Untitled - Marcello Cerqueira

Transcrição

Untitled - Marcello Cerqueira
MARCELLO CERQUEIRA
MEMORIAL
(euesn uMA AuToBrocnnrn)
MEMORIAL DE CONCURSO
Professor Titular de Teoria do Direito e
Direito Constitucional
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
&
Editora Revan
Copyright @ 1994 by Marcello Cerqueira
Revisdo
Wilson de Jesus Costa
Roberto Teixeira
Composigdo, Paginagdo e Capa
BAW - Editorag6o Eletr6nica
Impressdo
Graphos
Cerqueira, Marcello, 1939 -
Memorial (Quase uma autobiogrtfra de Marcello
Cerqueira) / Marcello Cerqueira. - Rio de Janeiro: Revan, 1994,
32p.
rsBN 85-7106-065-7
1994
EDITORA REVAN LTDA.
Avenida Paulo de Frontin, 163
PBX (021) 293-4495 -Fax: 273-6873
CEP 20260-010 - Rio de Janeiro
APRESENTAQAO
Al6m da prova did6tica e da apreciagSo dos titulos do candidato, o concurso para Professor Titular da
UFF exigiu o julgamento da Tese e de sua defesa, o Memorial e respectiva apresentagio oral.
O Memorial 6 o relato dos trabalhos acad€micos j6
realizados,pelo candidato e a sua perspectiva de futuros
trabalhos. E tamb6m o resumo de sua vida profissional, uma
quase-biografia. Ou melhor, dizem que o Memorial 6 o
curriculo do candidato escrito por... sua mie. IsengSo olimpica, j6 se v6.
E deve ser lido pelos amigos. Tanto assim, que amie viabilizaram
gos que o leram muito me incentivaram
grato a
a sua publicaqdo. Assim, sou especialmente
-Murilo Braga de Carvalho Junior e Jacob Kligerman (meus
compadres), e a Renato Guimardes (meu editor).
Para mim, foi tdo bom voltar como Professor Titular
i Faculdade em que me formei a tantos anos que, logo
nesta apresentaqdo, nem conv6m dizer. Vida que segue.
Marcello Cerqueira. Santa Teresa,
2l
de
julho de
1994
ormei-me advogado pela antiga Faculdade de Direi
to de Niter6i, em 1965. Deveria formar-me um ano
antes, mas o golpe de Estado de 1964 nio deixou.
Volto depois de muitos anos. Mas ji agora na expectativa de uma permandncia acad€mica duradoura. Dou como
testemunho desse caminho na minha vida meus dois riltimos trabalhos de pesquisa. A tese de concurso, "A Constituigdo e o Direito anterior: Ofen6meno da recepgdo", qve
mais adiante voltarei a referir; e o meu mais recente livro,
resultado de mais um ano de pesquisa, "A Constituigdo na
Hist6ria, Origem & Reforma " (Editora Revan, Rio de Janeiro, 1993,439 p6gs).
Desde aquilo que me fez procurar essa faculdade, at6
o sentimento que a ela me traz de volta, no curso de uma
longa e atribulada vida pirblica, sinto existir, por assim
dizer, um plano oculto que confere sentido aos eventos biogr6ficos, que o Memorial manda narrar: o da luta pelo
direito. L6 no inicio, ainda n6o aprendera com Jhering, ser
essa luta "um dever para com a sociedade". E certamente
n6o poderia saber que esse dever empresta a mais profunda legitimidade i atividade politica.
II
Comecei no movimento estudantil trabalhando na
imprensa universit6ria. Levado pelo escritor Paulo Alberto
Monteiro de Barros, hoje deputado Artur da T6vola, ingressei no jornal "O Metropolitano", 6196o da Uni6o Metropolitana de Estudantes, e que circulava aos domingos,
como encarte no jornal "Di6rio de Noticias".
Al6m do trabalho de redag6o, fui aproveitado como
revisor. Paulo Alberto sabia que eu dava aula de Portugu€s
desde 1956, no Curso Alfa de admissio, dirigido pela professora Marilia de Moura Diniz Cerqueira, minha mde.
Passei a freqiientar a gr6fica do jornal onde entrei em permanente contato profissional como os linotipistas da 6poca, que consultavam dicionirios e liam L€nin; influOncias
6
ambas por mim recebidas. Logo, vi-me na redaqio como
rep6rter policial. Dessa experiOncia resultaram-me dois
oficios: o de advogado criminal e o de escritor. O advogado, logo no inicio de sua carreira, ser6 defensor de presos
politicos, a partir da necessidade de promover a pr6pria
defesa nas Auditorias Militares. Mais tarde, ainda, meu
romance, O Almogo de Ganso, vai ser ambientado no mundo do crime dos anos sessenta, produto da experiEncia que
o jovem rep6rter guardarar.
Viveu minha geragdo uma fase muito rica em "O
Metropolitano". E que ali se reunia a "cozinha" do movimento cultural que iria agitar aqueles anos. Na seqii€ncia
da nova imprensa estudantil surgiram o cinema novo e o
teatro popular, nfcleo de um pensamento revolucion6rio
que se consolidarri na UNE e no seu Centro Popular de
Cultura (CPC). A sede fisica desse movimento entdo se
desloca do Calabouqo para a Praia do Flamengo, 132.
E que gerag5o not6vel! Os saudosos Oduvaldo
Vioninha Vianna Filho, Glauber Rocha, Anecy Rocha, Armando Costa e Leon Hirschman, que ndo est6o mais entre
n6s. Cac6 Diegues, Arnaldo Jabor, C6sar Guimardes, Davi
Neves, Joaquim Pedro, Eduardo Coutinho, Miguel Borges,
Marcos Farias, Fernando Duarte, Afonso Beato, Mario
Rocha, Nelson Pomp6ia, Roberto Pontual, Silvio Diniz
Gomes de Almeida, Helena Solber, Ana Maria Galano,
Carlos Callou, Aloisio Gordo Leite, Rui Mauro Marini,
Rog6rio Caos Duarte, Wanderley Guilherme, Carlos Estevio, Luis Werneck Vianna, Ferreira Gullar, Tereza Aragdo,
JoSo das Neves, Augusto Boal, Rog6rio Belda, e tantos e
tantos outros que, nesse momento, a mem6ria ndo me traz,
o que muito lamento.
Junto ao CPC da UNE, 6 fundada a Editora Universipor Aldo Arantes, e dirigida por Cac6 Diegues
criada
t6ria,
e logo por Herbert Betinho Jos6 de Souza. A Editora publicava o "Movimento", revista de enorme importAncia
cultural i 6poca. Ela foi dirigida por C6sar Guimaries e
por mim pr6prio.
O que era, at| ent5o, uma atividade cultural se trans-
forma em militincia politica, quando Niter6i me elege
Vice-Presidente de Assuntos Nacionais da Uniio Nacional
dos Estudantes, gestio 1963/1964. Diretoria que viria a ser
cassada e perseguida pelo golpe militar.
