DIÁRIO DA REVOLTA

Transcrição

DIÁRIO DA REVOLTA
 DIÁRIO DA REVOLTA
“O povo não é carneiro. De vez em quando, é bom a negrada saber morrer como homem.
Tem que mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do povo.”
A Tribuna
10 DE NOVEMBRO
A polícia, que recebera ordens de proibir reuniões públicas,
tenta prender um grupo de estudantes que pregava resistência à
vacinação. A população reage com pedradas e é espancada.
Ocorrem as primeiras prisões.
12 DE NOVEMBRO
Cerca de 4 mil pessoas comparecem à sede da Liga. Vicente de Souza,
Lauro Sodré e Barbosa Lima discursam, conclamando o povo à
resistência, mas aconselhando prudência. A multidão sai em passeata em
direção ao Catete, fortemente guardado. Rodrigues Alves convoca os
militares para intervir na rebelião.
13 DE NOVEMBRO
O conflito generaliza-se e assume um caráter mais violento.
A multidão lota a Praça Tiradentes e não atende à ordem de dispersar.
A cavalaria investe e o local se torna uma praça de guerra. Tiros partem
dos dois lados. A luta se espalha pelas ruas adjacentes. Pessoas caem
mortas e feridas. A população incendeia bondes, quebra combustores da
iluminação e vitrines de lojas. O centro da cidade enche-se de barricadas.
Prostitutas da Rua São Jorge entram em
choque com a polícia. O povo ataca
delegacias e o quartel da Cavalaria na
Frei Caneca. Os distúrbios se
espalham e chegam à
Tijuca, Gamboa, Saúde,
Botafogo, Laranjeiras,
Catumbi, Rio Comprido
e Engenho Novo.
“Guerra Vacino Obrigateza.”
O Malho, outubro de 1904.
Autor: Leônidas.
Acervo Casa de Oswaldo Cruz.
11 DE NOVEMBRO
A população acorre em massa para o Largo de São Francisco, onde estava
previsto um comício da Liga contra a Vacinação Obrigatória. Forças policiais e
militares ocupam o local. O confronto é inevitável. A cavalaria investe contra a
multidão, de sabre em punho, ferindo pessoas e obrigando o fechamento do
comércio. O tumulto se generaliza e atinge outras áreas do centro.
“Vacina Obrigatória.” Correio do Brasil, outubro de 1904.
Autor: Leônidas. Acervo Casa de Oswaldo Cruz.
DOMINGO SANGRENTO
14 DE NOVEMBRO
Os choques começam na madrugada,
concentrando-se principalmente no distrito do
Sacramento (proximidades da Praça Tiradentes)
e na Saúde. As barricadas do centro da cidade, reforçadas
por carroças da limpeza pública, resistem às investidas.
A polícia ataca e é rechaçada à bala. A população
incendeia e quebra bondes, ataca a barca de
Petrópolis e assalta lojas de armas.
Na Saúde, cerca de 2 mil manifestantes
entrincheiram-se na Praça da Harmonia. Revoltosos
investem contra duas delegacias. O tiroteio estende-se
por todo o dia. O povo ataca uma fábrica
de velas em São Cristóvão, o Moinho Inglez na Gamboa
“Na noite de 14.” O Malho, novembro de 1904.
Acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa.
e os gasômetros do Mangue, Vila Isabel e Botafogo.
Oficiais dissidentes reúnem-se no Clube Militar com as lideranças
da Liga. À saída, Vicente de Souza é preso. À noite, o major Gomes de Castro e o empresário
monarquista Pinto de Andrade são detidos ao tentar sublevar a Escola Preparatória e
Tática do Realengo. O general Travassos, o senador Lauro Sodré e os deputados Barbosa Lima
e Alfredo Varela levantam a Escola Militar da Praia Vermelha.
Cerca de 300 cadetes saem da Escola em direção ao Palácio
do Governo para depor o presidente. No caminho, recebem a adesão
de um esquadrão da Cavalaria e uma companhia de Infantaria.
Na Rua da Passagem, encontram-se com as tropas governamentais.
Segue-se um intenso tiroteio. O general Travassos sofre ferimentos
graves e morre dias depois. Lauro Sodré também é atingido.
A debandada é geral. Os cadetes retornam à Praia Vermelha.
O governo tivera 32 baixas, nenhuma fatal.
Os rebeldes, três mortos e sete feridos.
Grupo de cadetes da Escola Militar em 1904. Acervo particular.
O PRATA PRETA
15 DE NOVEMBRO
Três couraçados e dois cruzadores
postam-se à frente da Escola da Praia
Vermelha. O Deodoro dispara contra a laje
da Urca. Os cadetes depõem as armas.
Estava debelado o levante militar.
O conflito continua. Os maiores focos
ainda são o Sacramento e a Saúde.
As trincheiras resistem. Persistem os ataques
às delegacias policiais, ao gasômetro,
às lojas de armas. Cerca de 600 operários têxteis de três fábricas do Jardim
Botânico investem contra seus locais de trabalho e contra uma delegacia e
formam barricadas. Estivadores e foguistas percorrem empresas de navegação,
intimando-as a suspender os serviços. Os choques se estendem ao Méier,
Engenho de Dentro, Encantado, Catumbi, São Diogo, Vila Isabel, Andaraí,
Aldeia Campista, Matadouro e Laranjeiras.
