Brigith e ao seu tão
ansiado encontro com ela. A vida voltaria a ser bela como antes. Libertaria a sua amada
da preocupação com o irmão invalido. Seus pensamentos eram eufóricos e febris.
Bastariam algumas horas para o fato, alguns dias para o luto, e finalmente poderia vê-la
cavalgando radiante. Brigith seria finalmente só sua! Quando percebeu que a noite já
surgia imponente, Gabriel pegou a bacia oculta na lenha e a colocou para esquentar.
Aquecendo as mãos e olhando as brasas que ardiam, recordou-se das palavras de Job:
“Sente-se frágil em demasia...tem náuseas e vômitos...por vezes desmaia..." Gabriel
respirou profundamente e murmurou para si "com certeza o infeliz estará melhor pela
manhã "...
O cheiro era forte e despertou Gabriel de seus pensamentos. Tirou o tacho do fogo, e
verteu o chá num grande caneco. Repentinamente, as palavras de Manco surgiram-lhe na
mente: "...não deve um homem almejar objetivos aniquilando os do próximo. Éstas errado
e temo por ti. Compreende o mal que fizestes e redime-te de tua culpa corrigindo-o e
pedindo perdão a Deus..." Gabriel sentiu um calafrio e quase deixou cair a caneca
fumegante de suas mãos.
Job entrou no celeiro apressado, pois temia ser visto..
-Esperei escurecer, como combinamos, está pronto Gabriel?
Gabriel rapidamente entregou-lhe a caneca sem vacilar.
-Job diz-lhe que beba tudo enquanto estiver quente. Se sentirá mais forte pela manhã...
Que durma com Deus!
O servo extremamente agradecido beijou-lhe as mãos como a mais humilde das
Sentia-se imensamente feliz em poder auxiliar Brigith. Naqueles três meses que haviam
cuidado juntos de Anderson, surgira uma solidariedade fraterna entre ambos. Tornaram-se
grandes amigos e confidentes. Brigith, demasiadamente enfraquecida, confidenciara-lhe
os seus temores e as suas angustias, pois esperava um filho e entrava no quarto mês de
gestação. Sentia o ventre dilatando-se e o disfarçava nos longos vestidos e ficando
restrita ao seu aposento e ao de Anderson. Evitava o auxilio da serva Lana para trocar as
vestimentas, e pedia a esta que dissesse freqüentemente a seus pais que não desceria
para o convívio familiar preferindo ficar em seu aposento ou no do irmão. A família
respeitava-lhe a opção.
O castelo se tornara sombrio. Lorde Orlando saia a cavalgar o dia inteiro. Evitava ficar no
interior do castelo. Raramente visitava seu filho Anderson. Sua invalidez o feria em
demasia. Sua mãe Joane também vivia reclusa e poucos a viam.
O seu irmão Arthur passava o dia aprendendo as artes da guerra com um mentor. Mas
como as indisposições eram contínuas, ela precisava de auxilio sem que seus pais
tomassem conhecimento, e o pediu a Job. Nas longas conversas com o servo Job,
enquanto Anderson dormia, Brigith não lhe confidenciara quem era o pai da criança. Job
respeitava-lhe o silêncio e não lhe fazia indagações.
O servo chegou ao aposento de Brigith e bateu na porta levemente:
-Quem é?
-Brigith sou eu, o servo Job!
Brigith abriu a porta do aposento prontamente. Muito abatida pediu ao amigo de entrasse
sem demoras.
-Trouxe-te o chá, deves tomar enquanto estiver quente. Gabriel disse-me que pela manhã
estarás bem melhor e te sentirás mais forte!
A jovem olhou-o surpresa, aquele nome fizera o seu corpo estremecer:
-Disseste Gabriel? Porque não pedistes ao médico do castelo?
-Não poderia fazê-lo Brigith, me indagaria, desejaria saber quem estivesse doente, e se
não respondesse talvez me denunciasse a teu pai... O servo Gabriel aprendeu a arte de
curar com o velho Manco... Confia e toma tudo!
Brigith pegou a caneca e a colocou na cômoda próxima a seu leito e deitou-se.
-Senta-te aqui Job, nesta poltrona próxima a mim.
Job sentou-se. Sentia-se um irmão mais velho de Brigith e preocupava-se com seu futuro.
-Como direi a meus pais isto?
Job acariciou-lhe os cabelos mal cuidados, que mostravam o longo tempo de reclusão e
encorajou-a:
-Querida Brigith, primeiro deves melhorar um pouco. Anderson começa a desconfiar de
tua ausência. Indaga-me se adoecestes. Depois acharemos juntos uma solução para
tudo, certo?
Brigith agradeceu-lhe o carinho com um olhar. Job pegou a caneca e deu-lhe para que
tomasse o chá. Brigith o tomou rapidamente, certa de que este lhe abrandaria as
indisposições. Job pegou a caneca e, afagando-lhe os cabelos, despediu-se e saiu do
aposento.
Brigith acariciou o ventre e murmurou baixinho "meu filhinho, contarei breve a teu pai
Gabriel, e ele nos ajudará a resolver tudo isto...poderemos viver bem e felizes longe
daqui...teu pai é um homem bom e justo..." e sem terminar o que dizia Brigith adormeceu
em sono profundo e mortal
III Parte - No Hemisfério da Consequência
O vento gelado despertou os seres para uma manhã de inverno. Job agasalhou-se e
caminhou ao aposento de Anderson. Auxiliou-o, banhando-o, trocando-lhe as vestes, e
carregando-o até defronte a janela, na qual ficaria observando o movimento do castelo.
Mas a névoa cobria as colinas, e só se podia ver o rio que, sempre veloz, seguia seu
rumo.
-Está frio Senhor Anderson, pegarei uma coberta para aquecer-te o corpo.
Job agilmente pegou uma coberta e envolveu-lhe as pernas e uma parte do corpo.
Anderson em sua arrogância tão freqüente murmurou contrariado.
-Não sei por que te preocupas tanto com isto, não sabes que nada sinto em meu corpo.
Job com extrema paciência argumentou:
-Sei disto senhor Anderson, nada sentes, mas não deves esquecer-te que o corpo vive.
Sente calor e frio ainda que não mais o saibas disto. Precisas te preocupar com isto,
desejas adoecer?
-Melhor seria morrer, a viver esta vida!
-Não diga um absurdo deste, Senhor! Se Deus o mantém em vida algum motivo deve ter
para isto...
Anderson silênciou observando o rio, e Job percebendo-lhe a extrema amargura
prosseguiu:
-Se adoeceres, não poderás conversar com tua irmã Brigith. Como irás cantar com ela?
Como ouvirás as estórias que te lê com tanto amor?
Job então afastou-se para arrumar-lhe o leito e Anderson olhou as campinas e lembrou-se
de Brigith.
Ela era o seu sol forte . Sentia-se enternecido com sua candura e dedicação, e a vida lhe
parecia melhor. Seus pais e seu irmão raramente apareciam para o ver. Pareciam se
esquecer de sua existência, e quando vinham, eram visitas rápidas e piedosas, lhe
indagavam um breve "estás bem?", mas logo sumiam , sentindo-se incomodados por sua
presença imóvel. Somente sua irmã Brigith e o servo Job passavam os dias a fazer-lhe
companhia. Sem eles estaria completamente só. Num arrepio assustador Anderson
apelou a Job inquieto.
Chama Brigith!
-Job tranqüilizou-o.
Senhor Anderson, ainda é muito cedo e Brigith deve estar dormindo ainda. Irei
providenciar tua refeição e após te alimentares irei chamá-la, certo?
O jovem inconformado olhou a paisagem triste pela janela e concordou com um leve
meneio de cabeça.
Job trazia-lhe a bandeja farta em alimento quando Lana o interceptou no corredor e antes
que entrasse no aposento falou-lhe aos soluços.
-Job, a menina Brigith!
O servo olhou-a fixamente. A cor da pele lhe sumira das faces e as lágrimas rolavam
constantes.
-O que houve Lana, o que aconteceu?
As vozes ainda que desesperadas saiam num baixo sussurro para que Anderson não os
ouvisse.
-Estive em seu aposento para auxiliá-la como sempre faço... Caminhei até as janelas e
abri os cortinados...balbuciei mansamente sobre a manhã fria...e lhe alertei que ao
levantar-se deveria se agasalhar bem ... Mas...
Lana interrompeu com choro convulsivo e continuou com dificuldade.
-Job ela não desperta. Toquei-a e está gelada...
O servo tentou manter-se calmo dizendo-lhe:
-Iremos vê-la agora.
Dizendo isto colocou despreocupadamente a bandeja no chão, e saiu apressadamente
rumo ao aposento de Brigith.
Chegando lá Lana abriu a porta e Job imediatamente a viu deitada sobre o leito. Estava
serena e parecia dormir profundamente. Job aproximou-se do leito e tocou-a. Sentindolhe a pele muito fria e percebendo que não respirava, sofreu um forte arrepio. Elevou as
mãos ao seu rosto para estancar o grito de angústia que sentia. Brigith estava morta.
Morrera dormindo. Mas como? Por quê? A emoção surgiu-lhe aflorando em todos os
sentidos. Densas lágrimas desceram de seus olhos. Tentava controlar-se em vão. Os
pensamentos lhe eram confusos. "O que seria de Anderson sem Brigith?" Lembrou-se do
filho que ela esperava. Porque aquilo havia ocorrido, se estava tão bem no dia anterior?
Nada compreendia na mente que não conseguia pensar direito. Precisava sair dali, avisar
alguém. Lana estava petrificada na porta também em profunda emoção. Pediu-lhe,
tentando conter-se no pranto sofrido.
-Lana, precisas procurar Lorde Orlando. Precisamos ser fortes!
Lana demasiadamente trêmula indagou-lhe.
-Está morta, não está?
Job não conseguia falar-lhe, com um meneio de cabeça confirmou.
Lana tentou conter-se no choro convulsivo, mas não conseguiu. Assim mesmo afastou-se
em direção aos aposentos de Lorde Orlando para chamá-lo.
Aproximou-se e bateu temerosa. A porta se abriu e Lana explicou ao nobre como
encontrara sua filha. Lorde Orlando desesperou-se correndo aflito ao aposento de sua
única filha. Chegando próximo ao leito de Brigith e constatando-lhe o falecimento,
ajoelhou-se aos prantos. A sua família parecia sofrer uma terrível maldição. Olhou para o
alto e, irreconhecível, rogou com extremo fervor:
- Meu Deus... Que fazes tu de minha família? Porque me tiras pessoas tão queridas?
Limitastes a vida de meu primogênito e agora tiras a vida de minha filha...Deus tende
piedade deste teu humilde servo.
Lana entrou no aposento, acompanhada do médico que havia ido chamar a pedido do
Lorde. Viram o nobre ajoelhado e de mãos colocadas em prece chorando muito. Lana
humildemente também se colocou de joelhos em oração, enquanto o médico se dirigia ao
leito para examinar a jovem. Examinou-lhe os olhos, tocou-lhe a boca, sentiu-lhe a pele,
desejava descobrir porque a jovem havia falecido. Concluiu que a sua morte deveria ter
ocorrido tão logo se deitara, mas porque se mantinha tão plácida e serena? A cama
estava intacta, nenhum sinal de agonia. Sem conseguir justificativas lógicas, voltou-se
para o Lorde e colocou-lhe solidariamente a mão no ombro, despertando-o para a vida
que prosseguia.
Este se ergueu com dificuldade e caminhou determinado a dar a notícia a sua esposa e
filho.
Lana mantinha-se imóvel, lembrava-se de quando ali viera trabalhar como serva de
Brigith. A nobre era apenas uma menina de cinco anos de idade, que lhe sorriu dizendo:
-Serás minha amiga?
A menina Brigith não somente pertencia á nobreza , como também possuía coração
nobre. Nunca lhe tratara com superioridade , era muito humilde e extremamente boa e
justa, compreensiva e carinhosa. Lana sofria porque perdera a nobre á qual se apegara, e
que lhe era como uma irmã.
A notícia rapidamente se espalhou no castelo. Job, no aposento de Anderson permanecia
imóvel sem compreender o que acontecera. Profunda tristeza lhe apertava o peito, mas
não podia demonstrá-lo. Anderson ainda não tinha sido comunicado da morte de Brigith.
Ninguém se sentia encorajado a fazê-lo.
Job recordou-se da noite anterior, dos receios de Brigith, do chá... Levantou-se num
sobressalto. "O chá!"... Com muita convicção, apoderou-se da idéia de que o chá a
matara. Pediu licença a Anderson e ausentou-se apressadamente do castelo, a caminho
do celeiro.
Vagarosamente entrou e percebeu que Gabriel não se encontrava. Caminhou
determinado até a lenha,como que induzido, e ali viu oculto um tacho que ainda mantinha
algumas ervas e um pouco de chá. Sentia enorme necessidade de averiguar a
desconfiança que lhe assombrava a mente. Verteu um pouco do liquido numa caneca e
caminhou até o estábulo.
Os servos ali presentes estavam ocupados com a alimentação dos animais e não deram
qualquer atenção à sua presença. Job aproximou-se de uma vaca robusta e deu-lhe um
pouco o liquido para beber, mas prontamente o animal recusou-se. Job cuidadosamente
abriu-lhe um pouco a boca e verteu o chá, e ali permaneceu verificando-lhe as reações.
Não tardou o animal cambaleou e deitou-se sonolento. Job aproximou-se com cautela
para verificar-lhe a respiração e perplexo constatou que o animal estava morto.
Job afastou-se indignado, sentando-se próximo ao leito do rio. A água passava veloz,
como as lágrimas que lhe desciam na face.
Job chorava pelo erro cometido, sentia-se culpado por pedir auxilio a pessoa tão
inexperiente, lembrava-se amargurado das palavras de Gabriel na noite anterior: "diz-lhe
que tome tudo enquanto estiver quente, se sentirá mais forte e as náuseas e desmaios
terminarão... que durma com Deus!" Sim, somente ele tinha culpa, Brigith pedira que
fosse até o médico do castelo e lhe pedisse auxilio, temeu as indagações que talvez nem
ocorressem - pelo que conhecia o médico era um senhor sereno e discreto.
A luminosidade se intensificava ao seu redor, mas o frio lhe gelava a face e a respiração
lhe parecia uma tortura. A s lágrimas desciam-lhe pelo rosto, frias, e frio e amargurado
estava o seu coração.
Precisava cuidar de Anderson, saberia ele da notícia triste? Como reagiria a tudo? E
Gabriel. Estaria ciente do mal que fizera?
Job ergueu-se e caminhou vagarosamente. Não sabia ao certo que direção tomar. Secou
as lágrimas na face, conteve a angústia e caminhou mecanicamente até o celeiro.
Chegando lá, percebeu Gabriel sentado no feno, observava o tacho, abandonado no chão
descuidadamente, que ainda possuía um pouco do liquido e as ervas. Job ficou
observando-o, sem que fosse visto.
Gabriel levantou-se e pegou o tacho com ambas as mãos, sentando-se novamente no
feno. Balançando o líquido em seu interior, sorriu feliz. Estava ciente que logo lhe
chegaria a notícia da morte de Anderson.
Na lida ouvira breves comentários de luto no castelo, mas não se atrevera a indagar ou
dialogar, pois temia por sua reação que pareceria feliz aos olhos dos outros. Mas não
tardaria a seria comunicado por Philip do falecimento e do dia sem lida, em homenagem
ao falecido.
Só mais alguns dias e poderia dialogar com Brigith e abraçá-la com amor.
Job começou a sentir-se intrigado com a insistência de Gabriel em mirar o liquido escuro,
com tamanha felicidade. Fez-se surgir repentinamente, e Gabriel assustou-se. Colocando
o tacho no chão, levantou-se e cumprimentou-lhe num meneio.
O silêncio de cumplicidade anônima se fez, até que Gabriel, surpreso com sua presença
falou-lhe:
-Manhã fria Job, o que te traz aqui?
Job caminhou determinado ao tacho e pegando-o cuidadosamente, indagou a Gabriel.
-Não sentistes falta de nada ?
Gabriel sentia-se temeroso.
-Sim Job, alguém recolheu grande parte do chá que havia restado.
-Isto te preocupa Gabriel?
Gabriel ciente de que o liquido venenoso poderia matar qualquer animal ou pessoa que o
ingerisse, tentou disfarçar sua preocupação.
-Não Job, nada me preocupa!
Job, sentindo enorme impulso, apresentou-lhe o pouco liquido no tacho, dizendo:
-Bebe!
Gabriel de um sobressalto caminhou até á lenha para acendê-la. Precisava disfarçar sua
apreensão. Job insistiu:
-Toma um pouco deste chá, Gabriel!
-Job, não compreendo tua insistência. Porque beberia esse chá, se não sinto incômodos.
Gabriel não conseguia olhar Job. Este determinado caminhou em sua direção e olhando-o
nos olhos balbuciou seguro.
-Peço-te Gabriel que bebas um gole deste chá. Se o mesmo é para curar as indisposições
para as quais te pedi, não te fará qualquer mal.
Gabriel olhou o pouco liquido turvo no tacho. Sentia-se nervoso e apreensivo.
-Job, porque isto agora? Quem se sentia adoentado melhorou?
O servo mantinha-se persistente.
-Volto a pedir-te Gabriel, que em nome de Deus tomes um gole do chá que fizestes!
Gabriel não conseguia compreender a insistência de Job e a revolta lhe tomou o corpo, e
num rápido impulso, tomou o tacho e verteu o liquido e as ervas no solo.
-Porque fizestes isto Gabriel?
Job mantinha-se sereno, mas não mais considerava Gabriel inocente. Se realmente
houvesse feito um chá para incômodos gástricos, não se negaria a tomá-lo, pois mal
nenhum lhe faria.
-Não desejava tomar chá agora! Gabriel respondeu irritado sob o olhar perplexo de Job.
Caminhou até o feno e lá sentou-se. Job caminhou também até ele e abaixando-se para
lhe olhar nos olhos perguntou num sussurro de revolta.
-Porque fizestes isto, Gabriel?
Gabriel nada lhe dizia, evitando-lhe o olhar.
-Porque matastes a menina Brigith? Porque lhe tirastes a vida Gabriel? Somente te pedia
ajuda!
Gabriel sentiu como se tivesse levado uma punhalada no peito, a mais cruel, a mais forte,
a que lhe doía profundamente em suas entranhas.
Ergueu-se em fúria inconsolável e jogou-se sobre Job, arremessando-o ao chão
violentamente.
-Que fizestes?
Job, violentamente acuado por Gabriel, mantinha-se inexplicavelmente sereno. Falou
harmoniosamente enquanto as lágrimas desciam sofridas em sua face.
-Matastes a doce Brigith! Matastes o filhinho que esperava e por isto sentia-se muito
indisposta! Pediu-te auxilio em chá que a reconfortasse e tu mandaste-lhe veneno, porque
Gabriel?
Gabriel extremamente abalado com tudo o que Job lhe falava, esmurrou-se em fúria
inconsolável.
-Não matei minha Brigith! É mentira tua! Que filho é esse? Fala-me infeliz, me conta a
verdade!
Job, conseguindo libertar-se das agressões de Gabriel, levantou-se empurrando-o em
cima do feno. Job era bem mais forte e robusto que Gabriel.Poderia destruir-lhe a vida
com brutalidade se desejasse. Porém não desejava agredir Gabriel, o coração doía-lhe
em demasia com as revelações de um assassinato premeditado em que fora ingênuo
cúmplice.
Limpou a face esmurrada por Gabriel, olhando-o piedosamente.
-Poderia acabar contigo Gabriel, mas não o farei. Desejo respostas. Porque matastes
Brigith envenenada?
Gabriel baixou a cabeça. Nada compreendia, o chá era para Anderson e não para Brigith.
-Quando te pedi o chá, Gabriel, não podia revelar-te que a menina Brigith sentia-se mal
por causa do filho que esperava, desesperada pediu-me segredo. Desejava melhorar para
poder procurar o pai de seu filho e pedir-lhe que fugissem. Mas tu Gabriel, que eu
pensava seres inocente em mero erro de troca de ervas, te vi culpado no exato momento
em que te recusastes a tomar um gole do chá... Não poderias tomá-lo, estavas ciente do
veneno que era...
Job fez uma pequena pausa, para se conter no choro convulsivo e indagou-lhe.
-Quem desejavas matar? Quem pensastes que se sentia mal? Para quem fizestes tão
cuidadosamente o veneno/
O servo estava agora incontrolável. Olhava Gabriel com extrema piedade e ao mesmo
tempo como o mais desprezível dos seres. Não conseguia se conter no pranto.
Gabriel permanecia imóvel, de cabeça baixa, sem nada dizer, não demonstrava qualquer
sentimento ainda que imensa dor lhe sufocasse.
Job percebendo que Gabriel nada diria, e sentindo enorme necessidade de acalmar o
pranto, afastou-se saindo celeiro.
Precisava pensar em tudo o que ali ocorrera. Precisava tranqüilizar-se retornar ás suas
tarefas como servo de Anderson.
A determinação em consolar o infeliz jovem nobre, com a perda da irmã, auxiliou-o a se
conter na dor, na culpa e na revolta. Quando entrou no salão principal do castelo,
encontrou Lorde Orlando e este, em extrema dor, pediu-lhe que fosse imediatamente ver
Anderson pois estava inconsolável e não havia aceitado a notícia do falecimento de sua
irmã.
Job entrou no aposento de Anderson, que estava estático próximo á janela. Desde que
tivera a queda que lhe causara a total paralisia, o jovem movimentava ininterruptamente a
cabeça em todas a direções, talvez numa enorme necessidade de mostrar a si mesmo
que ainda mantinha domínio sobre uma parte de seu corpo. Brigith lhe falava
constantemente que deveria agradecer a Deus por poder fazer inúmeros movimentos, ver,
escutar, falar, cantar, sorri e chorar, pensar, comer sentindo paladar, e possuir olfato. Lhe
falava da alegria de se possuir a vida !
Mas agora ali estava Anderson imóvel, petrificado e de olhar fixo no rio. Parecia em
estado de choque. Job acariciou-lhe os cabelos como Brigith sempre fazia e Anderson
manteve-se ausente olhando fixamente o rio. Mas agora algo se alterava em seu
semblante... Finalmente pranteava sua enorme dor.
Job não conseguiu se conter em sua posição de servidão, abraçou-o fortemente e
também pranteou sua imensa dor. Por longo tempo não houve palavras. O silêncio
imperou em todas as direções e o extremo frio parecia congelar todas as emoções num
imenso e sufocante sentimento de perda de pessoa imensamente querida por todos.
O castelo se aprisionou num imenso e interminável luto. Naquele inverno, Job evitou
lembrar-se de Gabriel, extremamente preocupado em devolver a vida a Anderson. Como
as freqüentes tempestades de nevascas, Job também usava de toda a sua força e de
todas as maneiras para substituir a enorme ausência do carinho e do amor da irmã Brigith
que lhe eram essenciais.
Anderson se fechara em si mesmo, nunca mais pronunciara qualquer som ou mostrara
desagrado ou agrado do que quer que fosse. Parecia um mero vegetal que o servo
pacientemente alimentava e com o qual conversava sem obter respostas. Mantinha-se
ausente apesar do enorme esforço do servo em lhe narrar estórias ou lhe cantar doces
melodias.
O corpo sem os movimentos mirrava pouco a pouco, ficando extremamente emagrecido.
Mas Job não desistia. Persistente sabia que precisava manter-lhe a mente ativa e
mostrar-lhe continuamente o seu carinho e o seu amor, já que os familiares haviam se
afastado definitivamente.
Lorde Orlando, em tristeza aparente e contínua, escondia-se na biblioteca do castelo,
lendo e tentando compreender os misteriosos desígnios de Deus.
Joane definhara com a perda da filha, não mais bordava ou distraia-se em diálogos com
seu filho Arthur. Enclausurou-se também em seu aposento em fervorosas orações,
comentavam alguns servos.
Arthur, explodindo jovialidade e enorme vontade de viver, sentia-se acuado com aquele
enorme castelo frio e sem vida. Freqüentemente procurava os filhos dos servos para se
distrair e conversar. Tornava-se um rapaz forte e esperto, além de bom e justo para com
todos, tratando-os com igualdade, humildade e simplicidade.
Finalmente o enorme inverno acabou. Novamente as campinas esverdeavam-se e os
animais retornavam aos pastos. A sensação que se sentia é de que a vida recomeçava
após interminável período de hibernação. A atenção de todos os seres parecia agora se
voltar para o forte sol que se expandia em todas as direções, fortificando e gerando vida
nova.
Naquela linda manhã Job deixou Anderson próximo à janela como sempre o fazia e saiu
apressado do aposento. Determinado saiu do castelo. Era a primeira vez que o fazia
desde que descobrira o feito de Gabriel.
Sentiu a brisa fresca da manhã e respirou profundamente, tentando roubar-lhe toda a
energia, que emanava em suavidade e lhe renovava as forças. Sentiu o sol ainda ameno
iluminando-lhe o corpo e sentiu-se inexplicavelmente abençoado. A sensação lhe era
imensamente confortante.
Aproximando-se determinado do celeiro, entrou sem temores. O ambiente era silencioso,
mas logo um rapaz aproximou-se, e após cumprimentá-lo gentilmente num meneio
sorridente falou-lhe prestativo:
-Deseja algo senhor?
Job observou o pequeno jovem indagando-lhe:
-Onde está Gabriel?
O rapaz mostrando-se imensamente surpreso apressou-se a responder.
-O senhor não sabe que Gabriel adoeceu no inicio do inverno?
-Como te chamas rapaz?
-Chamam-me de Sílvio senhor.
-Não me chames de senhor, Sílvio, meu nome é Job. Contai-me o que aconteceu com
Gabriel.
O rapaz muito prestativo, narrou-lhe vagarosamente:
-Pouco posso falar-te Job, mas quando Philip me pediu para ficar no celeiro, cuidando dos
cavalos já não o encontrei aqui. Soube que, aqui neste feno, o encontraram agonizando
em delírio febril... Contaram-me que foi logo após o enterro da senhorita Brigith. Soube
também que compareceu á cerimônia junto com todos os servos, que como em todo luto
da nobreza se mantém à distância prestando suas homenagens.
O jovem arregalou os olhos, como que impressionado, e continuou.
-Philip naquela mesma tarde, o encontrou aqui agonizante entre a vida e a morte. Dizem
que tentou matar-se!
Job, num sobressalto, imediatamente lembrando-se do chá venenoso, indagou ao rapaz.
-Sílvio, como tentou matar-se, sabes?
-Dizem que tomou um chá...
Job receoso voltou a perguntar-lhe.
-Viveu?
-Sim senhor, deseja vê-lo?
Job afirmou-lhe que sim sem, no entanto, mostrar muito entusiasmo.
- O senhor o encontrará próximo ao lago. Numa gruta é lá que mora!
- Mora numa gruta Sílvio?
-O senhor Job faz muitas perguntas!
-Sou servo do castelo e Gabriel é meu amigo. Mas por causa da invernada não pude vir
vê-lo antes.
Sílvio, sabendo da amizade de ambos, mostrou-se mais prestativo:
-Sim senhor Job, Philip o expulsou das proximidades do castelo e ele como não tinha
para onde ir, lá se instalou. Philip deixou-o lá ficar até que Lorde decida o que fazer com
ele.
Job estava demasiadamente intrigado.O que Gabriel fez para Philip o mandar embora?
Sílvio baixou a cabeça piedosamente.
-Salvou-se do chá da morte, mas não ficou bom da cabeça. Não queria mais trabalhar e
constantemente ficava conversando sozinho. Diz a todos que o velho Manco lhe
persegue... Os outros servos da lida estavam ficando com muito medo da sua loucura e
Philip achou melhor afastá-lo.
-Há quanto tempo está na gruta Sílvio?
-Para lá foi tem mais ou menos uns quatro dias.
Job colocou carinhosamente a mão no ombro do rapaz e agradecendo-lhe saiu do celeiro
pensativo e aproximou-se do rio para refletir em tudo o que ouvira.
Pela primeira vez pensava em tudo com clareza e maior tranqüilidade, liberto da extrema
dor que o feria. Gabriel fizera o chá venenoso com intenção de matar alguém... Quando
soube, no entanto, que a vítima fora Brigith, pareceu amargurado e surpreso, ainda que
não mostrasse emoção ou dor. Posteriormente tentara matar-se com o mesmo chá e
tornou-se um louco, sendo expulso das tarefas. Uma certeza lhe veio, precisava ver
Gabriel com brevidade!
Job rapidamente retornou ao celeiro e pediu a Sílvio que lhe emprestasse um cavalo para
que pudesse ir até o lago procurar Gabriel. Imediatamente o rapaz lhe arrumou a
montaria, pedindo-lhe que não demorasse por causa do capataz. Job estava ciente de
que não poderia deixar o menino Anderson muito tempo sozinho.
Na cavalgada para o lago continuou divagando sobre tudo. "Como encontraria Gabriel?
Porque ele não havia morrido com o veneno letal?" Os pensamentos lhe eram enormes
incógnitas, mas se mantinha sereno.
Chegou próximo ao lago mas não o avistou. Apeou da montaria e prosseguiu próximo ao
seu leito até avistar um pequeno córrego que no lago desaguava.
Gabriel estava próximo à margem, olhar fixo na água que deslizava lenta, e com uma
pequena machadinha nas mãos. Parecia adormecido, imóvel e sem reações.
Job observou-o antes de aproximar-se. Sua túnica estava demasiadamente suja. Os
cabelos haviam crescido rebeldes e sem cuidados, assim como a vasta barba e bigode.
Ainda que Sílvio lhe houvesse falado que ali estava há apenas quatro dias, pelo seu
estado poderia facilmente concluir como vivera aquele inverno em loucura, próximo aos
demais serviçais.
Job determinado aproximou-se falando-lhe firme.
-Gabriel, vim procurar-te!
Gabriel olhou-o fixamente, desviando o olhar do rio, e assustando-se repentinamente,
soltou a machadinha. Indagou a Job suplicante:
-Vistes Brigith?
Os olhos de Gabriel começaram a lacrimejar. Job sentiu-se confuso com os sentimentos
que lhe chegavam, ora sentia-se piedoso de uma criatura aparentemente tão desgraçada,
ora sentia-se irado pelo imenso mal e pela dor que trouxera a tantos. Tocou-lhe o ombro
amigavelmente.
-Vim auxiliar-te Gabriel, senta-te comigo um pouco, precisamos conversar.
Gabriel sentou-se imediatamente ao lado de Job, agindo igual a um menino ingênuo e
obediente. Job analisava-o continuamente. Não sabia como iniciar um diálogo mas
precisava compreender o que acontecera com aquele jovem. Precisava fazê-lo falar se
ainda tivesse alguma lucidez para fazê-lo. Com extrema astúcia falou-lhe, a fim de
observar-lhe as reações.
-Brigith mandou-me aqui.
Os olhos de Gabriel pararam repentinamente de lacrimejar e abriu incompreensível
sorriso de euforia.
-Ela está bem? Virá me ver?
Em função das reações de Gabriel, Job mais astutamente ainda continuou.
-Brigith pediu-me que te perguntasse o que realmente sentes por ela.
Gabriel surpreendentemente levantou-se abriu os braços e olhou Job falando como
extrema paixão:
-Ela sabe que eu a amo... Sempre amei... Depois de nossa noite de amor eu a amo mais
ainda!
Fez uma pausa para olhar Job.
-Porque não veio ver-me?
Job sentia-se perplexo com a revelação de Gabriel.
Se não estivesse complemente louco, se ainda possuía alguma lucidez, com certeza ele
poderia ser o pai do filho que Brigith esperava, e isto explicaria porque tentara se matar
após saber do terrível engano que cometera matando-a. Mas ainda lhe era uma incógnita
o fato de Gabriel ter preparado o veneno, a quem intencionada matar.
Gabriel rapidamente interrompeu-lhe os pensamentos, colocando-lhe a mão no ombro e
olhando-o fixamente falou melancólico.
-Com certeza não veio ver-me porque está com o irmão... Nunca tem tempo para mim, só
para ele... Não é isto?
Job receou a repentina fúria de Gabriel e levantou-se. Precisava pensar um pouco e o sol
já ia alto. Precisaria retornar ao castelo. Com certeza nos aposentos de Anderson poderia
refletir com tranqüilidade em tudo o que ali ouvira.
Olhou piedosamente para Gabriel e falou-lhe:
-Não te inquietes, Gabriel, trago-te recado que virá ver-te ao entardecer.
Gabriel baixou a cabeça, compreensivo, e Job afastou-se cavalgando rumo ao castelo.
Chegando aos aposentos de Anderson, viu que ele estava dormindo, como
costumeiramente fazia, sentado em sua poltrona. Faltavam algumas horas para sua
refeição, aproveitaria para analisar tudo o que acontecera. Paulatinamente direcionou os
pensamentos "Gabriel amava Brigith e ambos haviam tido um romance... Gabriel
começou a sentir extremo ciúme de Anderson, porque Brigith não mais tinha tempo a
encontros furtivos..." Job com um sobressalto facilmente concluiu que o chá venenoso
deveria matar Anderson e não Brigith. Quando Gabriel, no entanto, soube que Brigith
tinha morrido, tentou matar-se, inconformado. Job indagava-se em pensamento "Saberia
do filho?" Lembrou-se das palavras iradas de Gabriel "- Que filho é esse! " Não ele não
tinha conhecimento. Repentinamente Job percebeu-se cheio de compaixão. Pobre infeliz
de Gabriel que sem desejar, matara a mulher que amava e o seu próprio filho. Sentia
piedade imaginando-lhe a angústia e o sofrimento que o levara á loucura. Sentia piedade
de um criminoso que intencionava matar o indefeso Anderson. Estava confuso e
atordoado pela culpa que lhe vinha. Ingenuamente havia salvado Anderson, mas tinha
compactuado com o assassinato de Brigith. Job começou a se sentir demasiadamente
amargurado com tantos sentimentos opostos vasculhando a sua mente.
Deveria acusá-lo pelo crime que Gabriel cometera? Não sofreria em demasia já o infeliz?
Ânderson despertou tirando-lhe dos pensamentos que o feriam. Prontificou-se a falar com
ele, mas surpreendeu-se quando Anderson começou a falar sereno e triste .
-Sonhei com Brigith!
Job extremamente eufórico com o retorno do jovem á vida, o fez continuar mostrando-se
curioso:
-Que sonhastes Anderson, conta-me!
Anderson olhou-o balançando a cabeça, como sentindo enorme vontade de gesticular.
-Estava tão linda Job... Vestia-se de branco e sorria para mim. Estava bem ali, olha...
Anderson olhou para o leito tentando mostrar a Job a posição exata onde vira a irmã em
sonho.
-Eu estava deitado e ela cantava para mim. Depois parou de cantar e disse: "Anderson
meu querido, estou sempre contigo, nunca te deixarei só. Quando Job voltar diz-lhe que
estive em sonho contigo, e pede-lhe que perdoe, porque só Deus poderá julgá-lo!"
Anderson parou com a narração do sonho, olhou Job em duvida e indagou-lhe:
-Porque no sonho Brigith pediu para dizer-te que não deves julgar? Tens raiva de mim
Job?
Job não se conteve e duas roliças lágrimas lhe desceram na face pálida. Falou com
dificuldade em sua extrema emoção:
- Anderson, que mágoa teria de ti?
Acariciou-lhe o ombro carinhosamente e secando a face molhada prosseguiu.
-Mas conta-me o resto do sonho!
O jovem olhou-o enchendo-se de alegria enquanto narrava.
-Depois Brigith acariciou-me os cabelos, me deu um doce beijo na testa, e disse-me que
quando as flores surgissem nos campos viria me buscar para caminhar com ela até as
colinas. Então acordei.
Anderson olhava então através da janela.
- Job, foi só um sonho, um lindo sonho. Afinal como poderia eu caminhar nas colinas
floridas com Brigith?
Job ergueu-se e olhando-o carinhosamente sem mostrar suas apreensões, murmurou-lhe
baixinho:
-Anderson, Brigith agora é um lindo anjo e com certeza veio ver-te para dizer que está
perto de ti e que vocês podem se encontrar para passear enquanto dormes...
Job afastou-se dizendo-lhe que iria buscar sua refeição.
O sonho que Anderson tivera, despertando-o novamente para a vida e o convívio, era
verídico demais para os acontecimentos, para ser somente um mero sonho.
A narração de Anderson impressionara-o. Repetia-se em sua mente continuamente "...
pede-lhe que perdoe, porque só Deus poderá julgá-lo"
As flores começavam a brotar nos campos, quando Job encheu-se de coragem para falar
com lorde Orlando. Preparava-se o nobre para viajar para a propriedade de Adredanha
com seu filho Arthur. Ficariam no castelo somente os servos, a nobre Joane e Anderson.
Job aproximou-se da biblioteca. Sentia-se receoso, não sabia ao certo o que lhe diria. Em
si, as noções de justiça eram amplas e concretas, mas freqüentemente vinham lhe as
palavras de Brigith, de quem tinha doce lembrança: "só Deus poderá julgá-lo!"
Bateu na porta e o Lorde lhe concedeu a entrada. Abriu e entrou silencioso. Lorde
Orlando estava recostado em uma poltrona, com o mesmo semblante triste e apático.
-Que deseja Job?
-Senhor, tenho algo a falar-lhe.
Job aproximou-se a seu pedido e lhe fez breve reverência
- Que sejas breve, algum problema com Anderson?
Job prosseguiu como que impulsionado
- Senhor, Anderson está bem, ainda que freqüentemente se lamente de nenhum de vós ir
mais vê-lo. Sei que o senhor viajará pela manhã e gostaria de alertar-lhe sobre algo.
O Lorde pela primeira vez o olhou com semblante firme e sério .
- O senhor lorde está ciente de que o servo Gabriel encontra-se em estado deplorável,
talvez enlouquecido, na beira do lago?
O Lorde, intrigado, ordenou que prosseguisse.
Job vacilou entre a verdade e a ocultação do crime, mas mais uma vez impulsionado pelo
pedido de Brigith em sonho , falou:
-Gostaria de pedir-lhe, senhor, que o jovem Gabriel ficasse sob minha responsabilidade.
Aos poucos poderá auxiliar-me com Anderson , que cada dia se torna mais frágil.
Lorde Orlando interrompeu-o assombrado.
_ Sabes que Gabriel esta louco?
_ Sim senhor lorde, sei que está perturbado pela morte de seu tutor, mas sei que poderá
auxiliar-me, em sua demência e apatia mal não poderá fazer.
Lorde Orlando pensou pausadamente, folheando um livro.
Dou-lhe minha permissão Job. Que Gabriel seja recolhido ao castelo sob tua
responsabilidade. No entanto, alertarei Philip que se ele trouxer inconvenientes que
molestem a paz que aqui reina, será expulso definitivamente de minha propriedade.
Job não conseguia compreender, mas sentia-se inexplicavelmente vitorioso.
- Agradeço-lhe a atenção senhor lorde Orlando.
Job fez uma reverência e saiu da biblioteca. Caminhou sem demora até o celeiro e logo
cavalgava rumo ao lago.
Encontrou Gabriel em estado mais deplorável. Sentado e imóvel mantinha-se recostado
em arvore frondosa. Pensativo, ficou olhando-o por longo tempo sem que fosse visto.
Preocupado, temia estar fazendo uma loucura. Colocaria o criminoso dentro do castelo,
justo em atividade próxima à pretensa vitima. Job meneou a cabeça angustiado.
Atendera ao pedido que Brigith lhe fizera em sonho. Não o julgaria, deixaria que Deus o
fizesse.
Aproximou-se de Gabriel, temeroso da decisão que tomara. Auxiliando-o, colocou-o na
montaria sem dificuldades, diálogos ou resistência. Permaneceram silenciosos no retorno
até o castelo .
Chegando lá, Philip caminhou na direção de Job. Este apeou do cavalo e auxiliou Gabriel
a sair da montaria também. Gabriel mantinha-se de cabeça baixa, parecia ausente de
tudo o que ocorria. Philip adiantou se em voz rude:
- Nunca gostei deste jovem, prepotente e arrogante, sempre se achando superior aos
demais servos... Que estado deplorável, tornou-se um miserável homem louco.
Gabriel mantinha-se imóvel enquanto Job pedia com o olhar clemência a Philip
- Poderás levá-lo contigo, Job, mas se criar problemas, farei questão de expulsá-lo da
propriedade .
Job entrou no castelo com Gabriel.
Encaminharam-se ao enorme pavilhão onde dormiam os servos. Estava vazio.
Job aproximou-se do leito feito de feno onde dormia e fez com que Gabriel ali se
sentasse.
Providenciou água e auxiliou-o a banhar-se. Cortou-lhe a barba e o bigode. Gabriel
finalmente, com túnica alva, parecia outro. Job então lhe falou:
-Gabriel, estas silencioso desde que trouxe do lago, fala-me algo!
Gabriel olhou-o fixamente dizendo-lhe:
-És pessoa boa e justa Job, estou ciente do mal que cometi.
Job surpreendeu-se com a clareza das idéias e a voz firme. No entanto, o semblante
ainda lhe era humilde.
-Recordo-me de tudo e sinto-me a mais infeliz das criaturas. Porque não me acusastes do
crime que cometi?
Job afastou-se de Gabriel indignado. Havia se iludido com sua aparente fragilidade. Não
era demente e nem estava louco. Enganara a todos.
Job, deverias ter me acusado do crime que cometi, somente assim poderia ressarcir
minha culpa em claustro fechado pelo resto de minha vida. A infelicidade me é tamanha
que não tenho motivos para viver.
O servo caminhou de um lado para o outro impaciente, ouvindo-o atenciosamente.
-Matei a minha Brigith... Matei meu filho... Mas Deus não permitiu que me matasse. Vou
sofrer este pesadelo o resto de meus dias.
Job interrompeu-o
-Escuta-me Gabriel, te acolhi como o irmão que me és e porque te apresentavas frágil,
demente e louco. Não compreendo porque o fizestes, Não gosto de ser enganado. Mas
relevarei isto, terás tempo suficiente a reparar o mal que fizestes. Substituirás a irmã que
roubaste no carinho e na atenção a Anderson. Somente assim a Deus mostrarás teu real
arrependimento. Não ouses tu, enganar-me novamente. Tu ouviste Philip, estejas certo
que se algo fizeres que desabone a minha proteção, eu o auxiliarei a expulsar-te desta
propriedade. Pelo que sei, os teus vinte e dois anos de existência estão solidificados
aqui... Ponderai qualquer atitude tua.
Gabriel, sempre humilde e mostrando-se imensamente agradecido, baixou a cabeça em
concordância.
-Agora repousa e pensa em tudo o que te disse. Mais tarde virei buscar-te para a refeição
e o início de tuas tarefas.
Dizendo isto Job afastou-se. Gabriel olhou-o, e em si somente existia ódio e fúria.
Deitou-se no leito de feno fitando as telhas de cerâmica. O silêncio se fazia naquele
aposento úmido, embora sempre alguns servos entrassem e saíssem continuamente.
Finalmente tinha conseguido o que tanto ambicionava e que há tanto tempo esperava.
Estava dentro do castelo de lorde Orlando. Repensou no ano que passara.
Angustiado e sofredor ficara com a morte de Brigith e de seu filho, que brotava em seu
ventre, fruto de ato lindo amor. Colocara-se a olhar o seu enterro, naquela tarde gelada, e
embora se mantivesse sem reações diante dos outros servos, o coração lhe estrangulava
o peito. Ali lhe era enterrada a vida, a esperança, os sonhos.
Lembrou-se que dali foi ao lago e lá permaneceu até anoitecer. Desejava congelar as
emoções no frio que fazia. Nada na vida tinha mais interesse, não desejava mais
trabalhar ou servir os nobres aos quais tanto odiava.
Caminhou até as colinas. Longa e árdua jornada que mal lhe incomodava. Lá chegando,
selecionou algumas ervas que provocariam febres elevadíssimas em quem as tomasse.
Propositadamente as tomou ao retornar ao celeiro, desejava adoecer aparentemente.
Temia também que o servo Job revelasse seu crime, mas estando doente, ninguém o
incomodaria até que voltasse a ficar são. Sabia que as ervas o deixariam agonizante e
febril por longos dias.
Propositadamente ainda, deixara próximo a si um chá de ervas fatais, para que todos
deduzissem que tentara se matar, ocultando as outras que na realidade havia tomado.
Lembrou-se que acordou alguns dias depois, cercado pela piedade de inúmeros servos e
do médico que o assistia.
Manteve-se silencioso observando tudo e todos. Com o tempo percebeu que nada sabiam
do crime que cometera e concluiu que o servo Job se calara em cumplicidade, ainda que
não compreendesse por que.
Freqüentemente um velho frei vinha próximo ao seu leito, para falar-lhe do pecado que
cometera ao tentar tirar a sua vida.
Não sabiam, no entanto, que não pensara em momento algum se matar, mas fugir às
conseqüências do mal que cometera.
Como o corpo se restabelecia e o liquido febril não mais surtia efeitos, optou por fazer-se
louco, pois somente os loucos usufruíam dos alimentos sem o árduo trabalho. Estava
empenhado em nunca mais trabalhar e em armar estratégias vingativas.
O seu ódio e a sua ira eram direcionados a Anderson. Fora culpa dele a morte de Brigith.
A raiva também era direcionada a Job , era sua a culpa da morte de Brigith .
Recordou-se que os dias de inverno passavam lentos e intencionalmente fingia conversar
e discutir com imagens inexistentes.
Divertia-se com o receio que provocava nos servos que, temerosos pelas visões que
demonstrava ter, começaram a afastá-lo das tarefas.
Fácil lhe era ficar pelos cantos fingindo demência enquanto interiormente construía o seu
ódio.
Certa vez Philip, indisposto, obrigou-o a distanciar-se do castelo, dizendo-lhe que
atrapalhava o trabalho e que poderia ficar na gruta do lago, até que falasse com Lorde
Orlando.
Sentiu-se vitorioso, conseguira o que almejara , estava finalmente livre das tarefas, longe
dos servos, do médico e do velho frei.
No lago conseguiu ficar tranqüilo e não precisou mais fingir os ataques de loucura. Vivaz,
optou por não cuidar do corpo, ainda que isso o incomodasse. Estava certo que Philip ali
apareceria para ver como estava. Se o visse limpo e bem tratado concluiria que não era
de fato demente. A comida lhe chegava em fartura e a gruta lhe era imensamente
confortável. Deixara de ser submisso e vivia bem.
Mas a raiva,o ódio, o rancor lhe cresciam incessantemente. Desejava uma oportunidade
que lhe permitisse entrar no castelo. Poucos dias depois de iniciar sua vida no lago,
surgiu-lhe um dia a oportunidade em galope lento. Havia reconhecido de imediato era
Job.
No inicio se sentiu receoso de sua presença ali, mas estava ciente que após tanto tempo
da morte de sua amada Brigith, pouco mal poderia fazer-lhe em função da sua total
cumplicidade.
Premeditadamente fizera-se aparentemente louco e lhe revelara o amor que sentia por
Brigith, e o ciúme que tinha em relação a Anderson. Assim Job compreenderia o que
ocorrera e se apiedaria de si.
Os dias passaram tranqüilamente para ele. Afastado do castelo, tinha de confeccionar
arcos e flechas, que ocultava na gruta, escondendo-os entre as pedras. Quando Job
finalmente retornou sentiu-lhe imediatamente a presença e propositadamente fizera-se
imóvel e apático.
Quando caminhou em sua direção e encaminhou-lhe á montaria, sentiu que seu desejo se
realizava. O retorno ao castelo!
Defronte ao castelo, quando Philip o agrediu verbalmente, felicitou-se interiormente pelo
êxito da conquista. Entraria no castelo e poderia executar a vingança há tanto tempo
elaborada.
Repentinamente, Job entrou no pavilhão e interrompeu-lhe as lembranças. Job
apresentava bondade extrema, e este sentimento irritava Gabriel, mas precisava manterse humilde e arrependido aos olhos deste.
-Repousastes um pouco Gabriel?
-Descansei sim Job. Estou imensamente agradecido pelo que fazes por mim.
Job pediu então que o acompanhasse, e ambos dirigiram-se á copa do castelo onde
fizeram a refeição.
Gabriel não se sentia faminto, mas devorou a comida como se há muito não se
alimentasse, decidido a manter a piedade daquele servo que o observava continuamente.
Falou-lhe Job com extrema emoção:
-Observo que estavas com muita fome, Gabriel! Agora amigo, alimento não te faltará.
Gabriel olhou-o humildemente mostrando-se imensamente agradecido, mas a vontade
que sentia era a de levantar-se e esmurrá-lo por haver matado a sua Brigith. Após a
refeição, caminharam até o aposento de Anderson, levando-lhe a refeição.
Ao entrarem, Gabriel avistou o jovem como o adversário frio e indiferente que lhe roubara
o carinho e o amor de Brigith. Sentiu um impulso enorme de pular sobre ele e estrangulálo, até que a asfixia o matasse.
Mas mais uma vez controlava-se na fúria e no extremo ódio que sentia, e mostrou-se
amigavelmente sereno e cândido.
Job carinhosamente apresentou-o a Anderson:
-Senhor Anderson, este é o servo Gabriel e de hoje em diante passará a auxiliar-te
também.
Anderson observou Gabriel desinteressadamente e Job pedindo a Gabriel que se
aproximasse, instruiu-o:
-Gabriel, observa e aprende como o alimento, passarás tu a fazê-lo quando estiver
ausente!
Então o servo colocou-se a manusear os talheres, de forma a alimentar Anderson com
extremo cuidado e amor. Gabriel mantinha-se em pé observando-os com uma repulsa
intima grandiosa.
Com o passar dos dias, Gabriel foi se integrando ás tarefas com Anderson. O dia inteiro
mantinham-se ocupados, a alimentar, banhar, limpar, trocar, vestir.
Logo Job elogiava o carinho que Gabriel demonstrava ao cuidar de Anderson. Contavalhe inúmeras estórias que aprendera com o velho Manco e com envolventes encenações,
conseguia atrair o real interesse de Anderson que, por vezes, vibrava e até conseguia rir.
Job despreocupado e percebendo que não devia ter mais receios, porque Gabriel
realmente havia se arrependido e havia mudado, tentando ser uma pessoa boa e justa,
passou a deixá-los a sós, enquanto ia aos pastos recolher flores para trazer um pouco da
perfumada primavera para o aposento.
Anderson estava mais feliz e tinha se resignado á paralisa e ás enormes limitações que
ela lhe trouxera. Aprendera a agradecer a vida que Deus lhe concedia em bondade a
cada amanhecer, e a valorizar cada movimento, por menor que fosse, que ainda possuía.
Sentia-se bem próximo a Gabriel e o considerava um grande amigo, assim como Job, a
quem reconhecera o esforço e a dedicação.
Nos campos as flores pareciam brotar incessantemente e Job continuamente as trazia em
inúmeras espécies o que dava ao aposento o ar primaveril.
Certa manhã, quando Job se ausentou do aposento para ir aos pastos, como fazia
costumeiramente, Gabriel aproximou-se de Anderson que ainda se mantinha deitado no
leito e fitou-o demoradamente.
Anderson incomodou-se com aquele olhar fixo, que naqueles longos dias havia mostrado
doçura e bondade mas agora brilhava em aparente raiva.
Balbuciou temeroso:
-O que há contigo Gabriel? Aborreceste-te comigo? Porque sentes raiva?
Gabriel nada lhe respondeu, não conseguia mais controlar em si o desejo ardente de
concluir a vingança que ocultara em doces sorrisos e palavras carinhosas.
Alcançou a almofada na qual a cabeça de Anderson estava deitada e sem que o jovem
pudesse se defender ou implorar auxilio, Gabriel começou a asfixiá-lo.
Anderson indefeso e desesperado tentava se livrar o rosto da almofada que lhe impedia a
respiração.
O ritual de sofrimento foi longo. Gabriel, maquiavelicamente, dava pequenas pausas na
tortura para visualizar-lhe a face contorcida ansiando oxigênio, e sorrindo sarcasticamente
novamente o asfixiava com a almofada.
Todo o ódio de Gabriel ali imperava. Matava-o pelo carinho e o amor que lhe roubara, pelo
tempo que não retornaria, pela pessoa que tanto amava e não mais veria, pelo filho que
nunca teria oportunidade de conhecer.
Finalmente terminou a agonia de Anderson e ele ficou imóvel perdendo a vida em seu
corpo. Gabriel friamente e sentindo-se um pouco exausto, recolocou cuidadosamente a
almofada sob sua cabeça e recompôs o leito. Anderson parecia dormir sereno, tal qual
Job o vira quando saíra.
Gabriel olhou-o indiferente ironizando em seus pensamentos: "Agora podes dormir infeliz!
Gabriel saiu do aposento aliviado, parecia ter tirado de si o enorme peso da repulsa e do
ódio que lhe consumiam os dias. Caminhou tranqüilo até o pavilhão dos servos e pediu a
um deles que chamasse o médico, porque não estava se sentindo bem. Rapidamente, em
sua esperteza, mascou algumas ervas que colhera antes, premeditadamente, quando o
Job lhe pedira para pegar flores no campo, e as ocultou em seu leito de feno sem que Job
o visse.
Quando o médico ali chegou, Gabriel já ardia em enorme febre e agonizava em
convulsões. O médico que já o havia tratado anteriormente, concluiu que fosse uma
recaída e, desconhecendo a razão da enfermidade, pediu aos demais servos que
observavam amedrontados o infeliz em convulsão, que se mantivessem distantes.
Quando Job retornou dos campos com as lindas flores que colhera com amor para
Anderson, os servos lhe avisaram da enfermidade de Gabriel. Job, apiedando-se do
amigo, correu ao pavilhão e surpreendeu-se com o corpo de seu colega em delírio febril,
espumando agonizante.
Lágrimas piedosas lhe desceram em sua extrema bondade. Um dos servos advertiu-o
que o médico instruíra que ninguém deveria se aproximar do enfermo, o mal poderia ser
contagioso. Job secando as lágrimas, indagou-lhe preocupado, quando a indisposição
havia começado.
Este como não sabia ao certo, pois ali chegara há pouco, informou-lhe que adoecera tão
logo despertara.
Job lembrou-se que Gabriel despertara consigo e o acompanhara até o aposento de
Anderson. Ali o deixara quando Anderson ainda dormia. Sentindo-se culpado, lembrou-se
ainda que Gabriel, tão logo acordara,reclamava fortes dores de cabeça e fragilidade em
seu corpo.
Job sentia-se profundamente culpado, tratara com extrema indiferença os incômodos do
parceiro amigo, pedindo-lhe que ficasse no aposento até retornar dos campos.
Percebendo que nada podia fazer por Gabriel, Job controlou-se na enorme piedade que
sentia e caminhou ao aposento de Anderson.
Observando-o dormindo ainda tranqüilamente e percebendo que Gabriel não tivera tempo
de levar-lhe a refeição matinal, saiu a providenciar rapidamente antes que o jovem nobre
despertasse.
Aproveitou que novamente havia descido, e retornou ao pavilhão preocupado em demasia
com o infeliz Gabriel, que agora estava mais sereno, parara de espumar e agonizar e
entrara em sono febril e profundo. Job carinhosamente aproximou-se do seu leito de feno,
e cobriu-o com sua manta.
Sentou-se bem próximo ,indiferente á moléstia ou ás orientações médicas e lamentou a
sua sorte . Como Gabriel era pessoa boa, naqueles longos dias havia conseguido fazer o
milagre de mudar a vida de Anderson. Com lindas canções o animava e com as
envolventes estórias o distraia. Intrigava-se, no entanto, porque o mal lhe acometia
novamente. Com certeza pensou, o corpo de Gabriel ainda se ressentia do veneno que
tomara para se matar. "Pobre Gabriel "pensou melancólico, e fez breve oração pedindo a
Deus que o auxiliasse.
Retornou então ao aposento de Anderson levando-lhe a refeição e preocupado em como
lhe explicaria a ausência de Gabriel, de quem tanto aprendera a gostar. Ao entrar
observou surpreendido que o jovem ainda dormia, e observando o sol que já se erguera
em demasia, aproximou-se do leito para desperta-lo.
Olhou-o atenciosamente e percebeu assustado que não tinha respiração. Tocou-lhe a
pele e sentiu-a quente. Sentiu-se amedrontado e ciente de que novamente a fatalidade
descia naquela família.
Correu desesperado a chamar Philip e o médico. Rapidamente todos se encontravam no
aposento observando o corpo do jovem Anderson. O médico exclamou surpreso:
-Anderson morreu dormindo, tal qual a irmã Brigith!
Job sofreu em demasia com a perda do seu protegido, recostado próximo às flores que
colhera, desejando alegrá-lo em mais um dia.
Lembrou-se repentinamente do sonho de Anderson que nunca lhe saíra da mente “Disseme que quando as flores surgissem nos campos, viria me buscar para caminhar com ela
até ás colinas...” Job caminhou até a janela e, por um instante, imaginou Anderson e
Brigith correndo pelos campos de mãos dadas.
As lágrimas saudosas desciam-lhe tristes em suas faces robustas. Philip e o médico
foram imediatamente avisar a nobre Joane do falecimento de seu filho Anderson. Como
Lorde Orlando e seu filho estavam ausentes do castelo, em viagem a Adredanha, deveria
ela dar as ordens para que fossem tomadas todas as providências.
A nobre senhora sempre muito elegante, mas envelhecida pelo constante claustro em seu
aposento e entristecida pelos acontecimentos fatídicos em sua família, recebeu-os
recostada em um pequeno divã.
O aposento era requintado, decorado com esmeros luxo, e as tonalidades escuras nos
cortinados e tapetes, que o tornavam sombrio, mas aconchegante, mostravam que a
nobre Joane temia excesso de luminosidade.
O médico aproximou-se e, com cuidado primoroso, falou-lhe das limitações de seu filho
tetraplégico para depois lhe informar de sua morte. Joane olhou-os conformada dizendolhes:
-Não se surpreendam com minha insensibilidade á notícia que me trazem, para mim é
enorme motivo de alivio e conforto saber que Deus teve misericórdia de meu amado filho
e o abençoou concedendo-lhe morte tranqüila. Ciente estava do quanto meu filho sofria
em função das limitações em sua juventude. Deus é Pai e é justo!
Silenciou serena, parecia estar fazendo uma breve prece com os olhos cerrados. Alguns
instantes depois, pediu a Philip que tomasse todas as providências necessárias ao
enterro e que prontamente enviasse um mensageiro á propriedade de Adredanha,
enviando a seguinte mensagem, que manuscreveu:
“Senhor meu esposo,
Venho informar-lhe que nosso querido primogênito
descansa finalmente em paz, ao lado de Deus .
Sua esposa
Joane"
Philip saiu ágil a resolver tudo, enquanto o médico ficou no aposento a pedido da nobre
senhora.
Murmurou esta:
-Pedi que ficasses, pois desejo falar-lhe. Senta-te Ricardo!
O médico sentou-se sem cerimônias próximo da dama, como uma pessoa íntima e amiga.
-Que desejas de mim, nobre Joane?
Joane cerrou o semblante pedindo á sua dama de companhia, que ali ainda estava, para
deixá-los sozinhos. Olhou então o médico e disse-lhe com extrema seriedade.
-Não é de meu interesse chamar o velho frei e me confessar, estou ciente que ele no
compromisso de sua religiosidade não poderia ajudar-me!
O médico a olhava extremamente curioso e Joane prosseguiu:
-Ricardo, és o médico de nossa família há uma década, ainda que por motivos da
moléstia contagiosa em Adredanha tenhas te ausentado temporariamente.
A nobre dama ergueu-se e caminhou até á janela.
-Sabes do mal que possuo e sempre me fostes leal, respeitaste-me a vontade e sempre
mantiveste sigilo absoluto. Cuidadosamente tens me dado a droga sem que nenhum de
meus familiares ou servos sequer o desconfiem. E somente o medicamento me tem
mantido apta á convivência ocasional com eles, sem que se apercebam de minhas
terríveis dores...
O médico levantou-se, desejava caminhar até Joane para confortá-la, mas manteve-se
imóvel.
-Sei que as dores são mais freqüentes e isto me leva a crer, ainda que não me digas, que
o tempo que me resta é bem restrito.
Ricardo disse preocupado:
-Senhora, é melhor sentar-se.
Joane prosseguiu fazendo um gesto para que o médico novamente se sentasse.
-Não conseguirei descansar, enquanto não te pedir auxilio.
Caminhando sentou vagarosamente novamente no divã.
- Como te disse, Ricardo, isto não é uma confissão. Desejo compartilhar contigo algumas
coisas de minha vida para que me auxilies.
O médico sentia-se apreensivo e tentou evitar que ela continuasse se emocionando.
-Senhora, é importante que repouse. O medicamento começa a perder o efeito.
Joane se tornava pálida e começava a se contorcer com as dores que lhe atacavam o
corpo.
-Ricardo peço-te que me ouças, como já pudestes observar, das grandes janelas de meu
aposento posso visualizar o rio, as colinas, os campos...posso ver e acompanhar em
posição privilegiada o dia a dia de cada servo, indo e vindo de seus afazeres. Posso vêlos entrando e saindo do pavilhão onde dormem e posso observar os bonitos cavalos
entrando e saindo do celeiro.
Deu um profundo suspiro e continuou.
-Como sempre fiquei muito reclusa em meu aposento, para não despertar atenções sobre
o mal que possuo e suas conseqüentes e constantes dores, passei longos dias de minha
vida, por detrás destas janelas, de onde sempre pude acompanhar a vida deste castelo.
Joane prosseguiu de olhos cerrados como se tentasse com isto controlar a dor que sentia.
-Com esta minha diária distração, os dias passavam-me breves. O que te contarei agora
não é de forma alguma, uma acusação, mas um conjunto de suspeitas.
Joane contorceu-se em dor violenta e o médico prontamente auxiliou-a.
- Agora é melhor deitar-se senhora!
Enquanto o médico Ricardo a auxiliava a deitar-se,explicou-lhe :
-Como acompanhei Philip a vir aqui dar-lhe a notícia do falecimento de seu filho
Anderson, e sabendo de sua enfermidade, achei prudente trazer-lhe a morfina. Vou
aplicá-la e se sentirá melhor!
Dizendo isto, o médico lhe deu o medicamento e a senhora, após repentina melhora
suplicou-lhe:
-Ricardo, acomode-se novamente para que eu continue. Ainda tenho muito a falar-te, e
temo que não tenha muito tempo para isto.
O médico sentou-se num banco próximo ao leito, e ouviu-a atentamente. Joane
continuou, agora serena.
-Como te dizia Ricardo, não desejo acusar ninguém, mas dividir a minha suspeita contigo,
para que tu, em teu dinamismo força e jovialidade, possais averiguar. Desde que minha
filha completou os treze anos, pude observar um comportamento estranho, talvez certo
interesse em demasia por um dos servos. O vi freqüentemente amanhecer nas pastagens
próximo ao rio, a observar o castelo. Ele fazia isso continuamente. Quando eu descia para
conviver um pouco com meus familiares, pude observar ainda os olhares de paixão que
este servo destinava a Brigith quando a vinha chamar para cavalgar. Como mãe zelosa
que sou, ainda que freqüentemente ausente em função de minha enfermidade, resolvi
vigiar-lhe o comportamento. Percebi então, pela janela de meu aposento, que esse servo
parecia demasiadamente agitado e nervoso com a proximidade do noivado de Brigith.
Cavalgava pelas colinas, confuso, e caminhava nas margens do rio impaciente. Por
minhas observações conclui que a amava, mas estava certo que Brigith, já com seus
quinze anos, não o via além de um mero servo que lhe era amigo. Certa noite, em que
precisamos de lenha no castelo, este servo a trouxe... Enquanto a arrumava
vagarosamente próximo á lareira eu levantei-me para ir até o lavabo, sentia dores e
precisava disfarçá-las. Quando retornava deste, observei que o rapaz subia apressado a
escadaria que levava aos aposentos. Temi pela segurança de meus familiares, mas nada
falei ao senhor meu esposo. Estava certa que ali subira por mera curiosidade e que não
demoraria a descer. Conhecia seu tutor e sabia que pessoa tão boa não poderia ter um
protegido ruim.
Joane observou o médico para verificar-lhe a atenção e continuou.
-Como não pude observá-lo, pois havia me reunido aos demais no salão, deduzi que
tivesse descido prontamente e saído do castelo. No entanto depois que nos retiramos
para o referido repouso naquela noite, e como não consegui dormir, pelos incômodos que
sentia, postei-me na janela... Tentava distrair-me com a noite. Era bem tarde quando
percebi um vulto correr em direção ao celeiro. Pela silhueta estou certa que era Gabriel.
Pela primeira vez Joane falara o nome do rapaz e o médico redobrou a atenção na longa
narração da nobre dama que, de olhos fechados, parecia visualizar os acontecimentos
que testemunhara só e agora compartia com ele em confidência.
- Como a morfina me deixa excitada e com insônia, interessei-me em verificar o que
acontecia ali, e de lá não tirei os olhos. Posteriormente, vi o velho Manco caminhar até o
pavilhão e de lá saiu apressado carregando uma corda.
Não tardou muito Gabriel saia do castelo em seu cavalo. Lembro que a silhueta estava de
chapéu e recordo ainda, com perfeição, que carregava um enorme arco nas costas.
O médico Ricardo, de um sobressalto levantou-se do banco e pôs-se de pé.
-Mas porque a senhora nunca contou isto a seu marido, Lorde Orlando?
-Sente-se Ricardo... Como haveria de lhe dizer o que fazia na janela tão tarde da noite?
Ricardo sentou-se:
-A senhora poderia dizer-lhe que estava sem sono.
-Não Ricardo... Não tinha eu motivos para desconfiar do passeio noturno de Gabriel.
Ricardo olhou-a fixamente:
- Mas com certeza, a senhora teve inúmeros motivos para desconfiar posteriormente?
-Sim, os tive Ricardo , mas calei-me . Na manhã seguinte , dia festivo pelo noivado de
nossa filha Brigith , chegou a comitiva de Duque Henri I , trazendo o filho que falecia,
alvejado por duas flechas ... Como o amigo sabe, não acharam suspeito do ataque .
Joane parou repentinamente, e uma lágrima desceu-lhe nas faces. Cerrou novamente os
olhos e prosseguiu:
-Acalma-te, Ricardo, que ainda tenho muito a falar-te ... Quando o luto terminou com a
partida do Duque da Duquesa, meus filhos pediram para dar um passeio, o que consenti.
Caminhei até a janela da grande sala, e pude observá-los assumir a montaria. Intrigada
observei Gabriel e mais intrigada fiquei observando que Brigith trocava olhar cúmplice
com ele. Temi pela inocência de minha menina e, apressada dirigi-me a meu aposento.
Daquela minha janela pude ver os meus três filhos distanciando-se nas colinas, e
assombrada percebi que Gabriel os seguiu. Estava disposta a chamar meu esposo, mas
mais uma vez temi fazê-lo, e aguardei ansiosa que retornassem. Observei quando os três
surgiram no topo da colina e com tristeza imensa lembro-me de meu filho Anderson,
sendo arremessado do cavalo. Naquela distância não podia compreender o motivo , mas
quando o cavalo de Anderson passava perto do rio a caminho do celeiro, pude observar
revoltada que a cela estava completamente solta .
Ricardo novamente interrompeu-a :
-Senhora o que me narras e assustador! Primeiro me dizes que Gabriel ausentou-se do
castelo, tarde da noite com um arco, e na manhâ seguinte o noivo de Brigith é ferido, não
muita distante daqui... Agora me dizes que teu filho caiu da montaria porque a cela estava
solta, e me afirmas que Gabriel os acompanhava. Mas porque senhora te omitistes em
silêncio?
A nobre dama que agora chorava intensamente nada respondeu. Ricardo colocou-se a
caminhar no aposento impaciente
- Posso prosseguir?, indagou a senhora após algum tempo . Ricardo fez um meneio
sentando-se.
- Ricardo , estou certa que errei em omitir, mas não me julgues.Auxiliai-me a descobrir a
verdade . Ouvi tudo e não me interrompas.
Ricardo baixou a cabeça em humildade e deixou-a continuar.
-Com imensa dor soube da invalidez de meu primogênito, as reuniões familiares
passaram a ser breves encontros silenciosos. Fiquei então maior tempo reclusa. Nos
poucos momentos em que via meus filhos, podia observar-lhes o crescimento que passa
despercebido a quem se vê freqüentemente. Mas a esta mãe, que os via tão pouco, a
diferença era grandiosa . Pude observar que Brigith com seus quinze anos não era mais
uma menina, os quadris haviam aumentado e os seios se tornavam fortes. Desconfiei que
tivesse perdido definitivamente a infância no encontro furtivo, mas não tinha certeza.
Fiquei vigiando-a a distância, tornando-me amiga e confidente de Lana, sua dama de
companhia. Por ela soube que Brigith estava indisposta e que a comida lhe dava enjôos e
vômitos... Começava a ficar certa do que desconfiava. Com certeza ela teria se
encontrado com Gabriel e estava esperava um filho. Angustiei-me em demasia e recolhime em oração, pedindo a Deus que me iluminasse numa solução para ajudá-la. Certa
noite vi Job dirigindo-se ao celeiro. Observei que trazia algo em suas mãos e fiquei
curiosa. Senti-o caminhando nos corredores e ,sem que me visse, o segui. Observei
quando entrou no quarto de Brigith e como a porta estava somente encostada pude
escutar-lhes o dialogo. Job, a pedido de Brigith, conseguira um chá com Gabriel para
sanar-lhe as indisposições que sentia. No dia seguinte como o senhor sabe, minha filha
amanheceu morta !
O médico não se continha de aflição e baixando o rosto sobre as mãos balbuciou:
-Que horror!
Joane também rompia em pranto inconformado, dizendo-lhe entre soluços.
-Ricardo tudo são meras desconfianças, de nada podemos ter certeza.
Ricardo olhou-a intrigado:
-Perdoai-me, senhora, a indiscrição, mas ainda não consigo compreender seu silêncio.
Joane tentava se desvencilhar do olhar de Ricardo, temia que este descobrisse em si um
pecado tão docemente guardado, um segredo jamais revelado. Prosseguiu, para distrairlhe a atenção:
-Recentemente, fiquei sabendo que o velho Manco falecera na noite em que Anderson
ficara inválido, e fiquei sabendo ainda que Gabriel retornou ao castelo, como demente,
para cuidar de meu filho, que coincidentemente agora faleceu ...
A nobre dama mostrou sinais de cansaço e o médico falou:
-A morfina a acalma, e dormirá breve sono, precisa repousar .
Joane agradeceu-lhe com um olhar e antes que o médico Ricardo saísse do aposento
disse-lhe:
-Ricardo, tens uma desconfiança e não uma certeza, ponderai as atitudes, confiei-te este
meu segredo.
Ricardo lhe fez breve reverência afirmando-lhe fidelidade e saiu. Sentia-se intrigado com
tudo que ouvira. Se as suspeitas eram verídicas, tantos males ela teria evitado se
houvesse alertado Lorde. Porque as ocultara durante tanto tempo? Porque somente
agora dividia as suas duvidas quanto a integridade de Gabriel?
Intuitivamente rumou ao pavilhão dos servos e quando se aproximou deste, voltou-se na
direção das muralhas do castelo. Realmente Joane falara a verdade, da porta do pavilhão
poderia avistar as janelas de seu aposento.
Surpreendeu-se ao vê-la, de pé, recostada no cortinado. Olhava-o serenamente.
Ricardo baixou o semblante e entrou no interior do pavilhão. Porque Joane expressara-se
imensamente cansada e agora a vira predisposta mirando da janela? Porque evitara o
diálogo? As perguntas lhe eram intermináveis.
Ricardo caminhou até o leito onde Gabriel se encontrava. Examinou-o. A febre ainda
estava elevada, mas o sono mantinha-se tranqüilo. Ficou ali pensativo olhando-o por
longo tempo... Seria aquele rapaz, de vinte e quatro anos de idade, capaz de premeditar
a desgraça de tantos por simples amor? Gabriel pareceu sentir-lhe a presença
indagadora, e agitou-se no leito.
Ricardo levantou-se e saiu. Observou na saída do castelo que Philip providenciava o
sepultamento para o entardecer. Agindo por instinto rumou até o celeiro, e de lá também
se voltou para avistar as janelas do aposento de Joane. Sem duvida, ali estava
ela.Mantinha-se na mesma posição imóvel, observando-o .
Meditou, surpreendido, "Como a nobre dama tão ausente da vida no castelo, estava tão
mais presente que os demais, em seu posto solitário, observando, vigiando e concluindo
de uma mera janela".
Entrou no celeiro e sentou-se no feno.Sílvio surgiu, indagando ao médico se desejava
algo. O médico fez-lhe perguntas sobre Gabriel e o menino prontamente informou tudo o
que sabia.
Ricardo então lhe pediu um cavalo e rumou tranqüilo até o lago. Não foi difícil encontrar a
gruta onde Gabriel vivera, no breve tempo de reclusão. Entrou na gruta, temeroso do que
ali encontraria. No vasto vão revestido de pedra, observou um farto leito de palha. Curioso
caminhou até ele. Próximo ao leito, cravado na pedra, com sulcos rústicos e mal traçados,
o nome de Brigith.
Alguns restos de fogueira ali próximo lhe chamaram a atenção. Porque faria Gabriel uma
fogueira dentro da gruta. Caminhou até ela, e remexeu as cinzas.
No meio delas, o médico Ricardo encontrou alguns pedaços de pedra, talhados no fogo.
Quatro pedaços tinham a forma aproximada de pontudas flechas.
A conclusão lhe entorpeceu o ser. Gabriel, na penumbra da noite, fabricava flechas... Mas
para que? E onde as ocultaria?
Ergueu-se veloz e vasculhou a gruta de ponta a ponta. Nada encontrou. Mas uma pedra
deslocada das demais o intrigou e resolveu removê-la. Não foi difícil fazê-lo.
A surpresa invadiu-lhe todos os sentidos. Quatro arcos bem talhados em madeira alva e
quantidade substanciosa de flechas ardilosamente trabalhadas se encontravam ali
ocultas. Ricardo temia alguém vir procurá-lo, e recolocou a pedra em seu lugar. Saiu da
gruta e o ar fresco lhe fez sentir-se bem. Aproximou-se do lago e ali permaneceu algumas
horas, tentando concluir tudo o que ouvira e vira naquele dia.
O sepultamento de Anderson foi breve.
Joane permaneceu serena e silenciosa e depois rumou aos seus aposentos sem nada
dizer.
Job demonstrava sentimento de perda profunda, como se ali tivesse sepultado o filho
mais querido ou o irmão mais terno.
Sentara-se próximo às duas sepulturas, a de Brigith e a de Anderson, e ali permanecera
até que a noite o fizesse retornar ao castelo.
O médico Ricardo manteve-se distante como um hábil observador, tentando compreender
tudo e todos.
Sempre fora o servo mais discreto e neutro naquela propriedade. Nunca se envolvera na
vida da nobreza ou dos demais servos. Fazia seu serviço com dedicação e amor, e o
ofertava sem nada exigir ou reclamar. Lembrava-se que ali chegara quando as crianças
eram pequenas e a vida familiar era tranqüila e serena.
Chegara á propriedade, com ordem do Lorde para substituir o médico familiar que havia
falecido repentinamente de velhice.
Podia recordar-se com clareza do dia em que chegou. Ao descer as colinas avistou uma
menina de aproximadamente cinco anos, cabelos dourados e cacheados, que correu em
sua direção e falou-lhe cândida: "Meu nome é Brigith e o seu, senhor ?"...
Ricardo agora sentia-se cansado, os quarenta anos de existência física já lhe pediam
calma e ponderação nas atitudes e nos impulsos. Sempre fora neutro, mas agora se via
envolvido numa trama diabólica a confirmar, e a pedido da nobre dama, deveria se manter
discreto até ter provas e certezas. "Como a vida tecia os rumos dos seres, entrelaçandoos !” pensou.
Quando Job retornava ao castelo, Ricardo o acompanhou silencioso.
Ao chegarem próximo ao pavilhão dos servos , Job falou-lhe:
-Viestes ver Gabriel, Dr. Ricardo?
O médico olhou-o intrigado.
- Sim Job, mas também desejo falar contigo.
Ricardo caminhou na direção de Gabriel e observou-o. O quadro clínico se mantinha o
mesmo. Muita febre e sono agitado. O médico nada poderia fazer, a não ser esperar que
a febre cedesse, e manter os demais serviçais distantes. Quando algum mal ocorria sem
explicação, não podia ter certezas de que não era contagioso... A precaução era a sua
primeira providência.
Olhou Job que o aguardava.
- Que desejas, senhor Ricardo ?
-Conversar contigo, Job, ainda que saiba que já é tarde.
-Estou sem sono senhor, podemos conversar.
Ricardo caminhou com Job até o pátio interno do castelo, e ainda que sentisse a
presença de Joane a observá-los da janela de seu aposento, não olhou em sua direção.
Sentou-se e Job sentou próximo a si, de cabeça baixa, triste e silencioso.
-Job, gostavas muito de Anderson.
-Sim senhor Ricardo. Considerava-o um irmão muito querido.
-Pelo que soube, também gostavas muito de Brigith.
-Sim senhor, tinha-lhe imenso carinho e respeito.
-Que idade tens?
-Farei trinta anos na próxima primavera.
-Viestes da propriedade de Adredanha para cuidar de Anderson, que farás agora Job?
-O que o senhor Lorde me ordenar senhor Ricardo, no entanto, gostaria de retornar para
perto de minha família. Tenho esposa e uma filhinha.
-Porque não as trouxestes contigo?
-Senhor Ricardo, nós os servos, não decidimos sozinhos nossas vidas. O Lorde requisitou
os meus serviços aqui neste castelo. Ainda pedi a Philip, que havia ido a Adredanha me
buscar, que permitisse que minha família me acompanhasse, mas este simplesmente
alegou a inutilidade destas nesta propriedade.
-Deves sentir falta, afinal há muito tempo não a vês.
-Precisava tratar do senhor Anderson, e ele me ocupava os dias, mal percebi o tempo
passar. Mas, por vezes, enquanto dormia, elas me surgiam na mente e eu sentia-me
amargurado pela distância.
O médico olhou-o sentindo-lhe a tristeza, e tentou consolá-lo.
-Não tardará, o Lorde estará no castelo novamente e com certeza permitirá que retornes
para tua família.
Job olhou-o confiante e o silêncio por breves minutos se fez. O médico encheu-se de
coragem e perguntou:
-O que achas de Gabriel?
Job estremeceu sentindo que a pergunta não lhe era feita despropositadamente.
-Que desejas saber, senhor?
O médico, analisando-o sempre nas reações, continuou.
-Tudo Job. Preciso saber tudo!
O servo sentia uma enorme vontade de desabafar, mas temia por sua segurança. Sentiase cúmplice na morte de Brigith. O médico, no entanto, parecia-lhe pessoa de confiança.
Ricardo, percebendo-o apreensivo, olhou a imensidão escura cintilante de estrelas e
disse-lhe, colocando-lhe a mão no ombro.
-Confia em mim Job. Não desejo te prejudicar. Me ajude!
Ricardo olhava-o suplicante e Job, abaixando a cabeça sobre os joelhos, sentindo-se
imensamente culpado, chorou. Ricardo o acalmou e Job, mais sereno, contou-lhe tudo o
que havia ocorrido com Brigith. O médico, perplexo com a confirmação de algumas
suspeitas da nobre senhora, também baixou a cabeça inconformado, e disse-lhe baixinho.
-Então ele era o pai!
-Sim, senhor Ricardo, e a matou por mero engano, acreditando que matando Anderson se
reaproximaria dela
-Job, disseste-me que te enganou, fingindo-se louco. Não temeste pela segurança de
Anderson?
-Sim senhor, no inicio fiquei demasiadamente preocupado e vigiava-o continuamente, mas
com o tempo passei a confiar em seu real arrependimento. Era bom, terno e amigo de
Anderson. Gabriel conseguiu fazer o que eu não havia conseguido - fazer Anderson ser
resignado, feliz e humilde com a vida que Deus lhe concedera. Porque o mataria não mais
tinha motivos para isto?
O médico o olhou surpreso.
-Como és ingênuo Job! Talvez por raiva ou por ódio, talvez por vingança!
- Mas não o fez, não é, senhor? Não teve tempo para isto!
-Talvez estejas errado meu amigo, não desejo acusá-lo sem provas concretas, mas
devemos ponderar que Anderson também morreu surpreendentemente dormindo.
O médico e o servo se olharam perplexos. Ricardo pediu-lhe então humildemente.
-Job, precisamos nos ajudar, juntos descobriremos tudo. Precisamos ser observadores
atentos, silenciosos, prudentes e sensatos. Me ajudarás?
-Sim senhor, o ajudarei com meu silêncio e minha total discrição.
O médico então se levantou, determinado a ir ao aposento de Anderson e Job o
acompanhou a seu pedido. Acenderam uma pequena candeia e entraram.
-Senhor Ricardo, o que faremos aqui?
-Job, evita falar. Conheces mais do que ninguém este aposento, e este ainda não foi
limpo. Preciso que verifiques se nele algo há de anormal.
Job rapidamente compreendera as intenções do médico e, silenciosamente, pôs-se a
conferir a posição de objetos, moveis e pertences utilizados nos cuidados com Anderson.
Parecia um fiel cão farejador, que por acompanhar constantemente o seu dono, sabia-lhe
os hábitos e por vezes até adivinhava-lhe os pensamentos. Vasculhou as tapeçarias e os
cortinados. Nada de anormal encontrara.
- Nada senhor, tudo está perfeitamente igual, como deixei pela manhã, quando saí a
colher as flores no campo, deixando Gabriel a sós com Anderson.
O médico aproximou-se do leito de Anderson e indagou-lhe num sussurro.
-E o leito Job? Ainda não o verificastes.
O servo aproximou-se, entristecido com as lembranças. Diariamente trocava-lhe as
mantas, mas naquele dia não tivera tempo a fazê-lo. Olhou pausadamente o leito ainda
desarrumado.
-Senhor, nada vejo de anormal aqui também.
O médico, sentindo-se impulsionado, indagou-lhe, levantando a candeia para que melhor
luminosidade tivessem.
-Job olhai a almofada!
Job pegou-a e olhou fixamente. Revirou-a e de rompante deu enorme suspiro de
surpresa.
-Senhor...
-Que foi Job? Que encontrastes?
Job, mostrando-lhe a almofada, falou trêmulo.
-Senhor está furada, parece uma mordida!
O médico passou o dedo sobre a marca incrivelmente discreta na almofada e mostrou o
dedo a Job dizendo-lhe:
-Uma mordida e gosma salivar, vês Job?
Job exclamou em sofrimento.
-Senhor Ricardo, Anderson não poderia morder a almofada, jamais o colocava para
dormir de bruços, temia que se asfixiasse! Sozinho não podia virar-se em sua total
imobilidade.
O servo deixou cair a almofada e prostrou-se de joelhos em pranto angustiado, em que
repetia continuamente.
-Asfixia senhor! Anderson foi asfixiado!
O médico, em sua prudência , ainda analisava minuciosamente a almofada . Realmente a
marca discreta de uma mordida ali estava, como se alguém houvesse mordido com
extrema força marcando-a em pequenos furinhos. O médico olhou piedosamente para
Job e suplicou-lhe:
-Job, controla-te ! Responde-me, quando trocastes esta almofada pela ultima vez?
O servo humilde, aos soluços, tentou conter-se, levantando-se.
-Senhor, eu sempre a trocava antes de deitar Anderson no leito. Achava importante que
sentisse o leito sempre limpo e perfumado. Ontem eu mesmo arrumei o leito, e posso
afirmar que a almofada estava alva, limpa e impecável.
-Foste tu que deitastes Anderson no leito?
-Sim senhor. O peguei no colo como sempre fazia, deitando-o cuidadosamente no leito...
Ajustei-lhe a almofada e indaguei-lhe se estava confortável.
As lembranças traziam a Job imensa tristeza e agora lhe esfaqueavam a consciência,
sentindo-se culpado por sua morte. O médico recordou-se que ao vir examiná-lo pela
manhã, o corpo ainda estava bem quente, e facilmente concluiu que Anderson havia sido
morto em asfixia bem cedo. Indagava-se, no entanto, como poderia ter sido Gabriel, se
este estava doente. Perguntou a Job:
-Disseste-me que deixastes Gabriel aqui ao saíres?
-Sim senhor. Dizia ele que se sentia mal, pediu que não me demorasse...Não lhe dei
atenção, não parecia nada sério...Anderson dormia, podia sentir-lhe a respiração
profunda, ao sair.
O médico, extremamente sério, fez um sinal a Job para que se retirassem do aposento de
Anderson. Apagaram a candeia, e saíram apressadamente para o pátio.
Job estava completamente abatido e horrorizado.
-Senhor, que faremos?
-Prometeste-me teu silêncio e tua discrição, lembras-te?
-Sim senhor.
-Então volta ao pavilhão, deita-te e tenta dormir. Sei que será difícil, mas esquece que
Gabriel está ali.
-Como poderei senhor, não indignar-me com sua presença?
Ricardo olhou-o com bondade e colocando-lhe amigavelmente a mão no ombro, falou-lhe
serenamente tentando passar-lhe paz.
-Lembra-te das doces palavras de Brigith, no sonho de Anderson, que me contastes.
Lembra-te Job, de tua esposa e de tua filhinha...
Job fez-lhe um breve meneio de agradecimento e entrou no pavilhão. Olhou Gabriel. Não
sentia raiva ou ódio, mas desejava ardentemente poder despertá-lo e, olhando-o
profundamente nos olhos, indagar-lhe: “Porque matara Anderson depois de lhe devolver a
alegria da vida?"
Job sentia-se exausto. Deitou-se em seu leito e cerrando os olhos, orou.
No dia seguinte, tão logo amanhecera, o médico caminhou apressadamente ao pavilhão
dos servos, convicto de que Gabriel matara Anderson asfixiado. Olhou-o piedosamente.
A febre parecia ter cedido um pouco, mas ainda se encontrava inconsciente. Olhou ao
redor, percebendo que todos os servos já haviam saído para a lida.
Resolveu vasculhar o leito de Gabriel e, em meio ao feno, o médico encontrou um galho
de ervas. Parecia não ter muito tempo que havia sido colhido e encontrou ainda algumas
folhas que haviam sido mascadas do mesmo. Sabia que aquela erva poderia servir para
matar ou para curar! Não era grande conhecedor das ervas medicinais existentes naquela
propriedade.
Sentia enorme necessidade de testá-las para verificar-lhe o efeito medicamentoso.
Ricardo sentia enorme intuição de que as ervas não fariam mal a quem as mascasse, e
decidido caminhou ao celeiro. Ainda que se mantivesse meio receoso, resolveu testá-las
em Sílvio. O rapaz surgiu-lhe sorridente e prestativo como sempre e o médico falou-lhe.
-Lembrei-me que reclamastes dores de garganta. Trouxe-te algumas folhas que deves
mascar.
O rapaz agradeceu-lhe confiante e pegando as ervas prontamente mascou-as com
segurança.
Num efeito surpreendentemente rápido, o rapaz começou a ter convulsões e a babar. A
temperatura também lhe subiu assustadoramente em enorme febre que lhe ocasionava
delírio. O médico Ricardo, sentindo-se culpado pela temporária enfermidade de Sílvio,
segurou-o carinhosamente para que não se ferisse no processo convulsivo.
Concluiu prontamente: "A febre não era uma enfermidade. Era apenas um meio do qual
Gabriel fazia uso, para fugir das possíveis conseqüências de seus atos criminosos! Ele
as usara posteriormente á morte de Brigith, e agora fizera o mesmo após a morte de
Anderson.!
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Gabriel, na masmorra, fitava silencioso a guerrilha de vultos negros que se digladiavam
próximo ao rio. Compreendia agora que os guerreiros tentavam proteger o castelo.
Sentia-se preocupado e por horas esqueceu-se da fraqueza do seu corpo.
Concluíra que os servos e os nobres, com certeza, estavam escondidos no interior do
castelo. Deveriam ter sido avisados do ataque e por este motivo, ao longo daquele dia,
não percebera ele qualquer movimento na propriedade. Não compreendia, no entanto,
porque aqueles homens tentavam invadir o castelo. Nos quatro anos ali enclausurado,
pouco conseguia tomar conhecimento da vida de seus moradores.
Controlava o tempo pela luas e pelo sol que surgiam diariamente, e que traçava em
sangue nas paredes frias de pedra. Neste controle, podia ter certeza do tempo que ali
estava. Mil e seiscentos tracinhos de dor... Dias intermináveis de ociosidade. Inúmeras
vezes os contava, somava, dividia e multiplicava para manter o seu raciocínio operante.
Também dialogava consigo mesmo, como se mantivesse conversação com outros...
Cantarolava e recitava as velhas estórias e contos que Manco lhe ensinara. Ainda que
aquele pequeno espaço de sua cela fosse extremamente restrito, flexionava os membros
para que não enrijecessem, e nas grades daquela janelinha forçava a musculatura
braçal. Assim haviam sido os seus dias. Tinha se organizado para não enlouquecer. Mas
não podia saber o que ocorria no castelo. Alguns dias antes daquele intempestivo
combate vira Lorde Arthur cavalgando apressado sobre as colinas, com alguns guerreiros.
Aos vinte e cinco anos se tornara um rapaz alto, mas mantivera o porte magro, o que não
o impedia de ser um bom guerreiro. Gabriel indagava-se se ele estaria participando do
combate, com sua agilidade. De súbito, as lâminas pararam de se debater e Gabriel viu
inúmeros vultos correndo em direção de seus cavalos e fugirem apressadamente. Pouco
conseguia ver na noite escura, mas sentia que o combate havia terminado e que os
invasores não haviam tido êxito.
Ansiava a madrugada que se aproximava para poder ver melhor com a claridade e talvez
compreender o que ali ocorrera. Ansiava que a vida na propriedade recomeçasse em paz
e segurança para todos.
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O dia já findava quando o médico Ricardo deixou Sílvio em seu aposento Mantivera-se a
seu lado o dia inteiro, tentando amenizar-lhe o mal que ocasionara.
Caminhou decidido até o pavilhão dos servos e observou Gabriel. A febre havia cedido
significativamente, certamente estaria restabelecido pela manhã. Ricardo, no entanto,
ainda não sabia ao certo, como proceder com ele.
Indagou onde se encontrava Job a alguns servos e estes lhe informaram que ele tinha
saído cedo para os campos de cultivo, obedecendo a ordens de Philip.
Com o sol já se ocultando nas colinas, sentou-se próximo ao rio e resolveu aguardar o
retorno de Job, precisava falar-lhe. Quando Job se aproximou, Ricardo fez-lhe um gesto
para que se aproximasse.
Job sentou-se próximo a ele e Ricardo disse-lhe:
-Job, pedirei a Philip permissão para que trabalhes comigo. És rapaz esperto e de bom
coração. Poderás auxiliar-me com os enfermos do castelo até o Lorde voltar da
propriedade de Adredanha.
Job olhou-o agradecido. A fronte se apresentava cansada da rude lida nos campos de
cultivo e o corpo sujo implorava-lhe que se banhasse, por isto pediu-lhe licença e afastouse sem mais nada dizer. Ricardo caminhou até o aposento da nobre Joane.
Chegando lá, bateu na porta anunciando-se e a senhora autorizou-lhe a entrada. Joane
estava deitada em seu leito. As forças lhe pareciam nulas na voz baixa extremamente
enfraquecida. As faces estavam profundamente abatidas. Todo o entardecer, Ricardo ali
vinha para dar-lhe o alento a suas dores. Inúmeras vezes a encontrava contorcendo-se,
sem suportá-las. Ricardo caminhou em sua direção e dando-lhe o medicamento com
extrema bondade, pediu á sua ama que saísse do aposento. Ricardo então:
-Senhora, sei que não se sente bem, mas preciso muito falar-lhe.
-Meu bom amigo Ricardo, diz-me, o que descobristes?
Ricardo vagarosamente narrou-lhe as assustadoras descobertas e Joane não se mostrou
surpresa. Parecia imensamente infeliz. O médico continuou:
-Desejo lhe pedir permissão para que assim que Lorde Orlando retorne ao castelo, possa
falar-lhe sobre tudo.
O médico olhou-a suplicante, observando-lhe as reações e continuou:
- Somente Lorde poderá julgá-lo e puni-lo.
Joane olhou-o amedrontada:
-Não Ricardo!
O grito suplicante já lhe saia num sussurro.
-Precisava ter certezas do que vira e ouvira, e hoje me trazes...mas não poderemos
acusá-lo. Somente observá-lo!
Joane cerrou os olhos em contorção de dor violenta. Ricardo indignou-se e por alguns
instantes esqueceu-se de sua submissão perante a nobre dama. Disse-lhe inconformado:
-Que me pedes senhora? Pedes-me que me cale a tudo que sei? Que seja cúmplice de
atos tão bárbaros e friamente premeditados, que destruíram-lhe a família e
conseqüentemente a paz e a felicidade? Porque senhora desejas poupar de punição um
mero servo vil, que numa paixão doentia exterminou a vida de quatro seres?
Ricardo caminhava nervoso, de um lado para o outro. Aproximou-se novamente do leito e
disse-lhe ajoelhando-se:
-Por piedade, nobre senhora, deixai-me clamar por justiça!
Joane olhou-o e colocando fragilmente a sua mão sobre sua cabeça murmurou:
-Meu bom Ricardo, não compreendes o que não sabes... Não posso julgar e condenar
quem nos é sangue. Gabriel é um nobre! Gabriel pertence á nossa nobreza!
Joane rompeu em prantos e Ricardo, completamente atônito com o que ouvia e não
compreendia, não sabia como consolá-la. Pediu que se controlasse, mas a forte emoção
da revelação desencadeava uma convulsão incontrolável. O medicamento, extremamente
potencializado pelas emoções, lhe era agora prejudicial em inúmeros movimentos
convulsivos involuntários. Contorcia-se inconsciente debatendo-se no leito. Ricardo correu
ao corredor e chamou a ama para que o auxiliasse a segurá-la, para que não se ferisse.
Pediu ainda a um outro servo que ali estava próximo, para correr e chamar Philip. Os dois
tentavam mantê-la no leito, tarefa que lhes era árdua. Ricardo jamais vira crise convulsiva
tão demorada e com tanta intensidade. Philip ao entrar no aposento alarmou-se com o
estado da nobre senhora e tentou auxiliá-los.
Mas o coração angustiado da nobre Joane, não resistiu á crise e parou de bater.
Momentaneamente o corpo agitado, serenou, e a face ficou cândida e harmônica. Philip
olhou o médico e exclamou:
-Por Deus, que maldição caiu sobre esta família?
A nobreza era agora extinta no castelo.
Os serviçais encontravam-se temerosos pelos últimos acontecimentos. A fatalidade
parecia haver ali estabelecido residência. Todos aguardavam apreensivos o retorno de
Lorde Orlando e seu filho Arthur.
Para incompreensão de Ricardo, o efeito das ervas ingeridas por Gabriel e Sílvio, se
havia alongado, a febre havia cessado em ambos, mas o estado de inconsciência se
mantinha já alguns dias.
As chuvas chegaram fortes, inundando as plantações e trazendo um aspecto maior á
tragédia familiar.
Philip enviara um mensageiro a Adredanha, informando Lorde Orlando do falecimento de
sua esposa Joane, mas este não retornara.
Ricardo ficava intrigado porque a demora no retorno de lorde Orlando. Como teria
recebido as duas notícias de falecimento, primeiro de seu primogênito, agora de sua
esposa Joane? Como reagiria ao saber que não era mera fatalidade, maldição ou
casualidade, mas sim mortes premeditadas? O que faria com o culpado da desgraça de
sua família?
O castelo parecia viver longos dias na penumbra. As colinas pareciam haver se vestido de
luto, assim como o céu negro e escuro. Somente o rio se mantinha correndo veloz, farto
nas águas geladas que vinham dos montes.
Por vezes Ricardo, para espantar seus pensamentos , dialogava com todos os servos,
afinal ainda não tinha resposta para um enigma, nas ultimas palavras de Joane: "Gabriel
pertence a nobreza!"... Não conseguia compreender como!
Conhecia a família há uma década e conhecia o protegido de Manco desde que menino
tinha dez anos. Na época, soubera que o curandeiro Manco o recolhera á sua casa, por
causa da morte de sua mãe, que não possuía companheiro certo. Mas além disso, nada
mais sabia.
Disposto a decifrar o enigma, interrogava muitos servos a respeito da mãe de Gabriel, m
estes nada lhe diziam. Desconheciam seu passado. Ricardo sabia que os servos mais
novos talvez desconhecessem mesmo, mas os mais velhos com certeza teriam muito a
falar, mas se omitiam por algum mistério.
Ricardo, em sua astucia, resolveu não mais indagar sobre Gabriel aos servos, e procurou
Philip.
O capataz se encontrava recostado próximo a entrada do castelo. Um senhor forte e
robusto, com seus quarenta anos aproximados. Vestia-se com roupas largas. Em suas
mãos um chicote lhe era inseparável, assim como a velha lança lhe era amiga fiel na
cintura.
Ricardo recordou-se que ao chegar ao castelo, Philip já era o senhor dos campos e o
servo fiel de Lorde Orlando. Pelos comentários dos servos, soubera que ele nunca
gostara de Gabriel, mas não compreendia o motivo da antipatia.
O médico com cautela, aproximou-se do capataz e este indagou-lhe:
- Algum problema senhor?
O médico era respeitado como uma autoridade no castelo, todos já haviam precisado de
seus cuidados e ele tratava-os sempre com o mesmo carinho e dedicação.
-Nenhum problema Philip. Porém a tarde está triste e melancólica, desejava falar um
pouco.
Philip recostou-se na muralha despreocupadamente e o médico, percebendo-o tranqüilo,
continuou:
-Tivestes notícias do Lorde e de seu filho?
-Já há alguns dias mandei o mensageiro á propriedade de Adredanha, mas nenhuma
resposta nos trouxe.
Ricardo desejava indagar-lhe, mas não sabia como fazê-lo. Philip era muito perspicaz.
-Trabalhas há muito tempo aqui, não é Philip?
-Sim senhor... Tinha dez anos quando Lorde me trouxe de Adredanha e treinou-me nas
artes da guerra para servir-lhe e auxiliar-lhe na administração do castelo.
-Três décadas é muito tempo Philip!
-Sim senhor, nada mais sei fazer nesta vida a não ser servir o senhor lorde e sua família.
Ricardo pensou rapidamente e concluiu que Philip teria aproximadamente dezoito anos
quando Gabriel nasceu. Ele deveria saber de tudo, mas como indagar-lhe. Ricardo nada
falava, Philip olhou pensativo para o imenso salão principal e falou:
-Neste castelo houve tempo mais feliz, senhor Ricardo. Havia grandes festas, muita
alegria, quando aqui cheguei. Era um menino e Lorde sempre me manteve no castelo sob
a sua vigilância. Dizia que devia prestar atenção em tudo e por isto eu acompanhava as
festas, observando-as da copa. Depois o Lorde vinha me indagar o que observara para
testar minha perspicácia.
Ricardo mostrou-se interessado na conversa e Philip prosseguiu feliz com as lembranças.
-Quando a menina Brigith nasceu, o castelo serenou. As visitas passaram a ser
ocasionais e as festas muito raras. Ela tornou-se o centro das atenções de lorde Orlando
e a nobre Joane. Nada faltava a Brigith. Depois nasceu o menino Anderson e logo após
Arthur como o senhor já sabe.
Ricardo precisava que Philip falasse mais sobre as festas, afinal estava certo que Gabriel
nascera cinco anos antes de Brigith.
-Diz-me Philip como eram as festas... Assim a tarde passará ligeira!
Philip novamente olhou o salão, visualizando os tempos em que era o olheiro de Lorde
Orlando.
-Vês a entrada da copa senhor Ricardo? Ali ficava eu, atrás da porta, observando sem ser
visto. Quando completei quinze anos, o Lorde me presenteou com uma linda farda e
ordenou que a partir daquele dia eu ficaria aqui na entrada do castelo, vigiando a entrada
e a saída de todos.
Ricardo interrompeu-o propositadamente.
-Philip, mas a propriedade de lorde Orlando é tão distante da corte, de onde vinham os
visitantes?
-Nobrezas de propriedades vizinhas, que aqui passavam alguns dias.Em certa época
também aqui se reuniram as famílias de Lorde Orlando e a nobre Joane.
Pouco sei de seus familiares Philip. Quando aqui cheguei poucas visitas havia.