III
A UNE tinha enorme influ€ncia politica no contexto
da 6poca, influ€ncia que jamais recuperaria mesmo depois
do restabelecimento pleno das liberdades democr6ticas.
Eramos, entio, pouco mais de cem mil universit6rios que
nos exerciamos em clima de absoluta liberdade, 6 certo que
constrangidos aqui e ali, como o cerco da UNE, em 1962,
promovido pelo governador Carlos Lacerda, que morreria
reconciliado conosco, pois participara da "frente-ampla"
que, depois do golpe, tentaria uni-lo a Jango e a Juscelino,
numa articulagio pela volta ao Estado de Direito. Recordo-me que o "cerco" foi suspenso depois de entendimentos entre o governador e o I Ex6rcito, que cumpria ordens
do presidente Goulart, instruido por seu Ministro da Justiga, o saudoso Jodo Mangabeira, que "inventara", segundo
Jango, a tese da defesa de "pr6prio federal", exatamente o
que era a UNE, desde que fora tomada de um clube alemdo
na campanha estudantil contra o Eixo e que passara, a partir de ent6o, a ser um "bem" incorporado ao patrim6nio da
Uni6o pelo governo do primeiro Vargas.
Al6m do trabalho pr6prio no interior do movimento
estudantil com as Unides Estaduais e Diret6rios Centrais,
atrav6s de Congressos, e Encontros, Semin6rios, a UNE
articulava-se com os demais setores politicos para formar
a "Frente oper6rio-estudantil-camponesa", que se ampliava para a Frente Parlamentar Nacionalista, e nem por isso
deixava de ser um pacto estreito, mas de cujo acerto ent6o
ndo duvid6vamos. Inseria-se a UNE, na politica das reformas de base, com sua reivindicagSo especifica sobre a "reforma universitiria", e apoi6vamos as demais2. Na manhi
8
do golpe eu havia antecipadamente marcado encontro com
Vianinha. Quem conta a passagem 6 D€nis de Moraes, em
seu Vianinho cimplice da Paixdo (Editorial N6rdica, Rio
de Janeiro, 1991, p6g. l27ll28):
"Na manhd do dia 31, em meio is noticias de que
as
tropas dos Generais Olimpio Mourdo Filho e Carlos Luis
Guedes marchavam de Minas para o Rio, Vianinha bem
cedo tinha lm ponto marcado na buc6lica Praqa Nobel,
no Grajari, com Marce llo Cerqueira' Vice-Presidente da
UNE e, como ele, membro do PCB. Cerqueira vinha da
casa do Deputado Ten6rio Cavalcanti, em Duque de
Caxias, na Baixada Fluminense, para onde fora em companhia do Presidente da UNE, Jos6 Serra, por insistdncia do tamb6m Deputado Demist6clides Batista. Temiase que os dois dirigentes estudantis fossem presos a
qualquer momento. Pgr seguranga, Cerqueira e Serra
separaram-se: o primeiro foi para o Grajari e o segundo
voltou de 6nibus para a Zona Sul do Rio, onde ficaria
perambulando at6 que se reencontrassem mais tarde,
pr6ximo ao Bob's de lpanema. Vianinha e Cerqueira
conversaram sobre a situagdo do pais enquanto caminhavam at6 a casa do estudante de Medicina e simpatizante
do PCB, Jacob Kligerman, localizada a quarteir6es dali.
Kligerman se prontificou a esconder o Presidente e o
Vice-Presidente da UNE na gargonniire que mantinha
num edificio da Rua Ubaldino do Amaral, na Lapa. Sob
chuva fina. entraram no velho Volvo de Kligerman para
buscar Serra. "Foi uma viagem muito triste aquela", lem-
bra Marcello Cerqueira. "Eu me lembrava'daquela mfsica da Maisa, Meu mundo caiu.Era assim que nos sen-
tiamos. Nio que o golpe tivesse nos surpreendido, mas
s6 quando vem o desenlace 6 que termina o sofrimento".
No percurso, falaram sobre a possibilidade de haver uma
reviravolta no Rio Grande do Sul, como poderiam resistir no Rio, se era conveniente os dirigentes da UNE estabelecerem, nas pr6ximas horas, contatos para s€ exilar.
Na subida da Rua Alice, no Rio Comprido, o motor do
Volvo comegou a resfolegar. Vianinha e Cerqueira entreolharam-se apreensivos. Kligerman havia optado por
aquele trajeto para n6o ter que cortar o centro da cidade.
Como nio existia ainda o Trinel Rebougas, ligando as
Zonas Norte e Sul, restava como alternativa a Rua Alice,
que dri acesso a Laranjeiras, do outro lado do morro.
Era s6 o que faltava
disse Vianinha, suando frio.
-Cerqueira insistia para -que Kligerman n6o deixasse o
carro morrer. Ele apertou o acelerador at6 o fundo, de
olho na paisagem: soldados por todos os lados. Se o carro enguigasse, o pior dos mundos estaria i frente deles.
A sorte ajudou e o Volvo seguiu viagem.
Apanharam Serra no local combinado e foram para a
Lapa. Vianinha saltou, a caminho da UNE. Perderia de
vista os dois amigos por um bom tempo; depois de uma
semana trancados na gargonniire, Serra e Cerqueira
conseguiriam asilo junto i Embaixada da Bolivia, atrav6s
de gest6es do ex-Presidente Juscelino Kubitschekt.
IV
O exilio 6 uma prisdo sem grades. Ap6s cumprir um
tempo na Bolivia e outro em Santiago do Chile, al6m de
atender a compromissos residuais da UNE, mais longe ainda, retorno ao Rio, onde chego nos primeiros dias de janeiro de 1965. E logo deixo-me prender para "legalizar" o
retorno, como entdo se dizia.
Com a abertura do ano letivo, requeiro normalmente
minha matricula na Faculdade e curso a quinta s6rie, sem
qualquer obst6culo (muitos estudantes enfrentaram dificuldades). Passo direto em todas as mat6rias mas "fico"na oral
de Direito Penal. Os fatos que ent6o se passaram j6 os relatei mais de uma vez. Por f ltimo, ao Egr6gio Conselho de
Ensino e Pesquisa da UFF, em requerimento de 30 de outubro de 1993, nos seguintes termos:
l0
"... No final do curso' passei direto em todas
as
mat6rias, d excegio de Direito Penal, o que me deixou
preocupado. E com razdo. E que seu titular, o professor
Alvaro Sardinha, quando candidato a Reitor dessa Universidade, encontrou forte oposigio no movimento €studantil e me coube, como vice-presidente da UNE, levar ao Ministro da Educagio (Darcy Ribeiro?) e ao Presidente Jodo Goulart a nossa contrariedade i escolha do
professor Sardinha, que encabeqava a lista triplice' Tivemos 6xito e o professor Sardinha ndo foi conduzido a
um cargo que, certamente, muito almejava' Pois bem,
ndo e que fico na oral justamente com o professor Sardinha! Naquele tempo, Niter6i era servido por tr6leibus'
Tomei-o nas Barcas e a ficha do dnibus coloquei-a sob
o rel6gio (entre o rel6gio e a pele) . Naturalmente estava
de terno e gravata, como era dos usos' Quando fui sortear o ponto, o professor Sardinha perguntou-me o que
tinha em baixo do rel6gio. "A ficha do 6nibus, profesrespondi' Estava tenso por6m preparado para a
perguntoum€ o mestre. "Nenhum", respondi sem hesitar' "Perfei(o senhor est6 aprovado, pode ir
disse
tamente"
embora". Ganhei a aprovagdo e uma li96o de vida' Anos
mais tarde, em entrevista que concedi a Sebasti6o Nery,
de quem fui por muitas vezes advogado na lei de seguranga nacional, ir Revista Playboy, lembrei o epis6dio'
O professor Acrisio Ramos, na minha 6poca Secret6rio
da Faculdade, e entdo seu diretor, telefonou-me para
dizer que o professor Alvaro Sardinha tinha se emocionado com a entrevista mas dela pouco se recordava' "Fez
se1"
- "Que crime o senhor cometeu?"
