[email protected] O coletivo inteligente e a utilização social

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[email protected] O coletivo inteligente e a utilização social
GIUSEPPA MARIA DANIEL SPENILLO
Universidade Federal Rural de Pernambuco
Recife – Brasil
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O coletivo inteligente e a utilização social dos meios de comunicação
Os meios de comunicação de massa (media) colocam-se na sociedade atual como possibilidade de discurso
coletivo mais viável e efetivo. Tornam-se porta-vozes da opinião pública e formadores de opinião. Nesse sentido,
assumem para si a tarefa de reunir as narrativas da sociedade, selecionarem, arrumarem, questionarem, reforçarem estas mesmas narrativas, criando seu próprio mosaico discursivo de referência. Adquirem, assim, um status
de ator social, tão atuante e condicionante da dinâmica coletiva como os demais atores (pessoas, grupos, instituições). Esta realidade social discursiva mediatizada intensamente e continuamente por um meio massivo de
comunicação retira da sociedade sua capacidade de racionalização comunicativa para instrumentalizá-la a exercer o potencial comunicacional exclusivamente numa direção técnica e funcional.
Por outro lado, estes meios massivos conformam-se num coletivo pensante que poderia tornar-se um coletivo
inteligente. É nesse sentido que discutimos a presença da televisão na organização da Copa do Mundo 2002.
Para tanto, partimos da premissa de que a televisão oferece notícias, serviços, conhecimento, visões de mundo,
sempre num caráter de entretenimento. Assim, ela própria se coloca como lazer coletivo para as sociedades
atuais. Ou, melhor, como momento de não trabalho, de não obrigação, de não ocupação – no sentido de não se
colocar como atividade para uso criativo e crítico. E, no entanto, concretiza-se sempre em condições coletivas de
uso, seja sua recepção pública ou privada.
O lazer tem sido apontado como um substituto social do tempo destinado ao trabalho, num momento de automação dos meios de produção e de informatização dos serviços e bens materiais ou culturais. O lazer é capaz de
agregar muitos dos valores que o trabalho confere aos homens e ainda outros, como a aprendizagem intermitente e o aumento da socialização – tão fundamental num mundo que se tecnifica cada vez mais. O lazer pode,
ainda, ser compreendido como manifestação social da comunicação humana.
“...o lazer não pode mais ser encarado como atividade de sobremesa ou moda passageira. Merece tratamento sério sobre suas
possibilidades e riscos. Nesse sentido, proponho considerá-lo não como simples fator de amenização ou alegria para a vida,
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mas como questão mesmo de sobrevivência humana ou melhor, de sobrevivência do humano no homem.”
O sujeito compreende, percebe e assume valores culturais em grupo e, por ser gregário, busca realizar-se individualmente sem que para isto precise romper com o coletivo, a comunidade a que pertence ou da qual participa.
Assim se formam as redes comunicacionais comunitárias. E nelas o lazer desenvolve-se como uma forma a mais
de se manter e exercitar a interpessoalidade. A cotidianidade coloca-se como modo de compreensão das práticas de lazer, pois que aparece estruturada na interpessoalidade, na produção criativa do lugar em que se vive.
Podemos, então, entender grupos como comunidades, no sentido da socialidade, no dizer de Martín-Barbero,
que se cria em suas relações. “Resgatar o sentido comum é resgatar esse viver cotidiano como espaço de pro2
dução de conhecimento e como espaço de produção e de troca de sensibilidade.”
Quando pensamos em lazer crítico, ativo e criativo, não estamos associando sua prática ao mero consumo descartável, que comanda o estágio atual do capitalismo. No entanto, não podemos ignorar que o lazer se apresenta
como um grande filão para o capitalismo consumista e tecnológico. Isto porque no momento em que libera tempo
de trabalho dos indivíduos e elimina as atividades mais rotineiras através da técnica, o sistema precisa criar
novos espaços em que o consumo se dê e o alimente.
Nesse âmbito, é preciso dizer que os meios de comunicação de massa tendencialmente aparecem como instância da sociedade informatizada capaz de atrair para si o tempo liberado do trabalho. Georges Friedmann acredita
que a televisão, assim como o automóvel, toma o lugar dos hobbies que os primeiros operários (das fábricas
inglesas) praticavam. “Mesmo uma visita de amigos, de parentes, logo se transforma em círculo ao redor da
pequena tela.”3 Na sociedade tecnológica a tela da TV, ou do computador, ou os videogames podem não apenas
reunir as pessoas em torno delas, mas eliminar hábitos, isolando os indivíduos em seus redutos informatizados.