Philip olhou o médico, sentia-se em duvida se deveria prosseguir, mas sentindo-se
confiante continuou:
-Nessa grande reunião das duas famílias, tinha festas todas as noites. Eu gostava de ver
o brilho dos candelabros nos salões, ouvir as valsas ecoando nas muralhas, observar as
vestes elegantes. Tinha aproximadamente meus dezessete anos e em plena alegria da
juventude sentia enorme vontade de participar. E o fazia, senhor Ricardo, ainda que fosse
com os olhos.
O olhar de Philip parecia retornar aquela época de sua vida. O médico aproveitou-se de
seu entusiasmo momentâneo e perguntou-lhe :
-Quem aqui estava das famílias? Podes contar-me Philip?
-Claro que sim, senhor Ricardo. Da família da nobre Joane vieram seus pais e os seus
dois irmãos com as respectivas esposas, e da família do Lorde veio seu pai e as suas
quatro irmãs ainda muito jovens e solteiras.
-Porque nunca mais retornaram aqui?
-Senhor Ricardo, as propriedades são muito distantes e houve tempo de guerra...
-Eram atenciosos, tal qual Lorde Orlando, e amáveis, tal qual a nobre Joane?
Philip sorriu ao recordar-se da sua paixão juvenil por uma das irmãs do Lorde Orlando.
-Sim, senhor Ricardo! Eram amáveis e gentis, mas superiores. Sabiam respeitar os
servos, mas os mantinham submissos como deve ser. Entretanto...
Philip fez uma breve pausa, temendo a continuidade. No entanto, observando a aparente
de indiferença do médico ao assunto achou que podia prosseguir:
- Entretanto o pai da senhora Joane, era vil e promíscuo, criando problemas com as irmãs
de lorde Orlando, ainda jovens e muito bonitas.
-Como sabes disso Philip?
-Observava tudo senhor. As jovens, sentindo-se constrangidas com aquela situação,
comentaram com a nobre Joane sobre as investidas de seu pai e ela sentiu-se obrigada,
por sua vez, a falar com seu esposo, Lorde Orlando.
-E então o que aconteceu?
-Lorde Orlando chamou o duque na biblioteca e lhe pediu que parasse de molestar suas
irmãs e que para isto lhe cederia em sua estada a mais linda e jovem serva do castelo.
Assim o sogro de lorde Orlando parou de assediar as irmãs dele e passou a ter á sua
disposição uma serva todas as noites.
Ricardo não se conteve na curiosidade, mostrando mera pergunta casual, perguntou-lhe:
-E quem era ela?
Philip sussurrou:
- O senhor não a conheceu, morreu no rio... Afogou-se quando lavava roupas. Coitada!
Philip silenciou definitivamente e Ricardo, agradecendo-lhe a prosa afastou-se,
mostrando-se discreto e desinteressado em tudo o que ouvira.
No entanto tudo guardara em sua mente, e agora o enigma parecia se decifrar: "Com
certeza Gabriel era irmão de Joane" e por este motivo a nobre senhora tanto o protegera.
Quando Ricardo retornou aos aposentos, encontrou Sílvio consciente. Felicitou-o pela
recuperação e alimentou-o na imensa fome que sentia, há tantos dias inconsciente e
sendo alimentado somente com líquidos. Ricardo apressou-se a ir ao pavilhão dos servos,
Com certeza Gabriel também havia se restabelecido.
Chegando lá, percebeu que Gabriel estava sentado e aproximou-se. Os sentimentos lhe
eram antagônicos. Desejava saber como seu paciente se sentia, independente do que
fizera, como médico deveria auxiliar sem interferir na vida das pessoas.
Por outro lado, em seus pensamentos o julgava, por ser o causador de tantos males.
Ricardo indagou-lhe:
- Como te sentes, Gabriel?
Gabriel olhou-o pensativo, Quanto tempo haveria passado? O que teria acontecido?
Ricardo insistiu:
-Sentes-te bem Gabriel?
Gabriel olhou-o, respondendo com a voz áspera de quem não fala há muito tempo:
-Sinto-me bem, senhor, mas, sinto muita fome. O que aconteceu?
Ricardo sentiu enorme indignação. Como Gabriel era premeditado e esperto!
-Não sabes Gabriel?
Gabriel assustou-se com o olhar enfurecido, e tentou fugir do mesmo, fingindo sentir uma
tonteira e deitando-se.
Ricardo percebeu que o assustara e não era sua intenção revelar-lhe o que sabia, até que
Lorde retornasse. Disse-lhe carinhosamente:
-Deves alimentar-te Gabriel. Estiveste muitos dias inconsciente, depois conversaremos.
O médico afastou-se com um sorriso, pedindo a um servo que lhe trouxesse alimento.
Ricardo desejava ardentemente que Lorde não tardasse a voltar ao castelo. Estava
convicto a revelar-lhe tudo o que descobrira, e a tirar de si o fardo enorme da
responsabilidade de tantos segredos. Procurou Job e logo o encontrou, descansando
próxima à copa. Job olhou-o confiante, o médico era o seu único confidente e amigo
naquele castelo, gostava dele.
-Senhor Ricardo, em que posso ajudá-lo?
-Job, venho informar-te que Gabriel está recuperado.
Job sussurrou assustado:
-Infeliz, fez tantos males!
Ricardo colocou-lhe a mão no ombro:
-Acalma-te Job... Sobre isto que desejo falar-te, sei que será difícil, mas deverás agir
como se nada soubesses. Agirás normalmente com Gabriel.
-Mas senhor Ricardo, ele matou dois grandes amigos!
-Crê Job, haverá justiça! Mas precisamos aguardar o retorno de Lorde Orlando, para
revelarmos o que sabemos. Pensa em tua esposa e em tua filhinha, que achas que
Gabriel fará se souber que estamos conscientes de seus males?
Job ficou pensativo e amedrontado:
-Senhor Ricardo, desejo voltar para a propriedade de Adredanha, peça a Philip que
permita que me vá!
Ricardo ainda com a mão posta em seu ombro, disse-lhe amigavelmente:
-Ainda preciso de teu auxilio Job, Preciso que observes Gabriel enquanto Lorde não
retorna, e quando este o fizer com certeza voltarás á tua família.
Job consentiu com a cabeça, dizendo amargurado.
-Será difícil fingir senhor Ricardo, mas tentarei fazer o que me pedes.
Ricardo então agradeceu-lhe, afastando-se. Procurou Philip e logo o encontrou:
-Philip, venho lhe comunicar que o servo Sílvio e o servo Gabriel estão prontos para a
lida.
Philip exultou com a notícia, dando um forçado sorriso.
-Muito bom senhor Ricardo. O menino Sílvio retornará ao trato com a cavalaria. Quanto
a Gabriel, há muito não trabalha para o seu sustento, está na hora de voltar aos campos,
não acha?
O médico concordou meneando a cabeça.
-Philip, posso lhe pedir um favor?
Com certeza senhor Ricardo.
- Gostaria de manter Job como meu auxiliar até que Lorde retorne.
Philip consentiu com seu pedido e ambos se despediram cerimoniosamente.
Gabriel caminhou com dificuldade após alimentar-se. Já anoitecia na propriedade e a
chuva persistia em cair fina e triste. Caminhou até á área frontal do castelo e vislumbrou o
rio veloz. Sentia-se confuso e apreensivo. Ainda não dialogara com ninguém a não ser
com o médico quando despertara e sentiu-o diferente.
Não lhe parecia a pessoa amena e caridosa que conhecia. Sentiu-o arrogante. O que teria
acontecido enquanto dormia, pensava. Estava tão pensativo que não percebeu quando
Philip se aproximou.
-Que bom encontrar-te bem Gabriel... Voltarás á lida nos campos, pela manhã, junto com
os demais serviçais.
Gabriel sentia enorme ódio de Philip que nunca o tratara com respeito. Sempre o
distanciava do castelo com arrogância. Nada respondeu fazendo simples reverência de
humildade e de obediência com a cabeça.
Philip afastou-se imponente, mostrando a altivez e a força do capataz e do fiel
administrador na ausência do senhor daquelas terras.
Pela manha o sol surgiu forte depois de enorme período de chuvas. Gabriel juntou-se aos
demais serviçais para rumar aos campos, onde o trabalho era contínuo e árduo.
Precisava saber o que acontecera com a morte de Anderson e como o Lorde havia
reagido, mas nenhum servo se aproximava temendo-lhe ainda a loucura. Precisaria
questionar alguém. Por onde andaria Job? Percebeu ao deitar-se que não mais dormia
próximo a si, teria voltado para Adredanha após a morte de Anderson?
Estava ciente que ficara inconsciente quarenta dias. O corpo sustentado a líquidos havia
emagrecido e se tornado frágil. Por vezes sentia tonteiras na fraqueza em que estava.
Sentia-se revoltado por voltar aos campos em estado tão debilitado.
O dia lhe correu em imensa dificuldade, as mãos finas, da longa ausência do trabalho
braçal, ficaram arduamente feridas pela terra e pelas pedras. Philip não lhe dera
tranqüilidade o dia inteiro.
Voltou ao castelo exausto e abatido. Após banhar-se resolveu questionar a Lana o destino
de Job. Encontrou-a na cozinha onde agora lidava com a alimentação. Dirigiu-se a ela
com cautela:
-Lana, que bom ver-te... Estive ausente muito tempo... Estava doente... Sabes onde anda
Job?
Lana olhou-o indiferente:
-Gabriel, Job está a serviço do médico Ricardo, visita e medica pacientes. O ajuda em
todo o trato e cuidados necessários com nossos doentes.
Gabriel resolveu questionar mais:
-E Lorde ausentou-se do castelo?
Sim Gabriel, todos o aguardam breve por causa do falecimento da nobre Joane...
-A nobre dama faleceu?
Lana com o semblante extremamente entristecido murmurou.
- A pobre senhora morreu de desgosto em conseqüência da perda de seus filhos.
Gabriel tentou mostrar-se entristecido, mas dificilmente conseguiu-o. O falecimento da
nobre senhora era-lhe indiferente. Não sabia o jovem servo Gabriel que perdera a irmã
que ainda distante zelava por seu bem estar e por sua proteção. A apreensão, no entanto,
lhe tomava os sentidos e despediu-se de Lana, agradecendo-lhe.
Sentia enorme expectativa em poder encontrar-se com Job. Odiava-o por ter sido o
culpado na morte de Brigith, mas somente conversando com ele sentir-se-ia mais
tranqüilo e estaria certo que não haveria suspeitas contra si. Alguns servos informaramlhe que Job se encontrava próximo ao rio e para lá caminhou.
Vendo-o aproximou-se cumprimentando
-Meu amigo Job que bom ver-te. Estive tanto tempo ausente que me senti imensamente
saudoso de ver-te.
Job permaneceu olhando fixamente o rio. Não estava preparado ainda para o encontro
com Gabriel. Como lhe ocultar a profunda indignação que sentia? Sua voz parecia lhe
ferir os sentimentos e, em imensa dor de reprimir em si o que sentia, pranteou. Gabriel
prontamente percebeu-lhe as lágrimas que desciam nas faces e constatou em seu
semblante contorcido que desejava contê-las. Falou-lhe piedosamente:
-Estás triste Job! Também fiquei imensamente entristecido com o falecimento de
Anderson, afeiçoamo-nos demais a ele.
Job sentia-se perplexo com sua falsidade. Como podia alguém ser tão premeditado e
cruel com a existência dos outros. Quanto mais se via obrigado a esconder a repulsa que
sentia de Gabriel, mais as lágrimas afloravam de sua dor tão profunda.
Desejava ardentemente fazer Gabriel compreender seus erros, desejava fazê-lo sentir a
enorme dor que trouxera a tantos. N o entanto, precisava controlar-se e ser fiel á
promessa que fizera ao médico Ricardo. Gabriel continuava olhando-o ternamente.
-Sei que não desejas conversar agora Job,
Job meneou afirmativamente a cabeça com humildade, sem olhá-lo. Então Gabriel
colocou-lhe amigavelmente a mão no ombro, como desejando confortá-lo, e afastou-se
dirigindo-se ao pavilhão dos servos.
Deitou-se em seu canto pensativo "Pobre infeliz... chora pela morte de seu senhor, tão
superior, esnobe e arrogante. Deveria chorar pelo erro que cometeu em matar Brigith..."
As carruagens aproximaram-se velozes do castelo, sendo acompanhadas de perto pelos
guerreiros que as protegiam. Lorde Orlando finalmente retornava á propriedade, após
longa ausência. O semblante era demasiadamente serio e a tristeza lhe era aparente,
assim como a expressão entristecida de seu filho Arthur, que se encontrava
extremamente emagrecido. Philip aproximou-se prestativo a recebê-los e auxiliá-los.
Lorde Orlando antes de entrar no castelo, rumou silenciosamente com seu filho até ás
sepulturas de Anderson e Joane. Ajoelharam-se e prantearam a dor que sentiam e pela
família que não mais possuíam. Após alguns instantes ambos caminharam até os seus
aposentos para se recuperarem da viagem e da profunda emoção da chegada.
Lorde Orlando saiu do seu aposento quando o dia já declinava sua majestade e a noite
se anunciava serena. Chamou Philip á biblioteca para indagar-lhe como havia ficado a
propriedade em sua longa ausência. O capataz servilmente o colocou ciente de tudo e
então Lorde pediu-lhe que o deixasse sozinho. Sentia-se desanimado e profundamente
triste. A vida lhe parecia vazia e sem objetivos.
Os pensamentos melancólicos, repentinamente, foram-lhe interrompidos. Já a noite havia
escurecido toda a propriedade. Fortes batidas na porta de madeira o despertaram.
Indagou nervoso e sentindo-se contrariado.
-Quem deseja falar-me? Ordenei que desejava ficar só!
-Senhor Lorde me perdoe contrariá-lo, e atrapalhar a sua tranqüilidade, mas preciso
imensamente falar-lhe!
-Entrai !
Ricardo entrou seguro na biblioteca e o semblante trazia alivio e tensão ao mesmo tempo.
-Então o que desejas, Ricardo?
Ricardo aproximou-se do Lorde, que se encontrava sentado em uma antiga escrivaninha.
Recostava-se numa poltrona de couro negro. Sobre a mesa inúmeros livros se
amontoavam. O Lorde olhava-o fixamente aguardando-lhe a resposta. O médico sentia-se
inseguro e hesitante. Sentia receios da reação de lorde Orlando ao escutar as revelações
que lhe faria.
-Senhor Lorde, o que tenho para lhe falar é longo!
O Lorde ordenou que se sentasse e prontamente Ricardo o fez, sentando-se numa
cadeira de madeira rústica que se encontrava defronte ao nobre. Começou então a
manipular as palavras com cautela.
-Senhor Lorde, sempre fui um servo discreto e cuidadoso em minhas obrigações. Nunca
interferi na rotina deste castelo. Por enorme infortúnio de meu destino, sinto-me, no
entanto, agora, na obrigação de contar-lhe sérios acontecimentos que se passaram em
sua longa ausência e que, infelizmente, lhe trarão imenso pesar e sofrimento.
Lorde Orlando olhou-o intrigado e Ricardo prosseguiu, sempre observando-o:
-Quando vim da corte, para substituir o velho médico de seu castelo, que falecera, a sua
nobre esposa informou-me de uma enfermidade consangüínea que possuía e que lhe
ocasionava enormes incômodos em dores insuportáveis. Respeitando-lhe o seu pedido
de sigilo, diariamente passei a lhe medicar para que pudesse suportar as constantes
dores físicas e assim conviver com os familiares, sem que estes lhe percebessem a
moléstia. Quando viajei para a propriedade de Adredanha, em função de uma febre
contagiosa, ensinei a serva que lhe era ama, a dar-lhe o medicamento. Assim a nobre
senhora continuou sendo medicada em minha ausência. Quando retornei, prontamente
assumindo os seus cuidados, percebi que a enfermidade aumentara significativamente e
o medicamento não mais agia em seu corpo amenizando-lhe as dores plenamente. O
sofrimento lhe era maior e cada vez mais constante. Por este motivo, maior tempo ficava
reclusa em seu aposento e ausente do convívio familiar.
O Lorde levantou-se intranqüilo. Sentia-se constrangido em como ele, um senhor de todas
aquelas propriedades e possuidor de enorme conhecimento, não percebera a
enfermidade dolorosa de sua esposa sempre tão companheira.
Envergonhava-se agora em ficar agora ciente, de que aquela nobre senhora inúmeras
vezes os acompanhara, sendo sempre uma pessoa prestativa e humilde, silenciando a
sua própria dor e o seu profundo sofrimento, para oferecer aos que próximo a si estavam,
amparo, conforto e alento.
Caminhou até á janela, desejando fugir aos olhares de Ricardo, e ele continuou.
-Quando acompanhei Philip, que precisava comunicar-lhe o falecimento de seu filho
Anderson, ela solicitou minha permanência em seu aposento. Desejava revelar-me alguns
segredos.
Lorde voltou-se repentinamente, ciente do passado intempestivo de seu sogro e de suas
tenebrosas conseqüências, temia que Joane o tivesse relatado ao médico. Sentou-se
novamente na poltrona fazendo um leve sinal para que Ricardo continuasse a contar-lhe.
-Disse-me a nobre dama, que não desejava falar com o velho frei, sentia-se necessitada
de um amigo de confiança, que pudesse manter-se sigiloso e tivesse interesse em
averiguar suas suspeitas.
O Lorde parecia começar a ficar nervoso, com a complexidade do assunto. Acendeu
apressadamente um cachimbo enquanto o médico continuou falando.
-Senhor Lorde, resumirei ao máximo o que me contou, porque o assunto é
demasiadamente longo, mas de fácil compreensão e extremamente doloroso aos
sentimentos. Disse a nobre Joane que suspeitava que Gabriel, o tutelado do velho Manco,
amava sua filha, e que os dois se haviam ficado a sós em encontro furtivo.
-Que blasfêmia é esta, Ricardo? Como ousas denegrir o nome de Brigith com tamanha
infâmia?
-Senhor Lorde, disse-lhe que o assunto seria doloroso a seus sentimentos. Peço-lhe que
me escute e que depois tire suas conclusões. A senhora sua esposa estava convicta de
que os dois mantiveram um romance. Relatou-me que vira de seu aposento Gabriel sair a
galope com arco e flechas, na noite anterior ao noivado de Brigith... Relatou-me ainda que
na noite anterior ao falecimento de Brigith viu Job, o servo de Anderson, pegar um chá e
entregar á sua filha que se sentia indisposta porque esperava um filho, e este chá, senhor
lorde, foi feito por Gabriel.
-Pelo amor de Deus Ricardo, que loucura é esta que me falas e tão pouco consigo
compreender...
-Senhor, peço-lhe que me escutes. Disse-me ainda sua nobre esposa que percebeu na
queda de seu filho Anderson, que a cela do cavalo estava solta e que Gabriel os seguira
quando estes saíram a passeio.
Ricardo parou momentaneamente para respirar e sufocar as emoções. O Lorde, com a
voz embargada pelo sofrimento mas imensamente confuso com tudo que ouvira, falou em
voz grave.
- Ricardo, te apressas a contar-me e não compreendo claramente o que desejas me falar.
Diz-me se compreendi. Joane falou-te que minha filha manteve relacionamento furtivo
com Gabriel e engravidou? Posteriormente falou-te que Gabriel matou Henri II e que
também provocou a queda de meu filho deixando-o imobilizado num leito? E como se isto
não fosse suficientemente grave matou Brigith com um chá?
Ricardo observou que Lorde se tornava enrubescido. Temeu a continuidade no assunto,
mas estava ciente que precisava fazê-lo.
-Sim, senhor lorde. Sua esposa pediu-me que averiguasse estas suspeitas em sigilo, e
assim o fiz senhor. Hoje posso lhe afirmar com plena convicção que Gabriel matou
premeditadamente Henri II, ocasionou propositadamente a queda do seu filho Anderson,
matou por equivoco, sua filha Brigith e seu neto, com um chá.
Lorde interrompeu-o num sussurro perplexo.
- Tem mais?
Ricardo, sentindo enorme piedade daquele pai, falou-lhe constrangido.
-Sim senhor Lorde. Sinceramente eu lamento muitíssimo em trazer-lhe notícias tão cruéis,
mas Gabriel também matou friamente o seu filho Anderson, e indiretamente, com certeza,
provocou a morte por desgosto de seu tutor Manco e da nobre Joane.
O Lorde encolheu-se na poltrona negra assemelhando-se a uma criança que mais nada
deseja ouvir. Ricardo aproveitou então, para narrar-lhe toda a longa estória
vagarosamente, com detalhes para que melhor compreendesse. Quando terminou,
percebeu que Lorde Orlando lacrimejava infeliz. Disse-lhe:
-Perdoai-me Senhor, não desejava ser eu o portador de revelações tão frias e tão cureis.
A nobre dama, antes de falecer em extrema emoção de desgosto, falou-me que o servo
Gabriel lhe era sangue e, após a sua morte, averiguando com alguns servos, fiquei ciente
de que era seu irmão, e compreendi porque tanto silenciara em seu favor. Pobre senhora!
Ricardo deu um profundo suspiro para controlar a imensa emoção que também sentia.
-Se o senhor desejar, terá o testemunho do servo Job, que lhe é um fiel servo e que se
envolveu nas tramas de Gabriel ingenuamente e sem maldade.
Ricardo sentia-se extremamente exausto, mas incrivelmente leve, livre da imensa
responsabilidade que carregava consigo todos os dias. O Lorde interrompeu-lhe os
pensamentos, com a voz repleta de sofrimento e angústia.
-Mais alguma coisa Ricardo?
Ricardo recordou-se prontamente dos arcos e flechas escondidos na gruta, falando-lhe.
- Somente mais uma coisa, senhor. Em minhas averiguações descobri que Gabriel
fabricou alguns arcos e flechas, que se encontram ainda escondidos na velha gruta,
próximo ao lago onde morou, conforme lhe contei.
O nobre olhou fixamente, pedindo-lhe com enorme seriedade:
-Ricardo, agora sou eu, Lorde Orlando, quem te pede total sigilo. Pensarei em tudo que
me contastes e poderás ter certeza que farei justiça e honrarei o nome de minha família!
Ricardo olhou-o hesitante, pedindo-lhe:
-Senhor lorde, desejaria pedir-lhe, que permita que o servo Job, retorne para a sua
família, na propriedade de Adredanha, com brevidade se assim for possível.
-Ficai tranqüilo Ricardo, atenderei este teu pedido, pelos inúmeros préstimos que tens
feito a nossa família, Ordenarei a Philip que providencie imediatamente a sua viagem.
Ricardo levantou-se fazendo-lhe uma reverência em gratidão e saiu deixando-o sozinho.
Lorde Orlando sentia-se profundamente infeliz. Vagou pensativo esquecendo-se que a
noite escura sublimava em todos os horizontes. Os pensamentos lhe eram cureis e o
sufocavam.
Como poderia um só homem ter-lhe destruído a família inteira, ter aniquilado com seus
sonhos e os seus objetivos, ter extinguido sua felicidade e sua paz? Como poderia um só
servo lhe provocar uma guerra interior tão voraz?
O passado lhe surgia em acusações dolorosas em sua consciência.
Surgiam-lhe as imagens da serva, do bebê... Da ordem que dera a Philip para que a
afogasse no rio... Surgia-lhe na memória a imagem da pequena criancinha, ainda recém
nascida, envolta em trapos, sendo entregue a Manco...Lembrou-se do menino que viu
crescendo, em vida humilde de servo, mas com o porte e a altivez de um lorde!
Sempre se sentira preocupado com a sua proximidade do castelo, e pedia
freqüentemente a Philip que o vigiasse e evitasse que permanecesse perto de sua família.
Estaria ele pagando pelo crime que ordenara? Estaria aquele filho vingando-se pela cruel
morte de sua mãe? Os fantasmas de um enorme erro cometido em seu passado lhe
gritavam: "culpado!"
Será que Gabriel, como filho bastardo de seu sogro, e vivendo despojado de seu titulo de
nobreza e de sua riqueza, tinha o direito de destruir-lhe tudo? Teria Gabriel o direito de
matar seus filhos e trazer-lhe a angústia e o desespero?
Lorde Gabriel sentia-se envenenado por confusos sentimentos de dor, aflição, culpa, raiva
e incompreensão.
Já a madrugada principiava quando finalmente saiu da biblioteca decidido a procurar
Philip. Encontrando-o, ordenou-lhe algumas providencias e afastou-se caminhando para o
seu aposento.
Philip não compreendia as súbitas decisões do Lorde, mas saiu prontamente a obedecêlas.
A claridade já surgia na madrugada fria, quando Philip entrou no pavilhão dos servos,
pisando firme e determinado. Aproximou-se de Gabriel, despertando-o
abruptamente.Ordenava-lhe que se levantasse e que após juntar os seus pertences,
fosse para o portal do castelo.
Gabriel, ainda extremamente sonado, sentia-se confuso e amedrontado. Não
compreendia porque Philip ordenara que se levantasse, se o dia ainda não havia
clareado, e ainda o mandara juntar seus pertences e encontrá-lo na frente do castelo.
Havia saído rapidamente, parecendo apressado. Inúmeras indagações surgiam-lhe na
mente, mas não encontrava respostas lógicas.
Philip já havia orientado os servos para que providenciassem a carruagem do Lorde, os
cavalos e a carroça, e também havia orientado os guerreiros para a viajem tão logo
amanhecesse.
Caminhava agora apressado para o aposento do médico Ricardo. Com fortes batidas na
porta despertou-o. Ricardo ergueu-se cambaleante e abriu a porta.
-Philip que houve?
Perdoai-me senhor acordá-lo assim, mas tenho instruções para que o servo Job reúna
seus pertences e se apronte para viajar para a propriedade de Adredanha.
Job que ali dormia, num canto confortável, alegrou-se com a comunicação do capataz.
Ansiava rever a sua esposa e filha e sentia-se agradecido ao médico que conseguira a
permissão do Lorde.
Olhou o capataz e perguntou-lhe humildemente:
-Senhor Philip, irei só?
Philip olhou-os com seriedade e sem compreender ou conseguir explicar a decisão de seu
senhor, falou-lhe:
-Irás com Gabriel!
Ricardo sentiu inquietação profunda e falou-lhe com perplexidade.
-Com Gabriel? Não compreendo Philip!
-Também não consegui compreender senhor Ricardo. Ordens de nosso senhor Lorde
Orlando, que parece não ter dormido e procurou-me há pouco, ordenando-me para que
tomasse providencias para sua viagem tão logo amanhecesse, e informou-me que levaria
o servo Gabriel e o servo Job...
O médico indagou-lhe preocupado.
- Ninguém mais irá Philip?
O capataz prestativo, prontamente explicou-lhe, que os guerreiros acompanhariam o
nobre, como usualmente faziam.
O silêncio se fez absoluto e Philip retirou-se pedindo ao servo Job que não se demorasse.
Ricardo fechou a porta, enquanto Job sentava-se no leito amedrontado.
-Porque senhor Ricardo?
Ricardo havia lhe contado a longa conversa que tivera com Lorde e confiara-lhe as
revelações que descobrira e que Job ainda desconhecia e por isto o servo estava
perplexo com viagem tão repentina.
-Gabriel é um louco, um assassino frio e cruel senhor. Porque o Lorde deseja levá-lo para
a propriedade de Adredanha? Porque não o prende na masmorra?
Ricardo olhava-o também confuso sem saber o que lhe responder. Não conseguia
compreender as verdadeiras intenções de Lorde Orlando.
-Acalma-te Job. Infelizmente não posso responder-te. Tenta manter-te tranqüilo e mantém
o sigilo sempre. Pensa em tua família. Esquece que Gabriel viajará contigo. Porém Job,
precisarás ficar alerta e continuarás vigiando-o. Temo por ti e por tua família... Temo por
lorde Orlando... Farei orações para que tenham viagem tranqüila e em paz e para que
cheguem breves a vosso destino.
Job meneou a cabeça humildemente agradecendo-lhe os conselhos e colocou-se a
arrumar os seus poucos pertences, demasiadamente preocupado e silencioso.
O dia surgiu imponente e o sol forte clareava a linda propriedade de Lorde Orlando. O
nobre surgiu com o seu filho Arthur, para o qual nada contara, e despediram-se num forte
abraço. Arthur falou-lhe entristecido:
-É incompreensível esta viagem tão repentina, senhor meu pai! Mal chegamos de árdua
viagem ontem, o senhor deveria repousar alguns dias, antes de fazer esta. Parece-me
cansado e profundamente abatido.
-Não te preocupes, meu filho Arthur, um mensageiro aqui chegou quando já dormias, e
preciso retornar e tomar algumas providencias inadiáveis. Deverás zelar e administrar
esta propriedade. Já és um homem e um bravo guerreiro!
Os dois novamente se abraçaram e Lorde entrou na carruagem.
Os viajantes afastaram-se, os quatro guerreiros em montaria seguiam na frente, em
seguida a carruagem de Lorde Orlando e, atrás, duas carroças, uma com as bagagens e
mantimentos e outra com os servos Gabriel e Job. Ambos estavam silenciosos.
Job observava o médico olhando-o apreensivo e os receios aumentavam em sua mente.
Nada dialogara com Gabriel, sentia-lhe enorme repudio por haver feito tanto mal e ainda
que a viagem fosse longa e cansativa, evitaria fazê-lo, mostrando-se sempre ausente e
indiferente á sua presença.
Gabriel, por sua vez, olhava o castelo distanciar-se pouco a pouco. Lembrava-se de
Brigith, visualizando-a no avarandado florido de seu aposento. Olhou para o celeiro e
lembrou-se de Manco, o velho amigo sempre prestativo e confidente. Sentia-se
angustiado por deixar aquela propriedade. Ali vivera vinte e quatro anos e nunca dali
saíra. O seu mundo era o castelo e os seus moradores... Mas as lembranças se perdiam
tal qual as imagens que sumiam na distância. Não mais avistava o castelo. Os
pensamentos revoltados invadiam-lhe novamente o ser. Sentia-se inconformado com a
sua situação submissa de servo. Havia sido meramente escolhido e agora era
transportado. Já tinha conhecimento para onde ia, mas se não compreendia o motivo.
Olhou para Job que se deitara na carroça e parecia repousar. Ele era o culpado de tudo!
Se não tivesse lhe pedido o maldito chá, sua Brigith estaria ali agora com ele. O ódio lhe
invadia todo o ser, mas controlava-se.
IV - Parte No Hemisfério da Reflexão
Os dias de viagem foram longos e cansativos. Finalmente foram informados que haviam
entrado na propriedade de Adredanha. Imensos campos adornados de lírios balançavam
ao vento, o céu era muito azul e a claridade muito intensa. Gabriel ainda não visualizava
colinas e nem rios, mas sentia um cheiro forte no ar que não conseguia decifrar.
Repentinamente surgiu-lhe no olhar, á direita da carroça, um rio como nunca vira.
Era uma imensidão azul e Gabriel estava perplexo com sua grandiosidade. Não
conseguia ver a outra margem, parecia-lhe infinito. O forte cheiro lhe invadia o corpo.
Estava extasiado com o que via...o vento batia na imensa água levantando-a e jogando-a
em enormes ondulações sobre uma areia muito branca. Podia cerrar os olhos e sentir que
aquele imenso rio orvalhava seu rosto em gotículas que eram trazidas pelo vento forte.
Surpreendido, constatou que a água que lhe chegava candidamente á face era salgada.
Deixou-se flutuar pela grandiosidade da beleza que se vislumbrava a seus olhos,
enquanto a carroça corria veloz, margeando a extensa praia. Do lado esquerdo podia ver
enormes plantações que mostravam que a terra era bastante fértil. Balbuciou
emocionado, esquecendo-se que Job mal falara consigo na viagem:
- Como este imenso rio é lindo!
Job por um instante esqueceu-se que Gabriel lhe era perigoso e cruel e explicou-lhe:
- É o mar... O lindo mar de Adredanha!
Gabriel parecia um menino entusiasmado e indagou-lhe.
- É salgado?
Job indiferente balbuciou:
- É água que não se bebe.
Novamente os dois silenciaram na antipatia que os distanciava. Gabriel vislumbrava a
paisagem, desejando reparti-la interiormente com Brigith. Pouco a pouco, os viajantes
foram se distanciando do mar. Gabriel agora somente podia ver vastas plantações
verdejantes. Após rápido trajeto, viu um imenso portal e depois deste uma enorme
moradia branca, com longas colunas que davam-lhe imponência. Parando na entrada,
alguns servos se aproximaram tentando auxiliar Lorde, que já saía da carruagem. O Lorde
dialogou rapidamente com um senhor bem escuro e que deveria ser o capataz daquela
propriedade. Ele se aproximou da carroça falando:
- Job, meu amigo! Quanto tempo distante desta propriedade. Deves estar cansado.
Apressa-te... Estou ciente que anseias ver tua família!
Job saltou da carroça e lhe fez um meneio cumprimentando-o
- Senhor Luís, senti saudades de tudo e de todos. Verei meus familiares e posteriormente
estarei pronto para a tarefa que me designar.
O capataz sorriu-lhe carinhosamente, e Job afastou-se correndo rumo a uma vila de
pequenas casinhas brancas que se espalhavam por entre um imenso coqueiral.
O capataz Luís, olhou então Gabriel com seriedade e lhe disse:
- Quanto a ti, rapaz, não te conheço. Disse-me o senhor Lorde que devo te designar para
o trabalho nas salinas. Como te chamas?
Gabriel saltou da carroça e colocou-se humildemente em posição de servo esperando
instruções.
- Meu nome é Gabriel.
- Muito bem Gabriel, acompanha-me.
Gabriel pegou os seus poucos pertences e caminhou com o senhor Luís até uma das
pequenas casinhas brancas. Disse-lhe:
- Gabriel, aqui dormirás e te alimentarás. Dividirás esta casa com quatro servos que ainda
não retornaram das salinas. Não tardarão, uma vez que o sol já está se pondo.
Repousarás um pouco e depois dar-te-ei novas instruções.
Gabriel fez um meneio de agradecimento e o capataz se distanciou. Ele pode então
analisar a pequena moradia que lhe era destinada. Possuía dois compartimentos sem
qualquer mobiliário. Podia perceber três leitos improvisados com palha dos coqueiros. No
outro compartimento, um cano de madeira jorrava água e um pequeno buraco mostrava
onde eram feitas as necessidades. Caminhou até uma pequena janela e avistou a
imponente moradia. Podia imaginar-lhe o a fartura, o luxo e as riquezas. O andar superior
possuía enormes varandas ornadas de lírios brancos. Sentia-se incompreensivelmente
injustiçado com sua situação. Deitou-se no solo e em seu cansaço dormiu.
- Acorda rapaz!
Gabriel de um sobressalto ergueu-se. Imediatamente percebeu que anoitecera. Alguém
portava uma tocha defronte a si, mas não conseguia ver-lhe claramente o rosto.
- Meu nome é Fernando, como te chamas?
Gabriel conseguia agora ver-lhe o semblante que brilhava sob o calor da chama. Era bem
jovem ainda, talvez tivesse seus quatorze ou quinze anos. Mas era extremamente forte e
muito robusto. A cor também lhe chamava a atenção porque a pele parecia colorida de
negro pelo sol, ainda que não lhe fosse a cor de origem.
- Me chamo Gabriel. Dormi demais.
- Sim por certo que dormistes... Todos já pegaram a refeição, deverás pegar a tua
também.
Gabriel acompanhou-o até os fundos da enorme moradia de Lorde Orlando. Lá, de uma
imensa copa, eram-lhes fornecidos pratos fumegantes. Fernando falou-lhe:
- Sempre será assim, deverás trazer teu prato e aqui pegarás o alimento. As refeições
devemos fazer na casa que temos.
Gabriel caminhou segurando o seu prato de caldo grosso e sentou-se defronte á pequena
casinha. Olhou Fernando agradecendo-lhe:
- Obrigado por me acordares, onde estão os outros?
Fernando sentou-se ao seu lado dizendo-lhe:
- Nossos companheiros logo chegarão, tiveram permissão a sair na noite.
- Fala-me de Luís.
- Não deves tratar o capataz assim! O senhor Luís não gosta de intimidades.
- Mas Fernando, ele me pareceu amigo e terno.
- Não compreendes ainda, Gabriel. Por vezes assim o é, mas constantemente é cruel e
rigoroso.
- Fernando, o que são salinas?
Fernando intrigou-se com o desconhecimento de Gabriel e respondeu-lhe:
- Salinas é onde se faz o sal. Com este o senhor lorde negocia e administra suas
propriedades.
- Não compreendo Fernando, como se faz o sal?
Fernando, enquanto Gabriel se alimentava ia lhe explicando a tarefa á qual estava
predestinado.
- A água do mar é transportada em enormes tonéis de madeira, que são colocados em
carroças para depois ser vertida em extensas valas no solo. Pouco a pouco, a água vai
sumindo no ar, e fica em seu lugar um pó esbranquiçado, que é recolhido. Tudo sempre
sob os olhares dos servos que nos são superiores.
Gabriel indagou-lhe ingenuamente.
- Não parece ser muito trabalhoso.
Fernando olhou-o, encolhendo os ombros.
- Lorde Orlando é muito bom para com todos nós, estamos entregues á servidão e cabenos servir!
A esperteza de Fernando impressionava Gabriel, e este continuou:
- Pelo que percebo, não estás acostumado á lida grosseira. Digo-te que sofrerás! O sol te
queimará a pele abrindo-te feridas, até que a cor negra se incorpore á tua pele tão branca
e macia. A água salgada do mar come-nos a pele durante o dia inteiro de trabalho,
destruindo cada maciez até que esta fique áspera e grossa e não mais sinta a agressão.
Quando recolhemos o sal o ar se torna insuportável e os olhos ardem, queimando-se
constantemente. Te acostumarás, todos passamos por isto e sobrevivemos.
- E se eu não quiser isto, Fernando?
Fernando olhou-o incrédulo no que ouvia, não compreendia de onde tinha vindo Gabriel
que não aceitava a servidão. Levantou-se dizendo-lhe:
- Não compreendo o que dizes Gabriel, mas vejo que viestes de problemas e desejas
atrair a ti mais alguns. Ficarei longe de ti, nunca fui castigado e não desejo me meter em
confusões.
- Espera Fernando, responde-me somente isto, o que acontecerá se eu me recusar a
passar por tudo isto?
Fernando voltou-se contrariado dizendo-lhe enquanto se afastava:
- Sem trabalho, sem alimento... Sem trabalho, castigo!
Gabriel ficou sozinho, pensando em tudo que Fernando lhe dissera e que lhe aumentava
a revolta.
Já era bem tarde quando Lorde Orlando chamou o capataz Luiz para dar suas ordens.
Encontrava-se recostado em uma poltrona com ar extremamente cansado. Luís entrou
pedindo-lhe licença e o Lorde falou-lhe:
- Conhecestes Gabriel?
- Pouco, senhor Lorde, levei-o para uma das casas dos servos e deixei-o repousar da
viagem. Amanhã cedo começará nas salinas, como o senhor ordenou.
- Perceberás, Luís, que não está acostumado a lida árdua... Tinha boa vida tratando de
cavalos.
Lorde Orlando tentou conter-se para não demonstrar raiva em suas palavras e continuou:
- Retornarei ao castelo pela manhã. Somente aqui vim para trazer pessoalmente este
servo, que me trouxe inúmeros problemas.
Lorde Orlando deu um suspiro profundo e, reprimindo a tristeza que lhe invadia os
sentimentos, continuou:
- Quero que lhe dês trabalho árduo e incessante. Como percebestes, sua pele é macia e
clara, provavelmente adoecerá. Não te compadeças, Luís. Ordeno-te que não tenhas
piedade, pois este servo não a merece. Se te criar maiores problemas prende-o na
masmorra próximo ao rio.
Luís estava perplexo com o brilho febril que faiscava nos olhos do nobre. Não
compreendia, no entanto, os motivos que o levavam a tanta contrariedade. Ainda que
Lorde Orlando tentasse disfarçar a sua fúria, Luís imediatamente a havia percebido nas
palavras que saiam amarguradas. Nunca o vira com tanta ira de um servo. “Que teria feito
ao Lorde aquele jovem servo Gabriel?" perguntava-se.
- Somente isto, senhor lorde?
- Não Luís. Desejo que o servo Job, sua esposa e filha sejam trazidos para a lida aqui na
moradia. Não permitas jamais que Gabriel ouse se aproximar deles. Deverás protegê-los!
Inexplicavelmente, Luís começava a sentir enorme repulsa de Gabriel. Lorde Orlando era
um nobre bom e justo para com os servos. Ainda que lhes tratasse como seres inferiores,
respeitava-lhes a necessidade de repouso, moradia e alimento, e não aplicava castigos
por mero prazer como faziam outros nobres. No entanto, o nobre parecia desejar castigar
aquele servo.
- Senhor lorde, farei tudo como deseja e quando o senhor aqui retornar perceberá que
este servo não lhe trará mais problemas. Aprenderá a ser um bom trabalhador humilde e
resignado. Com a sua licença irei pedir providências para sua viagem pela manhã.
Dizendo isto, Luís saiu apressado deixando Lorde sozinho com seus inúmeros
pensamentos de dor e revolta.
A bela manhã surgiu imponente e majestosa, e Lorde Orlando já se afastava da moradia,
em viagem com seus guerreiros.
Luís procurou Job, sentindo-se satisfeito com a ordem de levá-lo para a moradia com a
sua família. Sempre gostara daquele servo humilde, inteligente e prestativo. O servo Job,
no entanto, estava imensamente intrigado com as atenções e cuidados que o capataz lhe
dispensava.
- Porque me tratas tão bem Luís? Porque me pedes que nunca saia da moradia sem
comunicar-te?
- Ordens de nosso senhor, lorde Orlando. Devo proteger-te Job, e também tua família.
- Proteger-me de que senhor?
Luís olhou-o fixamente dizendo-lhe:
- De Gabriel Job! Sei que deves saber por que, mas se Lorde não me contou os motivos,
também não pedirei que me contes.
Luís afastou-se deixando-o no salão imponente da moradia . O capataz começou a soar
uma catraca, próximo á vila dos servos e estes surgiam ágeis de suas pequenas casas.
Pegavam na copa da moradia um caneco de leite e um pedaço de pão e após
alimentarem-se, reuniam-se defronte a Luís para que este os dispensasse para rumarem
para as tarefas que lhes eram incumbidas. Uns iam para o cultivo nos campos, outros
para o trato com os animais, e um grupo de homens robustos e de pele escurecida ia para
as salinas.
Gabriel estava entre eles, mais ou menos trinta servos. A sua pele alva destoava em
meio a seus companheiros. Luís chamou-o, fazendo-lhe um sinal:
- Aonde pensas que vais trajado assim?
Gabriel olhou-se na túnica longa e branca, que sempre usara.
Tragam-lhe uma canga! ordenou Luís com voz séria e rude.
Gabriel recebeu a canga de um dos servos e rapidamente a colocou, deixando a túnica
próxima aonde dormira na casa. Logo retornara para junto dos seus companheiros que
também se trajavam somente com uma canga, e todos caminhavam rumo ás salinas.
Gabriel avistou o esplendoroso mar de Adredanha, mas agora ele não lhe parecia tão
belo. Sentia-o assustador depois das advertências de Fernando. Sentia enorme angústia
pelo que dissera que iria sofrer naquela lida.
Grupos de cinco servos para cada tonel de madeira deveriam levá-lo ao mar e deveria ser
cheio com aquela água salgada. Por vezes as fortes ondas os jogariam á areia, mas
rapidamente deveriam retornar e recomeçar a difícil tarefa de encher o tonel. Assim que
estivesse cheio, os cinco servos precisavam arrastá-lo na areia, colocá-lo na carroça e
levá-lo ás valas, para ali verter a água.
Gabriel escutou as orientações, silencioso. Uma vez havia entrado no lago da propriedade
do castelo de lorde Orlando para banhar-se e tinha sido imensamente prazeroso.
Todavia, agora ele era obrigado a entrar naquela água fria e extremamente revoltosa e
isto o assustava porque não sabia nadar.
Inúmeras vezes era arremessado na areia muito branca, mas o capataz impiedoso
mandava-o voltar e auxiliar os outros a segurar o tonel.
Gabriel, sentindo-se exausto, finalmente tirava o tonel do mar com seus companheiros.
Os outros cinco tonéis também já haviam sido retirados do mar repletos de água salgada,
e agora precisavam arrastá-los na areia até á carroça.
O tonel parecia ser tragado em seu peso na areia muito fina. Afundava-se, sendo mais
difícil transportá-lo. Estavam todos cientes que se o tonel se virasse vertendo a água,
teriam que reiniciar a árdua tarefa.
A pele clara de Gabriel começava a se avermelhar, e o sal da água secando em seu corpo
lhe trazia imenso ardor. O enorme incômodo que sentia era pior que a descrição que
Fernando lhe fizera.
Imenso era o trabalho de colocar e tirar os tonéis cheios e pesados das carroças, mas
finalmente haviam conseguido e agora vertiam a água nas valas.
Novamente o trabalho recomeçava, retornando os servos e os respectivos tonéis ao mar.
Assim transcorria o dia para os servos das salinas. Quando o sol já alto ia, uma catraca
se fez soar, os tonéis eram então deixados e todos paravam para se alimentar.
Gabriel ambicionava uma sombra, mas o forte sol queimava em todas as direções.
Sentou-se próximo a uma das carroças, desejando-lhe a pouca sombra. Alimentou-se
ainda que não sentisse vontade de fazê-lo. Tateou os braços extremamente
avermelhados, a pele estava demasiadamente quente e sentia enorme ardor em sua face
e tronco. Sentia-se asfixiado com o ar quente, ainda que brisas soprassem
freqüentemente.
Gabriel recordou-se saudoso dos campos frescos do castelo. Lembrou-se do rio cristalino,
das arvores, das colinas, do lago... Olhou ao redor e avistou as valas, ás quais chamavam
de salinas. Poderia contá-las em cinqüenta. Em algumas já podia ver o pó esbranquiçado
secando ao sol. Em outras, o liquido ainda era abundante. Defronte a si o imenso mar de
Adredanha lhe instigava receios. Uma imensidão azul que lhe mostrava superioridade.
Novamente a catraca soou. Tirando-lhe do breve repouso. Caminhou junto com os seus
companheiros para verter o liquido do tonel, na vala. Pela terceira vez recomeçariam a
penosa tarefa.
Gabriel caminhou angustiado acompanhando a carroça que rangia leveza. O seu corpo
reclamava, sentindo-se pesado e febril. A areia fina da praia feria-lhe os pés, que haviam
se cortado na longa tarefa da manhã. Desejava imensamente poder correr e refugiar-se
em algum lugar fresco para amenizar um pouco as dores que sentia, mas o capataz Luís
o olhava, vigiando-o continuamente no trabalho. Como poderia fugir se não conhecia os
limites e nem as distâncias daquela propriedade? No trajeto que fizera não identificara as
ervas que tão bem conhecia e dominava nas colinas e nos pastos do castelo, a vegetação
ali lhe era imensamente diferente. Novamente levavam o tonel ao grande mar. Sentiu na
água fria, um alivio momentâneo ao ardor que sentia no corpo, mas o conforto foi
drasticamente interrompido porque na agitação das ondas pouco conseguia se equilibrar
e era arremessado na areia sem piedade. A água ficava-lhe na altura da cintura, mas
regularmente, na elevação das ondas, chegava-lhe ao pescoço, trazendo-lhe pânico.
O sol misericordiosamente já declinava sua majestade quando retornavam ao oceano
repetindo a dolorosa tarefa pela quarta vez. Gabriel não mais possuía forças para
executar o trabalho exaustivo. A sua visão se turvou, as pernas ficaram-lhe trêmulas,
numa das ondulações não mais conseguiu se equilibrar e foi arremessado
impiedosamente á areia, ficando imóvel. Luís, com sua voz austera, prontamente ordenou
que se erguesse e auxiliasse os seus companheiros a sustentar o tonel. Não houve
qualquer resposta ou reação por parte de Gabriel. Estava de bruços e inconsciente. A
água cobria-lhe o corpo a cada ondulação, o que o asfixiava fazendo-o engolir água. O
capataz, percebendo que não obedecia a suas ordens, fez um sinal para que Fernando
fosse até ele e o puxasse para a areia ficando a salvo das ondas que se arremessavam
sobre seu corpo. Gabriel estava agora de bruços sobre a areia fina e quente. Despertou
abruptamente com o estalar do chicote em suas costas. Respirou ofegante expelindo a
água salgada que havia engolido. A areia fina, ao ser arrastado, havia se aglomerado em
seu rosto e corpo. Olhou o capataz Luís que agitava o chicote impaciente e balbuciou
enfraquecido:
-Clemência senhor!
Luís observou- fria e indiferentemente.
-Levanta-te servo!
Gabriel, reunindo as forças que ainda possuía, ergueu-se com grandiosa dificuldade e
caminhou cambaleante retornando ao trabalho . As pernas fraquejavam fazendo-o cair
continuamente. Após a água ser vertida finalmente na vala, soou a catraca e, sentindo um
alivio inexplicável, Gabriel arrastou o seu corpo até á moradia. Num pequeno córrego se
banharam e na copa recolheram o caldo reconfortante.
A noite já estava escura quando finalmente Gabriel chegou á pequena casinha e deixouse cair de bruços. O corpo lhe doía imensamente e um imenso calor parecia queimá-lo
em cada pedaço de sua pele. Sentia-se extremamente febril em arrepios de frio que lhe
percorriam o ser. Os profundos vergões que o chicote delineara em suas costas eram-lhe
três sulcos de imensa dor.
Os seus companheiros dormiam serenos, porém Gabriel sentia-se desfalecer em
interminável sofrimento. Fernando não conseguira dormir escutando-lhe os gemidos
doloridos. Levantou-se inquieto e olhou-o com piedade. Temia aquele jovem, que se
mostrara atrevido e arrogante, desejaria ficar longe dele para não atrair problemas para si,
no entanto aquele irmão sofria e sentia enorme necessidade de auxiliá-lo. "Como poderia
repousar tranqüilamente se aquele irmão precisava de auxilio?..”. Um imenso sentimento
fraterno e solidário o invadia.
- Gabriel, trarei água! Vou banhar-te continuamente, isto irá aliviar-te! Precisas beber
muito líquido também!
Gabriel entreabriu os olhos, sem forças para agradecer-lhe. Fernando pegou água e o
banhou continuamente aquela longa noite. Com extremo amor abdicara da sua
necessidade de repouso para auxiliar aquele seu companheiro que sofria, sem nada
impor ou questionar.
A catraca soou pela manhã. Fernando já se afastara de Gabriel, após ficar toda a noite
em vigília. Banhara-se para espantar o sono que sentia e agora levava-lhe a refeição
matinal. Gabriel ergueu-se com extrema dificuldade para alimentar-se e Fernando
afastou-se, temendo censuras do capataz. Após alimentar-se, levantou-se e saiu
cambaleante da casinha para se reunir aos seus companheiros.
Os servos o olharam-no com assombro e Gabriel olhou-se também perplexo. A pele,
extremamente queimada e vermelha, se avolumava em bolhas que se espalhavam em
todo o seu corpo. Sentiu que os vergões do chicote em suas costas haviam infecionado.
Os seus pés e a sua face estavam inchados, assim como seus olhos, que pouco
conseguia abrir, com certeza em conseqüência da febre, do sal da água, e da forte luz
solar. Percebera, ao se alimentar, que também seus lábios estavam rachados e que até o
movimento de mastigação lhe era doloroso.
Olhou o capataz Luís humildemente. Ansiava desesperado, que este tivesse clemência,
percebendo-o em estado físico tão lastimável, e o dispensasse do trabalho nas salinas até
sua recuperação.
Não conseguiria suportar mais um dia no trabalho nas salinas. O capataz Luís, no
entanto, ignorou-o.
Caminhando mecanicamente, com extremo sacrifício a cada passo, os dias se repetiram
sem clemência para Gabriel.
Passara-se o período de um ano de muita dor e sofrimento para Gabriel.
A sua pele tornou-se gradativamente escura e mais resistente. As feridas cicatrizaram
paulatinamente. Os pés sofreram uma metamorfose tornando-se duros e insensíveis. Os
músculos se salientaram em todo o seu corpo.
Gabriel começava a ter tempo para pensar. A vida naquela propriedade de Adredanha lhe
fora um verdadeiro inferno. Estava ciente de que o capataz Luís antipatizava com ele,
castigava-o continuamente quando não conseguia concluir um bom desempenho em seu
trabalho nas salinas. Era impiedoso e cruel.
Os seus companheiros inexplicavelmente temiam aproximação ou diálogo com ele.
Mantinham-se silenciosos e indiferentes á sua presença. Fernando o auxiliara
continuamente, em muitas e muitas noites de tortura, até que se recuperasse e tivesse
forças para cuidar sozinho de seus ferimentos, mas ele também lhe impunha distância,
com um silêncio inviolável.
Gabriel intrigava-se. Nunca mais vira ou tivera notícias do servo Job, por vezes
concluindo que deveria ter retornado para o castelo com Lorde. Tal conclusão lhe aflorava
intima revolta achando-se cruelmente injustiçado.
O corpo se adaptara definitivamente á sua árdua vida em Adredanha e ao seu trabalho
nas salinas. Terminara-lhe o tempo de dor e sofrimento.
O sol já alto se erguia no céu incrivelmente azul. O verde das colinas e a brisa fresca se
misturavam num aroma de flores silvestres. O castelo imponente reinava em mais um dia
tranqüilo.
Philip encontrou o médico Ricardo medicando com extrema dedicação um servo que se
ferira no cultivo nos campos. Falou-lhe com admiração:
-Senhor Ricardo, o Lorde mandou-me chamá-lo.
Ricardo olhou-o, sentindo-se intrigado. Desde que o Lorde retornara á propriedade, nunca
mais o procurara. Por vezes, quando se encontravam ocasionalmente, cumprimentava-o
num rápido e frio movimento manual. Nada sabia sobre a viagem à propriedade de
Adredanha , e sentia-se extremamente preocupado com os destinos de Job e Gabriel. A
vida naquela propriedade voltara a uma rotina tranqüila e sem novidades. A tristeza de
Lorde Orlando se mantivera aparentemente profunda, enquanto que o seu filho, o jovem
Arthur, parecia haver superado sua dor expandindo jovialidade e alegria no castelo.
Ricardo disse a Philip que iria prontamente procurar o Lorde na biblioteca e o capataz
afastou-se. O médico, pensativo, terminou de colocar a atadura no braço do servo e
sorrindo-lhe carinhosamente, despediu-se saindo do pavilhão dos servos e caminhando
até o salão principal do castelo e de lá para a biblioteca. A porta estava entreaberta.
-Senhor lorde Orlando, deseja falar comigo?
O Lorde autorizando que entrasse, olhou-o com seriedade.
-Sim Ricardo. Tenho uma tarefa para dar-te.
Ricardo ouviu-o atento e prestativo.
-Desejo que viajes para a propriedade de Adredanha, e me tragas notícias.
O médico inquietou-se questionando.
-Senhor Lorde, perdoai-me a ousadia, mas sou necessário neste castelo. Tem vinte
servos que precisam de meus cuidados.
O Lorde interrompeu-o, contrariado:
- Deixai de tolices Ricardo. Preciso que viajes e tragas notícias do servo Gabriel.
A ordem do Lorde era-lhe inesperada, atingindo-o incompreensivelmente. Novamente era
enredado pelo destino na vida de Gabriel e de seus crimes. Por vezes, sem saber o que
ocorrera, achava que Lorde o houvesse matado para honrar a vida de seus familiares.
Outras vezes imaginava que ele estivesse enclausurado numa masmorra distante.
Entretanto, se surpreendera quando Lorde lhe falou que Gabriel estava na propriedade de
Adredanha. Lorde Orlando percebeu-lhe o semblante pálido e falou-lhe compreensivo:
-Julgo-te pessoa ponderada e de inteira confiança. Muito refleti aquela noite em que tudo
me contastes. Conclui que matá-lo seria pouco! Prendê-lo seria lhe cômodo! Resolvi
conceder-lhe a oportunidade de reconhecer e arrepender-se dos seus erros e de poder se
redimir do imenso mal que fez. Condenei-o ao trabalho! Em diária vida penosa, teria
oportunidade e tempo á reflexão e aprenderia a ter disciplina, equilíbrio, humildade e
resignação. No entanto, sinto enorme necessidade de tomar conhecimento se no árduo
trabalho regenerou-se, e por isto te peço que vás a Adredanha.
O Lorde fez pausa para observar as reações de Ricardo e prosseguiu:
-Da propriedade de Adredanha não deverás retornar sem antes haveres concluído o que
Gabriel aprendeu com sua nova vida.
Ricardo remoía as palavras dentro de si, sem compreendê-las corretamente. O Lorde
ordenou-lhe, excluindo-lhe qualquer possibilidade de recusa:
- Viajarás pela manhã, Ricardo.
O médico afastou-se, despedindo-se do Lorde com uma humilde reverência, e caminhou
apressado rumo ao rio veloz para refletir pausadamente em tudo.
Não conseguia compreender porque o Lorde tivera tanta clemência com o assassino de
sua família, dando-lhe oportunidade a melhorar-se. Era-lhe incompreensível, pelo muito
que conhecia aquele lorde frio e indiferente ás aflições e sofrimentos de seus servos,
tratando-os no essencial á mera subsistência como fazia com qualquer um de seus
animais e achando-os inferiores.
Gabriel recostara-se para fazer a breve refeição no meio de um dia de trabalho. O seu
corpo não mais ansiava o frescor de uma sombra. Sentava-se em pleno sol desafiando o
calor que tanto o ferira, mas que agora não mais o incomodava. Olhava também o imenso
oceano em desafio e orgulhava-se de ter aprendido a dominá-lo, com perfeito equilíbrio.
Por vezes a água lhe subia acima do rosto e conseguia perfeitamente manter-se sobre
ela, aprendera a nadar forçosamente. Um ano e meio se passara sendo desafiado por
sua hostilidade, mas agora ele era quem desafiava sua grandiosidade. Sentia-se forte e
robusto e os demais servos o observavam com seriedade e respeito distantes. Não fizera
amigos, mas não sentia falta destes. Empenhava-se em suas horas de repouso em
conhecer melhor os limites da vila dos servos. Enquanto os seus companheiros de lida se
divertiam em danças ocasionais, em longas conversas, ou com suas mulheres, Gabriel
dava longos passeios noturnos, descobrindo caminhos ocultos na vegetação. Num
desses passeios descobrira um rio que desaguava no mar. Havia pensado em fugir
subindo este rio. Teria água farta para beber e com certeza frutas silvestres para comer
na longa fuga. No entanto optou em melhor fortalecer-se. O objetivo não lhe era fugir das
propriedades de lorde Orlando, desejava sim, ardentemente, retornar ao castelo.
Gabriel terminou a refeição com brevidade e enquanto os demais servos aproveitavam os
poucos minutos que ainda tinham para repousar, ele ergueu-se e caminhou na areia.
Sentou-se na areia fina que inúmeras vezes tinha lhe cortado os pés e pegando um pouco
em sua mão, a apertou violentamente, exclamando em pensamento hostil: "és-me
submissa agora!"...A catraca soou e todos os servos retornaram ao trabalho.
Gabriel se esforçava para ser o melhor e o mais forte, não para atrair a si os encantos do
capataz Luís e nem para fugir-lhe aos castigos, mas sim para salientar em toda a sua
musculatura o imenso ódio que sentia de tudo e de todos.
"Voltaria...” A afirmação era contínua e determinada em sua mente ao longo do dia, e
quando isto acontecesse, voltaria um homem forte e valente, voltaria um guerreiro.
Sabendo ler e escrever, atributos que o velho Manco lhe dera em árdua doutrina, também
se treinava mentalmente ao longo do dia, formulando letras, palavras e estórias em sua
memória. Tinha conhecimento que a grande maioria daqueles servos era ignorante, e isto
fazia com que se sentisse superior a todos eles. Inúmeras vezes punha-se a contar os
passos que dava, para não esquecer as difíceis e complicadas lições de aritmética.
"Voltaria um guerreiro!"
O dia findara e a catraca soou para que retornassem á moradia.
Luís observava Gabriel atentamente, preocupado. Assombrava-se com a rápida
adaptação dele á vida nas salinas. Admirava-lhe o corpo atlético completamente
recomposto do sofrimento. Temia-lhe a fisionomia freqüentemente revoltada, mas não
poderia lhe impor castigos por seus pensamentos, que desconhecia mas poderia afirmar
não serem bons. Era um servo exemplar e tinha força para trabalhar por três. Possuía o
porte, a elegância e a postura de um lorde, e isto o impressionava. Andava com altivez e
olhava os demais companheiros de lida com superioridade aparente.
O capataz Luís sentia que os problemas não haviam terminado para Lorde Orlando, mas
pareciam estar apenas começando. O belo jovem que ali chegara, com um jeito
extremamente frágil e um corpo juvenil, com o árduo trabalho das salinas e com o imenso
sofrimento que lhe fora imposto, se transformara num homem forte. Mas seu semblante
resplandecia contrariedade e certamente não tardaria a desafiá-lo.
Luís sentia enorme receio e estava decidido a mandar um mensageiro ao castelo, a fim
de alertar Lorde Orlando sobre suas desconfianças.
Quando se aproximavam da moradia, avistou prontamente o viajante que chegara á
propriedade. Gabriel avistou-o também reconhecendo-o. Luís caminhou até Ricardo,
esquecendo-se momentaneamente que os servos lhe aguardavam a ordem para que
pudessem ir se banhar e alimentar.
-Que bom ver-te Senhor Ricardo... A que vens?
Ricardo apeou da montaria olhando os servos, mas sem reconhecer Gabriel. Voltou-se
para Luís, dizendo-lhe:
-Lorde Orlando mandou-me para analisar as condições físicas de seus servos nesta
propriedade. Ficarei apenas alguns dias.
-Vou acomodá-lo imediatamente senhor Ricardo, tão logo dispense os servos.
Luís voltou-se, e soando a catraca, os servos se dispersaram. Então acompanhou o
médico, que parecia extremamente fatigado, até o interior da imponente moradia. Tão
logo ali entrou, avistou Job que polia com dedicação as imensas peças de madeira que
adornavam a escadaria. Exclamou com alegria:
-Job, meu amigo!
O capataz Luís sentiu-se extremamente intrigado com a intimidade do médico para com
aquele servo, e resolveu deixá-los a sós, ordenando:
-Job, encaminha o senhor Ricardo ao aposento.
Quando Luís se distanciou saindo da moradia, o médico radiante deu um forte abraço em
Job. Viajara angustiado desejando saber como encontraria aquele servo tão amigo. Job,
também imensamente feliz em vê-lo, levou-o até o aposento e lá o médico pediu-lhe que
se sentasse para poderem conversar um pouco. O servo prontamente atendeu-lhe o
pedido, e sentou-se com a costumeira humildade. Ricardo contou-lhe as ordens que
recebera do Lorde, e Job prontificou-se a informar-lhe:
-Por vezes o vejo Senhor Ricardo. Este ano e meio me ocultei nesta moradia, mas
freqüentemente o observo quando sai para a lida nas salinas e quando retorna.
-Gabriel está na lida das salinas?
-Sim senhor, nosso bom lorde desejou castigá-lo impondo-lhe sofrimento em trabalho
árduo. Por longo tempo o sofrimento lhe era aparente no corpo frágil, no entanto...
-Fala-me Job, conta-me tudo o que sabes. Não me omitas nada.
-Senhor Ricardo, infelizmente não adiantará falar-lhe. O senhor precisará o ver e
compreenderá. Pela manhã poderás vê-lo quando sair para as salinas.
Job desculpou-se e saiu a concluir suas tarefas.
Gabriel vagava pensativo na vila dos servos. Sentia-se saudoso do castelo e agora a
presença do médico Ricardo avivara-lhe as lembranças. Sentia-se curioso a respeito de
sua presença ali na propriedade. "Porque teria vindo?" Gabriel encostou-se em palmeira
frondosa e olhou o céu negro. Negra lhe era a vida sem o sorriso encantador de Brigith.
Nunca a esquecera nos longos dias das salinas. Fitou a noite extremamente estrelada,
mas não conseguia imaginá-la uma estrela. A doutrina cristã que o velho Manco lhe
ensinara sumira, tal qual a fé que não mais sentia.
Voltou ao seu pequeno leito, feito com folhas ressecadas de palmeira, para tentar dormir.
Mas as lembranças de dias outrora tão felizes em sua juventude livre e farta em emoções
deixavam-no angustiado, sendo ardilosamente substituídas por inúmeros ressentimentos
e mágoas de sua vida sofrida e solitária.
Na bonita manhã Gabriel colocou-se próximo aos demais servos para recomeçar o
trabalho. A rotina lhes era o mestre constante e companheira sempre assídua. Os hábitos
eram repetidos continuamente, tornando-se mecânicos. Nada se alterava na propriedade
de Adredanha, nem mesmo o clima sempre árido, seco e quente. Mas naquela bela
manhã, Luís soava a catraca ao lado do médico Ricardo, com certeza teriam novidades. A
multidão de servos silenciou e Luís falou-lhes:
-O médico Ricardo está na propriedade, obedecendo a ordens de nosso senhor Lorde
Orlando, para verificar-vos a aptidão física. Se algum de vós se sente mal, deverá me
procurar, para que eu encaminhe a seus cuidados.
Luís olhou o médico, indagando-lhe se desejava mais alguma coisa. Ricardo fez-lhe um
gesto negativo e o capataz dispensou os servos do cultivo e os servos do trato com os
animais, ficando ali somente os servos das salinas.
-Senhor Ricardo, devo seguir agora para as salinas... Desejas acompanhar-nos?
Ricardo olhava os cinqüenta servos sem conseguir identificar entre eles o servo Gabriel.
Falou:
-Desejo lhe pedir algo, Luís.
-O que desejar, senhor Ricardo!
-Peça que os servos se apresentem um a um, para que possa verificar-lhes a forma física.
Depois faremos o mesmo com os demais que já se foram para a lida.
Luís atendeu prontamente o seu pedido, ordenando:
-Que se apresente um a um de vós ao médico Ricardo. Deverá dizer-lhe o nome e depois
prosseguir para a lida nas salinas.
Em impressionante disciplina metódica, os servos foram se apresentando e Ricardo
analisava-lhes o corpo e suas eventuais feridas.
-Meu nome é Gabriel, senhor.
A voz saiu firme, forte e hostil. Ricardo olhou-o tentando mostrar-se indiferente, no entanto
estava imensamente surpreso e agora compreendia porque o amigo Job lhe dissera que
precisaria vê-lo. Gabriel estava irreconhecível! Lembrou-se rapidamente do jovem que
medicara por duas vezes com as longas crises febris e convulsivas. Era um jovem frágil,
de pele extremamente fina e branca e de olhar ingênuo. Agora, diante de si, estava um
homem incrivelmente musculoso, com formas definidas e olhar assustador. Ricardo
dispensou-o temendo demorar-se em sua análise, e ele imediatamente rumou a caminho
das colinas. Quando o médico terminou a tarefa de exame superficial daqueles servos,
agradeceu ao capataz e foi para a moradia. Ricardo sentou-se pensativo em seu
aposento. Pegou um pergaminho e mergulhando a pena na tinta escura escreveu:
"Senhor Lorde Orlando
Revi o servo com assombro! Os castigos impostos
Transformaram-no num guerreiro forte.
Temo pela segurança de sua propriedade.
O porte físico é a de um nobre,
A força aparente é a de seu mais forte servo,
E o olhar do mais vil dos animais.
Preocupado aguardo ordens.
Seu fiel servo
Ricardo"
Ricardo acabara de lacrar o pergaminho, quando Job bateu na porta pedindo-lhe licença
para entrar. O médico prontamente abriu a porta.
-Bom dia senhor Ricardo. Não deseja fazer a sua refeição matinal?
-Senta-te Job, posteriormente irei alimentar-me! Porque ficastes nas tarefas da moradia?
- Senhor Ricardo, o Lorde deixou instruções com o capataz Luís, para que me protegesse
e protegesse minha família.
-Sabe Luís dos acontecimentos no castelo?
-Não senhor Ricardo, mas o Lorde o deixou ciente que deveria nos proteger de Gabriel.
-Job, não te fez perguntas o capataz?
-O senhor Luís é um bom homem, é discreto e de inteira confiança do Lorde Orlando.
-O que achas que Lorde lhe falou de Gabriel?
-Contou-me certa vez, quando pedi clemência para Gabriel, em função de seu estado
doentio, que tinha ordens para não apiedar-se dele, impor-lhe trabalho e disciplina,
independente de seu sofrimento.
-Ficou doente e tivestes piedade? Pedistes clemência Job?
-Sim, senhor Ricardo... Durante longos meses ele foi arrastado ao trabalho nas salinas
com imensas queimaduras e feridas em seu corpo. Mal conseguia por-se de pé. Soube
através de alguns sevos que me são amigos, que inúmeras vezes nem conseguia
trabalhar. Então era largado na areia, sob o sol quente, sem alimento ou água, e quando o
dia terminava, novamente traziam-no arrastando-o no solo. Porém sobreviveu a tudo. O
senhor já o viu?
-Sim Job, o vi pela manhã e fiquei perplexo com o homem que encontrei.
-Comentam os servos que ele se exercita incessantemente o dia inteiro, não faz somente
as tarefas que lhe são impostas como os outros companheiros. Empenha-se nelas com
um esforço físico demasiado. Perdoe-me a ousadia senhor Ricardo, mas comentam que
el age como um guerreiro...
-Percebi isto também Job, estava manuscrevendo mensagem alertando Lorde Orlando
sobre isto quando entrastes.
Ricardo parou para lhe mostrar o pergaminho lacrado.
-Job, e tua esposa, encontraste-a bem? E tua filhinha?
O servo olhou-o agradecido por se lembrar delas, falando-lhe humildemente:
-Minha filha já é uma linda menina de sete anos e minha esposa espera novo filho.
-Serás pai novamente Job, que alegria para ti! Devo vê-la e oferecer-lhe meus cuidados
médicos. Que faz?
-É uma das auxiliares da cozinha, Senhor Ricardo. E a minha filha também já colabora.
-Então vamos até lá, desejo conhecê-las e aproveito para alimentar-me, já me sinto
enfraquecido.
Ricardo acompanhou Job, esquecendo-se temporariamente do pergaminho em cima da
escrivaninha. Job sentia-se feliz com a preocupação e os cuidados do médico para
consigo e com sua família. Chegando á cozinha, na qual várias servas aprontavam a
numerosa alimentação, Job aproximou-se de uma menina clara e de olhos amendoados,
dizendo-lhe:
-Vem com o papai!
A menina aproximou-se, abraçando-o carinhosamente.
-Senhor Ricardo, esta é minha filhinha, Sara.
Ricardo sorriu-lhe afável:
-Sara, és uma linda menina!
Job, então chamou:
-Linia, vem até aqui!
Uma jovem de cabelos cacheados, que estava sentada de costas, juntamente com outras
servas, levantou-se virando-se para atender o seu chamado. Ricardo imediatamente
sentiu-se fraquejar e sentou-se rapidamente numa cadeira que lhe estava próxima.
-Compreendo o seu assombro Senhor Ricardo.
O médico Ricardo, perplexo, não conseguia retirar o olhar da jovem que parecia ficar
extremamente constrangida. Job falou ao médico.
-Senhor, sei que o senhor está impressionado, porque minha esposa é incrivelmente
parecida com a senhorita Brigith. Não lhe fosse a estatura mais baixa um pouco, e a idade
de vinte anos, poderíamos estar certos de ser ela mesma.
A semelhança era impressionante. O médico poderia afirmar com certeza naquele
instante de que Linia era irmã de Brigith, sendo-lhe três anos aproximadamente mais
nova, mas em semelhança que a identificaria facilmente como uma irmã gêmea.
Sussurrou com a voz trêmula:
-O Lorde a conhece?
-Não senhor Ricardo. Linia era filha de um velho servo que tinha suas tarefas longe desta
moradia. Quando o pai dela morreu, já me interessava em desposá-la, o fiz prontamente.
Linia tinha apenas dez anos e eu assumi o compromisso de respeitá-la até que
completasse quinze anos. Assim o fiz e logo após concretizarmos o matrimônio, Linia
ficou esperando nossa filha Sara. Quando viemos para a moradia, Lorde já havia partido.
-Job, a menina Brigith nunca veio a Adredanha?
-Não, senhor Ricardo, não teve oportunidade de fazer a viagem. Quando o Lorde ia
trazê-la para que conhecesse o mar de Adredanha, o seu irmão Anderson adoeceu... O
resto o senhor sabe.
Ricardo olhou Linia com respeito, desculpando-se:
-Perdoai-me Linia, surpreendi-me porque és muito parecida com a filha do Lorde..
Linia envaideceu-se, agradecendo.
-Job me disse que esperas um filho?
A moça respondeu-lhe modestamente.
-Sim senhor, mas ainda não tenho barriga, senti-me mal e a velha curandeira da vila
disse-me que esperava um menino.
-Depois te examinarei para ver se está tudo bem contigo e com teu filho, se Job teu
marido permitir.
Job aceitou a oferta médica e Linia afastou-se, pedindo-lhes licença. Job apressou-se a
servir a refeição ao médico.
Este se alimentou em silêncio e Job foi para sua lida no trato com a moradia de Lorde
Orlando.
Ricardo após alimentar-se se fechou em seu aposento para divagar. Intuitivamente rasgou
o pergaminho que havia escrito e queimou-o.
Deitou-se em seu leito. Em toda a sua experiência médica, nunca vira seres tão
semelhantes que não fossem irmãos... Precisava encontrar uma explicação lógica para a
incrível semelhança de Linia com Brigith. Poderiam ambas serem filhas de Lorde Orlando,
mas geradas por mães diferentes, possivelmente também muito parecidas na cor da pele,
traços fisionômicos, cor de olhos... Mas ainda assim, a semelhança era impressionante,
sendo estas crianças geradas em ventres maternos tão distintos. Era mais um, dos
inúmeros mistérios da criação, que o homem não tinha ainda condições de explicar! Um
eventual mistério do destino, tentando revelar o que oculto estava, com o claro objetivo de
entrelaçar vidas.
Impressionado ficara também ao saber que o Lorde nunca vira aquela mocinha que
poderia com certeza chamar de filha, se o desejasse.
Temia estar fazendo deduções precipitadas, mas a lógica parecia ser uma só, não haveria
outras explicações .
Achava interessante também ninguém na propriedade de Adredanha poder reconhecer
tão incrível semelhança, a não ser ele, Job e Gabriel... A conclusão assombrou-lhe os
pensamentos. "Como reagiria Gabriel se visse Linia? Como ele agiria com Job?" O
médico sentia enorme vontade de procurar Job. Encontrou-o lavando o piso do imenso
salão nobre.
-Job, atrapalho-te?
-Não senhor Ricardo, mas preciso prosseguir com o trabalho.
-Porque Lorde Orlando te escolheu para cuidar de seu filho Anderson?
-Veio um mensageiro do castelo, e em mensagem a Luís, pedia que este providenciasse
um servo letrado, forte e jovem e que deveria viajar prontamente para o seu castelo, a fim
de tomar conta de seu filho enfermo. Luís gostava muito de meu trabalho e sabia que eu
era exímio contador de estórias quando estávamos no repouso da lida dos campos.
Escolheu-me e mandou-me para lá. Ainda lhe pedi que permitisse que eu levasse Linia e
Sara, mas este não consentiu, dizendo que eu não teria tempo para elas, cuidando do
filho do Lorde, que estava muito enfermo. Convenceu-me que seria bom para mim e que
não seria por muito tempo. Comprometeu-se a ajudar Linia a cuidar de Sara, e como me
era grande amigo, resignei-me á ordem de meu senhor.
- Quando conhecestes Brigith, Job, não te assustastes?
-Sim, senhor Ricardo, também fiquei perplexo com a incrível semelhança física. Porém
conclui que era mera coincidência. Fiquei amigo da senhorita Brigith e me sentia
imensamente bem ao seu lado. A sua semelhança com minha mulher auxiliava-me a não
me sentir tão saudoso de Linia e Sara.
-Não achas que podem ser irmãs?
-Senhor Ricardo, nunca pensei nisto, seria um enorme absurdo! Soube que a esposa do
velho ancião, a mãe de Linia, morreu quando ela tinha sete anos. Nada mais sei.
-Não tiveram outros filhos? A Linia não tem irmãos?
-Não senhor. Soube pelos servos que os pais dela não foram abençoados com filhos, a
filha Linia lhes veio tardiamente, quando o seu pai já estava velho. Dizia ele que Linia lhe
era uma benção e que eu deveria cuidar dela com imenso carinho e respeito. Foi o que
lhe prometi em seu leito de morte e assim tenho agido.
-Sabes como era a mãe de Linia?
-Dizem senhor que era uma serva clara e bonita, casando-se quando ainda era muito
jovem.
-Job, quantos anos viveram juntos?
-O senhor me deixa confuso com tantas perguntas. Creio que viveram uns vinte anos
juntos.
Ricardo desculpou-se pelas perguntas e caminhou até os jardins da moradia. Sentou-se
num banco e refletiu nas respostas de Job. Se o matrimônio dos pais de Linia durara vinte
anos, o médico concluiu que haviam se unido quando a mãe de Linia tinha apenas
quatorze anos. Concluiu prontamente também, que se a mãe de Linia falecera com trinta
e quatro anos,esta já tinha idade suficiente para ser cuidada somente pelo pai. Na sua
experiência de médico, estranhava um matrimônio tão longo somente tão tardiamente ser
abençoado com uma criança. Por todas as reflexões que fizera ao longo daquele dia,
poderia afirmar com convicção que a mãe de Linia haveria se encontrado furtivamente
com Lorde.
Ricardo estava intrigado com o destino. Quantos Lordes não se ocultavam nos pátios dos
servos, submissos à escravidão de trabalhos e isentos de títulos de nobreza e suas
vantagens?
Por sua vez, Job intrigava-se com o diálogo que tivera com o médico Ricardo. Lançada
lhe fora a dúvida em suas constantes indagações. Seria realmente Sara, sua filha, neta de
Lorde Orlando? Seria sua esposa Linia uma filha perdida do nobre? A incerteza
inquietava-o. Terminada a tarefa no salão, voltou à cozinha onde encontrou sua esposa
nos afazeres. Analisou-a enquanto ela trabalhava. Realmente o senhor Ricardo poderia
estar certo, a semelhança era injustificável não fosse por esta razão.
Um arrepio frio lhe percorreu o corpo. Se Gabriel a visse, em sua paixão doentia, haveria
de pensar que Brigith não morrera e que todos lhe haviam lhe ocultado isto.
Os servos não podem se aproximar dos enterros dos nobres, e o de Brigith não foi
diferente. Lembrou-se que Gabriel permaneceu imóvel, encostado em uma árvore
distante, enquanto o corpo de Brigith era sepultado.
Os pensamentos rápidos traziam-lhe angústia. Coincidentemente, sua esposa esperava
um filho e possuía a idade de Brigith quando ela morreu. "Gabriel enlouqueceria". Job
sentiu ânsia de abraçar Linia e assim protegê-la de seus pensamentos. Afastou-se e
voltou à lida.
-Precisamos conversar Job.
-Sim, senhor Ricardo.
-Acompanha-me até meus aposentos.
Job acompanhou-o apressado, em sua apreensão também sentia enorme vontade de
conversar com o médico. Entraram no pequeno aposento e Ricardo pediu a Job que se
sentasse.
-Job, temos problemas a resolver, estou certo que devo resolvê-los contigo.
-Sim senhor. Depois de suas perguntas despertei para as evidências. Realmente Linia é
filha de Lorde Orlando... Apavoro-me em pensar que Gabriel a veja e que em sua paixão
doentia pense que o enganamos, e que esta seja Brigith esperando o seu filho... O que
faremos senhor?
Job estava aflito gesticulando as mãos constantemente.
-Acalma-te Job, precisamos ficar tranqüilos sempre para pensarmos e agirmos com
ponderação e sensatez, assim evitaremos possíveis erros.
Ricardo pôs-se a caminhar de um lado para o outro, dizendo-lhe:
Rasguei o manuscrito que mandaria ao Lorde, mas escreverei outro. Procura o
mensageiro e pede-lhe que se apronte para a viagem antes do anoitecer.
-Perdoai-me, senhor Ricardo. O que escreverás?
-Job, tranqüiliza-te, nada direi por agora de Linia, somente pedirei que venha com
urgência para Adredanha.
Job tranqüilizou-se, confiante nas atitudes do médico e saiu para procurar o mensageiro.
Ricardo pegou a pena, envolveu-lhe o bico na tinta e escreveu:
"Senhor Lorde Orlando
Problemas na propriedade de Adredanha.
Faz-se necessária a sua presença!
Seu servo Ricardo."
Cuidadosamente lacrou o pergaminho e saiu do aposento carregando-o consigo.
Já o sol descia no horizonte quando o mensageiro saiu rumo ao castelo de Lorde Orlando
num galope ligeiro. Ricardo olhou-o sumindo na distância, na esperança de que não
tardasse e que breve o Lorde ali estaria.
Longos dias se passaram sem notícias.
O médico Ricardo passava os dias tratando de alguns servos que lhe pediam auxilio e
depois ia para seu aposento refletir.
Linia entrara no sétimo mês de gestação e Ricardo, preocupado, freqüentemente a
observava e lembrava-se de Brigith e de seu filho tão precipitadamente ceifados da vida.
Naquela manhã, quando os servos se aprontavam para seguir para a lida, Luís o chamou
dizendo-lhe:
-Preciso que olhes o braço de um servo, parece-me que quebrou os ossos.
Diz-me onde encontrá-lo Luís.
Luís apontou em meio aos servos das salinas e Ricardo observou que se tratava de
Gabriel. O médico chamou-o com um gesto. Gabriel se aproximou amparando o braço
direito que se encontrava contorcido. No entanto, ele não demonstrava qualquer
expressão de dor. Gabriel olhou-o, cumprimentando-o com um meneio de cabeça, pois
estava ciente de que o capataz o observava.
-Como te feristes, Gabriel?
Gabriel surpreendeu-se em como aquele médico, incumbido de olhar tantos servos, no
castelo e naquela propriedade, conseguira se lembrar com tanta facilidade de seu nome.
Tentando não demonstrar a surpresa que sentia, respondeu-lhe:
-O tonel caiu sobre o meu braço ontem na lida nas salinas. Senti dores a noite inteira e
não consigo movimentá-lo.
Ricardo examinou-lhe o braço atenciosamente, enquanto Luís dispensava os demais
servos para que prosseguissem para o trabalho. Ordenou que alguns auxiliares
acompanhassem o grupo, enquanto ele ficaria ali com aquele servo.
Gabriel mais uma vez se surpreendia, porque o capataz Luís não acompanhara os
demais servos, ficando ali exclusivamente para vigiá-lo, como se o considerasse um ser
demasiadamente perigoso. Sentia pela primeira vez, nos dois anos que ali estava naquela
propriedade, que o capataz tinha ordens rígidas de vigiá-lo.
Com seus vinte e seis anos de idade, como poderia ter sido tão ingênuo!
Percebera inúmeras vezes que os demais servos eram atendidos pelo médico e que o
capataz não os ficara vigiando - eles caminhavam sozinhos para a lida depois do
atendimento.
Propositadamente, havia deixado o tonel cair violentamente sobre o seu braço, pois
somente assim teria a oportunidade de aproximar-se do médico e da moradia, e
conseguira o que tanto ambicionara. Agora, no entanto, os fatos que percebia na tão
almejada aproximação lhe eram surpreendentes. Concluiu indignado que durante todo
aquele tempo era vigiado rigorosamente e ingenuamente não o percebera.
Ricardo observou que Gabriel estava cabisbaixo e pensativo. A sua fisionomia séria
mostrava claramente estar indignado. Olhou para Luís e falou-lhe:
-Quebrou o braço senhor Luís! Será necessário colocar algumas talas para firmá-lo.
Luís ficou irritado, pois sabia que Gabriel não poderia voltar à lida com completa
mobilidade e demoraria a se restabelecer. Indagou:
-O que o senhor precisa?
O médico explicou-lhe que precisava de algumas talas de madeira do tamanho do
antebraço de Gabriel, também boa quantidade de pano que pudesse rasgar, fazendo uma
longa faixa. Luís, prestativo, saiu para pegar o material solicitado pelo médico, deixando
temporariamente Ricardo sozinho com Gabriel, defronte á moradia. O médico pediu a
Gabriel que se sentasse e indagou-o:
-Estás muito apreensivo, sentes dores?
Gabriel ainda que as sentisse respondeu mostrando superioridade:
-Sou mais forte que a dor, senhor Ricardo.
Ricardo estava também abaixado, tentando colocar os ossos do antebraço na posição
adequada, quando Job saiu da moradia, despreocupado. Pensava que Gabriel já havia
saído para a lida nas salinas. Ele aproximou-se sorridente, sem perceber quem o médico
medicava:
-Senhor Ricardo, sua refeição matinal está pronta!
Ricardo levantou-se num impulso momentâneo de sobressalto, e Job empalideceu ao ver
ali o servo Gabriel.
-Irei tão logo termine de auxiliar este servo!
Ricardo ansiava afastá-lo rapidamente e Job, compreendendo, saiu apressado e ocultouse na moradia.
Gabriel, em sua perspicácia percebera com objetividade o sobressalto do médico e
observara as reações do servo Job. Concluíra prontamente que Job se ocultara na
moradia desde que ali chegara. Estava intrigado com tantos mistérios que repentinamente
pareciam se descortinar diante de seus olhos. O médico Ricardo retornara a auxiliá-lo
com seu braço, mas parecia demasiadamente preocupado e tenso. Gabriel resumiu em
sua mente paulatinamente: o capataz Luís o vigiara integralmente aqueles dois anos,
tratando-o impiedosamente e com extrema crueldade que se diferenciava do tratamento
com os demais servos, com os quais era tolerante e por vezes até misericordioso, com
certeza cumprindo ordens de lorde Orlando. Job certamente se escondia em tarefas na
moradia, nunca o vira nas reuniões festivas dos servos. Incrivelmente, naquele longo
tempo, nunca se encontrara com ele. E o médico, além de se lembrar com extrema
facilidade de quem ele era, se sobressaltara com a aproximação de Job e agora, ainda
que tentasse disfarçar, a tensão lhe estava descrita nos olhos e nos movimentos. Gabriel
parecia decifrar , naquele conjunto de circunstâncias, o enorme mistério. "Com certeza
Job contara ao médico o que sabia. Este, por sua vez, teria contado ao Lorde, que
ordenara a reclusão de Job e a vigília de Luís.” Porém não conseguia compreender
porque o Lorde, ciente de tudo, não o matara ou enclausurara! As inúmeras indagações
em sua mente faziam-no ficar demasiadamente confuso. Sentia-se inexplicavelmente
atraiçoado, como se fosse uma fera cercada por todos os lados. Gabriel contorceu-se
sentindo uma dor violenta em seu braço e despertou de seus pensamentos.
-Perdoai-me Gabriel, mas precisava dar este esticão em teu braço, finalmente chegou à
posição correta.
Gabriel meneou a cabeça mostrando haver compreendido, mantendo-se silencioso. Logo
Luís chegou com o material pedido, parecia que se haviam passado longas horas, mas
ele retornara rapidamente, foram apenas alguns minutos de ausência.
Ricardo finalmente havia conseguido imobilizar o braço de Gabriel. O olhou dizendo:
-Podes ir, Gabriel. Deverás voltar a procurar-me daqui a cinco dias para que eu veja a tua
recuperação.
Olhou Luís e explicou-lhe:
-Gabriel não poderá trabalhar com este braço assim.
Gabriel agradeceu-lhe novamente num meneio silencioso e afastou-se com Luís, que
também lhe agradeceu os cuidados com o servo, e ambos rumaram para as salinas.
No caminho Luís deu instruções a Gabriel para que auxiliasse os servos das valas.
Poderia pegar o sal e ensacá-lo com o braço apto .
Gabriel pouco o ouvia. A mente se dispersava em pensamentos de raiva com sua
ingenuidade. Como não percebera os movimentos ocultos mas tão óbvios que o
rodeavam! Sentia-se irado pela inocência que não mais possuía, mas que lhe vendara os
olhos. Sabia agora da necessidade de estar mais atento a tudo que ocorresse ao seu
redor. Virou-se e imediatamente constatou que o capataz Luís o observava atentamente,
com o semblante temeroso. Haviam chegado ás salinas e imediatamente dirigiu-se ás
valas como lhe fora ordenado, e iniciou a tarefa á qual fora incumbido.
Gabriel estava quase restabelecido do ferimento em seu braço, quando finalmente Lorde
Orlando chegou á propriedade de Adredanha.
Apressado e extremamente preocupado,ele entrou na moradia e encontrou o servo Job
lavando os imensos vitrais das janelas. Ordenou friamente:
Chamai-me o médico, estarei na biblioteca esperando-o.
O Lorde apresentava o semblante cansado e Job, que se assustara com sua entrada
repentina, apressou-se a chamar Ricardo, que se encontrava em seu aposento.
-Porque bates tão apreensivo, Job?
-Perdoai-me, senhor, mas Lorde chegou e parece nervoso. Mandou-me chamá-lo.
Ricardo, apreensivo rumou prontamente para atender a ordem. Job seguiu-o
interrompendo-o aflito.
-Senhor, peço-lhe que não fales sobre Linia!
O médico olhou-o ternamente explicando-se.
-Perdoai-me Job, mas terei que comunicar tudo o que sei. Não te inquietes, tudo se
resolverá!
Job inexplicavelmente não conseguia tranqüilizar-se. Sentia-se temeroso,com uma
enorme sensação de tristeza que prenuncia dias de amargura e agonia. Chegando à
biblioteca daquela moradia, Ricardo entrou pedindo licença, e o Lorde num aparente mau
humor, foi-lhe indagando rudemente:
-Ricardo, o assunto deve ser demasiadamente sério para me obrigares a viagem tão
longa!
-Senhor Lorde, temos inúmeros problemas aqui e somente o senhor poderia resolvê-los.
O médico então, calmamente, colocou-lhe ciente dos temores que sentira ao rever Gabriel
em seu novo corpo físico e em como procedia nas tarefas das salinas. O Lorde,
enfurecido, interrompeu-o indignado.
-Ricardo, te desesperastes porque Gabriel tornou-se um servo exemplar e cumpridor de
suas obrigações?
-Perdoai-me Senhor Lorde, mas creio que observando-o, o senhor compreenderá minha
preocupação.
-Nada fez de errado nestes dois anos?
-Não senhor lorde, mas...
-Fazes-me tu, viajar longos dias, para dizer-me que devo preocupar-me com um servo
que o único erro que cometeu nesta propriedade, foi o de fortalecer-se e tornar-se um
homem?
Ricardo sentia-se confuso com a arrogância de Lorde Orlando.
-Senhor Lorde, algo me diz que é perigoso, seus olhos brilham revolta e por isto lhe pedi
que viesse.
Lorde Orlando olhou-o desiludido, censurando-o :
-Lamentável, Ricardo. Sempre te considerei um servo ponderado nas atitudes e por esta
razão confiei-te a missão de vires a esta propriedade. Não consigo compreender a
insensatez que tivestes em me trazer até aqui...
O Lorde enfurecia-se e, extremamente exaltado, prosseguiu:
-Recebi a tua mensagem e preocupei-me em demasia. Enormes prejuízos nas atividades
desta propriedade surgiram-me na mente. Abdiquei de enorme compromisso em viagem á
corte, viajei tenso e em angústia, e agora tu me dizes que é nada!
Ricardo aflito falou-lhe:
-Senhor Lorde, perdoai-me novamente. Posso ausentar-me rapidamente?
Que desejas fazer agora Ricardo, desejo explicações de tua atitude tão precipitada e
imponderada!
-Senhor Lorde concedei-me uma licença, prometo-lhe ser breve!
Lorde Orlando consentiu contrariado, levantando-se e caminhando impacientemente.
Apressado, Ricardo saiu da biblioteca e breve retornou pedindo novamente licença ao
nobre para entrar. Ele concedeu, voltando-se para novamente sentar-se na poltrona.
Olhou para Ricardo e sentiu que enorme emoção lhe aflorava em lágrimas. As suas
pernas estremeceram em fragilidade. Sentando-se rapidamente balbuciou atônito quase
sem voz:
-Brigith?
Ricardo encaminhou a jovem para mais próximo do Lorde dizendo-lhe:
-Não senhor lorde, esta é a serva Linia, a esposa do seu servo Job.
O Lorde tentou conter as lágrimas, sentindo-se ridículo em sua nobreza, ainda que a
emoção ainda se expandisse saudosa em sua memória. Ricardo falou-lhe
vagarosamente:
-Senhor Lorde, estou certo que me precipitei em que viesse a esta propriedade com tanta
brevidade, mas não sabia como agir com tudo o que vi aqui... Um servo que destrói a sua
família se torna fisicamente um guerreiro, uma filha que surge sendo-lhe desconhecida...
Linia estremeceu escutando as palavras do médico e balbuciou perplexa:
-Filha?
Ricardo fez-lhe um sinal carinhoso para que silenciasse. O Lorde observava-a
atentamente. Indagou curioso:
- Quem é a tua mãe Linia?
Linia olhou-o intrigada, mas rapidamente baixou o semblante em sinal de respeito e
humildade perante o nobre, respondendo-lhe:
-Minha mãe faleceu tem quase treze anos senhor!
-Senta-se Linia e falai-me dela!
Linia, obedecendo a ordem do Lorde, sentou-se desajeitada em função da barriga, que
inúmeras vezes lhe trazia incômodos, e contou constrangida:
-Quando tinha sete anos senhor, minha mãe morreu.
Lorde impaciente em sua ansiedade suplicou:
-Que fazia ela na propriedade? Qual o seu nome?
Linia se sentia intimidada pelo Lorde e começou a sentir-se mal, sem, no entanto,
aparentar os incômodos e dores que sentia. Sentia-se temerosa pela autoridade do Lorde.
-Seu nome era Amância e auxiliava na cozinha desta moradia quando ainda era jovem.
Quando ficou me esperando passou para as tarefas da costura, no galpão perto do lago.
O Lorde lembrou-se das ordens que dera ao capataz para que as mulheres que
engravidassem fossem afastadas da moradia ou da lida, em tarefas mais amenas,
Necessário lhe era “preservar a vida saudável dos servos que lhe faziam falta e a de suas
crias "... Lembrou-se também que pedira a Luís que protegesse Job e sua família e por
isto, com certeza, aquela jovem ainda ali estava na moradia, mesmo esperando um filho...
Sentia-se confuso! Lembrara-se prontamente da serva Amância. Assemelhava-se à sua
esposa Joane com seu porte esbelto, cabelos levemente ondulados, pele alva, olhos
amendoados, mas era, a seus olhos, imponentemente mais graciosa que sua esposa. O
sorriso de Amância era encantador em sua espontaneidade e constante alegria. Houve
afeição imediatamente recíproca tão logo conhecera a serva, e os encontros breves e
ocasionais eram inevitáveis no amor que ambos sentiam. Recordou-se ainda, que
Amância havia lhe falado de seu esposo, e da enorme diferença de idade entre ambos.
Sim, recordava-se saudoso daquela jovem que tanto amara e estava convicto de que
Linia era sua filha. Olhou-lhe o ventre exclamando para si "E o filho que ela esperava
seria meu neto"...Sentia-se atordoado nas lembranças e no reencontro com um passado
distante que o emocionava. O Lorde, sem saber o que dizer ao médico ou á jovem que o
olhava amedrontada, ordenou que saíssem da biblioteca. Ricardo obedeceu prontamente
auxiliando Linia a levantar-se e sair.
Somente quando caminhavam no corredor, que Ricardo observou que Linia estava
extremamente pálida e trêmula.
-Sentes-te mal Linia?
Linia olhou-o suplicante perdendo imediatamente os sentidos. O médico Ricardo
amparou-a prontamente e cuidadosamente carregou-a no colo, atravessando o salão
onde Job os esperava. Vendo a esposa adormecida no colo do médico, desesperou-se:
-O que houve senhor?
-Ajudai-me ,Job, tua esposa não está bem, precisamos levá-la até os meus aposentos!
Rapidamente levaram-na, deitando-a no leito. O médico examinou-a, constatando que
Linia estava com imensa hemorragia. Concluiu que precisava tirar-lhe o bebe para que
pudesse salvar-lhe a vida. Olhou Job, que o fitava angustiado, e falou-lhe com seriedade
absoluta:
-Job, temos que tirar a criança, senão Linia morrerá, está perdendo muito sangue!
Job desesperou-se. Faltavam ainda dois meses para seu filho nascer. O médico imploroulhe.
-Rápido Job, me ajuda! Preciso de panos e água quente agora!
As pernas de Job não lhe obedeciam. Permaneceu imóvel em estado de choque. Ricardo
percebendo que ele pouco poderia auxiliar, ajudou-o a sentar e correu até á copa,
pedindo ajuda a duas servas.
No aposento Job permanecia perplexo em nervosismo que o imobilizava. Ricardo
despertou Linia com os sais e, em violentas contrações e o auxilio de uma serva que lhe
empurrava o ventre, finalmente o médico conseguiu retirar a criança. O bebê estava agora
imóvel em seus braços. Ricardo tentou em vão reavivar o pequenino ser. Morrera em
parto prematuro.
Enquanto Ricardo tentava salvar a vida de Linia, interrompendo-lhe a hemorragia, Job
permanecia em estado de choque. Amava demais aquela mulher não poderia perdê-la!
Foram longas horas de auxilio médico ininterrupto, mas Linia fora salva e agora dormia
profundamente, em exaustão. Enquanto as servas auxiliavam a limpá-la e a tirar-lhe as
vestes e mantas sujas, Ricardo caminhou até Job e disse-lhe colocando-lhe a mão no
ombro:
-Linia ficará bem.
Somente então as lágrimas verteram nas faces do servo que olhava o pequenino vulto
ainda próximo ao leito, envolto num pano.
-Meu filho...
-Sim Job, não resistiu. Era um lindo menino.
Ricardo amparou-o num forte abraço fraterno. Então Job caminhou até o pequenino vulto
e o aconchegou no colo, em profundo e sentido pranto.
O médico olhou-o encorajando-o:
-Deus assim o quis Job. Tens, graças a Ele, a tua esposa de volta...terão outros filhos
com sua benção.
Job parecia inconformado e apertava o pequenino em seus braços fortes, como se
desejasse devolver-lhe a vida. Depois, deixando a criancinha com o médico, caminhou
até sua esposa Linia adormecida e afagando-lhe a face disse aos prantos:
-Nosso filhinho era lindo.
Ricardo caminhou até Job, consolando-o, enquanto as servas levavam o bebê sem vida.
-Deves agora te preocupar com Linia, que precisará de tua força, de teu conforto e de teu
amor.
Job concordou, meneando a cabeça afirmativamente. A tristeza lhe era absoluta. Sentouse numa cadeira próxima á esposa e ali ficou, tentando conter o pranto.
- Senhor Ricardo, eu amo esta jovem, sempre amei, desde que era apenas uma menina e
cuidava dela como um pai! Sinto que é uma parte de mim e faria qualquer coisa nesta
vida para não vê-la triste.
Ricardo balbuciou:
- Estarás perto dela quando despertar, ela precisará desse imenso amor que demonstras
com tanta força e sinceridade.
Ricardo afastou-se para lavar-se e, enquanto as servas terminavam com a limpeza do seu
aposento, caminhou determinado até á biblioteca. Encontrou o Lorde ainda pensativo
percebendo, somente então nos vitrais, que já anoitecera.
-Senhor lorde preciso falar-lhe.
O Lorde ainda parecia ausente nos inúmeros pensamentos. Pensara a tarde inteira, se
deveria ou não assumir aquela filha e se o fizesse, que providencias deveria tomar. Se a
esposa fosse viva, ignoraria a filha bastarda Linia em respeito ao matrimônio. Mas a sua
esposa e sua filha haviam falecido, sentia-se muito só com seu filho Arthur e este logo
casaria, possivelmente distanciando-se do castelo e indo morar em outra propriedade.
Sua vida se tornara fria e sem objetivos. Concluíra que não se importava com as
convenções sociais da corte e assumiria a filha Linia, com certeza Arthur compreenderia.
Os problemas seriam inúmeros, estava ciente, mas naquele momento o Lorde somente
conseguia visualizar a alegria retornando ao castelo, ter a sua filha de volta, e um netinho
correndo nos jardins. Lembrou-se repentinamente que o servo Job falara de uma filha.
Que idade teria? Gostaria de conhecer sua neta! Lorde Orlando olhou para Ricardo que o
aguardava paciente.
-Senta-te Ricardo.
O médico sentou-se observando que o nobre havia se acalmado e, ainda que se
mostrasse cansado e preocupado, parecia sereno.
-Senhor Lorde, Linia passou mal e perdeu a criança que esperava.