prova.
o bem e o esqueceu", disse eu ao Acrisio'
Retomo meu emprego na Revista "PN", j6 extinta,
da qual eram diretores Lricio Abreu, meu compadre, o escritor benival Rabelo e o jornalista Manoel de Vasconcellos,
j6 falecido. Ao mesmo tempo, com colegas de meu bairro
ie Grajari, Gilberto Cabral e Reynaldo Gayoso, inicio-me
no oficio de advogar. Quebrar pedra, como se sabe'
ll
v
T5o logo foi possivel, o "plano oculto" revelou-se
mais uma vez. Matriculei-me no curso de doutorado na
antiga Faculdade Nacional de Direito e comecei a lecionar
Direito Administrativo na Faculdade Cindido Mendes.
Com o recrudescimento da repressSo e a Edigio do Ato
Institucional no 5 fui compelido a abandonar ambas as atividades. Jri n5o era mais o estudante que perseguiam e sim
o advogado de presos politicos. Fui preso v6rias vezes.
Mantive minha advocacia em defesa de presos politicos. Dela nio me afastei at6 o fim da ditadura. Paralelamente, passei a trabalhar no escrit6rio do not6vel advogado Jose
Leventhal. Por essa 6poca, o professor Anisio Teixeira, de
quem eu era advogado e com quem privava, desde que
Paulo Alberto namorava sua filha Ana Cristina, relag6es
que se aprofundaram no exilio comum, insistiu muito para
que eu viesse a cursar o CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS DO ENSINO DO DIREITO (FGV/UEG). E que
doutor Anisio, membro do Conselho Diretor da FundagSo
Getflio Vargas, proclamava a excel€ncia do curso. Identificava no direito tribut6rio, uma das principais segdes do
curso, boa perspectiva profissional para o seu jovem advogado que o Mestre tanto queria incentivar. O ilustre professor Cindido Mendes tamb6m colaborou para o meu ingresso no CEPED. Com doutor Anisio, me coube uma das
mais dolorosas passagens de minha vida. Certo dia, doutor
Anisio sumiu. O julg6vamos preso, seqiiestrado pela repressSo. Em seu favor, impetrei ordem de habeas corpus
junto ao Superior Tribunal Militar, inutilmente. Doutor
Anisio havia morrido em circunstincias trSgicas em um
acidente banal. Reconheci-lhe o corpo e assisti
i
sua au-
t6psia. Depois, em nome da familia, acompanhei
a
sindicincia policial que concluiu por morte acidental. Esse
doloroso epis6dio, Luis Viana Filho, em sua biografia de
Anisio Teixeira, narra quase ao final do livro: "O advogado Marcello Cerqueira, criminalista conceituado, acompat2
nhou o inqu6rito para apurar os pormenores da trag6dia
que ningu6m presenciara, e sobre a qual drividas se alastravam. Concluiu-se haver sido em acidente. Uma armadilha do destino" (p6gs. 2041205). Segui o riltimo dos conselhos do doutor Anisio, e avancei na profissSo.
VI
Essa especializagdo iria permitir-me, mais adiante, a
contratagdo, como advogado e depois Consultor Juridico,
da "lnvestimentos Brasileiros S/A - IBRASA", empresa
subsidiiiria do BANCO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO ECONOMICO - BNDE (como ent5o se chamava),
convidado por seu diretor-superintendente, um not6vel
engenheiro que, em 1990, iria romper comigo porque, na
honrosa qualidade de advogado do Doutor Barbosa Lima
Sobrinho, eu patrocinara aqio popular contra a privatizaqdo
da Companhia Siderfrgica Nacional, que ele entio presidia. Atribuiu meu patrocinio a interesses menores de um
politico e ndo aos deveres do advogado, e rompeu comigo.
Amizade que perdi, mas quem sabe a recupero?
Fiquei uns tempos no BNDE protegido pelo meu
nome completo. E que meus pais me batizaram como
Marcello Augusto Diniz Cerqueira, e na advocacia politica usava o nome simplificado de "Marcelo Cerqueira", o
que at6 hoje fago. Escapando com vida do massacre do PC
do B em S5o Paulo (197611977), Aldo Arantes 6 preso e
terrivelmente torturado. Impetro um habeas corpus em seu
favor e o jornalista Elio Gaspari, j6 viviamos a "abertura
lenta, gradual e segura", do general Geisel, consegue "furaf'a censura e sai a noticia na'oVeja", com o meu Rome
... e o meu retratoa. O SNI, entdo, "me descobre no BNDE"e
seu agente do Banco, um diretor chamado Abade, opera a
minha demissSo, atrav6s de outro diretor, que, mais tarde,
quando reuni documentos para requerer minha anistia, se
recusou a certificar o ocorrido, negando o testemunho da
verdade. Ndo me recordo do seu nome, ou dele nio me
l3
quero lembrarn mas a mim nio faltou a declangdo altiva
dos engenheiros Marcos Vianna, antigo presidente do
BNDES, e Roberto Proc6pio de Lima Neto, exatamente o
diretor que me contratara.
VII
Mas se a ditadura ainda tinha o lado sombrio da cassag6o do meu emprego, na contradigSo natural do processo politico, j6 ostentava a sua fachada aberturista, de resto
compelida a tal para nio se submeter trama de sua sujei-
i
96o pelo general Frota, Ministro do Ex6rcito por Geisel
exonerado, ap6s demitir o general Ednaldo do Comando
do II Ex€rcito, em seguida i tortura e morte do jornalista
Wladimir Herzog e do oper6rio Manoel Fiel Filho.
VIII
Desde ent6o, o advogado de presos ser6 pouco solicitado, embora o minist6rio se tenha estendido at6 o governo do general Figueiredo. E comum perguntarem aos
advogados de presos, e os tivemos t6o not6veis, quais eram
os clientes mais importantes que defenderam.
