o ano dourado - Retrato do Brasil

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o ano dourado - Retrato do Brasil
RETRATO DO BRASIL | nO 12
O ANO DOURADO
CONJUNTURA 3
Ricardo Stuckert/PR
Nas páginas seguintes
A nossa pequena bolha O modesto surto de crescimento
do Brasil está ameaçado, ou por um “aborto” ou por uma
“cacetada” p. 5
Nossa doença holandesa Somos exportadores de
commodities, e seus preços se elevaram pra valer. Isso não
significa que o futuro seja nosso p. 9
Os pobres vão comer mais? No momento, de um modo
geral, no Brasil e no mundo, em função da crise inflacionária,
eles estão comendo menos p. 11
Façam o que eu mando Os americanos recomendam aos
emergentes que elevem os juros e contenham o crédito. E
soltam o crédito e abaixam os juros p. 15
Swaps cambiais do bem e do mal O Brasil se tornou um
viveiro de especialistas nas “maquinações” da nova engenharia
financeira global p. 21
A história mal contada A festejada reforma liberal americana
do fim dos anos 1970 não sintetiza o século XX nem ajuda a
entender o que virá p. 23
Lições do passado O povo tudo pode. Mas quando está
mobilizado, unido e tem um norte. Quem aponta o norte, no
entanto: PT & PSDB? p. 26
IMAGEM DA CAPA: Alcy
Julho/Agosto de 2008
Expediente
Redação
Mino Carta [ supervisão editorial ]
Raimundo Rodrigues Pereira [ coordenação ]
Armando Sartori [ edição ]
Carlos Azevedo • Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia
Mesquita • Tânia Caliari • Verônica Bercht
Colaboraram neste edição: Flávio Tonelli, Lécio Morais e
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Ana Castro • Pedro Ivo Sartori [ edição de arte ]
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O Brasil viveu um ano excepcional.
Não mais que isso. E sua situação é muito diferente da dos
outros emergentes destacados — Rússia, Índia e China
N
ão poucas vezes nos últimos
meses, o presidente da República, Luiz
Inácio Lula da Silva, tem dito que o País
passa por um momento excepcional, caracterizado pelo surgimento de condições para um desenvolvimento sustentável, diferente dos conhecidos “vôos de
galinha” das últimas três décadas,
marcadas pela estagnação e por surtos
medíocres e curtos de crescimento econômico. Na segunda quinzena de junho,
por exemplo, em Belford Roxo (RJ), na
cerimônia de comemoração dos 50 anos
da inauguração da fábrica da Bayer, ele
disse que o momento atual do Brasil se
compara ao dos “anos dourados” do fim
da década de 1950, do governo de Juscelino Kubitschek. “Quis o destino, e trabalhamos muito para isso, que, 50 anos
depois, o Brasil esteja vivendo um outro
momento de otimismo. Depois de décadas de estagnação econômica e forte concentração de renda, o Brasil cresce de forma acelerada, para todos, reduzindo desigualdades sociais e regionais históricas”.
Uma semana antes, em outra cerimônia, em São Paulo, na sede da BM&FBovespa, resultado da fusão da jovem
bolsa de mercadorias e futuros brasileira
com a tradicional bolsa de ações paulista,
ele foi ainda mais longe em seu otimismo. O ato (imagem ao alto) comemorou
a concessão do chamado “grau de investimento” ao Brasil por duas agências internacionais de avaliação de risco, uma
espécie de aval para empréstimos internacionais favorecidos por taxas de juros
mais baixas ao governo federal.
“Os mais jovens, possivelmente, não
dão importância”, disse Lula. “Mas, para
nós, que já vivemos no Brasil com crescimento zero e inflação a 80% ao mês, viver esse momento que estamos vivendo
é quase chegar perto do Paraíso. Mais um
pouco e estaremos lá”. E acrescentou que
trabalhava “com a hipótese de que a gente tenha, pelo menos, dez anos de crescimento sustentável, para que a gente possa reparar todos os males que 20 anos de
não-crescimento causaram ao País”.