Lorde levantou-se extremamente preocupado.
-Onde está minha filha? Está bem?
Ricardo olhou-o perplexo com a sua reação de preocupação para com aquela que até tão
pouco desconhecia como filha.
-Senhor Lorde, está em meus aposentos e repousa após intensa hemorragia. Com o
repouso necessário e alimentação substanciosa, ficará boa.
O Lorde ordenou, emocionado.
-Desejo vê-la, agora.
Ricardo estava impressionado com Lorde Orlando. Sempre fora frio e indiferente,
estranhava aquele nobre tão superior reconhecer a filha bastarda que lhe era Linia e de
preocupar-se com ela.
Desde que o conhecera, sempre o vira zelando somente pelos interesses lucrativos de
suas propriedades e pela proteção de seus familiares, o resto não lhe tinha qualquer
valor. Era um lorde friamente superior, preocupado sempre consigo, a nobreza era-lhe
inexistente em valores para com os outros. Ricardo acompanhou, silencioso, o Lorde até
o seu simples aposento. Job imediatamente assustou-se com a presença daquele senhor
ali e, afastando-se do leito, reverenciou-o.
O Lorde caminhou ao leito e acariciou as ondas cacheadas dos cabelos de Linia.
Recordou-se saudoso que o mesmo gesto apaixonado também fazia em sua mãe
Amância.
Observou preocupado a face extremamente pálida de Linia e percebeu que esta
despertava. Falou-lhe emocionado:
-És minha filha, Linia, e serás tratada de hoje em diante como a filha de um lorde. Senteste bem?
Linia, sentindo-se imensamente fraca e confusa com aquela situação, olhou ao redor
procurando Job. O servo sentindo-lhe a angústia falou-lhe, tentando tranqüilizá-la, mas
sem poder se aproximar:
- Estou aqui querida Linia, fica tranqüila!
O Lorde, afastando-se do leito, ordenou ao médico que imediatamente transferissem a
sua filha para o melhor aposento da moradia e que este deveria cuidar exclusivamente
dela até que se recuperasse completamente. O médico Ricardo, o servo Job, e uma serva
que ali estava presente, sentiam-se perplexos, mas obedeceram-lhe imediatamente as
ordens. Linia foi transferida para um imenso aposento requintado e luxuoso.
Iniciava-se uma nova vida para Linia. Mostrava-se inconformada com a perda do filho,
mas encantava-se com o aposento luxuoso em que se encontrava. Olhava, extasiada, o
leito grande e macio, as mantas alvas e sedosas, os cortinados cobrindo os belíssimos
vitrais coloridos das janelas. Á sua direita, uma vasta cômoda em madeira lindamente
trabalhada sustentava um imenso espelho de cristal. Tapetes coloridos revestiam o chão
numa beleza radiante em ramagens multicoloridas. Esfregava os olhos julgando, ás
vezes, que apenas estava sonhando e que despertaria de seu sonho tão magnífico, mas
a paisagem do aposento se mantinha silenciosa e serena ao seu redor.
Lembrou-se do quartinho árido em que dormia com Job e Sara. Não possuía mobiliário ou
requintes, o leito era macio, mas improvisado com algumas mantas que Job conseguira
em trabalho primoroso, alongando-se no piso frio. Assim sua filha Sara também podia
dormir mais comodamente. Banhavam-se rapidamente num tonel que seu marido
conseguira com o capataz Luís, que lhes era amigo. E num pequenino cômodo adjacente
faziam as necessidades fisiológicas.
Recordando-se em passado mais longínquo, vislumbrou-se numa casinha da vila dos
servos que não diferenciava muito das acomodações dos servos na imponente moradia. A
pobreza era aparente e a simplicidade era reinante e absoluta.
Linia, nos seus vinte anos de juventude, sentia-se renascer para uma nova vida e sentiase demasiadamente bem com a abundância repentina.
Lembrou-se de sua mãe, sempre sorridente e feliz, ainda que a vida lhe fosse penosa ao
lado do seu pai. O velho, exausto da lida, era áspero e grosseiro. No seio do seu lar a sua
mãe era a mais submissa das servas ao seu próprio marido, que inúmeras vezes a
agredia por mero prazer de vê-la entristecer-se. Mas logo sua mãe superava as dores da
convivência, e mostrava-se reluzente em felicidade a tudo e a todos. Até que um dia seu
pai, agredindo-a, fez com que caísse e sua cabeça bateu violentamente na parede de
pedra da pequena moradia, e ela nunca mais voltou a ser a mesma. Os movimentos lhe
foram sendo tirados gradativamente até que faleceu. Seu pai contara a todos que era uma
febre e ninguém ousava se aproximar, somente Linia, que lhe levava as refeições e lhe
amparava em todos os cuidados.
Desde os sete anos a vida não lhe fora fácil ou harmônica. A sua infância, anteriormente a
esta idade, eram contínuos dias de convivência dolorosa com o sofrimento de sua mãe e
com as agressões que lhe eram impostas. Após os sete anos de idade, o pai voltara a
violência contra ela , maltratando-a e também agredindo-a. Relembrava, revoltada, que o
velho nunca lhe fora um bom pai.
Veio-lhe a paz quando seu pai faleceu, tinha então dez anos e Job prontamente a
desposou.
Job sempre fora um bom marido, respeitou-a calorosamente até á sua formação adulta,
tratando-a como uma filha. Quando se tornou mulher, no entanto, se viu obrigada a
concretizar o matrimônio. Sentia que Job a amava em plenitude, mas nada sentia pelo
marido, era-lhe mera obrigação de esposa. Sentia-se agradecida e desejaria viver com
ele somente como um irmão. Constrangia-se com a imposta convivência matrimonial.
Prontamente ficou grávida de sua filha Sara, e dois anos após Job viajava, obedecendo
ordens, para o castelo. Aí sim, a vida lhe era plena. Trabalhando na costura e cuidando da
filha sentia-se livre do pai violento, sentia-se livre do marido que a sufocava com um amor
asfixiante que não correspondia e a incomodava. Finalmente sentira a liberdade e sentiase feliz, mas seu marido Job retornou após longo período ausente, e em seu retorno
vieram-lhe as obrigações matrimoniais tão difíceis e tão penosas.
Mas agora Linia estava ali, o Lorde afirmava ser seu pai, e ainda que não sentisse
qualquer afinidade com este, aproveitaria a oportunidade que a vida lhe ofertava.
Nas amargas lembranças, a noite foi-se adiantando e já era tarde quando se lembrou da
ausência de sua filha Sara e de seu esposo Job. "Com certeza, estariam no pequenino
quartinho, frio e úmido?" pensou indiferente. Isto não lhe importava agora. Vislumbrou o
candelabro acima de seus olhos, em pingentes cristalinos iluminados pela chama das
velas quase extinta e dormiu.
-Dormistes bem minha filha?
Linia abriu os olhos, ainda sonolenta, e percebeu que Lorde estava sentado em uma
poltrona próxima. O olhar era terno e carinhoso, mas parecia demasiadamente triste. Linia
tentou levantar-se, mas a cabeça lhe parecia extremamente pesada, e deitou-se
novamente, sentindo-se contrariada com o incomodo:
-Deves repousar para te fortaleceres minha filha, sofrestes muito!
Somente ela sabia o quanto sofrera em sua vida, mas manteve-se silenciosa.
-Compreendestes quando eu disse ser teu pai?
Linia meneou a cabeça em negativa, olhando-o
- Amei muito a tua mãe Amância e, em determinada época de nosso passado, vivemos
intenso romance. Contou-me da vida difícil que levava com seu velho esposo. Mas estava
sempre sorridente e feliz, ela era encantadora e linda, Trouxe imensa alegria aos meus
dias, e auxiliou-me a levar o meu matrimônio tão repleto de convenções. Mas sou um
nobre e tinha esposa e filhos pequenos a respeitar. Tinha responsabilidades e não podia
simplesmente largar tudo, pelo sentimento que lhe tinha.
O Lorde sobrecarregou mais ainda o semblante de tristeza, e continuou:
-Não tenho qualquer dúvida de que sejas minha filha, e desejo reparar a ausência deste
pai durante estes teus vinte anos e honrar a memória daquela jovem que só me traz
doces e felizes lembranças. Desconhecia por completo a tua existência.
Linia estava atordoada com as revelações que Lorde lhe fazia com íntegra
espontaneidade. No dia anterior ela era a serva submissa, agora o Lorde lhe acariciava e
pedia compreensão. Olhou-o carinhosamente e balbuciou:
-Senhor Lorde, agradeço-lhe os cuidados e a preocupação que demonstra para comigo,
mas...
Lorde interrompeu-a acariciando-lhe os cabelos:
-Nunca mais me chames de senhor Lorde, me chamarás de pai!
Linia insistiu com dificuldade:
-Senhor meu pai, onde esta Sara? E Job meu marido?
O Lorde compreendeu que esquecera-se que sua filha Linia era casada e tinha uma filha,
e sentiu-se confuso.
- Era muito tarde quando viestes para teus aposentos e esqueci-me deles... Desejas vêlos?
Linia, em verdade, não sentira a falta do marido e nem mesmo da filha, desejava ser livre
e desfrutar sozinha a nova vida que se descortinava para ela.
- Estou tão cansada, senhor meu pai!
O Lorde prontificou-se:
-Direi a todos que não te sentes bem e precisas repousar. Colocarei imediatamente uma
serva como tua ama , ficara á tua disposição e o médico Ricardo prontamente virá ver-te.
Está bem assim?
Linia agradeceu, meneando a cabeça afirmativamente e fingindo imenso cansaço.
-Agora te deixarei repousando filha.
O Lorde levantou-se, beijando-lhe a mão carinhosamente e retirou-se do aposento.
Descia a imensa escadaria para ir se alimentar quando Job o interrompeu humildemente
e apreensivo:
-Senhor Lorde Orlando, perdoai-me dirigir-lhe a conversação, mas estou deveras
apreensivo com minha esposa Linia, gostaria imensamente de vê-la.
Lorde Orlando olhou-o complacente, dizendo-lhe:
-Estive com ela agora Job, e ainda sente-se imensamente cansada, muito sofreu, deves
compreender. Deixai-a ao repouso, mais tarde irás vê-la.
Job compreendeu e, ainda que ansiasse em demasia em ver a sua querida esposa,
agradeceu-lhe com uma reverência e retirou-se.
O Lorde caminhou para fazer a sua refeição e posteriormente saiu para ver os servos
saindo para a lida. Pediu que providenciassem uma montaria e acompanhou os servos
que partiam para as salinas. Astuto e vivaz, percebeu rapidamente que Gabriel caminhava
em meio aos outros, com o braço direito imobilizado em talas. Chamou Luís, que se pôs a
caminhar ao lado de sua montaria:
-Que aconteceu com o servo Gabriel?
-Senhor Lorde, atrapalhou-se na lida e quebrou os ossos do braço.
O Lorde persistia em olhar Gabriel:
-Ficou forte o rapaz, não Luís?
O capataz tentava acompanhá-lo, ofegante, a montaria era mais veloz:
-Sim senhor, fiquei muito surpreendido com o seu fortalecimento, estava disposto a avisálo de meus receios, mas o senhor Lorde aqui veio a tempo.
Lorde Orlando olhou-o intrigado, a apreensão parecia a mesma do médico Ricardo.
-Porque receias o fortalecimento do servo Gabriel, Luís?
Finalmente chegavam as salinas e Lorde Orlando apeou da montaria, colocando-se ao
seu lado, aguardando a resposta do capataz.
-Senhor Lorde, nada fez Gabriel de errado nestes dois anos que aqui esteve, mas o
comportamento dele é estranho e superior, é altivo e imponente, os olhos são frios e
cruéis. Não posso acusá-lo de nenhum ato prejudicial á sua propriedade, mas sinto-o o
mais vil de seus servos!
Era-lhe surpreendente a narração de Luís a respeito de Gabriel. Lorde Orlando indagoulhe:
-Que achas que seria capaz de fazer? Fugir?
Luís ficou pensativo e respondeu-lhe:
-Se desejava fugir senhor Lorde, já o teria feito!
-Que me dizes Luís?
-Digo-lhe senhor, que Gabriel não possui amigos ou mulheres, passa diversas noites de
repouso a vaguear pelos arredores da vila dos servos... Sei por que inúmeras vezes
segui-o atentamente, e estou ciente de que nunca fui visto por ele. Certa vez chegou
perto do grande rio. Forte do jeito que é, poderia tê-lo seguido sem problemas! Sempre
lhe observando e temendo-lhe uma fuga, sei que lá voltou diversas vezes. Se desejasse
fugir o teria feito!
-Que achas Luís, que seria capaz de fazer?
O capataz sentiu-se temeroso de revelar-lhe suas suspeitas, mas o fez:
-Senhor Lorde, são meras suspeitas de um modesto capataz, não sei que males fez no
seu castelo, mas diria que os seus olhos planejam vingança e para isto se prepara
fisicamente!
As palavras de Luís eram fortes e Lorde Orlando silenciou para analisá-las, observando
ao longe o servo Gabriel esforçando-se na lida.
Após muito examinar e refletir, o Lorde encaminhou-se para a moradia.
Job percebeu-o entrar e fazendo-lhe breve reverência, disse-lhe:
-Senhor Lorde, peço-lhe permissão para ver minha esposa e levar-lhe a refeição, gostaria
imensamente de levar nossa filha Sara para vê-la também, ela insiste angustiada em vêla.
O Lorde observou-o atentamente, nada possuía do corpo atlético da nobreza, era forte e
robusto, mas possuía traços de mero camponês. Faltavam-lhe os traços nobres de uma
raça superior, longe estava de lhe ser o genro desejado.
-Traga-me a menina, desejo conhecê-la.
Job prontamente, retornando breve com a menina sorridente.
Lorde Orlando olhou-a carinhosamente, a pele era rosadamente clara e o semblante
delicado, em traços finos, destacava a nobreza de sua família. Parecia-se muito com sua
mãe e pouco tinha da rudeza do seu pai. A estatura lhe era boa para a idade, em porte
elegante e andar sutil. Olhava-o intrigada e balbuciou:
-Senhor Lorde, meu nome é Sara.
O Lorde, perplexo com sua iniciativa, que mostrava que ela era espontânea e inteligente,
respondeu-lhe ao cumprimento.
-Sara, meu nome é Orlando e sou seu avô, chegue até aqui e me dê um abraço.
A menina olhou Job meio encabulada, e Job fez-lhe um gesto para que se aproximasse
do Lorde. A menina aproximou-se do nobre, a idade já lhe era aparente nos cabelos e na
barba que já se esbranquiçavam. A fisionomia era séria e triste. Ele abraçou-a com força,
sentindo-se saudoso da família que perdera. Lágrimas sutis vieram-lhe aos olhos e tentou
disfarçá-las, dizendo rapidamente:
-Vai ver tua mãe, deves estar com saudades.
A menina sorriu-lhe agradecendo. Job também agradeceu-lhe e ambos afastaram-se,
subindo a escadaria.
Job bateu na pesada porta de madeira rústica, pedindo licença para entrar. Uma serva a
abriu e Job entrou com Sara naquele aposento que tantas vezes arrumara com esmero e
dedicação. Caminhou ao leito preocupado e radiante:
-Minha querida, como estás?
Job beijou Linia com imenso carinho e ternura. O amor que ele sentia aflorava nas faces
morenas que se rosavam. Era aparente e inegável o sentimento que se expandia em
cada gesto ou expressão.
Linia olhou-o friamente e depois olhou a filha que se encantava com os adornos do
aposento.
-Vem até aqui filhinha.
Sara se aproximou saudosa da mãe, dando-lhe um beijo meigo. Job insistiu mostrando
demasiada preocupação:
-Estás bem, querida Linia?
Linia olhou o imenso lustre de pingentes cristalinos, dizendo-lhe:
-Perdi nosso filho, Job
A voz lhe era seca e sem emotividade. Job acariciou-lhe os cabelos, aproximando-se:
-Deus assim quis minha querida, somos muito jovens, temos uma vida pela frente, sinto
imensa vontade de estar próximo a ti. Como será nossa vida agora?
Linia fitou-o silenciosa e depois olhou a filha que novamente distraia-se com as finas
rendas das cobertas.
-Lorde Orlando é meu pai!
A exclamação era-lhe de entusiasmo, e Linia prosseguiu:
Não compreendo muitas coisas, mas disse-me ele que não tem dúvidas que sou sua filha
e deseja que eu me comporte como uma nobre.
Job olhou-a apreensivo, dizendo:
-Disse-te o senhor Lorde como ficará a nossa vida? És minha esposa. Sara sente tua
falta.
Linia olhou-o indiferente:
-Sentia-me mal, nada falamos sobre isto.
Job novamente acariciou-a dando-lhe terno beijo em suas mãos:
-Diz-lhe querida, que sentes nossa falta, desejo ficar próximo a ti. Falarei com o médico
Ricardo também, sinto dúvidas de como proceder com esta nova situação.
Linia concordou meneando a cabeça e mostrando imenso cansaço. Job prontamente
percebendo que precisava repousar antecipou-se em imensa compreensão e respeito que
lhe tinha.
-Linia minha querida, agora irei para a lida, mais tarde virei ver-te. A serva te dará a
refeição que fiz com amor.
Job despediu-se novamente, beijando-lhe carinhosamente a face. Sara também se
aproximou abraçando-lhe fortemente:
-Posso ficar contigo mãezinha?
Linia olhou-a dizendo-lhe:
-Minha filha preciso repousar, ainda estou doente.
Sara olhou-a tristonha despedindo-se.
Quando os dois se retiraram do aposento, novamente Linia pôs-se a admirar a decoração,
enquanto a serva lhe auxiliava a alimentar-se.
Quando Job chegou ao salão principal, percebeu que Lorde não mais estava ali. Pediu a
Sara que fosse para a copa e procurou o médico Ricardo nos seus aposentos. Pedindolhe permissão para entrar, Job encaminhou-se ao seu interior:
-Perdoai-me senhor Ricardo, mas preciso de seus conselhos, estou imensamente
angustiado.
O médico olhou-o compreensivamente, dizendo-lhe para se sentar:
-O que se passa contigo, amigo Job?
Job sentou-se, olhando-o apreensivo.
-Não compreendo, senhor, como proceder em situação como esta? Pela manhã coubeme a tarefa de enterrar meu pequeno filho em imenso sofrimento. Agora, tenho que pedir
permissão ao Lorde para ver a minha esposa... O que faço? Tudo parece ter mudado em
nossas vidas!
O médico olhou-o piedosamente e agindo como um pai disse-lhe:
-Job, terás que te acalmar, a situação é nova para todos e ainda há inúmeras
providências a concluir por parte do Lorde. Não temas. Pela tarde falarei com ele, mas
deve acalmar-te e ir para a lida. Deverás pensar que Linia está em repouso e não seria
apropriado estar ao seu lado constantemente.
Job, sentindo-se mais tranqüilo disse-lhe:
-O senhor falará com o Lorde a respeito de minha esposa e de minha filha?
O médico Ricardo afirmou-lhe que sim, e Job saiu tranqüilo. Ricardo parou para refletir em
toda aquela situação, e posteriormente resolveu ir ver o estado de saúde de Linia.
O sol ainda brilhava no horizonte do majestoso mar de Adredanha quando Gabriel
retornou pensativo á vila dos servos. Após banhar-se e pegar a quente refeição noturna,
sentou-se próximo á sua casinha para alimentar-se. O capataz Luís aproximou-se,
dizendo-lhe rudemente.
-O Senhor Lorde deseja ver-te.
Gabriel sentiu um frio arrepio de receio vasculhar-lhe cada canto de seu forte corpo. Uma
intuição em seu interior lhe dizia que teria problemas. O capataz continuou:
-Largai tudo e me acompanhe, deseja ver-te agora na biblioteca.
Gabriel levantou-se para acompanhá-lo. Os pensamentos eram-lhe aflitos e temerosos,
mas ordenados. Concluíra naqueles últimos dias, que realmente Job havia alertado o
médico Ricardo sobre o terrível engano com o chá que matara Brigith. Ciente também
estava que o capataz Luís tinha conhecimento do mesmo e pudera observar pela manhã
a maneira minuciosa com que Lorde o analisava na lida. O braço ainda se encontrava
preso nas talas, mas pelo tempo que estava imobilizado sentia que já estava bom.
Angustiou-se, ciente de que Lorde o julgaria e o condenaria pela morte de sua filha.
Sentia-se um animal acuado na mira de vários caçadores. O céu ainda alaranjado o fez
lembrar-se de Brigith e do amor que ainda lhe era intenso e saudoso no seu peito. Se ela
estivesse ali, com certeza o defenderia do julgamento errado de seu pai, assim como
provaria ao Lorde Orlando que o culpado pela morte de Brigith era Job e não ele e lhe
explicaria que o sofrimento lhe veio duplamente, com a morte de sua amada e de seu
filho. A brisa fresca soprou-lhe a face dando-lhe ingênua esperança... Angustiava-se
demasiadamente sem fundamento. Com certeza Lorde o chamava simplesmente para
anunciar o seu retorno ao castelo. Sentiu-se momentaneamente entusiasmado. O capataz
Luís interrompeu-lhe os pensamentos fazendo-o entrar na moradia.
Pela primeira vez Gabriel entrava na moradia de Adredanha. Seus olhos rapidamente
vasculharam o ambiente, os salões, a escadaria, a entrada para a copa e cozinha. Avistou
o servo Job cuidando com esmero do jardim central e percebeu que este prontamente o
viu, mostrou aparente perplexidade. Atravessando uma enorme sala de estar
encontraram-se com o médico Ricardo, que também olhou a presença de Gabriel com
surpresa aparente. Gabriel concluíra que ambos não tinham conhecimento de que Lorde
o chamara. O capataz bateu na porta da biblioteca e o Lorde ordenou que entrassem:
-Luís, deixai Gabriel aqui e saia.
A voz de Lorde Orlando era grossa e fria. Sério lhe era também o semblante e o olhar era
fixamente hostil.
Luís saiu da biblioteca fechando a porta e manteve-se em guarda nesta. O médico
Ricardo observou á distância aquele servo com a mão propositadamente posta sobre o
imenso facão na cintura. Rapidamente aproximou-se de Job, indagando-lhe em tom baixo
e preocupado:
-Porque o Lorde mandou chamar Gabriel, Job?
Job olhou-o também aflito.
-Não sei, senhor Ricardo, também estou surpreso e preocupado.
O médico, sem mais nada dizer, afastou-se inquieto, mas ali também permaneceu para
poder verificar os acontecimentos.
Lorde Orlando estava frente a frente com Gabriel. Olhou-o demoradamente, o que o
deixou constrangido. Ordenou-lhe que se sentasse e Gabriel,temerosamente obedeceu.
Estavam ambos sentados. Gabriel mantinha-se de cabeça baixa enquanto Lorde
estrangulava em seu interior inúmeros sentimentos antagônicos. Falou ferozmente:
-Assassino!
Gabriel permaneceu imóvel. O grito de Lorde Orlando parecia o haver esfaqueado. Era
seu julgamento, pensou.
-Assassino frio e cruel! Matastes meus filhos! Matastes meus amigos! Matastes minha
esposa! Desgraçastes a minha vida acabando com a minha família!
O Lorde não conseguia conter-se na fúria tanto tempo represada dentro de si, mas
mantinha-se sentado olhando fixamente para Gabriel. Este se sentia confuso com tantas
acusações. Num impulso balbuciou:
-Senhor Lorde, o que diz?
As palavras, expressas em profunda ingenuidade e inocência por Gabriel, acentuaram a
ira do nobre, que esmurrou a mesa que os separava com extrema violência.
-És cínico e cruel, és vil e medíocre! Ainda que sejas nobre, és a mais desprezível
criatura!
As palavras do Lorde afloravam em emoções,sem qualquer controle. Gabriel não
compreendia, não era um nobre e não matara como falara, mas achou mais prudente ficar
quieto e ouvi-lo em sua ira.
- Minha filhinha, minha linda filhinha, que fizestes com ela? Disseram que a amavas.
Como tiras a vida, a felicidade, a família de quem amas? E meu filho, o meu primogênito,
destruiu-lhe a vida por duas vezes? Acabastes com o lar de meus amigos, matando-lhe o
único herdeiro? E me dizes que nada sabes? Ingênuo demais fostes, Gabriel, em achar
que tais crimes não teriam condenação! Não te percebias que eras observado? Porque
desgraçastes tantos? Porque destruístes tantas vidas?
A fúria parecia se amenizar nas palavras que eram expelidas em raiva e incompreensão
por parte do Lorde. Gabriel sentia-se trêmulo, mas tentava manter-se imóvel. Sentia que
era seu fim, o Lorde estava ciente que tudo que fizera fora por amor, mas nunca
compreenderia. Com um golpe mortal e em impensado impulso de ódio lhe tiraria a vida.
Desejava poder lhe explicar, mas como fazê-lo, se o Lorde não parava de lhe fazer
acusações em maioria irreais...
-Não tens qualquer valor, Gabriel. Deveria esquartejar-te em mil pedaços, fazendo-te
sentir a dor que sinto na perda de tantos entes que me eram queridos. Deveria fazer-te
agonizar, tal qual fizestes com Henri II, privar-te de movimentos e asfixiar-te, tal qual
fizestes com meu filho Anderson, envenenar-te como fizestes com minha doce Brigith,
condenar-te á agonia e sofrimento tal qual, fizestes com minha esposa Joane... Deveria
retribuir todo mal que causastes. Deves estar te perguntando, porque não o fiz antes.
Infelizmente tens o sangue de minha família, não posso matar fria e covardemente o
irmão de minha esposa. Como te sentes, Gabriel, ao saber que eras o tio dos meus filhos,
aos quais tirastes a vida? Como te sentes em saber que matastes a irmã, que te protegia
sempre á distância e ocultava teus inúmeros crimes, perdoando-te?
Gabriel estava perplexo, sentiu-se invadido de repentina emoção e lágrimas se
dispersavam tremulamente roliças em suas faces involuntariamente.
- Não finjas emoção Gabriel, isto me repugna! Pessoas medíocres tal qual tu não sentem
dor! Não sofrem! Mas vivem para causar dor e provocar sofrimento.
Após o imenso desabafo repleto de emoção, Lorde Orlando sentia-se exausto, baixou a
cabeça e exclamou :
-O que faço contigo Gabriel?
Gabriel, contendo-se na emoção que também sentia, encorajou-se, dizendo-lhe
humildemente:
-Senhor Lorde, eu a amo ainda. Eu amo sua filha Brigith. Sofro a angústia de não tê-la ao
meu lado, sinto imensa infelicidade pelo meu filho que nunca vou conhecer. Foi uma
seqüência de erros e enganos... Não desejava matar Henri II, desejava feri-lo para que
não houvesse noivado e eu tivesse tempo a conversar com Brigith sobre nosso amor. Não
desejava ferir seu filho Anderson, precisava retardar vossa viagem por que precisava falar
com ela sobre nosso futuro. Não desejava matar seu filho, o chá que lhe mandei somente
iria fazê-lo repousar, mas em Brigith o chá foi mortal porque estava esperando um filho,
não era um chá letal como pensam todos... Não intencionava angustiar sua esposa e,
ainda que não compreenda direito, minha irmã... Digo-lhe, senhor lord, que o destino
tramou infamemente sobre mim, fazendo-me a mais infeliz das criaturas, por tantas
conseqüências penosas. Creia senhor, sou pessoa boa e o único erro que cometi foi amar
extremamente Brigith.
Lorde Orlando interrompeu-o indignado, dando violento berro autoritário:
- Luís venha aqui agora!
O capataz rapidamente entrou.
-Levai Gabriel para a masmorra perto do lago!
Gabriel olhou-o, suplicante .
-Senhor eu nada fiz, o destino tramou contra todos nós!
Lorde Orlando enfureceu-se, esbravejando:
-Levai-o Luís! Levai-o daqui antes que eu mesmo não me contenha e o mate!
O capataz Luís arrastou Gabriel para fora da moradia, diante dos olhares de Job e
Ricardo. Gabriel gritou-lhes:
-Vocês julgaram errado... Vocês concluíram errado... Eu não sou o culpado, não sou... Eu
sou inocente... Eu só a amava!
Luís deu-lhe uma coronhada para que se calasse e o levou rumo a masmorra.
Na agora silenciosa moradia de Adredanha, os gritos de Gabriel ainda pareciam ecoar.
Já anoitecera. Gabrie,l ainda transtornado, recordou-se que avistara a masmorra certa
vez em seus passeios noturnos. Era um conjunto arquitetônico sem grande grandiosidade
ou imponência. Seis ou sete janelas gradeadas delineavam-se num piso superior.
Luís caminhava sério, com o imenso facão fincando-lhe as costas. Gabriel olhou seu
braço imóvel nas talas, a noite escura o auxiliaria a fugir e na densa folhagem próxima ao
rio facilmente se ocultaria. Atravessaram a vila dos servos sob os olhares curiosos. Luís
prontamente chamou dois auxiliares para o acompanharem a levar aquele servo até á
masmorra. Prontamente eles atenderam a ordem, portando também seus facões.
Gabriel não compreendia como aquele lorde, envolvido em tanta emoção e fúria, fora tão
ingênuo em pedir a um mero capataz para prendê-lo. Porque não ordenara a seus
guerreiros? O capataz Luís era astuto e perspicaz e precavera-se em pedir auxilio a dois
outros servos, mas estes não seriam suficientes a detê-lo.
Nada mais tinha a temer. Quando se aproximavam de estreita passagem próxima ao rio,
Gabriel, que caminhava na frente, pôs-se a correr velozmente entrando na densa
vegetação, sendo perseguido pelos servos que lhe faziam a guarda. Os pés lhe eram
velozes na força que adquirira e, ainda que estivesse descalço, os obstáculos eram
tranqüilamente transpostos pelos pés duros e calejados pela árdua lida. Luís o perseguia
bem próximo, ordenando-lhe que parasse e que não teria para onde fugir. Mas Gabriel
não desejava ouvi-lo, em fuga desesperada.
Ciente estava que se entrasse naquela masmorra, de lá nunca mais sairia. O braço ainda
imobilizado nas talas lhe dificultava o equilíbrio, mas persistiu em desesperada fuga.
Bem em meio á mata densa, Gabriel um pouco adiante do capataz e dos outros, ocultouse em grandes rochedos e contendo a respiração, extremamente ofegante, aguardou a
aproximação de Luís. Assim que este alcançou a posição onde estava, Gabriel pulou em
seu dorso. A luta foi violenta e rápida. De posse agora do facão, Gabriel apunhalou-o
ferozmente fazendo corte profundo em sua nuca. Luís ficou imóvel perdendo os sentidos.
Gabriel novamente continuou a fuga porque os outros dois servos se aproximavam. Um
deles foi auxiliar o capataz, levando-o imediatamente para a moradia, enquanto o outro
continuou perseguindo Gabriel, que corria desesperado.
Gabriel precisava pensar rápido, sentia que se perdera e não tinha mais certeza de onde
estava o leito do rio. Poderia estar correndo em círculos, teria que parar o servo que ainda
o seguia para depois fugir tranqüilamente. Quanto mais entravam na mata, mais escuro
ficava. Somente o barulho dos pés na folhagem identificaria sua posição. Com imensa
dificuldade, mas com a enorme força de seu braço esquerdo, conseguiu subir numa
frondosa arvore.
Tentou conter a respiração ofegante e descontrolada, para não ser localizado pelo servo
que ainda o perseguia. Este se aproximou de onde estava, tentando rastreá-lo na
folhagem quebrada, uma vez que somente havia agora o barulho silvestre.
Gabriel precisaria detê-lo, pois logo este perceberia onde estava. Esperou que se
afastasse um pouco e desceu da arvore vagarosamente, seguindo-o passo a passo. Logo
se aproximou, golpeando-o no dorso com o facão de Luís. O servo caiu ao solo,
contorcendo-se de dor. Gabriel firmou um dos facões na cintura com um pequeno cipó e
ficou com o outro em sua mão esquerda.
Precisava continuar a fuga, sabia que breve lorde Orlando mandaria os guerreiros á sua
procura. Precisava saber onde estava o rio, pois somente assim saberia a direção da
fuga, subindo suas margens.
Ficou imóvel aguçando a audição e não muito distante escutou barulho de água. Correu
então nesta direção e logo o localizou.
Sabia que o rio descia até o mar e que deveria subir em sentido oposto.
Decidiu tirar as talas finalmente de seu braço e ainda que lhe fosse difícil ao inicio, logo
conseguiria fazer movimentos com a mão, não usaria muita força.
Gabriel começou a correr subindo o rio e, ofegante, decidiu parar e tomar um pouco de
água. Repentinamente compreendeu que deixava um rastro na margem, com o seu
cheiro e o seu pisar.
Prosseguiu em caminhada apressada margeando o rio e subindo-lhe o leito com os pés
dentro da água.
Estava exausto, a caminhada já havia sido longa, não sabia onde aquele rio iria dar, mas
decidiu continuar a fuga. Somente pararia para descansar pela manhã.
Na moradia, Lorde Orlando se preparava para dar boa noite a sua nova filha, Linia,
quando o servo deu-lhe a notícia da fuga de Gabriel e falou-lhe do ferimento de Luís.
Lorde Orlando imediatamente acionou os seis guerreiros que o acompanhavam nas
viagens freqüentes, dizendo-lhes que lhe trouxessem o servo vivo ou morto.
Sentia-se profundamente ingênuo em ter permitido que ser tão vil fosse levado á
masmorra somente por Luís. Como ousara ser tão imprudente?
Sabia que Gabriel subiria o leito do rio, muitos servos já haviam feito isso em épocas
anteriores.
Os guerreiros com certeza o pegariam, não houve somente um que escapasse. Logo teria
notícias, e isto o deixava tranqüilo.
Pediu ao médico Ricardo que fosse auxiliar o capataz e posteriormente rumou ao
aposento de Linia para vê-la.
Ricardo aproximou-se de Luís que estava próximo a moradia, sangrando em demasia.
O médico pediu aos servos que o auxiliassem a levá-lo para o seu aposento e lá Ricardo
observou-lhe o ferimento.
O corte era fundo, mas Luís se reabilitaria. O capataz tentava desesperadamente falar
com Ricardo, pois já recobrara os sentidos, mas o médico conteve-o dizendo-lhe que se
continuasse se esforçando para falar, mais o ferimento sangraria.
Então o capataz serenou e Ricardo pôs-se a medicá-lo.
Percebeu quando Job se aproximou assustado dizendo-lhe temeroso:
-Ele vai nos matar! Vai nos matar a todos...
Ricardo interrompeu-o pedindo-lhe calma e dizendo-lhe que precisava cuidar de Luís e
que depois conversariam.
Job então se afastou, pensativo.
Gabriel percebeu que a noite clareava. Os pés estavam muito feridos e cortados pelas
pedras e areia da margem do rio pela qual caminhara, apressado, noite adentro.
Breve estaria amanhecendo. A paisagem não se modificara , muita vegetação e o rio na
mesma dimensão.
O suor lhe varria a face e freqüentemente a umedecia com água fria. O cansaço era
imenso, e parou para refletir. Sabia que os guerreiros com certeza também subiam a
margem do rio, precisava pensar. Gabriel decidiu prosseguir e, quando se aproximava o
calor com o sol que se erguia em majestade e a claridade que descobria tudo e todas as
coisas, ele avistou uma imensa cachoeira.
Alegrou-se com a possibilidade de ali conseguir um refugio para repouso.
Vasculhou as pedras de diversos ângulos e percebeu que próximo a uma imensa pedra
onde descia água em abundância, havia uma abertura.
Aproximou-se e percebeu então uma enorme gruta que se ocultava sob a água. O refugio
seria perfeito por alguns dias.
Gabriel recolheu alguma folhagem para fazer um leito, mas estava ciente que não poderia
fazer fogo, pois geraria fumaça. Procurou ainda algumas frutas e verduras silvestres que
pudesse comer e também as levou para a gruta em abundância. Lá, finalmente, deitou-se
e adormeceu.
Gabriel acordou com o barulho dos guerreiros que se aproximavam da cachoeira.
Podia observá-los sob a água, sem ser visto. Viu que eram seis e suas fisionomias
demonstravam imenso cansaço.Concluiu que o seguiram noite adentro sem interrupções.
Olhavam atentos em todas as direções e Gabriel percebeu que analisavam o rastro de
seus pés na folhagem quando procurava alimento.
Gabriel sentiu-se temeroso ouvindo um deles falar:
Aqui o servo parou para comer, deve ter prosseguido...
Mas Gabriel tranqüilizou-se quando outro continuou:
Alimentou-se e continuou subindo o rio, caminhando na água, logo o encontraremos.
Estamos próximos, as pegadas são bem frescas, e o abismo na frente não dá
continuidade. Ele não sabe disto, terá que retornar.
E os seis riram tentando espantar o cansaço.
Gabriel analisou-lhe as palavras. Havia um abismo depois da cachoeira, com certeza esta
se originava de um imenso lago... Viu que fizera bem em se ocultar ali, jamais o
encontrariam.
Ficou observando-os se distanciarem e quando o sol já ia alto, viu-os retornando
frustrados.
A fuga tinha sido um êxito!
Voltavam inconsoláveis á moradia de Adredanha.
Gabriel suspirou aliviado e novamente adormeceu.
Já anoitecera na moradia de Adredanha quando os guerreiros adentraram procurando
Lorde Orlando. Ele os recebeu na biblioteca, em intensa expectativa:
-Então, trouxeram-no? Onde está? Está vivo ou morto?
Os guerreiros olharam-se entre si, em conivência e cumplicidade. Adiantou-se um deles:
-Senhor Lorde Orlando, o encontramos próximo ao abismo, mas este em completa
covardia atirou-se para a morte nas profundezas dos rochedos...
Lorde Orlando irou-se com a notícia, pedindo-lhes detalhes. Os guerreiros disseram-lhe
então, pausadamente que haviam encontrado Gabriel próximo a uma árvore no final da
cachoeira. Quando os viu, ele correu na direção do abismo e percebendo que estava sem
saída, atirou-se em desespero para a morte.
Lorde Orlando baixou a cabeça, inconformado, e dispensou os guerreiros.
Sabia que não havia maneiras de resgatar um corpo no imenso abismo que finalizava em
pontudos rochedos, e então conformou-se com a morte de Gabriel, noticiando-a a todos.
Os guerreiros mentiram porque não poderiam admitir um fracasso ao Lorde. Ele perderia
a confiança em seus serviços. Estavam certos de que o servo fugitivo, estaria bem longe
do Lorde e de suas propriedades e que jamais ali voltaria para revelar a imensa mentira.
A rotina voltou ao normal na propriedade de Lorde Orlando.
Linia se restabeleceu por completo e agora caminhava imponente na sua propriedade. A
altivez lhe salientava os traços fisionômicos e as roupas imponentes a faziam superior a
seu marido e filha, com quem se encontrava raramente para diálogos. Lorde Orlando
percebeu-lhe a distância e chamou-a para conversar na biblioteca:
-Sentai-te, Linia minha filha
Linia sentou-se confortavelmente, olhando-o enternecida:
-Que desejas, senhor meu pai?
Andei observando-te. Faz quinze dias que perdestes teu filho e há quatro dias passeias
por toda a propriedade.
-Sim, senhor meu pai ,sinto-me melhor.
Lorde olhou-a pensativo dizendo-lhe:
-Não sentes falta de Job, teu marido, e de tua filha Sara? Nunca me pediste para deixálos perto de ti? Pouco te vejo procurá-los para conversar, são sempre eles que te
procuram.
Linia estremeceu, compreendendo o muito que Lorde a havia observado. Ele olhou-a
carinhosamente:
-Nada temas, minha filha, desejo ver-te bem.
Linia encheu-se de coragem e disse-lhe:
-Não gosto de meu marido, senhor meu pai!
-Não compreendo filha, casaste-te com ele, aos servos nada é imposto e Job é
extremamente afetuoso para contigo.
Linia forçou roliças lágrimas, dizendo-lhe em soluços o que passara em sua vida, com o
seu pai e depois com o seu marido. Lorde Orlando comoveu-se com a história da filha.
Desejava ter-lhe evitado tanto sofrimento. Segurou-lhe a mão:
-Não desejas mais Job como marido?
Linia olhou-o intrigada.
-Posso fazer isto, senhor meu pai?
-És minha filha e desejo ver-te feliz, aos nobres tudo é possível. Poderás terminar com
este casamento e com o tempo conseguirei um bom esposo de família nobre para ti.
Desejas?
Linia arregalou os olhos pensando num marido nobre e elegante. Sim, desejava isto e o
afirmou prontamente:
-Gostaria imensamente de começar vida nova longe de Adredanha, com o senhor meu
pai.
-E tua filha Sara? indagou-lhe Lorde, sempre atento as suas reações. Linia baixou a
cabeça:
-Como lhe contei também não desejava uma filha. Sou muito jovem, senhor. Job poderá
ficar com ela!
Lorde Orlando compreendia o sofrimento de Linia, mas a achou muito fria e indiferente,
qualidades essenciais a um bom nobre.
- Não sentirás a sua falta?
-Senhor Lorde, se o senhor é realmente meu pai e deseja me fazer feliz, me ofereça uma
vida nova! O senhor pediu-me sinceridade, estou sendo senhor.
O Lorde estava impressionado com tudo que sua filha lhe falava e sentia-se orgulhoso ao
perceber que sua personalidade era forte e determinada. Pediu-lhe então que o deixasse
só, precisaria refletir em tudo.
Na bela manhã seguinte, ele despertou convicto a realizar o desejo de sua filha Linia.
Partiriam em três dias para a propriedade do castelo, e Linia começaria uma vida nova ao
seu lado. Inúmeras providências, no entanto, ainda precisavam ser tomadas. O
conhecimento da morte de Gabriel o aliviava e acreditava que Deus havia feito a justiça.
Procurou o médico Ricardo , após alimentar-se, para ter notícias do capataz Luís.
Encontrou-o no aposento cuidando dos ferimentos de seu servo, e foi informado que em
alguns dias de repouso o capataz estaria bem. No entantoum dos servos ferido havia
falecido de madrugada, não resistindo à intensa hemorragia.
Feliz pela melhora do capataz que lhe era extremamente útil, e ignorando a perda do
outro, saiu a procurar o servo Job. Encontrou-o na lida e ordenou-lhe imediatamente que
o acompanhasse ao aposento de Linia.
Job surpreendeu-se com a ordem, porém acompanhou-o humildemente, com a imensa
esperança de que sua rotina matrimonial voltasse à normalidade. Sentia enorme saudade
da companhia de sua querida Linia e da convivência feliz dela com sua filha.
Ambos entraram no aposento e ela se assustou, percebendo que seu pai estava em
companhia de seu marido. Linia estava vestida elegantemente, num vestido de seda azul
que fora feito especialmente para ela. Nos longos cabelos cacheados, uma linda fita
realçava-lhe o encanto e a beleza. Sorriu forçosamente, cumprimentando-os, e o Lorde
pediu que ela se sentasse, ordenando a Job que também o fizesse.
No aposento havia pequenos divãs que se encontravam em prazerosa salinha de estar.
Dali se visualizava a imensa janela avarandada, de onde se via a copa de longas
palmeiras sacudindo-se com a brisa que provinha do oceano.
Lorde Orlando olhou-os pensativo e depois falou a Job:
-Meu rapaz, trouxe-te aqui para que possamos definir a situação de vosso matrimônio.
Job alegrou-se intimamente, não ocultando a satisfação que sentia em seu semblante. O
Lorde prosseguiu:
-Disse-me minha filha Linia que deseja acompanhar-me em viagem definitiva para o
castelo.
Job sentiu-se perplexo. Como sua querida esposa Linia decidira tal coisa sem falar
consigo? Sempre afirmara gostar de Adredanha. Olhou-a suplicante, e ela baixou o
semblante, fazendo-se constrangida. O Lorde pigarreou e continuou com tom sério e
agudo.
-Disse-me ela ainda que deseja ir só e esquecer definitivamente sua vida de casada
contigo, Job.
Job levantou-se impulsivamente. Os seus olhos não mais transpareciam alegria e
serenidade. Faiscavam incompreensão e muito sofrimento e dor. Olhou para Linia,
atônito, com suas infinitas indagações de amor, carinho e extrema afeição. Em atitude
ainda impulsiva, ajoelhou-se a seus pés, dizendo-lhe:
-Não creio no que ouço, querida, o senhor Lorde não deve ter compreendido o que
realmente desejas. És muito importante para mim, amo-te imensamente, como poderei
viver sem ti? Como nossa filha também viverá?
Lorde Orlando interrompeu-o grosseiramente, ordenando-lhe que se sentasse e tentasse
se controlar. Job voltou a sentar-se, obedecendo a ordem. O semblante de Linia o
assustara, apresentando imensa indiferença e frieza. A situação era imensamente
constrangedora. O Lorde olhou carinhosamente a filha, dizendo-lhe ternamente:
-Querida, é importante que expresses teu desejo e a tua vontade a Job, para que ele
compreenda.
Linia olhou o Lorde contrariada com a situação que lhe impunha . Falou firme:
-Desejo partir com o senhor meu pai. Desejo esquecer-te e esquecer nossa filha. Não
lhes tenho sentimento maior de afeto. Desejo começar vida nova!
Novamente Job não se conteve e levantou-se em sua direção colocando-se aos seus pés
humildemente e já em prantos, rogou-lhe em soluços:
-Não compreendo querida... O que te fiz? O que te faltou? Porque desejas tanto nos
deixar? Porque dizes não nos teres afeto?
Desta vez o Lorde apenas o observou sem interromper. Linia levantou-se, se sentindo
incomodada com o marido aos prantos e suplicante aos seus pés. Caminhou até a
imensa janela e falou-lhe de sua vida. Falou-lhe ainda do sentimento que não lhe tinha e
da imposição num relacionamento no qual era infeliz. Disse-lhe que não desejava ter uma
filha que lhe tirou a liberdade tão cedo em sua vida. Job permanecia ajoelhado. Perplexo,
mantinha-se imóvel. Não conseguia compreender ou aceitar tudo o que Linia narrava em
tom de mágoa e revolta. Sempre lhe fora um bom marido, o companheiro que a
compreendia e respeitava, afetuoso e carinhoso. Nunca a obrigara a nada e nunca lhe
havia imposto o que não desejasse. Linia jamais havia mostrado insatisfação ou
infelicidade com a união ou a convivência, pelo contrário, parecia feliz e realizada.
Desconhecia completamente aquela Linia que ali estava, ferindo-o, com palavras tão frias
e cruéis , tão injustificáveis na vida que lhe ofertara sempre com muito amor. Linia parara
de falar e o silêncio somente era interrompido pelo soluçar sofrido e angustiado de Job. O
amor que sentia por Linia estrangulava-lhe o peito, sentindo-se asfixiar. Lorde Orlando
interrompeu o silêncio:
-Como nobre que sou e em meus títulos de nobreza, dissolvo esta união e declaro que
Linia está livre do compromisso assumido com Job. Partiremos em três dias para o
castelo e minha querida filha começará uma vida nova. Futuramente, casar-se-á com um
nobre. Ordeno-te, servo Job, que a esqueças e, quando partirmos, dirás a Sara que a sua
mãe morreu. Se te comportares obedientemente, de acordo com a vontade expressa de
minha filha, estarás livre para percorrer outros reinos se assim o desejares, No entanto se
contrariares minhas ordens, serás julgado e condenado. Compreendestes tudo servo?
Job levantou-se com imensa dificuldade. Estava em pleno estado de choque. As pernas
estavam-lhe trêmulas e o semblante apático. Falou mecanicamente:
-Peço permissão para me retirar, senhor Lorde Orlando.
O Lorde olhou-o, insistindo friamente:
-Compreendestes tudo, servo Job?
Job permanecendo cabisbaixo sussurrou dor:
-Sim, senhor Lorde, tudo compreendi.
Lorde Orlando autorizou a sua saída e Job caminhou até a porta. Antes de sair olhou para
Linia, que permanecia indiferente á sua extrema dor e imponente estava olhando o novo
horizonte que se descortinava para si, através daquela grande janela, que se abria
cedendo-lhe plena liberdade.
Job desceu a escadaria. Roliças lágrimas banhavam-lhe as faces morenas. Caminhou
cambaleante e sem rumo. A imensa dor em seu peito o asfixiava cada vez mais, mas Job
a ignorava em sua perplexidade com tudo que lhe fora dito por aquela a quem tanto
amava e dedicara-lhe a vida. Saiu da moradia e andou. Longa foi a caminhada em imenso
sofrimento até que visualizou o imenso mar de Adredanha. Não poderia suportar ver a
mulher a quem tanto confiara, respeitara e amara partindo para uma vida nova. Não
suportaria a imensa dor de não mais tê-la, não agüentaria ficar-lhe indiferente. Suas
palavras mantinham-se cruéis, frias e injustificáveis em sua mente. A dor não lhe era
somente cada vez maior no peito, mas doíam-lhe profundamente os sentimentos mais
sinceros e os valores cristãos que sempre exemplificara em sua vida. Silencioso olhou o
mar . As testemunhas somente lhe eram as lágrimas, Cruel e voraz era a incompreensão
que lhe asfixiava cada vez mais, destruindo-lhe a alegria e a força vital de seu coração.
Seu corpo, não suportando o terrível impacto de sentimentos tão dolorosos, caiu sem vida
sobre a areia fina .
Sara ficara órfã de pai, e agora era deserdada pela própria mãe, que partia para sua nova
vida, com Lorde Orlando. Era-lhe indiferente o futuro da sua filha ainda que soubesse que
deixava só aquela criança, após o falecimento do seu pai Job.
Ricardo acolheu Sara num forte abraço e a afagou carinhosamente, tentando atenuar-lhe
o imenso sentimento de perda, que deslizava sutil em lágrimas silenciosas sobre sua face
infantil. Sua mãe já sumira na distância da estrada poeirenta. Ricardo abaixou-se,
olhando-a ternamente, e disse-lhe:
Querida Sara, és apenas uma menina, mas sei que és esperta e tudo compreendes, por
isto nada te ocultarei, ainda que sofras sempre saberás a verdade.
Sara com seus oito anos de idade, escutava-lhe atentamente:
- Sabes que teu pai Job faleceu. No entanto, não sabes que o coração dele parou de
bater repentinamente, porque não suportou o imenso sofrimento que lhe causou Linia,
decidindo abandonar-vos. Compreendes o que te digo?
Sara, inexplicavelmente, mantinha-se serena. As lágrimas sutis e silenciosas não mais
desciam sobre suas faces. O médico pensou momentaneamente que a menina não o
ouvia, mas ela olhou-o com extrema vivacidade e indagou:
-O senhor vai cuidar de mim?
Ricardo abraçou-a novamente e Sara após lhe dar um meigo beijo pediu-lhe:
-Senhor, nunca mais chorarei pela mãe que não me quis. Desejo lhe pedir um favor.
O médico olhou-a compreensivo, admirando-lhe a serenidade e a aparente resignação a
uma situação que sabia lhe ser extremamente difícil, na perda de pais que lhe eram tão
queridos.
-O que desejas pedir-me Sara?
A menina pegou-lhe a mão para que se levantasse e pediu humildemente.
-Leva-me á praia. Meu pai pede que lá vá!
O médico olhou-a surpreso, sentindo que Sara não havia compreendido.
-Sara, teu pai não está na praia. Tem três dias que seu corpo foi sepultado.
Sara olhou-o fixamente, segura do que dizia.
-Meu pai estará me esperando na praia.
Ricardo, profundamente perplexo com o que aquela menina afirmava com tanta
convicção, atendeu-lhe o pedido, e ambos caminharam até á praia silenciosos. Lá
chegando, Sara afastou-se sorrindo. Parecia radiante como se dialogasse com alguém
que ele mesmo não via. Chamou-a insistentemente e após algum tempo ela atendeu-lhe
o chamado.
-Com quem brincas Sara?
Sara olhou-o surpresa.
-Senhor Ricardo, converso com meu pai!
As firmes palavras de Sara percorreram-lhe o corpo num arrepio frio.
-Sara, quando as pessoas morrem não mais podemos vê-las ou conversar com elas.
-Senhor Ricardo, eu não sou uma menina mentirosa. Digo-lhe que meu pai Job está aqui
e conversa comigo. Posso vê-lo e neste momento, está colocando a mão no seu ombro.
Pede que lhe diga que agora compreende porque Anderson sempre dizia que um dia
Brigith viria buscá-lo.
Ricardo novamente arrepiou-se, Não sabia como Sara podia falar-lhe sobre algo que há
muito tempo acontecera. Em sua lógica concluiu que Job lhe contara. Perspicaz e
desejando perceber até onde ia sua fantasia indagou:
-Podes perguntar uma coisa a teu pai, já que ele está aqui?
Sara olhou pensativa como se avistasse alguém ao seu lado e balbuciou respondendo-lhe
o que ainda não perguntara.
-Meu pai diz para tomares cuidado, porque realmente Gabriel não morreu. Está escondido
numa cachoeira próximo daqui. Meu pai diz que ficará por perto para ajudar-nos e que
posso falar com ele sempre que precisar.
O médico Ricardo não podia crer no que ouvia. Estava certo de que a menina não
conversava com seu pai, mas sem duvida teria um poder oculto de ler-lhe o pensamento
e em sua fantasia havia respondido sem qualquer lógica á pergunta que formulara
mentalmente sobre a morte do servo Gabriel. Resolveu novamente testar-lhe a
capacidade oculta e misteriosa.
-Posso perguntar mais uma coisa a teu pai?
Sara disse-lhe que sim, mas desta vez esperou-lhe a indagação.
-Pergunta-lhe como morreu a menina Brigith e o menino Anderson.
O médico estava plenamente ciente de que Sara não saberia responder-lhe. Pelo muito
que conhecia Job, sabia que este jamais lhe contaria crimes tão bárbaros. O silêncio se
fez por alguns instantes e somente então Sara olhou-o dizendo:
-Meu pai contou-me agora, que a menina Brigith foi morta por Gabriel, que lhe fez um chá
venenoso pensando que se destinava a seu irmão Anderson. E que inconformado com a
morte da mulher que amava e desejando vingança, asfixiou covardemente com um
travesseiro o jovem Anderson.
O médico sobressaltou-se. Ali acontecia algo que não conseguia compreender. Como
aquela menina podia adivinhar os seus pensamentos e visualizar o passado com tanta
facilidade? Mas Sara agia com imensa naturalidade e espontaneidade, e caminhava
agora na areia como se acompanhasse alguém. Ricardo tinha uma incrível e absurda
sensação de que realmente ela não estava só. Em sua religiosidade, seria uma heresia
ousar questionar os princípios da vida e da morte. Sentiu-se temeroso. "Seria Sara uma
bruxa com estranhos poderes?" Ouvira falar de algumas quando era jovem e estudava na
corte. E se fosse, como a protegeria do julgamento cruel por assim o ser? Teria que fazêla compreender e silenciar seus estranhos poderes. Ricardo olhou temeroso para o
imenso oceano, sentia-se demasiadamente confuso com tantos mistérios. Olhou o lindo
céu claro e orou fervorosamente. A menina aproximou-se sorridente interrompendo-o:
- Podemos ir embora, senhor Ricardo.
Sara parecia iluminada em imensa tranqüilidade e havia uma alegria aparente no brilho de
seus olhos. Perguntou receoso:
-Ele foi embora?
-Sim, senhor Ricardo, precisava ir.
-Disse-te algo mais?
-Sim senhor, quando precisarmos é só chamar e ele virá auxiliar-nos.
Ricardo apertou-lhe a mão, desejando protegê-la daquilo que não compreendia. Teria
muito a refletir em sua extrema sensatez. Retornou com Sara á moradia onde após
alimentá-la, levou-a a um aposento próximo ao seu, onde passaria a dormir.
Em seu aposento sentou-se em sua escrivaninha rústica e, pensativo, colocou-se a fazer
anotações em um pergaminho.
A noite invadia Adredanha em grandiosidade. A imensa lua surgia clara, iluminando a
escuridão. Infinitas estrelas coloriam o céu negro aumentando-lhe a beleza. A folhagem
sacudia-se rebelde ao vento nas frondosas arvores.
"É hora de voltar!" Gabriel murmurou para si mesmo. Estava oculto na cachoeira já há
muitos dias, precisava retornar. Se aproximaria cuidadosamente da moradia e somente
assim poderia observar o que estava ocorrendo. Olhou a noite tranqüila ao seu redor,
negro lhe era o coração na ânsia de vingança.
Linia avistou extasiada um imenso castelo. Estavam finalmente chegando. Sentia-se
exausta pela viagem, mas extremamente eufórica com sua nova vida de nobre.
Aproximaram-se das grandes muralhas e o Lorde veio auxiliá-la a sair de sua carruagem.
Linia deu-lhe a mão carinhosamente dizendo-lhe:
-Como tudo é lindo, senhor meu pai!
O Lorde sentiu-se feliz com o entusiasmo da filha, mas repentinamente sentiu-se
temeroso com a presença de seu filho Arthur, que olhava Linia atônito. Balbuciou:
-Senhor meu pai, esta jovem é surpreendentemente parecida com minha irmã Brigith!
Como pode ser isto?
O jovem olhava Linia incessantemente analisando-a. Sentia-se surpreso com a
semelhança e a sua presença aflorara a enorme saudade que sentia de Brigith.
Cumprimentando-o com forte abraço, seu pai pediu-lhe:
-Entremos meu filho Arthur, temos muito a conversar.
Lorde Orlando pegou a mão de Linia conduzindo-a a entrar no castelo, enquanto Arthur
acompanhava-os ainda curioso com aquela presença tão surpreendente. Os servos do
castelo também a olhavam, espantados. Lana, escutando o murmúrio, aproximou-se do
salão principal para ver o que ali acontecia. Avistando aquela jovem que entrava ao lado
de Lorde Orlando e de Arthur, sentiu-se mal e perdeu os sentidos. Lorde Orlando chamou
uma das servas e ordenou-lhe que acompanhasse sua filha Brigith até o seu aposento.
Esta o olhou perplexa, mas prontamente obedeceu-lhe.
Arthur não conseguiu compreender o que o seu pai ordenara á serva e sentindo-se
indignado, acompanhou-o até á biblioteca. Lorde Orlando, tranqüilamente e com extrema
satisfação, contou-lhe como encontrara a filha. Falou-lhe que após longo dialogo com ela,
haviam entrado num acordo, e que sua identidade passaria a ser a de sua filha Brigith.
Explicou a Arthur que somente os servos tinham conhecimento do falecimento de sua
irmã e que ninguém na corte ou nos arredores da propriedade sabia de sua repentina
morte. Breve poderia negociar um noivado que atrairia novas propriedades e riqueza.
Arthur sentia enorme repulsa na longa narração eufórica de seu pai. Quando ele terminou,
levantou-se e exclamou sua completa indignação:
-Senhor meu pai, isto é um completo absurdo!
Lorde Orlando, enfurecendo-se com a atitude intempestuosa do filho, afirmou decidido.
- A partir de hoje é minha filha e tua irmã Brigith que aqui está, queiras tu ou não!
O jovem não se intimidou mostrando-se arrogante.
-Estás completamente louco senhor meu pai. Minha irmã Brigith morreu! Os -servos
sabem disto!
-Não ousará nenhum deles contrariar-me! É minha filha Brigith! É a tua irmã Brigith! Não
poderás tu, também contrariar-me!
Arthur extremamente nervoso e indignado, mas completamente sem argumentos diante
da absoluta autoridade de seu pai, pediu-lhe licença para se retirar. O Lorde consentiu
prontamente, sentia que o filho compreenderia a sua decisão. Quando este já saia o velho
pai falou-lhe ainda:
-Gostarás dela Arthur. É inteligente e elegante. Tem porte e altivez. É digna e tem uma
personalidade impressionante.
O filho Arthur nada mais lhe disse, e saiu apressado.
O sol já ia alto quando Lorde Orlando reuniu os servos sob o comando do capataz Philip,
e comunicou-lhes em ordem expressa.
-Trouxe minha filha Brigith de volta a esta propriedade, que nenhum de vós ouse
questionar ou dialogar sobre isto. Philip terá ordens expressas de exterminar qualquer um
de vós que se atreva a contrariar esta minha ordem. Deverão tratar a senhorita Brigith
com cordialidade e respeito.
Os servos humildemente também silenciaram sua enorme perplexidade e indignação e,
sendo dispensados, seguiram para as suas tarefas. Lorde olhou Lana que ali também
estava e ordenou-lhe:
Sempre fostes a ama de minha filha Brigith, ordeno-te que cumpras com tuas tarefas.
Lana estremeceu com a ordem e com a loucura daquele seu senhor, mas não ousaria
jamais contestá-lo, nenhum dos servos o faria. Naquela propriedade tinham proteção,
alimento e vida enquanto fossem úteis e dóceis á nobreza. Encaminhou-se
obedientemente ao aposento de Brigith. Encontrou aquela jovem encostada no cortinado
de renda. Com certeza observara e ouvira o que Lorde havia imposto a seus servos. Lana
falou-lhe humildemente:
-Boa tarde senhorita, meu nome é Lana e sou sua ama, em que posso servir-lhe?
Linia olhou-a minuciosamente e com extrema superioridade falou rude.
-Deves tratar-me por Senhorita Brigith, não compreendestes meu pai?
Lana agora identificava a imensa diferença entre a jovem que estava diante de si e a sua
querida Brigith. Os traços eram-lhes idênticos, mas o caráter era completamente
divergente. O seu olhar era frio e cruel. Lana pediu perdão a Deus em pensamento e
balbuciou:
-Perdoai-me, senhorita Brigith, posso ajudá-la?
Linia olhou-a sentindo-se ainda insatisfeita com a ama.
-Desejo tomar um banho já, estou coberta de poeira.
Lana preparava-se para sair a providenciar a água quente dizendo-lhe:
-Com sua licença senhorita, providenciarei já!
Linia olhou-a enfurecida:
-Chamo-me Brigith!
Lana novamente olhou-a, servil e humilde.
-Perdoai-me, senhorita Brigith, concedei que me retire para lhe preparar o banho.
Linia consentiu em olhar frívolo e colocou-se a analisar o aposento e a riqueza dos
adornos. Vasculhou o armário frondoso e ali encontrou inúmeros vestidos e vestes em
tecidos finos e lindas sedas.
Estava eufórica com tantas belezas.
Arthur observara do imenso salão as ordens de seu pai, e sentia-se temeroso com a sua
loucura em desejar substituir a irmã tão querida que falecera.
Se houvesse trazido a bastarda e assumi-la como filha, estaria no seu inteiro direito de
pai, mas substituí-la na posição de outrem? Só poderia estar louco!
E quem seria esta, que aceitara tamanho absurdo, qual seria a identidade que tanto
desejava ocultar?
Arthur sabia que precisaria fazer algo, mas o que? Resolveu sair e cavalgar para
tranqüilizar-se um pouco.
Estava ciente que na ceia se encontrariam os três e teria que se comportar.
Linia observou quando Arthur afastou-se do castelo num cavalo branco subindo as
colinas. Observava ainda como aquela paisagem era diferente de Adredanha, imensa
colina adornando o horizonte de verde intenso que se encontrava com um céu
extremamente azul.
Um lindo rio passeava tranqüilo defronte ao castelo. Sentia-se bem e extremamente feliz.
A tarde para Linia passou breve no castelo de Lorde Orlando. Experimentou os inúmeros
vestidos de Brigith desfilando-os um a um e pedindo à paciente Lana para fazer um e
outro acerto.
Sentia-se extasiada com a sua nova vida de nobreza. Um requintado chá lhe fora servido
no aposento e sentia-se extremamente preparada para a ceia onde conheceria o irmão
Arthur.
Achou-o demasiadamente esnobe, mas incrivelmente bonito, forte e elegante. Estava
certa de que se entenderiam bem.
Não tardou muito a um serviçal vir chamá-la a pedido de Lorde Orlando.
Linia vagarosamente preparou-se com extremo requinte e astúcia. Lana a penteara com
esmero e os longos cabelos cacheados pareciam luzir de tanto brilho.
Um bonito vestido de Brigith em seda alva era realçado com enorme fita azulada.
Olhou-se no espelho maravilhada, lembrando-se contrariada das vestes humildes de
quando era uma serviçal e que eram bem inferiores ás vestes de sua ama.
Olhou-a com desprezo e saiu do aposento descendo a escadaria.
Encontrou o Lorde no imenso salão próximo á lareira, mas Arthur ainda não se encontrava
ali.
Vendo-a, o Lorde levantou-se, perdido em felicidade.
-Brigith, como estás linda minha filha!
Linia fez breve meneio de humildade reverenciando-o e o Lorde, constrangido com sua
atitude, disse:
-Não deves fazer isto Brigith, cumprimentai-me somente com um sorriso. Devo eu, como
teu pai, pegar-te a mão e encaminhar-te para que sentes.
Linia sentou-se numa confortável poltrona de fronte a grande harpa. Olhou-a com
admiração e Lorde percebendo-o explicou-lhe:
-Deveras aprender a tocá-la. No castelo temos alguns músicos que te ensinarão.
Linia sorriu agradecendo.
Arthur entrou no salão com muita seriedade e com o andar pesado sobre a nobre madeira
que forrava o piso, em tons divinos e esmeradamente encerados.
-Boa noite senhor meu pai, cumprimentou Arthur, encaminhando-se para sentar-se
próximo ao Lorde. Este indagou-lhe perplexo:
-Não cumprimentas tua irmã, Arthur?
Arthur em tom de arrogância olhou-a e depois olhou seu pai perguntando-lhe:
-Senhor meu pai, perdoai-me a indelicadeza, mas como poderei fazê-lo se nem mesmo
sei seu nome?
Lorde o olhou enfurecido, levantou-se e aproximando-se de Arthur advertiu-o:
-Não te atrevas rapaz a criar-me problemas, deixai de ser insolente e cumprimentai agora
tua irmã!
Arthur levantou-se e caminhou até Linia. Ironicamente cumprimentou-a:
-Boa noite senhorita, poderias dizer-me qual o teu nome?
Linia olhou-o corando. Lorde Orlando definitivamente se enfurecera:
-Arthur, ordeno-te que subas agora para os teu aposento e de lá não saias.
Arthur indignado desafiou-o:
Trocas-me por uma bastarda, senhor meu pai? Denegristes a memória de minha querida
irmã Brigith e de minha doce mãe Joane! Porque me expulsais de teu convívio?
Meramente porque indago como se chama?
Nervoso com a audácia do filho que o desafiava, o Lorde estava prestes a tomar uma
atitude mais drástica quando Arthur por si mesmo retirou-se apressado para o seu
aposento. Lorde Orlando desculpou-se carinhosamente:
-Lamento minha filha Brigith esta situação demasiadamente constrangedora. Me
entenderei com Arthur posteriormente. Vamos cear?
Linia sentia-se vitoriosa e feliz. Aparentava propositadamente ao Lorde doçura, humildade
e meiguice. Pegou na mão dele e acompanhou-o na ceia.
Na propriedade de Adredanha a rotina voltara à tranqüilidade. Luís, o capataz, se
restabelecera por completo , retornando à lida .
Ricardo chamou a pequena Sara que aprendia a ler e a escrever em seu aposento e
levou-a para cear consigo. Freqüentemente percebia-a ausente questionava-se se ela
estaria conversando com seu pai. O pensamento sempre lhe fazia sentir fortes arrepios
de incompreensão. Desde o acontecimento na praia nunca mais lhe indagara sobre isto,
ainda que enorme vontade tivesse de fazê-lo. Tão logo a mãe partira, Ricardo a tratara
como uma filha, cuidando de seu bem estar e de sua doutrinação. Era-lhe o amigo e o
protetor. Em pouquíssimo tempo havia se afeiçoado em demasia a pequena Sara, e
estava ciente de que faria qualquer coisa para protegê-la. Era-lhe a filha que nunca havia
tido. Após a ceia, Ricardo a acompanhou por breve passeio na noite, nos arredores da
moradia. Nesses passeios o médico ensinava-lhe as teorias das estrelas e dos planetas
de que era conhecedor, falava-lhe das transformações climáticas, nunca parava de lhe
ensinar.
De repente, Sara interrompeu-lhe dizendo baixo:
-Ele nos observa!
Ricardo olhou-a intrigado, indagando-lhe:
-Quem nos observa Sara?
Meu pai me diz que ele nos observa!
Ricardo sentia enorme vontade de indagá-la sobre este assunto tão incompreensível á
sua mente, mas naquele momento o assustava:
-Quem nos observa?
Sara cochichou baixinho para que somente ele ouvisse:
-Gabriel está aqui e nos observa!
O médico olhou rapidamente ao redor. Haviam se afastado um pouco da vila dos servos,
mas ainda podia avistar a nobre moradia de Adredanha. Ricardo abaixou-se e indagou-lhe
baixo:
-Onde está?
Sara fez breve silêncio e então balbuciou:
-Olha na direção do lago, perceberás que próximo á grande palmeira, a vegetação se
sacode ocasionalmente, assim disse meu pai Job.
Ricardo cada vez mais intrigado levantou-se o observou na direção indicada. Logo
localizou uma grande palmeira e sob esta ocasionalmente uma moita se sacudia
sutilmente. Pegou na mão de Sara dizendo-lhe:
-Vamos voltar querida, precisamos repousar.
Sara o acompanhou sem fazer-lhe perguntas, quando chegaram ao aposento de Ricardo,
este lhe disse:
-Entra um pouco para conversarmos Sara.
Sara entrou e sentou-se sem cerimônias na cama de seu tutor. O médico puxou uma
cadeira que lhe estava próxima e também se sentou.
Preciso compreender o que acontece contigo, conta-me tudo Sara.
Sara contou-lhe que ás vezes seu pai vinha falar com ela, e lhe dar conselhos em como
se comportar. Outras veze chamava sua atenção para o quanto o médico estava sendo
bom para ela, e para respeitá-lo e auxiliá-lo. Ricardo interrompeu-a:
-Job está aqui agora?
Sara afirmou imediatamente que sim, sorrindo-lhe com naturalidade.
-Pergunta a teu pai, o que Gabriel deseja?
Sara olhou a escrivaninha um pouco afastada e depois olhou o médico um pouco
temerosa:
- Ele disse, "Vingança"!
Ricardo olhou-a sobressaltado, mas tentou não transparecer os temores que sentia:
-Pergunta-lhe o que devo fazer?
Novamente Sara focou a escrivaninha e disse-lhe:
-Mandou a gente fugir, ele quer te matar.
Sara parecia não inquietar-se com o dialogo.
-Você está cansada Sara?
-Não, senhor Ricardo, o senhor gostaria de falar mais com meu pai?
Ricardo tinha inúmeras indagações a fazer, mas sentia-se constrangido com a sua
curiosidade. Sara então lhe disse:
-Meu pai diz que te é imensamente grato por tudo o que o senhor faz por mim, e deseja
nos proteger... Mas onde está só pode falar comigo e mais nada. Pede que o senhor
acredite! Diz que Gabriel vigia a moradia já tem muitos dias, está armado de arco e
flechas, pede que você alerte Luís.
Ricardo observava-a atencioso e sentia-se confuso. Como falaria a Luís que Gabriel
estava vivo e prestes a um ataque? Sara novamente interrompeu-lhe os pensamentos,
dizendo-lhe:
-Pede que o senhor, de manhã bem cedo vá com o capataz Luís, aquele local lá fora,
poderá mostrar-lhe evidências.
Ricardo concordou, ainda que perplexo com o que acontecia, e então pediu a Sara que
fosse dormir. Precisaria refletir e ansiava que o dia não tardasse a clarear. Ricardo
levantou-se cedo aguçado pela curiosidade e pelo receio na veracidade das palavras de
Sara.
Caminhou á copa a fim de procurar o capataz Luís e não tardou a encontrá-lo, pronto a
convocar os servos para a lida. Aproximou-se sereno:
-Bom dia Luís.
Luís olhou-o satisfeito. O médico Ricardo havia conquistado inúmeros méritos em salvarlhe a vida. A enorme cicatriz na nuca era-lhe o testemunho todas as manhãs.
-Como vai senhor, Ricardo?
Ricardo olhou-o apreensivo, sem saber como expor o que haveria a ser feito.
-Preciso de sua colaboração Luís.
Luís olhou-o prestativo, colocando-se á inteira disposição. Ricardo pediu que Luís o
acompanhasse. Caminharam na direção da grande palmeira, onde o médico havia visto a
vegetação sacudindo-se irregularmente. Lá chegando colocou-se a rastear sinais no solo.
-O que procurais, senhor Ricardo?, indagou-lhe Luís intrigado. Ricardo respondeu-lhe
distraidamente continuando a tarefa:
-Auxiliai-me a procurar o rastro.
Luís olhou-o confuso.
-Rastro de que senhor Ricardo, não compreendo. Explicai-me.
Ricardo levantou-se e balbuciou:
Confias em mim?
O capataz olhou-o fixamente afirmando-lhe:
-Sem qualquer duvida, senhor.
Ricardo permaneceu balbuciando em tom de seriedade:
-Não me indagues nada e crê no que te digo. Sei que Gabriel está vivo e os guerreiros
ocultaram isto de lorde Orlando para não perderem os méritos. Freqüentemente ele ronda
a moradia observando-nos e está armado de arco e flechas... Ontem esteve aqui e
percebi-lhe o vulto sob esta vegetação. Deves auxiliar-me a procurar vestígios do que te
afirmo.
Prontamente o capataz, atônito com tudo o que o médico lhe dissera, colocou-se também
a rastear os vestígios. Não tardaram a constatar pegadas que provavam que alguém ali
havia estado á noite. Ricardo novamente lhe fez um sinal para que o acompanhasse e
rumaram para a moradia. Lá os servos estavam prontos, aguardando para irem para a
lida. Luís os dispensou pedindo a alguns auxiliares que os acompanhassem, dizendo que
iria posteriormente. -Olhou Ricardo então e disse-lhe:
-Se tudo o que me dizes é verdade, e não tenho como contestá-lo, porque creio em sua
seriedade, porque Gabriel não fugiu para a aldeia mais próxima? Que deseja aqui?
O médico olhou-o pedindo que se sentasse na escadaria da moradia e contou-lhe tudo,
desde o ataque a Henri II até a morte de Job e a fuga de Linia, em busca de ambição.
Luís estava aparentemente perplexo com tantos acontecimentos terríveis provenientes de
uma única pessoa. Compreendia que o Lorde não ousara ir contra as leis morais,
matando um consangüíneo, ainda que este houvesse exterminado quase toda a sua
família. Mas não conseguia compreender porque o deixara livre durante tanto tempo.
Havia suspeitado, pelo semblante do Lorde, que Gabriel lhe criara inúmeros problemas e
por isto o disciplinava sem misericórdia na lida. Porém se soubesse de tudo isto antes,
com certeza não o teria deixado vivo. Ricardo continuou, interrompendo-lhe os
pensamentos:
-Não fugiu porque anseia vingança pela morte de sua amada. Creio que alimenta ódio
contra Philip, o capataz do castelo que o expulsou da propriedade, contra mim e Job, que
alertamos o Lorde sobre os acontecimentos, contra você Luís, porque o castigastes e o
fizestes sofrer, contra Lorde que o privou da nobreza tratando-o como um mero servo.
Ricardo fez uma pausa e estremeceu:
...se puder nos matará a todos!
O silêncio se fez repentinamente e ambos colocaram-se a refletir em tudo o que haviam
conversado. Ricardo sentia certo temor em estar se precipitando sobre a conversa com
Sara, mas concluiu que seria melhor prevenir-se.
De repente Luís olhou-o dizendo-lhe serio:
-Tentou tirar-me a vida uma vez, não o fará novamente! Juntarei cem servos de minha
inteira confiança e vasculharei cada pedacinho desta propriedade... Se aqui estiver com
certeza digo-lhe que o encontrarei. Farei isso pela manhã.
Ricardo, surpreendentemente, sentiu-se seguro e protegido. O capataz então
desculpando-se, afastou-se dizendo-lhe que tinha inúmeras providências a tomar. O
médico também se despediu, agradecido pela confiança, e foi procurar Sara.
No castelo, Lorde Orlando despertara nervosa aquela manhã, após a conversa que tivera
com seu filho na noite anterior.
Haviam discutido e Arthur não concordara com as atitudes de seu pai. Pedira-lhe que o
autorizasse a viajar á corte. Lorde Orlando, não desejando incidentes maiores com ele,
havia permitido, em discussão aflorada. Mas agora se sentia nervoso e infeliz com a
viagem do filho que tanto o auxiliava na propriedade.
Ele já sentia a idade no corpo e o cansaço apresentava-se em sua fisionomia. Estava
certo de que precisaria providenciar um nobre rico para desposar a sua filha, agora
Brigith.
Colocou-se a refletir a qual de seus amigos poderia propor o matrimônio.
Repentinamente lembrou-se de um Lorde que possuía três filhos em idade de assumir
compromisso, pegou um pergaminho e escreveu-lhe o seu interesse em unir os seus
títulos aos deles. Chamou um mensageiro e selando a mensagem em lacre vermelho,
entregou-lhe dizendo-lhe o destino.
Arthur, quando o sol já ia alto na propriedade, despediu-se friamente de seu pai e montou
em seu cavalo. O acompanhariam na viagem quatro guerreiros.
Arthur estava decidido a ir para a propriedade de Adredanha e não para a corte como
dissera a seu pai.
Desejava ardentemente conhecer o passado da impostora que ousara assumir a
identidade de sua irmã Brigith e de descobrir-lhe algum segredo que pudesse impedir os
devaneios do velho Lorde.
Faria a viagem num trote apressado e com pequenas pausas. Em três ou quatro dias lá
estaria, pensou confiante, olhando firmemente o caminho pelo qual prosseguia.
Linia visualizava tudo da janela de seu aposento, sentia-se feliz com a partida de seu
irmão que desejava expô-la sempre ao ridículo. Teria tempo para conquistar, com excesso
de mimos, a predileção de seu pai. Lana entrou no aposento reverenciando-a em
humildade:
-Senhorita Brigith, o senhor Lorde deseja vê-la.
Linia sorriu satisfeita. Teria Lorde só para si.
Os dias passaram-se. Linia já entoava lindas melodias nas cordas delicadas da harpa e
seu pai sentia-se imensamente satisfeito com sua dedicação. Também tinha aulas de
equitação e dança. O Lorde todos os dias lhe ensinava etiqueta.
Já agia e se comportava elegantemente como uma nobre. O aprendizado lhe era
imensamente prazeroso.
O mensageiro entrou no salão, onde estavam repousando numa tarde muito quente,
trazendo uma mensagem ao Lorde. Ele prontamente dispensou-o e, após romper o lacre
do pergaminho, leu-o.
Levantou-se e falou eufórico a Linia, que o observava curiosa.
-Querida filha Brigith, devemos felicitar-nos!
-Qual o motivo de tanta alegria, senhor meu pai?
O conde aceitou o compromisso de matrimônio com um de seus filhos. Breve haverá a
festa de noivado, oficializando o seu enlace com Lorde Pierre.
Linia mostrou-se enormemente apreensiva e Lorde Orlando, percebendo, aproximou-se
sentando próximo a ela e tentou tranqüilizá-la.
-Nada temas querida Brigith, é uma das maiores fortunas da corte, e o noivado unirá
nossos títulos e conseqüentemente nosso poder será bem maior. Deves sentir-te feliz.
Linia, no entanto, mantinha-se silenciosa. Temia que aquele lorde em matrimônio
percebesse que fora enganado. Lorde Orlando pareceu lhe compreender a aflição:
-És inteligente demais, Brigith, poderás facilmente ludibriar quem desejes, saberás como
agir.
Linia compreendeu imediatamente no que o seu pai a instruía e sentiu-se mais calma.
-Felicito-me contigo senhor meu pai. Breve serei a esposa de Lorde Pierre!
Arthur chegou á propriedade de Adredanha quando já anoitecera. O médico Ricardo
surpreendeu-se ao vê-lo e aproximou-se prestativo:
-Senhor Arthur, fez uma boa viagem?
Arthur olhou-o expressando imenso cansaço. Entrou na moradia sem as cerimônias
habituais . Sentou-se prazerosamente numa poltrona macia e falou suspirando aliviado:
-Ricardo, pensei que viajaria somente quatro dias, mas a viagem se tornou imensamente
exaustiva em longos e intermináveis sete dias a galope. Esta propriedade é
demasiadamente longe de nosso castelo. Parece que aqui não venho há muito tempo,
mas não faz muito passei longa temporada aqui com o senhor meu pai.
Fez uma breve pausa lembrando-se do falecimento de sua mãe de seus irmãos quando
estava ali em Adredanha com seu pai, e melancólico prosseguiu.
-Tenho tantas lembranças boas que vivi nesta propriedade, quando ainda era um menino
e divertia-me com Anderson, meu irmão. Mas a maturidade faz-me observar detalhes que
antes não percebia.
Ricardo, que permanecia de pé, disse-lhe gentilmente:
-O senhor deve estar com muita fome, deseja que lhe seja servida a refeição agora?
-Não Ricardo, tomarei um bom banho que me renovará o animo. Depois me alimentarei.
O médico meneou a cabeça humildemente em entendimento, e o jovem pediu-lhe:
-Fique aqui e me aguarde Ricardo, faremos a ceia juntos, és meu convidado.
Arthur subiu apressado para o seu aposento para banhar-se. Ricardo encaminhou-se á
copa avisando sobre chegada do nobre e pedindo providências para a sua refeição.
Depois procurou o capataz Luís, encontrando-o nos fundos da moradia onde existia um
enorme pátio. Falou-lhe com extrema seriedade:
-Soubestes que o filho do Lorde chegou á propriedade?
-Sim senhor Ricardo, encontrei-me com seus guerreiros.
Ricardo olhou-o apresentando ainda maior seriedade dizendo-lhe apreensivo:
-Como foram as buscas hoje?
Luís mostrava-se aparentemente desapontado. Meneou a cabeça em desapontada
negativa.
-Estivemos novamente nas proximidades da cachoeira, mas não o encontramos.
Surpreendo-me que nestes seis dias de procura incessante, não tenhamos conseguido
visualizar qualquer vestígio do local onde se oculta, nenhuma fogueira, nenhum leito
improvisado...
Luís parou repentinamente e indagou-lhe:
-Como estão os servos?
Ricardo olhou-o entristecido:
-Recuperam-se dos ferimentos, porém estou certo de que perderemos dois bons
companheiros, tudo que podia fiz por eles, agora somente Deus poderá salva-los.
O capataz com o semblante melancólico, sentindo-se demasiadamente impotente,
sussurrou:
-Como pode um só homem causar tanta desgraça e tanta dor?
Dando um suspiro de revolta, olhou Ricardo falando-lhe.
-Precisamos informar ao filho do Lorde o que ocorre aqui.
Ricardo pediu ao capataz Luís que o deixasse informar-lhe, pois este o havia convidado
para a ceia, e seria excelente oportunidade de contar-lhe tudo o que ali acontecia. Luís
sentindo-se aliviado prontamente consentiu.
O médico aguardou pacientemente que Arthur descesse ao salão de refeições e, quando
este o fez, ambos se alimentaram silenciosamente. Finda a ceia, Arthur pediu-lhe que o
acompanhasse até á biblioteca, onde poderiam conversar com maior privacidade. O
banho parecia tê-lo rejuvenescido. O jovem altivo não mais apresentava o semblante
exausto. A beleza e a vivacidade realçavam-lhe os traços tão peculiares, que o
assemelhavam a sua mãe Joane.
Após sentarem-se comodamente Arthur falou-lhe:
-Confio amplamente em ti Ricardo e preciso de teu auxilio.
As palavras lhe eram humildes e dóceis e surgiam como uma súplica e não como as
costumeiras ordens superiormente rudes de seu pai. Arthur prosseguiu:
-Sinto que a idade afeta a razão do senhor meu pai. Praticamente expulsou-me do castelo
por causa de uma senhorita que diz ser sua filha e é incrivelmente parecida com a minha
doce irmã Brigith.
Suspirou imensamente entristecido e continuou falando modestamente.
-E o pior Ricardo, é que ele anulou completamente a identidade dela e a assumiu diante
de todos no castelo como Brigith. Advertiu os servos que nunca o contestassem se não
lhes seria a morte, vê na impostora a filha que todos sabemos que morreu. Sinto-me
exausto,mas vim procurar respostas para este enorme absurdo, e preciso delas hoje
ainda, se possível for.
Arthur deixou-se afundar na poltrona com uma expressão suplicante. Ricardo olhou-o com
seriedade e encorajou-se a dizer-lhe.
-Tenho inúmeros acontecimentos a narrar-te. Sei que és jovem demais e não possuis a
experiência tão necessária, a compreendê-los sensatamente com a frieza de quem já
muito viveu, mas sinto que preciso te informar o muito que desconheces, senhor Arthur,
ainda que muito te emociones com tudo.
O nobre ergueu-se da poltrona e caminhou decidido em sua direção.
-Contai-me, Ricardo, eu lhe peço.
Arthur não conseguiu conter a emoção. Lágrimas febris lhe desciam às faces, a medida
que o médico lhe contava pausadamente tudo o que ocorrera no castelo e tudo em
Adredanha. A cruel narrativa dos assassinatos de seus irmãos lhe era extremamente
dolorosa. Ricardo prosseguia sem pausas, temendo compadecer-se daquele jovem e
excluir-lhe a verdade, que ainda que o magoasse lhe era extremamente importante.
Quando terminou a longa narrativa, Arthur encontrava-se imobilizado por sentimentos de
muita dor.
-Infelizmente Senhor Arthur, ainda não acabei de contar tudo. Descobrimos que os
guerreiros de teu pai o ludibriaram em mentira inconseqüente. Gabriel está vivo! Luís, o
capataz desta propriedade, reuniu cem homens para fazer contínua busca em toda a
propriedade, mas nestes intermináveis dias, ainda que se dividam em grupos e rumem
por toda a extensão da densa vegetação, até os limites no abismo, não o encontraram.
Com certeza o esconderijo lhe é perfeitamente seguro e neste permanece oculto durante
o dia, no entanto quando anoitece aparece para nos atormentar.
Arthur, contendo-se na emoção, interrompeu-o:
-Como sabes que está vivo?
Feriu sete servos da propriedade, sempre o faz quando anoitece. As flechas provêm de
algum lugar da densa vegetação e os atingem quando estes estão em repouso nas
proximidades de seus lares... Gabriel tem nos provocado incessantemente com seus
ataques covardes e repentinos. Os servos estão amedrontados, ocultam-se nas pequenas
casinhas e só têm saído quando o dia clareia. Quando vi o senhor se aproximando da
moradia ao anoitecer, temi por sua segurança, mas creio que não o atacou porque deseja
saber o que veio fazer aqui. Com certeza observa-nos.
-Onde se abriga?, indagou-lhe atônito Arthur, aparentemente já refeito das emoções
dolorosas.
Somente lhe tenho uma resposta senhor, talvez em alguma gruta imperceptível aos olhos
dos servos que o rastreiam. Os rochedos nesta propriedade são inúmeros, próximos ao
abismo, como vasculhar cada buraco?
Arthur andava incessantemente de um lado para o outro na biblioteca. Aproximou-se da
grande janela dizendo:
-Observa-nos agora?
O médico prontamente respondeu-lhe:
-Com certeza senhor Arthur.
Arthur visualizou a noite escura e disse sarcasticamente em tom de autoridade:
-Fogo...muito fogo! Não existem plantações deste lado da propriedade, somente densa
vegetação até a grande cachoeira. E depois do lago e abismo, a vegetação está
extremamente seca pela falta de chuvas e o vento sopra favoravelmente na direção desta
colina... Queimaremos tudo! Não terá mais onde se ocultar para nos atacar.
O médico sentia-se surpreso com a extrema astúcia de Arthur.
-Venha comigo Ricardo, preciso falar imediatamente com o capataz Luís.
Ambos caminharam até os fundos do castelo, onde Luís aguardava que o médico o
procurasse após a conversa com o filho do Lorde. Arthur falou-lhe com a autoridade
necessária a um bom coordenador:
-Luís, providenciais imediatamente cinqüenta tochas e cinqüenta servos!
Ainda que não compreendesse as intenções do jovem nobre, prontamente o capataz lhe
saiu apressado a atender-lhe a ordem. A noite já ia bem alta quando as tochas foram
acesas e enorme clarão se fez na noite escura. Os servos, sob a orientação de Arthur se
dispersaram ao longo da vegetação que fazia fronteira com a vila dos servos e findava no
abismo após a grande cachoeira, e numa única ordem, o fogo foi ateado á mata de
Adredanha.
Facilmente o fogo se propagou, em linha horizontal contrária á direção do mar, subindo a
colina, rumo á cachoeira.
Gabriel preparava-se para repousar em sua gruta, tão bem resguardada sob as fortes
águas da imponente cachoeira. Acostumara-se a fazer as longas caminhadas até á
moradia para observar, e ainda que fossem longas horas em caminho árduo, não mais se
sentia exausto. Era-lhe mero exercício e os músculos de seu corpo haviam se
acostumado também á tarefa. Reconhecera prontamente o filho do Lorde Orlando quando
este chegara á propriedade e sentia-se intrigado com o que Arthur ali viera fazer.
Conseguira ainda ver o médico Ricardo recepcionando-o e visualizara através do imenso
vitral da biblioteca, o muito que conversavam. Decidira, em função da longa conversa que
não podia ouvir, retornar para repousar mais cedo. Estava certo de que Lorde Orlando
partira para o seu castelo já tinha longos dias, pois nunca mais o vira na propriedade.
Escondido na vegetação ouvira os rumores dos servos a respeito da súbita morte de Job.
Participava continuamente, ainda que oculto, da vida daquela propriedade.
As sete flechas que atirara nos servos foram um mero alerta para que não o julgassem
ingênuo e desprevenido, e para que ficassem cientes de que não o pegariam com tanta
facilidade como estavam pensando, naquelas incessantes buscas que sempre via nas
proximidades da cachoeira.
Esteve certa vez prestes a alvejar o capataz Luís, quando este se aproximou da
cachoeira, mas não o fez por temer ter seu esconderijo ser descoberto. Se frustrava por
não tê-lo matado no dia da fuga pelo mal que lhe fizera.
Esperava momento propício também a alvejar o médico Ricardo, que o traíra em
conclusões precipitadas, mas não houvera oportunidade de fazê-lo.
Depois que feriu um dos serviçais, todos passaram a ter cautela, evitando sair das
moradias ao anoitecer ou encontrando-se nos fundos, onde ele não poderia vê-los. Mas
isso não o impedira de ferir os outros seis servos.Não faltariam oportunidades a
concretizar os seus anseios de vingança. E assim que o conseguisse, rumaria para o
castelo, a fim de se vingar do velho Lorde e de Philip, seu capataz asqueroso.
Repentinamente lembrou-se de Arthur. Se o exterminasse também, poderia assumir a
propriedade que lhe era de direito, como nobre que, era irmão de Joane. Pensaria nisto
pela manhã, já era muito tarde e o cansaço se apoderava de seu corpo.
Gabriel deitou-se para dormir, quando escutou um imenso barulho na mata. Aproximou-se
vagarosamente da fenda e assustou-se em demasia com o que visualizou.
Um imenso clarão cobria a propriedade de Adredanha, transformando-a em dia. O forte
cheiro de fumaça e de madeira queimando emanava em sua direção. Não se sentiu
temeroso por se encontrar em segurança, mas não tardou o cenário que visualizava era
medonho.
Um mar de fogo caminhava em sua direção. O calor era insuportável ainda que a água
da cachoeira refrescasse o ambiente, e evitava que a fumaça ali entrasse. Inúmeros
animais refugiavam-se nas pedras, outros, no entanto, também procuravam abrigo ali
onde estava, e Gabriel de imediato pegou o facão para matar algumas cobras que
ameaçavam sua segurança.
O imenso incêndio durou o resto da noite e pela manhã Gabriel ainda podia ver alguns
focos de chamas ardentes que queimavam a madeira robusta de árvores antes frondosas.
O cenário que se descortinava era de uma paisagem morta em negro e cinza.
Poderia ver agora ao longe a vila dos serviçais e a moradia de Adredanha. E ainda que
bem distante estivesse, estava ciente que a gruta não lhe era mais local apropriado a
ficar.Ele recolheu o arco e as flechas e saiu, decidido a alcançar o castelo de Lorde
Orlando.
Arthur acordara cedo disposto a procurar Gabriel. Após terminar a refeição matinal
chamou Luís e pediu-lhe que o acompanhasse.
-Posso ir também, senhor Arthur?, indagou Ricardo aproximando-se. Arthur cumprimentoo, autorizando-o a fazê-lo.
Os três visualizaram o resultado do incêndio com assombro. A devastação havia sido
terrível, poucas árvores haviam permanecido em pé. Agora da moradia poderiam avistar a
imponente cachoeira á distância, sem os obstáculos que antes a ocultava.
Arthur falou ao capataz:
-Mande alguns serviçais limpar toda a área queimada, depois deverão ará-la e plantá-la.
Que não se deixe mais que a mata cresça.
Luís concordou e imediatamente foi dispensar os servos para a lida e escolher uns para
esta tarefa.
Novamente o capataz retornou á companhia de Arthur e Ricardo. Os três caminharam
rumo á cachoeira. Chegando lá ,Arthur disse-lhes:
-Conheço aqui um lugar, onde costumava brincar que poucos conhecem... Se não estiver
errado o encontraremos aqui.
Luís imediatamente pegou o facão e caminhou na frente de Arthur.
-Perdoai-me a ousadia senhor Arthur ,mas se aqui estiver, irei na frente se me indicar o
caminho.
Arthur apontou-lhe a fenda escura sob as águas, dizendo:
-Caminha-se com cautela por estes rochedos até alcançar a fenda. Nos molharemos
bastante, mas se surpreenderão com o imenso salão que ali existe oculto.
Ricardo cada vez mais se surpreendia com a astúcia do nobre Arthur. Caminharam
facilmente os rochedos alcançando a fenda e,surpreendentemente, ali estava ele, um
imenso salão de pedra..Observaram assombrados que Gabriel sempre estivera ali. Um
bom leito de palha trabalhada, a fogueira ainda quente, pedaços de madeira e indícios de
sua fabricação de flechas. Arthur concluiu rapidamente:
-Foi embora!
-Como sabes, senhor Arthur?
-Simples Ricardo, ele carregou tudo consigo. Olhe através da fenda, não teria mais onde
ocultar-se. Podemos observar a moradia daqui, igualmente poderia ser visto de lá.
Pergunto-te agora eu, pelo muito que o conheces, para onde irá?
Ricardo pensou um pouco e após alguns instantes falou-lhe:
-Se Gabriel deseja vingar-se e não pode concretizar sua vingança aqui, com certeza irá
para o castelo.
O capataz Luís o interrompeu:
-Mas como chegará lá se ele não possui meios ou recursos para isto?
Arthur respondeu-lhe:
-Começo a compreender Gabriel e respondo-te que não vacilará em matar para conseguir
os meios. E ainda que não os conseguisse, asseguro-te Luís que caminhando
determinado, com a força que dizem possuir, em trinta dias lá chegaria.
Os três entreolharam-se assombrados. Voltaram á moradia e uma menina correu feliz em
direção ao médico Ricardo, abraçando-o afetuosamente. Arthur curioso olhou-a fixamente
indagando:
-Ricardo, esta menina é Sara?
Ricardo respondeu-lhe entristecido:
-Sim senhor Arthur, é a linda filha de Linia.
-És muito bonita Sara. Sabes que sou teu tio,e tu és minha sobrinha?
A menina corou meneando levemente em negativa.
-Pois afirmo que sou teu tio e eu também te protegerei.
Sara olhou Ricardo e sorrindo deu-lhe a mão, depois olhou Arthur e também lhe estendeu
a mão. Arthur a pegou carinhosamente e os três de mãos dadas entraram na moradia.
O médico pediu a Sara que fosse para o seu aposento estudar e acompanhou o nobre
Arthur até a biblioteca. Arthur disse-lhe determinado:
-Viajaremos para o castelo pela manhã, Ricardo.
-Com teu regresso sabes que irás afrontar teu pai, que pensa teres ido para a corte.
Sabes que Sara precisa ficar distante de Linia.
Arthur explicou-se:
- Terei onde ocultá-la. O senhor meu pai não saberá de sua presença.
Arthur pegou a imensa espada que portava na cintura e disse-lhe:
-Simples meu bom Ricardo, cuidarás de mim!
Dizendo isto, o jovem nobre, num gesto de coragem, fez profundo corte no seu braço
esquerdo.
O médico Ricardo perplexo com sua coragem e valentia, perguntou-lhe:
-Senhor Arthur, porque fizestes isto? Porque te feristes?
O jovem sorriu e falou-lhe com naturalidade,
-Agora, preciso de um bom médico que me acompanhe. Realmente o senhor meu pai
pensa que viajei para a corte, lhe direi que me feri no caminho, num ataque de
salteadores e vim a Adredanha para que me auxiliasses.
Ricardo, assustado com o imenso sangramento, pediu-lhe licença para que se
ausentasse a fim de procurar um torniquete e pegar algumas ataduras. Arthur consentiu e
o médico saiu apressado. Logo retornou com o material e Arthur prosseguiu, enquanto o
médico o auxiliava no ferimento.
-Direi ao senhor meu pai que quando fui atacado, estava próximo á aldeia de Corville,
assim não achará estranho que tenha rumado para cá.
O médico interrompeu-o:
-Porque desejas que eu vá contigo senhor Arthur?
Arthur o fitou amigavelmente:
-Minha nobre mãe confiou em ti, meu bom Ricardo. Meu pai também assim o fez, porque
eu não o faria? Serás meu confidente, meu amigo e meu mentor. Prometo-te que minha
espada te protegerá, assim como protegerá também minha sobrinha Sara, que por sua
candura e meiguice, percebi que nada tem dos olhos vis de sua mãe Linia.
O médico Ricardo, terminara de enfaixar o braço daquele nobre que ainda era um
menino, mas que agia como um homem.
-Estás de acordo, Ricardo?
O médico olhou-o com admiração e falou-lhe:
-Senhor, lhe acompanharei á viagem ao castelo, mas como ficarão os servos feridos sem
o meu auxilio médico?
-Ricardo, pelo que me dissestes, tudo o que podias fazer por eles já foi feito.
O médico concordou, pedindo-lhe licença para se retirar a tomar algumas providências.
Sozinho, Arthur olhou a sua espada, que ainda permanecia em sua mão direita e
erguendo-a com segurança murmurou firmemente:
-Honrarei o nome de minha mãe Joane, o nome de meu irmão Anderson e o nome de
minha doce irmã Brigith.
Baixou novamente a espada, e após limpá-la, guardou-a. Sentou-se então para pensar
em tudo o que o médico lhe contara, e não tivera tempo para refletir.
Gabriel caminhou paralelamente ao abismo por longos dias, até que avistou uma grande
aldeia. A túnica que vestia estava extremamente suja e decidiu lavá-la num córrego ali
próximo. Quando se encontrava nu, prestes a lavá-la, ocorreu-lhe uma idéia. Ocultou o
arco, as flechas e a túnica na vegetação. Com o auxilio de um dos facões barbeou-se
cuidadosamente, e depois também os ocultou. Com o porte elegante e asseado rumou á
aldeia, completamente despido. Aproximou-se de uma das casas, fingindo-se
cambaleante e exausto. Não tardou para que alguns moradores o vissem e corressem a
socorrê-lo e cobri-lo.
Um velho ancião o levou á sua casa, e Gabriel fingiu perder a consciência. O velho
senhor murmurou para si mesmo “ Pobre rapaz, devem ter sido salteadores, percebo
pelos traços que é um nobre, porque andaria só por estas estradas? Seus pés estão
demasiadamente feridos, muito deve ter andado este infeliz."
Passadas algumas horas, atento a todos os movimentos, Gabriel fingiu recuperar a
consciência. O velho ancião que estava vigilante aproximou-se:
-Como te sentes, rapaz?
Gabriel olhou-o, fingindo estar zonzo e ainda sonolento.
-Deves estar com fome, enquanto dormias fiz uma forte sopa.
O ancião afastou-se para pegar a sopa e depois, auxiliando-o a se alimentar, indagou:
-Como te chamas rapaz?
Gabriel astutamente respondeu:
-Chamo-me Lorde Henri II, senhor.
O ancião novamente o indagou:
-Foram salteadores na estrada que te deixaram só e despido?
Gabriel novamente fingiu-se fraco e imensamente esfomeado.
-Sim, senhor. Mataram os dois guerreiros que trazia comigo e levaram-me a carruagem e
os pertences, deixando-me na estrada á própria sorte.
O ancião sentia enorme pena de Gabriel e levantou-se para pegar um outro prato de
sopa. E Gabriel novamente a tomou esfomeado, ainda que fome não sentisse.