No seriado "Anos Rebeldes", que a TV Globo colono
cou
ar e que contribuiu para que a juventude cara-pintada fosse ds ruas pela deposigdo do presidente que perdera a confianga da Nag6o que enganava, seus autores me
identificaram como o advogado que teria inspirado o personagem que defendia os presos politicos na novela. Fui
eu como poderia ser, com muito mais razdo, qualquer dos
colegas. Lembro-me que as entrevistas giravam em torno
das pessoas importantes que eu defendera. E claro que eu
n6o podia sonegar-lhes os nomes mais conhecidos. Mesmo a hist6ria dos perseguidos 6 tomada a partir dos mais
importantes, embora o sofrimento a todos tenha sido comum, inclusive aos seus patronos.
t4
Outro dia, estando em Brasilia no exercicio de mide Procurador-Geral do INCRA, li nos jorfungdes
nhas
nais o convite para a missa de vinte anos do falecimento
de Raul Nin Ferreira, de quem fui advogado. Raul nem
militante era. Guardara em seu apartamento o mimeogrSfo
de um amigo, este militante; o DOI-CODI ndo acreditou
em sua hist6ria e foi ele morto, ap6s b6rbaro espancamento.
Ndo pude ir d missa, pedi d minha filha mais velha que
levasse minhas condol€ncias d mde, o pai j6 falecido. A
mie comoveu-se com a lembranga, contou-me minha filha.
Os clientes desaparecidos. Aonde estar6o Jo6o
Massena e Luis Maranhio? Em que estrela habitam? Quando redijo estas notas, recebo o convite para o lanqamento
da biografia de Giocondo Dias, o cabo Dias, antigo secret6rio-geral do Partido Comunista Brasileiro, de quem fui
advogado. Ndo posso declinar todos os nomes, sio tantos
e eles se confundem na minha mem6ria e no meu sofrimento. Mas ndo passa sem registro a lembranqa tdo viva
que me ficou de Addo Pereira Nunes, "um velho m6dico
da roqa", como ele gostava de definir-se.
E ndo seria possivel, neste Memorial, deixar sem gravar o nome de Leila Diniz. Fui seu amigo, conheci-a em
familia. inclusive pelo testemunho de sua admirdvel irmd
Baby, a cientista politica Ely Diniz, mde de Juliana, minha
filha que jri me deu uma neta. Todos sabem o que Leila
representou para a liberaqSo das mulheres de sua geraqdo,
e foi, em muitos aspectos, uma antevisdo da "nova mulher" de que j6 no inicio do s6culo falava Alexandra
Kollantai. Perseguida ap6s entrevista que concedera ao
Pasquirn (6rg5o da imprensa alternativa que receberia meu
patrocinio por muito tempo), e em fung5o dela, 6 baixada
uma nova lei de censura, que imprensa chamaria de "Lei
Leila Diniz". Escapou de ser presa e esforqos que desenvolvi junto ao entdo Ministro da Justiga permitiram um
acordo: ele suspendia a ordem de prisio e Leila teria de
depor. O que foi feito. Leila morreu, em 1972, em Nova
Delhi. A mim me coube 16 ir e resgatar seus restos morl5
tais, crem6-los e sepult6-los no Brasil. Dez anos ap6s sua
morte, dela falei em discurso na CAmara dos Deputados, e
lembro-me que colhi um aparte do deputado Roberto Freire,
um irmSo que a vida me deu de presente.
IX
A abertura me permitir6 o retorno ostensivo i vida
politica. Nio ser6 apenas a defesa dos presos e a articula96o necessariamente sigilosa dela. Naquele momento, se
inaugurava uma nova etapa da luta pelo direito. E mais
ampla.
Essa nova etapa me permitir6 o desempenho que procurei faz€-lo marcante, pela redemocratizagdo do pais, no
exercicio do mandato de deputado federal, pelo MDB do
Rio de Janeiro, na legislatura de 1979 e 1983.
Internamente, na C6mara, desde logo, fui trabalhar
na Comissio de Justiga, onde permaneci durante todo,o
meu mandato. Devo recordar, tamb6m, que logo no inicio
da legislatura, o saudoso deputado Fl6vio Marcilio, presidente da Cimara dos Deputados, constituiu, sob sua presid€ncia, uma Comissdo escolhida entre os advogados da
Casa, para propor uma Reforma i Carta de 1969. Fui membro dessa Comissio e seu Relator o eminente deputado
C6lio Borja.
Creio ter participado de todas as lutas que ent6o se
feriram. Tamb6m jri nio era mais o militante politico da
UNE, mas o calejado advogado que procurava trabalhar
para a redemocratizagdo. No livro que recentemente lancei,
o jornalista Elio Gaspari e o professor Geraldo Ataliba fazem referdncia d minha atuagdo parlamentar, que o Autor
destas notas embora a elas remeta, ndo as pode reproduzir.
No curso do mandato, publiquei alguns livros que d6o
o testemunho de minha aplicagSo.
l6
x
Penhor da Liberdade, registra a ag6o parlamentar nos
anos de 1979 e 1980. Dois saudosos amigos e not6veis brasileiros apresentam e prefaciam, respectivamente, o trabalho: o doutor Ulysses Guimardes e o Senador Teotdnio
Vilela. Os discursos serSo sempre uma intersegio entre a
politica e o direito. Se a questdo democrdtica permeia todos os temas, a anislia, por sua importincia imanente, serS
o destaque maior da primeira fase do mandato. Acalento a
esperanqa de para ela muito ter colaborado. Teot6nio e o
dr. Ulysses tamb6m se referem generosamente ao meu desempenho na CAmara.
Foi para mim um momento de grande afirmagSo como
advogado, parlamentar e cidadSo. Recebia, mesmo, manifestag6es mtltiplas nesse sentido. Mas um travo amargo
me impedia de viver o momento em toda a sua plenitude.
E que perdera meu pai no curso da campanha. "E a mem6ria de meu Pai 6 uma saudade doendo".
XI
E assim que abro meu livro Rude Trabalho, apresta96o de contas dos dois riltimos anos do mandato.
Mat6rias sobre. direito eleitoral, liberdade sindical,
critica censura, a questio racial e a questdo da mulher, o
debate sobre a UNE que renascia em que respondo a Con-
i
sulta que ent6o me fez a Unido Nacional dos Estudantes
"sobre as implicag6es legais do inqu6rito administrativo
instaurado contra seu presidente, o estudante Francisco
Xavier Alfaya, com base na Lei na 6.815/80, alterada pela
Lei no 6.964181".
Em nome da lideranga do MDB, na sessio em homenagem ao falecido Deputado Djalma Marinho, dou o meu
testemunho sobre aquele grande brasileiro. Tamb6m homenageio Glauber Rocha e Cartola, amigos que morreram.
Resistindo bravamente ao cAncer, como bravamente viveu
a vida, Teot6nio Vilela fala de sua enfermidade no Senat7
do. Respondo na Cimara manifestando-lhe a solidariedade
que n6o ficaria confinada d oposiqdo. Mesmo doente,
Teot6nio faz questio de escrever a apresentaqdo do Rude
Trahalho: e como s6o bonitas suas palavras.
Entretando, dois outros temas pela dimensdo politica deles, por assim dizer, tomardo conta do mandato. A lei
de estrangeiros e os atentados politicos.