Dias depois, em dois atos de lançamento de um plano agropecuário, um em
Curitiba e outro em Brazlândia (DF), com
o qual seu governo pretende enfrentar a
perspectiva de alta descontrolada nos
preços dos alimentos, o presidente se re-
feriu à crise inflacionária como uma grande oportunidade: “As pessoas estão comendo mais. A China vai comer muito
mais, a Índia vai comer muito mais, a
América Latina vai comer muito mais, o
Brasil vai comer muito mais, a África vai
comer muito mais. Temos que plantar
mais. Nós, brasileiros, sem nenhuma arrogância e sem nenhuma presunção, precisamos encarar [o momento] como uma
oportunidade extraordinária de nos
transformarmos verdadeiramente no celeiro do mundo.”
O presidente tem um estilo que se
pode chamar de festivo, exagerado. Mas
sua avaliação básica, de que o Brasil superou problemas estruturais antigos e
agora está livre para voar mais alto, é compartilhada por intelectuais destacados,
como, por exemplo, Luciano Coutinho,
presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), e Glauco Arbix, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea). “A economia brasileira
amadureceu condições de sustentação do
crescimento, e eu diria, até, de aceleração
do crescimento, que poucas economias
têm hoje no cenário global”, avalia
Coutinho. O economista enumera argumentos em defesa de seu ponto de vista.
“Primeiro, a estabilidade cambial e a
robustez externa conquistadas nos últimos
anos, superando a vulnerabilidade anterior.
Segundo, a capacidade de manter a inflação
RETRATO DO BRASIL | nO 12
em níveis baixos. Terceiro, a situação fiscal sob controle, com queda da relação
dívida pública/PIB. Quarto, um setor privado saudável, com altas taxas de rentabilidade. A massa de lucros das grandes
empresas, por exemplo, ascendeu em
2006 a 113 bilhões de reais. Em 2007
[quando saírem os resultados], esse número será ultrapassado.”
O País não está preparado
Arbix acha que o momento atual, de
fato, é excepcional. Ele destaca três pontos da conjuntura:
1. “Desde que China, Índia, Brasil e
Rússia começaram a abrir suas economias,
a força de trabalho global dobrou. Em
dez anos, cerca de 1 bilhão de novos consumidores entrarão nos mercados, graças
ao crescimento dos emergentes.”
2. “A participação dos países em
desenvolvimento nas exportações mundiais foi de mais de 40% no ano passado,
quando era de 20% nos anos 1970. Esses
países já respondem por mais da metade
da energia consumida no planeta e seus
bancos centrais são guardiões de mais de
70% das reservas [monetárias] mundiais.”
3. “A integração crescente dos países emergentes à economia global desenha cenários que apontam para o maior
reposicionamento das nações, desde a
Revolução Industrial.”
Arbix contraria, explicitamente, grande parte do pensamento da esquerda que
Ricardo Stuckert/PR
4 CONJUNTURA
apóia o governo Lula e diverge de sua
política relativa aos juros, muito altos, e
ao câmbio, muito valorizado. “Não acredito que o grande problema do Brasil seja
o câmbio, ou a infra-estrutura, ou o juro
alto”, avalia o sociólogo. Ele faz críticas
pontuais a vários aspectos das políticas
do governo em curso. Mas não aponta nenhum problema estrutural difícil de ser
enfrentado como condição impeditiva
para que o Brasil aproveite as grandes
oportunidades da atual conjuntura. “O
Brasil precisa melhorar a qualidade de seus
serviços e a qualidade do que produz,
essa é a questão-chave”.
Retrato do Brasil, bem como a cúpula
do governo Lula, avalia que o mundo
mudou muito nos últimos anos e que surgiram enormes oportunidades para seu
desenvolvimento. Ao contrário do presidente e de outros, no entanto, entende –
e procurará demonstrar nesta edição –
que as mudanças econômicas já visíveis
no mundo tenderão a provocar alterações
políticas ainda obscuras, mas que, dificilmente, ocorrerão sem conflitos graves, alguns já em andamento, como os atentados terroristas contra os EUA e as invasões ao Afeganistão, ao Iraque e a guerra
americana global contra o terrorismo.