Na Saúde, chamada pelos jornais de Porto Arthur, em referência à resistência
daquela fortaleza durante a guerra russo-japonesa, destaca-se a figura de
Horácio José da Silva, o Prata Preta, comandando as barricadas. Jornalistas
visitam as trincheiras na praia, na Rua da Harmonia e no Morro do Livramento
e descrevem a “multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa,
de armas ao ombro uns, de garruchas e navalhas à mostra”.
Chegam os batalhões de Minas e São Paulo. A polícia pede à
Marinha que ataque os rebeldes da Saúde pelo mar. Famílias começam
a fugir com medo do bombardeio.
“O Porto Arthur da Saúde.”
O Malho, novembro de 1904.
Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa.
“Relíquias de Porto Arthur.”
O Malho, dezembro de 1904.
Acervo Casa de Oswaldo Cruz.
ESTADO DE SÍTIO
16 DE NOVEMBRO
É decretado o estado de sítio. No Sacramento continuam
os choques entre a população e a polícia, mas com menor intensidade.
No Jardim Botânico, os rebeldes assaltam bondes e tomam a delegacia.
A fábrica de tecidos Confiança, em Vila Isabel, é atacada.
As atenções voltam-se para a Saúde. A polícia prepara uma
emboscada e prende Prata Preta. Este oferece feroz resistência,
matando um soldado e ferindo gravemente dois agentes,
e é brutalmente espancado.
O Deodoro toma posição em frente ao Mercado Velho. Tropas
do Exército e da Marinha invadem a Saúde e encontram as trincheiras
abandonadas. “Nem um tiro, um único tiro, foi empregado no ataque
e na ocupação do famoso reduto. À última hora, verificou-se que a
fortaleza, suas trincheiras (...) não passavam de uma formidável
blague”, conta o repórter de A Notícia.
O governo revoga a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola.
O DIA SEGUINTE
O governo retoma o controle da cidade, que está em ruínas.
Em todos os lugares, há marcas da revolta. Os delegados de polícia
começam a varrer as ruas, realizando prisões em massa. Acontecem
alguns incidentes esparsos: um tiroteio numa pedreira do Catete
no dia 18, ataque a uma fábrica e alguns quebra-quebras no dia 19.
O Apostolado Positivista e algumas entidades classistas, como a
Sociedade União Operária dos Estivadores, procuram os jornais,
negando qualquer associação com a rebelião.
Acima, “Na prensa nacional”.
A Avenida, dezembro de 1904.
Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa.
Mapa da Revolta da Vacina. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa.
“Dois emblemas.” O Malho,
novembro de 1904.
Acervo Casa de Oswaldo Cruz.
A CAMINHO DO ACRE
“Um progresso! Até agora se fazia isto sem ser preciso estado de sítio; o Brasil
já estava habituado a essa história. (...) Creio que se modificará o nome: estado
de sítio passará a ser estado de fazenda. De sítio para fazenda, há sempre
um aumento, pelo menos no número de escravos.”
Lima Barreto
TRINTA MORTOS, 110 feridos hospitalizados, 945 presos,
sendo 461 deportados – este foi o saldo da Revolta.
Os cadetes foram embarcados para o Rio Grande do Sul e distribuídos pelos postos da
fronteira. Ao fim do ano, foram excluídos do Exército e a Escola da Praia Vermelha foi
desativada. Das lideranças civis, só quatro foram processadas: Vicente de Souza, Alfredo Varela,
Pinto de Andrade e Artur Rodrigues.
Mas foi sobre a população pobre que a repressão se exerceu de forma brutal. A polícia
aproveitou a oportunidade para limpar a cidade, prendendo pessoas a torto e a direito pelas ruas.
Bastava ser maltrapilho ou não ter residência e emprego fixo. Seu destino era cruel: enviadas à Ilha
das Cobras, espancadas, amontoadas em navios-prisão e, sem as mínimas condições de higiene
e alimentação, deportadas para o Acre, a fim de trabalhar nos seringais. Muitos não resistiram à
viagem. Em 2 de setembro de 1905, todos os participantes da Revolta foram anistiados. Os cadetes
retornaram às fileiras militares. Já os deportados para o Acre... Estes, como disse Euclides
da Cunha, “levavam a dolorosíssima missão de desaparecerem”.
NOS DOIS PRIMEIROS MESES DE 1907, somente
duas pessoas morreram do mal amarílico no Rio de Janeiro. Em março, Oswaldo Cruz
informava ao governo: “A febre amarela já não devasta, sob a forma epidêmica, a
capital da República”. O sucesso de suas campanhas sanitárias começava a virar a
opinião pública a seu favor. Mas sua consagração só veio com o reconhecimento
internacional. Em 1907, o XIV Congresso de Higiene e Demografia de Berlim
concedeu a Oswaldo Cruz e ao Instituto de Manguinhos a medalha de ouro
pelas campanhas de saneamento do Rio. O cientista virava herói nacional. Em
1908, nova epidemia de varíola devastou o Rio de Janeiro, matando mais de
6 mil pessoas. A população acorreu em massa para os postos de vacinação...
Medalha de ouro recebida por Oswaldo
Cruz no XIV Congresso de Higiene
e Demografia, em Berlim, 1907.
Acervo Casa de Oswaldo Cruz.
“Cólera de Bexiga.”
O Degas, outubro de 1908.
Autor: Calixto.
Acervo Casa de Oswaldo Cruz.
“Nenhuma vitória mais bela registra a nossa história, porque
nenhuma jamais foi tão humana nas suas conseqüências, nem mais
brilhante na demonstração da nossa energia e capacidade científica.”
Lauro Muller