XII
Designado Presidente da Comiss6o Mista do Congresso Nacional incumbida de examinar e dar parecer sobre
projeto de lei, enviado pelo governo federal, que dava nova
redagdo d lei de estrangeiros, e ap6s examinar a mensagem
e o anteprojeto, denunciei-o como uma manifestagdo de
atraso cultural contra os estrangeiros em geral, e em particular contra mission6rios, comunidades cientificas e refugiados do Cone Sul. (Eram ditaduras militares os governos do Chile, Paraguai, Uruguai, Argentina e Bolivia.) A
lei seria a expressdo do entendimento entre esses governos
para combater inimigos comuns.
A campanha mobilizou amplos setores da opinido
ptiblica. Meu livro Nova Lei de Estrangeiros ott Regimento Interno da Bastilha?, registra pronunciamentos que fiz,
al6m de trazer projeto alternativo das oposig6es que redigi
com o deputado Roberto Freire. Al6m das apresentaqdes
de Paulo Alberto Monteiro de Barros e do poeta Thiago de
Mello, meu compadre, e do pref6cio do padre Fernando
Bastos D'Avila, o livro mereceu uma belissima capa do
saudoso cartunista Henfil. irm6o de Betinho
XIII
Na seqii€ncia de atentados politicos que manifestaram o inconformismo dos setores militares ligados ao DOICODI com a abertura, muitos brasileiros sofreram atentados e talvez um dos mais graves tenha vitimado dona Lida,
l8
secreteria da OAB na gestdo do jurista Eduardo Seabra
Fagundes. Bancas de jornal, o Rio Centro (que chamei no
mesmo dia de "acidente de trabalho" e n6o de "atentado"),
a ABI, nada escapava i sanha dos que persistiam em manter o Pais nas sombras.
Fui vitima de dois atentados a bomba em minha casa,
em Santa Teresa. O registro dos fatos vai no livro Caddver
Barato, um retrato do terrorismo. O livro, prefaciado por
Antonio Houaiss e apresentado pelo deputado Roberto
Freire, traz Parecer com que respondi i Consulta do Doutor Ulysses Guimardes sobre a mat6ria3.
xIv
Em 1983 n5o me reelejo. Toda derrota 6 uma esp6cie
de morte. Mas segue a vida. O "plano oculto" mais uma
vez se revela: vou dar aulas de Direito Constitucional na
Faculdade C6ndido Mendes.
Dessa 6poca tenho o registro tambEm em livro: O
Deus Ferido, cujo titulo homenageia Teotdnio Vilela, enteo j6 falecido. O prefiicio 6 do professor C6sar Guimardes, um dos expoentes intelectuais de minha geragio. Nessa coletdnea de trabalhos. dou testemunho de minha vida
priblica e profissional na 6rea do direito; na qual abordo
quatro "Temas Constitucionais: l. o pluralismo e a profiss6o do advogado, 2. Parlamentarismo e Presidencialismo,
3. a Informitica e os direitos do cidadio,4. A Constituinte
levada a s6rio, e 5. Como foram convocadas as constituintes". No primeiro "tema", participo como comentador do
texto do saudoso professor Orlando Gomes sobre a "Constituigeo Econ6mica e Constituig5o Politica na Democracia
Pluralista" i X Confer6ncia Nacional da Ordem dos Advogados Brasileiros (2219184). O riltimo ("Como foram
convocadas as Constituintes") serS ampliado e servir-me6 de base para um ensaio de que mais adiante falarei.
Com a eleigdo do saudoso Doutor Tancredo Neves d
Presiddncia da Reptblica, sou convidado pelo Ministro
l9
Fernando Lyra, amigo querido e antigo colega na CAmara
dos Deputados, para exercer as fungdes de Consultor Juridico em seu gabinete. Interrompo, mais uma vez, minhas
atividades docentes.
XV
Nio era s6 a pesada rotina que a Nova Repirblica esperava do Minist6rio da Justiqa, mas a retirada do que se convencionou chamar de "entulho autoritSrio". Foram muitas
as comiss6es criadas no imbito do Minist6rio. Algumas
presidi, de outras participei, inclusive como representante
do MJ em Comiss6es Inter-Ministeriais. Quero ressaltar
apenas duas, entre tantos trabalhos que me foram cominados.
Primeiro, 6 que a Lei de Estrangeiros que tanto combatera como Presidente da Comissdo do Congresso a que
j6 me referi, seria modificada, quiseram os fados, a partir
de uma Comiss6o tdcnica que me coube presidir.
Segundo, 6 que ampliando os estudos que j6 fizera
com relagio d convocagdo das Constituintes anteriores, fui
incumbido pelo Ministro Lyra de redigir uma proposta de
convocaqdo que refletisse a posigSo dos setores mais avangados, especialmente aqueles articulados com a Ordem dos
Advogados do Brasil. Propunhamos uma Constituinte livre, soberana e exclusiva, como ent6o se dizia. Prevaleceu, contudo, a convocagio de um Congresso Constituinte, f6rmula que se aproximava, em parte, daquela empregada pelo governo Linhares para convocar a de 1945.
Em ensaio que posteriormente publiquei com apresentaqdo de Evandro Lins e Silva e Enio Silveira, e pref6cio da Raymundo Faoro, sob o titulo Notas ds Constituigdes, assim resumi a proposta:
" A novidade da presente convocagdo
em face das ante-
riores 6 que ela se dard com o Congresso Nacional em
pleno funcionamento. O que 6 apontado como dificul20
dade 6 motivo de regozijo. Antes de ser um complicador,
este 6 o fator de solugio.
O caminho ideal serri aquele que consiga reunir o Executivo e o Legislativo no processo convocatLrio, al6m
do judici6rio.
E evidente que a Constituigdo nio haveria de conter dispositivo que previsse sua pr6pria superagdo. Assim, 6
absolutamente impossivel procurar na ordem juridica em
vigor o que ela nio possui.
A f6rmula a ser encontrada deve ser a mais simples do
ponto de vista legislativo e a mais eficaz do ponto de
vista politico.
Simples projeto de lei de iniciativa do Executivo, submeteria ao Congresso Nacional a outorga de poderes
constituintes ilimitados aos representantes do povo, eleitos em 1986, para a Assembl6ia Nacional.
O mesmo projeto de lei subordinaria esta outorga a referendo popular, que se daria concomitantemente com
as eleig6es de 1986.
Nessa f6rmula estar6 sempre presente o Poder Judici6rio. E em tr€s momentos relevantes. Seja a exercitar, na
sua forma cldssica. o controle da constitucionalidade das
leis, pois a lei convocat6ria e seu referendo estio subordinados i eventual declaragio de inconstitucionalidade
pelo Supremo Tribunal Federal; seja pelo exercicio de
sua compet€ncia na regulamentagf,o da lei eleitoral; seja,
finalmente, porque competir6 i justiga eleitoral promover
as eleigdes, presidi-las, apurri-las e diplomar os eleitos.