Dirá que a conjuntura atual é marcada
pelo desenvolvimento do capitalismo sob
duas formas bem distintas, em dois estados independentes e de interesses nacionais antagônicos, os EUA e a China. E que
as reformas econômicas e políticas que
esses dois países realizaram nos últimos
trinta anos são completamente distintas.
RB argumentará também que, por
motivos econômicos e políticos, o Brasil
não está preparado para desempenhar um
papel político relevante nessa nova conjuntura. Na economia, o País continua
muito dependente. Sua taxa de crescimento econômico é aproximadamente a metade da de Rússia, Índia e China, que, com
o Brasil, forma o bloco de países conhecido como Bric (siglas com as iniciais das
quatro nações). Isso está ligado ao tipo
de ajuste liberal dos anos 1990. Como diz
o economista Yoshiaki Nakano, o Brasil
vive de lá para cá numa espécie de anomalia tropical. Sustenta, sem interrupção,
os juros reais mais altos do mundo, há
Lula e colegas do Bric: o Brasil cresce
menos que qualquer dos outros três países
CONJUNTURA 5
RETRATO DO BRASIL | nO 12
mais de 15 anos. Sob o comando de um
Banco Central (BC) objetivamente independente, esse sistema favorece, escancaradamente, o grande capital financeiro,
em que se misturam inextricavelmente as
grandes empresas do chamado setor produtivo e as do setor de serviços bancários e outras do gênero, como corretoras,
seguradoras e fundos de aplicação do dinheiro dos mais ricos.
O PT se financiou como o PSDB
No campo social, as realizações do
presidente Lula não são desprezíveis, mas
são pequenas. Seu governo aprofundou
políticas compensatórias postas em andamento anteriormente, tanto pelos governos militares como nos comandados pelo
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – a aposentadoria de um salário mínimo por idade e o Bolsa Família, por
exemplo – mas não reverteu os mecanismos essenciais do desmanche estatal desencadeado a partir do fim dos anos 1970
e concretizado nos anos 1990.
Do ponto de vista político, esta edição destacará o que parece ser o fracasso
do governo Lula em promover as reformas que dariam vida nova à democracia
brasileira após o retrocesso liberal. O PT,
o partido-chave da coligação vitoriosa em
2002, em vez de se apoiar decididamente
na grande massa de trabalhadores e de
pequenos e médios empresários representados pela frente que elegeu Lula – com
o PSB, o PDT, o PCdoB e outros partidos menores –, passou a utilizar os mesmos mecanismos que o PSDB e outras
agremiações grandes do período anterior
utilizam para financiar suas campanhas
eleitorais com o dinheiro do grande capital.
Conseqüentemente, esse sistema, que
tinha sido muito abalado com o escândalo que fora a eleição de Fernando Collor
de Mello, somente se fortaleceu. E mesmo o chamado escândalo do mensalão,
que quase custou a reeleição do presidente Lula, não abalou minimamente a associação entre os partidos e o grande capital, a qual deforma de modo definitivo o
sistema democrático brasileiro.
Para sair da crise inflacionária resultante desse quadro que está em andamento e manter o Brasil na corrida para aproveitar as oportunidades de um mundo em
mudanças vertiginosas, o governo tenta
remendar o modelo de desenvolvimento
dependente que manteve. Age como
quem tenta ensinar uma galinha a voar
como condor ou águia. A galinha é um
animal que merece todo o respeito. Mas
seu vôo é curto e baixo. Não é como o
daqueles seus parentes, que podem voar
bem alto e por longos períodos.
Por tudo isso, 2007 pode ter sido
um ano dourado, apenas. O crescimento de 5,4% da economia brasileira foi
muito elevado para o modelo dependente e não se manterá em 2008, admite o governo. E, em 2009, esse desempenho precisa ser mais modesto ainda,
dizem os teóricos e propagandistas liberais à grande imprensa conservadora, os quais buscam orientar a política
econômica oficial. Se não for assim,
2010 será um desastre, avaliam.
Para sustentar seus argumentos, RB
resume no bloco a seguir meio ano de
discussões internas do governo Lula para
achar uma saída intermediária para duas
crises. Uma delas, a das contas do País
com o exterior, é menos visível e está em
andamento acelerado. A outra, a da inflação, já irrompeu e representa uma grande ameaça ao governo.