-Preciso voltar á minha propriedade senhor, poderás ajudar-me?
O ancião o observou novamente e disse-lhe:
-A única coisa que posso fazer é emprestar-te um cavalo veloz. Tentarei também
conseguir uma veste para ti. A tua propriedade é distante?
Gabriel olhou-o agradecido dizendo-lhe:
-Três dias de viagem senhor.
Estás perto de casa então, não precisarás de dinheiro, somente alguns mantimentos.
-Gabriel concordou humildemente com a cabeça e o velho novamente analisou-o.
-Onde queimastes a pele assim?
Gabriel estremeceu, mas disse-lhe firmemente:
-Gosto muito de banhar-me diariamente nos rios de minha propriedade. O sol queimoume a pele com o tempo.
-És um guerreiro não é Henri II? Vejo em teus enormes músculos.
-Sim, senhor, treino-me constantemente nas artes da guerra, mas os salteadores nos
atacaram á noite e não estava armado.
-Compreendo rapaz, não te exaltes mais, irei providenciar o cavalo e as vestes.Desejas
partir ainda hoje?
Gabriel sentia-se feliz pelo êxito:
-Sim senhor, agradeço-lhe em demasia o auxilio, e lhe recompensarei tão logo retorne a
minha propriedade. Um guerreiro lhe trará o cavalo e algumas moedas de ouro.
O velho sorriu satisfeito e saiu a providenciar o que o seu ilustre hóspede precisava.
Gabriel levantou-se e banhou-se. Quando o velho retornou lhe trouxe uma veste fina,
elegante e requintada,digna de um lorde.
-Consegui emprestada com um amigo meu que costura para a nobreza. Sei que a
devolverás breve.
Gabriel a vestiu e sentiu-se elegantemente imponente. Pela primeira vez em sua vida, a
pele lhe era tocada por tecidos tão finos e tão sedosos.
-És um bonito Lorde, exclamou-lhe o ancião, dando-lhe uma sacola com mantimentos.
Gabriel agradeceu-lhe imensamente a bondade e saiu da pequena casa. Sob o olhar de
alguns outros moradores, admirados com sua altivez e imponência, montou no cavalo e
galopou ligeiro,acenando agradecido ao velho que o auxiliara. Retornou ao local onde
deixara o arco, flechas e facões e pegou-os. Olhou a túnica e desprezou-a, partindo
ligeiro rumo ao castelo de Lorde Orlando.
Aproximavam-se do castelo e Arthur explicou a Ricardo que o acompanhava em montaria
próxima:
-Deixaremos Sara com uma senhora minha amiga, que reside aqui perto. Poderás vir vêla todos os dias se assim desejares.
Ricardo concordou e cavalgaram até uma pequena casinha branca que ficava próxima a
um rio de águas muito claras. O médico observou uma pequena plantação de hortaliças
cuidada com muito esmero e algumas galinhas que passeavam livremente. Arthur, ao
aproximarem-se ,fez sinal ao servo que os acompanhava numa modesta carroça com as
bagagens e a menina Sara, para que parasse. O nobre apeou da montaria e o médico
também o fez. E caminhando em direção á pequena casinha branca, chamou gentilmente:
-Carol, estás em casa?
A porta se entreabriu e uma senhora de longos cabelos brancos, mas ainda jovem sorriulhe serena e radiante.
-Meu menino Arthur, que bom ver-te, viajastes bem?
Arthur caminhou em sua direção e abraçaram-se carinhosamente. Ricardo imediatamente
percebeu que existia entre eles enorme afinidade.
-Carol, desejo apresentar-lhe um grande amigo!
Arthur caminhou então, de mãos dadas com aquela bonita senhora, em direção ao
médico.
-Este é meu amigo Ricardo, médico de nossa família há muitos anos.
Carol cumprimentou-o gentilmente e observando a carroça, viu o servo e a menina,
indagando-lhes surpresa:
-E esta linda menina?
Arthur ajudou Sara a descer da carroça e apresentou-a a Carol:
-Esta é Sara, minha sobrinha e protegida.
A senhora olhou-a perplexa, mas nada lhe indagou.
-Carol, preciso que fiques com ela e a protejas por alguns dias.
Carol novamente sorriu-lhe em brandura, parecia irradiar enorme paz que reluzia em seus
olhos imensamente claros em tons esverdeados. Balbuciou:
-Será um imenso prazer ter a sua companhia.
Arthur então se desculpou pela brevidade, mas precisavam chegar ao castelo antes do
anoitecer e prometeu-lhe que as visitaria pela manhã. Estavam a três horas de viagem do
castelo de lorde Orlando e não tardaria a escurecer.
Carol compreendendo-lhe a pressa, pegou na mão de Sara carinhosamente e levou-a
para dentro da moradia, despedindo-se.
O médico Ricardo acompanhou-as, levando alguns pertences de Sara, poucos livros e
seus pergaminhos de ensino.
Quando entrou no ambiente do modesto lar, surpreendeu-se com a harmonia que este
emanava. Humilde e modestamente mobiliado, mas rico em claridade e paz.
Despediram-se e Arthur e Ricardo montaram novamente para seguir viagem
silenciosamente. Somente o ranger das rodas da carroça que os seguia, cortava o
silêncio. Como estavam próximos ao término da viagem cavalgavam lentamente,
cansados da longa viagem. De repente Arthur disse ao médico:
-Por teu silêncio, percebo que te surpreendestes com Carol, minha amiga.
Ricardo não conseguia ocultar o quanto se impressionara com aquela senhora de traços
finos, pele delicada, e sorriso encantador. Nunca se interessara desta maneira por
nenhuma mulher. Carol havia tocado um profundo sentimento.
-Não posso negar-lhe, senhor Arthur, estou imensamente impressionado com esta
senhora que acabei de conhecer. Como nunca a vi? De que vive? De onde veio?
Arthur gargalhou, radiante com o entusiasmo do médico, e isso fez com que Ricardo
ficasse constrangido.
-Não te retraias meu bom amigo, ainda sou apenas um rapaz, e desperto somente agora
para os impulsos amorosos que o meu coração possui. Estou achando magnífico o seu
interesse por minha amiga. Contarei a estória de Carol.
Arthur contou que quando o velho Manco morrera, e estando Anderson enfermo, sua mãe
Joane o chamou, dizendo-lhe que precisava de sua ajuda.
Explicou-lhe que encontraria uma senhora, morando próximo a um rio claro, a três horas
da propriedade. Pediu-lhe que enquanto esta senhora vivesse, ele deveria levar-lhe os
suprimentos necessários á sua subsistência , todas as semanas.
Ricardo falou-lhe admirado:
-Eras um menino, senhor Arthur.
Arthur entristecera-se com as doces lembranças de sua mãe e respondeu-lhe
melancólico.
-Não tão menino senhor Ricardo.Sem fazer perguntas a minha mãe, cavalguei com as
orientações que me dera quanto á localização da sua moradia. Fácil encontrei Carol. A
primeira vez que aqui vim, me senti tão bem que não deixei de vê-la uma semana que
fosse. Por vezes, diariamente aqui vinha conversar com uma grande amiga que ganhara.
O nobre fez uma pausa e prosseguiu:
-Você está ciente Ricardo, do ambiente infeliz que se tornou o castelo. Minha mãe vivia
reclusa em seu aposento, Anderson e Brigith sempre retidos no castelo, depois as
mortes...
As feições de Arthur se fechavam em tristeza, mas prosseguiu:
-Distraia-me nas artes da guerra, mas o que gostava mesmo era de cavalgar. Quando me
sentia só, vinha ver Carol que sempre me recebia com o mesmo carinho e amor.
Ricardo mais se intrigava, e Arthur parecia desejar auxiliá-lo.
-Senhor Ricardo, disse-me Carol que o velho Manco a salvara, construiu-lhe a casa e
nunca deixou que nada lhe faltasse. Falou-me ainda que caiu no rio quando lavava
algumas roupas e foi arrastada por alguma distância. Com a grande quantidade de água
que engolira, perdeu os sentidos. Quando despertou, no entanto, lembra-se agradecida
que o velho Manco estava ao seu lado, na margem do rio, aquecendo-a e protegendo-a.
Nada mais me contou.
Ricardo unia apressadamente os pensamentos. Exclamou para si mesmo surpreso "Não
seria possível! Seria o destino ardiloso demais!" Mas as coincidências eram muitas e o
médico as juntava concluindo uma só lógica. Pensava: " Manco poderia ter ouvido
rumores de que matariam a mãe de Gabriel no rio e decidiu salvá-la. Talvez Joane o
houvesse alertado e o auxiliado com os recursos necessários á construção da moradia.
Somente isso explicaria Carol viver tão só e tão reclusa, sendo tão meiga e ainda tão
bonita apesar da idade."
O médico, extremamente curioso, encorajou-se e indagou a Arthur:
-Porque nunca se casou? É viúva?
Arthur interrompeu os seus pensamentos tristes em relação á família que perdera, para
lhe dar atenção.
-Realmente te interessastes em demasia por Carol, Ricardo. Nunca a vi com ninguém e
percebo que sempre viveu só, ainda que não compreenda por que.
Lembrando-se repentinamente de algo, falou ao médico.
-Certa vez , no entanto, olhou-me pensativamente melancólica e balbuciou: "será que
meu filho é tão bom qual tu o és?”... Mas rapidamente modificou-se e novamente a vi feliz
e radiante como sempre. Sempre a respeitei, não fazendo qualquer pergunta. Temia
perder a amiga.
Arthur interrompeu suas lembranças, olhou Ricardo sorridente, e consolou-o
amigavelmente.
-Ricardo, com certeza amanhã veremos Carol novamente, poderás conhecê-la melhor.
Ambos silenciaram em seus pensamentos e continuaram a viagem, tranqüilos.
Ricardo nada contara a Arthur que a mãe de Gabriel fora morta por ordem de seu pai.
Desejava poupá-lo de maior sofrimento. Contara-lhe simplesmente que a sua mãe Joane
revelara que Gabriel era seu irmão bastardo e, conseqüentemente, este lhe era seu tio.
Já anoitecera quando finalmente Arthur e Ricardo chegaram ao castelo. O nobre já havia
alertado ao servo que os acompanhava na carroça para que nada contasse a respeito de
Sara e de sua amiga Carol. Este havia lhe jurado fidelidade.
Arthur entrou no castelo sem cerimônias, pedindo a Ricardo que o aguardasse.
Os imensos salões estavam adornados e coloridos, preparava-se uma festa, concluiu
Arthur. Encontrou seu pai na imensa sala de estar, escutando Linia que tocava uma linda
melodia na harpa.
Lorde Orlando olhou-o imensamente surpreso com sua presença ali, havia visto
aproximarem-se quando chegavam, através do imenso vitral.
-Boa noite senhor meu pai.
Propositadamente caminhou em direção de Linia e beijando-lhe a mão disse-lhe:
-Como tens passado, querida irmã Brigith?
Linia olhou-o assustada, sentia o tom irônico em sua voz, ainda que Lorde Orlando não o
houvesse percebido.
O Lorde sentia-se feliz com a mudança de seu filho e com o seu retorno. Não mais
conseguia administrar a propriedade, deixando inúmeras decisões a cargo do capataz
Philip.
-Voltastes breve meu filho? Onde te feristes?
Arthur sentou-se elegantemente numa poltrona e contou os problemas que tivera com os
salteadores na estrada, explicou-lhe o motivo da ida a Adredanha e porque trouxera o
médico consigo.
Lorde escutou tudo atenciosamente, aceitando, convencido, a estória dramática que o
filho lhe contava.
-Onde estão os guerreiros, não vieram contigo por quê?
Arthur deixara-os em Adredanha para proteger a propriedade caso Gabriel mudasse de
idéia e ali retornasse. Porém respondeu a seu pai:
-Luís o capataz, estava demasiadamente preocupado com os bandos de salteadores que
andam pelas estradas, e achei que seria acertado deixá-los em Adredanha para proteger
nossa propriedade.
O Lorde ficou feliz com as decisões maduras de seu filho.
-Fizestes bem, meu filho Arthur, ainda que tenhas te arriscado a viajar sozinho e ferido.
Deves estar muito cansado, recolhe-te a teu aposento e banha-te para que possamos
cear juntos.
Arthur agrediu Linia sutilmente, com um olhar discretamente acusatório, mas dizendo-lhe
delicadamente, para que seu pai ouvisse:
-Com licença minha irmã Brigith, retornarei breve.
Arthur também fez uma breve reverência a seu pai e retirou-se.
Após falar com Ricardo que tudo dera certo e que poderia ir para seu aposento repousar,
Arthur também foi aprontar-se para a ceia.
A ceia transcorreu em normalidade, sendo que Arthur sempre que tinha oportunidade
mostrava claramente a Linia que a cortesia e a delicadeza para com ela eram mera
encenação para seu pai.
Após a ceia foram repousar um pouco no salão de festas e Arthur encorajou-se a indagarlhes:
-Teremos uma festa senhor meu pai? Vejo que tudo se embeleza para isto.
Lorde Orlando olhou-o vacilante, mas confiando na transformação de seu filho, disse-lhe
radiante de felicidade.
-Tua irmã Brigith receberá em breve o seu noivo. Vamos concretizar seu matrimônio com
Lorde Pierre.
Arthur olhou Linia arrogante e falou-lhe com estrema ironia, sem que o seu pai lhe
percebesse o tom:
-Mas que felicidade Linia, o pai de Pierre é uma das maiores fortunas da corte, inúmeros
títulos lhe virão!
Linia sorriu satisfeita concordando, mas estava extremamente contrariada com as atitudes
de seu irmão. O jovem nobre conseguia ser extremamente sutil ao agredi-la.
Arthur voltou-se para seu pai e indagou-lhe novamente:
-Quando será este noivado?
Lorde Orlando olhou-o pensativo e respondeu firme.
-Recebi uma mensagem, tem dois dias, dizendo que a família se aprontava para fazer a
longa viagem para cá, creio que chegarão em dez dias!
A noite seguiu divertida para o nobre Arthur, que encenava harmonia para seu pai, e
atacava Linia com olhares e gestos.
A jovem, imensamente insatisfeita e incomodada com aquela situação, pediu licença ao
seu pai, para se deitar e o Lorde autorizou-a.
Arthur, tão logo Linia afastou-se, também disse que precisava repousar da longa viagem.
Quando o jovem em seu aposento, sentiu que o seu pai também se recolhera, colocou a
espada na cintura e saiu rumo ao aposento de Linia, caminhando vagarosamente.
Percebendo que a porta estava apenas encostada, sem lhe pedir licença, entrou
rapidamente. Antes que Linia tivesse oportunidade de gritar, Arthur tapou-lhe a boca com
certa violência. E arrastando-a trancou a porta com a estaca de madeira, para evitar que
ali alguém entrasse enquanto conversavam.
-Irmãzinha, agora nós vamos conversar. Mas primeiro, precisas ficar bem boazinha.
Arthur pegou um lenço que se encontrava sobre a cômoda e imobilizou-lhe a boca,
soltando-a posteriormente. Ameaçando-a para que parasse de se agitar ou tentar fugir,
Arthur tirou a espada da cintura, e a encostou no ventre de Linia.
-Senta-te quietinha, já te disse que precisamos conversar.
Linia, pressionada pela espada, sentou-se na cama forçosamente contrariada.
-Vou te chamar de Linia, porque não mereces usar o nome de minha irmã. Nem mesmo
chegas a seus pés! És vil, ardilosa, mentirosa e fútil! És falsa e medíocre! Mundana e
promiscua!
Linia o olhava, enraivecida e completamente imobilizada, pela espada de Arthur que a
ameaçava e pelo lenço que a emudecia.
-Sei que és minha irmã, mas antes não fosses, porque te desprezo a conduta.
Abandonastes a filha que te amava. Matastes o fiel marido que te idolatrava e que te
respeitou a infância, auxiliando-te e protegendo-te. Ambicionavas boas roupas, casa,
dinheiro, títulos... És medíocre em demasia!
Arthur estava nervoso e pressionava a espada fortemente em seu ventre.
-Poderia matar-te como se faz com um verme, que aos nossos olhos é repugnante e não
tem qualquer valor... Mas não o farei.Dou-te dez dias Linia...somente dez dias para que
sumas das propriedades de minha família. Escutastes bem? Dez dias... Quando o teu
noivinho chegar não estarás mais aqui! Comporta-te direito e não faz escândalo, porque
antes que ouses fazê-lo eu te corto a garganta.
Dizendo isto Arthur tirou-lhe o lenço da boca e Linia ameaçou dizer-lhe algo:
-Eu disse comporta-te direito! Não desejo sequer ouvir a tua voz, me irrita!
Arthur saiu do aposento calmamente e somente no corredor guardou a espada,
novamente em sua cintura.
Linia, assustada, levantou-se tão logo Arthur afastou-se e rapidamente recolocou a tranca
na porta, fechando-a. Sentia-se temerosa de que seu irmão resolvesse voltar.
A ira contida em seu peito aflorava nas faces extremamente rosadas em fúria. Sentia-se
enormemente agredida com as inúmeras blasfêmias de Arthur.
Linia tentou acalmar-se, sentando-se no leito. Precisava pensar numa solução. Não
poderia dizer ao Lorde que Arthur estivera no seu aposento. Ele não acreditaria! Ele havia
sido tão sutil e tinha agido propositadamente com um comportamento tão dócil desde que
chegara! Mas precisava imediatamente arrumar uma solução para afastá-lo. Não iria
perder a sua situação de nobreza, o conforto o luxo e a fartura. Não iria perder a
oportunidade que a vida lhe ofertara... não por um mancebo que lhe ameaçava a vida.
Precisava arrumar um aliado... mas quem? Tardiamente naquela noite Linia finalmente
conseguiu dormir.
Arthur acordou cedo, numa bela manhã no castelo de Lorde Orlando, decidido a cavalgar
um pouco pela propriedade. Cavalgou veloz pelas colinas, pastagens e lago. O céu
estava incrivelmente límpido e o ar imensamente fresco. Sentia-se recuperado das
viagens que fizera. Após longo passeio, retornou veloz ao castelo e, apeando da
montaria, visitou as sepulturas de seus queridos familiares. Sentiu-se muito emocionado
nas ternas lembranças e na imensa saudade que sentia de todos. Olhou para o castelo e
amargurou-se com os inúmeros problemas que ainda lhe viriam. Caminhou pensativo
entrando na moradia e prontamente encontrou o seu pai que o aguardava.
-Bela manhã, não é meu filho?
Sim, senhor meu pai, aproveitei e fui cavalgar um pouco para ver como estava a
propriedade.
-Sinto-me cansado Arthur, muitas decisões tenho deixado á responsabilidade do capataz
Philip. Tens que assumi-las imediatamente.
-Com imenso prazer senhor meu pai.
Aguardava-te para fazermos a refeição matinal juntos.
Arthur olhou ao redor e não vendo Linia, indagou a seu pai, mostrando-se aparentemente
saudoso.
- Minha doce irmã Brigith não descerá para alimentar-se em nossa companhia?
Perspicaz, Lorde Orlando analisava satisfeito o interesse do filho pela irmã e concluiu que
este lhe acatara plenamente as determinações, ainda que soubesse que era-lhe uma irmã
bastarda, comportava-se adequadamente como lhe ordenara. Imediatamente pediu a uma
serva que chamasse Linia, instruindo-a que a alertasse que a aguardavam no salão de
refeições.
Arthur, embora indignado com toda aquela situação, divertia-se interiormente. Desejava
ver o semblante de Linia após as ameaças que lhe fizera. Não tardou esta aproximou-se
do salão, Estava profundamente abatida, "com certeza não dormira" pensou Arthur,
sentindo-se radiante por lhe haver feito compreender o quanto sua presença ali era
desprezível.
- Desculpai-me, senhor meu pai. Atrasei-me um pouco.
Arthur desafiou-a com um olhar de advertência, e levantou-se reverenciando-a
amigavelmente.
-Bom dia minha irmã Brigith. Pareces-me abatida esta manhã, sentes-te mal?
O Lorde não se continha com a imensa alegria que sentia em ver ser filho tão submisso a
seus caprichos, mostrando-se extremamente carinhoso com Linia. A jovem sentia-se
enfurecida com a atitude de Arthur , mas respondeu-lhe sorridente:
-Bom dia meu irmão Arthur, não estou indisposta, sinto-me imensamente bem.
-Então minha irmã, não recusarás cavalgar comigo nesta bela manhã, o dia está tão
agradável.
Linia olhou-o, contrariada com as provocações. Percebendo seu semblante indeciso, seu
pai falou-lhe gentilmente.
-Cavalgarás com Arthur, logo após a refeição matinal, está sendo tão gentil contigo.
Linia sentou-se e alimentou-se irada. Pensava atônita: "Como era possível que Lorde
Orlando não percebia os ataques sutis de seu irmão?"
Depois da refeição Artur se retirou a providenciar a montaria para Linia, e logo os dois se
distanciavam nas colinas indo rumo ao lago. Ricardo os observava atentamente. Pelo
muito que já conhecia o jovem Arthur, estava ciente que este não faria um passeio com
Linia se não fosse para provocá-la. O médico recordou-se de Carol, que tanto o
impressionara, e de Sara, a quem tinha extrema afeição, e prontamente decidiu também
cavalgar para ir visitá-las.
Arthur e Linia cavalgaram silenciosos. No lago, a jovem apeou da montaria e caminhou
pensativa e preocupada com as verdadeiras intenções de seu irmão naquele passeio. No
entanto, Arthur nada fez ou lhe disse, o convite para o passeio fora mera encenação para
ludibriar seu pai. Retornaram ao castelo após longa hora silenciosos e pensativos. Lorde
Orlando os aguardava atento defronte á imponente moradia. Arthur falou-lhe eufórico:
-Um passeio maravilhoso senhor meu pai, Cada dia me impressiono mais com minha
irmã, Brigith é encantadora!
Olhando Linia com proposital admiração profunda, continuou com a divertida encenação.
-O senhor meu pai acredita que dialogamos sem cessar neste prazeroso passeio?
Estamos nos dando extremamente bem.
Lorde Orlando sorriu-lhe agradecido, enquanto Linia apeava da montaria e seguia para o
seu aposento, se desculpando pois sentia uma ligeira indisposição.
Arthur estando a sós com seu pai, aproveitou para conscientizar-se do funcionamento das
propriedades e tomar conhecimento de alguns problemas nestas existentes. Passava-lhe
Lorde Orlando o poder para tudo administrar em seu lugar.
O sol ainda não se erguera por completo, quando Ricardo chegou á casa de Carol.
Avistou-as conversando animadamente, próximo a um rio que corria beirando a
pequenina moradia. Apeou da montaria e caminhou sorrindo na direção delas.
Carol também sorria feliz pela visita e Sara prontamente correu na direção do médico
abraçando-o saudosa.
Ricardo com a voz embargada de emoção, pelo extremo afeto e carinho daquela menina,
que já lhe era uma filha, murmurou:
-Senti saudades, Sara.
A menina olhou-o ternamente, ainda o abraçando.
- Ricardo, também senti muita falta do senhor.
Ricardo olhou então para Carol e sorriu-lhe agradavelmente.
-Bom dia Carol!
A senhora cumprimentou-o com grandiosa humildade, dizendo-lhe que
surpreendentemente em apenas uma noite, muito já se afeiçoara a Sara.
Ricardo então, aproveitando-se da breve ausência de Sara, que fora á moradia pegar
alguns trabalhos de estudo para lhe mostrar, encorajou-se no enorme sentimento que se
expandia no seu peito e falou-lhe:
-Perdoai-me a ousadia Carol, porém não vim somente visitar Sara. Impressionado
também fiquei contigo e desejaria conhecer-te melhor.
Carol sentiu-se constrangida com a objetividade e a sinceridade tão espontânea do
médico e, sem saber o que lhe responder, sorriu-lhe agradecida.
A tarde passou rápida e agradável. Após simples mas deliciosa refeição, Sara saíra da
moradia para colher algumas flores próximo ao rio e Ricardo tivera a oportunidade de
conversar longamente com Carol a sós. Já o sol descia no horizonte quando o médico
percebeu o quanto se fizera tarde. Despedindo-se de ambas, prometeu-lhes voltar no dia
seguinte pela manhã e cavalgou apressadamente em retorno ao castelo.
No caminho de regresso pensou em Carol e na imensa afinidade que sentia por ela. Não
lhe fizera indagações, falara-lhe um pouco de Sara e de Arthur, e dialogaram longamente
sobre diversos assuntos rotineiros como clima, cultivo e vegetação.
Sentia-se incrivelmente bem e feliz, ainda que não houvesse se esquecido dos inúmeros
problemas ainda a serem enfrentados.
Quando chegou ao castelo, encontrou o jovem Arthur esperando-o.
-Pelo teu semblante radiante sei aonde fostes sem que me fales Ricardo.
Fui visitar Sara, senhor Arthur.
-Não consegues ocultar o que sentes, meu bom amigo Ricardo. O brilho está em teus
olhos. Não fostes somente visitar Sara, fostes visitar minha amiga Carol.
Ricardo sorriu-lhe constrangido.
-Senhor Arthur, não posso negar-lhe que estou perplexo com o que sinto por Carol, nunca
senti qualquer coisa parecida antes, é tão intenso!
Arthur abraçou-o amigavelmente.
-Estás apaixonado Ricardo.
Repentinamente o jovem Arthur lembrou-se que demonstravam demasiada amizade em
frente ao castelo e não seria benéfico que Lorde o visse dialogando em extrema
intimidade com aquele servo. Falou receoso:
-Nos precipitamos, amigo, em agirmos com tanta naturalidade em frente ao castelo. Se
meu pai tiver nos vistos assim juntos, não compreenderá nossa proximidade!
Arthur fez uma pausa, olhando ao redor preocupado e continuou:
-Como se faz necessário limpar o ferimento de meu braço, melhor dialogarmos em meu
aposento.
O ferimento fora tratado tão logo amanhecera, não haveria necessidade de fazê-lo
novamente, mas Arthur sentia enorme necessidade de dialogar com Ricardo.
O médico, compreendendo imediatamente os temores do jovem nobre, rumou até á copa
para pegar um pouco de água quente e algumas faixas e depois acompanhou Arthur até o
seu aposento, onde poderiam conversar tranqüilamente sem receios.
Gabriel cavalgara continuamente. Somente havia dado breves pausas para repouso
sempre ao anoitecer. Sentia-se no entanto imensamente enfraquecido e resolveu apear
da montaria próximo a uma pequena aldeia.
Estava ciente de que ainda lhe faltavam aproximadamente quatro dias para chegar á
propriedade de Lorde Orlando e os alimentos que o velho ancião lhe fornecera já tinham
acabado há alguns dias.
Sentia fome, pois aqueles dias se limitara a comer frutas silvestres. Ainda que pudesse
tranqüilamente se embrenhar na mata densa para caçar, optara por não fazê-lo.Teria que
cozinhar o alimento e não desejava perder tempo ou chamar a atenção de possíveis
moradores com a fumaça. As terras distantes da propriedade de Lorde Orlando lhe eram
desconhecidas. Já escurecera e sentia-se exausto.
Caminhou lentamente, segurando o cavalo que o acompanhava ofegante, até se
aproximar de um conjunto de casas. Nestas se comemorava uma festa típica, com muita
musica e dança.
Os moradores percebendo-lhe a presença, silenciaram e os homens da aldeia se
agruparam para recebê-lo, considerando-o um intruso. Um dos homens, que deveria ser o
líder da aldeia, aproximou-se de Gabriel e indagou-lhe com seriedade extrema.
-Quem és tu? De onde vens e o que desejas em nossa aldeia?
O tom de voz lhe era hostil . Gabriel fazendo-lhe um cordial cumprimento falou.
-Meu nome é Gabriel, venho da corte em viagem contínua. Sinto-me cansado e preciso
de um leito onde possa repousar um pouco.
O homem analisou-o atentamente.
-Te vestes como um lorde...
Gabriel envaideceu-se interrompendo-o.
-Sim senhor, venho das terras de meu pai para visitar um grande amigo, faltam-me, no
entanto, ainda dois longos dias de viagem.
O homem extremamente intrigado indagou-lhe:
-Porque viajas só? Onde estão os guerreiros que te acompanham?
O líder daquela aldeia olhava-o, com uma vivacidade impressionante e, por um instante,
Gabriel receou ter entrado naquelas terras, onde era visto como um estranho intruso.
Balançou a cabeça humildemente, mostrando-lhe o arco na montaria enquanto dizia.
-Gosto de viajar só e sinto-me seguro!
-Os lordes são bons guerreiros com as espadas, dizes-me tu que és um lorde arqueiro?
Que ferramenta mais rústica, posso observá-la?
-Sem aguardar resposta e sentindo a proteção dos demais homens da aldeia, o líder se
aproximou do cavalo sem receios e observou atentamente o arco e as flechas.
Para enorme perplexidade de Gabriel o homem exclamou:
-És um salteador! Observo no arco e nas flechas que os mesmos são feitos por tuas
próprias mãos, que percebo serem muito ásperas e rudes. O teu corpo atlético demonstra
servidão, e o cavalo no qual viajas não é de uma raça pura, Quanto ao traje onde o
roubastes?
Gabriel sabia que precisava sair da aldeia imediatamente antes que os demais homens,
que ainda se mantinham em distância significativa, mas já de posse de suas armas de
defesa, o rendessem.
O cavalo lhe estava próximo. Com extrema agilidade alcançou a montaria, cavalgando
velozmente para fora da aldeia. Os homens da aldeia, no entanto já o perseguiam em
trotar ligeiro. Conseguiu esconder-se na densa vegetação e sem sair da montaria,
segurou o arco e lhe colocou uma flecha. Não tardou a que os homens alcançassem a
sua mira, e Gabriel então foi facilmente atingindo-os com flechas rápidas e certeiras.
Quando havia criado tumulto suficiente, finalmente conseguiu fugir em segurança.
O cansaço havia aumentado demasiadamente e a fome era-lhe cada vez mais acentuada.
Não poderia parar para repousar ou procurar alimento, enquanto não se distanciasse
significativamente daquelas terras.
Cavalgou continuamente aquela noite, até o dia clarear e somente então parou para
repousar próximo a um rio.
Quando despertou percebeu que o sol já ia alto, banhou-se tranqüilamente e depois
vasculhou a vegetação procurando algum alimento. Optou mais uma vez em não caçar,
acender uma fogueira seria muito perigoso. Sentindo-se impossibilitado de caçar alimento
mais nutritivo, limitou-se novamente a colher algumas frutas que comeu voraz. Estas
eram insuficientes a nutrir o corpo robusto que possuía, porém determinado a alcançar
brevemente o castelo, resolveu prosseguir viagem.
O repouso o descansara plenamente mas o seu corpo mal alimentado, reclamava em
enfraquecimento excessivo.
No castelo o dia passava rápido e em tranqüilidade. Na longa conversa da noite anterior,
Arthur havia indagado a Ricardo onde Gabriel se ocultaria ao chegar á propriedade. O
médico o havia alertado sobre a gruta próxima ao lago e sobre o armamento que ali se
ocultava.
Temerosos de que Lorde Orlando não houvesse tomado providencias a respeito, tinham
combinado cavalgar até lá no dia imediato.
Arthur finalizara suas obrigações na propriedade e agora se encontrava com Ricardo sem
que ninguém os visse juntos, para irem ao lago.
-Ricardo, compreendo agora que a serva Lana nos será importante aliada.Recebi teu
recado e foi prudente pedires para nos encontrarmos aqui, não seria bom que nos vissem
cavalgando juntos, devemos ser breves para que não sintam nossa falta.
-O médico pensativo meneou a cabeça concordando.
Estás silencioso demais Ricardo...o que houve? Fostes ver Carol?
O médico serio e demasiadamente preocupado falou-lhe.
-Não senhor Arthur. Tão logo amanheceu, Philip me procurou, para que eu auxiliasse
alguns servos doentes.
Arthur deu um sorriso espontâneo.
-Compreendo agora a sua seriedade, não teve o meu amigo o tempo necessário para
visitar nossa amiga Carol e tua Sara.
O médico censurou-lhe.
-Não brinques senhor Arthur, temo por sua segurança.
O jovem nobre, sentindo que algo existia de muita gravidade, puxou os arreios do cavalo
para pará-lo e olhou fixamente para o médico que também havia parado de cavalgar.
-Ricardo, estás intranqüilo porque Gabriel se aproxima?
O semblante do médico fechou-se mais ainda, dizendo-lhe:
-Não senhor Arthur, Gabriel poderá matar somente alguns de nós, a grande moléstia
poderá matar a todos nós!
Arthur apeou da montaria assustado.
-De que falas Ricardo!
O médico também apeando da montaria voltou-se para Arthur explicando-lhe.
-Como lhe disse senhor, fui ao pavilhão dos servos, que fica próximo á área de cultivo.
Philip estava extremamente preocupado com alguns servos adoentados. Chegando lá,
fiquei perplexo ao constatar que adultos, velhos e crianças estão com a mesma
enfermidade, os contei em trinta!
O jovem Arthur compreendia o que Ricardo lhe dizia e indignou-se.
-Porque o capataz nada alertou sobre isto ao senhor meu pai?
-Disse-me Philip que o alertou sobre o problema com os servos, mas que Lorde Orlando
ordenou-lhe que tomasse providências sozinho e não mais o incomodasse com isso.
Quando Philip nos viu chegando de Adredanha sentiu-se aliviado, mas somente
conseguiu falar comigo hoje, porque como sabes ontem passei longo tempo ausente na
casa de Carol.
Arthur caminhava agora inquieto de um lado para o outro.
-O que sentem os enfermos, Ricardo?
O médico explicou-lhe que a enfermidade apresentava febre hostil e ininterrupta,
ocasionando incontrolável problema fecal e violentas crises de vômito que
impossibilitavam aos enfermos se alimentarem, enfraquecendo-os e desidratando-os
numa velocidade impressionante.
Arthur colocou a mão na cabeça desorientado.
-Uma febre! Uma febre que se alastra! A peste, não é Ricardo?
O médico afirmou-lhe que sim, contando-lhe que, segundo o capataz Philip, tudo
começara com um mensageiro que chegara ao castelo, trazendo a confirmação do
noivado de Linia. No dia seguinte, este servo que viera da corte, já ardia na febre
agonizante. Imediatamente os demais servos foram adoecendo. Arthur novamente o
indagou assustado:
-Já isolastes os servos doentes?
-Precisava falar contigo senhor Arthur. É necessário providenciar um outro pavilhão para
abrigar os doentes.
-Retornaremos prontamente ao castelo, Ricardo, Lá poderemos providenciar que se
construa imediatamente um outro abrigo.
Os dois cavalgaram apressadamente rumo ao castelo. Aproximando-se do capataz, Arthur
pediu-lhe que se construísse com enorme rapidez um abrigo fechado próximo ao rio.
-Philip, precisamos deste abrigo pronto ao amanhecer! Chame todos os servos se
necessário for. Corte toda a madeira nobre desta propriedade, se for necessário. Por
nossa vida te peço toda esta urgência!
Philip imediatamente compreendeu o desespero daquele nobre, Era a peste que matava a
todos sem distinção. Assustado, seguiu a atender prontamente suas determinações. Não
receava executá-las, sem falar primeiro com Lorde Orlando, estava ciente de que também
estava agindo para salvar sua própria vida.
O desespero e o empenho se associaram numa só determinação entre todos os servos,
que trabalharam arduamente naquele final de tarde e durante toda a noite. Ao amanhecer,
sob os olhares sempre vigilantes do nobre jovem Arthur e do médico Ricardo, um grande
abrigo, próximo ao rio fora erguido.
Estavam todos demasiadamente cansados pelo contínuo trabalho e pela interminável
noite de vigília. A preocupação no entanto, impunha-lhes que o trabalho não cessasse
naquele novo dia, que clareava intenso em aflições.
Ricardo olhou o nobre, falando-lhe amargurado.
-Nobre Arthur, começarei imediatamente a transferir os servos doentes para este abrigo
que foi construído.
-Não temes tu a peste amigo Ricardo? Poderei ordenar que os servos o façam e que
cuidem eles mesmos dos doentes.
Ricardo olhou-o agradecido, sentia que a preocupação daquele jovem demonstrava a
grande amizade e afeto que já lhe tinha, e que era plenamente recíproca. Respondeu-lhe
humildemente:
-Senhor Arthur, este é o meu trabalho e o farei com imenso amor e dedicação, não temo
ficar doente.
Fez uma longa pausa pensativo e depois prosseguiu:
-No entanto, peço-lhe que designe três servos para auxiliar-me, sinto que precisarei de
ajuda. É importante que somente nós quatro tenhamos contato contínuo com os doentes.
E nenhum de nós se ausentará do abrigo. Agindo assim, tentaremos evitar que a peste se
propague.
O nobre olhou-o, sentindo enorme admiração.
-Providenciarei os servos que me pedes. Pedirei ainda a Philip que providencie limpeza
rigorosa no pavilhão onde os doentes se encontram tão logo os transfiras para o outro
abrigo.
O jovem nobre, tentando lembrar-se de alguma providência que houvesse sido esquecida,
falou ainda:
-Ricardo, preocupo-me com Carol e Sara.
Ricardo olhou-o também apreensivo:
- Seria prudente que lá fosses, Senhor Arthur, e as advertisses que por inúmeros
problemas no castelo, não poderemos visitá-las por longo tempo.
Arthur interrompeu-o, para dar seqüência ao que dizia.
-Farei melhor Ricardo, enviar-lhes-ei uma mensagem com enorme quantidade de
alimentos, mas não comentarei sobre a peste, para que não se preocupem em demasia.
-Pensastes certo, Senhor Arthur, de que adiantaria preocupá-las com nossos problemas?
Lá estarão em proteção, longe do possível contagio.
Arthur perguntou então ao médico se este poderia sugerir-lhe um servo que pudesse
levar-lhes a mensagem e que fosse prestativo e extremamente fiel para ficar a seus
serviços. Teria que ser, ainda, um que não tivesse tido qualquer contagio com os doentes.
O médico prontamente lhe aconselhou o servo Sílvio, pois este raramente se afastava do
celeiro.
O nobre Arthur afastou-se por breves instantes para escrever a mensagem a Carol:
"Querida Carol
Enormes problemas no castelo!
Mando-te mantimentos em abundância porque teremos
Dificuldade em visitar-te por longo tempo.
Dou ordens ao servo Sílvio para que fique a teu serviço.
Quando pudermos apareceremos.
Minha eterna gratidão
Arthur"
Retornou tão logo a escreveu e entregando o pergaminho ao servo Sílvio, que já
providenciara os suprimentos e os arrumava na carroça, falou-lhe:
-Sílvio, peço-te que nada lhes digas a respeito da peste, não desejo preocupá-las.
O servo prestativo, jurou-lhe fidelidade e após guardar habilmente a mensagem em suas
vestes, partiu veloz na direção que lhe fora indicada pelo médico.
Arthur e Ricardo sentiam-se aliviados vendo-o distanciar-se. Sentiam que elas estariam a
salvo da peste.
Ricardo olhou então o jovem nobre, despedindo:
-Nobre Arthur, somente nos veremos finda a peste. Deves pedir a Philip que encaminhe
todos os doentes para o abrigo onde estarei pronto a auxiliá-los como puder. Oremos para
que a peste se restrinja aos trinta.
O médico fez uma pausa e sorrindo forçosamente, continuou:
-Se Gabriel aparecer, terás que cuidar dele sozinho.
Arthur também sorriu aflito, mas tentando mostrar-se confiante.
-Amigo Ricardo, eu o admiro muito!
Ricardo deu-lhe um abraço fraternal sem mais nada dizer-lhe, e afastou-se para transferir
os doentes para o novo abrigo.
Após ver o médico distanciar-se, Arthur caminhou pensativo e demasiadamente
preocupado para o interior daquelas muralhas de seu castelo.
Encontrou o seu pai com o semblante contrariado e demasiadamente nervoso.
-Meu filho, deves-me explicações!
Arthur não compreendendo-lhe a fúria, olhou-o sentindo-se exausto.
- Tão logo despertei, ouvi rumores de que mandastes construir um outro abrigo próximo
ao rio, porque o fizestes?
O jovem caminhou até o salão e sentou-se próximo a Linia dizendo-lhe em
obrigatoriedade.
-Como te sentes, minha irmã Brigith?
Depois olhou Lorde que o acompanhara, também sentando-se diante de si e indagou-lhe:
-O senhor meu pai estava ciente de que haviam doentes na propriedade?
-Lógico que sim,Arthur, sempre temos servos doentes. São fracos e adoecem
constantemente trazendo enorme prejuízo ás lavouras! Porque julgas que deveria me
preocupar em demasia com eles?
Arthur controlou-se na indignação que sentia ás palavras de seu pai. Falou-lhe
calmamente, mas com a voz embargada em revolta, tornando-a rouca.
-Senhor meu pai, são trinta servos que estão doentes!
-Estava ciente disto, Arthur, e ordenei a Philip que os liberasse das tarefas.
-O senhor não compreende a gravidade desta moléstia? A nossa propriedade é invadida
por uma terrível febre. Uma peste, senhor meu pai!
Linia estremeceu com palavras tensas e temerosas de Arthur, porém Lorde Orlando
mantinha-se extremamente calmo exclamando friamente e com imensa altivez.
-São meros servos meu filho.
Arthur não conseguiu mais se controlar na profunda indignação que sentia, levantou-se
falando-lhe ferozmente.
-A peste não tem fronteiras senhor meu pai, não escolhe classes, títulos ou poder
econômico... A peste chega a todos!
Lorde Orlando, também enfurecido com a arrogância de seu filho, levantou-se e
caminhou na direção dele. Em completa superioridade, disse-lhe com naturalidade.
-Somos fortes meu filho. Não somos iguais a esses meros servos, temos sangue nobre! A
peste é somente para essa raça inferior, nunca atingirá a nobreza! Ordenei ao capataz
que me desse explicações do que fazias e ele contou-me que destruístes grande parte de
nossa madeira nobre, e fatigastes nossos servos por uma noite inteira, o que os
impossibilitará de serem completamente produtivos em suas tarefas no cultivo.
Arthur olhou completamente perplexo para aquele velho senhor que estava
irreconhecível. O jovem não mais sentia-se indignado, no seu peito crescia enorme
piedade pelo senhor seu pai e pelos seus valores tão deturpados que só agora ele
percebia.
Sentindo-se imensamente preocupado com a peste e com as inúmeras providencias
ainda a serem tomadas, não perderia tempo a argumentar com aquele nobre imponente e
insensato. Falou-lhe submisso.
- Perdoai-me senhor meu pai pelo que fiz, desesperei-me. O senhor tem completa
razão...precipitei-me! Somos uma raça superior e estamos livres de adoecer. Peço-lhe
licença para me retirar, senhor meu pai.
Arthur não esperou que o pai lhe desse licença e afastou-se imediatamente,saindo
novamente do castelo. Precisava orientar Philip em como deveria agir com os servos.
Pediu-lhe que os orientasse sobre a peste e os seus sintomas e que todo aquele que se
sentisse doente deveria dirigir-se ao abrigo onde o médico Ricardo se encontrava para
auxiliá-los.
Os dias passaram em muita apreensão e inúmeros temores. Philip comunicava
freqüentemente ao nobre Arthur sobre novos casos de peste, até que o fiel capataz
também adoeceu e se encaminhou ao abrigo.
Arthur assumia agora a árdua tarefa de administrar a propriedade. Ainda que narrasse
constantemente a situação a Lorde Orlando, este se mantinha despreocupado e crente de
que a peste não entraria no castelo.
No entanto, os servos que se mantinham fechados no interior daquelas muralhas também
começaram a adoecer.
Arthur desesperava-se controlando os números da doença. Em apenas cinco dias,
setenta servos haviam adoecido e destes, quarenta e oito tinham morrido.
Sabia que o médico Ricardo mantinha-se em trabalho incessante, medicando e auxiliando
como que lhe era possível.
Admirava-o cada vez mais. A sua persistência , dedicação e amor pareciam ser
inesgotáveis. Mas o nobre jovem temia pela saúde daquele bom médico,com a exposição
contínua ao contágio.
Naqueles longos dias, o jovem por vezes refletia nas frias e insensatas palavras de seu
pai "... a nobreza estava á salvo da peste "...
Naquela tarde quente, repentinamente a serva Lana surgiu, tirando-o de seus
pensamentos. Correndo em sua direção, disse-lhe:
-Senhor Arthur, o senhor seu pai arde em febre e delira horrores!
Arthur apressou-se em ir ao castelo e encontrou o velho Lorde se debatendo sobre o piso
do imenso salão.
Linia olhava-o apavorada , encolhida numa poltrona distante. Vendo Arthur disse-lhe em
voz trêmula:
-Nosso pai estava bem, nós conversávamos quando tudo isto começou.
Arthur olhou-a indiferente, e lembrando-se das palavras frias de seu pai falou-lhe:
-É a impiedosa peste, que também ataca a nobreza.
O jovem, sem hesitações e com o auxilio de um servo, amparou o seu pai para levá-lo
para o abrigo dos doentes. Quando já se afastavam do castelo, escutou Linia gritando-lhe
em censura:
-Não creio meu irmão, que o levarás para junto de meros servos... Ele é um Lorde!
Arthur voltou-se olhando-a com imensa frieza e gritou-lhe irônico :
-Desejas abrigá-lo em teu aposento, irmãzinha?
Linia silenciou, correndo para seus aposentos e decidida a não sair mais de lá enquanto a
peste não acabasse. Não poderia adoecer. Não agora que seu noivo Pierre estava
prestes a chegar.
Arthur se aproximava pela primeira vez do abrigo dos doentes. Seu pai delirava em
estado profundamente febril. O médico Ricardo, vendo que se aproximavam exclamou
entristecido:
-Senhor Arthur, o Lorde também adoeceu!
O nobre e o servo entraram no abrigo sem receios, colocando Lorde Orlando deitado no
chão, sobre um dos leitos de feno, que eram improvisados por Ricardo.
O jovem nobre olhou ao redor, vinte dois enfermos agonizavam ali com a febre alta. Olhou
o médico indagando-lhe amedrontado:
-Mais alguma morte, Ricardo?
O médico estava com uma aparência extremamente abatida. A barba crescera-lhe
mostrando que pouco se preocupara consigo mesmo naqueles dias.
O capataz Philip acaba de falecer.
Arthur balançou a cabeça, desolado. Sentia-se impotente diante daquela moléstia e de
suas conseqüências. Ricardo levou-o para fora do abrigo, compreendia-lhe a aflição e a
tristeza. Murmurou, colocando a mão no ombro carinhosamente:
-É a peste Arthur...não podemos evitá-la e nem curá-la! Deus escolhe os seus filhos e os
leva ou os deixa ficar!
Arthur, perplexo com a sua serenidade e sentindo-se imensamente fraco, deixou que
quentes lágrimas rolassem sobre suas faces, indagando-lhe suplicante:
-Ricardo, quando isto acabará?
O médico, que ainda o amparava com a mão no ombro, olhou o céu imensamente azul e
apontando-o disse confiante:
-Nobre Arthur, deixai que Nosso Pai o decida.
Arthur baixou a cabeça inconformado. Sentia enorme temor dentro de si. Tentando conter
as suas lágrimas, falou desesperado.
-Vamos morrer todos.
Ricardo olhou-o piedosamente e resplandecendo em imensa fé em seu Criador, o
consolou:
-Se assim for da vontade de Nosso Pai, também estarei pronto a partir. No entanto nobre
Arthur, enquanto Ele não expressar esta vontade, devemos continuar trabalhando. Deus,
Nosso Pai, continua nos concedendo o corpo apto a cada manhã para que possamos
prosseguir auxiliando, confortando, consolando e amparando os muitos que de nós
precisam. Precisamos saber dar-lhe graças por cada dia que nos é concedido de vida
nobre Arthur.
Arthur escutou silencioso o consolo do médico, sentindo-se envergonhado por sua falta
de fé. As palavras de Ricardo inexplicavelmente lhe transmitiam enorme paz e sentia uma
força restauradora crescer dentro de si.
Olhou para o seu pai enfermo no abrigo, despedindo-se antecipadamente dele num
abraço interior, e agradecendo ao médico com um olhar seguiu para a sua árdua rotina
dia diária, administrando a propriedade e os seus moradores.
Gabriel estava mais próximo do castelo e exultava de felicidade. Finalmente conseguira o
que tanto ambicionava, após longos e árduos dias de viagem penosa e solitária, se
alimentando somente de frutas silvestres.
Estava decidido a procurar a gruta assim que chegasse a propriedade. Lá teria a fartura
das plantações de Lorde Orlando e finalmente poderia caçar e cozinhar. Estaria seguro e
em proteção e poderia ainda, quando desejasse,vigiar a vida no castelo.
Distraído em seus pensamentos, de repente sentiu uma forte vertigem e um arrepio frio
que lhe correu o corpo, porém ignorou a indisposição decidindo cavalgar lentamente, pois
o sol ainda ia alto e desejava chegar a propriedade de Lorde Orlando antes que
escurecesse.
O sol declinava a sua majestade quando Carol pediu a Sara que a auxiliasse a recolher
algumas hortaliças para fazer um caldo substancioso para a ceia. Sílvio saíra cedo para
pegar lenha e ainda não retornara. "Com certeza se distraíra tentando caçar algo",
pensou Carol. Gostara daquele rapaz gentil e tão prestativo, que o nobre Arthur lhe
enviara para auxiliá-las.
Sentia-se imensamente preocupada com a falta de notícias de seu menino Arthur ,
concluindo que os problemas que desconhecia, ainda não tinham acabado. Porém sentiase bem na alegre companhia de Sílvio e Sara.
Recolhiam tranqüilamente as hortaliças, ansiosas por escutar o barulho das rodas da
carroça de Sílvio, que anunciaria a sua chegada.
O sol já se escondera quando na pequena casinha repentinamente escutaram o relinchar
de um cavalo, e caminharam rapidamente a porta para receber Sílvio e indagar-lhe
porque demorara.
Num brilho ainda tênue do dia , Carol percebeu surpreendida , um cavalo solitário próximo
á sua casa. Temerosa, prudentemente pediu a Sara que ali ficasse, enquanto caminhou
na direção deste. Aproximou-se percebendo perplexa que um forte jovem estava deitado
sobre seu dorso.
Carol puxou o cavalo para bem próximo da moradia e sabiamente o fez abaixar-se. Pediu
a ajuda de Sara, e com extrema dificuldade tiraram o desconhecido da montaria.
A nobre senhora observou-o atentamente, sentindo uma enorme emoção, em seu interior,
que não compreendia. Percebeu imediatamente que o desconhecido não era um jovem,
mas um homem forte e de traços finos. Trajava-se elegantemente ainda que a veste
estivesse imensamente suja. Olhou para o cavalo, onde em seu dorso havia um grande
arco e um conjunto de flechas. A nobre senhora concluiu que deveria ser um caçador.
Carol preparava-se para arrastá-lo até o interior de sua casa, quando escutou a voz de
Sílvio acompanhada pelo leve ranger das rodas da carroça.
-Carol... Sara... Estou chegando!
Na noite já escura, somente o avistaram quando este se aproximou, caminhando em sua
direção.
- Trouxe muita lenha e finalmente consegui caçar.
Ao aproximar-se, Sílvio surpreendeu-se vendo o homem imóvel no chão e indagou-lhes
assustado:
-Quem é ele?
Carol pediu-lhe que ajudasse a levá-lo para o interior da casa e assim prontamente Sílvio
a auxiliou.
No interior da casa, com a claridade da lenha que queimava, Carol podia analisar se
possuía algum ferimento.
Aparentemente não havia sido ferido, mas Carol percebeu o imenso calor que emanava
do seu corpo.
-Está ardendo em febre! Ajudai-me Sílvio! Sara vá até o rio e traga água fresca!
Enquanto Sara saiu a pegar a água, Sílvio ajudou Carol a lhe tirar a veste e a banhá-lo
com a pouca água ainda existente no tonel. Realizada a difícil tarefa, o cobriram com uma
manta alva e limpa.
Sara entrou apressada trazendo a água fresca e então Carol pediu-lhe que molhasse um
trapo e o colocasse na face do desconhecido para amenizar-lhe a temperatura. Assim
Sara foi umedecendo o pano e colocando-o serenamente sobre o rosto daquele homem,
enquanto Carol saiu da moradia acompanhada por Sílvio que havia acendido uma tocha
para clarear o caminho.
-Aonde vai Senhora Carol?
Carol caminhava decidida até o cavalo de Gabriel e não lhe respondeu. Aproximando-se
deste verificou os pertences ali existentes, somente o arco e as flechas, dois facões e
uma pequena sacola com algumas frutas. Balbuciou espantada:
Nenhuma veste...nenhum dinheiro...
Sílvio auxiliou-a a tirar o armamento do cavalo e Carol disse-lhe:
-Querido Sílvio, peço-te que escondas este material bem longe desta casa.
O rapaz rapidamente embrenhou-se na mata e demorou certo tempo a voltar.
-Pronto senhora, tudo está bem guardado.
Carol pediu-lhe então que prendesse o cavalo próximo á carroça e lembrou-se:
-Dissestes que caçastes?
Sílvio olhou-a vaidoso.
-Sim, senhora Carol, peguei uma grande lebre.
-Que bom Sílvio. Amanhã a refeição será forte e o viajante se alimentará melhor.
O rapaz, feliz por agradar a senhora Carol, afastou-se para tratar do cavalo. Quando
retornava á casa,percebeu que o vento começava a soprar diferente e entrou dizendolhes:
-Teremos tempestade.
Carol olhou-o apreensiva, mas sempre com o mesmo semblante sereno e sorridente.
-Como sabes, Sílvio?
Sílvio olhou-as brincando:
-O vento me disse, senhora.
Ambos riram descontraidamente. Sara olhou-os séria e afirmou-lhes:
-Serão inúmeras tempestades, senhora Carol. Peça a Sílvio que traga toda a lenha para
dentro e que solte os cavalos, para que possam se abrigar sozinhos.
Carol surpreendida com a seriedade de Sara ao falar-lhes isto, indagou-lhe:
-Como sabes disto,Sara?
A menina olhou-a demonstrando imensa paz e sinceridade e explicou-lhe:
-Meu pai me disse.
Carol lembrou-se imediatamente que o médico Ricardo havia contado a estória de Linia e
Job, os seus pais. Por isto sabia que o seu pai havia falecido repentinamente num mal do
coração.
Para não contrariá-la, ainda que não acreditasse no que dizia, pediu a Sílvio que o
fizesse. Quando Sílvio terminou a tarefa de transferir a lenha da carroça para a casa, já a
noite ia alta. Banhou-se no rio e soltou os cavalos. Entrou na casa sorridente:
-Terminei a tarefa senhora Carol, mas creio que o vento me contou uma mentira, nenhum
sinal de tempestade. Agora a noite está bonita e demasiadamente serena.
Carol pediu a Sílvio que se alimentasse e foi substituir Sara na tarefa de molhar a fronte
do desconhecido, dizendo-lhe também:
- Vai alimentar-te, Sara.
A menina afastou-se, cedendo o lugar a Carol, e foi servir-se também do caldo que ainda
fervia na lenha. Olhou Sílvio e sentando-se próximo deste disse-lhe:
-O vento não mentiu...serão inúmeras tempestades.
Sílvio olhou-a curioso por seu semblante sério, mas alimentou-se silencioso. Após se
alimentarem, Sara deitou-se em um leito improvisado no chão e assim também o fez
Sílvio.
Carol ficou mais algumas horas auxiliando o desconhecido,e como este dormia sereno em
sua cama, resolveu também dormir. Improvisou um leito para si e deitou-se pensativa.
Quase amanhecia quando Arthur foi despertado por um servo.
-Senhor Arthur, acordai!
O jovem nobre cambaleou sonolento, observando que ainda estava escuro. "Que teria
acontecido!" pensou abrindo a porta assustado:
-O que acontece?
O servo estava sério e apreensivo:
-O médico Ricardo mandou chamá-lo!
Arthur saiu do aposento rapidamente. Confiava no amigo Ricardo e sabia que não
mandaria chamá-lo se não estivesse acontecendo algo. Breve chegava ao abrigo dos
doentes e encontrou Ricardo agoniado. O jovem prontificou-se em falar.
-Não precisas dizer-me Ricardo...meu pai faleceu!
O médico Ricardo concordou com a cabeça, e Arthur deixou-se emocionar em pranto
sentido. Ricardo colocou-lhe a mão no ombro tentando reconfortá-lo e disse-lhe:
-Senhor Arthur, temo que não tenhas tempo para a dor.
Arthur olhou-o secando as lágrimas e então Ricardo apontou-lhe o céu ainda enegrecido
pela noite.
O nobre compreendeu o alerta do médico, percebendo que pelo horário que era, já devia
estar claro!
Nuvens grotescas se acomodavam sobre a propriedade e um forte assobio se fazia ouvir
bem ao longe. Exclamou:
-Uma tempestade!
Ricardo então lhe disse que o abrigo não suportaria os fortes ventos. Arthur sem
hesitação, procurou os servos do castelo para que estes auxiliassem a levar os doentes
para o interior deste. Cavalgou veloz alertando os servos da propriedade para que
recolhessem animais e mantimentos e também para lá fossem. No interior do castelo, as
muralhas os protegeriam.
No enorme pátio interno do castelo foram recolhidos os animais. No pavilhão interno dos
servos, acomodaram-se os doentes. Os servos sadios apertavam-se em todos os cantos
e corredores da imponente moradia.
-Lorde Arthur falou-lhes:
-Enterrarei meu pai, lorde Orlando, e virei para junto de todos vós.
Impressionantemente todos os servos o acompanharam, ainda que os ventos já se
tornassem assustadores. Somente Linia não compareceu.
A cerimônia foi breve e fria, na forte chuva que começava a cair. O assobio aumentava e
parecia cada vez mais próximo.
Todos já se encontravam no interior do castelo quando o vento chegou impiedoso,
arrancando tudo o que encontrava pela frente.
Ricardo que se encontrava no imenso salão com Lorde Arthur, visualizava tudo das
janelas, que inúmeras vezes quebravam-se com a força terrível daquele vento. Arthur
sentado em uma poltrona disse angustiado:
-Preocupo-me com Carol e Sara.
O médico também temia pela segurança delas, mas confortou-o:
-Deus as protegerá.
Lorde Arthur sentia-se cada vez mais intrigado com a sua fé e balbuciou desanimado:
-Primeiro a peste...agora uma tempestade nunca vista antes...
Ricardo aproximou-se dizendo-lhe:
-Tenha fé, senhor Arthur, creia que a tempestade veio para levar a peste para longe!
-Ricardo, a peste está aqui no interior do castelo, os enfermos estão agora junto a nós...
O médico olhou-o admirado:
-Não crês no Criador? Não ficastes doente! Também não o fiquei! Tenha fé, precisas tê-la!
Agora tu és Lorde, o dono desta propriedade, o senhor destes servos. Eles confiam em ti.
Acompanharam-te no sepultamento de teu pai, ainda que temessem os ventos...faz-te
forte, Lorde Arthur! Precisas sê-lo!
Então, novamente, o médico aproximou-se da janela para ver a tempestade. O vento
rodava, fazendo um enorme funil, que tragava tudo por onde passava. Não tardou que o
abrigo tão arduamente construído sumisse em seu interior. O médico orava para que
aquele vento medonho não passasse em cima do castelo, os animais no pátio seriam
carregados com certeza ou arremessados contra as muralhas.
O tempo passou, mas a constância da tempestade continuava ameaçadora. Trovões
assustadores estremeciam as muralhas enquanto inúmeros relâmpagos clareavam a
escuridão. Pelo horário o sol já deveria ir alto, mas naquela propriedade o breu ainda era
completo.
O médico sentiu-se animado. O forte vento que assobiava se fora, e este com certeza era
o mais perigoso.
Lorde Arthur encorajou-se e saiu a ver como estavam os servos. Os encontrou em todos
os cantos do castelo, em silêncio e recolhidos numa prece íntima.
Foi até á cozinha do castelo e pediu que se fizesse refeição em abundância para todos.
O dia se mantinha-se em plena escuridão. Os fortes ventos haviam arrastado parte do
telheiro, deixando a pequena casa descoberta em grande maioria e a chuva persistia em
cair fortemente. Os ventos uivantes entravam ameaçadores e os três tentavam protegerse com as mantas umedecidas. Sentiam imenso frio.
Podiam escutar o barulho estrondoso do rio que passava cada vez mais veloz próximo ao
lar, assim como os trovões e os relâmpagos eram igualmente assustadores.
Carol tentava se manter serena mas a aflição era inevitável. Pouco tinham conseguido
dormir, A tempestade os surpreendera, despertando-os num violento assobio no qual
assustadoramente uma parte do telhado foi facilmente arrancado por um forte golpe de
vento. Rapidamente e ainda sonolentos, haviam conseguido arrastar alguns moveis para
a parte ainda coberta da casa e tinham tentado esconder alguma lenha para que não se
molhasse, mas fora em vão.
Sílvio e Sara estavam próximos dela, silenciosos e encolhidos, e oravam fervorosamente.
O desconhecido mantinha-se impressionantemente inconsciente.
Carol repentinamente lembrou-se do que Sara lhes dissera: "seriam inúmeras
tempestades"... Se aquela menina estivesse certa, por algum mistério que não conseguia
compreender, e se uma tempestade já havia feito tanto estrago, como suportariam as
outras? Temerosa balbuciou trêmula:
-Sara, serão inúmeras tempestades?
A menina mantinha-se serena encolhida em sua manta , porém disse-lhe:
- Sim senhora Carol. Amanhã chegarão as tempestades de nevasca!
A nobre senhora, de cabelo grisalho desejava não acreditar no que ouvia, mas sentia que
devia fazê-lo. Indagou-lhe novamente:
-Sara, não poderemos ficar aqui. Sabes o que devemos fazer ?
Sara olhou-a desconfiada e perguntou-lhe meigamente:
-A senhora confia em mim? Acreditará no que lhe digo?
Carol olhou para Sílvio e depois olhou para Sara ternamente. Não sabia o que lhe
responder. A menina prosseguiu:
-A casa não ficará impune á tempestade, o rio a carregará consigo!
Os olhos de Carol faiscavam o imenso temor que sentia com as suas palavras.
-Meu pai Job diz que nos levará a lugar seguro.
Carol rapidamente observou a casa completamente inundada pela água da chuva, olhou
a lenha umedecida, visualizou a grande abertura no telhado, por onde os fortes ventos
entravam assustadoramente....Todos estavam gelados e sentiam fome.
Escutou o rio que mais e mais se aproximava. Pensou "Sara estava certa, precisavam sair
dali, mas para onde?" Olhou a menina suplicante e esta falou-lhes confiante.
- Poderão confiar em meu pai Job!
Carol e Sílvio não hesitariam em seguir os seus conselhos misteriosos, sentiam confiança
naquela menina meiga e de olhar puro. Estavam certos de que ela seria incapaz de
brincar, num momento terrível como aquele que viviam, ainda que não acreditassem na
presença de seu pai ali .
Carol pensou preocupada: "Mas como transportar o desconhecido?". Sara parecendo
adivinhar-lhe o pensamento, respondeu prontamente:
- Deixem-no, não merece viver.
A senhora olhou-a perplexa e não se contendo indagou-lhe indignada:
- Porque dizes isto Sara, o conheces?
A menina então encolheu os ombros, e com o semblante enternecido por haver sido
repreendida, aproximou-se de Carol dizendo-lhe:
-Não senhora Carol... Mas a senhora o conhece.
Carol olhou o desconhecido analisando-o minuciosamente e depois de alguns instantes
disse convicta.
-Não o conheço este homem. Nunca o vi!
Sara então abraçou-a fortemente sussurrando-lhe :
-É o filho que gerastes Carol...é teu filho Gabriel.
Carol novamente sentou-se completamente atordoada pela emoção. Somente o velho
Manco e a nobre Joane sabiam disto!
O pranto desceu quente aquecendo-lhe a face fria. Sara abraçando-a , também comoveuse em voz trêmula:
-Meu pai Job não deseja deixá-la triste, mas é o seu filho Gabriel que aqui está. Meu pai
deseja contar-lhe uma pequena estória da sua vida.
Então Sara narrou a vida de Gabriel pausada e resumidamente, com todos os males que
ele fizera. Carol estava completamente abalada com a narração da estória daquele
desconhecido, que uma menina inexplicavelmente ciente de seu passado, dizia ser o seu
filho. Sendo ainda abraçada por Sara, vinha-lhe uma sensação agradável e indescritível
de paz que a reconfortava e a sua imensa dor lhe era de alguma forma amenizada.
Balbuciou ainda em pranto triste, sentindo-se imensamente confusa com tudo o que ali
acontecia.
-Porque diz teu pai Job que ele não merece viver?
Sara silenciou demoradamente e respondeu-lhe:
-Diz que ele fez imenso mal a todos, senhora Carol.
Carol olhou-a afetuosamente, afagando-lhe os cabelos enquanto as lágrimas ainda lhe
rolavam nas faces. Balbuciou trêmula, olhando ao redor, como se desejasse ver e
dialogar diretamente com quem auxiliava Sara em tudo o que ela lhe dizia.
-Se Deus, que é Nosso Pai, ainda não o julgou e condenou, se apesar de todas as suas
imperfeições e erros o mantém vivo e apto, concedendo-lhe contínuos amanheceres,
porque deverei eu julgá-lo e condená-lo ?
Sara respondeu-lhe, secando-lhe as lágrimas com suas mãozinhas:.
-O meu pai teme que ele nos faça mal, só está aqui para nos proteger.
Carol, lembrando-se do arco , das flechas e dos facões, disse novamente como se falasse
com alguém que estava ali e que não podia perceber:
-Não terá como nos fazer mal.
Sílvio estava imensamente atônito com tudo o que ali acontecia. Ambas dialogavam com
alguém que não mais existia. Sara contara-lhe que seu pai Job havia morrido. Mantinhase perplexo e silencioso sem compreender corretamente o que estava acontecendo ali.
Recordava-se do servo Gabriel e uma das partes da estória que Sara ali narrara ele
conhecia, mas nada falou.
V Parte - No Hemisfério do Arrependimento
Repentinamente, o desconhecido começou a recuperar a consciência.Abriu os olhos meio
confuso e percebendo aquela senhora, Sara e Sílvio observando-o atentamente, indagou
com dificuldade:
-Onde estou? Está fazendo muito frio! Estamos todos molhados.
Carol ainda não estava certa de quem ele realmente era, mas o amor intenso que existe
em todas as mães que desejam proteger os seus filhos se expandia em seu coração,
testemunhando cada palavra que ouvira de Sara. E, apesar de suas imensas falhas e
crimes, desejava auxiliá-lo. Falou-lhe controlando a profunda emoção que sentia em seu
interior:
-Senhor, estamos no meio de uma tempestade e os fortes ventos levaram o telhado de
minha casa. Precisamos sair daqui e abrigar-nos em lugar mais seguro. Consegues
andar?
O desconhecido levantou-se, sentando-se na cama, ainda coberto pela manta
umedecida . Sentia-se bem. Ele não conseguia recordar-se de nada.
-Para onde iremos senhora? Onde estão as minhas roupas? Preciso vestir-me.
Carol lembrou-se do traje que não tivera tempo de lavar, pegou-o pedindo-lhe que se
vestisse rapidamente, eles o esperariam do lado de fora.
O desconhecido prontamente se vestiu, saiu da pequena casa e acompanhou-as sob a
chuva constantes e os ventos imensamente fortes.
Carol observou que o leito do rio avançara para muito perto de sua casa, e realmente não
tardaria a levá-la. Sentiu-se entristecida, tanto tempo ali ficara em proteção. Sara disselhes:
-Sejam rápidos e me acompanhem!
A noite descia agora veloz e as pesadas nuvens escuras faziam ainda maior a escuridão.
Andaram aproximadamente duas horas consecutivas até que Sara ofegante, disse-lhes
eufórica:
-É aqui que ficaremos.
Carol olhou incrédula para uma enorme abertura na face de um enorme rochedo.
-Podemos entrar. Meu pai diz que aqui ficaremos aquecidos na nevasca.
Carol disse-lhe assustada:
-Não temos fogo e deve estar escura, deve ter bichos!
Sílvio disse que voltaria á casa para pegar a lenha mas Carol não o consentiu. O tempo
piorou em demasia e o frio ficou insuportável. Impelidos por seus instintos, entraram
rapidamente, recolhendo-se na gruta imensamente escura mas confortavelmente quente.
Não conseguiam ver-se, tamanha era a escuridão, e impulsivamente deram-se as mãos.
Sara falou-lhes então com a voz embargada de receio, que ecoou naquele vão
mostrando-lhes que este era extenso.
-Meu pai precisava ir, não está mais aqui.
Carol sentiu a mão de Sara extremamente fria e trêmula e, ainda que também tivesse
múltiplos receios, sabia que era necessário manter-se calma e passar-lhes segurança.
Falou-lhes:
- Devemos tatear o solo e acomodar-nos, será uma longa noite.
Sílvio balbuciou nervoso.
-Nada vejo, sinto-me completamente cego nesta escuridão absoluta, deve ter cobras
neste recinto fechado.
Carol desesperada omitiu seu próprio pânico para falar-lhe.
-Também nada vejo Sílvio, vamos sentar-nos todos juntos, Deus nos protegerá!
O desconhecido de mãos dadas com Sara e Sílvio também sentou-se e indagou confuso:
-Nada compreendo , sinto-me confuso. Onde está o pai dessa criança que não vi em
momento algum no trajeto até aqui? Com quem falava afinal? Diz que se foi, mas pareceme que em momento algum esteve conosco.
Carol, também muito impressionada com tudo, tentou tranqüilizar o desconhecido
dizendo-lhe:
-Senhor, precisamos ter paciência e sermos tolerantes uns com os outros. Somente o
tempo nos explicará inúmeros acontecimentos, o importante é que finalmente estamos
abrigados, graças ao Bom Pai . Aqui está quente e podemos ouvir que o vento aumenta lá
fora e, conseqüentemente o frio.
Dizendo isto Carol lembrou-se que nada haviam comido naquele dia. Procurando trazer
tranqüilidade a todos e a si mesma, começou a cantar baixinho e todos silenciaram
escutando-a. Havia se passado algum tempo quando Carol indagou ao desconhecido:
-Como se chama o senhor?
O desconhecido tentava clarear os seus pensamentos. As imagens que lhe vinham á
mente, clareando-o no recinto imensamente escuro, mostravam-no cavalgando
imponente, mas repentinamente o cavalo assustara-se com algo e com um pinote o
jogara no chão. Lembrava-se ainda que batera violentamente a cabeça no chão, mas
levantara-se rapidamente, percebendo a enorme cobra que assustara o cavalo. Montara
agilmente se afastando dela...nada mais conseguia se lembrar. Disse-lhes:
-Não sei como me chamo, não lembro quem sou!
O desconhecido contou-lhes então de tudo o que havia se lembrado e Carol também lhe
explicou como chegara á sua casa desacordado e com muita febre.
- Sinto que a cabeça me dói violentamente e passando a mão, percebo enorme inchaço.
Carol e Sílvio haviam o examinado, mas não tinham verificado-lhe a cabeça. Carol
interrompeu o silêncio.
-Trazias um imenso arco, flechas , facões e uma pequena bolsa com algumas frutas
silvestres, isto te faz lembrar-se de alguma coisa?
O desconhecido fez enorme pausa tentando recordar-se de algo mais, mas as cenas que
lhe vinham á memória eram sempre as mesmas - a queda violenta que tivera em função
da cobra que se atravessara no seu caminho.
-Não senhora, somente as imagens da queda se repetem.
-Com certeza lembrarás amanhã...precisamos tentar repousar um pouco, disse Carol a
todos, sentindo-se mais calma e mais segura. Todos silenciaram e, ainda que o medo da
escuridão fosse imenso, escutando possíveis morcegos inquietos sobre suas cabeças e
grunhidos de bichos no recinto, conseguiram repousar, exaustos pelo enorme cansaço.
A tempestade de neve cobria as muralhas do castelo de enorme veste esbranquiçada.
Ventos ainda muito fortes invadiam o pátio interno e debatiam-se violentamente contra os
vitrais ainda intactos. Os servos, acatando instruções de Lorde Arthur, haviam ocupado os
imensos salões luxuosos do castelo e lá estavam aquecidos e protegidos da contínua
tempestade. Também os animais foram levados para áreas cobertas nas quais se
apertavam, mas se manteriam vivos .
Ricardo fora para o pavilhão dos doentes e percebia que eles morriam gradativamente.
Não havia um só um enfermo que escapasse da morte. O médico, ainda que se sentisse
impotente sem poder lhes curar, animava-se porque mais ninguém tinha adoecido depois
das fortes chuvas e ventos. Somente dez servos ainda se encontravam ali.
Ricardo,extremamente benevolente e caridoso, auxiliava-os continuamente em suas
necessidades. Ainda que soubesse, que aqueles enfermos não sobreviveriam, não
deixava que lhes faltasse amparo, conforto e solidariedade.
Lana freqüentemente levava as refeições para Linia, que se recusava a sair do seu
aposento enquanto o castelo fosse abrigo para empesteados e servos. Perguntava
curiosa á sua serva:
-O que faz meu irmão Arthur?
Lana contendo-se na imensa admiração que sentia por Arthur, respondia-lhe humilde:
-O seu jovem irmão ampara os servos consolando-os na perda de familiares ou amigos
doentes, doa-lhes mantas para que se aqueçam no imenso frio que está fazendo,
alimenta-os bem para se manterem fortes, distrai as crianças assustadas contando-lhes
estórias divertidas... Foram acesas as imensas lareiras nos salões e a claridade e a paz
que reina ali é inexplicável...
Linia, indignada, pensava revoltada nas palavras de Lana, a respeito de seu irmão. "Trata
os servos como irmãos e me despreza, ignora que lhe sou sangue!" Enfurecida ordenou
que Lana saísse de seus aposentos e a serva sentiu-se extremamente feliz ao abandonar
aquele recinto de frieza e poder retornar ao enorme calor humano que reinava no piso
inferior.
Lorde Arthur caminhou na direção do pavilhão dos servos, onde estavam os doentes, e
encontrou Ricardo aquecendo-os e dando-lhes toda a assistência. Implorou-lhe num
sussurro:
-Ricardo preciso de teu auxilio, conversai um pouco comigo. Sinto-me só e frágil.
O médico caminhou na direção do nobre ,tão jovem ainda, dizendo-lhe:
-Olhai ao teu redor Lorde Arthur, não estás só, inúmeros amigos abrigas em teu lar, te
terão fidelidade eterna.
Colocando-lhe a mão no ombro, carinhosamente como sempre o fazia, continuou:
-Não és frágil, és um cavaleiro forte e um guerreiro decidido. Serás um importante nobre
para este povo. Inúmeros lordes possuem fortunas imensas, títulos importantes, porte
elegante, raça pura, mas falta-lhes a essência!
Arthur ouvia-o atento sentindo uma força revitalizante animá-lo.
-Lhes falta a nobreza de caráter. A nobreza do respeito e do amor, para com todos
aqueles que os auxiliam a arar, adubar e cultivar as suas terras, inúmeras vezes com o
incessante suor de seus corpos e a dor de suas mãos. Falta-lhes a nobreza da Fé!
O Lorde, comovido, abraçou-o humildemente, deixando-se envolver por pranto triste.
Falou com dificuldade:
-Não tenho mais família...todos morreram.
Ricardo afastou-se firmemente e olhando-o fixamente, secou-lhe as lágrimas dizendo:
-Olhai ao redor lorde Arthur e perceberás que uma enorme família te cerca. Como podes
dizer-me que não mais a possuis e que estás só? Toda a tua propriedade está sendo
destruída pelas tempestades, haverá muito trabalho pela frente, muito solo a arar, adubar
e plantar novamente. Precisarás tudo reconstruir! Poderias ser meu filho e humildemente
digo-te, não olhes para o que perdestes em tua vida. Tal qual as águas de um rio, a vida
segue seu rumo, não te lamentes pelo que não terá mais retorno... Senhor Arthur, olhai
para cada novo dia que o Nosso Pai te concede e vive-o em plenitude como se fosse o
ultimo!
Novamente, o Lorde envergonhava-se de sua fraqueza. Secando as próprias lágrimas
agradeceu ao médico com um sorriso cândido e caminhou á cozinha para ver como
estavam as providencias para alimentar os duzentos servos que ali estavam alojados.
Compreendera, nas palavras determinadas do médico, que aquela lhe era agora a grande
família.
Setenta e nove servos tinham morrido na terrível peste e, com a morte de seu pai, Lorde
Orlando, chegara ao cruel numero de oitenta vitimas fatais da doença. A maior parte
destes em fase adulta, pais e mães de famílias que deixavam os seus filhos órfãos e
desamparados, tal qual ele o era agora!
Após verificar o andamento da imensa refeição, Lorde Arthur caminhou determinado ao
aposento de Linia. Entrou sem cerimônias e após fechar a pesada porta, sentou-se
tranqüilamente em seu leito. Linia, que estava próxima a grande janela, olhou-o intrigada
e ali manteve-se silenciosa. Arthur falou-lhe sereno.
-A ultima vez que conversamos dei-te dez dias para que te afastasses de nosso pai e de
nossa propriedade.Passaram-se os dez dias. E tantas coisas imprevisíveis aconteceram...
Arthur, após uma breve pausa, entristecido, continuou no que precisava dizer-lhe,
olhando-a sempre fixamente.
-Nosso pai faleceu e como único herdeiro de suas propriedades resolvi reconhecer-te
como minha irmã. Agora sou Lorde Arthur e não te deixarei ao desamparo e nem te
excluirei do direito que possuis, sendo uma nobre.
Linia, perplexa com a grande mudança de seu irmão, não conseguia conter-se e sorriu
satisfeita. Arthur prosseguiu, ignorando-lhe a satisfação:
- No entanto Linia, deverás assumir a tua identidade como filha da serva Amância e do
nobre Orlando.
A fisionomia da jovem transformara-se repentinamente, se tornando séria e contrariada.
-Deverás reconhecer-te filha bastarda e fruto de uma relação promiscua, mas pelo que
me foi narrada por meu pai, relação extremosa em afeto recíproco.
Arthur levantou-se e caminhando em sua direção continuou falando-lhe firme mas
afetuosamente.
-Deverás assumir quem és e, como tal, a conseqüente responsabilidade da maternidade.
Arthur havia se aproximado o suficiente para olhar profundamente nos olhos de sua irmã.
Percebia-lhe a contrariedade. Voltou novamente a sentar-se no leito.
-Sara, a tua filha, está te aguardando não muito distante daqui, Assim que terminarem as
tempestades irei buscá-la.
O nobre parou para respirar profundamente e aproveitou para observar a -juventude e a
beleza física de Linia.
-Estou ciente que és a viúva de Job,um bom e humilde servo que fazia qualquer coisa
para te ver feliz e que, em extrema infelicidade imposta por ti, não resistiu, morrendo
repentinamente com uma parada de seu coração. Deverás, Linia, assumir também a
situação de viúva, e se vieres a contrair matrimônio com alguém, este deverá estar ciente
de teu casamento anterior e da filha que possuis.
Arthur novamente levantou-se e caminhou até á porta para sair, mas voltando-se finalizou.
-Estas são as minhas condições para que permaneças neste castelo, usufruindo do luxo,
da riqueza, do titulo de nobreza. Terás tempo para decidir se o desejas. Quando
terminarem as tempestades, virei saber a tua resposta.
Arthur saiu do aposento sentindo-se extremamente sereno e forte.
Os dias passaram em inúmeras tempestades de neve. Ocultos no recinto da enorme
gruta, Sílvio e o desconhecido passavam os dias a vasculhar o interior daquele recinto e
por vezes saiam na neve para pegar alguma lenha ou providenciar algo para se
alimentarem. Haviam descoberto no interior da gruta um córrego subterrâneo do qual
tiravam água para beber.
Na claridade que lhes chegava dos dias, podiam analisar-se sujos. Sentiam-se
extremamente enfraquecidos, os semblantes emagrecidos e abatidos. O alimento era
escasso e rigorosamente repartido entre todos. Mas as noites novamente chegavam-lhes
imensamente escuras e,ainda que conseguissem fazer uma pequena fogueira, esta lhes
iluminava breve tempo, por que a lenha era pouca e era necessário a cozinhar os
pequenos animais que por vezes conseguiam pegar. Tão logo esta se consumia,
novamente ficavam completamente cegos ao que lhes acontecia ao redor.
O desconhecido não conseguia se lembrar de sua vida e auxiliava a todos
continuamente , sempre solidário e prestativo.
Naquela manhã, Sara havia acordado imensamente febril e, em movimentos
involuntários convulsivos, delirava. Carol observou-a preocupada e não tardou a perceber
grande inchaço em seu tornozelo, mostrando que havia sido mordida por algum bicho.
Também viu, pela tonalidade arroxeada do ferimento, que o ataque devia ter aquela noite.
Desesperou-se, temendo a sua sobrevivência, pois desconheciam a peçonha que lhe
fazia piorar a cada instante que passava.
O desconhecido, também muito apreensivo, ao ver a meiga menina naquele estado
enfermo, carregou-a nos braços delicadamente, tirando-a da gruta, acompanhado por
Carol e Sílvio, que o observavam atentamente.
Estava ardendo em febre.Deitou-a na neve para refrescar-lhe o corpo e passou o gelo
levemente em sua face. Fazia-o delicadamente, para não queimar-lhe a pele, mas
somente refrescá-la.
Depois cuidadosamente analisou-lhe o tornozelo e sentiu-se mais apreensivo em
perceber que o inchaço e o tom arroxeado já se alastrava para a perna.
Sem conseguir compreender de que parte de sua vida vinha-lhe a experiência em
medicar, sentia que sabia fazê-lo!
Estava ciente de que o veneno se alastrava. Precisava rapidamente tirá-lo! Procurou
rapidamente na gruta uma pedra pequena e a afiou com extrema agilidade em outra
pedra, fazendo-lhe uma face cortante. Carol observava-lhe o trabalho primoroso "tal qual
devia confeccionar as flechas".
Próximo á menina novamente, o desconhecido fez-lhe um pequeno corte no tornozelo e
sob os olhares assustados de Carol e Sílvio, colocou-se a sugar o ferimento, e a cuspir
continuamente aquele sangue venenoso.
Durante longo tempo, o desconhecido se concentrou incansavelmente nesta tarefa.
Depois carregou a menina inconsciente de volta á gruta. Tirou o seu traje, ficando
somente com a canga, e a cobriu carinhosamente com ele.
Olhou para Carol e pediu-lhe que colocasse gelo freqüentemente sobre o ferimento ainda
arroxeado para que não mais sangrasse. Isso auxiliaria a diminuir também o inchaço.
As crises convulsivas tinham cessado mas a febre ainda era extremamente alta.
Enquanto Carol auxiliava Sara, o desconhecido e Sílvio saíram na neve a procurar mais
lenha. Sabiam que não poderiam ficar novamente no escuro absoluto da gruta. O bicho
desconhecido poderia voltar, e o fogo o afastaria. Ainda que sentisse imenso frio, somente
revestido da canga, o desconhecido ia e vinha da neve, trazendo inúmeros gravetos que
eram empilhados na gruta por Sílvio.
Já o dia findava quando o desconhecido finalmente conseguiu fazer uma fogueira e ali
aqueceu o seu corpo completamente gelado. Após sentir-se melhor, colocou algumas
raízes que colhera sob a neve para cozinharem no fogo e ofereceu a Carol e Sílvio para
que comessem.
A nobre senhora olhou o desconhecido que amassava um pouco da raiz , entre os seus
dedos e colocava o alimento delicadamente na boca de Sara , ciente de que mesmo que
a menina se mantivesse inconsciente, o engoliria com a salivação. Em sua mente Carol
recordava-se dos inúmeros atos bárbaros e inconseqüentes que Sara havia narrado da
vida daquele homem. Se realmente tivesse feito tanto mal, aquele desconhecido ali
mostrava que, em sua essência mais profunda, todo o ser humano possui a verdadeira
fraternidade.
Concluída a tarefa de alimentar Sara, somente então o desconhecido alimentou-se,
dizendo para Carol e Sílvio que poderiam repousar tranqüilos, que ele ficaria de vigília
para que o fogo não se apagasse. Carol e Sílvio prontamente o fizeram, exaustos pela
demasiada fraqueza orgânica.
A noite já ia bem alta quando o desconhecido, sempre vigilante, percebeu que a fogueira
principiava em querer apagar-se e levantou-se a pegar alguns gravetos. Perplexo,
observou na pouca claridade existente que uma enorme aranha negra e peluda se
aproximava do rosto de Carol, que dormia profundamente. Com uma mira impressionante
e incrivelmente certeira, matou-a com uma pedra roliça que agilmente havia pegado no
chão.
Carol despertou assustada com a pedra que resvalara somente um pouco em si, sem no
entanto feri-la.
Olharam incrédulos para o grande bicho peçonhento e concluíram que ele deveria ter
mordido Sara. Ela dormia serena.
Numa bela manhã o sol surgiu mostrando sua plena imponência. Após longos seis dias
de tempestades destruidoras, os servos finalmente saiam sorridentes e eufóricos do
castelo, dando graças pela vida que brilhava intensa. Somente um enfermo ainda sofria
com a terrível peste, os demais tinham morrido naqueles intermináveis dias. Ninguém
mais adoecera desde o inicio daquelas contínuas tempestades.
Lorde Arthur saiu também do castelo, respirando profundamente o ar ainda imensamente
frio, mas sentindo-se bem com o frescor límpido.
Ricardo acompanhava-o, sentindo os raios solares como uma enorme benção que
emanava de um sol grandioso.
-Senhor lorde Arthur, demos graças ao Nosso Pai!
Dizendo isto, o médico ajoelhou-se humildemente sobre a neve, reverenciando o Criador.
Inúmeros servos repetiam o mesmo gesto de agradecimento pela vida e o nobre,
vislumbrando aquela impressionante imagem de fé, extremamente emocionado, deixouse cair também de joelhos em íntima prece.
Passada a emoção, Lorde Arthur e Ricardo cavalgaram para ver os estragos na
propriedade. A neve ainda se espalhava grotescamente por todos os cantos, as
plantações tinham sido inteiramente destruídas, as cercas dos pastos arrancadas, a
moradia dos servos destelhada, as arvores frutíferas derrubadas, os imensos celeiros
apresentavam a madeira contorcida violentamente pela fúria dos ventos, tudo teria que
ser reconstruído!
Cavalgaram até o lago que ainda se mantinha uma enorme tina de gelo e subitamente
lembraram-se de Gabriel, de quem haviam se esquecido naqueles dias.
Ricardo apeou da montaria e caminhou até á gruta sendo acompanhado pelo nobre.
Estava deserta e sem sinais aparentes de que alguém ali houvesse se escondido nas
tempestades. O médico mostrou ao jovem o nome de sua irmã, que fora gravado na
pedra. Depois mostrou-lhe onde encontraria os arcos e flechas. Arthur encontrou-os ali
ainda guardados. Decidiu levá-los para o castelo, e Ricardo auxiliou
Retornando ao castelo Arthur percebeu que os servos ainda aguardavam suas ordens.
Pediu-lhes então que fossem consertar sua enorme moradia. E quando esta estivesse
pronta deveriam consertar os pastos para nestes libertar os animais ainda presos no
castelo. Depois era importante a construção dos celeiros e a organização dos pomares.
Prontamente os servos foram se dispersando seguindo as orientações de seu senhor.
Lorde Arthur dissera-lhes ainda que não designaria nenhum capataz, deixava-os livres a
agir.
O jovem olhou Ricardo apreensivo.
-Vamos imediatamente á casa de Carol.
Ambos novamente montaram e seguiram rumo á moradia de Carol. O jovem Arthur
sentindo-se muito feliz, ia lhe explanando.
-Vou trazê-las conosco para residirem no castelo e tu, meu bom Ricardo, serás
condecorado com um titulo e uma parte de minhas terras. A partir de hoje não serás mais
meu servo, serás o que sempre fostes, o meu nobre amigo e mentor.
Arthur, sorridente, prosseguiu.
-Até que construas a tua moradia, residirás no castelo, no aposento que era de Anderson.
Carol se alojará no aposento de minha doce mãe Joane, pois em verdade esta nobre
senhora, sempre me foi uma verdadeira mãe. Sara se alojará num aposento ao lado do
aposento de Linia. Seremos todos uma só família!
Ricardo olhou-o, humildemente agradecido, e ambos prosseguiram na cavalgada veloz e
silenciosa. Arthur desejava rever Carol bem e Sara, a sua sobrinha, sempre esperta e
astuta. Sílvio as traria com conforto na carroça até o castelo.
Após três horas de cavalgada difícil em função da neve, muito densa em determinados
trechos, chegaram próximo ao rio. Assombrados perceberam que apenas algumas
paredes da casa haviam resistido ao impacto das águas. Num impulso Arthur gritou
desesperado:
-Sara...Carol...
Mas nenhuma resposta lhes veio. Um arrepio frio lhe percorreu o corpo juvenil "Teriam
sido mortas na tempestade?" A idéia lhe aterrorizava e olhando o semblante do médico
percebeu que ele também tinha os mesmos receios.
Apearam da montaria e vasculharam as ruínas da residência, mas nada existia por
debaixo da neve, tudo fora carregado pela água. Somente as duas paredes haviam
resistido.
O nobre decidiu descer o leito do rio para verificar se encontrava algum vestígio ou sinal
de vida enquanto o médico, rouco pela emoção, acompanhava-o gritando e chamando
por seus nomes continuamente.
Nenhuma resposta se fazia ouvir. Perceberam alguns destroços de móveis da moradia , o
que os deixou ainda mais angustiados. Temiam falar as suas dúvidas e incertezas.
Caminharam mais um pouco e decidiram voltar. Próximo ao cavalo, Arthur abaixou-se
exausto por caminhar na neve. Ricardo ainda repetia os nomes de Sara e Carol,
chamando-as continuamente.
A menina Sara, auxiliada por seu pai, havia caminhado em sentido contrário ao rio, mas
ambos desconheciam isto e persistiam nas buscas próximo ao leito.
Não desistiriam enquanto o sol não se escondesse no horizonte.
Sara abriu os olhos repentinamente. Sílvio e o desconhecido haviam saído para tentar
caçar algum roedor que os alimentasse. Sentiam-se imensamente fracos e era difícil
caminhar na neve. Carol ficara com a menina , que agora lhe olhava suplicante:
-Sara como te sentes? Estivestes muito doente.
A menina balbuciou com dificuldade:
-Sai da gruta e grita!
Carol não compreendera, e Sara repetiu-lhe:
-Precisas gritar, estão nos procurando!
A nobre senhora não hesitou e rapidamente levantou-se e caminhou até á entrada da
gruta, e gritou:
-Estamos aqui!
A voz lhe saiu trêmula e fraca, mas o vento a transportou até onde estavam -lorde Arthur e
Ricardo.
-Escutastes algo, Ricardo?
-Sim Lorde Arthur, mas não posso dizer-te de que direção foi proveniente.
Ambos puseram-se a gritar, mas Carol não os escutava. Carol entrou na gruta e Sara
olhou-a angustiada:
-Grita! Grita sem parar! Eles escutaram!
Novamente Carol saiu da gruta e Sílvio e o desconhecido chegavam apressados:
-O que foi senhora Carol?, indagou-lhe Sílvio preocupado. Carol simplesmente disse-lhes:
-Peço-lhes que gritem o mais alto que possam.
Os três começaram então a gritar "estamos aqui" repetidamente. E finalmente, Lorde
Arthur e Ricardo localizaram de onde vinham os gritos distantes.
Após árdua caminhada de três horas em imensa dificuldade, transpondo obstáculos
derrubados pela tempestade e puxando seus cavalos, Lorde Arthur finalmente viu a nobre
senhora extremamente magra e abatida por aqueles dias de penúria e sacrifícios. Correu
ao seu encontro e abraçou-a afetuosamente.
-Tive tanto medo de não mais vê-la Carol.
Carol deixou-se cair em pranto convulsivo , e assim ficaram alguns instantes.
Logo Ricardo também aproximava-se e percebeu Gabriel olhando-os de longe.
-Perdoai-me, senhora, mas o que ele faz aqui?
Também o Lorde olhou intrigado para Gabriel e extrema fúria lhe veio ao peito:
-Desgraçado! exclamou, pegando a imensa espada que na cintura.
Imediatamente Carol colocou-se na frente do desconhecido e acalmou os cavalheiros:
-Salvou-nos a vida! De nada se recorda! Depois conversaremos sobre isto. A menina
Sara ainda esta doente.
Escutando o apelo da senhora que lhes transmitia serenidade, Ricardo e Lorde Arthur
entraram na gruta e perceberam que a menina ainda ardia em febre.
-O que aconteceu?
Indagou Ricardo apreensivo, pensando que ela estava com a peste. Carol tranqüilizou-os:
-Aquela aranha a mordeu no tornozelo.
Lorde Arthur observou a imensa aranha negra, extremamente peluda, dizendo:
-Mas este bicho é mortal, sua peçonha mata um homem adulto em vinte quatro horas.
Carol contou-lhes como o desconhecido ficara horas extraindo a peçonha do corpo da
menina.
-Não temos tempo agora para conversas, começa a escurecer e precisamos retornar ao
castelo. Perderam a carroça? Os cavalos?
Gabriel respondeu a Lorde Arthur humildemente:
-Caminhamos a procurá-los hoje, e não os encontramos senhor, com certeza fugiram para
se esconderem das tempestades.
Lorde Arthur olhou-o, intrigado com sua humildade. Também Ricardo estava temeroso.
Ricardo então recomendou:
-Poderemos levar a senhora Carol e a menina Sara em nossos cavalos e amanhã
mandaremos buscar Sílvio e este cavalheiro.
Lorde Arthur agradeceu o conselho, e colocaram Sara cuidadosamente na montaria do
médico Ricardo. Carol foi auxiliada também por Lorde Arthur a montar em seu cavalo.
Despediu-se rapidamente de Sílvio e do desconhecido e rumaram breves para o castelo.
No caminho, a nobre senhora contou emocionada ao Lorde como o desconhecido surgira
e como os auxiliara naqueles inesquecíveis dias de fome e de frio.
Sara adormecera amparada pelo médico, que a tudo também escutava. Carol, enchendose de coragem e controlando a imensa emoção que sentia, contou-lhes pausadamente o
que Sara lhe narrara a respeito dos bárbaros crimes de Gabriel e que também lhe
revelara que este era o seu filho.
Arthur parou repentinamente o seu cavalo e observou-a completamente surpreso. Podia
ver que as lágrimas lhe desciam nas faces silenciosas. Indagou-lhe:
-Como Sara poderia saber de todos os crimes de Gabriel? Também não compreendo
como este pode ser seu filho.
Comovida, Carol pôs-se a narrar a sua estória, como o seu pai lorde Orlando havia
mandado matá-la e como o velho Manco a havia salvo.
Lorde Arthur, sentindo enorme indignação pelas frias atitudes de seu falecido pai, também
se emocionou. Não conseguindo nada dizer-lhe, a acariciou tentando confortá-la pelo
imenso sofrimento de sua vida. Pediu-lhe perdão num silêncio sincero em nome de sua
família, jurando a si mesmo, conceder-lhe proteção e amor enquanto Carol vivesse.
Pensativo na árdua vida daquela senhora, confuso com os inúmeros mistérios que
envolviam Sara, e triste pelo caráter de seu nobre pai que desconhecia em sua profunda
admiração infantil, julgando-o sempre um herói, prosseguiu rumo ao castelo em trajeto
que já estava escuro.
Ricardo a tudo ouvira, silencioso e entristecido. Sentia enorme admiração por Carol
surgir-lhe intensa em sentimentos fortes. Admirava-a profundamente, pelo sincero perdão
que sentia e que demonstrara ao falar dos que lhe tinham feito tanto mal, pela humildade
que expressava, serena e harmônica em cada gesto, pela imensa benevolência que
irradiava em seus olhos, pela resignação á vida que lhe fora concedida e pela felicidade
que sempre emanava num sorriso fraternal que amparava, consolava e transmitia muita
paz a todos.
Tarde da noite chegaram ao castelo e Carol perguntou humildemente, preocupada, não
desejando dar mais problemas a lorde Arthur.
-Que falarás ao senhor teu pai?
Lorde Arthur disse-lhe sem comoção:
-Lorde Orlando faleceu na terrível peste que lhe contamos.
Silenciou, amparando a nobre senhora para que apeasse da montaria. Considerava-a e
amava-a como a uma mãe. Refletira no quanto ela sofrera, isolada durante tantos anos
completamente excluída da convivência com o filho e com o seu povo. Respeitava-a
ainda mais. Porém, em sua jovialidade, não compreendia a tamanha resignação a tanto
sofrimento. Fora drasticamente arrancada de seu seio familiar ainda muito jovem,
violentada física e emocionalmente por seu avô materno, assumira a maternidade
nutrindo afetividade nos muitos meses de gestação, privada do muito amor a dar a seu
filho, jogada num rio á morte como se nada fosse... Como poderia ser tão serena e
transmitir tanta paz?
O nobre auxiliou o médico a tirar também a menina Sara da montaria e este carregou-a
carinhosamente no colo até o salão do castelo. Alguns servos atendiam ao pedido de
lorde Arthur arrumando os aposentos designados para cada um, enquanto outros se
apressavam em concluir forte alimentação para todos.
Carol e Sara alimentaram-se, famintas, e depois foram repousar em seus aposentos.
Lorde Arthur pediu então a Ricardo que ficasse um pouco mais para conversarem e
ambos foram para a biblioteca, onde poderiam ficar mais á vontade.
-Preciso de teus conselhos Ricardo.
O médico olhou-o, prestativo:
-O que desejas, Lorde Arthur?
Arthur colocou-se a andar meio nervoso, e o médico percebeu-o inseguro.
- Ricardo, crês que Gabriel, realmente perdeu a memória?
O médico pensou um certo tempo e disse-lhe,
-Por tudo o que Gabriel fez, as maneiras premeditadas como agiu... O uso das ervas para
se fazer doente... Creio que novamente finge para poder se aproximar do castelo e nos
atacar em oportunidade propicia.
Respirou profundamente, temeroso, e continuou:
-No entanto, Arthur, julgo-o pelos acontecimentos passados, posso estar errado.
O Lorde caminhou pensativo e sentando-se, indagou-lhe hesitante:
-Tens mais experiência de vida do que eu, o que farias com Gabriel?
Ricardo,sem temor, disse-lhe firmemente:
-O prenderia na masmorra, lorde Arthur, até estarmos plenamente certos de que não nos
faria mal.
Arthur olhou-o agradecido e ambos foram repousar daqueles longos dias.
Sílvio e Gabriel observaram felizes que o médico Ricardo e um servo se aproximavam
para buscá-los. Novamente o dia amanhecera em sol intenso e o gelo, durante a noite,
tinha reduzido enormemente, facilitando-lhes a cavalgada.
Traziam dois cavalos atrelados em suas montarias. Ricardo, apeando, disse-lhes,
Venham, que Lorde Arthur vos aguarda e não devemos demorar-nos.
Cavalgando num trote apressado e silencioso, fizeram o trajeto de retorno ao castelo em
brevidade.
O sol ainda não se erguera plenamente quando chegaram a propriedade. O médico disse
a Sílvio que fosse rever seus familiares e depois deveria retornar a suas tarefas. O rapaz
prontamente o atendeu, mas antes indagou-lhe como estava a menina Sara. O médico
respondeu-lhe:
- Amanheceu sem febre, mas permanecerá de repouso por alguns dias. Ela ficará boa,
Sílvio.
O rapaz então despediu-se e afastou-se, levando os cavalos. O médico então olhou para
Gabriel e falou-lhe:
-Venha comigo, Lorde Arthur deseja falar-lhe.
Gabriel, mostrando-se surpreso com tudo o que via, como se avistasse pela primeira vez,
meneou a cabeça humildemente disposto a acompanhá-lo.
Ricardo bateu levemente na porta e Lorde Arthur autorizou-os a entrar. Estava sentado
por detrás da grande mesa, ainda repleta de livros e manuscritos. Olhou Gabriel com
vivacidade e falou-lhe com seriedade:
-Senta-te.
Ricardo caminhava para se retirar quando Lorde pediu-lhe:
-Ficai, amigo Ricardo.
Pediu-lhe então amigavelmente que também se sentasse. Gabriel estava defronte a
ambos e apresentava imensa serenidade. Ricardo estava disposto a analisar-lhe todas as
reações. O Lorde iniciou, indagando-lhe:
-Dizes que esquecestes quem és?
-Sim senhor Lorde, somente me recordo de uma queda.
-Porque estavas armado de arcos e flechas?