Ndo hi que buscar velhos precedentes para impedir o
futuro."
xvI
O chamamento da agao eleitoral me iria colher em
pleno trabalho no Minist6rio da Justiga. E o apelo me chega pela chama e pela voz de Jo6o Saldanha. Caberia a ele
liderar a chapa das esquerdas i Prefeitura do Rio de Janei2l
ro, a primeira eleiqdo para as capitais de Estado ap6s encerrar-se o ciclo ditatorial. Entretanto, sua prec6ria safde
n6o the permitiria o comando da campanha. Mas aceitaria
ser candidato a vice-prefeito numa chapa por mim
encabegada. Desde logo, nossa campanha objetivaria afirmar valores e ndo procurar uma improv6vel vit6ria eleitoral, ou melhor, a vit6ria eleitoral seria exatamente a afirmaqdo de valores. Colocada assim a proposta era irrecus6vet. Corn a catorosa concord0ncia de Fernando Lyra licenciei-me no Minist6rio. A campanha realizou aquilo que
prometeu: afirmou a democracia como valor universal e
defendeu os direitos da populaqdo por uma vida melhor:
mais cidadania, menos humilhaqSo social.
XVII
Logo ap6s as eleig6es sou convidado por Raphael de
Almeida Magalhies para assumir a Consultoria Juridica do
Minist6rio de que era titular, a Previddndia Social' Diferentemente do Minist6rio da Justiga, a Consultoria da Previd€ncia ndo poderia ser naturalmente uma atividade fim'
Mas o gigantesco Minist6rio era um desafio em qualquer
de suas 6reas. A Consultoria n6o faltava trabalho' Mais uma
vez me encontro com a anistia. Dessa vez concedendo aposentadoria excepcional aos anistiados, antes subordinados
ao sistema previdenci6rio comum. Vergado sob uma asfixiante rotina e uma demanda que a confianqa do talentoso
Ministro s6 fazia acrescentar, ndo foi sem um certo alivio
que afastei-me para disputar as eleig6es ao Congresso
Constituinte.
XVIII
Apesar de colher uma das maiores votag6es do Estado, meu partido, que recusara coligag6es e tivera recusa
de outras que pleiteara, n6o alcangou coeficiente eleitoral
para eleger-me. Uma das deformag6es da lei eleitoral, entre tantas, 6 que o voto em branco 6 contado como voto
22
v6lido (primeira deformaqdo) e vai valer para a fixagdo do
coeficiente eleitoral (deformagio derivada da primeira) e
determinar, afinal, as sobras (deformagio resultante), com
o que beneficia os maiores partidos, dai por que foi feita e
mantida. Al6m disso, fui sabotado internamente. Partido
politico refne do militante mais luminoso ao elemento mais
tosco: o encapugado que se esconde atr6s da palavra companheiro. Derrotado, de qualquer forma.
xIx
No curso da campanha para a prefeitura do Rio
(1985), a Philobiblion (a mesma editora que langara "Almogo de Ganso") edita, na coleqSo prosa brasileira, um apanhado de crdnicas sobre a cidade, que eu vinha escrevendo
na seqdo Coreto da Praga do Jornal de Bairros (editado por
Milton Temer) que O GLOBO ent6o mantinha. Sob o titulo
de O Jeito do Rio, o livro vai merecer o pref6cio do saudoso Jo6o Saldanha e a apresentagdo do editor Enio Silveira.
Algumas cr6nicas inspiram epis6dios que elas evocaram e eu aproveito no romance que entSo comego a escrever, O Beco das Garrafas, de que ji referi em nota de
p6 de p6gina e que brevemente entregarei ao editor, pois
pronto j6 est6 de muito.
Alteragdes na correlagdo de forgas que sustentava o
prefeito Roberto Saturnino Braga, meu velho amigo e de
quem fora "concorrente" no pleito que ele vencera, levouo a convidar-me para integrar seu Secretariado, convite que
aceitei e que me obrigou a pedir licenga das fung6es de
advogado que jri vinha exercendo no sistema BNDES, tema
que volta a introduzir a questdo da anistia, que em seguida
me ocuparei. N6o sem antes consignar que, independentemente dos azares da fortuna, 6 sempre exemplar trabalhar
com um homem de bem.
23
xx
Pois volto a um tema que nunca abandonei e que nun-
ca me abandonou. Desde a primeira articulagdo no Congresso para fazer dela o centro da luta politica, at6 v€-la
votada e aplicada, quanta luta, meu Deus! Nas diversas
fung6es priblicas que exerci, sempre dei parecer sobre pedidos de anistia, e ao tempo em que redijo estas notas,
embora j6 nomeado Procurador-Geral do CADE, ainda ndo
me afastei do INCRA, onde o presidente da Comissio da
Anistia 6 o seu Procurador-Geral, fun96o que ainda ocupo.
Logo ap6s a votaqdo da anistia, colegas do serviqo
juridico do BNDES insistiam comigo para que requeresse
anistia. Argumentavam que facilitaria outros pedidos. Meu
caso era not6rio, assim como not6rio seria o requerente, e
aberto estaria o caminho da recuperaqdo de direitos dos ali
atingidos. N5o pude concordar, infelizmente. Seria como
se estivesse legistando em causa pr6pria, ponderei. N6o
pois a anistia 6 a mais
queria confundir a luta generosa
generosa das lutas politicas e o inicio de um outro ciclo, o
com algum tipo de interesse pessoal. E
das liberdades
nio
a requeri.
-
Mais tarde, com a promulgagdo da Emenda Constitucional que convocava eleigdes para o Congresso Constituinte, a anistia 6 revigorada e n6o tenho drividas em requerer seus beneficios e ver-me readmitido no BNDES,
como se dele ndo tivesse saido, como quer a lei.
xxI
A anistia faz, mais uma vez, manifestar o "plano oculto". Quando de sua votageo, eu mesmo na lei incluira, com
esse admir6vel legislador que 6 o senador Nelson Carneiro, a emenda que conferia anistia aos estudantes. Francamente, n6o pensava na interrupgdo do meu doutorado. Tinha presente expulsio de contemporineos do movimento
estudantil e mesmo o caso de dois alunos meus da CAndido
24
Mendes, que foram incursos no Decreto 477 e n6o mais
retornaram i graduag6o.
Como contei antes, Seg6o V, a repressdo fez-me insuport6vel a vida na Faculdade, quer recebendo; quer dando classes. Com a anistia das disposig6es transit6rias da
Constituigio em vigor, requeri seus beneficios e apresentei tese i Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Meu requerimento est5 em curso e eu tenho inabal6vel certeza juridica que o seu caminho 6 o deferimento pleno.
XXII
Antes mesmo de findar o mandato do prefeito
Saturnino Braga, volto ao contencioso do BNDES e ao meu
escrit6rio de advocacia, do qual pouco falei e onde muito
mourejei. Dessa 6poca at6 as eleig6es de 1990, produzi
muitos pareceres, comunicagdes a congressos e confer6ncias, al6m de trabalhos publicados em jornais, revistas e
livros; destes falarei adiante.