A NOSSA PEQUENA BOLHA
O modesto surto de crescimento do Brasil está ameaçado, ou
por um “aborto” ou por uma “cacetada”
E
m meados de março deste ano, em
Campo Grande (MS), o presidente Lula
disse que a crise na economia americana,
disparada por um processo de falências
de empresas de financiamento imobiliário em agosto do ano passado, era “30
vezes” mais grave que a chamada crise da
Ásia, que abalou o sistema financeiro internacional na segunda metade da década passada. A crise asiática teve início em
1997 com uma quebradeira em países da
região e chegou ao Brasil com grande
impacto pouco antes das eleições de 1998.
O País iria acabar, novamente mal,
outro ciclo de endividamento externo. No
ciclo anterior, terminado em 1982, sob o
último governo militar, o Brasil quebrou,
foi internado na enfermaria do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e pagou a
dívida com o exterior, de cerca de 100
bilhões de dólares, com grandes dificuldades. Em 1992, sob condições novas,
internas e externas, começou a negociar
uma reestruturação completa dessa dívida. Tomou novos empréstimos externos,
atraídos por uma política de juros internos recordes no mundo.
A essa altura, sobravam dólares no
mercado internacional. Os juros nos EUA
tinham descido do teto atingido no co-
meço dos anos 1980, quando chegaram a
mais de 20% ao ano, para perto de 6%.
Logo, no entanto, a conjuntura financeira
mundial se alterou e os juros internacionais começaram a subir novamente e detonar sucessivas crises, começando pela
que atingiu o México, no fim de 1994.
Quando a crise asiática atingiu o País, ela
SUBINDO, DE NOVO
O superávit primário cresceu até 2005, caiu e
volta a aumentar
SUPERÁVIT PRIMÁRIO DO
SETOR PÚBLICO, EM %
DO PIB [1999-2008*]
7
6
5
4
3
2
1
0
1999
FONTE: Banco Central do Brasil
* acumulado até maio
2005
2008
1
6 CONJUNTURA
RETRATO DO BRASIL | nO 12
finalmente iria tirar o pé do freio. Foi
anunciado o Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), articulado durante
todo o ano passado e que, no começo
deste ano, começou a deslanchar.
Ao mencionar a crise da Ásia no discurso de Campo Grande, estaria Lula se
referindo, de algum modo, à possibilidade de a grave situação internacional de
hoje condenar seu plano ao fracasso,
como ocorreu com Fernando Henrique
em seu segundo mandato? Aparentemente, não. Três semanas antes desse pronunciamento, em seu programa semanal de
rádio, o presidente anunciou o fim da dívida externa do País, a partir do fato de
que a soma das reservas em moeda estrangeira no BC, que se aproximava da
casa dos 200 bilhões de dólares, já superava o total do endividamento externo, o
público mais o privado. Na sua fala, na
capital de Mato Grosso do Sul, procurou se mostrar determinado a levar a
política de crescimento adiante. “Neste
ano de 2008, o Brasil vai crescer mais do
que em 2007 e, em 2009, vai crescer mais
que em 2008”, disse.
Na verdade, a essa altura, o presidente
já tinha dúvidas a respeito. Amigos próximos lhe diziam que o País corria risco sério. No dia 6 de março, numa reunião que
ocorre quase regularmente a cada trinta
dias, na qual conversa com assessores de
dentro e fora do governo – o presidente
do BC, Henrique Meirelles, o ministro da
destruiu, na prática e na teoria, um dos
fundamentos sob os quais tinha sido construída a estabilidade da moeda brasileira
com o Plano Real: a abundância de capitais externos a juros baixos e o fortalecimento da nova moeda brasileira, o real,
por sua ancoragem no dólar.
Antes da crise de 1998, ano em que
foi reeleito, o então presidente Fernando
Henrique Cardoso, autor político do
Real, achava que o plano iria lhe garantir
um segundo mandato de realizações sociais, depois do primeiro, centrado na estabilidade monetária. Mas acabou, principalmente, forçado a reorganizar a legislação das contas públicas, para garantir
em lei o pagamento da enorme dívida gerada a partir do início da década de 1990.