-Não me recordo, senhor Lorde.
-Conhecestes alguma coisa em minha propriedade?
-Não senhor Lorde, creio que nunca estive aqui antes.
-Com esse traje julgas ser um nobre?
-Não posso afirmá-lo, senhor.
Gabriel era rápido e breve nas respostas, deixando o médico intrigado. Arthur falou-lhe:
-Sei quem és - te chamas Gabriel.
Gabriel escutou o seu nome com imensa surpresa. Sentia-se ansioso e desejava
ardentemente saber quem era. Precisava conhecer-se! Lorde Arthur então, deixando se
envolver pela emoção, contou-lhe:
-Teu sangue é nobre, és filho de meu avô materno, irmão bastardo de minha mãe Joane
e, conseqüentemente, és meu tio.
O semblante de Gabriel mostrou-se surpreendido e o Lorde continuou:
- Por opção de meu pai Lorde Orlando, desconhecias o parentesco e fostes criado como
um mero servo, tutelado por um velho chamado Manco, que era um curandeiro, um
profundo conhecedor de ervas, e com estas medicava e salvava muitas vidas.
Trabalhastes no celeiro cuidando dos cavalos até os teus vinte anos. Eras um excelente
aprendiz da arte de curar de teu tutor e um servo exemplar. Tudo te tinhas, para teres
uma vida nobre!
Ricardo observou que Gabriel estava comovido.
- No entanto desconhecendo os laços de sangue que te uniam a esta família,
apaixonaste-te por minha irmã Brigith e, neste sentimento correspondido, a seduziste.
Gerastes um filho, que também desconhecia, mas que crescia no ventre de tua sobrinha,
que tinha apenas quinze anos...
Lorde Arthur, respirou profundamente, tentando conter a emoção e manter-se sereno.
Gabriel, extremamente comovido, entregava-se ao um pranto humilde.
- Transtornado com o seu noivado, modificaste a tua conduta e o teu caráter. Mataste-lhe
o noivo com duas flechas certeiras no peito e no pescoço, numa emboscada covarde e
sem lhe dares oportunidade de defesa.
O pranto de Gabriel tornava-se convulsivo com a estória que lhe era narrada, dificultando
ao Lorde Arthur dar-lhe seqüência. O jovem nobre olhou o médico suplicando-lhe forças e
Ricardo lhe fez um sutil meneio de cabeça. Então Arthur continuou:
-Numa paixão doentia e estando ciente de que meu pai a levaria em viagem, resolvestes
ferir meu irmão Anderson. Soltando-lhe a sela da montaria, estavas certo de que isto
atrasaria a viagem, mas com isto deixastes o teu sobrinho, que tinha apenas quatorze
anos, paralisado. Por um ato inconseqüente, o condenastes á um leito. Somente
movimentava a cabeça, o resto de seu corpo não lhe obedecia.
Arthur levantou-se e caminhou até Gabriel, olhando-o nos olhos:
-A minha irmã Brigith transformou os seus dias também em reclusão, fazendo-lhe
companhia. Dava-lhe conforto e força para suportar aquela vida em completa
dependência. E tu Gabriel inconformado com sua ausência e não aceitando que ela
dedicasse a vida ao infeliz irmão, premeditaste-lhe a morte enviando-lhe um chá de ervas
venenosas. No entanto,enganaste-te, e quem tomou o chá mortal foi a tua sobrinha
Brigith, o teu grande amor. Morreu instantaneamente, carregando no ventre o filho que
esperava...
Gabriel, soluçou aos prantos:
-Por piedade senhor Lorde Arthur, nada mais me contes!
Mas Lorde prosseguiu:
-Num acesso de ódio e num desejo de vingança injustificável, covardemente matastes
Anderson, completamente vulnerável em seu leito, asfixiando-o com uma almofada até a
morte agonizante!
Lorde Arthur afastou-se dele para disfarçar as lágrimas que lhe desciam num sentimento
profundo de dor. Sentou-se novamente.
-Minha mãe Joane, a tua irmã, ciente de todos os teus crimes, pediu sigilo ao médico
Ricardo, seu confidente, mas tão logo faleceu em imenso desgosto, assim como faleceu o
teu tutor, infelizes por teus atos tão vis, Ricardo em sua extrema fidelidade á nossa
família, tudo contou ao meu pai Lorde Orlando. Este, ciente de que havias tirado a vida de
teus filhos tão covardemente, resolveu não te condenar. Deu-te a oportunidade de te
regenerares, transferindo-te para nossa propriedade em Adredanha e oferecendo-te
trabalho árduo para reflexão. Ao invés, no entanto, de valorizares a tua atitude e a
oportunidade que havia te concedido de reconstruíres uma nova vida, prosseguistes
alimentando ódios e fugindo, atacaste-nos! Feristes e matastes servos inocentes. Agora,
apareces em nossa propriedade dizendo que de nada te lembras! Sempre foste ardiloso e
agiste premeditadamente, como crês que possamos acreditar nisto?
Gabriel cabisbaixo mantinha-se em pranto emocionado.
-Responde-me, Gabriel, devo ter a mesma clemência de meu pai?
-Gabriel controlou-se, balbuciando:
-Me envergonho de tudo o que dizem eu ter feito, sinto-me criatura imensamente
desprezível, matai-me senhor Lorde, para que não faça mais o mal!
Então ajoelhou-se no chão suplicante e descontrolado:
-Por clemência matai-me!
Lorde Arthur surpreendeu-se com a aparente humildade e a extrema sensibilidade
daquele homem. Olhou para o médico, que ainda não se mostrava convencido da sua
perda de memória. Parecia-lhes uma ardilosa encenação . Porém não compreendiam o
objetivo.
-Matar-te eu não vou. Mas eu te condeno, Gabriel, à masmorra!
O jovem nobre finalmente silenciou, exausto pela longa narrativa que lhe feria os mais
profundos sentimentos. Pediu ao médico que chamasse os guerreiros para levá-lo a
masmorra.
Quando ele foi levado, o jovem deixou cair o rosto sobre a mesa, chorando
convulsivamente. O médico Ricardo aproximou-se e silencioso e amparou-o,
compreendendo-lhe a dor que sentia.
Linia observava o homem ser arrastado pelos guerreiros do castelo, rumo á masmorra,
através do pátio central.
Pelo porte elegante e forte, sentiu-se intrigada e indagou a Lana:
-Conheces aquele homem que esta sendo preso? Nunca o vi antes.
Lana aproximou-se da janela e disse-lhe:
-É o servo Gabriel, vi quando chegou de manhã com o médico Ricardo.
Linia olhou-a, solicitando mais informações e Lana, como não lhe tinha simpatia limitou-se
a dizer-lhe:
-De nada mais sei, senhora.
Linia, enfurecida, pela atitude da ama, dispensou-a ficando á sós com os seus
pensamentos. Aquele homem, ainda que não tivesse lhe visto o semblante, não saia dos
seus pensamentos. Foi interrompida quando Lana retornou batendo na porta e dizendolhe que Lorde a chamava na biblioteca.
Aprontou-se demoradamente e desceu para encontrá-lo. A porta estava entreaberta e
Linia entrou sem cerimônias. Arthur sem cumprimentá-la indagou:
-Pensastes no que te disse?
Linia fingiu ter se esquecido, o que deixou Lorde Arthur com o semblante contrariado.
Ainda que já houvesse se refeito da enorme emoção, algumas horas antes, a
sensibilidade lhe estava aflorada.
-Repetirei Linia, o que decidistes? O prazo que te dei encerrou-se como as tempestades.
Linia olhou-o dizendo-lhe a contra gosto:
-Aceito as imposições de meu, irmão Lorde Arthur.
-Então acolherás tua filha Sara agora, ela encontra-se no aposento ao lado do teu.
Mandarei imediatamente chamá-la para que lhe peças perdão.
Linia estava perplexa ao saber que sua filha estava tão próxima e ninguém havia lhe
comunicado, nem mesmo a sua serva Lana. Olhou o nobre com extrema seriedade, mas
concordou num gesto afirmativo.
Após algum tempo, Sara entrava na biblioteca, carinhosamente amparada pelo médico,
pois ainda não andava com facilidade.
Vendo a mãe, em pé próximo á janela, apertou a mão do médico violentamente. O Lorde
olhou-a ternamente dizendo-lhe:
-Sara, tua mãe deseja falar-te algo.
A menina continuava apertando a mão do médico e num impulso correu para abraçar
fortemente Arthur. Pediu-lhe:
-Senhor Arthur, não desejo falar com ela.
O nobre olhou-a. confortando-a:
-Não serás tu a falar querida, ela falará.
Voltou-se para Linia e indagou-lhe:
-Então Linia, o que querias dizer a Sara?
Linia voltou-se olhando Sara próxima a Arthur e percebeu imediatamente que entre os
dois existia grandiosa afetividade. Interessadamente pensou em usufruir-se disto.
Mudando completamente o semblante, sorriu ternamente para Sara.
-Minha filha querida, dê um abraço em sua mãe que sente imensa saudade.
A menina olhou-a indiferente, mantendo-se abraçada ainda ao jovem Lorde e disse-lhe
friamente:
-Não, Linia, não sentistes minha falta.És mentirosa e falsa, e somente ages assim porque
com certeza o nobre Arthur o impôs!
Linia corou com a atitude da filha e tentou atraí-la:
-Querida Sara, perdoai-me ter te deixado sozinha, porém Lorde Orlando tomava decisões
tão apressadas. Eu não tive escolha.
O médico olhou para Lorde Arthur indignado, suplicando-lhe com os olhos que ele
ordenasse que ela imediatamente parasse com aquela encenação, porém a esperta
menina tomou a iniciativa.
-Parai já com isto Linia! Não sejas mesquinha!
O nobre e o médico novamente olharam-se e Sara puxou a mão de Arthur dizendo-lhe:
-Meu tio, ficarei nesta casa com o senhor, mas nunca me obrigue a falar ou gostar dessa
mulher!
O Lorde estava completamente surpreso e impressionado com a personalidade de Sara.
Atendendo ao seu pedido falou:
-Pode sair, Linia voltai ao seu aposento.
Linia, enfurecida e sentindo-se profundamente humilhada, saiu da biblioteca
amaldiçoando-os.
Sara olhou Arthur e lhe disse carinhosamente,
-Posso lhe dar outro abraço?
O jovem abraçou-a e Sara falou-lhe:
-Ricardo contou-me que lhe darás umas terras, é verdade?
Arthur meneou afirmativamente e Sara prosseguiu:
-Daí as terras para Linia, isto a fará feliz longe de nós. Deixai Ricardo aqui conosco.
-Porque falas isto Sara?
-Porque só assim Arthur, poderemos ser felizes.
Surpreendido, Arthur falou-lhe:
-Prometo-te que pensarei no que me pedes Sara.
-Posso lhe falar mais uma coisa?
Claro, querida Sara.
-Gabriel falou a verdade, de nada se lembra.
O Lorde sentou-se rapidamente, sentindo-se confuso. O médico, percebendo-lhe a
expressão de imensa surpresa, pediu à menina que se despedisse, precisava repousar.
Sara prontamente o fez e o médico, após acompanhá-la ao aposento, retornou para falar
com Arthur. O jovem indagou-lhe, com certa indignação:
-Ricardo, é apenas uma menina, porque sempre lhe contas tudo a respeito de Gabriel, ou
de nossos problemas?
O médico compreendeu-lhe a confusão, falou-lhe sereno.
-Nunca nada lhe contei, senhor Arthur.
Lorde Arthur surpreso argumentou prontamente.
-Como sabe de tudo então? Como contou a Carol a estória de Gabriel com tantos
detalhes? Como sabia que era o filho dela?
Ricardo olhou-o com seriedade dizendo-lhe:
-Senhor Lorde Arthur, ainda tenho muitas coisas a contar-lhe sobre Sara, porém o sol já
alto vai e necessário se faz a sua presença nos campos.
Estás certo Ricardo, porém cavalgarás comigo e tudo poderás contar-me no caminho.
O médico concordou e ambos saíram do castelo e saíram a supervisionar as tarefas dos
servos.
Gabriel, na masmorra, olhou os pastos ainda cobertos pela neve, as colinas, o rio... As
lágrimas ainda lhe desciam vorazes pela face, sentindo-se entristecido pela vida
vergonhosa que tivera, mas da qual não conseguia recordar-se.
Viu quando o médico Ricardo e Lorde Arthur subiam as colinas, cavalgando em
imponentes cavalos e gritara-lhes angustiado:
- Matai-me por clemência...matai-me!
Mas a voz simplesmente ecoou mórbida na pequena cela. Surpreendentemente,
lembrava-se da doutrina que aprendera e estava ciente do que havia uma moral boa e
uma moral má. Violara todos os princípios bons!
Ajoelhou-se desesperado no chão frio e pediu clemência para a dor insuportável que lhe
corroia a mente e entorpecia-lhe os sentidos. Deixou-se deitar no chão de pedra e as
palavras de lorde Arthur ecoavam-lhe na mente assustadoramente "matastes
covardemente..." Não compreendia porque nada conseguia recordar de seu passado.
Sentia-se julgado e condenado por matar pessoas que não conhecia em suas
lembranças, sentia-se bom e justo incapaz de cometer tantos atos bárbaros que haviam
sido lhe narrados. Auxiliara prontamente aquela nobre senhora Carol, e aquela meiga
menina Sara na gruta. Como poderia ser capaz de cometer tantos atos infames?
Precisaria ser um monstro sem sentimentos e não conseguia se ver assim!
Sentia enorme compaixão de si mesmo por nada conseguir se recordar. Porém, sentia
também a enorme dor daquele jovem lorde, que ainda tão menino perdera os irmãos por
sua culpa. Como se sentir culpado por algo que não se recorda? Eles nunca acreditariam
no que dizia. Como poderiam acreditar depois de tudo o que disseram ter feito! Não lhes
criticava a condenação, compreendia-lhes, desejava se desculpar, corrigir seus erros se
possível fosse. Fazer alguma coisa que pudesse mostrar que era uma pessoa boa e que
estava sentindo imensamente tudo o que lhe fora contado. Como provar-lhes que o
sentimento era imensamente sincero e sofrido?
Gabriel, extremamente abatido, encolhera-se num canto da cela e ali ficara, imóvel,
desejando ardentemente dormir para não mais despertar.
Um longo período se passou, em dias abençoados de imensa claridade e calor.
Os campos haviam se revestido do verde da vida e inúmeras flores coloridas
embelezavam-nos.
Lorde Arthur, com auxilio de seu amigo Ricardo e dos seus servos, havia reconstruído a
propriedade. Árvores frutíferas replantadas no imenso pomar mostravam enorme
vitalidade, as plantações novamente semeadas, tinham germinado com força e total vigor,
o rio corria veloz novamente.
O jovem lorde ensinara Sara a cavalgar elegantemente e com arte. Freqüentemente os
acompanhava nas cavalgadas.
O médico Ricardo incumbira-se de continuar a doutriná-la e Sara já conseguia ler e
escrever com desenvoltura.
Carol auxiliava a administrar a moradia deixando-a aconchegante e acolhedora. Era uma
verdadeira mãe para todos, menos para os olhos do médico que a viam cada dia com
maior afeição.
Linia mantinha-se isolada daquela família feliz. Participava das refeições e das horas
comuns de lazer e repouso, mas nenhum deles se aproximava para dialogar ou pedir
opiniões, numa distância imposta por si mesma em sua frieza, superioridade e diário mau
humor.Naquele lar harmônico, Linia se tornara o canto frio e feio, do qual ninguém
desejava se aproximar, nem mesmo os servos. Soubera que o seu irmão Arthur enviara
um mensageiro com um manuscrito desfazendo o seu noivado. Sentia-se enfurecida pela
viúva que era, pela filha que a ignorava e pela felicidade que todos sentiam e que não
chegava ao seu coração petrificado. Sentia-se infeliz. Naquela manhã, Carol aproximouse de Lorde Arthur sorrindo-lhe candidamente.
-Posso falar-lhe, Arthur?
O Lorde carinhosamente acolheu-a também com um sorriso, pedindo-lhe que se
sentasse, o que também fez.
-Que desejas, amiga Carol?
A nobre senhora falou-lhe humildemente.
-Faz um ano que me acolhestes em teu lar, me sinto extremamente feliz e reconfortada
com esta nova vida, nada deixastes que me faltasse.
O nobre disse-lhe com extrema ternura.
-Fiz tão pouco ainda Carol. Se me pedires o impossível, farei de tudo para realizá-lo para
ti, estejas certa disto, não como recompensa ou pagamento ao que muito sofrestes, mas
com profunda admiração e amor pela pessoa que és.
Mostrando-se sensibilizada e agradecida por suas doces palavras, Carol,
temerosa,encorajou-se a dizer-lhe.
-Vou pedir-lhe o impossível, lorde Arthur.
O jovem olhou-a intrigado e em sua candura e serenidade pela primeira vez podia
perceber-lhe o peito ofegante e o olhar ardente em súplica.
-Perdoai-me senhor, mas é o coração de uma mãe muito aflita que lhe pede. Deixai-me
visitar na masmorra o meu filho Gabriel.
O nobre mostrou-se surpreso, e Carol continuou em súplica:
-Sei dos seus atos bárbaros, sei do imenso mal que lhe fez, mas compreenda o
sentimento desta pobre mãe que anseia em vê-lo e lhe dar o amparo que nunca pode dar.
O coração materno ama acima de todos os erros ou imperfeições de seus filhos...os
alenta e os orienta, ainda que estes se encontrem confusos, perdidos ou em vida
errônea . Desejo ardentemente visitá-lo, ampará-lo, reconfortá-lo e orientá-lo!
Arthur refletiu silenciosamente em suas palavras tristes, observando-lhe os olhos
ansiosos. Sorriu-lhe dizendo.
-Amiga Carol, como poderia eu negar a aproximação de uma mãe com seu filho, ainda
mais com o sincero desejo de auxiliá-lo?Poderás ir visitá-lo e orientai-o, para que
compreenda os inúmeros males que fez.
Carol, extremamente agradecida, num impulso abraçou-o . Mas o jovem fechando o
semblante em seriedade, olhou-a advertindo.
-No entanto, amiga Carol, és também uma grande mãe neste coração e se Gabriel ousar
te ferir ou te agredir, mandarei puni-lo, compreendes?
A nobre senhora, sentindo-se profundamente feliz por seu afeto e consentimento na visita
ao filho, beijou-lhe as mãos. O jovem abraçou-a, repleto de emoção.
-Vai querida Carol, pedirei a Ricardo que te acompanhe á masmorra, não desejo que lá
vás só.
Carol novamente agradeceu-lhe saindo radiante e muito feliz.
O sol já alto ia quando Arthur afastou-se de Ricardo para que este acompanhasse Carol
em visita a Gabriel.
A pequeno recinto estava claro, mas Gabriel mantinha-se deitado no chão frio, parecia
estar dormindo. Ricardo ficou próximo á porta, que fora aberta pelo guerreiro, enquanto
Carol se aproximou serenamente.
A cela estava úmida e fétida , mas a nobre senhora parecia não se incomodar com o
ambiente.
Carol acariciou-lhe o rosto delicadamente e Gabriel, abrindo os olhos muito sonolento e
aparentemente abatido, balbuciou:
Um anjo!
Esfregando os olhos, levantou-se envergonhado, reconhecendo-a.
-Perdoai-me,senhora Carol.
Gabriel olhou para o médico, que tão pouco conhecia, também dizendo-lhe.
Perdoai-me ,senhor .
Ricardo podia observar que Gabriel apesar das acomodações rudes, estava sendo bem
cuidado. O corpo mantinha-se forte e robusto e a fisionomia, ainda que abatida, mostrava
um brilho saudável. Estava limpo e barbeado. O nobre Arthur fora extremamente
generoso, dando ordens aos guerreiros para que nada lhe faltasse. Tinha água em
abundância, alimento farto nas três refeições diárias e possibilidade de higiene constante
em si e na sua cela.
Carol olhou para Ricardo, suplicando-lhe.
-Amigo Ricardo, deixai-nos um pouco sozinhos.
O médico, um pouco hesitante, afastou-se da porta da cela e aguardou-a a certa distância
junto com o guerreiro que o vigiava. Carol olhou o filho enternecida e Gabriel sentiu-se
constrangido.
-Senhora Carol, não me recordei de nada, nada me lembrei dos muitos males que fiz,
sinto-me imensamente mal com isto.Juro-lhe por minha vida, estou sendo sincero!
Carol pegou-lhe a mão, dizendo serenamente.
-Confio no que me dizes, Gabriel, não terias mais motivos para enganar-nos.
Indagou-lhe então desconfiado:
-Porque a senhora veio até aqui?
-Precisava ver-te, Gabriel!
-Porque a senhora sente piedade de um criminoso como eu?
Carol não conseguia mais conter o pranto emocionado, revelando-lhe trêmula:
-Não és um bárbaro criminoso para mim. És o meu filho cheio de erros e de imperfeições.,
estou ciente disto, mas ao qual Nosso Pai ainda concede contínuos amanheceres,
doando-te a incessante oportunidade de te regenerares. E se Nosso Pai ainda ainda zela
por ti com infinita bondade, porque esta humilde mãe, não te ampararia?
Gabriel,imensamente surpreso, indagou:
-Seu filho?
Carol olhou-o afetivamente e contou-lhe a sua longa estória. Extremamente emocionados
ambos se abraçaram fortemente e Gabriel sentiu uma enorme sensação de paz que há
muito não sentia.
Dialogaram longamente. Carol contou-lhe pausadamente os inúmeros erros que ele
cometera. Tentava fazê-lo compreender que precisava reconhecer, arrepender-se e
reparar de alguma forma todo o mal feito. Aconselhou-o a pedir contínuo perdão a Deus
por suas imperfeições e a dar-lhe graças por cada dia em que lhe concedia nova
oportunidade á continuidade da vida,
Gabriel, dizendo-lhe que refletiria em tudo o que dissera e prometendo-lhe que faria
orações freqüentes, despediu-se agradecido de Carol. A nobre senhora ainda
emocionada, porém sentindo-se imensamente feliz, afastou-se afirmando que o visitaria
todos os dias.
Ricardo que presenciara tudo, ainda que não escutasse o que diziam, percebeu que
Gabriel parecia ter sofrido grande transformação realmente. Se mostrava sensível,
afetuoso e humilde.
Ambos saíram da masmorra e Gabriel caminhou até a pequena janelinha, olhou o céu
azul, e agradeceu fervorosamente a Deus, o amparo tão sereno e meigo que trouxera
para si, abençoando-o com uma mãe.
O nobre Arthur aproximou-se de Linia, que se encontrava no salão, tocando na harpa uma
triste melodia. Vendo-o aproximar-se, Linia parou instantaneamente. Estava ciente que o
irmão só se aproximava dela para lhe instruir como se comportar em determinadas
reuniões daquela "família" feliz.
Olhou-o indiferente e Lorde sentou-se para falar-lhe:
-Linia, sinto que não és feliz neste grupo familiar, nada fizestes também para cativar Sara
ou aproximar-se de Carol. Manténs-te reclusa em teu aposento ou te fechas em
semblante sério e rude em nossas reuniões. Passou-se um ano em deste convívio
comum, poderias ter reconstruído uma vida alegre, mas não o fizestes.
Arthur caminhou até a lareira e voltou-se novamente para olhá-la. Linia se mantinha altiva
e fixando-o nos olhos , mas permanecia indiferente. O nobre continuou:
-Percebendo isto, resolvi atender um pedido de tua filha Sara. Junto com meu amigo
Ricardo, delineei parte desta propriedade, e essas terras serão tuas. Deverás administrálas e plantá-las. Em cinco dias grande moradia estará concluída, e será digna de vossa
nobreza. Colocarei a teu serviço cinqüenta servos que te ajudarão no plantio e na
organização de tua moradia. Poderás ainda levar a serva Lana que já se acostumou com
as tuas amarguras e rispidez.
Arthur voltou a sentar-se, sempre olhando-a com seriedade:
-Em cinco dias, serão transferidos para as tuas terras as tuas vestes e os teus pertences,
os servos, suprimentos básicos para a alimentação de todos por longo período e alguns
animais. Daqui a cinco dias não farás mais parte dessa família feliz, que sei, te contraria
em demasia.
O Lorde respirou profundamente e complementou:
-Estou sendo imensamente justo e para provar-te isto, mandei lavrar um título para ti. A
partir dessa data serás a Duquesa Linia de Corleanos, única irmã de Lorde Arthur de
Corleanos e filha do falecido Lorde Orlando de Corleanos.
Linia olhou-o arrogante e disse-lhe:
-Nada me caberá da grandiosa fortuna de meu pai?
Lorde Arthur estava perplexo com sua extrema ambição. Falou-lhe indignado:
-Linia, como és avarenta. Filha bastarda de meu pai, não crês que muito reclamas? Doute grande propriedade, servos, suprimentos e animais, deu-te inúmeras jóias o nosso pai.
Desejas mais riquezas?
Fez uma pausa para se recompor, e depois disse, irônico:
-Plantarás tua propriedade se desejares comer, pois os suprimentos que te concedo, um
dia findarão e nada mais terás de mim. Deixo em testamento, também devidamente
lavrado, que toda a herdade dos Corleanos irá para a Duquesa Sara de Corleanos, minha
sobrinha, se algo me acontecer. Será Lorde Ricardo Lamartine o seu tutor, até esta ter
idade de administrar todas as suas propriedades, inclusive a tua, irmãzinha...
Arthur caminhou até ela e colocando a mão em seu ombro advertiu-lhe:
-Por isto, minha querida, em sua enorme ambição, não almejes minha morte, pois
perderás tudo o que te dou agora.
Pisando forte, o nobre jovem se afastou, deixando Linia a sós com seus pensamentos.
Irritada agrediu as cordas da harpa que bravejaram forte som estridente.
Durante aqueles cinco dias, não houve um só dia em que Carol não visitasse Gabriel na
masmorra. Lorde Ricardo, sempre em sua companhia, se surpreendia com sua candura.
Naquela tarde, Ricardo procurou Lorde Arthur para conversar. O nobre recebeu-o
amigavelmente com um sorriso, como sempre o fazia:
-Querido Ricardo , a que vens?
Ricardo, com o semblante constrangido, meio envergonhado, balbuciou:
-Desejo lhe fazer um pedido senhor Arthur.
Arthur deu uma risada infantil.
-Precisas corar para pedir-me algo? Vejo que o pedido é sério. Falai!
Ricardo tremulamente falou:
-A senhora Carol, pelo que estou ciente, não possui outra família, nós somos-lhe a família.
-Sim Ricardo, considero-a como minha mãe.
Ricardo caminhou intranqüilo de um lado para o outro e Arthur, aflito, indagou-lhe:
-Ricardo, vieram da masmorra há algumas horas, aconteceu algo com a senhora Carol?
Gabriel a ofendeu? A maltratou? Dizei-me agora, não te retardes mais.
O médico parou de caminhar, percebendo a preocupação do jovem. e disse-lhe
prontamente:
- Nada aconteceu com a senhora Carol, mas é que ...
-Sempre fostes direto e objetivo, porque temes tanto em dizer-me algo?
Ricardo então encorajando-se pediu-lhe humildemente:
-Desejo , senhor Lorde Arthur, pedir a senhora Carol em casamento.
Arthur, vendo-o baixar a cabeça constrangido, controlou-se para não gargalhar eufórico,
mas sorriu-lhe radiante.
-Que enorme felicidade, amigo Ricardo, já falastes com ela de tuas intenções?
-Não, senhor Arthur, vim aqui humildemente lhe pedir, que diga-lhe que a pedi em
casamento. Desejo ardentemente desposá-la, porque enorme sentimento lhe tenho.
Receio, no entanto, que não me deseje como esposo.
-Não te angusties assim, amigo, conversarei com Carol ainda hoje e lhe falarei de seu
pedido e de seu enorme sentimento.
Arthur não mais conseguindo conter-se em seriedade, deu a costumeira risada
espontânea e ainda infantil. E rindo falou-lhe:
-Tens idade para ser meu pai. Nunca pensei que me pedirias a mão de alguém em
casamento.
Ricardo, meio contrariado com a brincadeira de Lorde Arthur, sorriu-lhe envergonhado e
agradecendo afastou-se. Deveria verificar como estava a mudança de Linia para a sua
propriedade.
Indagando alguns servos, soube que a maioria das coisas já havia sido transferida,
somente a Duquesa e os seus pertences ainda estavam no castelo.
A Duquesa Linia despediu-se de seu irmão friamente, fazendo-lhe mera reverência sutil.
Lorde Arthur, possuidor de bons sentimentos, olhou-a afetuosamente.
-Desejo-te toda a felicidade deste mundo Linia.
A jovem, sem mostrar qualquer gesto de simpatia, afastou-se entrando na carruagem que
já a aguardava. Lorde Arthur, percebendo que a carruagem se distanciava disse a Ricardo
que estava próximo a si:
- Sinto imensa dó de minha irmã, terá tanto a aprender. Que o bondoso Deus a
acompanhe!
Anoitecia quando todos se reuniam no salão de refeições. Sara, radiante por não ter mais
a presença de Linia, tagarelava feliz as novidades de seu dia.
A senhora Carol, dando-lhe toda a atenção e carinho, parecia também se sentir feliz com
o ambiente mais sereno.
Lorde Arthur, com jeito por vezes ainda tão menino, olhava o médico Ricardo com
cumplicidade, ameaçando-o de falar ali sobre o seu pedido. Ricardo, nervoso com as
brincadeiras do Lorde, mal conseguiu alimentar-se.
Após a farta refeição, foram para o amplo salão e Sara colocou-se a tocar alegre melodia
que aprendera no órgão.
Lorde Ricardo, pediu-lhes licença e afastou-se inibido, ciente de que Arthur aguardava
oportunidade a falar com a senhora Carol a sós.
Aproveitando-se da ausência proposital de Ricardo, Arthur sentou-se defronte a Carol e
disse-lhe:
-Querida Carol, fizeram-me hoje um incrível pedido.
A nobre senhora olhou-o intrigada:
-Contai-me, Arthur!
Arthur sorriu feliz e falou:
-Fostes pedida em casamento!
Carol olhou-o contrariada mas sorridente.
-Deixai de peripécias Arthur... Não és mais um menino para viveres sempre a brincar.
Lorde Arthur olhou-a então em seriedade e lhe disse:
-Perdoai-me a brincadeira Carol. No entanto, é serio o que lhe digo, pediram-me a sua
mão em casamento.
Carol observando a seriedade de Arthur, ficou trêmula e corou em constrangimento.
-Lorde Ricardo Lamartine deseja desposá-la, pelo enorme sentimento que lhe tem.
Arthur observando-lhe a seriedade, novamente sorriu e brincou:
-A senhora entendeu, não? Ele está apaixonado!
Carol mantinha-se silenciosa e a emoção foi aparecendo pouco a pouco, em lágrimas
sutis que lhe desciam as faces.
-Porque choras Carol? Te ofendi com minhas brincadeiras?
A nobre senhora meneou a cabeça em negativa e então, pegando a mão de lorde Arthur,
falou emocionada:
-Passei a minha vida tão só...os sonhos e as fantasias da menina que eu era, morreram
naquele rio...
O nobre jovem apertou-lhe a mão, tentando reconfortá-la.
-Ficai feliz Carol, alguém deseja nunca mais te deixar só.
A senhora olhou-o, secando as lágrimas.
-Nobre Arthur, não compreendestes, o meu pranto é de felicidade!
-Irás aceitar?
-Irei agora falar-lhe, porque não sou mais uma menina...sabes onde foi?
Arthur olhou-a feliz, dizendo-lhe:
-Me espera no pátio, fiquei de lhe dar a sua resposta.
Carol beijou-lhe as mãos, agradecendo e caminhou decidida a encontrar Ricardo no pátio.
Avistou-o caminhando nervoso e de cabeça baixa.
-Senhor Lorde Ricardo...
Ricardo virou-se surpreso com sua presença.
-...desejo imensamente falar-lhe.
Carol caminhou até aproximar-se de Ricardo e, pegando-lhe a mão carinhosamente
disse-lhe:
-Imensa alegria trouxe ao meu coração o seu pedido, e aqui vim para falar-lhe que desejo
imensamente ser a sua companheira. O admiro e o respeito com toda a força deste
humilde coração. Sempre fostes, desde que nos conhecemos, o amigo presente e fiel, o
confidente de íntegra confiança, o protetor incansável. Tenho-lhe enorme sentimento de
afeto e aceito acompanhar-te enquanto aqui viver.
Sem se dizerem mais palavras, abraçaram-se fortemente e longo tempo assim
permaneceram, em silêncio e no autentico amor que pulsava intenso sob a noite que os
abençoava.
Ricardo e Carol entraram no salão nobre de mãos dadas.
Lorde Arthur, que estava próximo a Sara auxiliando-a no órgão, vendo-os juntos sorriu
feliz, falando eufórico:
-Marcaremos a data de vossa matrimônio para breve. Faremos uma grandiosa festa para
oficializarmos a união!
Levantando-se Arthur caminhou até eles, também de mãos dadas com Sara e continuou:
- Farei questão de ser o padrinho de vosso casamento e Sara, ainda que seja tão
menina, será a vossa madrinha.
Sara exultou em felicidade com a novidade e abraçou-os fortemente.
Ricardo olhou Carol sorrindo-lhe e disse sentindo indescritível felicidade:
-Serão os nossos padrinhos, querida Carol.
A data do casamento foi prontamente marcada para seis meses depois. No dia seguinte,
lorde Arthur escreveu vários manuscritos. O primeiro chamava o frei para celebrar a
cerimônia, os outros convidavam alguns amigos da corte e das propriedades vizinhas
para a grande comemoração. A pedido de Ricardo, Lorde Arthur também enviou um
convite para a Duquesa Linia.
Com os preparativos para o grande acontecimento, os dias passaram breves. O castelo
era enfeitado e adornado, tornando-se alegre e bonito.
Carol e Ricardo não conseguiam esconder o enorme contentamento na breve união,
sempre sorridentes e em extrema felicidade. No entanto, por vezes, a nobre senhora
ficava silenciosa e entristecida. Lorde Arthur, percebendo-lhe a estranha melancolia,
resolveu falar-lhe.
-Amiga Carol, observo-te já algum tempo e percebo que a felicidade não te é completa, o
que te falta?
Carol surpresa com sua observação , falou candidamente:
-Como poderia estar completamente feliz, se sei que meu filho Gabriel, há dezessete
meses, encontra-se enclausurado num recinto minúsculo? Não creia, no entanto, que o
culpo meu querido Arthur. Sei que a condenação foi correta e justa. Porém o coração
desta mãe que também te ama, sente-lhe a solidão e se aflige. Conforto-me em meu leito
macio, mas vejo-o freqüentemente dormindo no chão duro e frio. Trajo-me em vestes
limpas e perfumadas, mas quando o visito ainda que tenhas dado ordens para que se
banhe todos os dias, as vestes estão sempre sujas e fétidas. Passeio freqüentemente
pelos jardins e colinas desta propriedade com Ricardo, mas quando vou á masmorra, me
dói o coração vê-lo com tanta saúde, restrito a quatro paredes...
As lágrimas desciam sofridas mas tênues nas faces de Carol e, pela segunda vez, Arthur
a via intranqüila e angustiada.
-Sei que matou inocentes, ferindo-os sempre covardemente, Porém isto não o faz menor
em meu imenso amor. Como excluí-lo de um sentimento intenso que deseja amparar e
proteger?
Carol secou as lágrimas com as mãos, desculpando-se constrangida.
-Perdoai-me meu querido. É apenas um desabafo da dor que por vezes corrói o meu ser.
Arthur, compreensivo apiedou-se de sua amiga, mas permaneceu silencioso. Carol
explicou-se, tentando não culpá-lo:
-Estou imensamente dividida nos valores que sinto. Sei que fostes bom e justo impondolhe a branda pena da reclusão, Tens lhe ofertado generoso alimento e farta bebida.
Semanalmente mandas os servos limparem o recinto e sua veste é trocada diariamente
quando se banha. Permitiste-me as visitas diárias e nestas, lhe tenho levado livros para
que leia. Dei-lhe até um antigo Evangelho, para que refletisse no quanto infringiu a lei
divina. Mas o lado de mãe piedosa deseja ardentemente vê-lo livre e feliz. Compreendes
meu filho, a tristeza que por vezes aflora em meu semblante?
Lorde Arthur meneou a cabeça afirmativamente, passando os seus dedos levemente nas
faces de Carol para secar-lhe as lágrimas que ainda corriam. Sentindo-se profundamente
emocionado com tudo o que lhe contara de seus sentimentos, abraçou-a, tentando
confortá-la em sua dor.
Pedindo-lhe desculpas, Arthur viu-se obrigado a se afastar porque precisava receber o frei
que acabara de chegar ao castelo.
Após o frei ser alojado adequadamente, Arthur mandou chamar Ricardo, que se
encontrava nos campos supervisionando o trabalho dos servos.
Recebendo o recado, ele apressou-se a retornar ao castelo.
Encontrou Arthur aflito na biblioteca.
-Mandaste-me chamar, lorde Arthur?
-Sim Ricardo, entra e senta-te, muito tenho a falar contigo.
Ricardo sentou-se comodamente e Arthur indagou-lhe:
-Como vês a educação de Sara?
-É uma menina muito inteligente, senhor Arthur, e tenho a doutrinado continuamente.
Sabe ler e escrever corretamente, gosta de aqui ficar e empenha-se em ler, por vezes,
tardes inteiras. Gosta de musica e, como sabes, já toca perfeitamente bem na harpa e no
órgão. Carol a tem ensinado também a bordar e a cozinhar. É destemida e gosta de
cavalgar conosco.
-Sei de tudo isto, meu amigo, o que te indago é se isto lhe é suficiente?
-Não entendo tua preocupação, senhor, tem uma educação mais rigorosa que tua irmã
Brigith.
Lorde Arthur olhou-o fixamente:
-Mas está ficando uma linda moça e não lhe desejo o mesmo destino que minha doce
irmã, preciso protegê-la. Não seria melhor mandá-la para um educandário na corte? Lá
ficaria em segurança.
Ricardo olhou-o com seriedade.
-Seria ela feliz num educandário, senhor?
O jovem vagou silenciosamente e depois disse-lhe:
-Sara está com dez anos, e eu gostaria que ela viajasse com o frei após a cerimônia . Ele
a deixaria num educandário na corte. Após cinco anos, quando estivesse pronta a casarse, um de nós iria buscá-la.
O médico caminhou na direção do nobre, sentia-se surpreso com a sua repentina vontade
de afastar Sara do convívio familiar. Estava ciente de que ambos eram imensamente
felizes juntos, no convívio diário divertiam-se continuamente em longos cavalgadas, em
passeios nos jardins do castelo em longos diálogos, nas opiniões que lhe pedia a respeito
de alguns problemas na propriedade e, ainda que Sara fosse muito jovem, inúmeras
vezes o vira aceitando seus conselhos. Indagou-lhe perplexo.
-O que temes de verdade, senhor lorde Arthur?
Lorde Arthur baixou a cabeça, evitando-lhe o olhar e falou comovido.
-Sinto-me envergonhado Ricardo mas sei que nada posso esconder de ti. Sempre fostes
um pai carinhoso para mim Confiastes plenamente no menino que eu ainda era, quando
te procurei em Adredanha, e em generoso e contínuo amparo vens me acompanhando,
instruindo-me e orientando-me. Em todos os momentos, ali estavas auxiliando-me a
vencer dolorosos sentimentos e inúmeros problemas. Tudo aconteceu tão rápido! Foram
apenas poucos anos, mas tanto aprendi contigo! Sinto como se fosse uma vida. Estou
agora com dezessete anos e ainda tenho tanto a aprender e a viver. Preciso ainda tanto
de teus conselhos e de tua experiência!
O jovem fez uma pausa, sentindo-se fragilizado pela emoção, e respirando
profundamente confidenciou-lhe.
-Em toda minha vida, eu nunca encontrei nenhuma jovem que me encantasse o coração
como Sara. Sinto-me deslumbrado, o sorriso de Sara me seduz, me fascina, me atrai, não
consigo mais vê-la distante, passo os meus dias ansiando tê-la em minha companhia.
Estou ficando louco, Ricardo.Sinto-me culpado, ela é apenas a minha sobrinha e é ainda
uma menina de dez anos!
Ricardo apiedou-se do Lorde e carinhosamente pediu-lhe que se sentasse. Colocando-lhe
a mão no ombro falou-lhe:
-Escuta o que te digo, lorde Arthur, não é errado enamorastes de tua sobrinha. Inúmeros
matrimônios ocorrem nos mesmos laços consangüíneos, para que assim as famílias se
mantenham em sangue nobre. Ocasionalmente, ocorrem problemas com os seus filhos,
mas isto não é a rigor. Errado, no entanto, é a faixa etária em que Sara se encontra. Pelo
que me contastes, concordarei contigo em que afastes a menina Sara do castelo, até que
atinja idade mais apropriada a enamorar-se de alguém.
O médico, percebendo que Arthur tranqüilizava-se com suas palavras, prosseguiu:
-Comprometo-me a buscá-la na corte quando completar os quinze anos. Se o sentimento
que lhe tens sobreviver ao tempo e às inúmeras experiências que terás em convívio com
outras mulheres, serei o primeiro a te apoiar para que cases com ela. Estarás então com
vinte e dois anos e haverás amadurecido.
Arthur, mais tranqüilo por ter repartido com seu amigo seus sentimentos e sentindo-se
mais uma vez agradecido por suas sensatas orientações, falou-lhe:
-Ricardo, temos outro problema serio a resolver.
O médico escutou-o, atencioso.
-Carol se angustia e sofre com a reclusão do filho na masmorra. Nunca conseguirás fazêla completamente feliz, e sei também que sofrerás com isto. O que faço?
Ricardo pensou demoradamente e falou-lhe:
-Nestes cinco meses a tenho acompanhado freqüentemente á masmorra. Não houve um
só dia que eu não estivesse junto. Tenho observado imensamente Gabriel e conclui
realmente que a perda de memória foi verdadeira. Sempre se mostrou educado, humilde
e amável com Carol e profundamente arrependido de incidentes dos quais não se
recorda.
O médico deu fez pausa ofegante para respirar:
-Ouvi-o certa vez dizer a sua mãe que desejaria ter uma oportunidade para reparar o
imenso mal que te fez, ainda que fosse uma pequena parte deste.
O jovem nobre suplicou-lhe:
-Que farias com Gabriel, amigo Ricardo?
Ricardo, falando determinado mas temeroso, aconselhou-o .
-Eu o libertaria, mantendo-o sob vigilância rígida diária. Colocaria um guerreiro de inteira
confiança sempre ao seu lado, fosse no aposento onde dormisse ou no local onde se
banhasse, fosse na companhia de Carol ou em passeios. Também lhe daria um trabalho e
neste também estaria acompanhado. Libertá-lo-ia, mas lhe daria uma sombra!
Arthur gostava das conclusões de Ricardo, sempre ponderadas e sensatas, e por isto lhe
era o pai, o confidente, o administrador e o amigo. O médico, percebendo a ansiedade
daquele jovem nobre, argumentou:
- Lorde Arthur, creio que Gabriel, recluso em um pequeno recinto, completamente isolado
e privado do convívio, poderá somente reconhecer e arrepender-se do imenso mal que
fez. No entanto estará impossibilitado de tentar repará-lo, reconstruindo uma vida nova.
O jovem indagou, curioso:
-Ricardo, e onde o hospedarias?
O médico olhou-o hesitante ,porém disse-lhe:
-Concedeste a nobreza a tua irmã bastarda, reconhecendo-lhe o sangue. Lorde Arthur, se
existir misericórdia em teu coração e com ela conseguires perdoar os inúmeros males que
fez à tua família, reconhecei-lhe também a nobreza! É teu tio e o irmão de tua doce mãe
Joane. Reconhecei-lhe o sangue!
O jovem parecia refletir silenciosamente, A emoção ainda lhe aflorava nas faces rosadas,
quando pensava nas mortes de seus irmãos, Brigith e Anderson. Pensou: “Como poderia
conviver diariamente com aquele que os matara?"
-Perdoai-me ,Ricardo, mas não seria capaz de manter convivência amigável com alguém
que matou os meus irmãos. O sentimento ainda me fere em demasia!
-Compreendo-te, senhor Arthur, aconselhei-te que lhe concedesses a nobreza
reconhecendo-lhe o mesmo sangue. No entanto, creio também não ser certo que resida
aqui no castelo.
Lorde Arthur fitou-o, perplexo.
-E moraria aonde Ricardo?
-Deste-me umas terras e, como sabes, lá construi uma modesta moradia. Carol deseja
ficar no castelo contigo, até que te cases. Deixai que Gabriel viva lá.
Mas a tua propriedade fica a somente uma hora de cavalgada. Não é demasiadamente
próximo?
-Suficiente para podermos vigiá-lo, nobre Arthur. Poderíamos colocar lá alguns servos
fieis nos quais pudéssemos confiar.
-Mas Ricardo, o guerreiro que lhe seria a sombra, como poderia alertar-nos de algo
errado que pretendesse, se não puder sair do seu lado?
-Pensastes bem Arthur. Mas obrigação dele será proteger-nos,vigiando-o
incessantemente, mas não informar-nos continuamente de como Gabriel vive.
Pensou um pouco e continuou:
-Sílvio já é um rapaz esperto e mostrou-se extremamente fiel. Colocai-o na propriedade
de Gabriel, e com certeza ele nos manterá informados.
Arthur pensava apressadamente em tudo o que Ricardo lhe sugeria.Colocou-lhe a mão no
ombro e disse-lhe agradecido:
-Irei ver Gabriel, e tirarei minhas conclusões. Agradeço-te o imenso auxilio que me destes
mais uma vez.Obrigado Ricardo.
Arthur abraçou-o emocionado, sentindo que uma enorme tranqüilidade substituíra a
ansiedade e a fragilidade que sentia antes de o chamar para dialogar. Sorrindo em paz ,
afastou-se.
O entardecer apresentava-se sublime quando o jovem lorde Arthur subiu á masmorra
determinado.A cela já estava escura, mas Arthur percebeu que aquele forte homem de
vinte e sete anos estava próximo á janela.
-Gabriel, vim falar contigo.
Gabriel olhou surpreso a visita inesperada. O Lorde estava acompanhado de dois
guerreiros e um deles prontamente acendeu uma tocha que clareou o recinto, iluminandolhes as faces em tons avermelhados das chamas que ardiam.
-Tua mãe sofre em demasia por ti.
Gabriel baixou a cabeça humildemente, dizendo-lhe:
-Senhor lorde, matai-me para que não faça mais ninguém sofrer! Tens inúmeros motivos
para isto...dai-me veneno, eu mesmo darei fim nesta vida tão prejudicial a tantos!
-Cala-te Gabriel.
As lamurias de Gabriel e aquele recinto muito o incomodavam.
-Deverás ouvir-me atentamente...
Arthur caminhou até a janelinha e visualizou o sol se escondendo sob as colinas, o rio
cortando sereno as pastagens verdejantes, os cavalos imponentes sendo trazidos para o
celeiro, e se sentiu mais tranqüilo. Voltou-se e continuou:
-Dizia que tua mãe sofre muito por ti. Deve ter te falado que irá casar-se na próxima
semana com Lorde Ricardo.
Gabriel olhava-o atentamente e Arthur concluiu que compreendia.
-Desejo lhe fazer feliz porque é a mãe que não mais tenho. No dia do casamento,
mandarei libertar-te.
Gabriel deu um suspiro ofegante de surpresa.
-Te trajarás nobremente para a levares ao altar. Será o meu presente de padrinho. Serás
apresentado a todos os convidados com Lorde Gabriel Vandak, filho do Duque Vandak e
irmão da Duquesa Joane Vandak Corleanos. Com isto reconhecerei publicamente o tio
que me és. Participarás da festa e finda esta retornarás ao aposento. No dia imediato irás
para a propriedade de lorde Ricardo Lamartine, e lá viverás com alguns servos,
Administrarás a futura moradia e a propriedade de tua mãe, Duquesa Carol Vandak
Lamartine.
Gabriel havia baixado a cabeça diante de tanta benevolência e misericórdia. Deixou-se
cair de joelhos, sentindo-se muito pequeno diante da grandeza daquele jovem e, aos
prantos, beijou-lhe os pés.
-Levanta-te Gabriel.
O servo Gabriel levantou-se com dificuldade, tamanha era a emoção que sentia.
-Pelos restos de teus dias, haverá sempre contigo um guerreiro que te acompanhará noite
e dia onde quer que estejas, esta é a minha única imposição á tua liberdade!
Dizendo isto Arthur afastou-se para sair, mas voltou ainda dizendo-lhe:
-Nada contes a Carol, desejo lhe fazer uma surpresa!
O servo reverenciou-o humildemente e Arthur foi se embora.
Gabriel olhou a noite que descia bela sobre a propriedade, e jurou fidelidade absoluta a
lorde Arthur e á sua família, admirando a grandiosa lua cheia que surgia no horizonte.
Teria a oportunidade de reparar as falhas inadmissíveis que cometera em sua vida,
reconstruir uma vida nova!
O dia do casamento amanheceu extremamente luminoso. Poucos convidados haviam
vindo ao castelo para a grande festa, e estes estavam devidamente alojados em
comodidade e regalias. Alguns lordes passeavam com lorde Arthur, conhecendo-lhe a
propriedade e fazendo-lhe elogios, o que o deixava satisfeito.
Gabriel, discretamente, tinha sido transferido ainda de madrugada da masmorra para um
cômodo aposento. Neste deveria ficar oculto até á hora da cerimônia.
Sara e Carol mantinham-se em seus aposentos preparando-se para a grande
comemoração, assim como as demais damas que haviam vindo da corte. A cerimônia de
casamento seria realizada ao entardecer.
Lorde Arthur acompanhara Ricardo durante todo o dia. Este se mantivera intranqüilo e
ansioso. Por vezes o nobre brincava com ele, em seu espírito juvenil, fazendo gracejos a
respeito de sua enorme inquietude e de sua expectativa . O médico mostrava-se
aparentemente contrariado e chateado, mas em seu íntimo gostava da alegria que aquele
jovem, que lhe era como um filho, lhe passava.
Lorde Arthur não contara ao médico sobre a presença de Gabriel no interior do castelo e
nem de suas intenções em presentear Carol com sua presença. Seria lhe uma enorme
surpresa ver que aquele jovem nobre, aceitara seus conselhos, e que a misericórdia e a
benevolência haviam curado as inúmeras dores de seu coração.
Aproximando-se das quatro horas, ao entardecer de um dia interminável, os músicos
fizeram soar lindas valsas no salão nobre. Em muito requinte e luxo, os convidados pouco
a pouco iam sendo anunciados por um servo elegantemente uniformizado, entrando no
salão em elegantes trajes de gala.
As velas em chamas que luziam nos candelabros faziam brilhar os pingentes de
cristalinos, realçando uma bela claridade. Belas jovens, de varias faixas etárias,
rodopiavam com seus avolumados vestidos agora no salão, em compasso ameno com
seus parceiros de dança.
O nobre Arthur olhava-as encantado com tanta beleza e formosura, mas sem nenhum
interesse especial. Repentinamente o servo anunciou uma convidada, o que despertou a
atenção de todos convidados, para a entrada do salão:
-A Duquesa Linia de Corleanos!
Os murmúrio se fez entre os convidados. Todos desejavam conhecer quem era e como
era a irmã daquele lorde tão jovem e tão rico.Linia entrou imponente no salão, estava
lindíssima em trajes de veludo acetinado em tons lilases. Sorriu a Arthur, fazendo-lhe leve
meneio.
Lorde Arthur sentindo-se observado por todos os seus convidados, sorriu-lhe
amorosamente, beijando-lhe as mãos. Depois ,no entanto, não conseguindo conter-se,
murmurou-lhe num cochicho irônico e brincalhão, de maneira que somente ela ouvisse:
- Linia, estou surpreendido, os ares dos campos te fizeram imenso bem, estás
maravilhosa!
Linia agradeceu-lhe sorridente, ainda que soubesse que o irmão lhe era irônico, e entrou
no salão sendo cumprimentada por todos. E assim, diversos convidados continuaram
sendo apresentados ao chegarem ao salão nobre.
O frei também já havia chegado e aguardava próximo a um pequeno altar improvisado e
completamente adornado por lírios brancos.Ricardo aproximou-se do salão e Lorde Arthur
fez um sutil meneio ao servo, para que este também o anunciasse:
-Lorde Ricardo Lamartine!
Ricardo olhou-o com discreta censura, pelo constrangimento, mas radiante em felicidade
sorriu-lhe, caminhando para o pequeno altar onde aguardaria a noiva.
As valsas haviam sido interrompidas, uma bela melodia suave orquestrada pelos músicos,
se misturava ao murmúrio dos convidados alegres no salão. O ambiente era leve e
feliz.De repente o servo anunciou:
-Lorde Gabriel Vandak, filho do falecido Duque Vandak!
Imediatamente os olhos de Arthur e Ricardo se encontraram num forte e indescritível
abraço apertado. Apesar da distância que os separava no salão, o nobre jovem Arthur,
sentindo uma enorme emoção de amor em seu peito, podia observar que os olhos de um
grande homem, seu mentor Ricardo, lacrimejavam destemidos da presença dos
convidados ou das normas sociais, em sinceras lágrimas, puras e belas, que lhe sorriam
em pranto candidamente agradecido. Lágrimas que o aplaudiam com extraordinário
orgulho!
Gabriel entrou belíssimo e elegante no salão, acompanhado de um jovem forte também
elegantemente vestido.
Linia não conseguia conter-se de curiosidade, indagando-se: "Não era aquele homem
que havia sido preso na masmorra? Que fazia numa festa tão imponente?” Admirou-lhe o
corpo forte e musculoso e o semblante de traços bonitos. Sentia enorme ânsia de
aproximar-se para vê-lo melhor, pois alguns cavalheiros impossibilitavam-lhe visão plena,
mas ficou onde estava.
Lorde Arthur, tentando se controlar na profunda emoção que ainda sentia na vontade
enorme de correr e abraçar aquele que lhe era o pai, Ricardo, sorriu fraternalmente para
Gabriel cumprimentando-o .Grandes e nobres sentimentos se expandiam em seu
pequeno coração.
-Duquesa Sara de Corleanos!
Sara entrou imensamente sorridente no salão. O seu cabelo adornado num primoroso
coque, a fazia aparentar faixa etária mais adulta. Estava elegantemente vestida, com um
deslumbrante vestido em cetim branco com muitas rendas e esvoaçante em saias
rodadas que pareciam flutuar com seu caminhar, apertado em sua cintura, oferecendo-lhe
as curvas que aquele corpo ainda muito jovem não possuía. Os pequeninos seios eram
sutilmente disfarçados, propositadamente, por um xale de renda que lhe descia sobre os
ombros .
Lorde Arthur olhava-a, fascinado com sua beleza, e caminhou determinado até ela. Deulhe um beijo carinhoso em suas mãos e Sara sorriu-lhe agradecendo num meneio. Disselhe:
-Querido Arthur, dançarás todas as valsas comigo!
Arthur prontamente concordou sorrindo-lhe .Sara então, soltando as mãos que o jovem
ainda segurava firmemente, caminhou até próximo ao seu tutor Ricardo. Percebera a
presença de sua mãe Linia, mas a ignorara.
O nobre jovem, olhava Sara continuamente, sendo-lhe difícil manter-se distante.
Finalmente o servo anunciou:
-Duquesa Carol Vandak!
Arthur sentiu receoso que os convidados ali presentes pareciam confusos com aquela
duquesa tão desconhecida na corte, porém tranqüilizou-se ciente de que estes não se
atreveriam a questionar ou dar seqüência a comentários maldosos.
Carol, aparentemente emocionada, olhou Arthur forçando um sorriso, mas o seu
semblante, em verdade, ameaçava prantear felicidade. Arthur aproximou-se e brincando
murmurou-lhe carinhosamente:
-Sei que é o dia mais feliz de tua vida, e a tua enorme beleza e candura demonstram a
tua felicidade, porém deixa para chorar depois.
A brincadeira infantil de Arthur a descontraíra um pouco. Carol lhe sorriu ternamente.
Arthur fez um sinal aos músicos para que tocassem uma outra doce melodia. Era o sinal
combinado com Gabriel para que se aproximasse de Carol. O jovem Arthur, sentindo
enorme e sincera emoção, disse á nobre senhora, num sussurro baixinho:
-O meu presente de amor, para uma mãe tão querida...
E apresentou-lhe seu filho Gabriel, que já se aproximara.
-Eis o teu filho,Lorde Gabriel Vandak, que te levará ao altar.
Carol não conseguiu conter-se na imensa emoção que sentia ao ver Gabriel ali, e
indiferente ás pessoas ali presentes, abraçou Arthur fortemente deixando se entregar a
um pranto profundamente agradecido. A vida finalmente lhe era plenamente feliz, aos
quarenta e dois anos de existência.
Arthur, extremamente emocionado com aquele momento sublime de amor, também
pranteou espontânea felicidade.
Inúmeros convidados ali presentes, atônitos, não compreendiam aqueles momentos tão
emotivos que presenciavam. Mantinham-se silenciosos, observando-os surpresos.
O jovem contendo-se no pranto sutil, sorriu-lhe brincando:
-Disse-te para chorares depois, tinhas que fazer-me chorar! Vai querida Carol, todos te
esperam, é a tua grande noite e tudo mereces!
A nobre senhora, tentando também conter a grande emoção que sentia forte em seu
peito, deu a mão a Gabriel que, segurando-a com emoção, levou-a ao altar, sob os
olhares de todos.
As duas mãos unidas estavam úmidas e trêmulas. Carol sentia que o seu filho, estava
tão sensibilizado quanto ela. Chegando ao altar, Gabriel deixou a sua mãe próxima a
Lorde Ricardo. Este sorriu-lhe agradecido, e beijou a face de sua companheira com
enorme amor, dando-lhe a mão, para que fosse abençoada aquela união .
A cerimônia foi breve mas profundamente emotiva. As valsas recomeçaram no salão,
convidando os ali presentes a se divertirem.
- Vamos dançar Arthur?
Os olhos de Sara pareciam mergulhar no seu coração. Lorde Arthur, sentindo-se culpado
pelo amor que tinha por sua sobrinha, ainda tão jovem, olhou para Ricardo suplicante,
sem saber como agir. Este, sentindo-lhe os receios, murmurou-lhe num cochicho,
confortando-o em suas aflições:
-Poderás dançar e conversar com Sara a noite inteira se assim desejares. Não vejo
problemas nisto.
Sentindo-se aliviado, Arthur tirou Sara gentilmente para dançar. Também Lorde Ricardo e
a duquesa Carol foram dançar no salão, radiantes de alegria.
Linia não conseguia mais controlar-se e aproximou-se de Gabriel, dizendo-lhe sutilmente
para que ninguém lhe percebesse a indelicadeza:
-Queres dançar comigo?
Gabriel olhou a bela jovem que lhe sorria amavelmente, olhou o guerreiro Paulo que o
olhava sutilmente... Sentindo-se confuso em como deveria agir, balbuciou-lhe
educadamente para aquela linda jovem:
-Não sei dançar senhorita, perdoai-me.
Linia, intrigada e sentindo-se confusa com o estranho sentimento que a impulsionava a
não afastar-se dele, insistiu:
-Conversai comigo então, Senhor Lorde Gabriel.
Este novamente olhou para Paulo, sem saber como se comportar. Pensou: “Estaria
infringindo as regras de lorde Arthur, em convidar uma senhorita para conversar?"
Paulo, percebendo-lhe as duvidas, fez um sinal discreto para que um servo chamasse
Lorde Arthur, que ainda dançava uma valsa com Sara.O nobre jovem, pedindo desculpas
por interromper a alegre dança, afastou-se da jovem sempre compreensiva, caminhando
na direção de Gabriel.
-Algum problema Gabriel? indagou-lhe Arthur sorridente,pois muitos convidados os
observavam. Fixou, no entanto, o olhar em sua irmã Linia, murmurando-lhe num baixo
balbucio sempre sorridente.
-Deixastes as noções de etiqueta em tua propriedade? Não sabes que uma dama jamais
deve abordar um cavalheiro?
Linia contrariada e sentindo-se humilhada na frente daqueles cavalheiros, afastou-se.
Gabriel, temeroso com a situação que ali se criara, pediu-lhe:
-Senhor Lorde Arthur, perdoai-me mas não estou certo em como comportar-me aqui. Não
seria melhor que eu retornasse ao aposento?
Arthur finalmente convencia-se de que Gabriel havia perdido por certo sua memória, em
sua simplicidade e completa indiferença a Linia, que tanto se parecia com sua paixão
Brigith.
Olhou o salão ao redor e visualizou que Sara o aguardava ansiosa, desejando dançar.
-Gabriel, deverás comportar-te como qualquer convidado. Poderás dançar, conversar,
comer ou beber. Mas estás proibido de te retirares deste salão enquanto eu não o
autorize, compreendes?
Gabriel fez-lhe um meneio afirmativo, agradecendo-lhe o auxilio.
-Paulo escutastes minhas ordens?
O guerreiro que vigiava Gabriel respondeu a seu nobre senhor:
-Sim senhor, lorde Arthur, assim será!
Finalmente Arthur sentia-se novamente livre para divertir-se com Sara, em noite tão feliz.
Gabriel também tentou distrair-se. Olhava as danças com euforia e escutava as valsas
alegres, sempre olhando para a sua mãe Carol, que aparentemente muito feliz,
conversava animadamente com seu companheiro Ricardo.
Admirou as bonitas jovens no salão, mas não teve o atrevimento de convidá-las a dançar,
ainda que sentisse enorme vontade de fazê-lo. Sentia-se leve. Sentia-se bem!
Contemplou Lorde Arthur com verdadeira adoração e agradecimento. Paulo, sempre a
seu lado, sutilmente, parecia-lhe o amigo e ninguém desconfiava a sua função de guarda.
Linia,que havia se afastado contrariada com a observação do irmão, não conseguia
controlar-se e continuamente observava Gabriel. Estava fascinada por seu porte elegante,
os traços belos do seu rosto, a vivacidade dos seus olhos, a cor bronzeada da sua pele.
Sentia-se atraída por seus músculos aparentes sob as vestes. Estava incrivelmente
seduzida por aquele homem!
Arthur percebera isto preocupado. Era incessante o seu olhar para Gabriel. Aproximou-se
fazendo-lhe uma reverência.
-Duquesa Linia, deseja dançar com seu irmão?
Linia olhou-o ainda contrariada, mas percebendo-se observada por alguns convidados,
deu-lhe a mão sorridente e ambos saíram valsando.
Arthur que o havia feito propositadamente para falar-lhe sem atrair atenções,
murmurou-lhe em seu ouvido discretamente:
-Ficai longe de Gabriel, minha irmã Linia!
A jovem tentando fingir-se surpresa, respondeu-lhe também num murmúrio:
-Não compreendo o que dizes, meu irmão.
Arthur aproveitando-se da valsa, deu um rodopio apertando-a em advertência.
-Sabes sim, irmãzinha... Observo-te desde o inicio da cerimônia e percebi claramente
como te aproximastes dele, e como ele reagiu em total indiferença. Tirai o olhar de
Gabriel! Se desejas casar-te novamente, poderás conseguir um bom pretendente neste
salão. Gabriel é mais pobre e servil que teu falecido marido Job, compreendestes?
Dizendo-lhe isto, Arthur interrompeu a dança da valsa, despedindo-se dela cordialmente
num sorriso. Caminhou então mais tranqüilo e alegre, para conversar um pouco com
seus amigos, Carol e Ricardo.
-Arthur, poderei conversar com meu filho Gabriel?, pediu-lhe Carol humildemente, ainda
emocionada com tudo e imensamente agradecida. Arthur pegando-lhe a mão falou-lhe
carinhosamente:
-Minha querida Carol, disse-te que era o meu presente de padrinho. Aceitei os bons
conselhos de teu companheiro Ricardo e Gabriel está livre, porém sob vigilância rigorosa.
A nobre senhora então, compreendeu o homem robusto que lhe fazia companhia, como
se um grande amigo lhe fosse.
-Poderá ir e vir ! Morará em vossa propriedade, enquanto residirem aqui no castelo,
Trabalhará administrando-a para vós.
-Existe tanta bondade em seu coração meu nobre Arthur, eterna será a minha gratidão
para contigo.
-Carol deixai de agradecimentos, muito lhe devo ainda, em nome de minha família.
Carol então, sorrindo-lhes, pediu-lhes licença e foi falar com seu filho Gabriel.
-Estás tão elegante, meu filho!
Gabriel beijou-lhe as mãos carinhosamente imensamente emocionado.
-Nunca te esqueças Gabriel, do que o nobre Arthur está fazendo por ti, concedendo-te a
liberdade, lhe deves gratidão e fidelidade eterna.
Carol fez uma pausa fixando-lhe o olhar atentamente.
-Promete a esta tua mãe, nesta noite tão linda e tão feliz, que reconstruirás a tua vida
sendo um homem bom e justo.
Gabriel olhou-a serenamente e as lágrimas sensibilizadas desceram-lhe nos olhos,
falando-lhe ternamente:
-Minha mãe, eu lhe prometo que de hoje em diante, somente sentirás orgulho deste teu
filho!
A emoção comovia-os enormemente e depois de breve silêncio, Gabriel sussurrou-lhe:
-Minha mãe, sinto imensa vontade de dançar, estou tão feliz!
Carol sorriu-lhe , falando-lhe.
-Dançai comigo a próxima valsa.
Recomeçando uma nova valsa, Gabriel tirou a mãe gentilmente para dançar, sob a
continua vigilância de Paulo.
Começaram a rodopiar no salão e Gabriel foi se sentindo cada vez mais leve e mais feliz.
VI Parte - No Hemisfério da Redenção
Porém a música parecia se tornar estridente. O murmúrio dos convidados no salão cada
vez mais alto. As luzes pareciam alterar suas tonalidades e intensidade. Sentia-se
confuso!
Percebia a mãe valsando feliz, sempre olhando-o, mas tinha uma grande sensação que
tudo girava e rodopiava á sua volta em velocidade incontrolável.
Podia ver Lorde Ricardo conversando com Lorde Arthur, mas as suas fisionomias
pareciam vir-lhe em relâmpagos, surgindo-lhe em grotescas imagens, bem perto de seus
olhos ou da sua mente.
Carol percebendo que algo errado acontecia com o seu filho, pois este parecia sentir-se
tonto, aconselhou-o carinhosamente.
-A emoção em demasia poderá fazer-te mal Gabriel.Repousai um pouco.
Carol acompanhou-o para que se sentasse um pouco na companhia de Paulo e afastouse.
Gabriel olhou ao redor e tudo ainda se mantinha girando ao seu redor. Sentia-se tonto e
fechou os olhos.
No escuro de sua mente, surgia-lhe o passado que havia temporariamente se apagado,
"em Infinita Misericórdia Divina, preservando-lhe o progresso evolutivo já conquistado em
vidas regressas". Horrorizado com todas as cenas que lhe vinham á mente,
compreendeu-se criminoso e percebeu o quanto aquele jovem , Lorde Arthur, havia sido
clemente em deixá-lo em liberdade.
Abriu os olhos e a musica voltou a se tornar uma doce melodia. O murmúrio dos
convidados era agora agradável. As luzes eram amenas mas cintilantes em beleza.
Olhou para a sua mãe Carol que o olhava com preocupação , Lorde Arthur e Ricardo que
dialogavam despreocupadamente. Falou tremulamente, comovido:
-Preciso de ar fresco, sinto-me mal.
Paulo imediatamente auxiliou-o a levantar-se e caminharam até uma das imensas janelas
abertas.
Gabriel respirou profundamente, sentindo o aroma fresco dos campos que tão bem
conhecia. Via a paisagem com os olhos astutos do menino que corria feliz em sua túnica
branca. Lembrou-se saudoso do velho Manco, que o acolhera e criara com imenso amor
e que sempre o abraçava carinhoso, sempre sorrindo...Lembrou-se da doce Brigith, que
lhe encantara o coração, com a sua enorme beleza e doçura. Lembrou-se do apelo
suplicante de seu tutor Manco, para que se arrependesse de seus erros, pedindo perdão
a Deus e tornando-se um homem bom. Lembrou-se do amparo de Job, recolhendo-o
fraternalmente no castelo, tratando-o como um bom irmão enquanto todos o repudiavam e
temiam, desejando protegê-lo. Lembrou-se da inexplicável piedade de Lorde Orlando,
concedendo-lhe a grandiosa oportunidade de regenerar-se. Lembrou-se das palavras
daquele nobre tão menino ainda, concedendo-lhe a liberdade, apesar do enorme
sofrimento que lhe impusera. Recordou-se emocionado da promessa que acabara de
fazer á sua doce mãe!
Virando-se, encontrou-a no salão, e em olhar fixo, reafirmou-lhe a promessa, de melhorarse. Estava imensamente envergonhado e arrependido da vida que levara e desejava
ardentemente reconstruí-la. Seria um homem bom e justo!
Caminhou emocionado na direção de Lorde Arthur, sendo seguido por Paulo, e disse-lhe
emocionado:
-Senhor lorde Arthur, preciso imensamente falar-lhe!
Lorde Arthur, ainda que não compreendesse o semblante amargurado de Gabriel,
acompanhou-o até o outro salão e de lá seguiram para a biblioteca, sempre
acompanhados por Paulo.
Lá chegando, Gabriel ajoelhou-se defronte a Lorde Arthur e em sincero pranto falou-lhe:
-Perdoai-me, senhor lorde Arthur. Dançando com minha mãe Carol veio-me á mente o
passado vergonhoso que tive. Creia-me que sinto-me imensamente arrependido!
Lorde Arthur olhou-o incrédulo e, pedindo-lhe que se levantasse, disse com seriedade:
-Terás tempo para provares teu arrependimento e só então, terás a plenitude de meu
perdão.
Dizendo isto Arthur afastou-se e Gabriel após se recompor, retornou ao salão sentindo-se
ainda profundamente envergonhado com as tristes recordações, porém com uma enorme
sensação de leveza por haver reconhecido os inúmeros erros que cometera.
Fazendo-se promessas de vida digna, caminhou com Paulo até o centro do salão, no qual
novamente sentaram-se comodamente visualizando tudo e todos.
Repentinamente o semblante de Gabriel contorceu-se em agonia. Não compreendia
como, mas os seus olhos estavam vendo a sua linda Brigith, elegantemente trajada,
rodopiando no salão com candura e infinita beleza.
Esfregou os olhos, ciente de que só poderia ser um delírio do amor que ainda lhe sentia.
Porém Brigith permanecia feliz e sorrindo no salão.
Lembrou-se assustado, que ela se aproximara dele chamando-o para dançar e que não a
reconhecera. "Como poderia não ter reconhecido o único e inesquecível amor de sua
vida?"...Estava confuso, sentia-se enlouquecer perplexo, sem nada compreender..."Como
poderia ser Brigith? Fora ao seu sepultamento!"...
Seus olhos angustiados, procuraram os de sua mãe suplicantes. Carol sentindo em seu
peito, que precisava auxiliar Gabriel, caminhou rapidamente até ele.
-Que tens meu filho? Sentes te mal?
Carol pegou-lhe carinhosamente nas grandes mãos. Estavam frias e tremulas.
-Minha mãe, recordei-me do passado!
A nobre senhora, percebendo-lhe a agonia disse-lhe serenamente:
-Abrandai teu coração Gabriel. Lorde Arthur te oferta uma nova oportunidade de
reconstruíres uma vida nova. Esquecei o passado e traçai um bonito futuro.
-Não compreendes minha mãe...vejo Brigith, está ali !
Carol olhou para a jovem Linia. Fora informada por seu companheiro e amigo Ricardo que
Linia era impressionantemente idêntica a Brigith. Compreendendo a enorme confusão que
se encontrava na mente de Gabriel , deixando-o aflito, explicou-lhe calmamente.
-Não meu filho, aquela jovem não é Brigith. Ela chama-se Linia. Contar-te-ei tudo.
Carol então narrou-lhe rapidamente e resumidamente a longa estória de Linia.
-Compreendes agora Gabriel? Linia é imensamente parecida fisicamente com a Brigith,
no entanto é completamente diferente dela.
Advertiu-o carinhosamente, sentindo-se demasiadamente preocupada.
-Se desejas provar realmente teu arrependimento ficai longe de Linia!
Dizendo isto, a nobre senhora afastou-se.
A noite já ia muito alta e Gabriel sentia-se exausto. Pedindo autorização a Lorde Arthur
para que pudesse ir repousar, despediu-se de Carol e Ricardo desejando-lhes felicidades
e recolheu-se ao aposento, febril e confuso.
Já a noite findava quando Linia saiu do castelo rumo á sua propriedade. Os demais
convidados também tinham se recolhido aos seus aposentos.
Ricardo e Carol haviam saído da festa posteriormente á saída de Gabriel.
Lorde Arthur, olhou o imenso salão vazio, sendo prontamente reorganizado pelos servos
sempre prestativos.
Aquela noite seria lhe inesquecível por muito e muito tempo.Os sentimentos lhe eram os
mais diversos. Felicidade na união de seus melhores amigos, grandioso alento na doce
companhia de Sara, apreensão e receios por causa de Gabriel, tristeza profunda pela
ausência de sua família, decepção intensa em relação a Linia, sempre vulgar e fútil,
imenso orgulho pela alegria que dera a seus convidados e pelos inúmeros elogios que
recebera destes, e uma melancolia muito forte por causa da viagem de Sara.
Nos dias seguintes, os convidados foram viajando e o castelo ia novamente ficando vazio
e voltando á tranqüila rotina costumeira.
Sara desceu a longa escadaria, entristecida e profundamente abatida, com a sua viagem,
para o educandário. Havia sido informada no dia imediato á grande festa e, inconformada,
não conseguia compreender os motivos pelos quais Arthur a distanciava do convívio com
eles a quem tanto amava, ou da propriedade na qual se sentia tão feliz.
Olhou Lorde Arthur que, cabisbaixo e aparentemente entristecido, a aguardava no salão e
indagou-lhe suplicante:
-Porque me mandas embora Arthur? Ainda não consegui compreender!
O Lorde tentou conter-se no enorme sentimento que lhe tinha. Desejava imensamente
que não partisse, mas como fazê-la entender que era o melhor para ambos?
Ricardo e Carol que tinham escutado a sua indagação, aproximaram-se e o humilde
médico colocando a sua mão, fraternalmente calorosa, sobre o ombro de Sara disse-lhe
carinhosamente:
-Querida Sara, todos sentiremos muito a tua falta. Quando voltares, no entanto, a alegria
será extrema...o tempo passará depressa!
Carol, também tentando reconfortá-la em sua imensa tristeza, falou-lhe:
-Aprenderás muitas coisas que não podemos ensinar-te e verás então, que a viagem era
essencial em tua educação.
Arthur e Sara mantinham-se silenciosos e olhando-se.
A tristeza lhes era profunda. Nenhuma palavra os faria sentir melhor ou evitaria que os
sentimentos profundos não lhes doesse.
O frei estava pronto para a viagem e Sara, após despedir-se de todos, caminhou para a
carruagem tentando disfarçar as lágrimas que desciam em suas faces rosadas.
Próximo á carruagem, no entanto, parou pensativa e voltou correndo até Arthur. Abraçouo fortemente e soluçando murmurou-lhe:
-Arthur, preocupo-me convosco. O perigo não está mais em Gabriel, está em Linia!
O jovem olhou-a fixamente tentando compreender a sua advertência e secando com
imenso amor as lágrimas que desciam nas faces da jovem faces, falou-lhe emocionado:
-Vou te esperar Sara! Que Deus nos proteja.
Sara tentou sorrir-lhe e após entrar na carruagem, esta rumou veloz com destino á corte.
Arthur silencioso, esperou imóvel que os viajantes sumissem na estrada poeirenta. Triste,
sentia que uma parte do seu coração partia para muito longe e por longo tempo.
Ricardo aproximou-se de lorde Arthur tentando reconfortá-lo, ciente do amor que este
tinha em relação a Sara.
Arthur fazendo-se de forte indagou-lhe:
-Tivestes notícias de Gabriel, estes dias?
Ricardo apiedou-se de Arthur, percebendo que este, desejava conversar para esquecerse de seu sofrimento e assim evitando emocionar-se.
Respondeu-lhe prontamente:
-Sílvio aqui tem vindo todos os dias ao entardecer, com a desculpa de ver seus pais.
Contou-me que Gabriel passa os dias, dedicando-se á propriedade. Contou-me ainda que
as terras já foram aradas e semeadas e que os pastos foram cercados para os animais.
Sinto-me tranqüilo com as notícias que ele tem me trazido.
.Sabes Ricardo, alguma coisa a respeito do guerreiro Paulo? O servo incumbido de vigiálo!
Sim, senhor Arthur. Contou-me que Gabriel nomeou-o seu capataz e que está sempre ao
seu lado, como é sua obrigação.
Arthur pensou silenciosamente e lhe disse:
-Sabes o que Sara me disse quando me abraçou?
Ricardo arregalou os olhos intrigado.
-Alertou-me que o perigo não está mais em Gabriel, mas em Linia. Porque achas que me
disse isto?
-Não sei, Lorde Arthur, mas pelas muitas estórias que já te contei a respeito de suas
misteriosas comunicações com o seu pai Job, e pelo que Carol também nos contou a este
respeito, aconselhar-te-ia que seria sensato levarmos a sério o alerta.Bom seria vigiarmos
Linia!
Arthur olhou-o seriamente e Ricardo comunicou-lhe:
-Amanhã irei com Carol visitar a nossa propriedade e o seu filho Gabriel. Trarei notícias.
O nobre jovem olhou-o agradecido, e imensamente entristecido pela longa ausência que o
afastaria de Sara, recolheu-se ao seu aposento. Sentia-se cansado dos intensos dias de
convívio social.
Linia olhou o crepúsculo pensativa. Vagou pausadamente pela sua sala de estar,
ricamente decorada a mando de Arthur. Sentia-se imensamente só.
Conseguira administrar a propriedade com o auxilio de um velho senhor, que naqueles
longos sete meses, supervisionara o trabalho dos servos nas plantações e o trato com os
animais.
Os servos, em temor, a respeitava e, ainda que inconformados com o seu afastamento do
castelo e de seu jovem e nobre senhor, se mantinham humildes e prestativos.
Somente Lana aparentava o enorme desgosto em se manter cativa, sob seu domínio. Era
fria e indiferente, ainda que não faltasse com suas tarefas rotineiras.
A moradia era confortável. Da sala de estar, onde se encontrava, poderia ir através de
largo corredor para os quatro aposentos espaçosos ou seguir para a sala de refeições e
copa, agregadas a uma enorme cozinha. Tinha ainda uma pequena biblioteca próxima á
sala de estar , na qual Lorde Arthur colocara inúmeras obras básicas para que se
instruísse.
De nada se esquecera seu irmão. Se preocupara em lhe dar todo o conforto. Estava
ciente de que alguns moveis e utensílios e certa parte do enxoval tinha sido
especialmente encomendados e trazidos da corte para a sua moradia, assim como a bela
harpa, que tanto lhe fazia companhia. Mas o vazio lhe era grandioso.
Passava as manhãs reclusa em seu aposento, e as tardes excluída da vida, naquela sala
de estar. Poucas vezes saia a cavalgar, ainda que a sua propriedade tivesse belíssimas
localidades a serem visitadas, inclusive uma bela e enorme cachoeira que desaguava
num rio límpido e de grande proporção. Não sentia qualquer desejo em fazer
passeio.Sentia-se uma prisioneira em sua masmorra luxuosa, condenada por seu irmão á
solidão , ao isolamento. Um verdadeiro claustro privado.
Jamais o perdoaria! Nunca se esquecera da noite em que invadira seu aposento para lhe
ameaçar a vida, areunião na biblioteca, onde Sara teve maior valor a seus olhos do que
ela, quando a colocou para fora do castelo, como se fosse um animal repugnante, e
também a festa, na qual ele foi extremamente autoritário, impondo sua vontade.
Quinze dias haviam se passado desde o matrimônio daqueles dois meros servos, mas
aos quais, o irmão dera nobreza e glória, "Lorde Ricardo Lamartine"...ironizou. “Duquesa
Carol Vandak Lamartine"...invejou-se! Não passavam de um médico do castelo e de uma
serva isolada, certamente por algum castigo imposto por seu pai, Lorde Orlando...haveria
de descobrir a verdade!
Os servos apesar de respeitá-la, mantinham-se fieis a Lorde Arthur e nada lhe contavam.
Uma idéia fixa se firmara em sua mente: "Precisava arrumar um aliado, que a auxiliasse a
destruí-los...mas quem?
Linia recordava-se da belíssima festa freqüentemente, dos galantes cavalheiros com os
quais havia dançado ou flertado. Mas nenhum lhe aguçara tão profundo sentimento como
Lorde Gabriel Vandak.
Sentia-se imensamente atraída por ele, e ainda que o irmão Arthur a houvesse alertado
de que este era pobre e servil, nada se alterara no intenso sentimento que pulsava forte
em seu interior.
Se encantara desde a primeira vez que o avistara. Não conseguia esquecer-se da
silhueta daquele forte homem, sendo levado para a masmorra..."Quantos mistérios!"...
Somente naquela festa, no entanto, conhecera-lhe o seu rosto, os seus traços e o seu
olhar firme e determinado.
Irritada com seus pensamentos e com a incessante amargura de seu coração, concluiu
que não mais seria uma serva das vontades e imposições de seu irmão., Decidida,
prontamente pediu a Lana que lhe providenciasse um mensageiro. Pegou um pergaminho
e com a pena, que mergulhava determinada no tinteiro, escreveu:
"Lorde Gabriel Vandak
Anseio em conhecê-lo melhor.
A duas horas ao norte, encontrará a minha propriedade,
Venha visitar-me!
Duquesa Linia Corleanos"
O mensageiro logo levou a mensagem á moradia de Gabriel.
A noite já se impunha majestosa quando Gabriel leu a mensagem enviada por Linia.
Manteve-se sentado num modesto divã que Ricardo improvisara.
A moradia de Ricardo e Carol era pequena e humilde. Ainda que Lorde Arthur tivesse
oferecido todos os recursos, Ricardo se limitara a gastar o essencial.
O mobiliário era pouco e rústico, mas tudo era muito cômodo e confortável.
A moradia se dividia em três aposentos, duas salas e copa com cozinha agregadas.
Quanto á propriedade, era de terras extensas e belíssimas colinas. Os verdes campos
eram entrecortados por inúmeros e pequenos riachos, que lhe facilitavam o cultivo.
Gabriel passara aqueles quinze dias trabalhando incessantemente. O trabalho era árduo,
tinha que arar, adubar e semear grandes áreas de terra. Desejava que Carol e Ricardo,
ao visitarem a propriedade, se orgulhassem de seu empenho e trabalho.
Esforçava-se para não se recordar de seu passado lastimável,porém quando não o
conseguia , mais se entregava a suas tarefas diárias, na ânsia ardente de compensar o
tempo perdido e o imenso mal que fizera.
Gabriel observou que Paulo o olhava curioso, parecia desejar saber o teor da mensagem
que recebera. Falou-lhe humilde:
Tua obrigação é vigiar-me e defender-me de fazer o mal. Eu mesmo exigirei que o faças,
pois não mais desejo errar. Esta mensagem é da Duquesa Linia, faço questão de que a
leias.
O guerreiro Paulo aproximou-se pegando o manuscrito e leu-o, depois o devolveu a
Gabriel dizendo-lhe:
-É uma linda e atraente jovem e está muito interessada . Na festa observei que apesar
das continuas repreensões de Lorde Arthur, a Duquesa Linia, não conseguia tirar os olhos
de ti, Gabriel. Irás visitá-la?
Gabriel mostrando-se indiferente, exclamou com seriedade.
-És o meu protetor, dizei-me o que devo fazer.
Paulo sentia-se confuso com aquela situação em que, de guerreiro imposto por Arthur a
vigiá-lo como o mais vis dos criminosos, se tornara o companheiro, o protetor, o
confidente e o amigo de Gabriel.
Mantinha-se no entanto, extremamente fiel a Lorde Arthur Corleanos e se para defender
ou proteger a sua vida fosse necessário ferir ou matar Gabriel, o faria sem hesitação. Era
o seu trabalho.
No entanto, a tarefa diária de vigiá-lo não lhe vinha sendo penosa como imaginara, mas
agradável e prazerosa.
O guerreiro Paulo falou-lhe:
-Deves tu decidir Gabriel. Se desejares ir visitá-la, nós iremos.
Gabriel compreendeu-lhe o alerta, não havia um só lugar onde fosse que Paulo não
estivesse bem próximo. Faziam as refeições juntos, repousavam na cômoda sala
fazendo-se companhia, dormiam no mesmo aposento, cavalgavam juntos, banhava-se
sob sua vigilância. Ele era sua sombra!
Nos primeiros dias, Gabriel falara-lhe brincando:
-Não foi somente Ricardo e Carol que se casaram, Arthur arrumou-me um marido!
Mas Paulo não gostara da brincadeira e Gabriel nunca mais se atrevera a mencionar o
incômodo de ter sempre alguém a seu lado, por vezes até o esquecia.
Gabriel olhou a mensagem, relendo-a, e depois rasgou o manuscrito, murmurando:
-Amanhã decidiremos.
E dizendo isto resolveu deitar-se pois o dia tinha sido exaustivo.
Ricardo se aproximava com Carol da propriedade que lhes pertencia. Visualizaram
campinas verdejantes amplamente aradas e semeadas, eram enormes as áreas de
plantio, mudas frutíferas sacudiam-se em outras áreas ardilosamente delineadas.
Os cavalos existentes ali eram mantidos num enorme pasto cercado caprichosamente por
toras de madeira. Outros pastos também assim adornados, aprisionavam outras criações.
Os poucos servos dali com certeza tinham trabalhado em exaustão para concretizar tudo
aquilo em tão poucos dias.Olharam-se felizes e orgulhosos com suas terras.
Aproximando-se da moradia, Ricardo verificou que dois belos bancos de madeira rústica
haviam sido improvisados, próximo á entrada principal, e que estes eram delicadamente
cercados de jardins perfumadíssimos.
Apearam dos cavalos e um servo aproximou-se feliz e prestativo . Sílvio falou-lhes
sorrindo:
-Senhor Lorde Ricardo, seja bem vindo á sua propriedade.
Olhou a senhora e também cumprimentou-a:
-Senhora Duquesa Carol, boa tarde.
Ricardo estava fascinado com a organização da propriedade. Indagou:
-Por onde anda Gabriel?
O servo prontamente respondeu-lhe,
-Senhor Lorde Ricardo, Lorde Gabriel foi até ás colinas, acompanhado pelos servos, para
trazerem madeira.
Ricardo sorriu para Carol, sentia-se feliz e recompensado com os conselhos que dera a
Arthur para libertar Gabriel.
Carol orgulhosa, compreendia no entusiasmo de seu marido, que muito devia ter
trabalhado o seu filho. Ricardo convidou-a a entrar na grande sala de estar, o maior
cômodo da moradia. Olhou o divã que improvisara e percebeu que Gabriel modificara a
posição do mobiliário, tornando o ambiente mais aconchegante.
Após mostrar a Carol os outros cômodos da moradia,esta resplandeceu serena felicidade:
-É simples e aconchegante, se não fosse pelo nosso menino Arthur desejaria vir morar
aqui prontamente. Veja os canteiros repletos de lírios brancos...as pedras no
caminho...está tudo tão bonito!
Ricardo abraçou-a dizendo-lhe:
-Quando aqui estive pela ultima vez, há aproximadamente vinte dias, ervas daninhas
fronteavam a moradia e as pastagens eram meramente mata natural. Tanto se fez em tão
pouco tempo! Desejas cavalgar?
Carol aceitou acompanhá-lo e Ricardo a auxiliou novamente a montar. Voltou-se para
Sílvio e indagou-lhe:
- Em que direção eles foram pegar a madeira?
Sílvio apontou-lhes a direção e Ricardo e Carol rumaram para lá, continuamente
deslumbrados com a propriedade que possuíam.
Não tardaram a avistar os dez servos de sua propriedade, descendo as colinas com seus
cavalos e perceberam que estes arrastavam grandes toras de madeira.
Gabriel e Paulo também estavam com eles, e seus cavalos também arrastavam a
madeira.
Gabriel vendo-os, alegrou-se e acenou-lhes sorrindo ainda a uma longa distância. Carol e
Ricardo cavalgaram em sua direção e, alcançando-o, o médico cumprimentou-o:
-Estás bem Gabriel?
-Sim senhor Ricardo, imenso prazer em vê-los aqui em vossa propriedade.
Gabriel apeou da montaria e caminhou até próximo ao cavalo de sua mãe. Após auxiliá-la
a apear, beijou-lhe as mãos com amor.
-Senhora minha mãe Carol, que alegria, senti tanto sua falta!
Carol sorriu-lhe dizendo-lhe.
-Como estás meu filho?
-Estou imensamente satisfeito trabalhando em vossas terras.Espero que tenham gostado
do pouco trabalho que fiz.
Gabriel olhando os servos que o aguardavam com as toras atreladas em seus cavalos,
desculpou-se:
-Acompanharei os servos e depois irei para a moradia onde poderemos conversar melhor.
Passamos a manhã recolhendo madeira para construir um grande celeiro, próximo ás
pastagens, pois breve nos fará falta.
Gabriel montou em seu cavalo e afastou-se com Paulo e os demais servos.
O sol já descia de sua imponência quando finalmente os quatro se reuniram para
alimentar-se. Gabriel,entusiasmado, contava-lhe as inúmeras tarefas realizadas e as
muitas que ainda pretendia realizar. O guerreiro Paulo mantinha-se silencioso. Após a
refeição tardia, caminharam até a sala, onde continuaram a conversar. Recordando-se da
mensagem de Linia, Gabriel indagou a Ricardo:
-Senhor Lorde Ricardo, ontem, já tarde da noite, aqui chegou um mensageiro da Duquesa
Linia, convidava-me para visitá-la. Que devo fazer?
Ricardo não conseguiu disfarçar a perplexidade que sentia.
-Dizia o motivo do convite Gabriel? Poderei ler o manuscrito?
Gabriel olhou silencioso para o médico e depois falou-lhe constrangido.
-Senhor Lorde, perdoai-me, mas rasguei ontem o manuscrito, mas Paulo também leu a
mensagem.
O médico alertou-o que não mais rasgasse qualquer mensagem, deveria guardá-las.
Aconselhou-o:
- Gabriel, deverás manter-te longe de Linia. Carol já te advertiu da conduta extremamente
ambiciosa desta tua sobrinha. Todos sabemos que é linda e atraente, e também estamos
cientes de que se interessou por ti. Porém, Gabriel,deverás ser prudente. Qualquer
aproximação, com a sua extrema ganância só poderá te trazer problemas.
Compreendes?
-Sim senhor Ricardo, assim o farei.
Gabriel então convidou Ricardo para cavalgar com ele, desejava mostrar-lhe onde
planejava construir o celeiro, e Ricardo aceitou prontamente.
Carol decidiu não acompanhá-los, ficando na moradia para repousar um pouco antes de
retornarem ao castelo de Lorde Arthur.
A tarde já findava quando Gabriel e Ricardo chegaram á moradia e após um breve lanche,
decidiram retornar ao castelo.
Porque não dormem aqui? Teríamos mais tempo para conversar.
Ricardo explicou-lhe que Lorde Arthur os aguardava e se preocuparia se não
regressassem , prometendo-lhe que retornariam á propriedade na semana imediata e
então ficariam alguns dias. Gabriel, feliz com a promessa, despediu-se deles sorridente.
Os dias passaram com extrema velocidade. Nas constantes atividades de lida com os
campos e as criações, Gabriel nem se dera conta de que havia se passado três anos.
Tinha tido êxito no cultivo e as colheitas haviam sido fartas. Também as arvores frutíferas
começavam a dar doces frutos. Três invernadas tinham passado sem grandes prejuízos á
propriedade.
Ocasionalmente, Lorde Ricardo o visitava, orgulhoso com a produtividade de suas terras.
Afeiçoara-se a Gabriel e o considerava um filho regenerado. Para si apagara-se as
inúmeras imperfeições e erros que ele tinha cometido em sua vida passada.Por vezes
Carol o acompanhava e ali ficavam alguns dias.
Paulo se tornara um autêntico irmão para Gabriel. Por vezes divertiam-se em reuniões
festivas com os servos, porém Gabriel nunca sentiu alguma afinidade com nenhuma
jovem. Mantinha-se fiel ao breve amor que tivera com Brigith e que mantinha docemente
em suas lembranças.
Linia insistentemente convidava-o para ir visitá-la. Por vezes, as mensagens traziam
aflitos apelos, dizendo que precisava de desesperado auxilio em sua propriedade. Gabriel
pedia a alguns servos para que lá fossem para averiguar os possíveis problemas e
auxiliá-la a resolvê-los, mas eles não tardavam a retornar dizendo-lhe que eram meras
banalidades, meros pretextos para levarem Gabriel até á sua propriedade. Gabriel deixou
de se preocupar com os apelos constantes de Linia , ignorando-os, e somente assim as
mensagens pararam de chegar. Sentiu-se então mais aliviado.
Lorde Arthur viajava constantemente. Viajou para Adredanha com o intuito de negociar o
sal com as vilas próximas á propriedade, negociando o bom resultado dos cultivos, e para
a corte, atendendo a convites sociais,
O jovem nobre estava em idade apropriada para assumir compromisso matrimonial.
Confidenciara ao seu amigo Ricardo, no entanto, que nunca o faria por mera obrigação
social ou interesse patrimonial, afirmando que somente assumiria uma união se alguma
jovem lhe despertasse intenso e verdadeiro sentimento de afeição.
Ricardo sentia-se cada dia mais orgulhoso de poder acompanhar aquele jovem, que
possuía nobreza de caráter acima de todos os seus títulos ou riquezas.
Quando o nobre se afastava do castelo, em suas viagens, Ricardo assumia a
administração de tudo e, ao retornar, Arthur demonstrava grande felicidade em encontrar
tudo bem e um lar em extrema paz, na companhia amiga de Carol e Ricardo.
Lana certa vez conseguiu com imensa dificuldade, se ausentar da propriedade de Linia,
para ir ao castelo. Contara preocupada a Ricardoque a Duquesa Linia havia recebido um
pretendente rico, que ela conhecera em viagem à corte, em sua propriedade.
Um senhor de porte elegante que desistiu prontamente de lhe cortejar, tão logo tomou
conhecimento de seu matrimônio anterior. Isto aumentara-lhe a ira intima, tratando os
servos com desrespeito e rispidez. Lana advertiu o médico com o semblante serio:
-Por vezes caminha intranqüila pela moradia, amaldiçoando o irmão Arthur e jurando
vingança!
Quando Ricardo contou o que soubera na rápida visita da serva Lana ao castelo a Lorde
Arthur, este preocupou-se em demasia. Vinha-lhe á memória, na doce lembrança e
enorme saudade de Sara, a quem ainda tinha intenso sentimento, as palavras da
despedida que o alertavam para ficar alerta em relação á sua irmã.
Numa manhã extremamente chuvosa, Linia estava recostada próximo á harpa, quando
um servo aproximou-se dizendo-lhe.
-Senhora Duquesa, um viajante deseja falar-lhe.
Linia imensamente intrigada pois há muito ninguém a visitava, ordenou-lhe
apressadamente:
-Que esperas servo, mandai-o entrar.
A jovem ajeitava os cabelos cacheados quando um forte cavalheiro entrou na sala, com
um olhar serio e vestes poeirentas. Reverenciou-a num meneio.
-Senhora Duquesa Linia!
A duquesa olhou-o com fria indiferença indagando-lhe com sua voz rude.
-A que vens viajante e o que desejas nas minhas terras ?
O homem olhava-a fixamente, com uma certa altivez que a incomodava.
-Venho lhe oferecer o meu trabalho senhora duquesa.
A duquesa Linia caminhou até o vitral tentando fugir de seu olhar fixo que a incomodava.
Virou-se encorajando-se e novamente o indagou.
-Que sabes tu fazer ?
O viajante olhou para o servo que ainda estava na sala, mostrando-se incomodado e
aparentemente contrariado com a sua presença. Linia percebendo-o, considerou aquele
homem altivo extremamente atrevido, mas sentindo-se curiosa,prontamente ordenou ao
servo que saísse imediatamente. Disse-lhe então perplexa com sua atitude:
-Nada tens em humildade, para quem pede trabalho.Julgas-te superior? Quem és tu,
afinal?
O viajante fez-lhe um longo meneio apresentando-se:
-Meu nome é Antoan. Trabalhei durante quatorze longos anos para Lorde Orlando em seu
castelo.Sempre lhe fui fiel e servil. No entanto, quando o nosso senhor lorde faleceu com
a terrível peste, o seu filho, Lorde Arthur, expulsou-me do castelo.
Linia interrompeu-o intrigada e temerosa:
-Porque meu irmão te expulsou?
Antoan baixou a cabeça, tentando disfarçar um pouco de sua aparente revolta, e
continuou contando-lhe:
-Certa vez omitimos uma informação ao senhor Lorde Orlando. Não o fizemos por mal,
temíamos que o nosso senhor perdesse a confiança em nossos serviços.
A duquesa interrompeu-o irritada.
-Pára...pára Antoan! Não estou entendendo nada do que dizes! Contai-me tudo direito.
O guerreiro calmamente contou-lhe que procuravam um servo fugitivo que se ocultara na
mata em Adredanha. Como não o encontraram, e tendo ordens sérias de prendê-lo,
concordaram em dizer a Lorde Orlando que este havia morrido. Linia perguntou-lhe:
-Como Arthur ficou sabendo que era mentira?
Antoan foi rápido e direto:
-Porque o servo apareceu vivo!
Indagou-lhe curiosa:
-Quem era ele?
O guerreiro respondeu-lhe com imensa ira em sua voz .
-É hoje o Lorde Gabriel Vandak.
Linia levantou-se, fascinada com a estória que aquele ainda jovem guerreiro lhe contava.
A vida finalmente lhe ofertava um aliado. A estória de Gabriel a interessava, pois o
sentimento forte e terno que lhe tinha, havia se transformado naqueles três anos em
enorme despeito e revolta em função da enorme indiferença que Gabriel demonstrara á
sua ânsia de vê-lo.
-Sentai-te, Antoan, e contai-me tudo o que sabes sobre Lorde Gabriel Vandak.
O guerreiro sentou-se sem cerimônias e rapidamente foi lhe contando a infância de
Gabriel, a sua paixão por Brigith, as mortes premeditadas que cometera, a viagem para
Adredanha e o retorno ao castelo. Linia estava impressionada com tudo o que ouvia.
Pensou irônica: "Então o prisioneiro criminoso virou um lorde. ..."porque meu irmão
também não o havia matado?"
Como sabes de tudo isto Antoan?
-Senhora duquesa Linia, eu sou um guerreiro e sabia de tudo o que acontecia nas
propriedades de meu senhor. Por vezes, ele mesmo nos informava, pedindo-nos que
aumentássemos a vigilância, outras vezes apenas observando e escutando comentários.
-Que fizestes Antoan, nestes anos ausente do castelo?
Antoan olhou-a vivamente:
-Vaguei por aí, senhora Duquesa, tentando esquecer a grandiosa injustiça. Compreendame senhora, sempre fui fiel e servil e fui expulso do castelo, enquanto o servo Gabriel foi
hostil e criminoso, e foi acolhido em nobreza. Soube que a senhora vivia na propriedade
sozinha e decidi lhe oferecer meus préstimos.
Os olhos de ambos se cruzaram febrilmente. O cavalheiro sujo mas elegante atraia-lhe o
corpo carente da eterna solidão, e Antoan também parecia sentir-se fascinado pela beleza
da jovem Linia.
Os olhares eram cúmplices, nos sentimentos que os atraiam....mantiveram-se silenciosos
por alguns instantes.
Antoan deveria estar com seus trinta e cinco anos e o porte atlético mostrava-lhe a força e
a coragem.
-Tens a arte de Gabriel, Antoan?
Antoan mostrou não ter compreendido. Linia falou-lhe então claramente:
-És um bom arqueiro?
O viajante, sem compreender as suas intenções,disse-lhe:
-Fui treinado até os vinte e um anos na corte inglesa para ser um bom guerreiro, sei
manusear qualquer instrumento de guerra com precisão absoluta.
Linia olhou-o ardilosamente, os olhos faiscavam-lhe vingança e paixão. Disse
generosamente:
-Concederei um aposento para ti, nele deverás banhar-te. Providenciarei vestes limpas e
perfumadas. Voltaremos a falar ao entardecer na ceia. Serás meu hospede Antoan. Mas,
antes jurai-me fidelidade!