XXIII
Na passagem do ano para 1989, a trag€dia do Bateau
Mouche a todos comoveu. Epis6dio em que a ganincia e a
irresponsabilidade disputavam o cetro da "banalidade do
mal".
Dias depois da trag6dia, sou procurado em meu escrit6rio de advocacia por um antigo e brilhante aluno, o advogado JoSo Tancredo, que se especializara em responsabilidade civil e que tinha, a seu cargo, a defesa das familias das vitimas. O processo iria se desenrolar na justiga
criminal comum e na auditoria da Marinha, e precisava-se
de um advogado com experi€ncia em ambas. ("Embora
afastado de ambas?" perguntei aos meus bot6es).
Da Correiqdo Parcial que impetrei junto ao Superior
Tribunal Militar para corrigir as imperfeig6es e os desvios
corporativistas do processo na Auditoria de Marinha, e que
ndo foi provida, resultou o livro Bateau-Mouche: O Nau25
frdgio do Pr.oc'esso. Esse livro tem um significado especial
para mim. E que volto ao foro militar como acusador de
oficiais que, encobertos, ndo foram alcangados por um IPM
mistificador. Eu que tantas e tantas e tantas vezes ali comparecera para defender os presos da ditadura militar e coincidentemente na auditoria em que tramitou o processo da
UNE. Al6m de outra profunda significagSo: a apresentaqdo
do livro foi feita pelo extraordiniirio jurista Miguel Seabra
Fagundes, que o Brasil acaba de perder neste ano de 1993.
Na Auditoria Militar da Policia Estadual. esta excresc€ncia da ditadura militar que a avangada Constituigdo em
vigor nio se sabe por que manteve, acuso os policiais militares respons6veis pela chamada "Chacina na Serra", crime
hediondo que abalou a cidade de Friburgo, onde estudei,
menino ainda, no Col6gio Nova Friburgo da Fundagdo
Getf lio Vargas. Devia d cidade esse patrocinio. Dele resultou um memorial que publiquei com o nome com que o
crime ficou conhecido.
XXIV
Trabalho mais de folego e que define meu caminho
no estudo do direito serh Representagdo & Constituigdo
que a Timbre publica, em 1990. A nog5o de representagdo
politica, seu surgimento e significaqSo, ir6o dar a partida,
por assim dizer, ao livro que o editor ontem me entregou:
"A Constituiqdo da Histdria, Origem & Reforma ". Os outros capitulos de "Representagdo ..." abordam "o voto
distrital", "a medida provis6ria, " e um ensaio sobre o
"parlamentarismo " do qual uma separata ter6 vida propria, prefaciada pelo professor Waldir Pires, antigo Consultor Geral da Repriblica, ex-governador da Bahia e hoje
deputado federal por seu Estado.
26
xxv
De ent6o, minha pesquisa toma o rumo do direito
comparado e nele descubro riquezas insuspeitas para mim.
Rogo que a Egr6gia Banca aceite examinar a obra
que entrego com este Memorial. O livro 6 apresentado pelo
professor Geraldo Ataliba e prefaciado pelo professor Paulo
Bonavides, expoentes do mundo juridico brasileiro e com
muito acatamento na doutrina estrangeira.
A "orelha" e redigida pelo not6vel jornalista Elio
Gaspafi. Na quarta de capa, tamb6m comentam a obra os
professores Carlos Nelson Coutinho, C6sar Guimardes e
Leandro Konder, al6m do historiador Nelson Werneck
Sod16.
Como o Memorial tem vida autdnoma, a Egrbgia
Banca por certo conceder6 que eu aqui reproduza a Introdug6o (que chamei Necess6ria) ao metJ "A Constituigdo
na Histiria, Origem & Reforma"(...)
xxvl
A tese que submeto d Egrdgia Banca, metodologicamente dividida em duas partes: A Constituigdo e o Direito
anterior. O Fen6meno da Recepgdo , a primeira parte que
vai se desdobrar no Impeachment do Presidente, um Estudo de Caso, na sua segunda parte, procura se valer da hist6ria do direito e do direito comparado. O tema 6 trabalhado a partir de advertdncia que colhi em Kelsen e que procurei desenvolver, aproveitando suas potencialidades ao
m6ximo, at6 alcanqar o exame do caso, finalmente.
Como disse o historiador Nelson Werneck Sodr6 no
coment6rio que enviou i editora Revan sobre o meu "Constituigdo na Hi.stdria... ". "O mais importante, neste trabalho, 6 o esforgo gigantesco para inserir as normas juridicas, a cada caso, no contexto hist6rico, fora do qual elas se
tornam, tratadas apenas como t6cnica, frias e mortas (...)".
Ndo podia expressar melhor minha perspectiva de trabalho do que dela captou o insigne general.
27
O "plano obscuro" poder6 ent5o ganhar vida plena.
Ensinando e aprendendo.
XXVII
De minha atividade profissional, tenho que registrar
que exergo ainda as fungdes de Procurador-Geral do
INCRA, lamentando que a Constituigeo e as leis que regulamentaram a reforma agriria sejam mais regressivas, nio
falo da liberdade do movimento, que as leis do regime militar.
Mensagem do Presidente da Repriblica para exercer
as funq6es de Procurador-Geral do CADE, submeteu-me a
argtiiqSo em ComissSo Permanente do Senado, onde fui
aprovado por unanimidade e, em seguida, referendado pelo
Plen6rio sem nenhum voto contra. O Di6rio Oficial do dia
28 de outubro traz a minha nomeagSo pelo Presidente da
Repirblica, tudo em obediOncia ao Par6grafo Unico do Art.
14, da lei n. 8.158, de 8 de janeiro de 1991.
A Constituiqdo reserva a brasileiros com "notdvel
jur[dico"
saber
as funq6es de juizes nos Tribunais Superiores, exclusive o do Trabalho. Os ministros civis do Superior Tribunal Militar serio escolhidos entre advogados de
"not|rio saber.jurldico" (CF, Art. 123, I). Pela Constituigdo, cabe ao Senado Federal "aprovar previamente, por voto
secreto, ap6s argiiigdo pirblica a escolha de: a) magistrados, nos casos estabelecidos nesta Constituigeo ... f) titulares de outros cargos que a lei determinar" (Art. 52, lll,
CF). Esta letra (0 6 que enquadra as funq6es de Procurador-Geral do CADE que terei a honra de exercer.
XXVIII
Sem permitir-me o desprop6sito de emular com o
not6vel Cl6vis Bevil6qua, creio que estaria a salvo da critica que a ele dirigiu Pontes de Miranda6 quando reprovou
o que teria, a seu juizo, prejudicado o C6digo Civil, embora sem compromet€-lo: "um excesso de boa f6, que lhe
2E
adv6m de n6o haver advogado, nem ter sido juiz, mas somente professor". Ndo tenho condig6es de avaliar se Mestre Pontes tinha razdo ou se a prefer6ncia por Teixeira de
Freitas toldava a sua avaliagio.
De mim, pretendo trazer para a vida universitSria as
duras lides da vida.