Que, àquela altura, tinha uma característica nova em relação à assumida no período da ditadura militar: o enorme peso
dos compromissos internos, disparados
pelas brutais elevações de juros decretadas para segurar os capitais no País toda
vez que eles começavam a fugir, assustados pelas crises. A parte externa, na casa
dos 200 bilhões de dólares, era dividida
em dois blocos, mais ou menos iguais,
entre o governo e grupos econômicos
privados.
O Brasil ficou mais de seis anos, até
2005, no purgatório do FMI. E cumpriu
religiosamente suas penas, como se pode
aferir pela evolução do superávit primário, definido grosseiramente como o total de juros pagos pelo Estado brasileiro
por conta dessas dívidas. Entre 1999 e
2005, foram gerados superávits crescentes em relação ao PIB. Eles partiram de
menos de 3% e chegaram a mais de 4%
no fim desse período. Esse intervalo de
tempo inclui todo o segundo mandato de
FHC e os primeiros anos do governo
Lula. Em seu início, quando forças de esquerda que apoiaram a eleição do candidato petista tinham a expectativa de uma
redução desse superávit para que se pudesse iniciar um processo de crescimento do País com o estímulo de obras públicas, o novo governo elevou a meta dessa restrição de gastos públicos.
No fim de 2006, após espetacular reeleição, que muitos consideravam praticamente impossível diante do escândalo
do mensalão, pareceu que o governo Lula
Marcello Casal Jr./ABr
A frustração do Real
Fazenda, Guido Mantega, o senador e economista Aloizio Mercadante (PT-SP), o
ex-ministro da Fazenda Delfim Netto e o
economista Luiz Gonzaga Belluzzo –, a
opinião dominante fora a de que o Brasil
estava ameaçado de ser, como disse o veterano Delfim Netto, o “último peru com
farofa disponível” para a ceia da especulação financeira internacional.
Reconstituindo o encontro e resumindo esses conselhos, a conhecida jornalista Cláudia Safatle, do diário Valor Econômico, escreveu pouco depois que a opinião
dominante na reunião foi a de que o presidente estava ameaçado de terminar seu
governo em 2010 com o País novamente
ameaçado em suas contas externas e sem
capacidade de eleger ninguém. Dominou
o debate, disse a jornalista, a tese de que
o crescimento de mais de 5% ao ano com
taxa de câmbio valorizada prejudica a
dinâmica das contas externas.
Ganhos com “arbitragem dos juros”
De fato, a idéia de que o Brasil se livrou da dependência externa não se sustenta. A edição nº 8 de RB, publicada em
março, sobre as contas externas do País,
mostrou que o mecanismo da nova dependência brasileira já havia se armado.
Capitais especulativos vêm se despejando aqui em gigantescas operações de
compra de ativos – títulos públicos e
ações de empresas – para se aproveitarem da chamada “arbitragem de juros”.
Tomam, por exemplo, dinheiro emprestado nos EUA, onde os juros reais vêm
sendo jogados para baixo desde o início
da crise dos créditos imobiliários, para
aplicar no Brasil, onde os juros são os
mais altos do mundo.
Fazem isso em entradas e saídas sucessivas do País, que articulam com uma
aposta na contínua valorização do real e
com uma especulação concentrada em
ações de empresas brasileiras negociadas
na bolsa de Nova York e na Bovespa.
Uma medida do problema causado por
esse movimento de capitais é o déficit de
transações correntes do País. Nessa conta, ficam as remessas de lucros, dividendos, juros e outras despesas de serviços
devidos pelo Brasil no exterior. Em março, mostramos que o BC brasileiro, que
Meirelles: ele forma, sozinho, o bloco
liberal dos conselheiros presidenciais
CONJUNTURA 7
em 2007 estimava o déficit deste ano nessa conta em 3 bilhões de dólares, corrigira o número para 12 bilhões de dólares.
A situação se agravou desde então. Um
estudo divulgado pelo Ipea na primeira
quinzena de julho mostra essa perspectiva de agravamento. Estima que o déficit
nas transações correntes do Brasil neste
ano pode ficar entre 27,5 bilhões de dólares e 34,5 bilhões de dólares.