O guerreiro, imensamente satisfeito, ajoelhou-se aos pés de Linia dizendo-lhe:
-Juro-lhe extrema fidelidade, nobre Duquesa Linia Corleanos!
Linia então chamou Lana e lhe pediu que encaminhasse o hóspede ao aposento. Deveria
lhe providenciar sais para seu banho e vestes limpas e perfumadas.
Lana imediatamente reconheceu Antoan e estava ciente de que Linia hospedava um
guerreiro que saíra do castelo, ameaçando vingança ao nobre Lorde Arthur. Precisaria
avisá-los no castelo, mas como poderia fazê-lo se Linia não permitia que se afastasse?
Encaminhou Antoan ao aposento e, depois de providenciar-lhe a água quente, os sais e
as vestes, pôs-se a pensar aflita em como avisar o nobre Ricardo.
Já escurecera quando finalmente Antoan surgiu na sala. A pele bronzeada realçara-se
com o banho, as vestes limpas traziam leve aroma perfumado, os seus longos cabelos
contornavam-lhe os ombros, e os seus olhos sempre muito vivos aguçavam os desejos
frustrados de Linia em relação ao seu sentimento rejeitado por Gabriel. Ela deixou-se
cortejar e seduzir.
Lana observou quando Linia surgiu de manhã, acompanhada por Antoan. Sabia que
tinham dormido juntos e estes também não faziam questão de ocultá-lo. Na refeição
matinal trocavam olhares, caricias e sorrisos cúmplices.
Antoan disse-lhe carinhosamente:
-Vamos cavalgar senhora duquesa? Desejo mostrar-lhe algo.
Linia entusiasmada concordou e após a refeição saíram sorridentes para providenciar a
montaria. Lana estava demasiadamente preocupada com a extrema proximidade e
intimidade dos dois, mas nada poderia fazer a não ser observá-los.
Antoan cavalgou com Linia até á belíssima cachoeira, na qual apeou da montaria e
auxiliou a duquesa também a fazê-lo.
Caminhando em meio á vegetação, abaixou-se procurando algo e, encontrando-o,
levantou-se erguendo sua brilhante e afiada espada.
-Querida duquesa, agora seu guerreiro está inteiro e pronto para o que desejar!
Linia olhou-o fixamente, fazendo-lhe a seguinte proposta:
-Prestai atenção no que te digo Antoan, porque estamos a sós. Casarei contigo e serás
um lorde e dono desta propriedade, se fizeres um pequeno serviço para mim.
Antoan aproximou-se, perplexo com as sutis mas felinas palavras da bela jovem.
-Casar-me contigo?
A jovem duquesa olhou-o contrariada.
-Gostastes de mim, não? Terás fortuna, terás a propriedade. Terás titulo de nobreza!
Antoan permanecia perplexo com a proposta da jovem,e indagou-lhe temeroso.
-E o que tenho que fazer para ti, para ganhar vida tão rica?
Linia aproximou-se dizendo-lhe pausadamente.
-Não gosto de meu irmão. Também me expulsou do castelo e me humilhou inúmeras
vezes. Não gosto de Gabriel...ignorou-me tratando-me fria e indiferentemente nas muitas
vezes que implorei que me visitasse. Não gosto do médico Ricardo, que julgou-me vulgar
e inescrupulosa. Todos me afastaram da afeição de minha filha. Lorde Arthur lavrou um
testamento no qual Sara, a minha querida filha, é herdeira de tudo e de toda a fortuna dos
Corleanos. Mas o medíocre médico é o seu tutor até que atinja a maioridade.
A jovem fez uma pausa para respirar profundamente e prosseguiu.
-Enquanto dormias ao meu lado, arquitetei um plano e desejo que o concretizes.
Antoan completamente intrigado, suplicou-lhe:
-Dizei-me, senhora Duquesa.
A jovem pegou-lhe a mão propositadamente e contou-lhe:
-No momento propicio e após algum treino, cavalgarás bem cedo até á propriedade de
Gabriel Vandak. Meus mensageiros informaram-me que se banha ás tardes num rio
próximo á moradia. Ele e o guerreiro Paulo que sempre o acompanha. Sem que o
percebam, lhes roubarás as vestes e assim que saírem da água para procurá-las, deverás
matar Paulo com uma flecha certeira no peito. Munido das roupas de Gabriel e de seus
cavalos, rumarás para o castelo. Lá deverás chegar ao entardecer. Sei que o médico
Ricardo sempre gostou de passear á noite, e também o alvejarás com uma flecha
certeira. Atraídos por sua demora ou talvez pelos gritos da sua esposa Carol, que
provavelmente estará ao seu lado no momento que o matares, Lorde Arthur virá para ver
o que acontece, e o matarás também da mesma forma. Os servos e Carol serão as
testemunhas de mais este crime de Gabriel! E para eles fiquem mais certos ainda disto,
deixarás as vestes e o cavalo de Gabriel próximo ao lago. De lá, irás para o teu cavalo
que haverá de estar oculto em algum lugar, e virás tranqüilamente embora!. Ninguém
desconfiara de ti ou de minha nobreza.
Linia explanara tudo com extrema frieza, mas isto, ao invés de repudiar Antoan, atraia-o.
Desejava vingar-se também de Arthur, mas nunca pensara que o destino, em troca disto
lhe oferecesse uma linda e determinada mulher, fortuna, propriedades e nobreza.
Antoan mantinha-se silencioso, visualizando em sua mente a trama elaborada por Linia. A
jovem duquesa interrompeu-lhe os pensamentos.
-Então Antoan, desejas concretizar o meu pedido e casares comigo?
O guerreiro em sua vivacidade indagou-lhe:
-Porque confiar na senhora, duquesa Linia? Como posso ter a certeza que honrarás tua
palavra?
Linia soltou uma risada.
Não sejas tolo, Antoan, és um guerreiro e eu uma frágil dama, crês que poderia fugir de
ti? Para onde?
Antoan olhou-a e, após pensar calmamente, falou-lhe:
-Farei o que me pedes, mas precisarei treinar durante alguns meses. Tens pressa?
Linia, novamente rindo feliz, murmurou:
-Temos todo o tempo deste mundo!
O guerreiro então, entregando-lhe a espada para que Linia segurasse, balbuciou:
-O destino nos ajuda querida duquesa, tenho outra surpresa para lhe ofertar.
Linia olhou-o super intrigada e novamente Antoan caminhou em meio á vegetação,
abaixou-se e desta tirou oculto, um imenso arco de madeira talhada e varias flechas feitas
rusticamente. A jovem estava extremamente curiosa e perguntou-lhe:
-Fizestes isto sozinho?
Antoan olhou-a fixamente.
-Não querida duquesa, Lorde Gabriel Vandak o fez.
Linia sentiu as pernas ficarem-lhe tremulas:
-Como conseguistes?
O guerreiro deixando a seriedade de lado, gargalhou radiante.
Roubei de Lorde Arthur, nobre Duquesa Linia Corleanos!
-Mas como o conseguistes?
Antoan contou-lhe que antes de Lorde Arthur sair cavalgando com Lorde Ricardo, para
procurar Carol, após as longas tempestades, deixou distraidamente o arco e as flechas,
guardados próximo ao pavilhão interno dos servos. Fácil foi tirá-los de lá e escondê-los.
Saiu então da propriedade, ao anoitecer, sem que ninguém o visse carregando o
armamento.
-Porque o roubastes?
O guerreiro pensou demoradamente e depois explicou-lhe:
- Não sei, senhora Linia, agi em mero impulso de vingança. O Lorde nos dera até o
entardecer daquele dia para sairmos da propriedade. Não havia mais peste e não havia
mais nevascas. Mas também não havia mais capataz, e os guerreiros que ficavam no
castelo eram poucos.
Ambos riram febris e alimentados pelo intenso desejo de fortuna e vingança.
A primavera chegara em intensa cor a todos os cantos, florindo-os e esverdeando-os.
Pássaros alegres sobrevoavam as colinas em acasalamento. A propriedade parecia um
imenso jardim iluminado. As águas dos rios, em extrema claridade, corriam amenas
trazendo-lhes paz. Os cavalos livres corriam em esplendor. O sol,em sua imensa
majestade, emitia força e intensa luminosidade.
Nos campos, os servos, numa livre cooperativa, faziam a colheita das verduras e
legumes. Outros colhiam doces frutos no pomar.
Ricardo respirou profundamente e, suspirando, apertou a mão de Carol. Tudo lhes era
extrema felicidade. Amavam-se e admiravam-se cada dia mais.
Ricardo percebeu que um servo desconhecido se aproximava a galope e em trote ligeiro.
Aproximando-se cumprimentou-o apeando do cavalo:
-Boas tardes. Trago uma mensagem da corte para o senhor Lorde Arthur.
O médico encaminhou-o á biblioteca onde Arthur se encontrava, com números
matemáticos em seus controles.
-Arthur, este mensageiro deseja falar contigo!
Arthur olhou-o em expectativa.
-Senhor Lorde Arthur trago-lhe uma mensagem do educandário Santa Izabelita, na corte.
O Lorde prontamente pegou o manuscrito e dispensou-o.
Ricardo preparava-se para sair mas Arthur pediu-lhe que ficasse e se sentasse.
As faces de Arthur rosaram-se tal qual as pétalas das rosas no pátio interno do castelo, a
emoção lhe era aparente e perceptível. Ricardo observou-lhe a respiração ofegante, num
coração que com certeza lhe batia muito forte.
Há muito tempo a menina Sara não mandava lembranças em mensagens. No inverno
fizera seu décimo-quarto aniversario e deveria retornar breve ao castelo.
Arthur rompeu cuidadosamente o lacre, as mãos estavam tremulas e temerosas.
Caminhou até o grande vitral e começou a ler.
"Meu querido Arthur,
"Conto os dias que ainda faltam para revê-lo.
Sinto muita saudade de tudo e de todos.
No próximo inverno concluirei o período.
Venha buscar-me, eu lhe imploro!
Imensas saudades da sobrinha
Sara"
"Obs.: Cuidados extremos com a Duquesa Linia Corleanos!"
Arthur leu e releu a mensagem, a emoção silenciava-lhe as palavras, não conseguia falar.
Entregou o manuscrito a Ricardo silenciosamente e retornou a mesa de trabalho.
Porém não conseguia concentrar-se, a saudade lhe feria o interior. "Como seria Sara
adulta?" A indagação lhe aguçava a curiosidade. “Seria ainda a menina dócil e meiga,
teria a beleza em traços sutis?"
Arthur convivera aqueles anos com muitas jovens, mulheres e rameiras, mas o
sentimento em relação a Sara não lhe fora extinto, mantinha-se ardentemente aceso
numa lembrança saudosa constante.
Ricardo olhou-o interrompendo-lhe os pensamentos:
-Ainda gostas muito dela.
-Ricardo, poderás não compreender, mas apesar do tempo, da distância e da falta de
notícias, sinto que lhe tenho extremo sentimento.
Lorde Arthur fez uma pausa para conter a emoção e prosseguiu:
-Se pudesse iria agora mesmo buscá-la, tenho imensa curiosidade de vê-la senhorita.
O médico sorriu-lhe:
-Falta pouco Arthur, os anos passaram rápidos e nem os percebemos. Irei buscá-la antes
do inverno como havia te prometido.
Ricardo então ficou sério e disse-lhe:
-Que terá sabido Sara, tão longe de todos nós, para novamente nos fazer o alerta em
relação a Linia?
Arthur olhou-o fixamente:
-Também achei interessante e fico temeroso com suas intuições. Lana apareceu?
Não,Lorde Arthur, há seis meses não aparece para trazer-nos notícias. Deveríamos
providenciar de imediato uma maneira de saber o que ocorre em sua propriedade.
Silênciou um pouco e indagou-lhe:
-Porque não vais visitá-la, Lorde Arthur, é tua irmã.
-Sabes, no entanto Ricardo, que não lhe tenho simpatia. Não compreenderia o motivo da
visita.
Ricardo teve uma idéia e falou-lhe:
-Quem sabe poderias mandar-lhe uma mensagem, e nesta relatarias tua preocupação
com a falta de notícias. O mensageiro, usando deste artifício poderia conversar com Lana,
e trazer-nos novidades.
Arthur contestou:
-Ricardo, não posso mandar uma mensagem perguntando como está. Nunca o fiz nestes
anos.
Após pensarem alguns instantes:
-Poderás indagar-lhe se não possui boa colheita para vender-te.
O nobre jovem prontamente concordou com a idéia de seu fiel e amigo Ricardo.
Combinaram então que no dia imediato, mandariam um mensageiro instruído a falar com
Lana, na propriedade de Linia.
A vegetação sacudiu-se sutilmente, o sol amenizava a sua grandeza naquele dia. Há
muito estava ali, observando-os, e tentava controlar e silenciar a sua respiração, para que
não fosse ouvido.
Aguardava o momento propício ao ataque.
Lorde Gabriel Vandak, banhava-se distraidamente nas águas frescas do rio, junto com o
seu amigo o guerreiro Paulo.
Antoan observou as vestes penduradas num galho, não muito distante. Fácil seria pegálas sem ser visto, em momento oportuno em que se virassem para a outra margem do rio.
Os seus cavalos soltos também propiciavam o ataque, pois haviam se ocultado na
vegetação, procurando melhor pasto para se alimentarem.
Não tardou a que agilmente conseguisse pegar as vestes e as colocou numa pequena
bolsa de couro que trouxera consigo. Lentamente, em meio á densa vegetação, atrelou o
cavalo de Gabriel ao seu com um cipó bem firme.
O guerreiro Antoan voltou então para o seu posto de observação e agilmente ergueu o
arco e predispôs uma flecha em mira.
Pensou "Será fácil acertá-lo quando sair da água...a mira será certeira!" Muito havia
treinado, nas proximidades da cachoeira da propriedade da Duquesa Linia para aquele
momento, e não falharia!
Gabriel na água fresca sentia-se feliz e harmoniosamente em paz. Disse carinhosamente
ao guerreiro que sempre o acompanhava:
-Amigo Paulo, precisamos retornar á moradia, para nos alimentarmos e depois voltaremos
á lida, ainda temos imensa colheita a fazer hoje, antes que escureça.
O guerreiro Paulo concordou, sorrindo-lhe amigavelmente.
-Gosto imensamente de ti Gabriel, és o irmão que a vida não me concedeu.
Paulo inexplicavelmente sentia-se extremamente sensível e agradecido. O sorriso surgiralhe em bondade, concordando que deveriam retornar á moradia imediatamente.
Ambos se ergueram para sair do rio, quando repentinamente uma flecha certeira atingiu o
lado esquerdo do peito de Paulo.
Gabriel atônito, viu o seu amigo caindo com um agonizante gemido. Correu em sua
direção observando perplexo e em grandioso sofrimento que uma flecha cravada em seu
corpo fazia jorrar grande quantidade de sangue.
Abaixou-se tentando auxiliá-lo, em desespero.
-Meu amigo Paulo, estás ferido!
O guerreiro ferido e já agonizante, ainda conseguiu lhe murmurar antes de falecer.
-Esconde-te amigo Gabriel, é um ataque!
Gabriel percebendo em imensa dor que o seu companheiro falecera, correu confuso para
se ocultar sob um forte rochedo.
As lágrimas jorravam-lhe nos olhos tal qual o sangue jorrava ainda intenso no corpo inerte
de seu amigo, do qual não conseguia tirar os olhos.
Atordoado tentou visualizar qualquer movimento na vegetação, mas esta mantinha-se
silenciosa.
Antoan, concluindo o êxito de sua mira, montou rapidamente em seu cavalo e saiu em
galope ligeiro, rumo ao castelo de Lorde Arthur, levando a montaria de Gabriel consigo.
Gabriel escutou o relinchar dos cavalos e o trote apressado. Cambaleante e em profunda
emoção correu até o corpo de Paulo e o arrastou até uma forte árvore longe do rio.
A dor lhe era imensa e as lágrimas eram incontroláveis em suas faces pálidas. O pranto
angustiado lhe asfixiava a respiração, sentia o cruel sofrimento da perda de um ente que
lhe era imensamente querido. Em imagens cruéis em sua mente, surgia-lhe também o
imenso sofrimento, dos familiares dos entes que havia matado inconseqüentemente e em
extrema frieza.
Estava completamente paralisado pela emoção e perplexo com aquela situação.
Mecanicamente procurou as suas vestes mas não as encontrou, procurou o cavalo negro,
ao qual domara e tinha verdadeira estima, mas ali também não estava!
Desnudo e completamente sujo com o sangue de Paulo, montou no branco cavalo deste
e intuitivamente rumou para o castelo de Lorde Arthur.
Em seu imenso sofrimento ansiava alertá-los e pedir-lhes auxilio.
Antoan apeou da montaria na propriedade do castelo de Lorde Arthur.
Defronte ao grande lago amarrou o seu cavalo em meio á vegetação. Propositadamente,
vestiu a túnica de Gabriel e amarrou os longos cabelos tal qual Lorde Vandak o fazia.
Sentindo-se pronto, montou no astuto cavalo negro do nobre , munido de seu arco e de
suas flechas.
A silhueta estava idêntica. Com certeza, quem o avistasse á distância, não teria qualquer
duvida de que se tratava de Lorde Gabriel Vandak.
Antoan subitamente escutou um trotar ligeiro mas ainda distante se aproximando.
Perspicaz e ágil o guerreiro cavalgou rápido em sua direção. Com extrema facilidade
alcançou Gabriel que cavalgava rumo ao castelo. Velozmente interceptou-o, fazendo com
que Gabriel caísse da montaria.
Ambos se digladiaram em árdua luta corporal. As forças lhes eram compatíveis. Porém
Antoan ,conseguindo alcançar uma pedra, a bateu violentamente sobre a cabeça de
Gabriel fazendo-o perder os sentidos.
Sem hesitação o guerreiro o levou para o lago e lá amarrou Gabriel e o cavalo de Paulo,
próximo ao seu cavalo.
Cavalgando cautelosamente, aproximou-se do castelo. Apeou da montaria e ali ficou
oculto esperando que a oportunidade lhe surgisse.
Somente então Antoan observou que a veste de Gabriel, que propositadamente trajava,
se sujara com o sangue que ele ainda trazia em seu corpo. Prendendo novamente os
longos cabelos, que haviam se soltado na luta corporal, sorriu radiante sentindo que tudo
o beneficiava e facilitava o seu trabalho.
Quando a noite cobriu as colinas e um imenso céu estrelado surgiu, Antoan
pacientemente oculto na vegetação, avistou que dois vultos saiam do castelo.
Pela silhueta de ambos, percebeu que caminhavam de mãos dadas e pelos trajes
concluiu serem de um homem e de mulher.
Não poderia haver qualquer erro em suas conclusões, estava certo, ainda que não
pudesse lhes ver os semblantes, de que eram Lorde Ricardo e a Duquesa Carol.
Silenciosamente o guerreiro ergueu o imenso arco e puxou com força extrema em seus
dedos, a comprida flecha.
Fez a mira ao médico e em momento oportuno atirou-a em grande velocidade.
A flecha, num incrível zumbido certeiro, atravessou o cérebro do Lorde Ricardo Lamartini.
Carol olhou-o horrorizada e aos gritos, em completo estado de choque, tentava erguer o
companheiro imóvel do solo.
Ricardo tinha falecido, instantaneamente assassinado.
Lorde Arthur, ouvindo os gritos daquela senhora sempre tão serena, saiu do castelo
correndo desesperado, para socorrê-la em sua aflição, assim como alguns guerreiros e
servos que também surgiam do interior da moradia.
O jovem nobre desesperou-se ao ver o amigo e pai Ricardo, envolto em sangue, com os
olhos arregalados e uma flecha que lhe atravessava o cérebro.
A emoção terrivelmente dolorosa também rasgou-lhe os sentidos, fazendo-o cair ao solo
desesperado, tentando reavivá-lo.
Em pranto incontrolável, percebeu que o corpo de seu tutor, já se encontrava
completamente sem vida.
Inconformados e em prantos, completamente agoniado, permaneceram debruçados sobre
o corpo de Ricardo, implorando-lhe que não os deixasse sozinhos.
A dor imensa os sufocava, fazendo-os confusos e sem nada conseguir raciocinar. Por
alguns minutos a perplexidade e o sofrimento em todos ali presentes os afastava da real
situação que viviam. Nem mesmo os guerreiros atônitos, conseguiam lembrar-se de que
Ricardo havia sido alvejado e que o ataque poderia continuar.
Antoan, em nova posição de mira, aguardava pacientemente que Lorde Arthur se
erguesse, mas este não o fez.
Despertando daqueles breves instantes de perplexidade, os guerreiros armados
rapidamente colocaram-se a averiguar de onde provinha o ataque.
Antoan enfurecido , concluiu que logo estes caminhariam em sua direção, vasculhando a
vegetação.
Prudentemente, montou rapidamente no negro cavalo de Gabriel e erguendo o arco bem
alto, com um de seus fortes braços, cavalgou varias vezes próximo ao rio, para que todos
ali o vissem.
Arthur e Carol ainda perplexos com tudo o que ali acontecia, escutando o insistente
relinchar do animal distante, despertaram de sua dor virando-se para ver o que ali ocorria.
Naquela triste noite clara, viram Gabriel em sua túnica branca e com seus cabelos presos,
desafiando-os em seu cavalo negro na margem distante do rio. Em suas mentes este
parecia gritar vitorioso : "Vingança!"
Os guerreiros e os servos revoltados, correram em sua direção desejando alcançá-lo.
Porém Antoan ,extremamente veloz, retornou ao lago e sem demoras e com extrema
agilidade, colocou Gabriel que ainda se mantinha inconsciente sobre o cavalo de Paulo e
atrelando a este o seu próprio cavalo, puxou-os em galope ligeiro, embrenhando-se na
mata, rumo á propriedade de Ricardo e Carol.
Chegando á propriedade, Antoan apeou do negro cavalo e tirando Gabriel também da
montaria, arrastou-o até próximo ao corpo de Paulo.
Tirou a túnica que trajara propositadamente, e tranqüilamente vestiu-a no Lorde Gabriel
Vandak, que ainda se mantinha inconsciente. Recostou-o na frondosa arvore, em posição
que aparentava repousar profundamente. Colocou o arco e as flechas ao seu lado e as
vestes de Paulo próximas ao seu corpo. Sentindo-se vitorioso, amarrou o cavalo de
Gabriel e do guerreiro Paulo.
Antoan olhou-os feliz e gargalhando eufórico, pensou consigo: "Tudo dera incrivelmente
certo".
Fez-lhes uma sarcástica reverência e saiu galopando com seus trajes limpos e em seu
cavalo, rumo á propriedade da Duquesa Linia Corleanos, que não tardaria seria também
sua!
Lorde Arthur, completamente transtornado ao ver Gabriel desafiando-o nas margens do
rio, não hesitou no que deveria fazer.
Correra ao celeiro e cavalgando com seus guerreiros rumou determinado para a
propriedade de Lorde Ricardo.
Durante aquela veloz cavalgada de uma hora, Arthur não conseguira organizar os
pensamentos em sua mente.
Imagens claras do sorriso tranqüilo de Ricardo, do seu forte abraço, do incentivo na mão
quente freqüentemente em seu ombro em tantas situações difíceis pelas quais haviam
passado juntos, se misturavam a imagens confusas das cenas de Ricardo estendido no
chão, morto covardemente por Gabriel que tanto fora protegido pelo fiel médico.
Surgia-lhe o sorriso de Sara. A tristeza agoniada daquela que lhe era uma mãe, a doce
Carol. Novamente Gabriel ressurgia para destruir-lhe a harmonia e a felicidade. "Mas
porque? perguntava-se febrilmente.
O nobre jovem não mais chorava, a dor lhe sufocava todos os sentimentos numa única
determinação - achar Gabriel!
Lorde Arthur chegou finalmente á propriedade quando a noite já ia alta. Próximo á
moradia encontrou Sílvio apreensivo. Indagou-lhe:
-Onde está Gabriel?
Sílvio percebendo-o transtornado e acompanhado dos guerreiros, e apreensivo porque
Gabriel sumira com Paulo desde aquela tarde, falou-lhe:
-Senhor, Lorde Gabriel afastou-se da lida no cultivo á tarde, para banhar-se com Paulo no
rio, mas não regressaram, deixando-me aqui apreensivo e sem saber o que fazer.
Lorde Arthur imediatamente perguntou-lhe a direção do rio onde se banhavam e o servo,
trêmulo, apontou-lhe o rumo humildemente.
Não tardaram a se aproximar do rio e prontamente visualizaram o corpo de Paulo
alvejado no peito, ao seu lado Gabriel com sua arma parecia dormir tranqüilamente.
Lorde Arthur apeou da montaria e caminhou furioso em sua direção.
Olhou-o em sono profundo com a túnica suja e poeirenta. Enraivecido em sua
incompreensão ao vê-lo tão tranqüilo, quebrou-lhe o arco e as flechas em extrema fúria e
em incontrolável ataque lhe desferiu forte chute em seu estômago.
Os guerreiros mantinham-se distantes, silenciosos, compreendendo a revolta de seu
jovem senhor, prontos a auxiliá-lo.
Gabriel despertou com a profunda dor que parecia lhe apertar a cabeça e insuportável dor
também em seu estômago. Contorceu-se e Lorde Arthur impiedosamente, enfurecido por
todos os entes queridos que Gabriel matara, agrediu-o inúmeras vezes até o deixar
completamente inerte e novamente inconsciente.
O jovem nobre então caminhou até o rio e deixou que a água fresca lhe banhasse a face
ainda transtornada com tudo o que vivia.
Decidiu retornar prontamente ao castelo, pedindo que colocassem Gabriel em uma das
montarias e o levassem definitivamente para a masmorra do castelo.
Linia aguardava ansiosa o retorno de Antoan, que não via desde a manhã do dia anterior.
Não conseguira dormir e sentia-se exausta.
Lana observava-lhe a intranqüilidade e o nervosismo. Estava ciente de que o guerreiro
Antoan viajara sob suas ordens. Vira-o sair cavalgando com Linia e esta retornara sozinha
á moradia. Pela sua ansiedade, a serva Lana concluía também que ansiava desesperada
o seu retorno.
Continuamente a duquesa,naquela noite e pela madrugada , vagara pela sala indo
freqüentemente até as janelas para verificar a sua possível aproximação.
Linia observou irritada que a serva a observava constantemente, e estava decidida a
livrar-se dela em momento oportuno.
De repente escutou um galope tranqüilo defronte á moradia e caminhou apressada até lá.
Vendo a sua fisionomia de aflição, Antoan cumprimentou-a ironicamente.
-Bom dia, Senhora duquesa Linia.
Depois convidou-a sorridente.
-Vou levá-la para cavalgar. Ppoderemos conversar com tranqüilidade, nobre senhora!
Linia prontamente concordou e, assim que a montaria ficou pronta, acompanhou Antoan
que parecia extremamente satisfeito.
O local predileto de ambos, nos quais realizavam contínuos treinos de mira, era o topo da
enorme cachoeira.
A água descia com abundância daquela enorme colina, batia com violenta força sobre os
rochedos e rumava tranqüila num rio de intensidade plena, depois novamente desaguava
em nova queda de água, sendo que esta era mais alta e mais bela.
Linia apeou do cavalo,auxiliada por Antoan. O guerreiro abraçou-a e lhe dando um beijo
sorriu sua vitoria .
Linia propositadamente caminhou até próximo ao rio veloz e Antoan acompanhou-a.
-Antoan, estou apreensiva. Porque só aparecestes pela manhã?
O guerreiro continuou sorrindo ao lhe dizer:
-Estava cansado e decidi repousar aqui mesmo onde estamos.
A jovem, enraivecida porque não conseguira dormir, apreensiva com sua demora,
revoltou-se interiormente, sem aparentar, com a tranqüilidade dele em dizer-lhe que não
se preocupara em retornar á moradia, repousando profundamente ali mesmo.Disse-lhe,
fingindo forçado sorriso:
-Conta-me tudo Antoan, estou ansiosa!
Antoan pôs-se a brincar na beira do leito do rio que corria veloz, carregando a água
violentamente,e murmurou em alegria extrema:
-Matei Paulo com uma flecha certeira no peito.Matei Ricardo com uma flecha certeira nos
miolos. Agora poderemos nos casar.
Antoan caminhou até Linia, disposto a receber o pagamento justo. A duquesa no entanto
afastou-o com violência.
-E Lorde Arthur, como o matastes?
O guerreiro encolhendo despreocupadamente os ombros, disse-lhe:
-Não o matei.
O tom irônico de Antoan foi o suficiente para que Linia antecipasse os seus planos,
ardilosamente elaborados.
Empurrou-o violentamente e Antoan, desesperado desequilibrou-se e caiu no rio sendo
rapidamente arrastado para a enorme queda d'água.
Linia pegou o seu cavalo e caminhou tranqüilamente no meio da vegetação, descendo
aquela grande colina.
Chegando ao final da queda d'água observou no rio. O corpo de Antoan, completamente
inerte e sem vida, era arrastado pelas águas que, com certez,a o levariam para bem
longe da propriedade.
Montou tranqüilamente em seu cavalo e retornou serena á sua moradia.
Encontrou Lana no aposento de Antoan, vasculhando os seus pertences.
A serva assustou-se, pensava que Linia fosse demorar no passeio. Tranqüilamente Linia
trancou o aposento e antes que a serva pudesse gritar pedindo auxilio, a duquesa
asfixiou-a violentamente com as suas mãos.
Lana completamente asfixiada , sem oxigênio morreu contorcendo-se.
Linia deixou o corpo caído no chão do aposento e saiu cantarolando alegre.
Passadas algumas horas, Linia, que tocava harmonicamente a sua harpa na imensa sala,
chamou um servo e ordenou-lhe que achasse a serva Lana para trazer-lhe um lanche.
Não tardou o servo apareceu para informá-la que Lana morrera arrumando o aposento do
viajante.
Os servos da propriedade concluíram que sem nenhum sinal aparente, a serva deveria ter
morrido de um mal súbito.
Linia felicitou-se radiante! Estava livre da serva antipática, do guerreiro altivo,do fiel
médico Ricardo, do indiferente Gabriel. Só faltava o seu irmão Arthur, teria tempo!
Deitou-se confortavelmente em seu leito, para repousar e, em plena alegria, cerrou os
olhos e dormiu em paz.
O nobre Arthur entrou entristecido no seu castelo. Encontrou Carol chorando
compulsivamente próximo ao leito onde Ricardo era velado. Colocou-lhe a mão no ombro
e Carol voltou-se para abraçá-lo.Não desejavam soltar-se, na união de seus prantos a dor
se fazia menor. Não havia palavras a serem ditas, as lágrimas falavam por seus mais
profundos sentimentos.
O dia passou vagarosamente na imensa tristeza que abatera uma família feliz.
Ao entardecer, o corpo de Lorde Ricardo Lamartini era sepultado próximo a sepultura de
Brigith. Lorde Arthur tentava ser forte para amparar a nobre senhora Carol, mas não
conseguia e, por vezes, sentia-se o menino carente desejando o seu colo e o seu
consolo.
Carol o compreendia e escutava em suas lembranças as palavras de seu companheiro
Ricardo que lhe diziam em confidência: "Arthur agora é o nosso menino e devemos cuidar
dele,porque ninguém mais tem". Então acariciava Lorde Arthur, esquecendo-se de sua
própria dor.
Na masmorra onde fora jogado, Gabriel completamente machucado, pelas agressões de
incompreensão do nobre jovem, erguera-se com dificuldade para observar o entardecer.
Lembrou-se do amigo Paulo atingido por flecha certeira, lembrou-se de cavalgar até o
castelo e lá ter sido atingido por alguém do qual não se lembrava do semblante. Nada
mais recordava.
Acordara com o chão frio e todo o corpo ferido e dolorido. Pensava que ali estava pela
morte de Paulo e não tinha conhecimento da morte de Ricardo.
Finalmente ,Gabriel conseguiu segurar-se nas grades da janelinha e visualizar a longa
distância um sepultamento.
Concluiu que seu amigo e irmão Paulo era sepultado com honras de um nobre . Ainda
que não compreendesse, ficava feliz porque o valente rapaz o merecia.
Não entendia quem o matara e porque o matara. Deixou-se cair no chão, contorcendo-se
em dor, as feridas sangravam constantemente e o rosto estava completamente sensível.
Na memória lhe vinham as suas culpas. “Também o pai de Henri II não sabia quem o
matara e porque o matara. Também Anderson não compreendia porque caíra do seu
cavalo, e porque fora asfixiado por uma almofada. Também Job não compreendia porque
a doce Brigith morrera envenenada"...
Gabriel encolhia-se tal qual feto em ventre materno.
A dor de sua consciência lhe era mais dolorosa que a dor que sentia em seu corpo.
Aqueles dias passaram-se em imensa dor para a senhora Carol e para Lorde Arthur. Mas
naquela manhã fria que já antecedia o inverno, que se aproximava, Arthur aproximou-se
dizendo á nobre senhora:
-Viajaremos pela manhã, vou buscar Sara na corte. Somente ela trará alegria a este lar
novamente.
-Arthur, deixai-me aqui, com as minhas tristes lembranças.
O jovem nobre olhou-a suplicante:
-Não, minha grande amiga Carol, peço-lhe piedosamente que me acompanhes, preciso
de sua companhia. Não me deixes só!
A nobre senhora, observando-lhe a apreensão indagou-o:
-Quem administrara a propriedade?
Lorde Arthur respondeu-lhe:
-Deixai isso comigo, nomearei alguém para que zele pelo propriedade do castelo.
Deverás providenciar imediatamente as tuas vestes para a longa viagem. Retornaremos
só na próxima primavera.
O jovem entregou-se sutilmente ao pranto e balbuciou emocionado abraçando-a:
-Quando acabará esta imensa dor? Dói-me mais a perda de meu amigo Ricardo do que a
morte de meus familiares.
Carol amparou-o, entregando-se também ás lágrimas.
No dia imediato, de manhã bem cedo, duas carruagens afastavam-se do castelo,
acompanhadas de três servos e os quatro guerreiros.
O castelo ficara entregue aos servos e a um capataz que Arthur nomeara em
confiança.Na ausência dos nobres, o castelo se tornou sombrio e assustador.
Gabriel Vandak, enclausurado há cinco dias, não tinha conhecimento da viagem. Ficara
entregue ás continuas e incessantes agressões de um longo inverno rigidamente frio, e ás
agressões dos servos que vinham á sua cela para agredi-lo, nconformados com o
sofrimento de seus senhores, aos quais tanto respeitavam pela extrema bondade, e em
sofrimento pela perda de seu médico sempre prestativo.
Freqüentemente era espancado até ficar inconsciente, e quando começava a melhorar,
novas violências lhe vinham.No imenso frio do inverno, sentia o corpo regelar, e pensava
que não amanheceria com vida.
Mas a vida sempre lhe surgia, dia após dia, tal qual a refeição rasa e insuficiente, mas
que lhe sustentava ainda o corpo.
Gabriel sentia-se saudoso de Ricardo, que aprendera a amar como a um pai, e de sua
mãe Carol, a qual ambicionava dar somente orgulho.
Desejava ter a oportunidade de falar-lhes, para dizer-lhes que era inocente, mas estava
ciente de que Lorde Ricardo não mais acreditaria nele, após vê-lo fazer tantos males.
Se pelo menos pudesse vê-lo vagando na propriedade, se conseguisse gritar-lhe "dai-me
uma oportunidade de falar-lhe, nobre Ricardo, concedei-me um instante, minha querida
mãe Carol". Mas as poucas vezes que conseguira erguer-se e caminhar até á janelinha,
somente via alguns servos, que rapidamente caminhavam, encolhidos com o imenso frio.
Assim, Gabriel passou aquele longo e interminável ano. Em contínuo sofrimento pelos
maus tratos que lhe faziam as baixas temperaturas, e as agressões dos servos fieis a
Lorde Arthur.
Porém o maior sofrimento continuava lhe vindo de sua consciência, que o maltratava e o
agredia diariamente sem piedade!
Finalmente, o sol surgiu na propriedade e o calor voltou para trazer algum conforto a
Gabriel Vandak, aquecendo-lhe um pouco a cela fria e o corpo gelado.
Os servos correram felizes para receber Lorde Arthur ,que se aproximava do castelo,
acompanhado da Duquesa Carol e a Duquesa Sara.
Os servos observaram o semblante da menina Sara, que estava amadurecida com seus
dezesseis anos . Era formosa e bela, uma verdadeira dama. Os seus olhos no entanto
eram os mesmos olhos negros expressando extrema bondade.
Lorde Arthur pegou-lhe a mão e, sorrindo para os servos, disse-lhes:
-Esta é a minha esposa, a senhora Duquesa Sara Corleanos. Respeitai-a como me
respeitam e tenham-lhe fidelidade, tal qual me têm!
Os servos aplaudiram-nos, felizes. Carol também sorria-lhes, mas o sorriso ainda lhe era
triste.
Com o retorno do Lorde ao castelo os maus tratos e os ataques constantes dos servos a
Gabriel pararam. Finalmente, este pode se recuperar da dor do corpo, mas não estava
livre da dor da alma.
Sara trouxe a felicidade de volta para o castelo com o seu encanto, beleza e a extrema
simpatia que compartilhava a todos.O encanto de suas musicas alegravam quem as
escutasse, ela gostava imensamente de cantar e tocar.
Lorde Arthur parecia irradiar em sua companhia, era o marido fiel, carinhoso e prestativo,
e Sara era-lhe a esposa e a companheira. Mas também o auxiliava a administrar a
propriedade.
Pelas manhãs saiam juntos a cavalgar, supervisionando as colheitas e as plantações. À
tarde Sara, fazia companhia a Carol, lendo, costurando ou passeando pelos jardins.
Freqüentemente Lorde Arthur cavalgava até á propriedade de Carol, administrada por
Sílvio, para auxiliá-lo no que se fizesse necessário. Desde a morte de Ricardo, nunca se
preocupara com Linia e nem tivera notícias dela ou de sua propriedade. Sentia-se melhor
mantendo-se distante.
Também nunca indagara sobre o prisioneiro e nenhum servo viera lhe falar a respeito. Era
como se Gabriel Vandak nunca houvesse existido.
Carol, em sua infinita dor de mãe, não se esquecera do filho, mas não conseguia perdoálo pela morte de seu companheiro no auge de sua felicidade. Não compreendia a sua
atitude e não se sentia encorajada a procurá-lo. A perda ainda lhe doía profundamente, ao
recordar-se do filho Gabriel erguendo o arco radiante, e o seu querido e bom Ricardo,
inerte numa mancha de sangue com a flecha atravessada em sua cabeça. Esforçava-se
para não lembrar aquele dia, mas continuamente a imagem inesquecível lhe vinha
dolorosamente á mente.
Enclausurava-se em seu aposento, em pranto convulsivo.
Sara desconhecia completamente o drama da nobre senhora. Lorde Artur simplesmente
lhe contara, entristecido, que Ricardo falecera repentinamente, e Sara, para não lhes
trazer mais dor, nada lhes indagava a respeito.
Sentia-se curiosa no entanto por saber onde andava o filho de Carol, e aguardava que
eles lhe falassem sobre ele.
Lembrava-se do ultimo alerta de seu querido pai Job, a respeito de Linia. "Querida filha
Sara, deverás alertar ao nobre Arthur sobre a perigosa Linia, fazei-o prontamente".
Prontamente o fizera, mas também Arthur nada lhe falara a respeito da vida de Linia. E os
dias iam-se passando.
Estudara no educandário que os bons cristãos iam para o lado de Deus, e os maus
cristãos iam para o lado do diabo. Não compreendia, no entanto, como o seu pai Job,
estando do lado de Deus, poderia ter-lhe acompanhado tanto tempo, confortando-a e
amparando-a, até o dia em que lhe disse que não poderia mais ficar. Sentia-se saudosa
de seu carinho e de sua proteção.
Atrevera-se a indagar certa vez, a uma religiosa do educandário, se as almas das
pessoas boas podiam descer para conversar, mas a perplexidade e os castigos foram
tantos em função da infâmia que Sara decidira nunca mais dialogar sobre a sua estranha
experiência que tivera durante alguns anos, comunicando-se com o seu pai falecido.
Para felicidade de todos, Sara rapidamente ficou esperando um filho, e sob os olhares
protetores de Lorde Arthur, eles foram abençoados com duas crianças idênticas ás quais
deram os nomes de Joane e Brigith. Para fazer reviver a lembrança querida de sua doce
mãe e sua meiga irmã, assim disse-lhe Sara.
As lindas meninas eram as aliadas de Sara para trazer alegria e encantamento á vida de
Carol e Lorde Arthur.
Mimos e carinhos não lhes faltavam. Um médico havia sido trazido da corte,
especialmente para os cuidados no parto de Sara. Lorde Arthur não desejava arriscar-se
a perder novamente seres que tanto amava e que lhes eram a vida.
Quando as meninas completaram dois anos em plena semelhança e vivacidade, Sara em
parto extremamente difícil e complicado que lhe ameaçou a vida, concebeu um menino
forte e saudável, ao qual lorde Arthur deu o nome de Ricardo.
Não havia mais tempo para saudades tristes ou lembranças desagradáveis. As crianças
mantinham a mãe e a avó ocupadas freqüentemente.
Lorde Arthur, quando precisava viajar , o fazia rapidamente, não desejando manter-se
longe dos filhos, da esposa e da "mãe".
Gabriel Vandak esquecido em sua pequena cela e completamente ausente da vida que o
rodeava feliz no castelo, assinalara mais um pequeno tracinho nos numerosos que já ali
havia marcado. Mil seiscentos e dez dias de claustro, de solidão e de isolamento.
Quatro anos e cinco meses sendo submetido ao rigor e flagelo da vida.
Ainda que tivesse certeza do tempo que ali estava, não sabia no entanto, em que época
estava e em qual daqueles tracinhos era o dia de seu aniversario.
Perdera a noção dos meses e deduzia-os pelo tempo e pela temperatura que lhe vinham
na pequena janelinha que lhe ofertava a vida.
Diariamente, a comida lhe vinha uma única vez, e ele devorava faminto e voraz. A água
também só lhe era ofertada uma única vez. Sentia-se imensamente magro e fraco.
O guerreiro que lhe trazia as refeições todos os dias nada lhe falava ou dizia,
simplesmente arrastava para o interior da cela, sem abrir a porta, o fundo prato de comida
e um vasilhame de água. No dia imediato nova refeição trazia e levava os vasilhames do
dia anterior.
No inicio Gabriel ainda lhe pedia clemência para que dialogasse, e lhe informasse como
estavam Lorde Arthur, Ricardo e Carol, mas o guerreiro nada lhe respondia. Depois
desistiu e não mais suplicou-lhe uma conversa.
Inúmeras vezes dialogava consigo mesmo, questionando-se e respondendo-se para que
a voz não lhe emudecesse ou para que os ouvidos não silenciassem,
Cantarolava e contava estórias para não enlouquecer na ociosidade diária.
Exercitava-se em sua imensa fraqueza e dor físicos, para que os músculos não
enrijecessem. Surpreendia-se como permanecera vivo com tanta escassez de alimento e
com o corpo tão impregnado de sujeira, em crostas densas em que os bondosos ratos
auxiliavam-no a se livrar.
Também esses animais rasteiros, seus únicos companheiros, auxiliavam-no a se livrar
das fezes fétidas que impregnavam o ambiente.A veste escurecera e muitas vezes sentia
o cheiro insuportável que o seu corpo emanava.
Inúmeras vezes pedira clemência e misericórdia, pedindo-lhes que o matasse, não sendo
mais digno á vida e por que sua vida era demasiadamente penosa, mas Deus parecia
também haver se aborrecido com os atos tão censuráveis de sua vida, e não lhe vinham
respostas. Os pesadelos lhe eram freqüentes, e neles, a bela Brigith o censurava pela
morte de seu noivo, do irmão e da mãe. Acordava angustiado, ainda escutando-a :
"Porque me matastes Gabriel?" Tudo lhe era tormento e dor!
Linia também em seu claustro privado, se tornara histérica e colérica, naqueles anos.
Seus desejos e vontades mais irracionais eram prontamente atendidos pelos servos, que
temiam seus castigos.Inúmeras vezes divertia-se prendendo-os á fome ou ao tempo.
Não ousavam fugir ou pedir auxilio a Lorde Arthur, porque outros já o haviam tentado em
vão, sendo exterminados por um capataz jovem e robusto que se tornara seu aliado e
amante. Ele se beneficiava, levando e negociando as colheitas que Linia lhe ofertava.
Porém o vivaz capataz Augusto não a temia, mas a desafiava deixando-a mais irritada.
Ouvia-se falar em sua propriedade que freqüentemente tomava chás abortivos para
eliminar os filhos indesejáveis. E que, inúmeras vezes, deixava-se agredir por Augusto,
em pacto sarcástico de prazer.
"Enlouquecera" diziam seus servos cuidadosamente.
Porém Linia não enlouquecera. Usufruía o poder de sua fortuna arrecadada em boas
colheitas. Eventualmente viajava para a corte para gastá-la em abundância, enquanto
Augusto ficava senhor de suas terras.
Usava o capataz como elemento essencial aos seus caprichos e prazer, mas o
descartaria tal qual a um objeto de seu uso pessoal quando não mais precisasse dele.
Certa vez Linia, voltou da corte, acompanhada do Duque Jordan, um velho rico e
excêntrico com o qual se casara oportunamente por suas propriedades e títulos. Viuvo
solitário, com sessenta e oito anos e sem filhos. Linia encontrara uma verdadeira fortuna
sendo guardada por um velho frágil, era-lhe a oportunidade de mais enriquecer
facilmente, em sua infindável ambição.
O Duque Jordan, seduzido por sua beleza e juventude, prontamente desposou-a, vendeu
tudo o que possuía e viajou com Linia para a sua propriedade. Trouxera alguns de seus
servos, animais, e muitas jóias e ouro em abundância.
O capataz Augusto permaneceu como o amante de Linia na obscuridade, até o dia em
que o velho Duque Jordan faleceu de mal súbito deixando-lhe a imensa fortuna em jóias e
ouro, e senhora de mais um titulo: “Duquesa Linia Corleanos Dubrak".
Com a enorme fortuna, Linia passava os dias enclausurada na pequena biblioteca,
contando e recontando as moedas e desfilando com as jóias.
Ninguém ousava ali entrar, nem mesmo Augusto. Quando dali saia, fechava
rigorosamente a tranca e ocultava a chave no assoalho de madeira sob o seu leito.
Naquela magnifica manhã, despertou decidida a partir. Chamou o mensageiro e lhe
mandou entregar a seguinte mensagem:
"Querido Arthur,
Estou deixando a miserável propriedade
Que me concedestes estes anos,
Deixo-te os teus servos e os teus animais.
Não preciso mais de tuas esmolas!
Desejo que morras em minha vingança!
Até breve irmãozinho.
Linia Corleanos Dubrak"
O mensageiro sairia ao anoitecer, veloz a galope. Não levaria somente a mensagem da
duquesa Linia cujo teor desconhnecia, mas o apelo de todos os seus servos que,
finalmente, tinham a oportunidade de pedir auxilio a Lorde Arthur.
A duquesa Linia aprontou-se para viajar na manhã seguinte. Faria a viagem com os
servos e os animais de seu falecido esposo, iria para a corte.
“Com a fortuna que possuía”, pensava, "com certeza compraria um belo castelo em local
civilizado e poderia viver o resto da vida em regalias, se ninguém a roubasse".
A idéia de ser roubada amargurou-a, temendo o capataz Augusto, demasiadamente
ambicioso.
Satisfazia todos os seus desejos e caprichos por qualquer boa recompensa. “Poderia
roubar-me na viagem!"
Decidiu convidá-lo para ir até á cachoeira, onde costumavam se encontrar ocultamente, e
lá empurrou o capataz Augusto na queda d'água, para matá-lo, da mesma forma como
havia feito com seu cúmplice Antoan , depois das mortes de Ricardo e Paulo.
Retornou á moradia satisfeita e, após dar instruções aos servos a respeito da viagem,
deitou-se para repousar, sentindo-se mais tranqüila.
O mensageiro chegou ao castelo, a noite já se fazia imponente. Lorde Arthur recebeu-o
intrigado, visto que chegara em galope apressado.
-Senhor Lorde Arthur, trago-lhe mensagem da Duquesa Linia Corleanos Dubrak!
O Lorde pegou o manuscrito e rompeu-lhe o lacre, enquanto o mensageiro apeava da
montaria. Antes de ler a mensagem, lorde Arthur olhou-o dizendo-lhe:
- Está tarde em demasia! Melhor retornares á propriedade de tua senhora.
O servo suplicante, ajoelhou-se no chão em humildade:
-Peço-lhe clemência, Senhor lorde Arthur, concedei-me trabalho em suas terras, não
desejo voltar á propriedade de minha senhora, a duquesa Linia Corleanos Dubrak!
Lorde Arthur pediu-lhe que se explicasse, segurando o manuscrito em suas mãos, e o
servo descreveu-lhe em breve narrativa, os horrores a que haviam sido submetidos todos
os servos de sua irmã. Disse-lhe que os servos lhe pediam auxilio.
O nobre estava indignado com tudo o que ouvira e dispensando o mensageiro para que
se recolhesse ao pavilhão, leu então a mensagem.
A duquesa Sara percebeu o semblante contrariado do seu marido. Há muito tempo não o
via assim tão sério. Também Carol percebeu o seu semblante entristecido.
As crianças brincavam perto da mãe. Brigith e Joane, com quase três anos e Ricardo, que
iria completar o primeiro aniversario.
Sara levantou-se com dificuldade e caminhou até Arthur dando-lhe um beijo no rosto,
indagou-lhe preocupada:
-O que houve meu querido?
O nobre jovem olhou-lhe para a sua barriga avolumada nos seis meses de gestação, e
temeroso confortou-a.
-Nada com o que devas te preocupar querida Sara, tive uma mera discussão com um
servo.
Sara sentia que o marido estava lhe omitindo alguma coisa e falou-lhe entristecida.
-Nunca me ocultastes nada, porque o fazes agora querido Arthur? Não te preocupes com
meu estado, sinto-me imensamente bem.
O nobre encaminhando-a para que se sentasse e pedindo a uma serva que levasse os
seus filhos para dormirem, explicou para Sara e para Carol, que pareciam apreensivas.
-Recebi esta mensagem de Linia.
Sara prontamente ignorou-a, pedindo-lhe licença amorosamente e explicando que iria dar
boa noite para seus filhos. Não desejava ter notícias daquela que fora sua mãe.
Arthur compreendeu-lhe a atitude e sentiu-se mais tranqüilo em não ter que passar-lhe
contrariedades. Carol, no entanto, prontamente pegou a mensagem e a leu atentamente.
Compreendeu prontamente o motivo do semblante entristecido do nobre Arthur: "Ofertara
tudo á sua irmã bastarda e agora recebia ingratidão e ameaças"
A nobre senhora aproximou-se e, colocando a mão carinhosamente em seu ombro,
consolou-o :
-Não te inquietes assim,nobre Arthur, é bom que se vá! Nunca nos fez qualquer visita e
,como percebestes, a filha Sara nem deseja ter notícias dela. Perdoai e esquecei!
Lorde Arthur agradeceu-lhe o consolo com um olhar expressivo de amor e falou-lhe baixo,
temeroso que Sara voltasse:
-Não estou preocupado assim por causa de Linia. Recebi outra mensagem mais cedo, de
um lorde que mora a alguns dias desta propriedade.
Carol carinhosamente olhou para o nobre que vira crescer e que agora amadurecido, em
seus vinte e cinco anos, demonstrava enorme aflição Escutou-o apreensiva.
-Quarenta rebeldes vindos da corte rumam para cá. Já atacaram e saquearam inúmeras
propriedades. Invadem nobres moradias e impiedosamente matam! Temo tanto por nossa
segurança.
A nobre senhora, sentindo a gravidade daquela situação, perguntou:
-Porque esses rebeldes fazem isso?
O nobre, atenciosamente, explicou-lhe que os guerreiros da corte a mando do rei,
pretendiam prender e matar alguns rebeldes que ameaçavam o reinado. Estes, no
entanto, sendo antecipadamente avisados da determinação do rei, conseguiram se
ocultar nas matas. E roubando armas e cavalos, gradativamente foram se tornando um
enorme grupo de salteadores inescrupulosos .
Carol levantou-se pensativa e após caminhar silenciosa e preocupadamente, sugeriu-lhe:
-Nobre Arthur, recolhei os animais e os servos tal qual o fizestes quando vieram as
terríveis tempestades de nevasca. Se as tormentas não te destruíram, não serão estes
rebeldes que te destruirão!
Lorde Arthur estava surpreso com a perspicácia da nobre senhora. Sentiu-se
impressionado pois parecia estar escutando os sempre prudentes e sensatos conselhos
de seu amigo e tutor Ricardo. Disse abraçando-a:
-Agradeço-te imensamente minha amiga Carol, seguirei teu conselho imediatamente,
Ficaremos alguns dias reclusos no interior das muralhas. Não nos trará grandes
incômodos e poderá evitar-nos grandes prejuízos.
Fez uma breve pausa e continuou:
-Mas devo antes explicar o motivo da reclusão para Sara. Sei que não posso lheomitir isto
pois, perspicaz como é, não compreenderá a movimentação no castelo e em seu estado,
a ansiedade lhe fará grande mal.
Após dar um forte abraço em Carol, retirou-se desculpando-se. Caminhou pensativo até
os aposentos de seus filhos e lá encontrou sua esposa Sara, olhando a paisagem negra
de uma das grandes janelas.
Abraçou-a com extremo amor, tomando imenso cuidado com seu ventre e lhe falou
ternamente:
-Querida, precisamos conversar!
A jovem acompanhou-o tranqüilamente até o seu aposento e após sentar-se
comodamente em seu leito, o nobre contou-lhe sobre o ataque que deveria ocorrer nos
dias imediatos e falou-lhe da sugestão de Carol.
A jovem Sara, plenamente determinada com seus dezenove anos de idade, apoiou
prontamente Arthur na decisão de proteger não somente a sua família ou os seus bens,
mas principalmente os seus servos. Murmurou no entanto preocupada:
-E a propriedade de Carol?
Lorde Arthur, prometendo-lhe que no dia imediato, pela manhã bem cedo, iria lá e
auxiliaria os servos a recolherem os animais e objetos de valor, lembrou-se da
propriedade de Linia.
-Minha querida Sara, preciso falar-te de Linia.
Sara compreendendo ser necessário, pois sabia que o marido não a incomodaria se
assim não o fosse, escutou-o atentamente. Arthur então falou-lhe a respeito da
mensagem de sua mãe. Sara falou-lhe imediatamente:
-Acolheremos também os servos que lá estão, não será justo que fiquem sós perante o
ataque. Trazei-os para o castelo, quanto mais formos, mais possibilidades teremos de nos
defendermos desses rebeldes. Dará tempo querido Arthur?
O nobre falou-lhe agradecido, que pela mensagem que recebera alertando-o sobre o
ataque, de um lorde que lhe era amigo, os rebeldes deveriam chegar á propriedade em
aproximadamente dois dias e que, se fossem ágeis, daria tempo para tomarem todas as
providencias necessárias á proteção de todos.
No dia imediato, ainda muito cedo, Arthur rumou para a propriedade de Carol e, após
explicar a situação a Sílvio e aos servos que ali moravam, todos se predispuseram a ir
prontamente para o castelo, onde estariam em segurança e poderiam auxiliar a defendêlo. Rapidamente, cientes de que não tinham muito tempo, reuniram os animais e juntaram
os seus pertences. O sol se erguia em plenitude quando finalmente rumavam para o
castelo.
Neste, outros servos já se encontravam, recolhendo e armazenando as colheitas, e
encaminhando os animais também para a proteção das muralhas. No dia seguinte,
rumariam para a propriedade de Linia para fazer o mesmo.
"Com certeza o tempo seria suficiente para proteger todos!" Pensou Lorde Arthur,
sentindo-se confiante, enquanto olhava para o sol, ainda imensamente alto e quente.
O capataz Augusto olhou-se na margem claramente límpida do rio , as pedras finas da
cachoeira tinham-no cortado demasiadamente. Recordava-se da imagem da Duquesa
Linia empurrando-o para a morte! Não tivera êxito no entanto, pois ele conseguira se
agarrar ferozmente em alguns fortes galhos, antes que a água, que corria veloz, o
atirasse na imensa queda d'água. Usara toda a sua força e todo o seu instinto e
conseguira, com imensa dificuldade, alcançar novamente a margem e ali ficara, inerte em
imensa fadiga, inconsciente até aquela manhã.
Despertara com o sol forte daquela tarde, sentindo muita dor em todo o corpo. Ao ser
arrastado de bruços pela violenta correnteza, o seu rosto se desfigurara em ferimentos e
hematomas, mas estava vivo!
Sempre tivera consciência de sua ambição e sabia que para conquistar um belo
patrimônio, fazia qualquer coisa, desde ferir os servos ou matá-los, até humilhar-se aos
caprichos de uma nobre dama... Mas não conseguia compreender porque a Duquesa
Linia, mesmo com sua extrema fidelidade e humildade, o condenara á morte.
Caminhou determinado e em imensa dificuldade até á nobre moradia, intermináveis horas
foram necessárias para fazer o trajeto. Estava decidido a pedir-lhe explicações. Quando
os servos o avistaram, já era noite escura. Olharam horrorizados para o estado físico do
violento capataz Augusto. Este cambaleava ofegante e exausto, quase que se
arrastando.Augusto ignorou os seus semblantes assustados, que pareciam não
compreender onde tanto se ferira. Defronte á moradia da Duquesa Linia, soltou um forte
grito, que mais parecia um gemido rouco de raiva:
-Linia!
Um dos servos, piedosamente se aproximou dizendo-lhe:
-Senhor Augusto, a duquesa viajou pela manhã.Foi para a corte, jurando que nunca mais
voltaria aqui.
Após dizer isto o servo, temendo-o, afastou-se e os demais companheiros também o
fizeram. Augusto estava só e exaurido defronte á moradia. Olhou a noite escura e decidiu
entrar.Com imensa dificuldade banhou-se, lavando os cortes e os hematomas, que se
contavam em inúmeras feridas. Sentindo-se melhor, colocou uma veste limpa, pegou a
sua espada e foi até o pasto para pegar uma boa montaria.
Concluíra que a Duquesa Linia não deveria estar muito longe, a apenas um dia de
viagem. Com facilidade a alcançaria, e estava certo de que os servos e os guerreiros do
falecido Duque Jordan, que a acompanhavam, não haviam se esquecido do pacto que
tinham feito em comum: Augusto lhes dava proteção e eles lhe teriam fidelidade!". O
violento capataz fizera diariamente a sua parte, esforçara-se em lhes agradar com
abundância de alimento e, por vezes, algumas moedas de ouro também. Quando a
Duquesa Linia mandava agredir algum deles por mero capricho, o capataz os levava para
longe, fingindo obedecer a ordem da nobre dama, mas simplesmente os protegia.
Augusto fizera este pacto com eles porque temia a qualquer instante uma revolta dos
servos de Lorde Arthur e precisava ter os seus próprios defensores.
Nunca pensara, no entanto, que um dia precisaria deles por causa de uma traição da
Duquesa...confiava em Linia plenamente!
“A alcançarei de manhã, se cavalgar veloz a noite inteira" Pensando assim prontamente
Augusto montou e seguiu veloz.
Já o sol se erguia quando o capataz Augusto avistou a imponente carruagem de sua
senhora, Duquesa Linia Corleanos Dubrak.
Sem deixar-se ser visto, apressou o galope e esperou os viajantes na estrada mais
adiante. Os guerreiros, vendo Augusto, ainda que também não compreendessem a
desfiguração de sua face, cumprimentaram-no felizes, assim como os demais servos
também o fizeram. Linia, na sua carruagem nada percebera, pois o trajeto não fora
interrompido. Cavalgando com seus amigos, em trote lento, contou-lhes o que a duquesa
fizera consigo – “Atirou-me para a morte!"E alertando-os que ela faria o mesmo com
qualquer um deles, fosse servo ou guerreiro, implantava-lhes a ira e a revolta.
Contou-lhes ainda que a duquesa Linia matara o velho duque Jordan, que nunca os
maltratara, num ritual de asfixia impiedoso.
O capataz Augusto conseguiu o que desejava, e o murmúrio de revolta ia se espalhando
pelos servos indignados.
Seguindo orientações do capataz Augusto, os viajantes pararam próximo a uma clareira
na beira da estrada, mantendo-se silenciosos.
A duquesa Linia, intrigada com a parada e o silêncio, saiu da carruagem para ver o que ali
acontecia.
O capataz agilmente pulou na sua frente assustando-a. Empunhando a espada, encostoua no rosto delicado da jovem duquesa, reverenciando-a ironicamente e sendo observado
pelos guerreiros e servos do falecido Duque Jordan, que se mantinham imóveis. Faloulhe:
-Boas tardes minha duquesa, pensavas que eu estivesse morto?
Linia, desesperada, ordenou que os guerreiros a defendessem, mas estes limitaram-se a
rir de sua ordem histérica. A jovem olhou então para a face desfigurada de Augusto,
sentindo-se confusa em como ele tinha conseguido sobreviver á imensa queda d'água
daquela imponente cachoeira. Os seus olhos luziam raiva e ódio e Linia estava
preocupada que ele ali estava para roubar-lhe a fortuna em vingança.
Amedrontada, desejou entrar na carruagem para, ingenuamente, tentar proteger-se.
Impedindo-a, Augusto disse aos guerreiros:
-Tirai-lhe as vestes e prendei-a naquela arvore!
Os guerreiros prontamente atenderam o seu pedido sem questionar suas intenções,
enquanto Augusto retirou da carruagem o baú com sua enorme fortuna. Após arrombá-lo,
disse aos guerreiros e aos servos:
-Isto é de todos nós e será justamente dividido.
Todos lhe responderam com um só grito de euforia, vendo as jóias e o ouro no baú. A
duquesa Linia desprovida de todas as suas vestes, e amarrada nos pés e mãos á arvore,
começava a chorar, pedindo-lhes clemência.O capataz, indiferente aos seus apelos,
olhou para as poucas mulheres e crianças ali presentes e falou-lhes:
-Ide até a duquesa, uma de cada vez, e cumprimentai-a como sentirdes vontade, depois
venham aqui receber a vossa recompensa.
Pouco a pouco as mulheres e as crianças foram se aproximando de Linia. Umas cuspiamlhe, outras esbofeteavam-na, outras só a olhavam com indiferença... Depois iam para
perto do capataz que lhes entregava jóias e moedas de ouro em abundância, e lhes pedia
que caminhassem pela estrada até onde nada mais vissem.
Obedientes e felizes, as mulheres e as crianças se afastaram deixando ali somente os
homens.
A duquesa Linia silenciara no amargor que sentia, na humilhação e na dor, somente o seu
pranto incontrolável quebrava-lhe o silêncio.
Então Augusto deixando-se dominar pela dor que também sentia em seus próprios
ferimentos, encheu-se de ódio e falou aos homens:
-Agora sois vós homens ,que sempre me foram fieis e amigos... Ide até á duquesa Linia
Corleanos Dubrak e cumprimentai-a como desejardes. Ela é jovem, bonita, e muito
interessante, e todos vós sabeis que sentia enorme satisfação quando a agredia...
A frieza estava-lhe estampada nos olhos e sentou-se calmamente próximo ao baú,
enquanto os servos e guerreiros iam se aproveitando da duquesa ou simplesmente
agredindo-a. Depois pegavam a sua parte do tesouro de Linia.
Já o sol se escondia sob as colinas quando o ultimo homem a violentou com crueldade.
A duquesa Linia Corleanos Dubrak ainda consciente, mas completamente ferida, estava
deitada no solo. Os homens a tinham soltado para melhor se vingarem dela. Encolheu-se
tal qual uma criança, não tinha mais forças para chorar ou se lamentar do que ali lhe
acontecera.
O baú esvaziara-se quase por completo. O que sobrara seria a parte de Augusto, e ainda
seria suficiente para que comprasse uma boa propriedade.
Estava sozinho na clareira, com a carruagem de Linia e dois cavalos. Caminhou satisfeito
até á jovem duquesa, que se mantinha encolhida e imóvel, e abaixou-se dizendo-lhe:
-Duquesa Linia Corleanos Dubrak, agradeço-lhe imensamente a boa hospitalidade em
sua propriedade e desejo deixar-lhe uma lembrança.
De posse de um punhal o capataz Augusto fez-lhe profundo corte em sua face direita. E
guardando a arma, prosseguiu:
-Te lembrarás pelo resto de tua vida do teu fiel e submisso servo Augusto!
O capataz afastou-se, atrelou a carruagem aos dois cavalos e seguiu viagem com seus
companheiros.
Linia ali ficou inerte, deitada no solo frio. O corte em sua face sangrava muito, o corpo
doía-lhe profundamente, não se movia e desejava morrer.
Tardiamente naquela noite, e ainda na mesma posição, encolhida e imóvel, Linia escutou
o trotar ligeiro de muitos cavalos vindo em sua direção. Escutou um grito autoritário
ordenando que todos parassem e viu quando um forte homem apeava da montaria na
estrada e caminhava em sua direção.
Abaixou-se para olhá-la, julgando que ela estava morta. Ao tocá-la sentiu-lhe a pele
quente e o ar ofegante.
-Levanta-te, ordeno-te!
Linia levantou-se com extrema dificuldade e só então olhou ao redor. Aproximadamente
quarenta homens armados em suas montarias a olhavam também, em trajes sujos. "São
salteadores!" concluiu rapidamente em seus pensamentos. Aquele que parecia o líder,
olhou-lhe o corte profundo na face e observou-lhe os inúmeros hematomas. Facilmente
deduziu a violência que ela sofrera. Perguntou--lhe friamente:
-Como te chamas?
O tom era autoritário e rude. A duquesa respondeu-lhe num balbucio quase imperceptível:
Chamo-me Linia!
O homem grotescamente voltou a indagar-lhe:
-És serva de que propriedade?
A duquesa Linia Corleanos Dubrak não conseguia pensar no que responder-lhe e
manteve-se silenciosa e imóvel, mas as pernas não mais lhe sustentavam o corpo eperdendo a consciência- desmaiou.
O líder daquele bando de salteadores colocou-a na garupa de uma das montarias e
continuaram viagem.
Atacariam a propriedade do rico Lorde Arthur em busca de ouro e jóias, no dia imediato
ao anoitecer.
O ataque foi um fracasso para os salteadores. O nobre Lorde Arthur previamente avisado
por seu amigo, conseguira resguardar a propriedade e os seus moradores. Os guerreiros
o haviam defendido com glória naquela noite, e os salteadores tinham desistido.
Na manhã seguintr, Lorde Arthur pediu para os guerreiros vasculharem a propriedade e
lhe informassem os estragos e os possíveis mortos e feridos.
Pediu a todos os servos que se mantivessem no interior do castelo, porque temia que os
rebeldes ainda voltassem.
O sol ainda não se tinha erguido em majestade quando os guerreiros retornaram ao
castelo, dizendo ao nobre que haviam contado cinco rebeldes mortos naquela noite, e
traziam-lhe um corpo nu de mulher.
Lorde Arthur aproximou-se do corpo que estava próximo ao pavilhão interno dos servos.
Perplexo percebeu que era a sua irmã, a duquesa Linia.
Ainda que não gostasse da sua extrema arrogância, sentiu-se piedoso ao vê-la naquele
estado. Não somente pelo fato de lhe ter parentesco, mas por ser uma mulher
violentamente maltratada e agredida. O corpo nu, sujo e bastante ferido, estava imóvel e
parecia sem vida. O nobre tentava conter a emoção. Um dos guerreiros falou-lhe.
-Ainda está viva, senhor Lorde Arthur!
Todos os servos que ali estavam observando-os, sabiam que se tratava da Duquesa Linia
Corleanos Dubrak. Alguns deles tinham trabalhado para a nobre e tinham conhecimento
das suas extravagâncias e de seus caprichos em maltratá-los. Uns a olhavam com
indiferença, outros com raiva, mas a grande maioria sentia profunda piedade de seu
sofrimento.
Lorde Arthur abaixou-se misericordiosamente e pegou Linia no colo, levando-a rápida e
carinhosamente para um aposento, enquanto um dos guerreiros se apressava a localizar
o médico que fazia ainda alguns curativos em servos feridos no ataque.
Lorde Arthur pediu a uma serva que a banhasse e a vestisse. O nobre passou
cuidadosamente os dedos em sua face para sentir a profundidade do corte que
traspassava ao interior da boca, muito inchado e infeccionado.
Lorde Arthur saiu do aposento sentindo-se triste e amargurado. Concluía, em seus
pensamentos apressados, que os salteadores a haviam encontrado na estrada em
viagem, "a roubaram e violentaram-lhe o corpo"...sussurrou para si com indignação.
Com certeza a tinham abandonado ali, daquele jeito, talvez como uma vingança pelo
fracasso no ataque, ou talvez como um aviso. Mas sentia-se confuso - porque os seus
próprios guerreiros não a tinham protegido? Com certeza o haviam feito, mas uma
duquesa na estrada com apenas dez guerreiros nunca poderia escapar de quarenta
salteadores armados e vorazes.
Os servos que resgatara em sua propriedade contaram-lhe que tinha viajado com uma
imensa fortuna, os guerreiros e vinte servos, entre os quais mulheres e
crianças."Coitados!" exclamou. "Teriam eles sobrevivido ao violento ataque? Onde
estariam?"
As indagações eram-lhe muitas, enquanto caminhava apressado. Encontrou a esposa
Sara e Carol costurando serenamente no salão. Sara levantou-se com a costumeira
dificuldade, em seu ventre avantajado, e disse-lhe alegre:
,Disse-me o guerreiro que nenhum de nossos servos e guerreiros foi morto. Graças a
Nosso Pai!
Mas o seu semblante fechou-se ao ver a fisionomia entristecida de Arthur e indagou-lhe
nervosa:
-Temes um novo ataque? É isto que te entristece?
Lorde Arthur pediu gentilmente a Sara que se sentasse próximo a Carol e falou-lhes com
cautela, sempre temendo o seu estado:
-Não acredito que os rebeldes voltem, temerão novas perdas. Nossos guerreiros disseram
que encontraram cinco deles mortos.
Sara indagou-lhe ansiosa, interrompendo-o
-Então o que te entristece, meu querido?
Lorde Arthur pegou-lhe a mão dizendo-lhe:
-Temo por ti- querida Sara- e por nosso filho que ainda está em teu ventre, mas receio
não ter demasiado tempo para te omitir...
O semblante de Carol compreendia a seriedade no que precisava lhes contar. Sara
balbuciou determinada.
-Estou bem Arthur, falai-me.
Lorde Arthur então, pausadamente, falou-lhe:
-Precisas ir ver tua mãe... A duquesa Linia Corleanos Dubrak foi encontrada próximo ao
rio. Estava nua e imensamente ferida.
Sara levantou-se surpresa, não desejava ver a mãe que a abandonara. Sentia-se
imensamente magoada por aquela mulher fria, avarenta e inescrupulosa.
O nobre percebendo-lhe a emoção, levantou-se e a abraçou cuidadosamente.
-Faltam agora apenas dois meses para que o nosso filho nasça, controlai a emoção e os
maus pensamentos, não é momento para isto. Linia está muito ferida, tem hematomas em
todo o corpo, foi barbaramente violentada e agredida, compreendes o que te digo, Sara?
Sara permanecia imóvel em seu abraço, e Lorde Arthur prosseguiu.
-Releva o imenso mal que te fez, e perdoai-a! Olhai-a piedosamente pelos sofrimentos
aos quais a submeteram. Peço-te que, em tua extrema bondade, vás até lá.Se nada mais
fez de bom nesta vida, devemos agradecer-lhe porque te gerou a vida.
Então Sara deixou-se comover e uma lágrima sutil desceu-lhe a face. Olhou para o nobre
Arthur com imensa ternura e depois olhou para Carol, suplicando-lhes:
-Não me deixem só...Venham comigo.
Prontamente Carol levantou-se também para ampará-la. Sara parecia uma menininha
trêmula, com imenso medo de uma mãe que a maltratara largando-a ao abandono.
Os três caminharam silenciosos até o aposento onde a Duquesa Linia estava sendo
medicada. Quando lá entraram, o médico sério aproximou-se, reverenciando-os.
-Preciso falar-lhe senhor Lorde Arthur!
Sara olhou fixamente para Arthur pedindo-lhe:
-Senhor meu marido, deixai que fale diante de mim, não existem motivos para segredos
entre nós!.
Sara era elegante, dócil, meiga e extremamente afável com todos, mas era também
destemida, forte e de uma personalidade vigorosa e super determinada.
Lorde Arthur ordenou ao médico que falasse e este explicou-lhes que a Duquesa Linia
não teria como sobreviver, porque a perda de sangue fora enorme. Além dos ferimentos
aparentes, tinha contínua hemorragia pélvica e algumas costelas quebradas na região
torácica. Lamentou-se:
-Se a assistência medica tivesse sido imediata, poderia com a ajuda de Nosso Pai
Misericordioso, melhorar. Mas pelos ferimentos eu conclui que está neste sofrimento há
mais ou menos dois dias.
Dizendo isto, o médico saiu do aposento ,pedindo licença ao Lorde e fazendo uma
reverência a Carol e Sara. Lorde Arthur também pediu para que a serva que ali estava
saísse e somente então aproximaram-se do leito onde Linia se encontrava.
Sara e Carol também ficaram perplexas ao ver o estado em que se encontrava a jovem
Linia. Arthur, temeroso pela emoção extrema em sua esposa, prontamente trouxe-lhe um
divã para que se sentasse próximo ao leito.
Linia gemeu ao tentar mover-se e abrindo os olhos reconheceu-os. Murmurou
imensamente enfraquecida.
-Minha linda filha Sara!
Ainda que não desejasse se emocionar, Sara não conseguiu conter o pranto de dor, de
raiva, de revolta e de piedade , que durante tanto tempo ficara preso em seu interior.
Linia sempre murmurando com dificuldade olhou para eles fixamente e falou-lhes
friamente:
-Matei-os... Eu os matei porque invejava a vossa felicidade, que eu não conseguia sentir.
Arthur, imensamente intrigado com o que dizia aproximou-se e Linia, fechando os olhos
em dor, continuou murmurando muito baixo:
-Matei o médico Ricardo porque invejava-lhe a bondade, nunca fui boa! Matei o servo
Gabriel Vandak em sua liberdade, porque nunca me senti livre!
O nobre momentaneamente esqueceu-se da sua enfermidade e irritado lhe indagou
rudemente.
-O que nos dizes Linia?
A duquesa mantinha-se serena, reabriu os olhos ao perceber a fúria do irmão Arthur e
murmurou-lhe:
-Fui eu irmãozinho... Eu consegui destruir a vossa felicidade... Eu mandei matar os dois...
Eu matei aquela serva bisbilhoteira...estou morrendo, mas o farei destruindo-vos mais
uma vez a paz!
Sara tudo conseguira escutar, mas não compreendia o que Linia dizia-lhes em tom de
provocação e arrogância. Começou a sentir-se mal. Lorde Arthur que se afastara da
esposa em extrema indignação, não percebia as indisposições de Sara .
Carol perplexa, mantinha-se compenetrada em escutar-lhe.
Linia sorriu sarcasticamente e com dificuldade por causa do profundo corte em sua face.
Soltava o seu veneno aos poucos.
-Não quero piedade de nenhum de vocês... Não quero vosso pranto... Quero a vossa
raiva, a vossa ira, a vossa tristeza... Erraram em condenar Gabriel Vandak á masmorra.
Ele é inocente e nunca vos perdoará por isto!
Linia sentiu um aperto forte em seu peito e contorceu-se cuspindo sangue. O pulmão
havia furado. Mas ainda teve ímpeto de olhar cada um deles com um brilho de ódio nos
seus olhos e findou:
-Eu vos odeio e morro vos odiando!
Então a duquesa sucumbiu, perdendo a vida em seu corpo frio e em sua mente
perturbada.
Lorde Arthur olhou para Carol, que também estava completamente atônita com tudo o que
ouvira. Sara começou a contorcer-se de dor e Arthur, desesperado, aos gritos chamou o
médico que os aguardava do lado de fora do aposento.
O médico rapidamente auxiliou Sara, pedindo que a levassem para o seu aposento. Lorde
Arthur levou-a apressadamente.
Sara suava em demasia em seu leito, sendo examinada pelo médico e sob o olhar
angustiado de Arthur. Porém as dores pouco a pouco foram diminuindo.
O médico disse a Arthur que tudo fora somente um susto, talvez provocado por extrema
emoção e que, com repouso, no dia seguinte estaria boa.
A tarde na propriedade ainda apresentava imensa claridade e Lorde Arthur, após ficar
algum tempo com sua querida Sara, desceu deixando-a dormindo.
Instruiu os servos para que sepultassem Linia sem honras. Depois caminhou até o salão,
onde encontrou Carol em pranto convulsivo.
Abraçou-a carinhosamente, também se comovendo e após assim ficarem alguns
instantes,Lorde Arthur afastou-se secando as suas lágrimas e indagou-lhe:
-Crês no que Linia nos disse?
A nobre, senhora tentando conter a profunda emoção, falou:
Porque mentiria em seu leito de morte?
-Talvez para nos confundir Carol.
Não creio, nobre Arthur, falava com tanta convicção.
O nobre olhou-a emocionado e, pegando-lhe as mãos, afirmou-lhe:
-Prometo-te Carol, que rapidamente averiguarei com os servos que trabalharam para
Linia, eles com certeza falar-me-ão a verdade! Se injustiça foi feita com Gabriel Vandak,
irei pessoalmente libertá-lo!
Carol sentia-se confusa e abalada com tudo, agradeceu-lhe e novamente se abraçaram
em emoção, com aquelas lembranças tão sofridas.
Já anoitecia no castelo de Lorde Arthur, quando Sara despertou. Havia dormido a tarde
inteira e sentia-se bem. Olhou o aposento, carinhosamente decorado por ela mesma.
Muitas rendas nos cortinados e nos divãs. Tudo em tons muito leves e suaves. Arthur
estava sentado bem próximo ao leito, com uma expressão abatida e preocupada,
acariciando-lhe levemente os cabelos.
-Sara minha querida , como te sentes?
O nobre, sentindo-lhe profundo amor, tratava-a diferentemente dos costumes da nobreza,
onde a esposa era também a serva de seus senhores.
Com cordialidade e imenso respeito, a deixava participar de todos os momentos de sua
vida, era-lhe a companheira e não somente a esposa. Sara sorriu-lhe, pegando-lhe a mão
e afagando-a ternamente.
-Meu querido Arthur, sinto-me bem. Perdoai-me o susto que lhe dei.
Arthur inclinou-se, beijando-lhe a face comovido.
-Não posso perdê-la,Sara, és tão importante em minha vida, sinto tanto medo.
Sara percebendo-lhe a emoção sorriu tranqüilizando-o
-Está tudo bem agora, querido, deitai-te um pouco aqui ao meu lado.
Prontamente Arthur tirando as sandálias, deitou-se ao seu lado e Sara olhando-o
fixamente, indagou-lhe:
- Porque me omitistes o assassinato de Lorde Ricardo?
A vos lhe era meiga e dócil, sem censura ou critica ao que lhe escondera durante aqueles
quatro anos.
-Estava profundamente perplexo com a sua morte tão cruel, doía-me imensamente a
perda do amigo, do companheiro, do pai que em verdade sempre me foi. Me lamentava,
não conseguir acabar com a imensa dor que Carol também sentia. Omiti pelo meu
sofrimento e para não te fazer sofrer, compreendes?
-Sim, querido, compreendo o quanto deves ter sofrido e o quanto deve doer-te fazer
recordar aquele dia, mas preciso que me contes tudo agora.
Lorde Arthur temia que a sua serenidade pudesse se alterar novamente por causa da
extrema emoção e fazer-lhe mal. Sentia, no entanto, que também a ansiedade e a
determinação de Sara a levariam á verdade. Decidiu contar-lhe tudo o que ocorrera na
noite em que Ricardo fora assassinado, e em como havia encontrado Gabriel Vandak
dormindo tranqüilamente próximo ao rio.
Após a triste narrativa silêncio se fez no aposento por alguns instantes. Então Sara
perguntou-lhe:
-Soube que com seu árduo trabalho trouxe prosperidade á propriedade, dando muito
orgulho e alegria á sua mãe Carol e ao amigo Ricardo. Parecia haver se regenerado, lhes
devotando imenso carinho e respeito. Ttratava-os verdadeiramente como pais. Não
compreendo que motivos teria Gabriel Vandak para matar Lorde Ricardo.
Arthur olhou para Sara perplexo. Não conseguia compreender como sua querida esposa,
no educandário, longe de tudo por longos cinco anos, poderia saber tudo a respeito da
vida de Gabriel na propriedade de seus amigos Indagou-lhe curioso.
-Como sabes de tudo isto, Sara?
A jovem temerosa, silenciou, porém o nobre insistiu:
-Algum servo contou-te tudo isto quando aqui chegastes? Se o fez, porque não te falou
dos crimes de Gabriel?
Sara balbuciou tristemente:
-Não compreenderias, meu querido Arthur.
O nobre afagando-lhe os cabelos, carinhosamente falou-lhe.
-Como não compreender-te, querida! Contai-me como o soubestes, peço-te que também
não me omitas nada.
Sara então encorajou-se e, apertando sua mão, contou-lhe serena.
-Com certeza concluirás que estou louca, mas és o meu esposo e sei que nada devo te
ocultar. Há muito tempo, como sabes, o meu pai Job morreu subitamente do coração,
após o enorme desgosto . Nos dias imediatos, surpreendentemente escutei-o
conversando comigo. Eu era uma menina e quando o escutei pela primeira vez, pranteei
aflita e entristecida. Meu pai consolou-me dizendo: "Minha filha, não chores, somente o
corpo morre, mas a vida continua!” Disse-me ainda, que eu podia comunicar-me com ele
quando eu precisasse.Confusa eu lhe indaguei, "Se estás vivo porque não posso ver-te?"
Pacientemente, ele me explicou que existia um impedimento a que isso acontecesse, mas
que eu deveria dar graças a Deus por poder escutá-lo e sentir sua presença. Não me
senti assustada com aquilo, que era tão estranho, sentia confiança na voz meiga e
carinhosa de meu pai. Entretanto, tive receios de contar para os outros o que acontecia.
Meu pai Job pediu certo dia, que eu contasse tudo para o meu tutor, o seu amigo Ricardo,
avisando-o de que Gabriel ainda estava vivo. Eu o fiz, mas senti que o bom médico não
acreditava plenamente no que lhe dizia. Um dia, tu aparecestes em Adredanha e
resolvestes queimar tudo. Lembro-me, como se fosse hoje, do imenso fogo clareando a
noite!
Sara fez uma longa pausa para respirar profundamente e, percebendo a atenção e o
interesse de seu esposo Arthur, continuou:
-Meu pai continuou próximo por muito tempo. Quando me sentia só, surgia para me
consolar. Em situações de perigo, aparecia para auxiliar. Quando Gabriel apareceu
doente na casinha de Carol, escutei-o pedindo que lhe contasse que aquele era seu filho
e temendo, por nossas vidas, levou-nos a um lugar seguro, onde nos abrigamos. No
entanto, disse-me que não teve permissão para alertar-me sobre a aranha venenosa caberia a Gabriel tentar salvar-me a vida. Não compreendi direito o motivo, mas nada
mais indaguei a respeito. Meu pai sabia que Gabriel falava a verdade quando dizia que
perdera a memória, mas temia que, ao recuperá-la, se tornasse vil novamente. Quando
parti para o educandário, Job falou-me que Gabriel se empenharia em melhorar-se, podia
de alguma forma, ver-lhe os sentimentos mais profundos! Deves lembrar-te, que te pedi
para tomares cuidados com Linia. Pois meu pai alertara que ela ambicionava vingança e
só tinha maldade em seus sentimentos.
Sara novamente fez uma pausa e, sempre apertando a mão de Arthur, que estava serio e
compenetrado, a tudo escutando atentamente, prosseguiu:
-No educandário, tudo era muito triste e frio. Somente consegui suportar a distância do
castelo e de todos vocês porque meu pai, eventualmente, trazia-me notícias vossas.
Contou-me do imenso sentimento que me tinhas e por isto compreendi porque tinhas me
mandado para tão longe. Contou-me da tuas viagens, explicando-me que o sentimento
em relação a mim mantinha-se forte e que ansiavas meu crescimento para me
desposares. Contou-me também como era a vida de Gabriel, tentando redimir-se de todos
os seus terríveis erros.
A jovem sentia-se cansada da longa narrativa e Arthur implorou-lhe:
-Nada mais te disse o teu pai?
A jovem surpresa com o interesse de Arthur, continuou:
-Contou-me também que Linia se aliara a um dos guerreiros que expulsastes do castelo,
para se vingar de ti. Pediu-me que te avisasse e eu o fiz. Concluo agora que a mensagem
chegou-te tardiamente.
O nobre Arthur lembrava-se da mensagem que recebera de Sara, na manhã, no mesmo
dia do crime. Sentia-se perplexo e intrigado com a longa narração de sua esposa, em
quem confiava plenamente. Havia descrito corretamente fatos que desconhecia, como os
seus sentimentos que somente confidenciara a Ricardo. As indagações eram muitas em
sua mente. Perguntou-lhe percebendo-a serena:
-Ainda podes conversar com teu pai?
Sara entristeceu-se, falando melancólica:
-No dia em que pediu para enviar-te a mensagem, explicou-me, carinhosamente, que não
mais tinha permissão de acompanhar-me, mas que eu não deveria ficar triste porque
breve retornaria a este castelo e estaria contigo em proteção. Certa vez perguntei a uma
das religiosas do educandário se os mortos podiam falar com gente viva, mas sofri tantos
castigos em função da minha ingênua indagação, que jurei para mim mesma nunca mais
falar sobre a estranha experiência que vivi durante sete anos.
O nobre levantou-se do leito e olhou-a com ternura.
- Minha querida Sara, não me surpreendo em demasia com tudo o que me contastes
porque o bom Ricardo já havia me alertado sobre os mistérios que envolviam as tuas
comunicações com o teu falecido pai. Difícil, no entanto, é para todos nós, conseguirmos
compreender os inúmeros mistérios, que ainda desconhecemos, mas que com certeza
existem entre o céu e a terra!
Lorde Arthur prontamente indagou-lhe:
-Crês querida Sara, que foi realmente Linia quem matou Ricardo?
A jovem, sentindo-se profundamente entristecida por sua mãe fria, gananciosa e vil até á
sua morte, respondeu-lhe.
-Senhor meu marido, por tudo o que meu pai me contou de seus sentimentos, e da sua
ânsia de vingar-se, eu creio que Linia possa ter ordenado a esse guerreiro que matasse
Ricardo e de maneira que incriminasse Gabriel Vandak.
O nobre ,após lhe dar um beijo carinhoso de compreensão e agradecimento, saiu do
aposento para refletir em tudo.
Sara sabia que Arthur despertara cedo naquela manhã, para fazer incessante
questionário aos servos que tinham trabalhado aqueles anos para Linia. Aproveitaria a
oportunidade para subir á masmorra sem que ele soubesse.
Com extrema dificuldade, conseguia subir vagarosamente os oitenta e quatro degraus, a
determinação lhe era a força, Desde que despertara, sentia enorme impulso de ir ver o
seu tio Gabriel. Vandak.
O sol ainda não ia alto no castelo de Lorde Arthur, quando Gabriel tentou revirar-se no
chão frio de pedra fétida. Não existia mais força em seu corpo para mover-se. Escutou o
profundo silêncio que ainda imperava no castelo, após o ataque e a batalha que não
conseguia compreender. Repentinamente escutou passos nos corredores da masmorra.
A fome lhe era enorme, ninguém havia surgido para lhe dar alimento aqueles longos dias.
Perguntou-se, angustiado: “quem caminha nos corredores?".
Sentindo-se tonto, viu surgir na porta, atrás das grades, em uma nevoa esbranquiçada,
uma linda jovem, de corpo esbelto e de porte elegante . Com dificuldade percebia que sua
pele era rosada e o semblante era incrivelmente terno. Gabriel, com seus trinta e cinco
anos, pensou que estava vendo um anjo, em vestes brancas e fitas em cetim violeta. A
Duquesa Sara, olhava-o piedosamente. Somente então, a névoa esbranquiçada sumiu de
sua vista, e pode perceber que realmente aquela jovem ali estava e que o seu ventre
estava aumentado em demasia, ia ser mãe!
Não se recordava de quem ela era e porque o olhava com tanta compaixão. Não
conseguindo levantar-se, manteve-se imóvel no chão frio, ainda que desejasse erguer-se
para vê-la melhor.
-Podes falar Lorde Gabriel Vandak?
A voz da jovem era delicada, mas forte e determinada. Insistiu apreensiva.
-Podes falar ?
Gabriel não falava com ninguém há quatro longos anos, e ainda que Sara lhe indagasse
inúmeras vezes, a emoção não permitia que sua voz respondesse aquela jovem aflita. Na
ânsia de fazê-lo, Gabriel pranteou sua incapacidade!
Começou soluçar em pranto imperceptível, na enorme força que fazia para erguer-se e
responder-lhe. Porém estava demasiadamente enfraquecido.
-Abram esta porta agora!
Sara expediu a ordem decidida, mas o guerreiro ainda surpreso com a presença da
Duquesa, ali e naquele estado, temeroso argumentou:
-Não creio que o senhor Lorde Arthur saiba que a sua esposa, a Duquesa Sara
Corleanos, esteja fazendo uma visita a Lorde Gabriel Vandak, nesta masmorra...Perdoaime senhora Duquesa, mas somente com a autorização de seu nobre esposo, poderei
abrir esta porta, que está fechada há longos quatro anos, e nunca foi aberta... Perdoai-me
duquesa.
O servo reverenciando-a, afastou-se um pouco. Sara perguntou-lhe aflita.
-Há quantos dias ele não é alimentado?
O guerreiro manteve-se silencioso e Sara novamente indagou autoritária:
-Há quantos dias não lhe dão o que comer?
O homem armado olhou-a contrariado respondeu-lhe.
-Não come há três dias, senhora duquesa Sara. Estávamos preocupados com o ataque
ao castelo, e esquecemo-nos de alimentá-lo.
Sara enfureceu-se dizendo:
-Trazei comida agora!
O guerreiro prontamente atendeu a sua ordem, ainda que temesse deixá-la ali sozinha.
A Duquesa ficou a sós com Gabriel Vandak, que se mantinha em pranto humilde e
silencioso. Estava imóvel.
Sara abaixou-se com dificuldade por causa da grande barriga, e agarrando-se nas grades
olhou Gabriel melhor. O seu corpo, completamente debilitado, chocava-a. Perguntou-lhe
piedosamente:
-Vejo tuas lágrimas, porque choras?
Gabriel finalmente conseguiu murmurar com dificuldade em seu corpo enfraquecido no
qual os ossos eram aparentes. A voz saiu-lhe num balbucio quase imperceptível:
-Não fui eu senhora! Não o matei!
Sara compadeceu-se de Gabriel, porém nada mais falou-lhe porque o guerreiro se
aproximava apressado, trazendo o alimento que ela ordenara, e um vasilhame com água.
A jovem novamente ordenou-lhe, levantando-se com dificuldade:
-Abra esta porta!
O homem olhou-a novamente desculpando-se:
-Perdoai-me Senhora Duquesa Sara Corleanos, mas não poderei obedecer a sua ordem.
Há longos anos trago comida e água para o prisioneiro. Ordenou-me o senhor Lorde
Arthur, quando mandou trazê-lo para a masmorra, que esta porta somente deveria ser
aberta quando este homem estivesse morto.Devo, senhora, obedecer as suas ordens.
Após explicar-se, o guerreiro colocou a pequena vasilha com o alimento e com a água no
chão através das grades, mas Gabriel Vandak mantinha-se imóvel. Sara indignou-se:
-Não percebes, homem, que o prisioneiro não tem mais forças para levantar-se e alcançar
o alimento e a água que lhe ofereces?
O guerreiro novamente desculpou-se impacientemente:
-Senhora Duquesa, somente abrirei esta porta, com a ordem expressa do senhor Lorde
Arthur.
A jovem contrariada, sentindo-se completamente impotente, olhou para o semblante de
Gabriel Vandak, que ainda vertia pranto silencioso.
O cheiro fétido daquele ambiente fechado, lhe dava náuseas e afastou-se sentindo
enorme indisposição.
Desceu a longa escadaria cuidadosamente. Escorando-se com uma das mãos, nas
imensas pedras que edificavam aquela torre e com a outra amparava o ventre
carinhosamente.
Finalmente conseguiu alcançar o pátio interno do castelo, estava muito ofegante e parou
para descansar um pouco. Os servos que ainda se encontravam ali, reclusos sob a
proteção das muralhas, imediatamente perceberam que a nobre jovem não se sentia
bem. Gentilmente, uma das servas aproximou-se para auxiliá-la percebendo-lhe o imenso
cansaço e o semblante muito pálido.
-Deseja algo Duquesa Sara?
Sara pediu-lhe que a auxiliasse a chegar até á biblioteca, onde Lorde Arthur se
encontrava. Aproximando-se da sala, Sara agradeceu humildemente á serva prestativa e
entrou sozinha sem bater. Sentia-se melhor.
O nobre conversava com uma das servas de Linia e, percebendo a entrada da esposa,
ainda pálida e um pouco ofegante, prontamente caminhou em sua direção, apreensivo, e
auxiliando-a a se sentar, indagou-lhe preocupado:
-Porque estás tão cansada? Sentes-te mal querida?
A duquesa Sara meneou a cabeça em negativa e olhando para a serva, perguntou ao
marido.
-Concluístes algo, querido Arthur?
O nobre dispensou a serva, agradecendo-lhe a ajuda e depois abaixou-se próximo a Sara
dizendo-lhe carinhosamente:
-Ainda não querida... Porém fiquei ciente através dos servos de que realmente Linia
contratou um de meus guerreiros e que este, após uma breve ausência, sumiu
misteriosamente. Soube também que Linia trouxe um capataz da corte que
eraextremamente violento, feria e agredia os servos.
Sara interrompeu-o falando determinada:
-Fui até á masmorra ver Gabriel Vandak!
Lorde Arthur levantou-se sobressaltado com a coragem de Sara.
-Porque fizestes isto, minha querida?
As lágrimas incontroláveis desceram-lhe velozmente em profunda emoção. Aos soluços
respondeu-lhe:
-Está em estado miserável! Não come Há três dias. Não consegue erguer-se para se
alimentar e nem consegue falar.A sujeira destes anos enclausurado formou crostas e
feridas em todo o seu corpo.
O nobre ,alarmado com a sua extrema emoção convulsiva, implorou-lhe que parasse de
falar e que se acalmasse, mas Sara parecia não o ouvir e continuou, falando em pranto
desesperado.
-Nada conseguiu falar comigo, mas chora! As suas lágrimas são tristes e me feriram.
Conseguiu balbuciar inocência. Por piedade, meu marido, vá até á masmorra e ordene ao
guerreiro que abra a porta e o alimente. Ordenei que o fizesse, mas diz não poder
contrariar as tuas ordens.
O nobre extremamente preocupado com Sara, que estava cada vez mais pálida, passou
os seus dedos em suas faces secando-lhe as lágrimas e falou-lhe suplicante:
-Precisas acalmar-te Sara, esta emoção não te fará bem. Vou te levar para o aposento e
ficarás lá com Carol.Prometo-te que irei até á masmorra e farei o que me pedes.
Lorde Arthur caminhou até á porta e pediu a uma serva que chamasse a Duquesa Carol e
o médico rapidamente. Levou Sara para o aposento e deitando-a cuidadosamente no
leito, indagou-lhe aflito.
-Ficarás bem?
A jovem tentando conter a emoção, agradeceu-lhe pedindo-lhe.
-Por piedade, vai ver Gabriel Vandak!
Lorde Arthur subiu a longa escadaria pensativo. Vinham á sua mente incessantemente as
imagens de Henri II, Brigith, Anderson, Joane, Orlando, Job, Ricardo...tantos haviam
partido para algum lugar que desconhecia! Indagava-se: "Seria a vida um mero e
gigantesco educandário?”Sentia-se um ignorante defronte a inúmeros mistérios!
Perdera toda sua família, os irmãos Brigith e Anderson, a mãe Joane, o pai Orlando, o
mentor Ricardo... Enorme temor possuía, em seu interior, de perder a doce e nobre Carol,
a meiga e bondosa Sara, as pequeninas filhas Brigith e Joane, o pequenino filho Ricardo.
Agora ali estava ele, novamente, subindo piedoso para salvar a vida de seu tio...talvez
inocente pelo assassinato de Ricardo e Paulo, mas tão culpado na destruição de sua
família.
Não compreendia porque não conseguia ter ódio ao Gabriel Vandak, com extrema
facilidade o perdoava! Visando a plena felicidade de Carol, o libertara concedendo-lhe a
oportunidade de regenerar-se dos males que fizera. Agora novamente o perdoava com
pleno amor, sentindo-se incrivelmente culpado por tê-lo julgado e condenado a tantos
anos de reclusão.! Ambicionando atender o desejo de sua esposa, novamente o libertaria
concedendo-lhe nova oportunidade á continuidade.
O nobre Arthur, sentia enorme angústia em seu interior, temeroso com o estado físico em
que encontraria Gabriel!
Sua esposa Sara o descrevera completamente sensibilizada - debilidade física que ele
provocara condenando-o á fome e á miséria humana. Conseguira agir com aparente
indiferença todos aqueles anos, mas interiormente sentia-se culpado diariamente, tinha
plena consciência de que mantinha em vida restrita, em sua masmorra, um semelhante!
Ao condenar Gabriel Vandak, uma pequena parte de si mesmo ali também se
enclausurava, impedindo-o de ser completamente feliz. Ainda que desejasse, não
encontrara outra forma de evitar que outros males ele ocasionasse. Tantos naquela
propriedade dependiam da sua determinação como nobre e confiavam em sua proteção!
Indagara-se freqüentemente naqueles quatro anos : " Como punir os homens, que
aniquilavam vidas e destroem a harmonia e a paz de seus companheiros, sem privá-los
do convívio necessário?" Mas as respostas não lhe surgiam..
Lorde Arthur aproximou-se do guerreiro, que assustou-se. O bom nobre nunca tinha ido ali
naqueles longos anos. Reverenciou-o disse-lhe orgulhoso da tarefa cumprida:
-Senhor Lorde Arthur, estes anos todos nunca abri a porta como me ordenastes.
Lorde Arthur caminhou até a cela de onde exalava terrível mau cheiro e perplexo viu
Gabriel resumido a um corpo esquelético, sujo e possivelmente doente. Balbuciou para si
mesmo amargurado:
-Guerreiro, porque me obedecestes tão rigorosamente?
O servo olhou-o tentando perceber o que murmurava, e percebeu que tristes lágrimas
vertiam continuamente de seus olhos."Lorde Arthur chorava diante do estado miserável
de seu prisioneiro?" perguntou-se.
Lorde Arthur interrompendo-lhe os pensamentos, implorou-lhe num murmúrio que abrisse
aquela porta.
O guerreiro prontamente correu a procurar a chave que ficara oculta sob uma pedra todo
aquele tempo. Encontrando-a , rapidamente a trouxe atendendo ao pedido de seu nobre
senhor que ainda pranteava dor.
A porta finalmente foi aberta e o nobre entrou sem hesitações.
Abaixou-se humildemente próximo a Gabriel Vandak e, olhando fixamente em seus olhos,
sentindo-se completamente culpado pelo mal físico que lhe ocasionara, murmurou:
-Perdoai-me Gabriel, pelo imenso mal que te fiz.
Gabriel permanecia imóvel, as lágrimas também desciam-lhe nas faces magras em seu
sofrimento agonizante.
O nobre, determinado, levantou-se. Mostrava-se completamente alheio ao profundo mau
cheiro que impregnava no ambiente e no prisioneiro. Sentindo-se imensamente
apreensivo, pediu ao guerreiro que o auxiliasse a descer com Gabriel Vandak.
O guerreiro sentindo-se terrivelmente agredido pelo odor que Gabriel exalava, obedeceu a
ordem e os três desceram da masmorra com dificuldade. Finalmente, chegando ao pátio
interno do castelo, o Lorde pediu a alguns dos servos que observavam atônitos o estado
daquele prisioneiro, que o banhassem imediatamente, lhe cortassem a longa barba e
bigode, e lhe colocassem uma veste limpa.
Lorde Arthur caminhou rapidamente para pedir ao médico que o examinasse, mas quando
se aproximou do aposento onde deixara Sara acompanhada da nobre Carol e do médico,
percebeu uma serva aflita, no corredor próximo á porta. Sentindo enorme aflição em seu
peito, entrou apressadamente no aposento.