Marcello Cerqueira,
Santa Teresa,8 de novembro de 1993
Notas
l.
Almogo de Ganso 6 apresentado por um grande brasileiro, o editor
Enio Silveira. lria mais al6m a experiOncia do jovem rep6rter. Plantonista de jornal na delegacia da Hil6rio de Gouveia, era inevit6vel o
contato corn a bo0mia da 6poca, especialmente o "Beco das Garrafas",
onde tantos cantores se langaram e se apresentavam, como a cantora
Dolores Durin, de particular afeiqio do jovem rep6rter.
2. Tamb6nr tenho notas desta 6poca, Fragmentos do "Metropolitano",
a coleqdo completa da revista "Movimento", al6m de alguns "salvados" da UNE, como notas oficiais por mim redigidas em dias que antecederam ao golpc e que sdo um primor de radicalismo. Nio renego
meu passado, antes tcnho cnorme orgulho dele. Mas creio que a avaliaqio daqucles tempos ajudou-nre a compreender a politica e, quem sabe,
influir na corrcado do rumo das forgas de esquerda depois do golpe atd
a redemocratizag6o. A dcmocracia, desde
entio, muitos de n6s entcn-
diamos como o artigo not6vel de Leandro Konder e Carlos Nelson
Coutinho, que expressa tio bcm a democracia como valor central,
inafastdvcl e pcrmancnte da aqio politica. Sobre os acontecimentos
politicos quc antcccdcram ao golpc de | 964, concedi entrevista a D€nis
("A esqucrda
e o golpc de 1964", Editora Espaqo e Tempo,
1989). Desse periodo, devo aos meus leitores o riltimo livro da trilogia
do cicfo de romance que se abre com o Alnogo de Ganso, segue com
Beco das Gurral'as c sc l'ccha c<tm l/inte anos ndo i nada.
3. Vianinha faleccu j6 faz tempo. Batistinha, recent€mente, foi assassinado em sua casa. Um crime birbaro que nio conseguimos entender seu
m6vel. Jos6 Serra e deputado lcdcral por 56o Paulo e lider do PSDB.
de Moracs
29
Jacob Kligermam, padrinho de minha flilha mais velha, € um respeitado
cirurgiio
c atualmente dirige, com enorme €xito, o llospital do Cdncer.
As pcrsonalidadcs refcridas no trecho citado estao todas mortas.
4. Na "orclha" com quc brinda o meu "A Constituigdo na Histiria", o
bravo jornalista 6lio Gaspari lembra o epis6dio da prisdo que Fleury
impds a Aldo Arantes. mas ndo lhe cita o nome.
5. "lnstauraqio dc inqudrito policial-militar (lPM) para apuragdo de
crime previsto na Lei de Seguranqa Nacional. Intelig€ncia do art. ne 54
$ 3', incs. l, ll e lll da Lei no 6.628178. Conceito de militar em servigo.
Efeitos do erro de cxecuqdo (art.37 do C6digo Penal Militar). lmpro.priedade da instauraqio. Compet€ncia da Politcia Federal" (Enenta da
Consulta do doutor Ulysses, sobre o "acidente de trabalho" do
RIOCENTRO, em 9 de junho de l98l).
6. Pontes de Miranda, Fontes e Evolugdo do Direito Civil Brasileiro,
Forense, Rio de Janeiro, 2a ed., I 98 | , p|g. 87.
30
neiro. 1993. Literatura: "ALMOCO DE GANSO" (roman-
Obras do Autor
ce), Philobiblion Livros
Por esta Editora:
"A CONSTITUICAO NA
HtsToRln. oRl(il:M & Rl:F'oRMA"( l list6ria Constitucional. [)ireito Comparado, novembro de
1993,440 pigs.) "tlECO DAS
GARRn FAS: UMA LttMBRAN-
de
Arte. Rio de Janeiro. 1985; "O
JEITO DO RIO" (crdnicas da
cidade do Rio de Janeiro),
Philobiblion Livros de Arte ,
Rio de Janeiro, 1985. No estrangeiro: "ABAIXO A PICHA-
CA (romancc, no prelo).
CAO", in "Cr6nicas Brasileiras",
Por outras Editoras:
sity Press of Florida, Fl6rida,
| 994 (Antologia) Tese: "A
University of Florida Center for
Latin American Studies, Univer-
"NOVA LIrl Dl: ITSTRANCEtROS", PLG Editora, Rio de
Janeiro, l9tll; "PENll()R DA LlBERDADE". CPCD, Brasilia,
I98I: "CADAVEN BARATO",
Editora Pallas, Rio de Janeiro,
1982: "RU DE TRA tIALHO",
CPCD, Brasilia, l98l; "0 DEUS
FERlD()", Brasilia, [:ditora Esco-
po, 1986; "RI':PRt.S1TNTACAO &
CONSTITU lqAO", Ilditora Timbre. Rio de Janeiro, 1990; "BATEAU MOUCHE: O NAUFRAGIO DO PROCESSO", EditOrA
Timbre, 1990 Ensaios: "NOTAS
A CONSTITUICAO BRASILEIRA. CoMO F'ORN M CONVOCADAS AS CoNSTITUINTIIS", Rio
de Janciro. l9lt6: "SISTITMA I)u
GOVIIRNO: PRIISI Dl:NCIALIS-
MO OU PARLAMIINTARlSMO". Rio dc Janeiro, | 990:
"CttAClNA NA SllRRA", Rio de
Janeiro, I S90: "RliF()RMA
coNSTITUCIONAL COM QUORUM RIiI)UZtI)O (i (iOLPE DF,
ESTADO", Rio de Janeiro, 1992;
..REVISAO E COLPD DE ESTA-
DO" Rio dc Janciro. 1992,
'QUIM NA() SAI]1, RIZAR
XINCA A DEUS", Rio de
Ja-
CoNSTTTUICAO g O DIREITO
ANTERIOR. O FENOMENO DA
RECEPCAO. O IMPEACHMENT
DO PRESIDENTE DA REPUBLI-
CA: UM ESTUDO DE CASO".
(Trabalho com que foi aprovado
em Concurso Pfblico de Provas
e Titulos para Professor de Teoria do Direito e Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense.)
Em preParo: "A
CONSTITUICAO NA HISTOORIGEM & REFORMA'',
Editora Revan, Segunda Edigdo
Revista e A mpli ada ; "REFORMA
DO JUDICIARIO CONTROLE
EXTERNO DA MAGISTRATU.
RA: DE VOLTA A() Pn SSADO"
RIA.
(tese); .VINTE ANOS NAO E
NADA" (romance); "SOU LOUCO POR TI CRAJAU!" (crOnicas): ..NITEROI: CRONICAS DE
UMA PAIXAO" (cronicas);
..HEMINGWAY E OS ANOS
LOUCOS" (ensaio); "MARQU ES
REBELO: A CHAVE DO ROMANCE" (ensaio); "HISTORIA
E
AUTORITARISMO NO DIRI;ITO BRASILEIRO" (hist6ria cons-
titucional).

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