Na reunião do presidente com seus
assessores no início de março, o que se
discutiu fazer foi impor alguns controles
sobre a especulação. Eram medidas que
sinalizariam a preocupação do governo e
sua pretensão de “impor algum risco aos
investidores que buscam os ganhos de arbitragem, até que os juros [no Brasil] possam cair para patamares mais próximos
das taxas internacionais”., disse Safatle.
Ela deu um exemplo: A dívida interna em
poder de estrangeiros, que ainda é pequena – menos de 5% do total - fora multiplicada por mais de oito vezes Estava
em 57,7 bilhões de dólares em dezembro
de 2007, ante 7 bilhões de dólares doze
meses antes. Em 2006, o governo zerou a
alíquota do Imposto de Renda (IR) que
incide sobre as aplicações de estrangeiros em seus títulos, antes de 15%. Os
“não-residentes” – muitos deles brasileiros escondidos atrás de fundos de investimentos em paraísos fiscais – já aplicavam nos títulos brasileiros por meio de
“derivativos”, segundos contratos, derivados de outros, feitos off-shore, oferecidos pelos bancos daqui. Os bancos não
pagavam os 15% do IR e repartiam os
Fernando Donasci/Folha Imagem
Bruno Miranda/Folha Imagem
José Cruz/ABr
RETRATO DO BRASIL | nO 12
ganhos com os aplicadores. A idéia que
surgiu no encontro do presidente com
seus conselheiros era de retomar de alguma forma uma cobrança de impostos
sobre esses rendimentos.
Por trás das providências contra a
perspectiva de deterioração das contas
externas do País, estava, também, o propósito de conter o crescimento econômico. Tanto Belluzzo como Delfim argumentavam que o crescimento da economia do País, que em março se estimava
estar a um ritmo próximo de 6% ao ano,
exacerbava esse desequilíbrio externo. O
Brasil, por exemplo, estava importando
a taxas que cresciam bem mais que as das
exportações, reduzindo, portanto, o saldo na balança comercial, que expressa o
resultado dessas compras e vendas. Por
ser uma economia dependente, o País
exporta produtos de menor valor agregado e importa máquinas mais caras. Se
crescer mais, esse desequilíbrio se agrava, piorando o balanço de transações correntes, soma dos resultados da balança
comercial e da de serviços, em que se
contabilizam lucros, juros e dividendos.
O responsável direto pela condução
da política econômica é o ministro Guido
Mantega. Ele sabe que, na assessoria do
presidente Lula, pesa de modo decisivo
a opinião do presidente do BC. Sabe também que a solução de Meirelles para os
problemas que sistematicamente afligem
a moeda brasileira é basicamente a elevação da taxa de juros. Talvez, por isso, tentou se antecipar. No início de abril, defendeu um corte de 20 bilhões de reais
Mercadante, Delfim e Belluzzo: com
Mantega, a ala desenvolvimentista
nos gastos da União, que poderia tornar
mais difícil a decisão de elevar os juros,
já que reduziria o gasto público. Duas semanas depois, quando o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC, que decide sobre a taxa de juros, reuniu-se, foi à
Nova York para um encontro com grandes analistas de Wall Street defender que
o crescimento brasileiro ia bem.
Crescimento em 2007, “too hot”
Na reunião, estava, por exemplo, Lisa
Schineller, da Standard & Poor’s, encarregada, nessa agência de avaliação de risco, de definir o grau de confiança que se
deve ter ao emprestar dinheiro ao governo brasileiro. Schineller disse que o crescimento de 5,4% de nossa economia em
2007 foi “too hot”, quente demais, “não
consistente com o potencial de crescimento do País”, segundo Fernando
Canzian, enviado especial da Folha de
S.Paulo.
Em conversa com Canzian, Mantega
combateu o argumento. Disse que a tese
de que o potencial de crescimento máximo para o País, apontado pela grande
maioria dos analistas presentes à reunião
como entre 4% e 4,5%, era um mito. “Seria recomendável que as pessoas deixassem de falar nessa bobagem de PIB potencial. Essas projeções olham pelo
retrovisor. Não conseguem enxergar a
verdadeira revolução produtiva que acontece hoje no Brasil.”

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