Sara contorcia-se em dores terríveis, amparada pela nobre Carol, enquanto o médico lhe
examinava o ventre. Arthur aproximou-se desesperado e, sem compreender direito o que
ali acontecia, segurou apreensivamente a mão de Sara. A jovem apertou-a com
demasiada força, dando um urro expressivo de imensa dor.
O Lorde sentia-se imensamente impotente, sem saber o que fazer para auxiliá-la ou
confortá-la em seu sofrimento ou no mal que lhe acometia. Amava-a profundamente, mas
não sabia como evitar que sofresse, e isto o angustiava.
Nada conseguia também falar-lhe, a emoção o emudecera. Sentindo-se fragilizado,
olhava para a bondosa esposa gemendo e por vezes gritando na dor que parecia não
mais suportar.
Arthur deixou-se envolver pela aflição, vertendo pranto sufocante na angústia que sentia
em não poder defendê-la daquele sofrimento.
Carol continuamente secava-lhe a fronte, molhada pelo suor e as lágrimas de dor. Sara
olhou-os suplicante e desesperada . O nobre olhou para o médico e em pranto
desesperado e convulsivo, murmurou com dificuldade:
-Por piedade, ajude-a! Faça alguma coisa!
O médico se esforçava em aparentar frieza e tranqüilidade, mas não conseguia. A
situação era extremamente grave. Seu rosto, também imensamente suado e com
expressão sombria, mostrava claramente a sua preocupação exagerada.
Falou apreensivo:
-O bebê não tem mais batimentos cardíacos... Faleceu em seu ventre.
O Lorde olhou para a esposa, que em meio a contorções violentas e gritos
desesperados, parecia querer desfalecer em exaustão.
A mão de Arthur começava a doer com a força exagerada com que Sara a apertava . O
nobre horrorizou-se, então, ao ver que o leito alvo estava tinto de sangue. Todas as suas
atenções tinha direcionado para o sofrimento de Sara e não o havia percebido.
Carol também não conseguia conter mais a extrema aflição e chorando muito, continuava
secando-lhe tremulamente a face. Começou compulsivamente a orar, pedindo clemência
á Deus Pai.
O Lorde, sem conseguir desvencilhar-se da mão da esposa, ajoelhou-se próximo ao leito
e chorando amargurado implorou ao médico:
-Salve-a, por tudo lhe imploro, salve-a! Não posso perdê-la. Não Sara! Em nome de
Deus, salve-a!
O médico compreendia o apelo angustiado que Lorde lhe fazia, mas se sentia tão
impotente quanto ele. Sara não apresentava qualquer processo de dilatação, ainda que
tivesse contrações violentíssimas. A hemorragia era intensa e não sabia como contê-la...
Já perdera sangue demais! Não era um médico experiente, havia terminado de se
doutorar quando Lorde Arthur trouxe-o para a propriedade. Estava ciente de que alguns
médicos cortavam a barriga de suas parturientes para retirar-lhes os filhos, mas não sabia
como fazê-lo. E se o soubesse, como fazê-lo sem adormecê-la em morfina? Com certeza
a droga lhe precipitaria a morte, na imensa fraqueza orgânica na qual já se encontrava.
"Como falar a Lorde Arthur que não poderia salvar a sua esposa Sara?"
Arthur que o olhava suplicante, ainda ajoelhado, compreendeu em seu semblante que
nada podia fazer e desesperou-se. Incontrolável, suplicou em sua aflição:
-Deus por piedade, não leve minha Sara!
Sara olhou-o, também desesperada com a profunda dor que sentia e, após uma terrível
contração e um urro de desespero, perdeu os sentidos.
Lorde Arthur percebendo que a sua mão ficara inerte, levantou-se e chorando muito,
ergueu os olhos e cerrando-os implorou:
- Ricardo , me ajuda! Salva minha Sara!
Carol em pranto, também convulsivo, olhou-o perplexa sem conseguir compreender o que
o nobre fazia em desespero, mas Lorde Arthur em profundo sentimento de fé, deixou-se
cair de joelhos e balbuciou humildemente, reclinando a cabeça, e em meio ao seu pranto
de amor:
-Deus por piedade, deixai que Ricardo salve minha Sara!
Abençoados pela Infinita Misericórdia de Deus, grandiosa luminosidade ali se fez!
Intuitivamente, o médico surpreendentemente reagiu! Pegou rapidamente um pequeno
punhal em sua bolsa de couro e habilmente cortou o ventre da jovem Sara.
Impressionantemente, a jovem não reagira ao ferimento profundo mantendo-se em sono
profundo. Em questão de segundos, o médico retirou o bebê inerte de seu ventre e o
agilmente o deu para que Carol o segurasse.
A nobre senhora, em completo estado de choque pegou a pequenina criança inerte e
sentindo-lhe a pele quente, acalentou-a em seus braços fervorosamente. Arthur perplexo
com tudo o que ali presenciava, mantinha-se ajoelhado e em pranto silencioso mas
sentindo-se incrivelmente amparado e imobilizado em uma paz inexplicável.
O médico enquanto estancava o sangramento com algumas mantas improvisadas, pediu
num balbucio quase imperceptível á serva que ali também estava para conseguir-lhe uma
agulha e linha de bordado. Completamente atônita com tudo, ela rapidamente saiu do
aposento apressada para atender-lhe o pedido.
Arthur olhou para a esposa que respirava com extrema dificuldade, mas
impressionantemente tranqüila.
Enquanto a serva atendia-lhe o pedido, o médico, deixando as mantas no corte que fizera
no ventre de Sara, proximou-se do pequenino bebê de sete meses, ainda no colo da
nobre senhora e soprou sutilmente em sua fronte.
Carol olhou o pequenino ser, que retornava para a vida, se movendo em seus braços... As
lágrimas desceram sensibilizadas nas faces da nobre senhora!
O médico limpou o ferimento cuidadosamente e o costurou esmeradamente , com o
material que pedira á serva. Surpreendentemente, Sara permanecia imóvel, em sono
profundo.
O médico, verificando que a hemorragia havia parado e limpando as suas mãos,
aproximou-se de Lorde Arthur.
Colocou a mão no seu ombro e auxiliando-o a se levantar, disse-lhe com um sutil sorriso
extremamente iluminado:
-Daí graças ao Bom Pai porque fostes abençoado em tua fé e em tua nobreza! A nossa
querida Sara ficará boa!
Caminhou serenamente até a nobre senhora, que ainda acalentava a criança em pranto
silencioso e,também sorrindo-lhe candidamente, murmurou:
-Minha nobre e querida companheira ...zelai por esta criança com extremo amor, o
Misericordioso Pai concedeu-lhe a vida!
Aproximou-se da jovem Sara e abençoou-a !
O médico, visivelmente, pareceu despertar com um suspiro. Colocou a mão em sua
cabeça. Parecia sentir-se tonto. Olhou então atordoado para a duquesa Sara, que dormia
tranqüilamente e com a respiração amena. Vendo o seu ventre, completamente perplexo,
indagou a Lorde Arthur:
-Quem fez isto? Quem lhe cortou o ventre?
O médico completamente atordoado, olhava para todos no aposento, desejando
explicações. Surpreendido viu a criança minúscula agitando levemente os bracinhos no
colo da duquesa Carol, e suplicou:
-Me digam, o que houve aqui???
Lorde Arthur, imensamente emocionado, pranteou saudade e agradecimento ao grande
amigo Ricardo, que ali viera para auxiliar a salvar Sara! O nobre ajoelhou-se em extrema
fé e deu graças ao Bom Deus que os havia abençoado!
Carol apertando carinhosamente o pequenino em seus braços, também ajoelhou-se
humildemente, chorando serenamente em oração.
O médico permanecia atordoado com tudo o que ali presenciava. Conseguia unicamente
lembrar-se de como se sentia aflito precisando explicar ao Lorde Arthur que não poderia
salvar a vida de sua esposa, a duquesa Sara... Porém agora, surpreendentemente, a
Duquesa Sara estava ali, repousando serena, com o ventre costurado, a hemorragia
estancada...e o bebê de sete meses ao qual constatara a morte, ali vivo!
Sem conseguir compreender o que acontecera naquele aposento em sua inexplicável
ausência, e mantendo-se os nobres silenciosos em oração, pediu á serva, que também
chorava emocionada, para lhe auxiliar a banhar cuidadosamente a jovem nobre e tirar
com cautela as mantas sujas , colocando roupas limpas em seu leito.
Enquanto a serva banhava carinhosamente a sua senhora, limpando-lhe o sangue, o
médico pegou delicadamente a criança recém-nascida retirando-a do colo da duquesa
Carol para medicá-la e limpá-la.
"Como é extremamente pequeno e frágil...como sobreviverá?" pensou.
A respiração lhe era difícil. Limpou-o com imenso cuidado, era um menino perfeito, mas
saíra prematuramente do ventre da mãe... Precisaria de ar muito puro e muito calor em
seu corpo.
Observou a Duquesa Carol, que permanecia ainda profundamente comovida e em estado
de oração, assim como Lorde, que de olhos cerrados parecia orar fervorosamente.
Não desejando incomodá-los, o médico chamou um servo para acender a lareira num
aposento próximo. Neste colocou o bebê, em leito improvisado e extremamente macio.
-O aposento deve permanecer completamente arejado, limpo e aquecido, orientou à
serva que lhe ficaria de guarda. "Mas como alimentá-lo se ainda não possuía forças á
sucção?"
O médico caminhou pensativo de volta ao aposento da Duquesa Sara e a encontrou já
em leito limpo. Lorde Arthur levantou-se, ainda visivelmente emocionado, e caminhou até
Carol ajudando-a a se levantar. Ambos olharam-se em extrema emoção e se abraçaram.
A nobre senhora murmurou confusa:
- Foi Ricardo não foi? Ricardo, esteve aqui?
Arthur meneou a cabeça afirmativamente, sentindo que as lágrimas voltavam á aflorar em
suas faces.
- Ricardo veio até aqui para nos auxiliar.
O Lorde, sem conseguir falar-lhe, abraçou-a mais forte. Então caminhou até o leito de
Sara e tranqüilizou-se ao perceber que suas faces, ainda profundamente pálidas,
mantinham expressão serena de tranqüilidade e repouso.
O médico aproximou-se, dizendo-lhe que assim que despertasse deveria ser alimentada
com refeição forte, pois o organismo estava muito fraco. Iria prontamente até a cozinha
orientar as servas, para que lhe preparassem um caldo substancioso.
Lorde Arthur finalmente conseguiu murmurar:
-Como está a criança?
O médico falou-lhe, mostrando-se incrivelmente impressionado:
-É um menino, senhor Lorde Arthur, uma criança bem pequena e frágil. Tomei a liberdade
de levá-lo para o aposento ao lado. Precisava de calor que o acalentasse tal qual o ventre
de sua mãe, e para isto acendemos prontamente a lareira. Preocupo-me, no entanto, em
como alimentá-lo. É tão pequeno e frágil, nem mesmo sei se a Duquesa Sara terá leite
para amamentá-lo.
O nobre, compreendendo a sua preocupação, falou-lhe serenamente em agradecimento:
-Deixemos ambos repousarem dos momentos aflitivos por que passaram. Ficai com ela,
eu irei á cozinha dar as orientações.
Dizendo isto, Lorde Arthur caminhou determinado, mas quando se preparava para sair do
aposento, o médico interrompeu-o indagando suplicante:
-O que aconteceu aqui , senhor Lorde? Estou demasiadamente confuso, porque nada vi.
De nada me recordo!
O nobre voltou e colocando-lhe a mão no ombro falou-lhe sensibilizado:
-Também não compreendo. Mas agradeço fervorosamente ao bom Deus pela vida de
minha esposa Sara e pela vida de meu filho. Fazei o mesmo!
Dizendo isto, Lorde Arthur saiu apressadamente do aposento e caminhou até a cozinha
do castelo, para orientar as servas sobre a alimentação a ser servida á Duquesa quando
esta despertasse. Pediu-lhes humildemente:
-Precisam ajudar-me , ela precisará fortalecer-se.
Somente então observou através de um imenso vitral que a tarde se passara e que o sol
já descia sob as colinas, incrivelmente radiante e belo.
Um servo temeroso em incomodá-lo aproximou-se vagarosamente dizendo-lhe:
-Senhor Lorde Arthur, o prisioneiro foi limpo e barbeado, encontra-se ainda imóvel, no
pavilhão dos servos.
O Lorde esquecera-se de Gabriel, e disse-lhe preocupado:
-Levai-o de imediato para um aposento, pedirei ao médico que vá vê-lo.
O servo obedeceu prontamente.
Sara era imensamente querida pelos servos, aos quais sempre tratava com amor e
respeito. Rapidamente os rumores se espalharam pelo castelo, a respeito da pequenina
criança que nascera antes do tempo, sendo rasgada á barriga de sua mãe! Todos
sentiam-se aflitos com a saúde de sua senhora, a Duquesa Sara Corleanos.Silenciaram
para não atrapalhar-lhe o repouso.
As servas, preocupadas com a enorme perda de sangue, se esmeravam em lhe fazer
fortes sucos e caldos variados, para que tomasse assim que despertasse.
Outros, por própria iniciativa, faziam feixes com a lenha que estava no castelo, para que
a lareira que esquentava a pequenina criança, nunca se apagasse. Todos ansiavam
novamente vê-la feliz e com saúde.
O enterro de Linia havia passado despercebido, sendo sepultada por dois servos que o
fizeram friamente naquela manhã.
Lorde Arthur voltou ao seu aposento preocupado com Sara, mas percebendo que esta
ainda dormia serena, pediu ao médico que o acompanhasse.
Ao entrarem no aposento onde já se encontrava Gabriel, o médico prontamente caminhou
na direção do leito, onde ele estava imóvel.
Estava banhado e limpo, mas vestia-se somente com uma canga, deixando o corpo
visível. Estava imensamente magro e desnutrido. As suas costelas impressionantemente
se aparentavam uniformemente sobre a pele. Os braços extremamente finos podiam ser
facilmente identificados em mera estrutura óssea, coberta sutilmente por pele vastamente
ferida. As suas pernas também assim estavam... Podia-se perceber nelas as marcas das
mordidas de roedores.
O médico examinou-lhe os olhos, estavam esbranquiçados, mostrando critico grau de
anemia. A pele, muito enrugada em todo o corpo, declarava a desidratação.
Examinou-lhe o batimento cardíaco. Era muito fraco, mas parecia ainda saudável. Os
seus pulmões pareciam funcionar perfeitamente, ainda que em seu ronco prenunciassem
uma possível pneumonia.Tateou-lhe o abdome e não sentiu vestígios de seqüelas.
Surpreendentemente, o seu estado físico não era alarmante, apesar da extrema miséria a
que fora submetido aquele corpo.
Lorde Arthur ansioso, indagou ao médico com aparente aflição:
-Então, vai recuperar-se?
O médico, percebendo-lhe a ansiedade, respondeu-lhe prontamente:
-Com muito alimento e água, se recuperará primeiro que seu filho, Senhor Lorde Arthur.
Arthur, que em enorme sentimento de culpa sentia-se inexplicavelmente angustiado,
reconfortou-se com a notícia do médico e dispensando-o para que retornasse ao
aposento de sua esposa, caminhou até próximo a Gabriel e perguntou-lhe com a voz
embargada em profunda emoção:
-Estás um pouco melhor?
Gabriel abrindo os olhos com dificuldade, olhou para o nobre fixamente e falou-lhe
fracamente, num sussurro:
-Porque fazes isto senhor? Matei aqueles a quem tanto amavas! Não sou merecedor de
tua clemência e bondade.
O nobre, olhando-o também fixamente, respondeu-lhe firme:
- Agiste muito mal sim, eu sei. Mas eu sinto que não tinha o direito de revidar o grande
mal que me fizestes. Agi errado! Exclui-te do convívio com todos, desejando evitar que
continuasses cometendo erros, privei-te do essencial a todo o ser humano, higiene,
alimento e água. Somente Deus, que nos é Pai, haverá de julgar-te um dia por teus atos.
No entanto, eu julguei e condenei, e por isto peço-te que me perdoes!
Gabriel sentindo-se emocionado com aquele humilde pedido de perdão, falou-lhe
fracamente:
-Senhor lorde, eu não matei Paulo... Tentei avisá-lo, mas alguém impediu que eu o
fizesse. Perdi os sentidos... E então me prendestes.
Arthur preocupado com sua fraqueza, pediu-lhe:
-Depois me contarás tudo pausadamente, agora precisas repousar.
Gabriel insistiu:
-Preciso explicar-me... Preciso falar com o Senhor Ricardo e com a Senhora Carol. Peçalhes que venham aqui, por clemência o faça, eu preciso dizer-lhes que eu não matei
Paulo.
A voz lhe saia cada vez mais enfraquecida e o nobre mal conseguia ouvi-lo.
-Descansa Gabriel, mais tarde conversaremos e te alimentarás.
Gabriel ainda tentou suplicar-lhe a presença do médico Ricardo, mas Lorde Arthur já se
afastava, incomodado com o que Gabriel lhe pedia.
A noite descera incrivelmente serena na propriedade. Os guerreiros ainda se mantinham
de prontidão, preocupados com um novo ataque dos rebeldes.
O silêncio imperava em todos os cantos do castelo, e todos se mantinham em reclusão,
abrigados e em proteção.
A nobre Carol havia se recolhido ao seu aposento para repousar um pouco.
As emoções daquele dia tinham lhe atingido profundamente, não conseguia parar de
lembrar as palavras do médico que lhe era um estranho, mas que pareciam sair
meigamente de alguém que lhe era muito especial, o seu companheiro Ricardo. Sentia,
em seu íntimo, que ele ambicionava poder dizer-lhe algo mais, mas por algum outro
mistério, não o tinha feito.
No seu peito, disparava-lhe o coração, em pensar que de alguma forma, ele estivera tão
próximo dela naquele dia,
A refeição tinha sido levada a Gabriel e, como este não tinha forças para alimentar-se
sozinho, um servo gentilmente o auxiliou. Com facilidade ingeriu quatro pratos de caldo
reconfortante e depois adormeceu.
Lorde Arthur permanecera ao lado da esposa Sara, aguardando ansioso que ela
despertasse. Havia aproveitado para refletir em tudo o que tinha ocorrido naquele dia.
Sentia-se inexplicavelmente abençoado por um Pai que Protege!
O nobre Arthur, também não conseguia esquecer-se das amenas palavras de Ricardo.
Podia ainda sentir a sua mão quente em seu ombro, amparando-o carinhosamente como
tinha costume de fazê-lo quando o confortava.
Lembrou-se do auxilio que lhe dera para que se levantasse e do sorriso extremamente
cândido e iluminado. Estava consciente que o corpo que ali estava era do jovem médico
que trouxera da corte, mas a presença que sentira com certeza era a de seu grande
amigo Ricardo! Não tinha qualquer duvida de que este ali estivera para auxiliar Sara e seu
filho, e depois reconfortá-lo!
Olhou carinhosamente para Sara e sentia-a tranqüila, apesar de dormir há longo tempo.
Não se sentia preocupado, o bom amigo Ricardo havia lhe garantido que Sara ficaria boa
e confiava plenamente nisto.
Tardiamente naquela noite, sempre vigilante ao lado do leito de sua esposa, Lorde Arthur
percebeu que Sara gemendo entreabriu os olhos, e num gesto impulsivo levou a sua mão
ao ventre, murmurando:
- Sinto dor!
O nobre, impedindo-lhe que tocasse no ferimento, segurou-lhe rapidamente a mão
carinhosamente, explicando-lhe:
-Cortaram teu ventre, por isto sentes dor querida.
Sara. ainda extremamente fraca e abatida, não conseguia compreender o que o marido
Arthur lhe dizia, e Arthur percebendo isto disse-lhe:
-Estás muito fraca e ainda sonolenta, conversaremos melhor depois.
Pedindo a uma serva que estava próximo á porta que trouxesse a refeição, retornou para
próximo do leito. Acariciou os seus cabelos e emocionado falou:
-Que bom que ainda estás comigo... Não sei como seria a minha vida sem ter-te ao meu
lado!
Sara novamente colocou a mão no ventre e balbuciou apreensiva:
-Meu filho!
Lorde percebendo-lhe a aflição novamente pegou-lhe a mão, dizendo ternamente:
-Nasceu antes do tempo, mas está bem...É um menino!
Sara sentindo-se extremamente cansada cerrou os olhos. Prontamente uma serva trouxelhe o caldo, mas Sara, só conseguiu alimentar-se um pouco e dormiu novamente.
Lorde Arthur apresentava a fisionomia cansada naquela magnífica manhã quente.
Permanecera acordado em vigília, temia que Sara precisasse de alguma coisa e estaria
pronto a auxiliá-la. A esposa no entanto, dormira sono profundo e sereno. Por vezes, tinha
evitado que levasse a mão intuitivamente ao ferimento, sobre o qual o médico tinha
colocado uma faixa branca. Preocupado com seus filhos, rumou aos seus aposentos.
"Deveriam estar sentindo falta da mãe " pensava preocupado.
Percebeu surpreendido que o sol já ia alto e que seus filhos não mais estavam nos
aposentos , já tinham descido para o salão de refeições.
Lá encontrou-os, e vendo-os acompanhados da nobre Carol, tranqüilizou-se.
A menina Brigith sorriu ao vê-lo e Arthur afetuosamente abraçou a pequenina filha, dandolhe um beijo carinhoso. O nobre também beijou a menina Joane, que era mais sossegada,
e o menino Ricardo que começava a aprender a caminhar. Cumprimentou Carol,que lhe
sorriu afavelmente, indagando-lhe sobre o estado de saúde de Sara.
Lorde Arthur, sentando-se para também se alimentar, disse-lhe que a esposa S ainda
dormia tranqüila e que parecia estar bem.
A nobre senhora olhando-lhe a fisionomia exausta , disse:
- Não dormistes com certeza.
O nobre Arthur, pensativo, respondeu-lhe carinhosamente:
-Estava demasiadamente preocupado com o bem estar de minha querida Sara... Não
consegui dormir.
O Lorde, pedindo a uma serva que levasse as crianças para o outro salão pois estas já
tinham se alimentado, prosseguiu:
-Preocupo-me com meu filho, tão pequeno e frágil. Deve estar com fome!
Ambos ficaram silenciosos e pensativos enquanto se alimentavam. Então Lorde Arthur
fitou Carol e pediu-lhe que o acompanhasse até á biblioteca, onde poderiam conversar
melhor.
Prontamente a nobre senhora se levantou e acompanhou-o até á grande sala.
Sentaram-se próximos. Lorde Arthur pegando-lhe a mão falou-lhe seriamente:
-Trouxe teu filho para um aposento.
Carol, mostrando-se imensamente surpresa, indagou-lhe:
-Libertastes Gabriel?
Lorde Arthur, ainda segurando-lhe a mão ternamente, continuou:
-Eu errei em condená-lo, é inocente na morte de Ricardo e Paulo. Pensa ele que Ricardo
ainda vive e pediu-me que o deixa-se ir vê-lo.
Carol, sentindo-se extremamente emocionada, pranteou imensa dor e Arthur, abraçando-a
forte, falou:
-Já lhe pedi perdão, mas não consigo me perdoar pelo estado miserável em que se
encontra, extremamente magro e fraco.
O nobre ,engolindo em seco, tentou controlar em si a dor da culpa que lhe surgia em
inúmeras emoções.
-Não consegui falar-lhe que Ricardo faleceu. Fugi como um covarde, temendo dar-lhe as
explicações que se faziam necessárias.
A nobre senhora interrompeu-o:
-Onde está? Irei vê-lo agora.
Lorde Arthur pediu-lhe que se preparasse para não sofrer demasiadamente, porque o seu
estado físico abalara Sara e o abalara também.
Carol prometendo-lhe que seria forte e explicando-lhe que precisava ver seu filho
imediatamente, afastou-se para ir ao aposento onde Gabriel se encontrava.
Batendo na porta, prontamente um servo a abriu e Carol observou o seu filho no leito,
extremamente emagrecido e sendo auxiliado a se alimentar.
Caminhou na direção de seu leito, pedindo aos servos que ali estavam que saíssem.
Gabriel vendo-a, instantaneamente comoveu-se.
As lágrimas desceram roliças nas faces de ambos. Carol segurou-lhe as mãos fortemente
e Gabriel, em sua fraqueza, podia sentir o calor que estas emanavam. Contendo-se,
murmurou:
-Senhora minha mãe, eu não matei o guerreiro Paulo, ele era meu amigo! Era como um
irmão!
A nobre senhora colocou-lhe a mão sobre os lábios ressecados, pedindo que silenciasse.
Após respirar ofegante para conter as lágrimas que insistiam em descer em suas faces,
beijou-lhe as mãos dizendo:
-Gabriel, tardiamente soubemos que não fostes tu... Fostes condenado estes quatro anos
injustamente. Lorde Arthur se sente extremamente culpado por isto, também eu, meu
filho, sinto enorme culpa em não ter te procurado e escutado o muito, que com certeza,
terias a contar-nos.
Gabriel tentou interrompê-la, mas Carol continuou:
-Desconheces que naquele triste dia não mataram somente o teu amigo, mas também
mataram Ricardo cruelmente! Uma flecha lhe atravessou a cabeça. Logo após o
assassino, fez questão de exibir-se defronte ao castelo com tuas vestes, teu cavalo e teu
arco.
Carol fez pequena pausa para conter o pranto convulsivo, e continuou:
-Na imensa dor que sentimos, na perplexidade daquele momento, era tu que havias
conseguido te vingar. Depois, encontraram-te com as vestes sujas e o arco ao teu lado.
Não havia duvidas, tu os havias matado!
Gabriel, serenamente deixava-se emocionar pela narrativa infeliz e imensamente dolorosa
de sua mãe Carol. A nobre senhora continuava apertando-lhe a mão.
-Fostes preso e nunca mais te vimos, ou desejamos saber de ti! A dor pela perda de um
enorme companheiro, nos foi extremamente dolorosa.Viajamos de imediato para a corte
para buscar Sara, que estava no educandário, e para tentar esquecer tudo o que havia
ocorrido aqui. Quando retornamos, ainda que nos lembrássemos de ti, não conseguíamos
compreender porque mataras Ricardo! O Lorde também não conseguia compreender
porque tiraras a vida do pai que Ricardo lhe era.
Carol interrompeu a narrativa mais uma vez, para tentar conter-se na emoção, e não
conseguindo-o abraçou o filho que também chorava muito. Ficaram assim algum tempo e
então, mais calma, continuou:
-Tem dois dias que Linia aqui chegou extremamente enferma, e em seu leito de morte,
confessou que ela planejara tudo e, com auxilio de um guerreiro, mandara matá-los para
incriminar-te e assim destruir-nos a paz e a felicidade em vingança.
Carol olhou-o suplicante:
-Deves compreender, meu filho Gabriel, que tantos males fizestes que tudo nos levava a
crer que este era outro mal que fazias... Precisas perdoar-nos!
Gabriel silencioso em pranto infeliz, nada conseguiu dizer-lhe. A profunda emoção o
impedia. Permaneceram então silenciosos, deixando que somente a emoção falasse no
coração e em suas mentes.
Lorde Arthur retornou ao aposento e encontrou Sara já acordada. O seu rosto
apresentava-se rosado e saudável e o sorriso ao vê-lo mostrava que se sentia bem.O
nobre vendo-lhe o sorriso, caminhou radiante até o seu leito e lhe deu carinhoso beijo.
Sara falou-lhe:
-Sinto-me fraca, mas me sinto bem. Sinto dores também em meu ventre, mas são
suportáveis. Meu querido,estás abatido e pareces imensamente cansado.
A voz de Sara era fraca e baixa, mas trazia a Arthur a certeza de que estava se
recuperando. Falou emocionado:
-Não te preocupes comigo, Sara, precisas melhorar rápido. Temos tanto a fazer juntos!
Sara concordou, dizendo-lhes que sentia fome. Prontamente lhe foi servida rica refeição
e, após alimentar-se com auxilio de Arthur, este falou-lhe:
-Querida, o nosso filho é muito pequeno e frágil... Não sabemos como alimentá-lo...
A jovem, percebendo a preocupação do marido, olhou-o carinhosamente e disse-lhe:
-Arthur querido, tenho leite para lhe dar... Até já vaza em meu peito...
O nobre falou-lhe entristecido:
-Sim Sara, mas ele não saberá mamar!
Sara pediu-lhe então que lhe trouxessem o bebe, o que rapidamente fizeram. Somente
então a jovem compreendeu o que o marido lhe dizia, não era um bebe robusto e forte,
mas um ser imensamente frágil.
Sara comoveu-se, sem compreender como aquela criaturinha ainda vivia. Instintivamente
colocou a mão no seu seio apertando-o e deste saiu o leite aquoso e esbranquiçado. Sara
molhou o dedo e colocou-o cuidadosamente na boca do bebe, que pareceu engolir o
pouco liquido, que em sua boca pingara .
- Arthur, é assim que o alimentarei! Incessantemente ao longo do dia, tirarei o leite do meu
peito e o darei carinhosamente para que engula.
Lorde Arthur, sentindo-se confuso com a idéia da esposa e temendo o êxito em alimentar
o filho assim, auxiliou prontamente a jovem esposa, amparando o pequenino .
O inverno chegou rigoroso na propriedade do castelo de Lorde Arthur. Ventos fortes
agrediam a vegetação em todas as direções. No imenso salão a lareira constantemente
acesa trazia o calor a todos que ali se encontravam reunidos.
Brigith e Joane brincavam alegremente com Sara, que as distraia com algumas bonecas
de pano.
Brigith, a menina astuta e sorridente de cinco anos, falava constantemente, não deixando
o ambiente ficar triste ou silencioso. Joane, ainda que lhe fosse idêntica em corpo e
semblante, era sossegada e introvertida.
Ricardo, o pequeno menino com seus três anos caminhava continuamente com o auxilio
de Carol, que aparentava fisionomia demasiadamente cansada.
Lorde Arthur, que observava pensativo a sua família, pediu-lhes licença e saindo
caminhou até o aposento do pequenino Orlando.
Aproximou-se do rapazinho de olhar esperto. Este ainda não completara dois anos de
idade, mas já caminhava com perfeição.Arthur balbuciou-lhe:
-Vem com o papai filhinho!
O menino instintivamente caminhou em sua direção, cambaleante e ameaçando cair.
Facilmente aproximou-se de seu pai e sorrindo expansivamente abraçou-o. O nobre
Arthur pegou o filhinho no colo carinhosamente, e observou-o.
Com extremo amor vislumbrava a grandiosidade e a beleza que aquele ser possuía, antes
de visualizar-lhe as deficiências e imperfeições.
O pequenino Orlando não possuía completo domínio nas expressões faciais. Apresentava
problema visual e anomalia na dicção, mas o nobre pai acarinhava-o afavelmente com
imensa ternura e admiração.
Aquele pequeno ser, que ao nascer cabia nas palmas abertas de suas duas mãos, lutara
pela vida incessantemente. Era um vencedor!
Extremamente bonito e com traços incrivelmente delicados, era seu filho mais belo, de
uma sensibilidade magnífica e de uma ternura aparente no olhar, ainda que este nada
visualizasse. O sorriso lhe era puro encantamento, ainda que a sua face por vezes se
retraísse involuntariamente.
Os sons eram-lhe as palavras, por vezes de felicidade, de prazer, ou de súplica...mas
nunca se percebia tristeza em seu olhar.Avisando á serva que levaria o menino para o
salão, Arthur se afastou levando-o em seus braços.
Sara percebendo-os entrar, falou-lhes feliz:
-Querido Arthur, fostes acordar o pequenino!
Assim Sara chamava o filho carinhosamente. Arthur colocou o menino no chão, próximo á
mãe e ás irmãs, e esta lhe chamou com imensa ternura.
-Vem pequenino na mamãe!
O pequenino Orlando caminhou firme em sua direção e Sara, feliz, abraçou-o orgulhosa,
dizendo:
-Sempre encontrarás a mamãe!
O menino sorria espontaneamente a cada conquista.
As irmãs chamavam-no para brincar e Sara o colocou sentado no chão próximo a elas.
Orlando brincava como se tudo visse!
Arthur então sentando-se próximo á esposa ali ficou observando-os feliz, era-lhe uma
família.
Gabriel caminhava de um lado para o outro incessantemente. Conseguira recuperar o
peso, mas a musculatura por vezes ainda lhe era frágil. Sentou-se no leito e pensou
naqueles dois anos, desde que saíra da masmorra. Carol havia se dedicado á sua
alimentação com imensa ternura e, passados alguns meses já conseguia dar os primeiros
passos.
Sentia-se, no entanto, incomodado com a dedicação e a proteção de todos. Isto fazia-o
sentir-se imensamente culpado com tudo o que fizera.Todos eram bons e generosos
consigo, e ele tão pouco podia fazer para retribuir-lhes a compreensão e amizade, ou
reparar a imensa dor que outrora lhes trouxera.
Certa vez, quando Lorde Arthur o procurara para saber como estava, Gabriel lhe pediu
suplicante que lhe deixasse voltar para a propriedade de Carol. Desejava voltar a
administrá-la. Prontamente Lorde Arthur, sentindo-o apto ao trabalho, concordou.
Assim, ali estava ele novamente. Administrava a propriedade com dedicação e empenho
ao lado do amigo Sílvio. Muito trabalho tinham realizado juntos naquele ano que se
passara.
Mesmo que isto tivesse trazido enorme tranqüilidade a Lorde Arthur, tendo menos
responsabilidades pelas quais zelar e também concedendo-lhes riquezas com a lavoura e
a pecuária, Gabriel sentia-se ainda imensamente deprimido.
Ambicionava ardentemente, com seus trinta e sete anos, fazer algo mais pelo nobre e por
Carol, sua doce mãe.
Freqüentemente ia até o castelo para levar as colheitas e revia a todos, saudoso.
Conhecera as suas lindas filhas e o seu filho Ricardo, conhecera também o pequenino
Orlando com seus inúmeros problemas de saúde. Admirava a dedicação e o amor de
Arthur e Sara para com aquele filho, que lhes exigia continua atenção.Sempre que via
aquele Orlando tateando ou emitindo sons confusos, sentia-se imensamente culpado!
Inexplicavelmente recordava-se momentaneamente de Anderson, imobilizado em um
leito, sorridente e escutando as estórias que lhe contava. Como fora capaz de sufocá-lo
tão friamente? Como fora capaz de tantas atrocidades?
A culpa em sua consciência parecia interminável e o arrependimento cruel martirizava-o
diariamente , agredindo-o dia após dia.
Desejava poder apagar os atos que cometera de sua mente, mas a cada dia eles ficavam
mais aparentes e mais difíceis de esquecer.
Quando Lorde Arthur o cumprimentava com extrema cordialidade, a nobre Carol o recebia
com amoroso abraço, Sara lhe resplandecia agradável e acolhedor sorriso, a culpa o
assombrava assustadoramente.
O seu sofrimento por vezes era tanto que não se achava digno de vida tão prazerosa, e
desejava ardentemente correr para aquela masmorra novamente e ali se trancar em
sofrimento, até que a morte o sucumbisse.
Aquela vida de penúria e tormento mental, somente amenizava um pouco quando
conseguia agradar ou dar orgulho a Lorde Arthur com seu trabalho.
Naquela manhã fria, Gabriel acordou mais inquieto e angustiado. A neve caíra
densamente naquela noite, cobrindo os campos e as colinas e congelando os rios. O frio
era imenso e ele agasalhou-se com uma túnica de lã de ovelha que havia costurado para
si. Encontrou Sílvio na sala, que percebeu sua intranqüilidade. Gabriel falou determinado:
-Sílvio, sinto-me imensamente mal. Irei cavalgar por ai.
O servo olhou-o incrédulo:
-Sairás com este tempo, Gabriel?
Gabriel, angustiado, respondeu-lhe:
-Preciso fazer algo, não posso mais viver assim, com este sentimento de dor em
lembranças irreparáveis. Preciso encontrar uma maneira de me redimir dos imensos
males que fiz.
Sílvio, tendo conhecimento de seu passado, silenciou. Gabriel, pegando uma grande
espada, que sempre levava consigo, afastou-se, saindo da moradia.
No estábulo que auxiliara a construir, encontrou os animais abrigados e em segurança e,
no celeiro, também os cavalos mantinham-se tranqüilos e aquecidos. Gabriel olhou para o
seu negro cavalo, mas preferiu escolher montaria mais jovem e vigorosa.Após selar um
cavalo robusto, ele montou e saiu a cavalgar pela propriedade.
A paisagem era pálida, inerte e sem vida, deixando-o ainda mais angustiado. A neve, por
vezes, dificultava o cavalgar, já em densa espessura sobre o solo.
Gabriel retornou á moradia para avisar ao seu amigo Sílvio, que iria até o castelo de
Lorde Arthur. Ele demorou três árduas e frias horas para percorrer o trajeto que
normalmente se fazia em uma hora de cavalgada tranqüila.
Finalmente, avistou as fortes muralhas, silenciosas. Aproximando-se, apeou da montaria
e, após resguardar o cavalo no celeiro, caminhou ao castelo.
Prontamente os guerreiros abriram-lhe o portal, recebendo-o:
-Senhor Lorde Gabriel Vandak, o que o traz aqui com este tempo?
Gabriel olhou-o com cordialidade e indagou:
-A duquesa Carol ainda repousa?
O guerreiro meneou a cabeça negativamente, entristecendo o semblante. Gabriel
imediatamente percebendo-o, indagou apreensivo:
-Algo aconteceu com a nobre senhora?
O servo novamente meneou a cabeça em negativa e balbuciou:
-É o pequenino Orlando.
Gabriel angustiava-se com a sua expressão entristecida e suplicou-lhe que lhe contasse o
que acontecia .
-Senhor Gabriel, ontem o pequenino Orlando estava bem e feliz. Mas esta manhã está
imensamente febril e completamente imobilizado. Todos estão em seu aposento, somente
as outras crianças estão no salão.
Gabriel, sem nada dizer-lhe, caminhou apressado até o aposento do menino. Raramente
entrava no castelo sem que um dos nobre viesse recebê-lo, mas o fazia agora,
intuitivamente e em aflição.Encontrou o aposento com a porta semi-aberta e entrou
silencioso.
Carol estava profundamente abatida em uma poltrona, de onde olhava fixamente para o
menino inerte no leito.Próximo a ele, estavam Lorde Arthur e a Duquesa Sara, muito
apreensivos. O médico do castelo examinava cautelosamente o menino, que ainda não
completara o segundo ano de vida.
Próximo á porta, Gabriel escutou-o dizendo-lhes:
-Não possui nenhum mal físico a não ser o estado febril e a imobilidade.
De onde estava, ele conseguiu observar que os olhos da criança estavam abertos, mas
imóveis. Intrigado e agindo num impulso, aproximou-se do leito para poder observá-lo
melhor e, somente então, o nobre Arthur constatou sua presença ali.
Gabriel, percebendo a perplexidade do Lorde, falou humilde:
-Perdoai-me senhor. Não desejava intrometer-me, mas avisaram-me que todos aqui
estavam, e sentindo-me aflito, desejei poder auxiliar-vos.
O nobre olhou-o agradecido, mas falou-lhe entristecido:
-Não sabemos o que tem...como podemos auxiliá-lo?
Gabriel, novamente agindo por estranho impulso, pediu ao Lorde que o deixasse observar
o pequeno Orlando. Lorde Arthur prontamente concordou. O médico então afastou-se da
pequena criança para que Gabriel pode-se se aproximar.
Gabriel cautelosamente tocou-lhe a pele da face, imensamente febril. Os olhos
mantinham-se parados numa única direção. O corpinho, impressionantemente imóvel.
Gabriel poderia tranqüilamente afirmar que aquela criança estava morta, mas a respiração
tênue e a pele quente negavam a aparência.Passou as mãos sobre os seus cegos olhos
para observar-lhes um leve piscar, mas estes mantiveram-se imóveis.
Pedindo novamente permissão ao Lorde, examinou-lhe o corpo atentamente, tal qual
inúmeras vezes vira o seu tutor Manco fazer com os enfermos.
Intuitivamente, se lembrou das ervas que ocasionavam estado convulsivo e depois febre
alta e sono profundo. Mas aquela criança não apresentava convulsão e aparentemente
não dormia.. Indagou intrigado:
-Quem passou a noite com o menino?
Prontamente um servo se apresentou e Gabriel indagou-lhe:
-Teve sono tranqüilo ou agitou-se demasiadamente no leito?
O servo, fugindo ao seu olhar, lamentou-se dizendo que não poderia responder-lhe
porque dormira.
Gabriel então indagou ao Lorde e á sua esposa:
-Que fez a noite, antes de deitar-se? Com o que brincou?
Ambos se olharam e então a duquesa Sara falou-lhe trêmula em seu nervosismo:
-Brincou com as bonecas de pano, junto com suas irmãs.
Gabriel preocupado perguntou-lhe:
-Quem fez as bonecas? Onde estão?
O nobre Arthur, desconfiado com as perguntas de Gabriel, explicou-lhe, ainda que não
compreendesse o motivo da indagação:
-Uma serva que trabalha na lida nos campos as ofertou antes que o rigoroso inverno
começasse. As crianças, ainda que tenham outros brinquedos, afeiçoaram-se muito ás
singelas bonequinhas.
Levantando-se suplicante, Gabriel disse:
-Preciso vê-las agora!
Mesmo sem ninguém compreender o que se passava na mente de Gabriel,
imediatamente uma serva afastou-se para buscar as bonequinhas de pano e. diante da
perplexidade de todos, rasgou brutalmente uma delas. Ele estava certo em sua
desconfiança, as bonecas singelas de pano haviam sido enchidas com folhagem seca.
Meticulosamente, cheirou e analisou as ervas secas que ali se encontravam e concluiu
que dentre elas, estava a erva que ocasionava a febre convulsiva! Com certeza, aquele
menino colocara a boneca de pano em sua boca e, numa coincidência incrível do destino,
de alguma forma sua salivação umedecera o pano fino, trazendo a substância
medicamentosa á sua boca. Pelo seu pequeno tamanho e pouca idade, seria suficiente
somente algumas gotas para lhe trazer a febre. Não conseguia compreender, no entanto,
porque o pequeno Orlando dormia com os olhos abertos e porque o servo durante a noite,
não lhe percebera o estado convulsivo. Gabriel olhou fixamente para ele e suplicou-lhe:
-Pela saúde do pequeno Orlando, falai-nos a verdade, estivestes neste aposento a noite
inteira?
O servo extremamente receoso, temendo as represálias do seu senhor, contou-lhes,
aflito, que só saíra do aposento porque o menino dormia tranqüilo. O Lorde indignou-se
com a irresponsabilidade do servo pedindo que ele saísse do aposento. Olhou então para
Gabriel e indagou-lhe curioso:
-O que concluístes Gabriel?
Gabriel, sentindo-se extremamente envergonhado, contou-lhes:
-Algumas destas ervas que a serva usou para encher as bonecas de pano é a erva que
eu usava propositadamente para me fazer doente...
Baixou a cabeça mostrando enorme arrependimento e continuou:
-Tinha conhecimento que seria suficiente mascar uma folha para que ela me fizesse ter
convulsões , febre e sono profundo durante alguns dias.Estou convicto de que seu filho,
brincando com a boneca, a levou à boca, a saliva umedeceu o pano fino e a substância
tóxica o atingiu. Se com apenas uma folha um adulto forte fica desacordado durante
longos dias, o seu filho com uma pequena gota, também o ficará...
Gabriel fez uma pausa e prosseguiu preocupado:
- As ervas não ocasionam mal maior em adultos, no entanto não sei se trará maior
problema a uma criança tão pequena.
Lorde Arthur, impressionado com a perspicácia em suas conclusões, perguntou-lhe:
-Como soubestes que o servo se ausentara?
Gabriel, que olhava o pequeno Orlando, respondeu:
-Porque antes da febre e sono profundo, a erva provoca estado convulsivo. Se olharem
cuidadosamente perceberão que existe baba em sua almofada.
O nobre estava perplexo com o sofrimento de seu filho aquela noite, ali tão sozinho.
Voltou a indagar:
-Porque dorme em febre alta com os olhos abertos?
O médico que a tudo escutara silencioso prontamente respondeu:
-Senhor Lorde Arthur, ele não está dormindo, está em estado de choque.
A duquesa Sara que também se mantivera silenciosa, angustiada exclamou:
-O que faremos!
Gabriel, pausadamente, contou-lhes:
-O velho Manco costumava fazer um chá com uma erva, que limpava a barriga de quem
se envenenava. Mas não sei onde poderei encontrá-la com a neve que está lá fora.Seria
bom esfriar-lhe a pele, tal qual Ricardo fazia comigo,e dar muito liquido. Iirei ver se
encontro a erva.
Dizendo isto, saiu do aposento, enquanto o médico se prontificava a colocar panos frios
na fronte do pequeno e lhe dar cautelosamente liquido a beber. A duquesa Sara
aproximou-se de Carol e sentando-se ao seu lado oraram fervorosamente e Arthur
permaneceu próximo ao seu querido filho.Gabriel afastou-se do castelo, rumo às colinas
aonde costumava encontrar as ervas para Manco.
Difícil seria a sua missão. A vegetação já era muito pouca em algumas partes em função
do rigoroso inverno.Já era tarde quando descobriu, próximo a uma arvore frondosa,
algumas ervas que ainda resistiam. Rapidamente as pegou e retornou ao castelo com
muita dificuldade pois recomeçava a nevar.
Quando lá chegou, encontrou o pequeno Orlando no mesmo estado de choque. A febre
não tinha cedido apesar das bandagens frias.
Dizendo ao Lorde que conseguira as ervas, caminhou até á cozinha do castelo, e usando
somente algumas folhinhas fez o chá. Gabriel aproximou-se do leito com o caneco e
Lorde Arthur, sentindo-se terrivelmente ameaçado pelas lembranças, aproximou-se de
Gabriel, impedindo-o!
Gabriel compreendendo-lhe o receio e sentindo-se mal com o seu temor de que
prejudicasse aquela criancinha, balbuciou:
-Tomarei um pouco!
Dizendo isto Gabriel tomou metade do chá que estava no caneco, e não tardou a que
tivesse náuseas e vômitos. Convulsivamente expeliu tudo o que estava em seu estômago,
limpando-o .Quando melhorou, banhou a face no tonel e voltou ao leito, pedindo
permissão ao Lorde para dar o chá também a seu filho.
O nobre, sentindo-se mal e envergonhado pela desconfiança, prontamente autorizou-o .
Gabriel então, cuidadosamente foi vertendo pequena quantidade daquele chá na boca do
menino Orlando, que instintivamente engolia. Não tardou para que ele se mexesse e,
contraindo as feições, expelisse o que fazia imenso mal em seu estômago. Quando o
pequenino terminou de sentir as náuseas e vômitos, sempre amparado por Gabriel,
deitou-se com o auxilio deste e sorriu sereno.
O menino Orlando estava recuperado! Gabriel caminhou então até á sua mãe Carol e,
dando-lhe um beijo na mão, saiu do aposento.
Descendo a longa escadaria, sentia-se mal com a enorme desconfiança de Lorde Arthur.
Sabia, no entanto, que os seus receios tinham justificativa. Nunca seria visto como uma
pessoa boa, por mais que se empenhasse nisto. "Tudo por culpa sua, e só sua." Ainda
não acabara de descer a escada, quando o nobre Arthur alcançou-o e, colocando-lhe a
mão no ombro, agradeceu-lhe humildemente:
-Imensamente agradecidos estamos, Lorde Gabriel Vandak, por teres auxiliado nosso
filho Orlando.
Gabriel olhou-o entristecido e murmurou.
-Nada tens a me agradecer senhor lorde. Tanto ainda tenho a pagar-te.
Ambos se olharam piedosamente, por suas vidas tão opostas mas sempre tão
entrelaçadas. Gabriel, ainda sentindo-se imensamente angustiado com suas culpas,
suplicou-lhe:
-Terás um tempo para ouvir-me? Sinto enorme necessidade de falar-lhe, senhor lorde
Arthur.
Lorde Arthur levou-o para a biblioteca. Ali, comodamente sentado, Gabriel fez uma longa
narrativa da eterna infelicidade que sentia, e da enorme culpa! Explicou-lhe da
necessidade extrema que sentia em poder redimir-se. Porém não sabia como. O nobre,
sentindo enorme piedade por seu aparente e sincero arrependimento, pediu-lhe:
-Cuidai do pequeno Orlando!
Gabriel ainda envolvido pela emoção da longa narrativa indagou-lhe:
-Que me dizes senhor?
Lorde Arthur olhou-o amigavelmente, dizendo:
-Se sentes necessidade extrema de redenção, cuidai do pequeno Orlando. Fazei dele um
bom homem e um guerreiro!
Gabriel não conseguia compreender o que Lorde Arthur lhe pedia. "Porque cuidar de um
menino tão afável, lhe seria a possibilidade de redimir-se?". O nobre, percebendo-lhe a
duvida, falou-lhe serenamente:
-Amo o pequeno Orlando, mas estou ciente que a vida lhe será extremamente penosa
pois, como sabes, é cego, é mudo e possui problemas de coordenação motora. Dou-te a
missão, Lorde Gabriel Vandak, de lhe ensinares a viver com as deficiências e limitações
que possui. Ensinai-o a caminhar ligeiro, a se alimentar, a se defender e a atacar se isto
se fizer necessário. Ensinai-o a se comunicar, ainda que não possua fala. Doutrinai-o
para que saiba escrever, ainda que não consiga ler. Fazei do pequeno Orlando um grande
homem e um bom guerreiro!
Gabriel perplexo deixou-se balbuciar:
-Isto é impossível!
Lorde Arthur colocou-lhe a mão no ombro amigavelmente, dizendo-lhe:
-Também é impossível que apagues as lembranças dos males que fizestes.
O nobre Arthur tinha feito a proposta a Gabriel para que ele compreendesse que inúmeras
situações na vida têm que ser aceitas como são, em resignação."Os inúmeros males que
tinha feito não poderiam ser apagados assim como as deficiências físicas de seu filho não
poderiam ser alteradas..." Lorde Arthur saia da biblioteca quando Gabriel interceptou-o
aflito:
-Senhor Lorde Arthur!
Arthur voltou-se prontamente e Gabriel falou-lhe convicto:
-Eu aceito a sua proposta, Senhor lorde Arthur!
O nobre não podia crer no que ouvia, Gabriel falou-lhe determinado:
-Farei do seu filho, o pequeno Orlando, um grande homem e um bom guerreiro. Ficarei ao
seu lado dia e noite, e o doutrinarei no que sei. O que não souber aprenderei junto com
ele.
O Lorde, perplexo com a sua determinação, indagou-lhe:
-Desejas alterar o desígnios do Bom Deus?
Gabriel humildemente murmurou:
-Não, senhor lorde Arthur,desejo imensamente ensinar o seu filho a compreender e se
adaptar aos desígnios do Bom Deus!
Ainda que o nobre não estivesse convicto do êxito na determinação de Gabriel em ensinar
seu filho do jeito que lhe impusera, concordou que ele se estabelecesse no castelo como
mentor do pequeno Orlando. "Nada tenho a perder com o seu empenho. Meu filho terá
uma companhia diária e evitaremos outros incidentes como o que ocorreu hoje! "concluíra
lorde Arthur.
Logo Gabriel montou e saiu em galope ligeiro, rumo á propriedade de Carol. Estava
disposto a assumir com empenho a nova tarefa. Rumaria definitivamente para o castelo
no dia seguinte. Começara a escurecer e a nevasca fazia o trajeto ser imensamente frio,
árduo e penoso.
Finalmente chegou á moradia, ondel Sílvio já o aguardava impaciente. Aquecendo-se na
lareira, contou-lhe o que havia acontecido com o pequeno Orlando no castelo. Feliz faloulhe da missão que Lorde Arthur lhe concedera "Seria o mentor de seu filho!"
Sílvio perplexo, também achando-lhe a missão impossível, indagou-lhe entristecido:
-Como está a duquesa Sara?
Gabriel conhecia-lhe o profundo sentimento que possuía em relação á nobre, mas como
era um jovem resignado se mantivera longe do castelo para não aflorar ou demonstrar os
seus sentimentos. Havia se unido a uma jovem que engravidara e já tinha duas crianças.
Gabriel, para tirar-lhe qualquer esperança e desiludi-lo em seu sentimento, murmurou:
-Amando cada vez mais Lorde Arthur Corleanos.
Ambos silenciaram e Gabriel, exausto, foi repousar pois, desejava sair na manhã
seguinte bem cedo.
Foram muitos anos de glória, prosperidade e paz nas propriedades dos Corleanos.
Gabriel, um pouco grisalho, aparentemente parecia ter-se se esquecido dos inúmeros
males que tinha feito em sua vida. Se empenhando contínua e incessantemente em
ensinar o menino Orlando a viver com suas limitações, pouco tempo lhe sobrava para
lembranças penosas. Completara seu qüinquagésimo aniversario e era ainda um
cavalheiro robusto e forte, pronto a defender o seu pupilo.
Naqueles treze anos também não havia se interessado por nenhuma jovem ou senhora.
O único envolvimento emocional de sua vida, havia sido a linda Brigith.Se entregara ao
celibato sem lhe ser tarefa árdua. Vivera aqueles longos anos para se regenerar de toda a
dor que havia provocado.
Sua mãe Carol estava extremamente envelhecida, não mais apresentava o vigor na pele
ou nas feições, ainda que a idade em seus sessenta e seis anos não lhe fosse
demasiada. Haviam se passado vinte anos desde a morte de seu companheiro Ricardo
e, ainda que houvesse se resignado á sua ausência, o sofrimento ainda fluía em inúmeras
lágrimas de saudades .Tinha dificuldade de locomover-se em função de um processo
reumático crônico, que lhe feria ao se mover, talvez conseqüência de ter sido jogada no
rio frio para se afogar quando ainda estava de resguardo.
Gabriel, sempre que o menino Orlando ia repousar, aproximava-se dela para lhe confortar
no sofrimento físico, dar-lhe assistência e muito amor.
Lorde Arthur, com seus quarenta anos, freqüentemente viajava a negócios para a corte.
Haviam rumores de uma grande guerra, e ele estava extremamente preocupado com a
sua grande família.
A duquesa Sara, uma senhora muito jovem com seus trinta e quatro anos e incrivelmente
bela, mantivera-se dedicada ao esposo, aos filhos e à administração do castelo, que
ficava sob sua responsabilidade na ausência de lorde Arthur. Não existia um só servo que
não lhe tivesse simpatia. Era amável e acolhedora com todos. Sempre sorridente e feliz,
ensinara ás lindas filhas a serem nobres, educadas e prestativas. Carol a auxiliara na
tarefa de doutriná-las.
As jovens estavam com dezoito anos e, ainda que fossem idênticas em corpo e
semblante e tivessem tido igual educação, Brigith era doce e terna tal qual a mãe Sara,
mas Joane era retraída, séria e agressiva. Inúmeras vezes o pai a colocava de castigo por
desobedecer á mãe e á avó Carol. Em conformidade com as leis sociais, tinham passado
da idade de assumirem compromisso matrimonial, mas lorde Arthur e a duquesa Sara
concordavam plenamente que suas filhas haveriam de escolher seus maridos por afeição
e não por imposição, como eram os costumes. Para isto, as levavam freqüentemente a
todas as festas e bailes aos quais eram convidados. Também faziam viagens breves á
corte, para escolherem o lindo vestuário e se atualizarem nos costumes de
comportamento.
Quando viajavam, o jovem Ricardo com dezesseis anos os acompanhava. Era um jovem
alto e forte, tal qual o pai Arthur, mas os olhos eram vis e cruéis.
Gabriel acompanhara de perto o seu crescimento, por vezes analisando-o nas inúmeras
perversidade que sempre fazia. Era incorreto com os servos e se mostrava superior.
Certas vezes agredia ou ofendia o menino Orlando, mas Gabriel sempre estava por perto
para protegê-lo ou ensiná-lo a se proteger.
Gabriel concluíra que Lorde Arthur não tivera sorte com seu herdeiro e temia pela
continuidade da vida harmônica no castelo. Não fosse pela jovem Brigith e pelo jovem
Orlando, a harmonia já teria sido quebrada á muito.
Por vezes Gabriel refletia, "Como alguns filhos de pais tão bondosos e íntegros, podiam
ser tão frios e tão cruéis!".
Gabriel olhou para o jovem Orlando, que cavalgava próximo a si. Iriam até o lago. O
jovem Orlando estava com quinze anos e Lorde Gabriel sentia-se orgulhoso. “Era-lhe um
filho!"
A tarefa fora árdua e difícil,porém Gabriel conseguira parcialmente tudo o que Lorde
Arthur havia lhe imposto.
Ainda que Orlando fosse cego, conseguia caminhar por todo o castelo, sem auxilio ou
varetas. Conhecia cada móvel, cada muralha, e cada aposento. Conseguia entrar e sair
destes como se a visão lhe fosse perfeita. Também aprendera a caminhar nas
proximidades do castelo. Gabriel levara-o constantemente a conhecer o celeiro, os
estábulos, os abrigos dos servos, os limites dos pastos e dos rios.
Orlando conseguia descrever com clareza a paisagem que o rodeava a cada posição que
estivesse, ainda que os vocábulos, por vezes, fossem de difícil compreensão. No salão de
refeições, sentava-se e servia-se completamente sozinho, e comia com extrema
elegância e etiqueta.
Gabriel ensinara-o a identificar os muitos sons existentes e Orlando, com uma audição
extremamente aguçada, podia sentir quando alguém se aproximava e como se
aproximava, se era homem, mulher ou criança. Podia calcular com exatidão a posição
onde estava e como estava. Inúmeros exercícios diários se fizeram necessários para
tantas conquistas.
Por vezes Gabriel entrava e saia do aposento incessantemente,e de inúmeras maneiras,
para que sentisse as diferenças nos sons do caminhar. Algumas vezes entrava calmo,
outras nervoso, outras preocupado e em outras disposto a atacá-lo. Ensinara Orlando a
lutar e, principalmente, a se defender.
Sempre lhe dizia “Não tens visão, mas tens a audição, o tato, os reflexos, e uma
inteligência fantástica, usai-os!" Poderia um malfeitor se aproximar por trás de Orlando
que este em enorme agilidade, se defendia.
Não poderia ensiná-lo a usar armas que necessitassem de mira, mas ensinou-o a se
proteger de espadas ou lanças.Orlando, em seu crescimento, lera inúmeras obras, de
arte, ciência e teologia, mecanicamente também aprendeu a escrever ainda que não visse
as letras. Ele conseguiu através dos perseverantes e incansáveis olhos de Gabriel.
Diariamente o mentor era sua visão e, em suas pacientes narrações de tudo o que via ou
lia, Orlando ia memorizando gradativamente.
Gabriel estava consciente,no entanto, de que não havia concluído a missão em completo
êxito. Tornara o pequeno Orlando um bom homem e um forte cavalheiro, mas esta
primorosa educação estava restrita aos limites próximos ao castelo. Longe dali, seria
extremamente vulnerável, e isto o preocupava.
Com treinamento árduo ensinara ao jovem Orlando a formar vocábulos. Ainda que fosse
mudo, com extrema dificuldade ensinara-o a emitir sons repetidas vezes até que se
assemelhassem ás palavras básicas. Não podia participar de um diálogo, mas conseguia
compreender o que lhe diziam em plenitude, e em alguns vocábulos, expressava-se um
pouco.
Chegando próximo ao lago, Orlando apeou da montaria com agilidade. Gabriel também o
fez. O jovem olhando para o lago como se lhe visse a beleza e a grandiosidade disse:
-Calor!
A voz saia contorcida,mas era compreensível.
-Sim Orlando está fazendo muito calor. Estamos em frente ao grande lago... Está muito
azul... Ao fundo temos lindas colinas verdejantes e um céu imensamente claro... No pasto
inúmeras folhagens floridas...
Gabriel sempre lhe narrava tudo o que via em detalhes, para que ficasse em sua
memória. O jovem novamente balbuciou:
-irmão... Mau!
Gabriel não poderia concordar ainda que o jovem Orlando estivesse certo . Disse-lhe
carinhosamente.
-Não Orlando, sois diferentes! Ninguém é igual a ninguém. Ricardo é bonito, forte e
elegante, e é teu irmão, deves respeitá-lo e amá-lo.
Orlando meneou a cabeça afirmativamente, concordando humilde.
-Papai... Vem?
Gabriel colocou-lhe a mão no ombro carinhosamente e falou-lhe:
-Sim Orlando, teu pai Lorde Arthur deverá chegar ao castelo hoje ou amanhã. Sentes
saudades?
O jovem novamente meneou afirmativamente, balbuciando. Ainda que o seu falar
parecesse infantil, o jovem Orlando havia se tornado mais forte e viril que o irmão
Ricardo, que era mais velho. Quando estavam próximos, Orlando parecia o irmão mais
vigoroso e bonito. Não fossem as deficiências físicas de Orlando, com certeza ele faria
Ricardo compreender a respeitar ao próximo. Entretanto, em função de suas limitações,
ele submisso e humilde.
Retornando ao castelo e entrando no salão, o jovem balbuciou feliz:
-Pai!
Lorde Arthur, que estava sentado numa poltrona falando com seus outros filhos,
surpreendido com sua astúcia, apressou-se a se levantar e lhe dar um forte abraço.
-Como sabias Orlando que eu já chegara?
Orlando, dando-lhe respeitoso beijo na face, balbuciou:
-Voz!
Lorde Arthur emocionava-se continuamente com o empenho do filho em melhorar-se e
aprender.
-Vem meu querido Orlando, vamos sentar-nos com os outros.
Tranqüilamente, Orlando caminhou para se sentar em uma das poltronas que estava
vazia, enquanto Lorde Arthur cumprimentava Gabriel abraçando-o agradecido, pelo muito
que fizera por seu filho. Convidou-o a se sentar com eles.
A tarde foi agradável nas inúmeras novidades que Lorde Arthur trazia-lhes da corte.
Também tinha lhes trazido presentes, e deu-os um a um.
Para as jovens Brigith e Joane lindos vestidos. Para o jovem Ricardo, alguns ricos e
volumosos livros de estória. Para Carol, um requintado xale de lã. Para a querida Sara,
uma valiosa jóia que lhe realçaria a beleza. Para Gabriel, o Lorde, orgulhoso, ofereceu-lhe
uma bonita espada...
Orlando aguardava humildemente o seu presente e Lorde Arthur, aproximando-se dele,
colocou-lhe um pequeno embrulho nas mãos carinhosamente, dizendo-lhe:
-Abrirás com cautela, trouxe-te uma linda adaga que deverás usar sempre em tua cintura.
No entanto, somente usarás este punhal se necessário for para salvar-te a vida. Prometes
isto a teu pai?
-Orlando levantou-se profundamente emocionado e- abraçando-o em agradecimento
-balbuciou convicto:
-Juro!
Quem olhasse para o jovem Orlando não lhe identificaria facilmente o problema visual.
Seus olhos eram perfeitos e incrivelmente azuis. Aprendera a controlar as expressões
faciais involuntárias, e só apresentava este problema motor quando estava
demasiadamente nervoso, o que raramente acontecia.
Gabriel observou que o jovem Ricardo se levantara enciumado pela extrema afeição que
o seu pai lorde Arthur demonstrava a seu irmão Orlando.
Por sua fragilidade, desde pequeno, Orlando fora o centro das atenções, da admiração e
orgulho. Quando Ricardo aprendeu a cavalgar foi normal aos olhos de todos, mas quando
Orlando aprendeu a cavalgar foi motivo de euforia e imensa alegria no castelo. E assim
em todas as conquistas diárias.
Lorde Arthur também percebeu a contrariedade no semblante do filho Ricardo e
aproximou-se, indagando-lhe carinhosamente:
-O que acontece contigo, meu querido filho Ricardo?
O jovem enfurecido respondeu-lhe agressivo:
-O senhor meu pai só vê esse defeituoso na sua frente!
Lorde Arthur descontrolou-se, dando-lhe violenta bofetada. O jovem Ricardo, irado, levou
a mão ao rosto, enquanto Lorde o advertia.
-Nunca mais chames teu irmão Orlando desta maneira, ouvistes bem?
O jovem Ricardo provocou-o em não lhe dar resposta e, ainda enfurecido, falou sem
temor:
- Tudo em meu irmão é gloria!
Lorde Arthur, sem hesitação, pegou-lhe pelo braço, e levou-o apressadamente para o seu
aposento. Estando então a sós com o filho Ricardo, tentou meigamente fazê-lo
compreender as limitações e as dificuldades na vida de seu irmão, e depois aconselhou-o:
-Deverias, meu filho Ricardo, cuidar e te preocupares com teu irmão Orlando e não lhe
teres raiva. Se tu caminhas com facilidade, com certeza a caminhada dele é muito mais
difícil!
Após dar uma forte abraço em seu filho Ricardo e pedir-lhe que ficasse em seu aposento,
para refletir um pouco em tudo, lorde Arthur retornou ao salão onde os outros familiares
ainda se encontravam.
O semblante apresentava fadiga pela viagem e tristeza aparente pelo incidente em tarde
tão prazerosa. Sara caminhou até ele, amparando-o e reconfortando-o.
-Precisas repousar um pouco, meu querido Arthur.
O Lorde concordou prontamente e pedindo licença a Gabriel, a Carol e aos filhos, ambos
afastaram-se e subiram para o seu aposento.
O jovem Orlando caminhou até o mentor Gabriel e balbuciou:
-Triste!
Gabriel, compreendendo o que queria dizer, explicou-lhe que seu pai estava muito
cansado da viagem e indagou-lhe:
-Desejas estudar um pouco na biblioteca, antes da ceia?
O jovem prontamente meneou afirmativamente, levando carinhosamente a adaga
consigo. Gabriel deu um beijo carinhoso em Carol, que lhe sorriu e saiu acompanhando
Orlando.
O jovem Orlando desejava melhorar a caligrafia e Gabriel lhe era o olhar critico. Por vezes
censurava-o:
-O “a” tem que ser mais redondo... E pegando carinhosamente em sua mão auxiliava-o a
corrigir-se. E assim Orlando ia se empenhando em melhorar-se.
Quando a noite desceu na propriedade, a pedido de Orlando, ali continuaram estudando.
A porta se abriu e Lorde Arthur entrou com o semblante mais sereno. Sentiu-se
entusiasmado ao perceber que o filho Orlando, sentado numa escrivaninha, estava
profundamente concentrado nos manuscritos. Aproximando-se interrompeu-o:
- Posso ver teus trabalhos, Orlando?
O jovem mostrando-se aflito, tampou os pergaminhos que estavam sobre a mesa.
Compreendendo-lhe a atitude, Gabriel explicou que o seu filho desejava primeiramente
melhorar-se na escrita para depois apresentar-lhe as suas conquistas no aprendizado. O
nobre aceitando e, admirando-se do empenho e do perfeccionismo do seu filho afastou-se
após fazer-lhe um afago na cabeça.
Enquanto o jovem Orlando pegava um pergaminho novo, sentindo-lhe as margens com o
tato e escrevendo vagarosamente, Lorde Arthur e o mentor Gabriel conversaram.
-Haverá uma grande guerra Gabriel.
Gabriel fez-lhe uma expressão de receio, temendo que o seu filho escutasse. Arthur
compreendendo, falou-lhe baixo como se estivesse confidenciando algo.
-Temo pelo bem estar de minha família e de meus servos, temo pelas minhas
propriedades.Temo principalmente por meu filho Orlando.
Gabriel, percebendo sua extrema preocupação tentou tranqüilizá-lo.
-Não temas, Lorde Arthur, Orlando sabe defender-se.
Arthur, que freqüentemente se via obrigado a estar distante do castelo e do aprendizado
de seu filho, ainda que conhecesse algumas de suas conquistas, não se sentia muito
convicto de que realmente este saberia defender-se sozinho.
-Peço-te Gabriel, que escolhas e doutrines uma sombra para meu filho.
Gabriel compreendeu imediatamente o que o nobre lhe pedia. Lembrou-se saudoso da
"sombra" que outrora Lorde Arthur havia lhe dado. No início lhe fora incomodo mas, com o
tempo, havia se tornado o amigo e o companheiro fiel. O nobre desejava fazer o mesmo
pelo seu filho.
-Deverá o servo ser mais novo que meu filho Orlando, porém deve ser forte, astuto e
inteligente . E acima de tudo, que seja humilde e íntegro.
-Compreendo o que me pedes senhor lorde. Atenderei o seu pedido e começarei a
procurar o servo ideal para ser o protetor de seu filho pela manhã bem cedo!
O nobre entristeceu, murmurando:
-Queria poder dar a visão ao meu filho, e uma boa dicção, mas só posso conseguir-lhe
isto por empréstimo, com um fiel companheiro.
Dizendo isto, ambos perceberam que Orlando se aproximava com o pergaminho em suas
mãos. Parecendo emocionado, entregou-o a seu pai e sentou-se próximo a eles. Lorde
Arthur abriu o pergaminho e percebeu um longo texto, em linhas por vezes incertas, e
letras por vezes irregulares em tamanho e forma, mas legível. Leu emocionado:
"Querido Pai Arthur,
Desejo tanto falar consigo, mas as palavras não saem na minha voz, ainda que as tenha
em meus pensamentos. Gostaria tanto de poder dizer-lhe o quanto amo nossa família e o
quanto sou agradecido ao mentor Gabriel. Não posso ver e nem falar, mas ele ensinou-se
a pensar e ensinou-me o impossível, a escrever! Não se aborreça com meu irmão! Queria
poder ajudá-lo meu pai. Meu carinho, minha admiração e meu respeito.
Seu filho
Orlando Corleanos II "
O nobre não conseguiu conter a enorme emoção e, sensibilizado, verteu intenso pranto
de alegria.
Olhou para o filho com profundo orgulho e para Gabriel com indescritível admiração.
Somente naquele instante compreendia o quanto o seu filho era inteligente e como
Gabriel Vandak havia realmente realizado o impossível.
Não eram somente meras conquistas... Eram enormes conquistas!
Ajoelhou-se próximo aos pés do filho, e falou-lhe em extrema emoção:
-Perdoai-me meu filho. Tenho te tratado como um menino e hoje me mostras o homem
que és.Perdoai-me, porque este teu pai, que imensamente te ama, não percebeu o que
se ocultava sob as tuas aparente incapacidade , Perdoai-me, porque eu errei em julgar-te
pela capacidade exteriorizada e não pela nobreza silenciosa que existe em teu interior. És
grande, meu filho! És forte! És um nobre!
O jovem Orlando auxiliou-o a se levantar e lhe deu um forte abraço. Lorde Arthur,
extremamente emocionado falou-lhe ainda:
-Falai meu filho... O importante não é saber se expressar com a boca, mas sempre com o
coração! A pena te será a voz e a tinta o teu mensageiro. Eu te prometo meu filho, que
sempre estarei disposto a ouvir-te em palavras silenciosas, mas com certeza eternas.
Novamente ambos se abraçaram e, então,o nobre olhou comovido para o seu mentor e
agradeceu-lhe:
-Minha eterna gratidão, Lorde Gabriel Vandak.
Gabriel, também extremamente sensibilizado , prontamente pediu-lhes licença,
desejando deixar pai e filho a sós naquele instante. Justificou-se humildemente:
-Deste-me outra missão, senhor Lorde Arthur. Irei cumpri-lá.
Dizendo isto, Gabriel afastou-se rapidamente, pois as lágrimas também já afloravam em
seus olhos. Rumou para o aposento e da janela contemplou a noite escura, coroada por
uma esplendorosa lua e cintilante em maravilhosas estrelas e agradecendo ao Criador,
pranteou a gloriosa oportunidade da vida!
“A viagem fora breve. Imediatamente, ali estávamos, em meio àquelas muralhas de
pedra, que tantas estórias guardavam. Meu mentor Ricardo, caminhava pensativo,
parecia sentir-se saudoso do tempo em que ali vivera.
Sentindo o enorme silêncio que no castelo reinava, presumi que todos os irmãos em
corpo físico repousavam.
Entretanto, eventualmente eu podia ver, que alguns irmãos espirituais, profundamente
agitados e confusos, também estavam naquele castelo. Sentia-me, no entanto,
confortado, por saber que eles não poderiam perceber a nossa presença, Na infinita
proteção de Deus, ignoravam-nos.
Ricardo subindo a longa escadaria, que tão bem conhecia, falou-me harmoniosamente:
-Lucas, trouxe-te comigo nesta missão, porque nela aprenderás o quanto o nosso Pai é
misericordioso para com todos os seus filhos, concedendo-lhes amorosamente a ampla
liberdade para que possam progredir.
Tinha me contado, o meu mentor Ricardo, da sua humilde vida como um médico naquele
castelo, e eu como o seu aprendiz, conhecia detalhadamente a vida de todos os irmãos
que naquele plano físico tinham a oportunidade de se regenerarem, ainda que nunca os
tivesse visto assim tão próximos.
Eu era o aprendiz curioso, sempre atento a tudo e a todas as coisas, e escutava
atentamente as lições de meu mentor. Ele prosseguiu:
-Conhecerás Lorde Gabriel Vandak, que dorme neste aposento com o jovem nobre
Orlando.
Entramos silenciosos no espaçoso aposento e nos aproximamos do leito de Gabriel. O
mentor Ricardo narrou-me então serenamente:
-Em oportunidade reencarnatória regressa, Gabriel viveu neste mesmo plano físico. Era
um senhor, dono de muitas terras e inúmeros escravos, senhor de enorme riqueza.
Viveu, no entanto, sendo um frívolo. Aniquilava valores sociais e morais na única ânsia de
se sentir e se mostrar superior.Observai, Lucas, que na atual existência veio como um
mero servo, desprovido de seus bens e destituído de seus títulos. Como servo,
amorosamente tutelado por irmão bondoso, viabilizava-lhe oportunidade ao seu progresso
em vida humilde e resignada, sendo útil a todos os seus irmãos. No entanto, a contínua
ânsia de vingança, por vezes injustificável nesta vida física, em verdade, era-lhe o
inconformismo á vida modesta á qual não estava acostumado, mas á qual deveria
resignar-se. A agressividade e a violência da vida regressa lhe afloraram nesta vida em
atitudes frias, cruéis e extremamente individualistas. Em vida passada, a doce Brigith lhe
fora a esposa dedicada e submissa, mas cruelmente maltratada por seu esposo, que a
agredia, desrespeitava, e violava-lhe em todas as vontades, trancando-a em seu claustro.
Na existência atual, a paixão violenta que sentia por ela era-lhe provação. Deveria, por
amor, libertá-la, ampará-la e reparar todo o mal que lhe havia feito na outra existência. Os
impedimentos á união de ambos neste plano físico eram grandiosos, porém, em amor,
teria êxito e saldaria sua enorme divida para com ela. No entanto, ainda que estivesse
ciente do certo e do errado,tivesse sido arduamente doutrinado por seu tutor Manco e,
continuamente, em momentos oportunos, tivesse ainda o aconselhamento á atitude
correta, optou, como em vida regressa, pela violência. E com seu extremo egoísmo,
ignorou-lhe os sentimentos na perda de seus familiares. Instintivamente nesta existência,
novamente a maltratou, a agrediu, a desrespeitou e lhe violou todas as vontades,
enclausurou-a novamente!
O mentor Ricardo silenciou olhando Gabriel, que dormia sereno e prosseguiu a narrativa:
- Este, que me foi o filho rebelde numa outra existência, tirando-me a vida para possuir
em imediato as minhas propriedades.O meu assassinato ficou oculto e Gabriel não foi
julgado e nem condenado pela justiça dos homens. Mas nesta existência, foi condenado
injustamente pela minha morte física, e sofreu demasiadamente, sentindo minha
ausência.
Ricardo, fraternalmente, abaixou-se para acariciá-lo, e Gabriel revirou-se no leito. Talvez
sentindo-se constrangido, sentindo a nossa presença.
-Observa, Lucas, que aqui vivi, longe de qualquer parentesco com Gabriel, mas sempre
estive presente, em todos os momentos decisivos de sua vida, como o pai que um dia fui,
para ampará-lo, orientá-lo e protegê-lo. Gabriel sentia a ternura e o imenso afeto que lhe
tinha, mas sentindo-se inexplicavelmente incomodado e culpado pelo crime que
cometera, tirando-me a vida outrora, evitava-me e desprezava-me, contestando sempre a
minha dedicação e a constante compreensão para com todos. Tardiamente, nesta vida,
compreendeu e aceitou a compreensão e o afeto que lhe dava.
Caminhei impaciente ao perceber um irmão espiritual imóvel e de olhar vidrado. Parecia
um mendigo suplicante de proteção, encolhido próximo ao leito de Gabriel. Ricardo,
percebendo o incomodo, balbuciou:
-Ficai sereno Lucas, este é Henri II, covardemente assassinado por Gabriel Vandak. O
acompanha em desassossego desde a morte súbita. Sem preceitos religiosos e de uma
educação rígida e frívola, quer aqui permanecer, desejando-lhe infelicidade. Quando
Gabriel foi submetido ás árduas tarefas em Adredanha, ali também estava, se felicitando
com as suas dores. E nos longos anos em que Gabriel permaneceu na masmorra, ali
também ficou, satisfeito com seu estado deplorável, desejando-lhe a morte!
Curioso, interrompi indagando:
-Mentor Ricardo, contaste-me que Gabriel Vandak nesta vida tenta finalmente regenerarse e atualmente possui vida cristã. Porque ainda o acompanha, este irmão em estado tão
deplorável ?
Ricardo olhou-me fixamente, parecia sentir-se incrédulo com a minha ignorância.
Explicou-me no entanto pacientemente:
-Lucas, te foi doutrinado nas lições na Colônia : “Poderá um de nós estar amplamente em
progresso, mas próximo a nós sempre estarão os nossos inimigos, ou alguns irmãos
ainda perturbados , esperando atenciosos qualquer possibilidade em que possam
prejudicar-nos ou interferir em nossa vida evolutiva. Inúmeras vezes provocam
sentimentos de insatisfação, pensamentos de revolta, em nós mesmos ou nos que lhe
estão próximos! "... Lembrastes que nos foi ensinado a orar e vigiar ?
Sentindo-me envergonhado, baixei a cabeça humildemente e murmurei:
-Não podemos auxiliar este infeliz que sofre na incessante ânsia de vingar-se?
Ricardo olhou para Henri II, e expressando intensa piedade , murmurou:
-Não, bom Lucas. Em sua liberdade, este ser ainda não compreendeu o mal que se faz e
nem suplicou auxilio ao misericordioso Pai.
Dizendo isto meu mentor afastou-se, caminhando então em direção ao leito do jovem
Orlando, que dormia profundamente.
Eu tinha enorme curiosidade em saber quem haviam sido e o que haviam feito todos
aqueles irmãos, em suas vidas regressas, mas aprendera que precisava ser paciente, e
aguardava meu mentor Ricardo se pronunciar.
- Este é o pequeno Orlando, que salvei com a abençoada concordância de Deus Pai.
Falei-te sobre isto, lembras-te Lucas?
Prontamente aproximei-me dizendo-lhe:
-Sim, mentor Ricardo. Na imensa fé de Lorde Arthur, viestes aqui em plano físico, para lhe
salvares a esposa Sara e a criança, graças ao bom Deus.
Ricardo colocou as palmas de suas mãos levemente sobre a mente do jovem Orlando, e
estas emanavam ofuscante luminosidade. Desejava saber por que o meu mentor
emanava tamanha energia restauradora sobre o jovem. Continuando com a séria tarefa,
ele ia me narrando vagarosamente, quase que num balbucio imperceptível.
-Este é o jovem Anderson, que aqui novamente está pela infinita justiça do Divino Pai,
para prosseguir com a sua jornada neste plano físico, e dando a Gabriel Vandak a
oportunidade de doar-lhe a vida que a tirou.
O mentor ainda com a tarefa de emanar energia ao jovem, prosseguiu:
-Sente enorme afeição e amor a Lorde Arthur, porque inconscientemente lhe é acumulado
o sentimento de irmão que outrora foi, e do filho que atualmente o é. Perceberás que a
afeição e o amor são recíprocos por parte de Lorde Arthur, que deseja ardentemente vê-lo
forte, sadio e em proteção.
Interrompi meu mentor cautelosamente para não lhe atrapalhar a tarefa que realizava,
sentindo-me radiante com aquela revelação:
-Anderson regressou no mesmo plano físico, como um deficiente para que Gabriel
pudesse se empenhar em auxiliá-lo a viver com as suas limitações. Possivelmente uma
deficiência que ele mesmo ocasionou, matando-o. Isto é espantoso!
Ricardo balbuciou, em profunda paz, dando por encerrada a tarefa de auxilio ao jovem
Orlando.
-É a enorme vontade de Deus Todo Poderoso que seus Filhos consigam regenerar-se dos
imensos males que fazem ao seu próximo.
Dizendo isto, o meu sábio mentor saiu do aposento e eu segui-o silencioso pelo corredor.
Dando uma pausa, em profunda oração, Ricardo entrou em outro aposento.
-Um jovem dormia inquieto e percebi que ao redor do seu leito, dois seres o
atormentavam.
Desejei repudiar as atitudes daqueles irmãos perturbadores, mas o meu mentor
novamente me colocou a mão no ombro carinhosamente, dizendo-me:
-Não poderás intervir Lucas, todos os seres são livres ao olhos do Bom Deus. Estes dois
irmãos que atormentam o sono do jovem Ricardo são livres. Somente o Pai poderá
intervir, na fé e no merecimento daquele que esteja sendo atormentado, e lhe peça
auxilio!
Ricardo então, tranqüilamente caminhou até próximo ao seu leito e eu acompanhei-o,
observando que aqueles nossos irmãos que ali estavam não podiam ver-nos.
-Observa Lucas, como dorme tranqüilo, mas as feições estão extremamente contorcidas...
Grande inimigo de Lorde Arthur em vida regressa.
Percebendo que me sentia confuso, fez uma pausa sorrindo harmoniosamente e narrou
calmamente.
-Lorde Arthur foi um dos filhos de Gabriel Vandak em vida regressa. Contrariamente ao
pai, era bom e justo. Piedosamente, sentia pena de sua mãe infeliz e igualmente se
apiedava dos inúmeros seres que eram entregues á escravidão de seu pai. Nesta
existência, Lorde Arthur veio possuidor de riquezas, títulos e propriedades, porque
caridosamente soube administrá-las em vida regressa, quando o seu pai faleceu em
extrema loucura. O jovem Ricardo, em vida passada, era-lhe o irmão mais novo, sendo
completamente frívolo, igual ao seu pai. Mas sendo Arthur o primogênito dessa família,
administrou as propriedades em valores cristãos, se beneficiando da riqueza que possuía,
mas sabendo reparti-la com todos que necessitavam de auxilio, ou aqueles que
visualizasse estarem necessitados. Os escravos eram por ele tratados com respeito e
fraternidade. Percebendo isto, o irmão mais novo indignou-se, sentindo-se prejudicado e
excluído de autoridade e de seus bens.
Interrompi meu mentor para ver se havia compreendido:
-Tu eras o pai de Gabriel Vandak, que te matou por ambição. Gabriel Vandak teve dois
filhos com Brigith, um era Arthur, o primogênito, e o outro o jovem Ricardo. Brigith era-lhe
a esposa maltratada e submissa. Gabriel Vandak morreu louco...
Ricardo acalentando-me o raciocínio, parabenizou-me pela compreensão.
-O jovem Ricardo, que aqui está nesta existência indignado com a parcial indiferença do
pai Lorde Arthur... Em verdade a indignação lhe vem de vida regressa, na qual se sentiu
tão excluído que trancou Arthur numa cela até que este morreu resignado em estado
deplorável. Lembras-te como Lorde Arthur ficou angustiado ao ver o estado lastimável de
Gabriel, ao visitá-lo na masmorra? Havia em vida regressa passado por situação
semelhante e sabia inconscientemente o quanto esta era dolorosa. A sensação da
lembrança o feriu!
Indaguei a Ricardo pensativo:
-Lorde Arthur está em estado evolutivo bem mais avançado?
O meu mentor respondeu modestamente:
-Caminha um pouco adiante. Sabe compreender, aceitar, respeitar e repartir em maior
amplitude. Existe misericórdia e amor em seu ser. Se assim não o fosse, como haveria de
ter perdoado tão facilmente nesta existência a Gabriel Vandak, que matou cruelmente
seus irmãos, destruindo-lhe a família?
Percebendo-me silencioso e pensativo, falou:
-Ensinou-nos Deus que deveríamos respeitar, compreender e perdoar nossos irmãos em
suas imperfeições. Observa, Lucas, que os seres que o atormentam enquanto repousa
não lhe são inimigos, e sim os amigos cruéis que conquistou em vida regressa, em
atitudes tão perversas. Aqui estão para instigar-lhe á continuidade do mal. O jovem
Ricardo, no entanto, é livre para optar e, para isto, Deus lhe concedeu novamente vida
farta, uma bondosa mãe e um exemplar pai... Poderá corrigir-se no bem!
As imensas lições exemplificadas de meu mentor, eram-me muito valiosas e sentia-me
feliz pela oportunidade que me concedera Deus Pai em acompanhá-lo.
Novamente meu mentor Ricardo saiu do aposento, caminhou no corredor e entrou em
outro. Imensa luminosidade advinha deste, e nele não haviam seres perturbadores, mas
inúmeros amigos espirituais que ali nos aguardavam.
Ricardo cumprimentou-os ternamente, e caminhou até o leito.
Uma senhora envelhecida ali dormia, apresentando enorme dificuldade de respirar. Meu
mentor meigamente passou-lhe a mão na face, e a nobre senhora despertou em
serenidade. Levantou-se tranqüilamente, deixando o corpo inerte comodamente ali
deitado.O olhar lhe era cândido e expressivo. Parecia atordoada ainda com o desenlace,
mas Ricardo prontamente amparou-a. Carol olhou para o corpo envelhecido, sentindo um
enorme vigor e juventude no corpo espiritual que agora possuía. Sorriu radiante para
Ricardo, pegando em suas mãos fraternalmente:
-Meu companheiro!
Ricardo abraçou-a fraternalmente e eu me enchi de jubilo com o imenso aprendizado que
tivera naquela missão. "
O dia amanhecera extremamente triste no castelo! Uma serva alertara ao Lorde Arthur
sobre o falecimento de Carol, e todos se encontravam inconformados com a perda de
pessoa tão doce, tão serena e tão querida.
Lorde Arthur e a Duquesa Sara sentiam a enorme dor da perda, daquela que lhes fora a
mãe, sempre tão presente em suas vidas e na vida de seus filhos, a avó sempre
carinhosa.
Gabriel emudecera num pranto triste mas sereno, sendo reconfortado pelo jovem
Orlando, que o acarinhava amigavelmente.
Velaram-lhe o corpo com extrema emoção e devoção ao longo daquele dia, e quando
entardecia, o corpo de Carol foi sepultado, na presença dos nobres e dos muitos servos
que ali puderam estar.
Lorde Arthur decidiu viajar para a corte nos dias imediatos, com a sua família. Haveria
grande baile imperial e fora convidado. Sentia enorme necessidade de encaminhar suas
lindas filhas a um matrimônio.
Seis longos meses ficariam ausentes, e as instruções a Gabriel foram sérias advertências
sobre como administrar a propriedade se a grande guerra acontecesse.
Como a duquesa Sara o acompanharia, novamente o castelo de Lorde Arthur ficaria
entregue, em inteira confiança, a Lorde Gabriel Vandak e ao nobre Orlando.
Ainda que se entristecesse em ser excluído da longa viagem, Orlando resignou-se,
compreendendo porque o seu pai ali o deixava. Não era por vergonha de suas
deficiências e limitações, mas sim por desejo de protegê-lo do mundo agressivo e
competitivo que reinava fora da propriedade.
Os preparativos para a grande viagem, foram consecutivos naqueles dias e as jovens
Brigith e Joane, se sentiam eufóricas com a possibilidade de conviverem longos dias com
belos lordes e duques. O jovem Ricardo também se alegrava com a viagem,
principalmente porque o irmão "defeituoso", não os acompanharia. Ciente de que seu pai
Lorde Arthur lhe daria maior atenção e méritos, se empenharia em auxiliar suas irmãs a
conseguirem ricos esposos. Assim ficaria a sós com seus pais e, futuramente, sozinho
administraria as suas propriedades. Em sua mente facilmente excluía o irmão, como se
este nada representasse. Não lhe demonstrava qualquer afetividade, mostrando
claramente seu interior frívolo e desprezível. Não ambicionava a riqueza mas em tão tenra
idade, desejava ardentemente o poder e o domínio.
Na véspera da grande viagem, o jovem Orlando amparava em Gabriel a sua profunda
tristeza, e este consolava-o dizendo-lhe que muito teriam a estudar e a aprender juntos.
Confortava-o, informando-lhe sobre a missão que Lorde Arthur o incumbira - de doutrinar
um guerreiro, para a sua proteção e companhia - e que o jovem Orlando poderia auxiliá-lo
nisto. Mas Orlando mantinha-se visivelmente entristecido, por saber que por longo tempo
não veria sua família.
Lorde Arthur observava-os, oculto na janela da biblioteca. Podia perceber a imensa
tristeza do filho tão querido e isto lhe doía profundamente. De repente, o jovem Ricardo ali
surgiu, esmerando-se na altivez, e Lorde Arthur, impulsivamente, decidiu sair do castelo e
aproximar-se sem ser visto, no jardim onde estavam. Risonho o jovem rudemente falou:
-Ficarás sozinho, defeituoso!
Lorde Arthur desejou jogá-lo no chão em ataque de fúria, indignado com a insensibilidade
do filho Ricardo, mas intuitivamente conteve-se. Desejava saber o que ocorreria.
O jovem Orlando nada respondeu, mantendo-se silencioso e quieto próximo ao mentor
Gabriel que, ainda que estivesse também indignad, aparentav indiferença. O jovem
Ricardo persistiu com o ataque, dizendo-lhe:
-Nosso pai de nada vale...É um fraco!
Orlando se levantou num impulso e atirou o irmão ao chão e lutaram bravament.
Rapidamente Lorde Arthur aproximou-se, ansioso para proteger Orlando, quando Gabriel
vendo-o, agarrou-o pelo braço suplicando:
-Deixai-os Lorde Arthur...Teu filho Orlando precisa dar uma boa lição em teu filho Ricardo.
Ainda que concordasse com isto, o nobre Arthur continuou temeroso de que o bom
Orlando se ferisse. Os dois jovens lutaram dramaticamente por algum tempo, até que
Orlando caminhou na direção de Gabriel. Em seu nervosismo não percebeu que seu pai
ali estava, completamente perplexo com o seu êxito.
-Perdoai-me Gabriel. Ensinaste-me que somente deveria atacar em minha defesa,
ataquei-o para defender a honra e a dignidade de meu bom pai!
Gabriel ajoelhou-se defronte a Orlando e o pranto lhe desceu intenso e convulsivo.O
Lorde, que ao seu lado estava, abraçou prontamente o filho, também ajoelhando-se
agradecido.
O jovem Orlando não compreendia o que estava acontecendo. Extremamente exausto e
nervoso por se ver obrigado a lutar com seu irmão, não percebera que a sua voz, tinha
saído fluentemente.
O jovem Ricardo, ainda inerte no chão, com o corpo dolorido e o olho negro, não percebia
o que acontecia ao redor. “O que fiz de errado? Porque estão chorando? porque estão
ajoelhados?”
Somente então Orlando escutou sua própria voz que saia fluente. Abraçou o seu pai com
intensidade, falando emocionado:
-Eu o amo meu pai!
A alegria reinou no castelo. Sara e Arthur exultavam de felicidade, olhando o filho Orlando
carinhosamente, que não mais parara de falar naquele dia.
Havia tanto a ser dito! Inúmeras vezes Orlando tinha silenciado, com extrema dificuldade
de balbuciar alguns sons ou para não constranger os que pacientemente o ouviam. Mas
agora era diferente, as idéias podiam ser narradas em plenitude com uma fluência
incrível.
Lorde Arthur sentia-se orgulhoso com a sua inteligência e perplexo em como Gabriel
conseguira levar-lhe tanto conhecimento. Orlando contava as estórias perdidas em sua
infância, agradecia ao pai, ás irmãs, á mãe e a Gabriel continuamente. Recitava longas
poesias, colocadas arduamente por Gabriel em sua mente, em inúmeras e diárias leituras.
Não tinha a visão, mas tinha impressionantemente mais cultura que qualquer um de seus
irmãos.
Ricardo, de castigo em seu aposento, remoia a sua revolta no corpo dolorido e na face
marcada pela discórdia com o irmão Orlando. Não compreendia porque o seu pai não o
defendera ou interrompera o ataque intempestivo de seu irmão.
Porque ele estava ali de castigo, e mais uma vez o seu irmão, recebia as glorias no
imenso salão?
Orlando humildemente desculpara-se com ele, mas tinha certeza que somente o fizera
para destacar-se ainda mais na idolatria de seu pai.Percebera-lhe a voz grossa mas
meiga, falando fluentemente, e não compreendia como seu irmão ficara bom. Pensava:
"Mas ainda é um defeituoso cego!". Ricardo remoia-se em incompreensões, julgamentos,
sentindo-se vitimado e injustiçado.
Alegrou-se quando a noite finalmente desceu sobre a propriedade e deitou-se para
dormir, ansioso para que o dia novamente raiasse e, partindo em viagem, não tivesse
mais que conviver com o seu irmão.
No castelo todos recolheram-se aos respectivos aposentos para repousar. O longo dia
tinha sido exaustivo nos preparativos para a viagem.
Mas Orlando não conseguia dormir ainda eufórico com a possibilidade de se comunicar.
Virou-se para Gabriel também deitado em seu leito e balbuciou:
-Dormes, mentor Gabriel?
Gabriel virou-se em sua cama, de maneira que pudesse olhá-lo, dizendo:
-Deverias dormir Orlando... Todos despertarão bem cedo.
Orlando disse-lhe :
-Já te agradeci pelo muito que fizestes por mim, mas sei que nunca poderei te mostrar a
minha total gratidão.
Gabriel interrompeu-o dizendo tristemente:
-O fiz por dívida que tinha para com teu pai, e que ainda a tenho.
Sem compreender o que o seu mentor lhe dizia, o jovem decidiu tentar dormir.
Logo que a manhã surgiu gloriosa, todos já se encontravam prontos para a viagem para a
corte. Orlando despediu-se tristemente de suas irmãs, sua mãe e do pai lorde Arthur, mas
não conseguira se despedir de seu irmão Ricardo, pois ele entrou rapidamente na
carruagem, não desejando despedidas.
Assim que os viajantes surgiram em galope apressado na poeirenta estrada, Orlando
abaixou-se, pegando um pouco de terra e vertendo um pranto sereno.
Gabriel Vandak aproximou-se, colocando-lhe a mão no ombro sem nada dizer-lhe. Sabia
que aquele sentimento triste, Orlando deveria sentir sozinho.
Nos dias seguintes, Gabriel reuniu todos os filhos dos servos na faixa etária de doze
anos. Um a um Gabriel os foi conhecendo, até que encontrou um belo rapaz de olhar
esperto e bastante humilde. Já a tarde findava quando Gabriel chamou Orlando, que
estudava na biblioteca, treinando a redação e a caligrafia, e apresentou-lhe o rapaz:
-Orlando, conheci inúmeros rapazes e creio que este é o certo para te ser o protetor e
companheiro, claro que desde que concordes.
O jovem nobre aproximou-se e indagou-lhe:
-Como te chamas?
O rapaz prontamente atendeu-o humildemente.
-Sou o servo Rui, senhor nobre Orlando.
Após dialogarem longo tempo, o jovem Orlando balbuciou sereno a Gabriel:
-Podemos prepará-lo... O quero como um amigo.
Imediatamente as providencias foram tomadas e o menino Rui passou a morar no castelo,
dormindo no aposento de Orlando. Gabriel se mudou, para um aposento ao lado que
estava vago.
Rapidamente Orlando esqueceu a tristeza da ausência de sua família. Passavam os dias
a cavalgar, estudar e também brincar. Com facilidade Rui aprendia a escrever e a ler.
Também se empenhava com esmero em aprender a ser um bom guerreiro. Parecia gostar
imensamente do jovem nobre Orlando, o que deixava Gabriel tranqüilo. Ser-lhe-ia o aliado
perfeito. Também Orlando o tratava como a um amigo.
Naquela noite, um mensageiro se aproximou do castelo em galope apressado, trazendo
uma mensagem para Lorde Gabriel Vandak. Prontamente o mentor rasgou o lacre e a leu.
Estava próximo a Orlando e Rui no salão de musica.
“Estimado Lorde Gabriel Vandak
Passados seis meses de nossa chegada à corte, venho comunicar-lhe que aqui
permaneceremos até o matrimônio de nossas filhas, que está previsto para a primavera
do próximo ano.
Sentimo-nos imensamente preocupados e saudosos de nosso filho Orlando.
Tão logo ocorram os matrimônios, viajaremos em retorno ao castelo.
Agradecemos por tudo o que tem feito por nós!
Saudoso abraço
Lorde Arthur Corleanos "
A tristeza surgiu prontamente na fisionomia de Gabriel e Orlando, percebendo-lhe o
silêncio, indagou-lhe:
-É uma mensagem do senhor meu pai?
Gabriel serenamente leu-a e o jovem Orlando deixou-se abater em pranto saudoso.
Imediatamente o servo Rui aproximou-se para consolá-lo. Chorava pela longa ausência e
porque estava ciente que as possibilidades eram remotas de reencontrar as suas irmãs.
Com certeza, elas partiriam para as propriedades de seus esposos, e dificilmente iriam
visitá-los... E com a sua incapacidade visual, tampouco provável seria ele ir visitá-las.
Mais um ano e meio teria que aguardar para o retorno de seu pai, lorde Arthur, de sua
mãe a Duquesa Sara e de seu irmão Ricardo.Mergulhado em profunda tristeza, pediu
licença para ir para o seu aposento, e como a noite já ia alta, Rui o acompanhou. Gabriel
também recolheu-se ao seu aposento.
“O retorno aquela moradia, aguçava-me a curiosidade, mas o mentor Ricardo mantinhase silencioso. Não estávamos sós, alguns outros irmãos também acompanhavam-nos,
silenciosos. Entramos no aposento do jovem Orlando, e percebi que este dormia
harmoniosamente.
Num outro leito, um rapaz forte tinha, no entanto, sono bastante agitado e, surpreendido,
percebi que alguns seres o atormentavam. Intrigado, olhei para o mentor Ricardo, mas
este mantinha-se magnetizando o ambiente próximo ao jovem Orlando, juntamente com
os outros tarefeiros.
Imensa luminosidade se fez no ambiente e percebi, confuso, que aqueles irmãos
perturbadores se afastavam assustados. A pedido do mentor Ricardo, os tarefeiros
aproximaram-se mais do leito, circundando-o, e colocaram-se em oração profunda.
Surpreso observei que um feixe de luz descia sobre a cabeça de Orlando, que continuava
dormindo. Alguns minutos foram necessários para a conclusão da missão. Ricardo
agradeceu fraternalmente aos amigos espirituais que ali haviam comparecido e eles se
foram.
Fiquei a sós com o mentor Ricardo naquele aposento. Desejava ardentemente perguntarlhe o que faziam, mas, como um bom aprendiz, decidi aguardar silencioso. Observei
atordoado que os irmãos perturbadores, que haviam se afastado com a luminosidade,
tinham retornado e atormentavam de novo aquele pobre rapaz. Ricardo balbuciou:
-Não é um pobre rapaz Lucas. É sim, um irmão imperfeito, em busca de sua evolução.
Ciente de que podia vislumbrar meus pensamentos, envergonhei-me e indaguei
prontamente:
-Quem é ele?
O meu mentor Ricardo, pausadamente explicou-me:
-Nesta existência, este é Rui, filho de servo, e escolhido por Gabriel para ser o protetor de
Orlando. Em vida passada, no entanto, era um escravo rebelde que extremou sua vida
barbaramente, esquartejado por seu capataz.
Dizendo isto, olhou piedosamente para o jovem Orlando e eu perguntei, temeroso:
-Era Anderson, ou seja o jovem Orlando esse capataz?
Ricardo, sempre harmônico falou-me:
-Sim, meu bom Lucas. O jovem Orlando era o capataz de Gabriel e, para sua infelicidade,
adquiriu enorme divida, maltratando e matando os escravos a mando de seu senhor.
Quando Gabriel, nesta existência, asfixiou Anderson até á morte, matava em verdade o
submisso capataz de outrora. Antes de morrer enlouquecido, Gabriel pediu ao capataz
para exterminar a escrava que era sua amante. Lembras-te de Linia?... Sim, ele a
mandou matar! Mas o capataz, que era Anderson, negou-se a fazê-lo fugindo com ela. Ele
era pessoa boa, estava exausto de obedecer a ordens cruéis e sentia-se indignado com
tanta violência e tantas injustiças. O senhor Gabriel enfureceu-se, jurando vingança, que
não pode concretizar na outra existência... Concretizou-a nesta, e agora tenta regenerarse.
Aquelas estórias confundiam-me a mente, mas desejava compreendê-las em amplitude.
Meu mentor, ignorando-me a dificuldade, ou talvez propositadamente, prosseguiu:
-Aqui está Rui ,o escravo, novamente um servo, com a grandiosa oportunidade de
perdoar Orlando , o capataz, por haver lhe tirado a vida barbaramente em vida regressa.
E aqui está Orlando, o capataz, com a grandiosa possibilidade de redimir-se de seus
males, sendo bom e justo para com os seus servos.
Ainda imensamente intrigado resolvi indagar-lhe:
-Que faziam com o jovem Orlando? Qual a missão?
O mentor Ricardo silenciou, dizendo-me que devíamos partir.”
O servo Rui correu angustiado pelos corredores do castelo procurando o mentor Gabriel.
Encontrou-o na biblioteca, preparando as lições as lhe serem doutrinadas naquele dia.
Percebendo o jovem servo assustado, Gabriel rapidamente levantou-se indagando-lhe:
-O que houve Rui? Onde está o nobre Orlando?
O servo aparentemente amedrontado, balbuciou:
-Não desperta senhor Gabriel!
Gabriel correu desesperado. O jovem Orlando havia se tornado o filho que não tivera. Na
árdua tarefa de educá-lo e criá-lo desde os dois anos de idade, se afeiçoara totalmente a
ele.
Sempre estivera próximo e ele se tornara muito dependente de seus cuidados e
ensinamentos. Precisará continuamente de sua proteção e de seu verdadeiro amor! "Não
poderia perdê-lo..." Pensava angustiado.
Exausto pela idade, chegou ao aposento ofegante e encontrou Orlando deitado em seu
leito. Observou que ele parecia dormir profundamente e tentou acordá-lo inúmeras vezes,
até que finalmente o jovem entreabriu os olhos. Gabriel, ainda ofegante e emocionado,
falou-lhe.
-Que susto me destes, meu querido.
Orlando sentia-se ofuscado com a intensa luminosidade que lhe vinha aos olhos,
esfregou-os instintivamente e novamente abriu-os. Pouco a pouco, as imagens
destorcidas foram se recompondo e o jovem Orlando visualizou á sua frente um senhor
grisalho, de olhar triste. Não acreditando no que acontecia, começou a tatear a face de
Gabriel sentindo-se emocionado. Gabriel olhou-o confuso.
-O que sentes Orlando? O que há contigo?
Orlando levantou-se, olhando com assombro as cores do aposento, correu ao vitral e
vislumbrou a paisagem, a beleza dos campos floridos... Gabriel aproximou-se dele
extremamente preocupado.
-Orlando deixas-me aflito, falai comigo!
O jovem, radiante, olhou-o fixamente e murmurou sorrindo:
-Vejo os teus olhos tristes...vejo a preocupação em tua face...vejo os teus cabelos
grisalhos...
Eufórico, abraçou-o fortemente e depois colocou-se a rodopiar pelo aposento:
-Vejo os cortinados...vejo os leitos...vejo os adornos...Eu estou vendo Gabriel! Eu posso
ver tudo!
Correu novamente para a janela:
- Eu vejo os campos, são mais belos do que tu me descrevias! Eu vejo as flores, vejo o
céu...eu posso ver tudo!
Gabriel compreendia que o seu menino recuperara completamente a visão. A emoção
tomou conta e ele começou a chorar. Orlando continuava tocando em tudo, em profundo
encantamento. Parando defronte a um espelho olhou-se, balbuciando em emoção:
-Eu posso me ver! Posso ver meus olhos, minha boca, meu nariz... Eu posso ver tudo!
Voltou-se perplexo para Gabriel:
-Posso ver que choras. Não chores meu grande amigo, acabou-se o negro véu em minha
vista.
Dizendo isto ambos se abraçaram fortemente e choraram intensa felicidade Oraram
juntos em agradecimento, pela magnífica benção que haviam recebido do Criador.
O tempo passou depressa na propriedade de Lorde Arthur. Novas estações vieram para o
autêntico deslumbramento do jovem Orlando, que via tudo pela primeira vez.
A arte da guerra lhe despertou novo interesse. Desejava aprender rapidamente o
manuseio das armas de mira, para dar orgulho ao seu pai, nos inúmeros êxitos
conquistados em sua longa ausência.
O servo Rui continuou ao seu lado e também se esforçava em aprender tudo com primor.
Já sabia ler e escrever adequadamente e também sabia como se comportar e agir diante
da nobreza.
Gabriel aguardava ansioso o retorno de Lorde Arthur. O nobre ficaria igualmente perplexo
ao ver seu filho Orlando completamente sadio e capaz.
Tinha concluído com esmero mais uma missão ao qual o nobre Arthur o incumbira,
treinara um guerreiro para seu filho, ainda que este não mais lhe fosse essencial.
No final da primavera, numa bela tarde fresca, Gabriel aproximou-se da janela do grande
salão onde se encontravam. Escutara o galope pausado e desejava ver quem se
aproximava. Exclamou feliz:
-É o senhor teu pai Orlando! Lorde Arthur está chegando!
O jovem, não conseguindo conter-se em tanta felicidade, suplicou-lhes antes de sair
correndo ao seu encontro:
-Nada lhes falem de minha recuperação, desejo surpreendê-los em momento propicio.
Quero fazer uma surpresa!
Gabriel e Rui prometeram que nada lhes diriam e que o jovem nobre poderia falar-lhes no
momento em que achasse oportuno. Então todos saíram do castelo felizes,para receber
os viajantes. Orlando estava extremamente ansioso e satisfeito, em seu coração fazia-se
uma enorme festa de alegria com o retorno de seus queridos pais.
Ao se aproximarem os viajantes, pararam as carruagens próximo a eles.
A Duquesa Sara, enegrecida pelas vestes, saiu da carruagem, sendo auxiliada por uma
serva. Estava visivelmente extremamente abatida e infeliz. O jovem Ricardo também saiu
de outra carruagem, e seu semblante era sereno, mas misterioso. Orlando visualizava a
cena, sentindo-se angustiado com a demora no surgimento de seu pai. As vestes negras
de sua mãe, o seu semblante entristecido... Podia ver seus familiares pela primeira vez,
mas a imagem o amedrontava!
Também Gabriel começava a se sentir aflito porque Lorde Arthur não saia de nenhuma
das carruagens. Estava ciente de que era luto o que a linda duquesa vestia. Gabriel,
hesitante, aproximou-se da Duquesa Sara e cumprimentando-a cordialmente numa
reverência, falou-lhe gentilmente:
-Senhora Duquesa Sara, seja bem vinda á sua propriedade.
A nobre manteve-se cabisbaixa e, Gabriel indagou-lhe:
-O senhor Lorde Arthur não veio convosco?
Imediatamente Sara teve uma crise convulsiva de choro e o jovem Ricardo, aproximou-se
indignado e furioso:
-Não molestes minha mãe. O senhor não vê que não está bem!
Orlando aproximou-se desejando ampará-la num forte abraço, mas o jovem Ricardo
imediatamente a levava para o interior do castelo e auxiliava-a a subir para o seu
aposento. Gabriel e Orlando olharam-se perplexos, uma enorme tristeza aflorava em seus
interiores. Instintivamente entraram também rapidamente no castelo e aguardaram
ansiosos que o jovem Ricardo descesse para lhes explicar o que acontecera com Lorde
Arthur.
Não tardou muito, o jovem Ricardo desceu imponente a imensa escadaria, o semblante
lhe era frívolo. Orlando angustiado suplicou-lhe de cabeça baixa:
-O que houve com o senhor nosso pai, Lorde Arthur? Porque a senhora nossa mãe está
tão entristecida?
Ricardo julgando-o ainda cego, ignorou-o e caminhou em direção a Gabriel, dizendo-lhes:
-Comunico-lhes, que Lorde Arthur Corleanos faleceu na corte, após o matrimônio de suas
filhas.
Gabriel e Orlando estavam perplexos com a notícia, mas mais horrorizados estavam com
a extrema frieza de Ricardo. Orlando balbuciou incrédulo:
-Morreu o senhor nosso pai? Como?
Ricardo, caminhando para o salão e recostando-se comodamente em uma poltrona,
contou-lhes na mesma frieza e insensibilidade:
-Fazíamos os preparativos para a viagem de retorno, quando sentiu enorme aperto no
peito e faleceu subitamente. Nossa mãe não suportou a perda e, desde então, apresentase confusa, inúmeras vezes fala consigo mesma como se estivesse falando com o nosso
pai. Disseram os médicos da corte que na imensa dor, enlouqueceu.
Gabriel abraçou fortemente Orlando, tentando ampará-lo na sua dor e tentando se
reconfortar na sua própria dor, o pranto intenso lhes foi inevitável.
Os dias passaram em extrema dor para Gabriel e Orlando. A Duquesa Sara enclausurarase em seu aposento, não desejando ver ninguém, nem mesmo o filho Orlando, que se
sentia saudoso. As refeições lhe eram levadas e imediatamente expulsava os servos do
aposento. Ricardo passava os dias fechado na biblioteca, consultando os documentos e
os cálculos de seu pai.
Gabriel,cansado pelo imenso sofrimento, se empenhava em continuar administrando a
propriedade, temendo-lhe o futuro nas mãos do primogênito Ricardo.
Orlando não lhe revelara a sua recuperação e os servos mantinham-se silenciosos.
Intuitivamente o fazia, esperando o momento oportuno a falar ao seu irmão que tudo
podia ver.
Certa manhã, quando estavam reunidos no salão de refeições o jovem Ricardo falou
ríspido:
-Pelo direito de herdade, a partir de hoje todas as propriedades dos Corleanos estão sob
meu domínio.
Olhou para Gabriel e frivolamente falou-lhe:
-Agradeço-te o auxilio que destes a meu pai, mas deverás deixar esta propriedade até o
próximo inverno. Dar-te-ei o suficiente para que compres um pedaço de terra para ti.
Orlando indignou-se:
-Não podes fazer isto, Lorde Gabriel Vandak é nosso parente próximo! Não podes
simplesmente expulsa-lo do castelo, pagando-lhe os serviços como se fosse um mero
servo!
Ricardo olhou-o indiferente e hostil, e continuou tranqüilamente:
-Quanto a ti Orlando, terás o meu respeito e a minha proteção. No entanto, se ousares me
contradizer ou fores antagônico às minhas decisões, levar-te-ei para Adredanha e lá
permanecerás os restos de teus dias.
Orlando levantou-se perplexo, premeditadamente tateou o assento para se apoiar, e
falou-lhe:
-Não serei teu servo submisso, não foi isto que aprendi com o senhor nosso pai. Aprendi
que todos os seres devem ter a liberdade de ir e vir, e todos eles devem ter a inteira
liberdade de pensamentos, sentimentos e ações. Assim ele nos educou e assim tratava
seus servos.
Ricardo levantou-se furioso interrompendo-o:
-Nosso pai era um fraco! Bem vejo que nunca fostes á corte. Os nobres são bem
diferentes de nosso pai! São hostis, autoritários, superiores. Não somos iguais a meros
servos e não devemos tratá-los com igualdade. Eles nos são submissos! Somos uma raça
de privilegiados. Olhai nossos traços fisionômicos e olhai a rudeza das expressões
desses miseráveis! Olhai, Orlando, o nosso porte elegante e atlético, e olhai os corpos
mirrados em estaturas deselegantes de nossos servos.
Sob os olhares horrorizados de Orlando e Gabriel, Ricardo continuou:
-Nosso pai não agia como um lorde, nunca o foi! Somos guerreiros pela graça divina e
aqui viemos para dominar. As inúmeras propriedades que a nosso pai pertenciam agora
me pertencem e, a menos que eu morra, não terás qualquer domínio sobre elas. Não me
serás empecilho, isto eu te asseguro, e serei um verdadeiro Lorde! De hoje em diante
deverão tratar-me como tal, com respeito e admiração. Tratar-me-ão de Lorde Ricardo
Corleanos, filho do fraco Arthur Corleanos, e neto do vigoroso Duque Orlando Corleanos!
Findando em tom autoritário Ricardo afastou-se, saindo do castelo para dar instruções a
um guerreiro do qual se tornara extremamente próximo, nomeando-o capataz daquela
propriedade.
Gabriel e Orlando olharam-se, perplexos. O sofrimento, o espanto e a preocupação lhes
era demasiados.
Gabriel não deixaria o seu menino Orlando. Havia prometido a Lorde Arthur que pelo resto
de sua vida o acompanharia e protegeria. Balbuciou temeroso:
-Orlando, em promessa que fiz a teu pai, jurei acompanhar-te até que meus dias findem.
Pelas atitudes de teu irmão Ricardo, estou certo que seria prudente viajarmos
prontamente para Adredanha. Lá auxiliarei em tua administração e lá estarás livres dos
ataques intempestivos de teu irmão e dos horrores que ocorrerão neste castelo.
O jovem interrompeu-o, profundamente admirado:
-Gabriel Vandak, aconselhas-me a fugir? Sempre me ensinastes a lutar bravamente pelo
bem e pela justiça! Como desejas agora que eu parta covardemente, dando costas para
as terras do meu pai e deixando estas entregues em mãos de ser tão vil, a quem ainda
tenho que chamar de irmão! Como me pedes que permita os inúmeros erros que ele
deseja cometer?
Fez uma pausa, e caminhando na direção de Gabriel, colocou-lhe a mão no ombro
dizendo-lhe:
-Por tudo o que me contastes, quando o meu pai tinha minha idade, já era um bom
homem, com bons princípios e excelente moral cristã. Assim também agirei!
Gabriel olhou-o, a idade pesava em sua fisionomia apreensiva.
-Querido Orlando, ele é o primogênito e, infelizmente, está certo, nada poderás fazer.
Estás submisso ao seu poder. Pela herdade, deve te proteger e te conceder a riqueza da
qual necessites, mas as decisões serão só dele. Pela herdade ainda, poderá te julgar,
punir e castigar como um pai, tem autoridade de fazê-lo. Com a morte de Lorde Arthur,
deverás agir como um filho obediente, sabes disto. Pelas leis de herdade, até a tua mãe a
Duquesa Sara, passou a lhe ser submissa e lhe deve obediência e lealdade. Nada
poderia fazer, ainda que estivesse bem.
Orlando abraçou-o fraternalmente e, confiante, falou-lhe:
-Ficarei Gabriel Vandak. Protegerei as terras de meu pai e vigiarei pela segurança de
minha mãe e dos servos que sempre nos foram amigos.
Gabriel baixou a cabeça pensativo e, tristemente, falou:
-Ele deu ordens para a minha partida desta propriedade, não poderei ficar contigo!.
Orlando rapidamente disse-lhe:
-Concedeu-te um prazo, aproveitai-o até o ultimo dia! Faltam longos meses para que este
chegue. Até lá, seremos aliados e encontraremos soluções.
Orlando caminhou serenamente de um lado para o outro e depois falou-lhe:
-Não sabe de minha boa visão e continuará a desconhecê-la. Nos faremos dóceis e
submissos, tal qual deseja, mas estaremos vivamente alertas. Agora deves ir tentar
dialogar com a senhora minha mãe, talvez ela te ouça, pela proximidade que tinhas com
ambos. Contai a ela todos os intempéries de meu irmão Ricardo. Eu irei procurar Rui, que
foi obrigado a retornar á vila dos servos, e lhe pedirei auxilio. Será ele os nossos olhos
nos campos e na lida dos servos.
Olhou fixamente para Gabriel e indagou-lhe:
-Confiei em ti em árdua educação, confiarás na educação que me destes?
Sem palavras, Gabriel abraçou-o e murmurou emocionado:
-Confio em ti Orlando e desejo ficar próximo de tua vida. Tu me és o filho que não tive!
Depois de profundo silêncio e intensa emoção, Gabriel caminhou até o aposento de Sara
para fazer o que Orlando havia pedido.
Batendo na porta falou firme:
-Duquesa Sara, desejo falar-lhe... Sou eu, Gabriel!
Surpreendentemente a porta se abriu e a bela dama surgiu extremamente pálida e com o
semblante demasiadamente preocupado.
-Entrai rápido Gabriel, para que não te vejam aqui entrando. Precisamos ser discretos e
Ricardo não poderá suspeitar de nossa proximidade!
Gabriel entrou rapidamente e auxiliou Sara a colocar a pesada tranca na porta. Tomando
cuidado para não se aproximar da janela, onde poderia ser facilmente visto, perguntou
intrigado:
-Porque tantos temores em relação a seu filho Ricardo?
A nobre dama sentou-se desajeitadamente em seu leito, a verter pranto convulsivo.
Depois controlando-se, indagou-lhe:
-Como está meu querido filho Orlando?
-Extremamente saudoso,Senhora, desejando vê-la e abraçá-la.
Sara pediu-lhe que se aproximasse e Gabriel prontamente o fez:
-Todos estão pensando que estou louca, mas nunca estive tão lúcida. O sofrimento pela
ausência física de meu companheiro Arthur ainda me fere violentamente, mas sei que
voltarei a vê-lo e isto me conforta. Mas a dor da perda de um filho querido, e estou ciente
que jamais vou tê-lo de volta, me dilacera o coração.
Gabriel julgando-a realmente enlouquecida balbuciou carinhoso:
-Não perdestes nenhum filho, nobre duquesa.
Sara olhou-o tranqüila, secando as lágrimas que persistiam em descer e falou convicta:
-Perdi sim Gabriel...perdi o meu filho Ricardo, a quem julgava encantadora criança! O
perdi para valores morais deturpados. Ele se perdeu na busca incessante pelo poder. Eu
o perdi para sentimentos vis. Perdi meu filho Ricardo, amoroso, para ganhar um filho
hostil, frívolo, violento e cruel! Afetividade nenhuma lhe tem valia. Nada somos para o seu
coração duro. Onde erramos Gabriel?
Gabriel, perplexo com as tristes palavras de Sara, falou-lhe:
-Porque a senhora o julga tão cruel? O que o seu filho lhe fez?
A duquesa, novamente em choro convulsivo, contou-lhe com dificuldade:
-Ricardo enclausurou-me neste aposento, porque sinto-me envergonhada de olhar o filho
que gerei. Aqui estou trancada por opção, fingindo-me de louca desde a morte de Arthur,
porque me fere em demasia a sua presença, sabendo o monstro que é. Respeito a
opinião de meu querido Arthur, de que todos os seres devem ter a oportunidade de errar e
acertar sozinhos. Demos-te uma chance, Gabriel,e refletindo, reconhecestes teus erros, e
te redimistes. Se não a tivéssemos concedido, como terias percebido teus erros, como
poderias desejar corrigi-los? Quantas vidas destruirá Ricardo até compreender o mal que
faz?
Gabriel ainda não conseguia compreender o que o seu filho Ricardo teria feito, para Sara
se enclausurar num aposento, em cárcere privado, temendo a proximidade de seu
primogênito. Novamente indagou-lhe suplicante:
-Que fez teu filho Ricardo, Sara?
Sara tentando conter-se na emoção sussurrou:
-Matou o pai!
Gabriel instintivamente abraçou Sara, compreendendo-lhe o sofrimento que sentia e os
motivos que a haviam levado a se fazer de louca e a se trancar no aposento. Era
submissa á autoridade do filho cruel, que matara por ambição seu próprio pai. Não
duvidou por um instante do que Sara lhe falava, confiava plenamente em sua integridade
e em sua dignidade. Jamais acusaria o próprio filho se não tivesse certeza absoluta de
seus atos. Acompanhara-lhe uma parte da infância, e Sara sempre fora a menina dócil e a
mãe carinhosa e amorosa, aplicando-lhes bons conselhos de conduta moral e cristã.
A nobre dama, ainda jovem e bonita, controlou-se, agradecendo-lhe a confiança e,
levantando-se, falou-lhe:
-Nada posso fazer... Não tenho como provar que assassinou meu querido companheiro
Arthur. Mas tudo vi e não evitei, não pensei que chegasse a isto.
Novamente sentando-se, pediu que Gabriel também se sentasse, e contou-lhe:
-Os matrimônios de nossas filhas foram emocionantes e felizes para nós. Elas haviam
escolhido por sentimento seus companheiros, e com eles tinham convivido durante longo
tempo para se certificarem da boa escolha. Por isto adiamos nosso retorno ao castelo por
longo ano e meio. Brigith desposou um rico comerciante da corte e Joane um duque,
senhor de muitas terras. Estávamos felizes, mas Ricardo nunca conseguiu se entender e
aceitas os bons princípios de Arthur. Na corte ,vivia acompanhado por lordes e duques
possuidores de valores fragilizados. Quando não estava esbanjando dinheiro na jogatina
ou com mulheres mundanas, se envolvia em disputas físicas e duelos com os amigos. O
pobre Arthur, sentindo-se infeliz aconselhava-o, mas Ricardo não lhe ouvia. Por vezes
castigava-o, deixando-o em seu aposento para que refletisse, mas de que adiantava?
Ricardo já tinha suas próprias idéias e objetivos, não mais respeitava o pai.
Ofegante, Sara fez uma pausa para respirar e continuou a contar amargurada:
-Quando nos preparávamos para retornar, Ricardo surpreendentemente ofereceu-lhe um
chá. Disse-lhe que com a bebida dormiria mais sereno e estaria mais disposto no dia
seguinte. Surpreendida com aquela atitude tão carinhosa, tão rara em Ricardo, também
lhe pedi um pouco do chá, mas ele me disse que só tinha feito um pouco para seu pai.
Achei estranho haver feito somente uma caneca de chá, mas nada disse. Uma hora mais
tarde, quando nosso filho se ausentara da moradia dizendo que ia se despedir de alguns
amigos, Arthur olhou-me desesperado, sentindo enorme asfixia... O seu corpo robusto e
sadio caiu instantaneamente, inerte e sem vida.
As lágrimas começaram a descer velozes com a triste lembrança, mas a duquesa
fazendo-se firme continuou:
-O velório transcorreu a noite inteira e o sepultamento com muitas honras foi pela manhã.
Só então voltei para repousar em nossa moradia na corte. Como a viagem seria naquele
dia e os poucos servos que levamos também tinham ido ao velório e sepultamento,
observei que a caneca ainda estava na copa. Não sei te explicar porque o fiz, mas restara
um pouco de chá na caneca e uma gatinha siamesa, que Ricardo ganhara de uma de
suas amigas, olhava-me suplicante pedindo o que comer. Distraidamente dei-lhe o resto
do chá e, colocando-a em meu colo para acarinhá-la, perdi-me em lembranças ternas e
tristes por longa hora numa poltrona. Despertei de minha tristeza e melancolia e percebi
que a gata ficara completamente imóvel. Fiquei perplexa ao constatar que o bicho, que
também era forte e sadio, morrera no mesmo espaço de tempo que meu querido Arthur
após tomar o chá! Em duplo sofrimento, compreendi que o meu filho assassinara
insensivelmente seu pai, o meu querido Arthur.
Gabriel estava perplexo com tudo o que ouvira. Parecia-lhe difícil crer que aquele menino,
que vira crescer tão forte, amoroso e sadio, tivesse sido capaz de matar o seu bondoso
pai. Mas voltando-se para si, prontamente a sua própria consciência acusou-o dos
inúmeros assassinatos que também cometera injustificadamente, e sentiu-se
envergonhado com a sua perplexidade diante do crime alheio. Manteve-se silencioso.
Sara indagou-lhe, mais tranqüila:
-Porque aqui viestes Gabriel?
Gabriel olhou-a piedosamente:
Desejava vê-la pois sentia-me preocupado, e prontamente aqui vim a pedido de seu filho
Orlando.
Fez uma pausa, observando o semblante entristecido de Sara e prosseguiu:
-Pediu-me que a avisasse que Ricardo assumiu o controle das propriedades e o fez
submisso ás suas atitudes. Também deseja expulsar-me da propriedade antes que inicie
o inverno.
Sara, melancólica, meneou a cabeça e disse:
-E eu nada posso fazer para impedi-lo de tantos absurdos. Estou submissa também á sua
autoridade. O que farão?
Gabriel, desejando passar-lhe confiança, disse-lhe:
-Orlando deseja ficar, fingindo-se submisso e dócil para observar-lhe os passos. Ficarei
ao seu lado até o ultimo dia do prazo que me foi dado, sei que encontraremos soluções.
Sara balbuciou. desanimada:
-Como poderá meu querido filho Orlando observar-lhe os passos, tão desprovido de visão
que é?
Gabriel carinhosamente pegou-lhe as mãos dizendo-lhe:
-Senhora duquesa Sara, tende fé, pois o seu filho Orlando milagrosamente recuperou a
visão. Já tem um ano! Porém o irmão Ricardo desconhece este fato.
O semblante da nobre dama encheu-se de jubilo, a notícia a havia feito reviver a
felicidade e, ainda que o sofrimento fosse extremo, agora tinha esperança que Orlando
honraria o nome de Arthur.
Cuidadosamente, Gabriel saiu do aposento de Sara sem ser visto, após prometer-lhe
trazer sempre notícias.Os sentimentos lhe eram confusos, sentia-se satisfeito por
perceber que ela estava bem, apesar do enorme sofrimento. Preocupava-se com Orlando
e sentia-se indignado pelo crime de Ricardo. Mas também sentia-se novamente culpado
por seus próprios crimes.
Encontrou Orlando pensativo em seu aposento, e este indagou-lhe ansioso:
-Demorastes, estivestes com a senhora minha mãe?
Gabriel, meneando afirmativamente a cabeça, sentou-se ao seu lado.
-Como está ela? Falou contigo?
Gabriel, tentando manter-se sereno, contou-lhe tudo sem nada lhe omitir. Orlando
surpreendentemente não se emocionara, mas a indignação estava em seu olhar.
Levantou-se para sair.
-Aonde vais Orlando? indagou-lhe Gabriel preocupado, percebendo a adaga em sua
cintura. O jovem olhou-o determinado e falou-lhe:
-Vou ver minha mãe. Não te preocupes, Ricardo foi para os campos com o novo capataz
e tardará para retornar.
Dizendo isto saiu prontamente a ver a sua mãe. Chegando ao aposento, bateu na porta
murmurando:
-Abre a porta, senhora minhas mãe!
Sara abriu imediatamente e, após trancá-la novamente, a emoção foi absoluta.
A imensa dor lhes era recíproca e o pranto era o mesmo,em intenso sofrimento. Durante
longa hora, nada conseguiam dizer, mas o silêncio lhes falava inúmeras coisas.
Finalmente, Orlando observou-a pela primeira vez e balbuciou emocionado:
-Como és bela minha mãe!
Sara sentia o seu sofrimento acalentado pela doce presença de seu filho, que a
acarinhava ternamente os longos cabelos.
-Senhora minha mãe, ficai tranqüila, tudo se resolverá. Deus não desampara nunca os
seus filhos.
Sara, amedrontada, falou-lhe, tocando a adaga que lhe estava na cintura:
-Não faças nenhum mal a teu irmão.
Orlando carinhosamente fixou seus grandes olhos azuis, nos olhos de Sara, dizendo:
-Esteja certa, minha mãe, que não o farei. Mas não hesitarei em atacá-lo para salvar a
minha vida, a de Gabriel e a da senhora!
Dizendo isto Orlando deixou-se ficar acalentando e reconfortando a sua mãe a tarde
inteira. Depois achou melhor despedir-se:
-Eu a amo minha mãe!
Sara abraçou-o fortemente. Sentia-se incrivelmente melhor e mais forte. Orlando, também
tomando enorme cautela, saiu do aposento de Sara e retornou ao seu, encontrando
Gabriel angustiado.
-Orlando, preocupava-me contigo. O teu irmão Ricardo mandou chamar-te já faz algum
tempo. Sem abrir totalmente a porta, disse ao seu capataz que não te sentias bem e que
estavas repousando e que assim que melhorasses descerias á biblioteca...
Orlando olhou-o mostrando o semblante triste mas imensamente sereno.
-Foi tão bom ver minha bela mãe Gabriel!
Orlando abriu a porta vagarosamente e percebeu que seu irmão Ricardo estava
tranqüilamente recostado na escrivaninha que fora de seu pai.Sentia enorme vontade de
correr até ele e indagar-lhe como fora capaz de tanto barbárie, mas controlouse.Caminhou serenamente e, tateando propositadamente uma poltrona, sentando-se
silencioso.A voz do irmão lhe surgiu rude e áspera:
-Demorastes !
Orlando, humildemente, disse-lhe:
Sentia-me mal, deitei-me para repousar um pouco.
Lorde Ricardo, levantando-se repentinamente, perguntou-lhe:
-O que decidistes? Irás para Adredanha?
Orlando, cabisbaixo, mostrando propositadamente trêmula a sua voz, falou-lhe:
-Não, Lorde Ricardo, preciso de tua proteção e de teu amparo, aqui permanecerei sendo
humilde e servil.
Orlando pode verificar discretamente o seu semblante contrariado enrubescera-se, e isto
o surpreendeu. Parecia não desejar que ele ali permanecesse!
Ricardo caminhava de um lado para o outro, enraivecido, ciente de que seu irmão não
poderia ver-lhe a expressão desgostosa. Após longo silêncio, dispensou Orlando, sem
mais nada lhe dizer.
Orlando caminhou ao seu aposento, onde narrou a Gabriel a surpreendente reação que
vira em seu irmão Ricardo.
-Não deseja que eu fique! Mas porque, Gabriel?
Gabriel rapidamente respondeu-lhe:
-Com que segurança fará suas necessárias viagens á corte e ás outras propriedades,
temendo-te a resignação e a humildade?
Fez uma pausa e prosseguiu:
-Se estou certo, com seu capataz, explorará os servos e os maltratara e, por mais que
finjas estares de acordo, nunca acreditará. Tu és uma ameaça ao seu domínio e á sua
conduta!
Olhando Orlando fixamente, finalizou:
-És, Orlando uma ameaça á sua própria consciência, que ciente está e sempre estará do
crime que cometeu!
Orlando caminhou preocupado até á grande janela e balbuciou:
-Poderá também matar-me!
Gabriel caminhou até ele e lhe disse, colocando-lhe a mão no ombro:
-Poderá também tentar fazê-lo, mas estaremos atentos.
Orlando, sentindo o calor que emanava da mão de Gabriel em seu ombro, sentiu-se
amparado e protegido. A enorme dor pela morte de seu pai e pela revelação do crime
assustador de Ricardo faziam-no extremamente fraco e sensível.
Nos muitos dias que se seguiram, Ricardo comandou a propriedade com extrema
crueldade e violência. Inúmeros servos eram punidos e castigados incessantemente. Eles
estavam inconformados com a autoridade do capataz e com a crueldade do nobre, que
haviam visto crescer em bondade e doçura por parte de seus pais.
Gabriel e Orlando continuamente saiam do castelo para auxiliar alguns servos, sem que
Ricardo e o capataz, Cláudio, descobrissem. Á noite, quando Orlando surgia para lhes dar
alimentos ou medicar-lhes as feridas, envolto numa extensa túnica alva encapuzada que
Gabriel tecera, os servos, cientes do nobre que era, o abençoavam chamando-o de "Anjo
Azul", por causa dos seus incríveis olhos azuis.
Arriscava-se demasiadamente na tarefa noturna e incessante de socorro aos servos, ou
nas constantes e diárias visitas á sua mãe, mas o irmão Ricardo mantinha-se indiferente á
sua existência ou à de sua mãe.
Durante a claridade dos dias, reinava Lorde Ricardo, maltratando, agredindo, punindo e
deixando á fome seus servos. Na escuridão das noites, reinava o nobre Anjo Azul,
amparando, consolando, alimentando e medicando os servos que lhe eram amigos!
A grande guerra finalmente assolou a Inglaterra, cobrindo todas as terras numa violência
injustificável,aniquilando temporariamente os poderes da monarquia. O jovem Ricardo,
inexperiente, não sabia como agir ou se comportar. Inquieto e covardemente,se ocultava
na biblioteca esperando meramente que as batalhas noturnas acabassem, dando-se por
satisfeito quando o castelo era novamente vitorioso sem ser invadido.
Pelas manhãs, saía friamente a contar os guerreiros mortos e os prejuízos na
propriedade. Mas logo regressava ao castelo, temeroso. Os servos, desprotegidos em
seus abrigos frágeis na enorme vila que lorde Arthur construíra, eram feridos ou mortos
freqüentemente, ainda que os invasores ambicionassem somente a destruição de toda a
monarquia.
Lorde Ricardo nem pensava na remota idéia de acolhê-los no interior das muralhas do
castelo, tal qual o seu pai , o nobre Arthur o fizera tantas vezes.
Tão pouco permitia também que o médico se ausentasse do castelo para socorrê-los.
Este somente podia cuidar da nobreza e dos guerreiros que protegiam o castelo.
Naquela noite, o ataque ao castelo parecia interminável. O nobre Orlando, angustiado
com o sofrimento dos servos que lhe eram amigos, desprotegidos em seus abrigos na
vila, foi determinado, acompanhado de Gabriel, ao aposento de Sara.
Encontraram-na pranteando imensa dor. Orlando, aflito, escutando o barulho da batalha,
abraçou-a para ampará-la. Mas Sara fitou-o dizendo:
-Teu pai esteve aqui!
Orlando que havia escutado através de Gabriel o que ocorrera com o pai de Sara e suas
comunicações, e ciente também do milagroso nascimento que tivera, em sua enorme fé
não se surpreendeu e indagou-lhe:
-Por isto choras, senhora minha mãe?
Sara meneou afirmativamente a cabeça e balbuciou trêmula ainda em pranto:
-Pediu para nos trajarmos tal qual os servos!
Respirou profundamente e prosseguiu:
-Devemos seguir prontamente para a gruta de Gabriel.
Orlando e Gabriel não lhe fizeram mais indagações, rapidamente providenciaram túnicas
iguais as de seus servos e as vestiram. Prontamente e sem hesitações rumaram pelos
corredores escuros até o pavilhão interno dos servos. Os servos que ali se encontravam
assustaram-se com suas vestes rasgadas e sujas, mas a um sinal do nobre Orlando, que
lhes era o Anjo Azul silenciaram.
Mostravam-se felizes cumprimentando a Duquesa Sara que há muito não viam,
percebendo-a sã e completamente lúcida. Rapidamente o nobre Orlando falou aos servos
que todos precisavam sair dali. Os servos confiantes, disseram-lhe que não tinham como
fazê-lo, com o ataque tão forte nas proximidades das muralhas.
Sara tranqüilamente pediu que a seguissem e rumou para a entrada da masmorra. Um de
cada vez foi caminhando para lá sem serem vistos. Na escuridão daquela noite as
atenções dos guerreiros estavam todas voltadas para o ataque. Surpreendentemente,
Sara apontou para umas pedras na parede e pediu que as tirassem. Após tirarem o
pesados blocos de pedra, todos visualizaram um corredor que seguia numa imensa
passagem subterrânea.
Todos os servos a acompanharam ,ali entrando, e somente um ficou no castelo para
recolocar as pedras na fictícia parede.A passagem era estreita e muito escura, mas um
dos servos trouxera uma pequena lamparina que dava para clarear o caminho.
Após muito caminharem, a passagem subterrânea finalizou numa imensa pedra, que
todos empurraram com extremo vigor.
A pedra deslocou-se vagarosamente e Gabriel observou, surpreendido que haviam saído
bem próximo á margem do rio.Quando o ultimo servo havia saído da passagem, a
bloquearam novamente e caminharam rapidamente, para se ocultarem na
vegetação.Observaram horrorizados que o castelo, em sua imponência havia sido
invadido e o pátio interno parecia arder em fogo .
Orlando ainda sentiu enorme impulso de ir socorrer seu irmão Ricardo, segurando
firmemente a adaga que lhe estava na cintura, mas Gabriel energicamente evitou-o.
Caminharam silenciosos e entristecidos até á gruta próxima ao lago, onde Gabriel se
ocultara certa época, e ali ficaram imóveis até o dia clarear.
Orlando sentia-se temeroso e podia sentir a mesma apreensão nos quarenta servos que
os haviam seguido.Mas falou-lhes firme tentando lhes passar segurança:
-O castelo foi dominado, e todos seremos servos de outros senhores. Devem tranqüilizarse porque eles só desejavam destruir a nobreza e isto já o conseguiram. Nesta grande
guerra todos os nobres serão destruídos e os servos serão poupados!
Dizendo isto, prontamente todos compreenderam-lhe os trajes.
Cautelosamente, Orlando pegou a adaga que seu pai lhe ofertara com amor, e cortou os
longos cabelos de Sara. Uma serva da lida, não possuía belos cabelos.Também cortou os
seus e os de Gabriel e depois guardou a adaga e os anéis de nobreza numa pedra oculta
na gruta.
Os servos olhavam-no com admiração, mas extremamente preocupados.
Sabiam que o nobre Anjo Azul corria imenso perigo se lhe fosse revelada a
nobreza.Ciente de que ali não poderiam permanecer mais tempo ocultos, Gabriel
aconselhou Orlando a caminharem até á vila dos servos, e assim fizeram.Aproximandose, puderam observar, na claridade do dia, a dor e o sofrimento no rosto de alguns servos
que haviam perdido entes queridos, amigos e companheiros.
Cautelosamente, Orlando aproximou-se consolando-os um a um e amparando-lhes no
sofrimento.Também Sara e Gabriel o fizeram, e os servos nada lhes indagavam a respeito
das pobres vestes ou dos pés descalços. Eles sempre os haviam respeitado e seriam
carinhosamente acolhidos por estes, protegidos e respeitados.
Não tardou a que surgissem alguns soldados, armados e imponentes, e como não
falavam o mesmo idioma, olharam os servos analisando-lhes as vestes, os corpos, e
depois novamente se afastaram rumo ao castelo.
Ouvia-se rumores de que os guerreiros do castelo tinham sido mortos na batalha e entre
eles estavam o cruel capataz Cláudio e Lorde Ricardo. Sara foi prontamente reverenciada
por uma senhora, e Orlando suplicou-lhe:
-Por piedade, não faça isto, seremos mortos!
A senhora compreendeu-lhe a aflição e simplesmente acompanhou a duquesa Sara a
uma humilde moradia. Sara sentiu-se tranqüila e em segurança.
Uma mão forte apoiou-se no ombro de Orlando e este, assustando-se, voltou-se,
exclamando então simpatia:
-Rui meu amigo!
Abraçaram-se fraternalmente e o servo que Gabriel havia doutrinado com dedicação
falou-lhes:
-Que fazem aqui? Porque estão assim trajados?
Orlando falou receoso:
-Se os invasores souberem que pertencemos á nobreza, nos matarão. Seremos servos tal
qual vós até que se vão!
Rui olhou-o, mostrando-se compreensivo, mas os olhos brilhavam inconformado pela
situação. Orlando distanciou-se, e foi auxiliar alguns servos feridos. Gabriel também
auxiliou a enterrar alguns mortos. E assim passou-se aquela negra manhã.
“Entramos no castelo em extrema proteção Divina. O ambiente era pesado em enorme
energia maléfica e inúmeros irmãos, repentinamente desencarnados, encontravam-se
extremamente perturbados e confusos, vagando em seu interior.Os enormes salões
haviam sido depredados e saqueados, assim como os aposentos ricamente decorados.
Alguns comandantes alimentavam-se fartamente no salão de refeições e podíamos
escutar-lhes a euforia. Meu mentor Ricardo olhou-me fixamente:
-Sabes o que eles dizem Lucas?
Olhei-o, espantado:
-Não consigo compreender-lhes o dialeto!
Meu mentor,compreendendo-me a dificuldade , falou-me serenamente:
-Estão comentando entre si a alegria da conquista, e mostram-se indignados por somente
haverem encontrado um lorde, pois perceberam pelos aposentos que na propriedade
tinham mais três. Dizem que os descobrirão pela tarde.
Incompreensivelmente, senti-me preocupado com a segurança da duquesa Sara, de
Lorde Orlando e Lorde Gabriel, e murmurei pensativo:
-Ricardo, não podemos auxiliá-los?
Meu mentor manteve-se silencioso, pedindo que o acompanhasse. Rapidamente
estávamos numa das celas da masmorra, onde observei atônito, o forte rapaz
ensangüentado e em estado agonizante. Ricardo olhou-me com brandura, pedindo-me
que somente emanasse pensamentos de paz e tranqüilidade. Falou-me que a apreensão,
preocupação e horror são sentimentos extremamente negativos e que eu, como um
aprendiz, precisava evitá-los. Deveria me manter sereno e harmônico para tentar auxiliar.
Meu mentor, então, aproximou-se de Lorde Ricardo, que havia sido esfaqueado no tórax.
Também haviam lhe decepado um braço e uma perna. Ali tinham vindo a pedido clemente
de seu pai Arthur, para resgatá-lo e, amparando-o, levá-lo prontamente á colônia para ser
socorrido.
Porém meu mentor rapidamente percebeu que a missão não seria fácil. Em delírio
agonizante o rapaz blasfemava contra Deus e, no extremo sentimento de dor que sentia,
culpava o pai Arthur pelo infortúnio .
Ainda que ali estivesse só, a cela estava repleta, e a nossa singela caravana de luz era
insignificante diante dos inúmeros perturbadores que atraia a si. Meu mentor solicitou
alguns reforços, pois a intensa energia maléfica ali presente nos incomodava.
Finalmente Lorde Ricardo levantou-se do corpo físico, mas o corpo espiritual também
possuía as mesmas seqüelas. Olhou ao redor e percebeu-nos atordoado a presença.
Também visualizou outros irmãos que clamavam que os acompanhasse.O Lorde parecia
confuso, e perplexo, olhou para o seu corpo no chão fétido da masmorra.
Meu mentor emanando-lhe energia confortadora falou-lhe:
-Jovem Ricardo, teu pai pediu que viéssemos buscar-te!
Surpreendido, observei a recusa daquele irmão que desejava ficar ali no castelo. Não
abandonaria o poder que ainda julgava possuir. Imediatamente, não mais podia ver-nos,
ainda que ali permanecêssemos, observando-o em intenso sofrimento. Desolados,
afastamo-nos e rumamos para a vila onde encontraríamos Sara.
Sara ainda mantinha-se recostada num pequeno assento rústico de madeira, e o meu
mentor indagou-lhe:
-Podes escutar-me, querida?
A nobre duquesa olhou ao redor rapidamente vasculhando se alguém ali estava. Ciente
de que estava só, indagou mentalmente, ansiosa:
-Arthur meu querido?
Meu mentor prontamente aproximou-se, emanando-lhe luz e energia alva, dizendo-lhe em
cândida energia mental:
-Não querida Sara, sou Ricardo, e venho para te ajudar.
Sara receosa de que alguém ali entrasse, atrapalhando a comunicação, exclamou:
-Arthur salvou-nos!
Meu mentor, que agora emanava-lhe inúmeros feixes luminosos em passe restaurador,
falou-lhe:
-Ainda não estão salvos... Orlando será traído!
Dizendo isto, meu mentor Ricardo afastou-se vagarosamente enquanto Sara indagava
verbalmente suplicante:
-Por quem? Quem trairá meu filho?
Sem mais nada poder dizer-lhe, meu mentor balbuciou serenamente:
-Ficai com Deus nobre Sara. E afastamo-nos. "
Orlando entrou rapidamente na acomodação indagando-lhe:
-Porque gritas minha mãe? Falas de traição?
Sara colocou as mãos nas faces para conter-se no enorme receio e murmurou:
-Corres perigo, serás traído! Temo por ti, querido filho!
Orlando, sentindo-se ameaçado indagou-lhe:
-Quem me trairá?
Inconformada Sara fez um meneio de negativa, dizendo-lhe não saber.
A tarde já findava quando os soldados reuniram todos os servos. Surpreendentemente um
deles falava o inglês fluentemente, e indagou hostil:
- Existe algum nobre em meio a vós?
Impressionantemente o silêncio se fez. Encontravam-se ali reunidos aproximadamente
duzentos e oitenta servos, muitas crianças, jovens, mulheres e homens, que silenciavam
em nome do nobre "Anjo Azul” que os amara como irmãos, amparando-os em inúmeras
aflições.
Em meio a eles, Lorde Gabriel Vandak, a Duquesa Sara Corleanos, e Lorde Orlando
Corleanos, imóveis e cabisbaixos sentiam-se apreensivos. Do silêncio de seus servos
dependiam suas vidas!
O soldado nervoso, aparentemente agitado em sua montaria, insistiu:
-Sabemos que neste castelo, com certeza moravam mais três nobres, onde estão?
O silêncio mantinha-se presente na fisionomia serena daqueles humildes servos. O
soldado sentia-se perplexo ao ver como todos aqueles servos persistiam em proteger os
seus senhores. Contrariado, coincidentemente aproximou-se de um jovem servo que
acompanhara os nobres na fuga do castelo, puxou-o violentamente pelo braço, e
ameaçando-lhe a vida com a espada, indagou-lhe em extrema fúria:
-Onde estão teus senhores?
O jovem manteve-se silencioso e o soldado- indignado- fez-lhe corte profundo em seu
braço direito insistindo:
-Onde estão teus senhores?
O servo sentindo enorme dor no ferimento e contorcendo as feições em sofrimento,
murmurou:
-Fugimos á noite do castelo, no auge da batalha, por uma passagem subterrânea que
existe no piso de uma das masmorras. Acompanharam-nos os dois lordes e uma
duquesa. A saída desta passagem subterrânea é próxima á margem do rio.
O jovem, ainda em sofrimento, apontou com dificuldade a direção do rio, onde se
encontrava a saída da passagem secreta. O nobre Orlando amargurou-se, ciente de que
aquele pobre amigo, temendo a morte, os denunciaria. Sutilmente segurou a mão de sua
nobre mãe Sara e olhou em aflição para seu mentor Gabriel.
Como o soldado novamente ameaçava feri-lo, o jovem servo continuou:
-Na escuridão da noite, enquanto conseguiam invadir o castelo, eles fugiram em
montarias velozes!
O soldado, que agora colocava a afiada espada em sua garganta, perguntou-lhe:
-O que me dizes é verdade?
O servo humildemente balbuciou:
-Porque nossos senhores aqui ficariam, entregues á escravidão? Posso mostrar-lhes a
passagem subterrânea!
O soldado ordenou que imediatamente a mostrasse, e o servo cambaleante e em
sofrimento pelo ferimento que muito sangrava, levou-os até o castelo e mostrou-lhes a
passagem oculta sob as pedras, no piso, de uma das masmorras.
Os soldados sob os olhares atentos de seus comandantes, prontamente concluíram que o
servo lhe dizia a verdade, e que os nobres covardemente tinham fugido a galope
aproveitando-se da escuridão.
Um dos comandantes argumentou, rindo em seu idioma: "...Se eu fosse um nobre deste
castelo, também não optaria em ficar em meio a estes servos. Com certeza também
fugiria!"
Certo disto, ordenou aos soldados que imediatamente vasculhassem todas as estradas e
trilhas da propriedade, e os trouxessem vivos ou mortos.
Gabriel viu que o jovem servo retornava só para a vila. O nobre Orlando correu em sua
direção para auxiliá-lo, pois já perdera muito sangue. Amparou-o num abraço repleto de
gratidão, levando-o imediatamente para uma das humildes moradias. Lá, limpou e cuidou
de seu ferimento, indagando-lhe como se chamava. O jovem respondeu-lhe sereno:
- Chamo-me Carlos!
O jovem Lorde Orlando, entristeceu-se deixando que as lágrimas descessem em suas
faces em enorme sentimento de culpa, ao perceber que em função do profundo corte,
aquele jovem estava definitivamente impossibilitado de mover a sua mão.
O humilde servo, olhou para os incríveis olhos azuis de seu nobre e percebendo que eles
lacrimejavam culpa e gratidão, murmurou-lhe:
-Não chores nobre Anjo Azul, demos graças ao Criador por nossas vidas.
O nobre deixou-se cair ao solo de joelhos, perplexo com a resignação e a humildade
daquele jovem, e orou fervorosamente junto com ele, dando graças pelas inúmeras
bênçãos que havia recebido em sua vida.
Os nobres, trabalhando arduamente na lida nos campos, muito haviam sofrido com os
maus tratos que recebiam, e aos quais não estavam acostumados. O trabalho lhes era
difícil e penoso o dia inteiro.
Lorde Gabriel Vandak, que ainda possuía o corpo robusto e forte, inúmeras vezes no
cansaço normal da idade, era violentamente castigado por sua falta de produtividade no
cultivo.
Lorde Orlando Corleanos resignara-se á nova vida servil, mas indignava-se
continuamente com a violência e os maus tratos. Trabalhava incessantemente durante o
dia inteiro nos campos de cultivo e, á noite, abdicava de seu repouso para auxiliar os seus
companheiros com imenso amor. O "Anjo Azul" sobrevivia, reinando incessantemente nas
noites sombrias, oferecendo todo o amparo a seus irmãos.
A duquesa Sara, sentia-se profundamente orgulhosa do filho ao qual concedera a
oportunidade da vida, e a dor não mais lhe atormentava o coração. Apesar do trabalho
rude, nas colheitas de frutas e verduras, sentia-se bem. Por vezes encontrava seu nobre
filho á noite, e os seus olhos incrivelmente azuis pareciam clarear a vida de todos aqueles
dos quais se aproximasse, levando- lhes paz.
Oito longos anos haviam se passado em vida de escravidão, sob o domínio daqueles frios
e malévolos invasores. A guerra há muito tinha acabado, mas somente naquela manhã os
inúmeros soldados e comandantes finalmente deixavam a propriedade. A ordem lhes era
clara. "Deveriam deixar as propriedades dominadas, para que os nobres reassumissem o
seu poder e os seus títulos” Os servos receberam a notícia dos próprios soldados que os
haviam escravizado.
Na árdua lida do cultivo nos campos, e sentindo-se extremamente satisfeito, não pela
riqueza de que novamente se via proprietário, mas pela liberdade que novamente poderia
ofertar aos servos, tal qual Lorde Arthur o fizera, o jovem Lorde Orlando, com um sol
imponente erguendo-se em majestade como testemunha, ergueu a enxada e gritou
eufórico:
-Liberdade!
Gabriel e os outros servos, percebendo-lhe a felicidade completamente representada
naquele humilde gesto, ergueram também suas ferramentas de trabalho e imitaram-no a
uma só e forte voz de vida:
-Liberdade!
Era uma enorme festa que assinalava o fim de oito anos de muito sofrimento para todos.
Era o fim da escravidão, da apreensão e da dor!
Os servos caminharam para o castelo, seguindo o seu senhor, Lorde Orlando, o nobre
"Anjo Azul", que abraçava a mãe. Surgiam de todos os cantos e se juntavam numa
grande multidão feliz.
Cientes de que os invasores já tinham saído da propriedade, se sentiram surpreendidos
quando se aproximaram das muralhas do castelo.
Perceberam que quatro fortes homens, montados em robustos cavalos, impunham as
suas espadas, impedindo qualquer passagem pelo portal do castelo.
Mais próximos reconheceram o servo Rui, que estava entre eles. Perplexos, todos
escutaram-no dizendo em voz autoritária:
-Eu sou Lorde Orlando Corleanos II, filho dos falecidos lorde Arthur Corleanos e a
Duquesa Sara Corleanos.
Fazendo uma pausa, o ambicioso servo prosseguiu:
-Único sobrevivente da família e herdeiro absoluto de todas as propriedades e títulos dos
Corleanos, assumo neste instante a posse de tudo o que me pertence!
Novamente silenciou para observar a atenção de todos ali, principalmente dos nobres, e
continuou altivo em voz forte:
-Como prova do que digo, apresento-vos o anel de nobreza de minha família, assim como
o anel de nobreza de minha mãe Sara, de meu pai Arthur e de meu irmão Ricardo!
Gabriel e Orlando observaram atônitos que o servo Rui, exibia em seus dedos os anéis
que lhe davam o direito á herdade dos Corleanos.
Também Sara estava perplexa com a traição, lembrando-se que o médico Ricardo a
alertara sobre a traição ao seu filho.
O servo Rui continuou autoritário:
Estes são os meus capatazes e eles administrarão minhas terras com rigor, punindo toda
e qualquer disciplina!
E finalizando o servo Rui ordenou que dois de seus capatazes prendessem
imediatamente os nobres Gabriel, Sara e Orlando.
Rapidamente os nobres foram levados para a masmorra, ficando reclusos numa mesma
cela.Atônitos e entristecidos, perceberam que na cela ao lado, se encontrava uma
ossada, envolta em trajes envelhecidos que pareciam ser os de Lorde Ricardo.
Nada conseguiram dizer, o silêncio calou-lhes o coração e as mentes, enquanto o sol
descia rapidamente sobre os olhares perplexos de todos os servos.
Gabriel olhou ao redor, sentindo-se frágil e impotente. O tempo havia corrido veloz, mas
lembrava-se claramente, do dia em que Lorde Arthur o tinha salvado, libertando-o daquela
mesma cela, na masmorra.
Sentia-se cansado do árduo rumo da sua vida.Contemplou o bonito jovem Orlando, que
caminhava impacientemente de um lado para o outro. Como era bom e forte!
Incrivelmente, o nobre tinha a idade da sua verdadeira liberdade e do seu empenho em
redimir-se. Desejava agora poder ajudá-lo, mas não sabia como fazê-lo. Prometera a
Lorde Arthur que sempre o protegeria de todo mal, mas ali estavam eles, presos e
imobilizados!
No seu sexagésimo aniversário, sentia-se fraco, velho e inútil. Aqueles oito anos na árdua
lida nos campos, os haviam castigado em demasia. Olhou tristemente o semblante da
bela Duquesa Sara, as suas faces já se marcavam com algumas rugas, em seus quarenta
e quatro anos de vida, e alguns de seus belos cabelos já estavam grisalhos. O corpo
mostrava cansaço, suas mãos e pés estavam extremamente calejados e em seus braços
longos arranhões mostravam a penosa lida nas colheitas dos laranjais. No intenso
trabalho, do amanhecer ao entardecer, também o nobre Orlando, com seus vinte e cinco
anos de vida, mostrava em seus músculos salientes e nos calos das mãos e pés, o
imenso esforço que a lida lhe exigira.
A pele estava escurecida em todos os seus corpos, castigados pelo sol constante e
Gabriel ainda podia sentir, no seu, as marcas do chicote, quando fraquejava no trabalho,
sentindo-se exausto.
Lembrou-se ,profundamente agradecido, das inúmeras vezes que o nobre Orlando, á
noite, surgia como um anjo azul, para lhe tratar as feridas e lhe dar água e alimento, pois
nem mesmo o corpo extremamente dolorido conseguia se alimentar, e só desejava
repouso.
Ficava muito orgulhoso da educação que dera àquele jovem, mas sentia que alguma
outra força o impulsionava a ser uma pessoa tão boa e tão justa!
Cansado, Gabriel deixou-se sentar no chão frio e úmido da cela, e, desejando devolver a
liberdade a Orlando e Sara, orou fervorosamente, humilde e em pranto, cerrando os
olhos.
-Senhor Deus, tanto errei nesta minha vida. Ignorai as imperfeições deste teu filho, porque
nada te rogo para mim. Peço-te piedade e misericórdia a estes teus filhos, que sempre
tiveram vida tão digna. Enviai teus anjos para socorrê-los, em tua infinita bondade.
Concedei-lhes a liberdade para que prossigam auxiliando. Não deixai-os, Senhor, definhar
nesta cela fria. Poderão ainda construir um império de bondade nestas terras, com seus
corações tão puros e tão repletos de amor!
Gabriel colocou as mãos sujas sobre as faces e continuou:
-Senhor Deus, castigai-me o corpo para que me redima dos imensos males que tenha
feito, mas preservai o corpo sadio deste jovem para que erga a bandeira do amor em teu
nome. Preservai a vida desta nobre senhora, para que o acalente e o ampare em vida
próspera.
Gabriel não mais conseguia prosseguir, o pranto se tornara convulsivo. O nobre Orlando
havia se abaixado a confortá-lo, dizendo:
-Apaziguai teu coração, tutor Gabriel, estamos juntos e vivos, graças a Deus Pai
Ouvindo o filho dizer isto, em extrema serenidade, também Sara, aproximou-se, pedindolhes que orassem juntos, e ali ficaram unidos em oração e nas mãos que se davam
calorosamente, agradecendo a Deus a vida e aquele lindo sol que ia repousar no
horizonte.
“Tão logo o sol havia se escondido no horizonte, um imenso grupo de tarefeiros á serviço
de Deus Pai desceu as colinas, impondo suas bandeiras de amor, paz e serenidade.
Surpreendido, observei que uma chuva de pétalas cristalinas, orvalhavam a vila dos
servos. Extasiado com a grandiosa beleza, que vislumbrava, glorifiquei a Deus por haver
me concedido mais uma vez, a engrandecedora oportunidade de acompanhar o mentor
Ricardo, em mais uma missão naquela propriedade.
Pouco a pouco, grupos de irmãos perturbadores, que haviam instalado o receio, o medo e
a acomodação nos servos, foram se afastando e se retirando da propriedade, temendo a
luminosidade que ali se expandia!
Tínhamos por missão intuir-lhes na coragem, na perseverança, na esperança... Cada um
daqueles tarefeiros de luz deveria incentivar cada um daqueles servos submissos a
erguerem-se num só grito humilde de liberdade, amor e justiça.
Passes magnéticos irradiavam-lhes forças, feixes luminosos abençoavam-nos em paz, e
as incríveis pétalas cristalinas, que permaneciam orvalhando-os , trazia-lhes a benção e a
proteção do Pai.
Revigorados e energizados, os servos paulatinamente encorajavam-se e iam se reunindo
em pequenos grupos, ansiosos por libertar aquele que lhes fora sempre um protetor, o
cândido Anjo Azul, que os salvara inúmeras vezes naqueles longos anos.
Ainda a noite não imperava sua majestade quando um grupo de oitenta homens estavam
dispostos a invadir o castelo, render os quatro impostores e libertar Lorde Orlando, a sua
mãe Duquesa Sara e o seu mentor Lorde Gabriel.
Intuídos cuidadosamente, pelos tarefeiros espirituais, haviam concluído que seria
prudente, que as crianças , as mulheres e os idosos deveriam permanecer na vila, em
segurança.
Orientados pela magnânima luminosidade dos irmãos espirituais, que os intuíam,
aguardaram em observação até que todos no castelo repousassem.
No auge de uma noite estrelada, intuitivamente foram conduzidos á discreta passagem
subterrânea, portando suas ferramentas de lida - estes seriam os seus instrumentos de
defesa, naquela batalha santa.
Extremamente emocionado, acompanhei os oitenta servos, que eram carinhosa e
fraternalmente amparados por meus irmãos da colônia. Após a longa caminhada na
passagem subterrânea, e depois de retirarem facilmente os blocos de pedra, os oitenta
servos, completamente silenciosos em seus movimentos, pareciam indecisos em como
agir, naquele piso da masmorra.
Novamente a luminosidade dos tarefeiros a serviço de Deus resplandeceu, intuindo-os.
Facilmente e sem violência, conseguiram render, um capataz que vigiava o portal da
entrada do castelo.Posteriormente, ainda conduzidos pelo intenso feixe de luz, rumaram
para os aposentos e renderam os outros impostores, entre eles o servo Rui. Sem os
agredirem, prenderam-nos firmemente em alguns assentos no imenso salão.
Sentia-me radiante, assim como todos os meus companheiros, naquela imensa caravana
de tarefeiros á serviço de Deus.Havíamos honrado a missão que nos fora dada, sem que
uma bandeira de amor, paz e serenidade fosse derrubada!
Ricardo olhou-me, incrivelmente sorridente e balbuciou:
-Olhai Lucas, também Deus nos abençoa!
Olhando para cima , naquele imenso salão, observei que uma chuva de pétalas
cristalinas, orvalhava nossos seres e transportava-nos levemente em retorno á colônia."
Os servos, sentindo-se vitoriosos, abriram as grandes janelas e os portais do castelo e
todos, mulheres, crianças e idosos, chegaram prontamente correndo, para comemorar
com eles a conquista!
Na masmorra, Gabriel, intrigado com o barulho que se ouvia, olhou para Orlando e Sara.
Os três levantaram-se e caminharam até a pequena janelinha tentando descobrir o que
acontecia.
Extremamente emocionado, Lorde Orlando verificou que os duzentos e cinqüenta servos
que haviam sobrevivido á penúria daqueles anos, levantavam com uma das mãos uma
tocha e com a outra a ferramenta da lida e gritavam num só e forte eco, olhando
fixamente na direção da masmorra:
- Liberdade!
Facilmente concluiu, que aqueles humildes e submissos servos, haviam invadido o
castelo para os libertarem. A incrível visão do imenso clarão das chamas das tochas, as
ferramentas agitando-se no ar e um só e incessante grito de liberdade, permaneceria em
suas mentes por muito tempo, como um momento abençoado.
Em extrema emoção os três nobres deram-se as mãos e deixaram-se cair de joelhos, em
agradecimento pela liberdade.
Rapidamente a cela foi aberta e, abraçando aqueles amigos que ali estavam, o nobre
Lorde Orlando desceu prontamente para abraçar e agradecer aquela multidão de amigos
e poder gritar com eles, levantando os anéis de nobreza que lhe haviam sido entregues:
-Liberdade!
Ninguém conseguiu repousar até o dia clarear, longos anos de sofrimentos haviam
findado e raiava a esperança em novos tempos para todos.
Na vida de Lorde Orlando e da Duquesa Sara abria-se uma nova etapa. Cientes do
penoso trabalho nos campos, saberiam compreender e auxiliar os servos que nestes
trabalhavam, com maior fraternidade.
A conquista era de todos e com todos tudo seria repartido!
Bonita festa se fez.
Ao redor de uma imensa fogueira, houve comida e bebida em abundância para todos,
muita dança e muita música.
No imenso salão os impostores mantinham-se comodamente presos nos assentos, até
que lorde Orlando pudesse decidir-lhes o futuro.
Gabriel sentara-se exausto, olhando a imensa festa de alegria e euforia.
A idade pesava-lhe no corpo. Em trinta e dois anos tentara se redimir de todos os males
que fizera, mas os onze anos de insensatez e crueldade ainda lhe pesavam na
consciência em imensa culpa. Sentia-se saudoso dos dezessete anos de inocência e
juventude. “Quantos mais lhe concederia Deus viver?!” Sessenta anos de existência
haviam se passado rapidamente, tal qual a pena apressada de um bom escritor. Sentia
enorme vontade de escrever a sua vida, para que inúmeros irmãos pudessem crer que
nunca é tarde demais para fazer o bem, redimindo-se de erros que hajam cometido. Mas
sentia que o tempo lhe seria insuficiente para isto, aproveitaria os anos que Deus lhe
concedesse para auxiliar, ser justo e bom, mas estava consciente que, mesmo assim,
não conseguiria apagar da sua memória, a imensa culpa que sentia, por ter tirado a
oportunidade a tantos, de viver!
Quando o sol surgiu imponente, clareando-lhes o dia, os servos, após repousarem um
pouco, foram para a lida espontaneamente.
Orlando caminhou com Sara e Gabriel ao imenso salão.O Lorde olhou o servo Rui
piedosamente, dizendo-lhe:
-Desejas ouro? Riqueza? Poder?
O servo parecia envergonhado do ato cometido baixando o semblante, e Orlando
prosseguiu:
-Dar-te-ei bons cavalos...Dar-te-ei ouro suficiente a que vivas bem. Dar-te-ei uma de
minhas grandes propriedades e para lá poderás ir prontamente! Terás o que desejastes ,
não precisavas fazer o que fizestes, bastava pedir-me. Gosto de ti e me és como um
irmão. Esquecestes-te do quanto convivemos juntos? Do quanto aprendemos unidos? Do
quanto brincamos?
Orlando aproximou-se de Rui, libertando-o das amarras e auxiliando-o a se por de pé.
-Quando recuperei a visão, descobri ao teu lado a incrível beleza do mundo que me
rodeava... Esquecestes de tudo?
Rui não conseguia olhar para Orlando.
- Rui, vai com teus amigos providenciar a viagem, enquanto vou á biblioteca manuscrever
um titulo para ti e a doação da posse de uma propriedade.
O servo estava perplexo com sua atitude e preparava-se para sair com os três aliados,
que Gabriel também libertara das amarras, quando Orlando ainda lhe disse:
-Não me desejes nenhum mal e nem tentes nada contra nossa paz. Compreendo-te
imperfeito tal qual o sou, e ainda te considero irmão.
Dizendo isto, Orlando afastou-se para providenciar a documentação, sob a enorme
admiração e orgulho de Gabriel e Sara.
Rui e os aliados foram prontamente providenciar as montarias e juntar seus pertences,
sob os olhares perplexos de alguns servos, que admiravam extraordinária bondade em
seu senhor para tê-los libertado.
Depois da partida de Rui e seus amigos, Orlando providenciou rapidamente o
sepultamento dos restos mortais de lorde Ricardo, que se encontravam naquela cela
úmida. Sentia-se piedoso pela morte tão trágica e com certeza extremamente sofrida. No
sepultamento fez-se todas as honras, como se faz ao mais nobre dos mortais.
Muito havia a ser feito nos próximos anos. O castelo precisava ser reorganizado e, em
algumas partes, construído em função da destruição pelo fogo.O animo era amplo e
irrestrito em todos e foram longos meses até que tudo estivesse adequadamente limpo e
organizado.
Lorde Orlando havia reduzido o tempo dos servos na lida nos campos e nas colheitas,
fazendo o revezamento do trabalho por turnos. Também havia providenciado calçado e
vestes novas para os servos.A comida e a bebida lhes eram farta e saudável.
Com o auxilio de Gabriel, repartira parte de sua extensa propriedade, concedendo-a aos
servos. Dividindo-a em pequenas propriedades, doou uma a cada família, onde seriam
livres a plantar, colher ou construir .
Para maior satisfação ainda daqueles servos que tanto lhe haviam sido fiéis, Lorde
Orlando colocou um médico também em uma propriedade próxima as suas. Assim, teriam
auxilio médico continuo. Também lhes doou pequena quantia para que pudessem
construir suas moradias, adquirir moveis e utensílios, que poderiam ser encomendados na
corte ou em aldeias próximas.
Periodicamente esta quantia, lhes era dada como pagamento por seu trabalho e esforço,
realizados nas terras dos Corleanos.
O empenho e o retorno eram grandiosos por parte de todos os servos, que lhe retribuíam,
em fartas colheitas.
Quando Gabriel completava mais um ano de existência, observou que em suas pernas e
braços surgiam pequenas feridas que não cicatrizavam.
Extremamente preocupado, alertou Orlando sobre os ferimentos e este acompanhou-o
prontamente á presença do médico do castelo. O médico, após analisar cuidadosamente
os ferimentos de Lorde Gabriel Vandak, balbuciou horrorizado, com grandiosa expressão
de temor:
-Lepra!
Orlando estremeceu e Gabriel imediatamente entristeceu-se. Não pelo fato de estar
gravemente enfermo, mas por estar ciente que não mais poderia ficar próximo ao seu
"filho" Orlando e á sua grande amiga Sara.
Terminaria os seus dias isolado em algum recanto,e muito só. Em cuidados extremamente
rigorosos, prontamente construiu-se uma pequena e cômoda casa próxima ao lago. Nela,
Gabriel moraria o resto de sua vida.
Na dolorosa despedida, ciente que não poderia abraçar o seu menino, Lorde Gabriel
Vandak, olhou-o com extremo amor e o pranto silencioso desceu-lhe sobre a face em
profundo e sincero sentimento.
O nobre Lorde Orlando, somente um pouco distanciado, também pranteou o seu imenso
carinho e amor aquele que lhe era um pai .
Assim Gabriel, sem palavras naquela despedida, foi para o seu novo lar, onde
periodicamente lhe seriam levados alimentos. Rapidamente, Orlando mandou limpar com
extremo cuidado o aposento de Gabriel, e depois, olhando Sara, abraçou-a intensamente
e chorou a intensa dor pela perda da proximidade daquele que lhe fizera um homem.
Condenado pela enfermidade ao isolamento, Gabriel via-se agora prisioneiro em sua
própria cela de solidão. Porém, sentia-se humildemente resignado com a enfermidade,
que lentamente ia-lhe dilacerando o corpo em chagas dolorosas.
Enganara-se no entanto que não mais veria o seu menino Orlando, ao qual criara com
imenso amor e extrema dedicação. Aquele nobre lorde, o visitava incessantemente e,
ainda que se mantivesse sentado á certa distância, passava longas tardes próximo ao seu
mentor, pedindo-lhe conselhos, contando-lhe como estava a mãe duquesa Sara e
falando-lhe da vida nas propriedades.
Gabriel sentia-se revigorado com suas visitas periódicas, e em suas ausências, era
prontamente informado pelos servos de suas viagens. Nunca lhe deixara faltar alimento,
bebida ou conforto.
Surpreendentemente,sentia-se sereno e agradecido a Deus Pai pela enfermidade, na qual
sentia-se redimir paulatinamente das inúmeras chagas que provocara ao seu redor, em
tantos irmãos. Gabriel passava os dias contemplando a natureza que o rodeava e ainda
que caminhasse com extrema dificuldade por causa dos ferimentos, freqüentemente
passeava ao redor do imenso lago, para ali refletir em sua vida, orar em agradecimento e
pedir perdão por seus erros.
A lepra lhe vinha lenta e pausadamente. Primeiro, ocasionando chagas em seus braços e
pernas. Cuidadosamente, envolvia-as com panos, para que os insetos e bichos não
fossem atraídos á carne apodrecida.
Os anos se passavam e, ainda que o estado físico de Gabriel cada dia fosse mais
deplorável, ali permanecia vivo, em vida humilde, serena e em resignação absoluta.
Lorde Orlando, certo dia ali trouxe uma linda jovem para que conhecesse. Tratava-se da
duquesa Cintia, a sua esposa. Gabriel sentia-se feliz com a alegria aparente de seu
menino, e agradecido pelo imenso carinho que sempre demonstrava nas contínuas
visitas.Percebera, no entanto, o espanto e a repulsa da bela jovem á sua enfermidade.
Não a culpava. Olhara-se também no leito do lago, e percebera-se desfigurado. Lorde
Orlando, no entanto, parecia não lhe perceber a degeneração física, tratando-o sempre
com extremo amor e a mesma simpatia. Gabriel concluía que o seu menino nele somente
via o mentor que o auxiliara, educando e acarinhando contínua e pacientemente.
Alguns anos depois Lorde Orlando, lhe trouxe o seu primogênito, para que Gabriel o
conhecesse .Era um menino forte e robusto, a quem Lorde Orlando orgulhosamente
apresentou como Gabriel Corleanos. Gabriel Vandak emocionara-se profundamente com
a homenagem carinhosa de Lorde Orlando, e fizera-lhe um meneio de amor, vertendo
lágrimas quentes, que desaguavam nas já profundas chagas em sua face.
Incrivelmente, a enfermidade poupava-lhe os órgãos básicos á sua continuidade. A visão,
a respiração e a locomoção ainda permaneciam inalteráveis. Podia caminhar com os pés
sãos, que nada possuíam, e ainda que as pernas lhe estivessem profundamente
ulceradas, conseguia caminhar lentamente.
Perdera um dos braços, completamente corroído pela lepra, mas o outro ainda lhe servia
de apoio, ao se mover com uma bengala improvisada. Os cabelos caiam-lhe nas
pequenas chagas que surgiam também no couro cabeludo. Porém, apesar das dolorosas
seqüelas da enfermidade, o sofrimento e a dor pareciam lhe ser atenuados. Percebendo
que não mais conseguiria preparar suas refeições sozinho, Lorde Orlando ordenou que
diariamente lhe fosse levado alimento quente e rico em nutrientes, e que esta refeição
fosse deixada próxima á porta de sua moradia.
Gabriel agradeceu-lhe em pranto sensibilizado, como freqüentemente o fazia quando o
seu menino o visitava. O nobre Orlando estava certo, não mais conseguiria cozinhar para
si, sem o braço que perdera.
Os anos se passaram em existência extremamente penosa. Lorde Orlando não tivera
mais filhos e quando o visitava, falava-lhe do imenso amor que sentia por sua esposa
Cintia pelo filho Gabriel. Fazia longas explanações em como o pequeno Gabriel
Corleanos era inteligente e astuto.
Gabriel percebeu nas visitas como o seu menino Orlando apresentava-se envelhecido.
Admirava-se profundamente em como havia conseguido sobreviver á enfermidade por
longos quinze anos. Também o nobre não conseguia compreender a resistência de
Gabriel, a tanta dor e sofrimento.
Certa tarde chuvosa e triste, Lorde Orlando apeou da montaria, e mostrando-se
indiferente ao tempo que o molhava, sentou-se entristecido no mesmo assento de
pedra.Gabriel o construíra próximo a uma arvore frondosa, quando ali viera morar. Em
suas visitas, o nobre ali sempre se sentava e Gabriel, a alguns metros de distância,
permanecia escutando-o defronte á sua casinha, onde também havia construído assento
confortável.
Mas naquela tarde, o Lorde estava silencioso e triste, e colocando as mãos sobre as
faces chorou convulsivamente.Gabriel sentiu um enorme impulso de caminhar até ele e
lhe dar um forte abraço, mas a enfermidade o impedia.
Olhou suas pernas e braços enfaixados. Lembrou-se de sua face completamente
desfigurada.
Lorde Azul havia lhe ofertado a túnica alva encapuzada que por muito tempo usara agindo
como o "anjo azul" ,e ainda que esta tampasse grande parte do seu corpo enfermo, não
desejava provocar maior horror em seu menino, aproximando-se.
Sentiu, no entanto, que o seu menino Orlando precisava de amparo e com extrema
dificuldade, pois a face não mais conseguia movimentar-se sem imensa dor, em função
da pele que ali já perdera, murmurou-lhe :
-Que acontece querido Orlando?
O nobre Orlando escutou-lhe o sussurro imperceptível e o olhou com admiração, vendolhe a extrema dificuldade de balbuciar.Tentando conter o pranto e a tristeza para lhe evitar
maior sofrimento, Orlando contou-lhe que sua mãe, a duquesa Sara, havia falecido,
naquela manhã e em angustiante dificuldade de respirar.
Gabriel entristeceu-se compreendendo-lhe a imensa dor. Emudeceu, também em pranto,
profundamente saudoso da nobre e bela duquesa que nunca mais vira naqueles
dezessete anos.
Gabriel observou o seu menino. Estava grisalho e engordara, mas os imensos olhos azuis
mantinham-se jovens e brilhantes. Completara quarenta e três anos de vida digna e
honrosa para com a família e os seus servos. Pelo que lhe contara, era um pai exemplar
para seu filho Gabriel, que completara dez anos.
Cientes de que não poderiam confortar-se num abraço, ambos ali ficaram em pranto
solidário e em sofrimento comum.Tão logo o nobre havia melhorado, ambos abraçaramse fraternalmente em sentimento, e prantearam mais uma despedida, entre tantas
naqueles longos anos.
Observou-o partindo , em seus setenta e oito anos, levantou-se com extrema dificuldade
com o auxilio da bengala e foi deitar-se em seu leito.Mesmo com a idade avançada e o
grandioso sofrimento, nunca pedira clemência a Deus, para o levar.
Deitado naquele leito, naquela mesma noite, orou pedindo-lhe fervorosamente que lhe
concedesse mais alguns anos de vida, para que pudesse conhecer o caráter e a
personalidade do herdeiro do castelo, o primogênito de Lorde Orlando o menino Gabriel
Corleanos.Só então Deus Pai poderia levá-lo, se assim fosse de sua vontade.
Surpreendentemente, Deus Pai pareceu atender-lhe o pedido, e Gabriel conseguiu viver
por mais dez anos.
Em desejo realizado, conhecera o forte jovem, que herdara os belos olhos de seu pai, e
que também passou a visitá-lo constantemente. Herdara-lhe também a bondade , o amor
e a justiça para com todos. Satisfeito e sentindo-se realizado, Gabriel, agradeceu a Deus
a imensa oportunidade que havia lhe concedido, naqueles oitenta e oito anos de vida.
Deitado em seu leito, já cego e praticamente imobilizado, cerrou os olhos e orou em
fervoroso agradecimento.
“Acompanhei o ultimo dia vida, de Gabriel, em plano físico, sentindo-me extremamente
emocionado. Admirava-o profundamente ,na brandura, na harmonia e na serenidade que
emanavam de seu ser.
Naquele ultimo ano de sua vida física, perdera a visão por completo e praticamente
arrastava-se para pegar a comida que lhe era pontualmente trazida e deixada na porta de
sua casa. Depois sentava-se com extrema dificuldade no assento defronte ao seu lar,
aguardando a visita de seus amigos incansáveis, Lorde Orlando e o jovem Gabriel, que
completara vinte anos. Gabriel ainda conseguia escutá-los em longos diálogos, mas não
conseguia mais balbuciar. Mantinha-se imóvel meneando a cabeça negativa ou
afirmativamente, mostrando-lhes que tudo compreendia e que estava atento.
Os olhos que havia perdido, naqueles últimos dias, desfiguravam-no ainda mais. E ciente
disto, Gabriel enfaixara também uma parte de sua cabeça.
Gabriel sentia que a vida se esvaía. E em última visita de seus amigos, pude observar-lhe
o sorriso de despedida, e senti que os seus amigos, em amor o haviam compreendido.
Admirava-lhe a abnegação às necessidades e as vaidades tão humana.
Encontramo-lo inerte. Havia perdido naquele dia as pernas definitivamente, e o seu braço
também não mais lhe obedecia ao comando. Sentia fome, pois não mais conseguia
levantar-se para recolher o alimento que com certeza o aguardava no mesmo lugar.
Também sentia-se sedento, mas com a garganta também ulcerada, não mais conseguiria
engolir.
Finalizara-se a sua árdua jornada. E ali estávamos para ampará-lo e resgatá-lo no
desenlace.
O meu mentor Ricardo chamou-me serenamente, necessitando de corrente magnética de
todos nós.
-Auxiliai-nos Lucas!
Muitos irmãos ali estavam em missão para socorrê-lo, e levá-lo prontamente à colônia,
onde seria atendido em centro hospitalar adequado a regenerá-lo de todas as sequelas
físicas.
Gabriel ainda orava incessantemente pedindo perdão, a enorme culpa o acompanhara
todos aqueles anos.
Meu mentor Ricardo, aproximou-se de sua cabeceira, e mandando-lhe enorme energia,
senti que o ambiente se iluminava. Observei então, radiante, que ali também entravam
seus amigos, Arthur, Sara e Carol.
O pequeno cômodo estava repleto em luminosidade, mas Gabriel ainda sofria os
tormentos da morte do corpo. Mas a alma tornava-se mais e mais leve.
Gabriel, balbuciou mentalmente pensando em seus amigos, Arthur, Carol, Sara, Orlando e
Gabriel Corleanos, e tantos outros irmãos que o haviam acompanhado em vida: “Amo
vocês!”
Então a sua mente física definhou no corpo extremamente mortificado e ensanguentado,
e a mente espiritual, visualizou o intenso clarão que dele se aproximava.
Mas Gabriel, ainda que estivesse livre de seu corpo enfermo, em sua ainda dolorosa
perturbação física, não conseguia nos perceber as formas e, percebendo a imensa
claridade que o rodeava, simplesmente orou com fervor:
“Deus Misericordioso, sinto os teus anjos tão próximos a mim, mas não consigo vê-los.
Auxiliai-me Deus Pai, ainda que não seja digno de tua bondade.”
Dizendo isto, Gabriel foi prontamente amparado fluídica e magneticamente pelos
mentores espirituais que ali estavam para auxiliá-lo. Ele sentia-se amparado e
reconfortado, mas ainda nada podia ver, a não ser o intenso clarão que o ofuscava.
Olhei para o mentor Ricardo e os demais irmãos espirituais que oravam fervorosamente
em seu auxílio e, em extrema emoção e amor por aquele irmão, eu orei piedosamente
junto com eles.
Após intensa e fervorosa corrente de oração, enquanto Gabriel era auxiliado, para que
pudesse estar pronto ao transporte pelos mentores espirituais, um enorme feixe de luz,
desceu sobre todos nós transportando-nos à colônia.
VII Parte - No Hemisfério da Regeneração
A aurora mais uma vez resplandecia em nossa linda Colônia!
Sentia-me revigorado e disposto a acompanhar o meu mentor, o irmão Ricardo, que
incansavelmente me instruía. Diariamente visitávamos o irmão Gabriel no Centro de
Recuperação, mas este ainda não conseguia perceber nossa freqüente presença.
Explicara-me o meu mentor que ele continuava sentindo as dores de seus males físicos e
dos seus inúmeros erros cometidos ao longo de sua última vida. Nada lhe era, no entanto,
imposto, mas proveniente de sua própria consciência. Não tinha conhecimento de onde
estava, porém sentia-se auxiliado e amparado.
Gradativamente estava se regenerando das sequelas de sua vida corpórea, mas somente
quando encontrasse em si a serenidade poderia perceber a realidade que o rodeava e na
qual se encontrava.
Naquela magnífica manhã, enquanto caminhávamos para o Centro de Recuperação,
encorajei-me a indagar ao meu mentor com humildade:
-Mentor Ricardo, porque o irmão Gabriel foi prontamente encaminhado para esta Colônia?
O irmão Ricardo olhou-me amigavelmente, respondendo:
-Irmão Lucas, ele arrependeu-se plenamente dos inúmeros males cometidos e tentou
redimir-se, corrigindo estes ainda em plano físico.
Fazendo uma pausa pensativo, meu mentor prosseguiu:
-Conquistou muitos amigos nesta Colônia também e estes o auxiliaram.
Sempre me surpreendia com a serenidade e a harmonia com as quais ele sempre me
explanava sabiamente a doutrina. Fiquei em silêncio e o irmão Ricardo, após algum
tempo, instruiu-me:
-Todos nós somos filhos de Deus Todo Poderoso, e o Pai, em sua Infinita Bondade,
sempre nos ampara e nos acalenta em nossas jornadas em vidas reencarnatórias. Faz-se
necessário, no entanto, que estejamos receptivos ao seu auxilio. O irmão Gabriel, nos
longos anos de arrependimento e redenção, esteve receptivo ao seu auxilio,
principalmente no momento oportuno ao seu desenlace do corpo físico. Por isto recebeu
prontamente o amparo e o auxilio de Nosso Pai .
Resolvi humildemente interromper meu mentor:
-Se o irmão Gabriel estava plenamente receptivo ao auxilio, porque há longo ano não
consegue reconhecer onde se encontra?
O mentor Ricardo parou a caminhada e colocando-me a mão no ombro, sorriu-me
fraternalmente, explicando:
-Apesar de o irmão Gabriel estar humilde e receptivo ao auxilio de Nosso Pai, ainda muito
se atormenta com o sofrimento que teve em plano físico e ainda muito se culpa pelos
males que ocasionou. Estando receptivo ao auxilio do Bom Deus, o obteve prontamente,
mas é necessário que consiga o seu próprio equilíbrio para que o compreenda.
Dizendo isto o irmão Ricardo abriu o imenso portão que nos dava acesso a extensos
pátios magnificamente floridos. Havíamos chegado ao Centro de Recuperação. Avistamos
a imensa e acolhedora moradia alva. Durante aquele ano, constantemente ali estávamos,
mas eu não conseguia deixar de contemplar a grandiosa beleza e a plena paz que aquele
Pronto Socorro emanava.
Sentia-me inexplicavelmente sereno e não conseguia parar de orar em agradecimento ao
Pai pelas incessantes oportunidades ao aprendizado.
Caminhamos silenciosos pelos corredores aromatizados e entramos no quarto onde o
irmão Gabriel se encontrava. Forte luminosidade emanava-lhe o corpo espiritual, ainda
adoecido por inúmeras sequelas de seu corpo físico.
Percebi que estava mais forte e aparentemente mais saudável. A respiração não lhe era
mais ofegante e desesperada, mas era serena e pausada. Falei, feliz:
-Melhorou significativamente de ontem para hoje!
Meu mentor nada me disse, e para minha completa surpresa, falou num tom determinado:
-Acorda irmão Gabriel!
Observei que ele entreabriu os olhos, sentindo-se incomodado com a claridade que lhe
emanava o corpo. Olhou ao redor com dificuldade e percebeu estar num leito hospitalar,
no qual lindas flores surgiam-lhe nas duas amplas janelas e um céu magnificamente azul
dizia-lhe ser dia. Viu que do lado do leito, pequena mesinha acolhia uma translúcida jarra
de água fluídica.
Somente então olhou para nós, mas parecia ainda não nos distinguir corretamente as
feições. Murmurou curioso:
-Quem sois vós? Não consigo ver os vossos semblantes?
O mentor Ricardo aproximou-se e passando levemente as mãos sobre os seus olhos,
sorriu-lhe:
-Podes ver-me agora, irmão Gabriel?
Gabriel não conseguia conter-se na imensa felicidade que sentia.
-És Ricardo, o bom médico!
O meu mentor continuava sorrindo amenamente, enquanto lhe dizia:
-Sou um mero servo de Deus e um de seus filhos, tal qual tu o és, irmão Gabriel.
Colocando-lhe fraternalmente a mão no ombro, explicou-lhe meigamente:
-Estivestes por muito tempo repousando, como te sentes?
Gabriel somente então apercebeu-se do corpo que possuía. Naqueles instantes sentira-se
tão bem e tão leve que esquecera-se momentaneamente da enfermidade que o
atormentava e da enorme culpa que lhe assombrava a mente. Deixou-se entristecer em
suas dores, falando-lhes:
-Porque me auxiliam? Tantos males fiz! Porque me trouxeram para este lugar tão
confortável?
O irmão Ricardo rapidamente auxiliou-o, magnetizando em energia branda indispensável,
para que se acalmasse em seus tormentos. Então suplicou-lhe ternamente:
-Tranquilizai-te irmão Gabriel, para que não seja necessário adormecer-te novamente. Te
responderei que o auxílio provém de um Pai Misericordioso, que atendeu prontamente as
preces que fizestes, em extrema humildade e fé, quando ainda estavas em plano físico.
Reconhecestes e compreendestes as tuas imperfeições e te empenhastes em te
redimires de teus erros ainda em plano físico. Quanto a este local confortável, como
dizes, é um dos inúmeros Lares de Auxilio, nos quais Deus, Nosso Pai, acolhe os seus
filhos com infinito amor. Aqui estás para te regenerares dos males que ainda sentes,
compreendes?
Gabriel humildemente meneou a cabeça afirmativamente e, percebendo-o cerrar os olhos,
vi que inúmeras lágrimas de agradecimento a Deus fluíam de seu interior. O meu mentor
imediatamente instruiu-me a sair do quarto, era essencial que o irmão Gabriel ficasse a
sós, com o Pai.
Árduo trabalho se fez necessário por vários anos.
Na enorme culpa que sentia em sua consciência, dos seus terríveis erros em ultima vida
reencarnatória, não se julgava merecedor da benevolência de Deus Todo Poderoso. Por
longo tempo, continuamente sentia-se incomodado com o atendimento primoroso do
Centro de Recuperação, sentindo-se incessantemente culpado por estar tão bem
acomodado. Sempre que o visitava com o mentor Ricardo, surpreendia-me pela sua
incessante recusa do auxílio, em não se achar digno, enquanto inúmeros irmãos que
também visitávamos, apesar de suas inúmeras imperfeições ou males físicos, se
achavam dignos de maior compreensão.
A situação do irmão Gabriel era completamente oposta e inesperada para todos nós, que
acompanhamos a sua vida reencarnatória. Rigorosamente doutrinado por seu tutor
Manco, em plano físico, estava ciente de que existiam apenas dois extremos: o Céu, para
os bons e justos, e o inferno para os pecadores. E, julgando-se um pecador, não aceitava
e nem compreendia estar num “CÉU”.
Dizia que Deus, o Pai, deveria puni-lo em sofrimento e penúria pelo mal que fizera a
tantos. Incessantemente, tentamos fazê-lo compreender que se fazia necessária a
regeneração das seqüelas físicas e a compreensão das faltas cometidas, para depois,
então, voltar em nova etapa reencarnatória para se redimir, após grandiosa preparação
para isto na Colônia.
Durante vários anos no entanto, não aceitou o que o meu mentor tentava lhe instruir até
que, finalmente, nosso irmão Gabriel compreendesse, em equilíbrio, o auxílio que lhe era
doado.
Naquela manhã esplendorosa, indagou-nos comovido:
-Ricardo, se Deus Pai é bom e justo como me dizes, como farei para regenerar-me,
sentindo esta imensa culpa que tem me atormentado tanto?
O irmão Ricardo olhou-o fraternalmente, dizendo:
-Somos seres imperfeitos em contínuo e incessante aprendizado, em busca da nossa
evolução. Terás a possibilidade da regeneração dos inúmeros males cometidos em nova
etapa reencarnatória em plano físico, onde encontrarás todos aqueles a quem fizestes
algum mal e, assim, terás possibilidade de lhes amares verdadeiramente como irmãos.
Mas para que isto ocorra se faz necessário que compreendas que esse “inferno” do qual
tanto falas está dentro de ti, nas sequelas que não deixas cicatrizar, te julgando
merecedor de contínuo sofrimento. Nessa enorme culpa que não te deixa visualizar o
“céu” de oportunidades que Deus Pai concede a todos os seus filhos.
Fazendo uma profunda pausa, o mentor prosseguiu:
-irmão Gabriel, tens pedido ao Pai continuamente que te castigue e não percebeste que o
Pai sempre esteve ao teu lado, pedindo que te recuperasses para poder ajudar-te nos
males que sentes!
Gabriel pranteava o seu cansaço e a dor do imenso sofrimento que ali vivera durante
longos e intermináveis cinco anos.
O mentor Ricardo, aproximando-se ,emanou-lhe paz dizendo-lhe serenamente:
-Estás pronto finalmente a auxiliar-nos?
Gabriel olhou-o humildemente e balbuciou em meio ás lágrimas:
-Que devo fazer Ricardo?
O irmão Ricardo, amparando-o num carinhoso abraço mental, falou-lhe:
-Deixai que o Pai a ti venha como um amigo e não como um justiceiro, encontrai a
serenidade e a harmonia essenciais á vida, neste centro de Recuperação. Aceitai o auxilio
e o amparo como uma graça Divina, porque és um dos inúmeros filhos. Regenera-te em
teus males rapidamente para que possamos doutrinar-te e para que possas auxiliar-nos
em nossos inúmeros trabalhos nesta Colônia. Tanto a obrar por nossos irmãos!
Gabriel compreendendo finalmente o que Deus Pai lhe pedia, através das palavras
serenas de Ricardo, aceitou o auxílio.
Extremamente feliz fiquei ao vê-lo finalmente se recuperando. As inúmeras sequelas
físicas cicatrizavam espantosamente e a culpa amenizada em seu interior, havia
diminuído demasiadamente o seu sofrimento.
O longo tempo que se fizera necessário para a sua aceitação do auxílio parecia agora
veloz em sua regeneração. Gabriel estava sempre disposto a escutar ensinamentos, a
comparecer nas preces, e a fazer tudo o que fosse preciso para se recuperar prontamente
e anular aqueles anos que ali perdera, pedindo clemência em punição. Compreendia
agora que a clemência lhe chegava, em magnânima bondade de um Pai que deseja ver
seus filhos bem.
Naqueles últimos dias no Centro de Recuperação, o irmão Gabriel, já podia
tranquilamente passear nos extensos pátios floridos, sentindo-se em paz.
O mentor Ricardo disse-me, no entanto, que ali teria que permanecer mais alguns dias e
somente então, poderia acompanhá-los até um lar na Colônia.
Não compreendi o motivo prontamente, percebia-o saudável, forte e possuidor de imensa
serenidade. Disposição não lhe faltava para aprender, mas naquele extenso tempo de
aprendizado, aprendera a ser paciente e a aguardar.
Certa vez, quando o irmão Gabriel estava refletindo próximo a um grande lago azul, num
dos pátios do Centro de Recuperação, veio-lhe o teste final.
Uma linda jovem de vestes longas e alvas, fez-se presente. Sorrindo-lhe indagou-lhe:
-Lembrastes de mim, irmão Gabriel?
Assustando-se com a repentina presença, Gabriel levantou o semblante, e uma imensa
luz, como a de um forte sol fulgurante, ofuscou-lhe a visão. Levantou-se, desejando
visualizar o semblante de quem o chamava tão ternamente, e reconheceu a jovem Brigith.
Não se conteve no pranto de arrependimento e ajoelhou-se aos seus pés, humildemente
envergonhado. A Irmã Brigith, amparando-o em extrema luz e paz, falou amenamente:
-irmão Gabriel, não te amargures tanto, vim aqui para auxiliar-te nas inúmeras culpas que
ainda te atormentam.
Abaixando-se próximo a Gabriel auxiliou-o a levantar-se e suplicou-lhe candidamente:
-Serenai teu coração meu querido irmão, devemos reconhecer e compreender as nossas
imperfeições mas não podemos permitir que a culpa se instaure em nossos seres,
impedindo-nos a evolução.
Fez uma breve pausa para secar-lhe fraternalmente o pranto, e depois murmurou:
-Sentemo-nos um pouco, tenho muito a explicar-te sobre nossas vidas, que te farão
compreender o que aconteceu e te atrairão á evolução.
Dizendo isto, sentaram-se lado a lado, e Gabriel sentia-se mais sereno. Porém ainda se
sentia envergonhado com sua presença.
Um imenso lago de águas cristalinas fitava-os atenciosamente, testemunho fiel do
encontro de duas vidas tão mal interpretadas em suas oportunidades reencarnatórias. A
brisa vinha-lhes suave, trazendo-lhes paz.
Olhando fixamente para o lago, como se ali visse todo o passado a Irmã Brigith lhe fez
longa narrativa de suas vidas regressas. E então concluiu:
-Precisa compreender, querido irmão Gabriel, que a culpa que sentes nada construirá,
mas tudo destruirá. Necessário se faz que se compreenda os erros para depois tentar
corrigi-los! Vivemos inúmeras vidas juntos e na última, como te contei, ali estávamos
novamente para aprendermos a amar a Deus acima de todas as coisas e a amar nossos
irmãos como a nós mesmos nos amamos . Mais uma vez, no entanto, não nos
compreendemos e, desrespeitando sentimentos, esquecemos de amar!
Brigith fez uma pausa para sorrir-lhe:
- Amar meu querido irmão Gabriel, é compreender que os inúmeros irmãos que ao nosso
redor vivem são iguais a nós mesmos, dignos de uma vida própria, em nosso amor e em
nossa fraternidade. Amá-los é o mandamento supremo de Deus, Nosso Pai, e respeitá-los
é uma consequência desse amor. Respeitar os seus pensamentos e os seus sentimentos.
Respeitar os seus erros e as suas imperfeições... Respeitar as suas atitudes. Poderíamos
ter concluído nossa missão juntos, se não houvesses faltado com o mandamento
supremo do amor! Amor e respeito emanam numa única sintonia. Não existe amor sem
respeito para com o próximo, e não existe respeito se não amarmos o próximo! Inúmeras
vezes, no entanto, somente nos vemos em nosso absoluto egoísmo... Olhamo-nos em
nossos sentimentos, em nossas vontades, seguimos os nossos pensamentos e
visualizamos somente nossos sucessos. Esquecemo-nos que ao nosso lado sempre tem
um irmão com igual direito á vida. Por vezes, nós os sufocamos, dizendo amá-los
intensamente, mas em verdade somente nos amamos! Temos tanto a aprender ainda.
Muitas e muitas oportunidades em planos físicos se farão necessárias para o pleno
aprendizado de amor!
A jovem fez uma longa pausa pensativa, e em seu silêncio escutou o pranto tênue de
Gabriel, mas prosseguiu:
-Em muitas vidas consecutivas, fizemos o mesmo. Esquecemo-nos do semelhante,
desprezando-os, agredindo-os, e rejeitando-os. Somente as nossas vontades imperavam,
aniquilando as vontades alheias. Digo-te tudo isto, meu querido irmão Gabriel, para que
compreendas que a tendência individualista ainda existe em todos nós. Sempre
retornamos para evoluirmos na imensa escola do plano físico, no incessante aprendizado
de amor, mas frequentemente, novamente erramos... Inúmeros irmãos neste instante, em
planos físicos os mais diversos, julgam-se completamente bons e justos, acreditam estar
em evolução, mas se olharem com neutralidade e consciência plena para os lados,
perceberão prontamente que ao seu redor existem inúmeros irmãos que
propositadamente ignoram em seus próprios interesses, e que estes rastejam
mendigando-lhes amor e, consequentemente, respeito!
A Irmã Brigith olhou então para o irmão Gabriel e secou-lhe as lágrimas, com um intenso
brilho fraterno em seu olhar:
-Não adianta, no entanto, mergulhares continuamente nesse sentimento de culpa. O Pai
te acolheu e te concede a oportunidade ao recomeço...aproveitai-a! Consciente de teus
erros, terás facilidade de corrigi-los!
Levantando-se a Irmã Brigith caminhou até á margem do límpido lago e sorriu-lhe:
-Teremos uma nova oportunidade de nos encontrarmos e acredito que nos
empenharemos em sermos melhores. Mas enquanto isto não acontece, olha para a
beleza intensa de cada dia! Agradece a Deus, Nosso Pai, a oportunidade do recomeço!
Sente a paz que emana do diário e infinito céu azul, sente a força do sol que te grita vida!
Se ergue no intuito do progresso e da evolução. Dizei a Deus, o Nosso Pai:" sou um ser
imperfeito, mas Tu acreditas em minha evolução, porque me concedes a vida a cada dia,
e se Tu acreditas, porque eu não posso acreditar na minha capacidade de aprender a
Amar? “ Sempre terás um irmão ao teu lado, para te auxiliar e aconselhar, nunca o Nosso
Pai deixa os filhos sós. Passa a percebê-los, a respeitá-los e a amá-los sempre!
Necessário é construir uma vida nova em amor a Deus Pai e a cada irmão. Necessário é
recomeçar!
As palavras profundas de Brigith emanavam numa intensidade harmônica plena. Gabriel
sentia que a sua culpa, que lhe feria o ser, ia abrandando e se dispersando em pequenas
partículas. Não mais se sentia envergonhado, mas sentia-se filho e pronto a recomeçar.
Balbuciou agradecido:
-Brigith! Vou recomeçar reconstruindo uma vida nova em amor a Deus Pai e a cada irmão!
A Irmã Brigith sorriu-lhe carinhosamente, sentindo-lhe o vigor de sua verdadeira vontade
em regenerar-se. Caminhando até ele, pegou-lhe as mãos fraternalmente e lhe falou:
-Fica na Paz de Deus, meu irmão Gabriel.
Dizendo isto a jovem afastou-se, tal qual levitasse pelos gramados verdejantes,
extremamente floridos, até sumir na distância.
Na manhã seguinte encontramos Gabriel finalmente apto a recomeçar. Portando a alta
que recebera, saiu em nossa companhia do Centro de Recuperação, no qual
permanecera tantos anos. Ao sairmos pelo imenso portão que separava o Centro de
Recuperação da vida na Colônia, o irmão Gabriel suspirou profundamente. Sentia-se livre
de si mesmo e caminhava determinado para o novo aprendizado, para o recomeço!
Colocou-se a observar a Colônia sentindo-se fascinado com tudo .
Perguntou, sentindo-se emocionado após longo silêncio reflexivo:
-Para onde vamos?
O irmão Ricardo, abraçando-o fraternalmente e sorrindo-lhe disse:
-Residirás conosco em Nosso Lar, até que estejas pronto para uma nova etapa.
Olhei-os distanciando-se, não mais poderia acompanhá-los, começava para mim uma
nova etapa. Meio amedrontado mas decidido, compareci ao Departamento e lá, após
despedir-me de alguns amigos da Colônia que me desejavam êxito na nova etapa
reencarnatória, apagaram-se as memórias e as doces lembranças do longo aprendizado .
Tal qual semente fértil, brotava novamente em ventre quente.
Ali recomeçava a vida!”
FIM
Agradecimento
“OBRA REALIZADA COM VERDADEIRO AMOR E RESPEITO A TODOS OS IRMÃOS,
PRINCIPALMENTE A TODOS AQUELES QUE ME ACOMPANHARAM NO ÁRDUO
APRENDIZADO DA VIDA, MAS NO RECOMPENSADOR PROGRESSO
CONQUISTADO.
A LUZ DO PAI É INFINITA !
COM AMOR
LUCAS “

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