Sob estes aspectos, Marcellino também discute o papel dos media na sociedade contemporânea, considerandoos tão nocivos ao tempo liberado do trabalho quanto as obrigações sociais das sociedades tradicionais. Marcellino utiliza as expressões homo faber e homo ludens para caracterizar, nas sociedades modernas, as fases da
infância, da vida adulta e da aposentadoria, ainda levando em conta uma noção de tempo segmentado, sectarizado. Estas expressões, a nosso ver, poderiam ser usadas para caracterizar a sociedade tecnológica, em que é
possível – dependendo do rumo político – passar do predomínio da primeira para uma situação de equilíbrio
1
MARCELLINO, Nelson. Lazer e humanização. Campinas : Papirus, 1995, p. 17.
MARTÍN-BARBERO, Jésus. ‘América latina e os anos recentes. In; SOUSA, Mauro Wilton de. Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo : Brasiliense, 1995 , p. 60.
3
FRIEDMANN, Georges. O trabalho em migalhas. São Paulo : Perspectiva, 1972, p. 160.
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entre as duas facetas inerentes aos homens e mulheres (trabalhar e jogar, ou numa palavra, construir criativamente). De toda forma, neste autor, pensar o homem é pensar sua ação criativa, motivo pelo qual concebe os
media nocivos: porque incitam à passividade.
O fundamental nas práticas de lazer é que estas possam resgatar o humano perdido para a técnica, a criticidade
e a criatividade. Há ainda uma peculiaridade da sociedade tecnológica que não podemos esquecer: através dos
media, a maioria dos produtos e serviços de nossa sociedade vêm chegando com maior velocidade e personalização ao consumidor final; os media, em suma, permitem que as atividades de lazer sejam apreciadas e, em
conseqüência, praticadas ou não, desejadas ou não, partilhadas ou não.
A televisão vem se colocando como a forma de lazer por excelência entre os brasileiros, assumindo o papel
agregador desempenhado em outros momentos pelo pai, pelo ancião, pelo religioso. Ela concentra em si funções múltiplas que lhe adjetivam e justificam a existência nas casas, nos bares e restaurantes, nos bancos, nos
ônibus, nos hospitais e até nas praças e ruas em épocas especiais como a Copa do Mundo.
Martín-Barbero acredita que a televisão pode oferecer apenas um simulacro de convivência das diferenças e
aponta para uma necessidade de reaprendermos a expormo-nos socialmente, de reconquistarmos nossa condição de sujeitos. Resgate que acreditamos só seja possível no exercício da interpessoalidade. E aí o lazer se
mostra capaz de conduzir a prática da troca, do contato, da produção coletiva, pois que ao mesmo tempo em
que serve aos interesses hegemônicos para substituir socialmente o trabalho enquanto ocupação e enobrecer o
consumo, ainda conserva características de reconhecimento do outro, do compartilhar, do agir em grupo e para o
grupo. Porém não um lazer via televisão, como o sugerido durante a Copa do Mundo 2002.
“A televisão, além de levar ao ar telenovelas e telejornais, apresenta também outros tipos de programas, marcados pelo ritmo
pulsante, agitado e dinâmico. Permanentemente, ela precisa aparecer diante do telespectador com um cintilamento constante
de imagens rápidas e efeitos eletrônicos. Especialmente adequados para esse tipo de programas são as transmissões esporti4
vas, os videoclipes e os spots publicitários.”
A televisão, mais do que o computador, coloca-se na era digital como um ator social aglutinador, arrebanhador;
como um líder paternal que reúne em torno de si não somente os bons filhos, os escolhidos, mas todos. O acesso à programação televisiva é indiscriminado, permitido, legitimado e valorizado na grande maioria das culturas.
Exemplo disso é a participação da TV Al Jazira na guerra do governo americano contra os Talebans e a organização Al Qaeda, no Afeganistão.
“As mídias nacionais se globalizam, não apenas pela chatice e mesmice das fotografias e dos títulos, mas pelos protagonistas
mais presentes. Falsificam-se os eventos, já que não é propriamente o fato o que a mídia nos dá, mas uma interpretação, isso
é, a notícia. Pierre Nora, em um bonito texto, cujo título é ‘O retorno do fato’ (...), lembra que, na aldeia, o testemunho das
pessoas que veiculam o que aconteceu pode ser cotejado com o testemunho do vizinho. Numa sociedade complexa como a
nossa, somente vamos saber o que houve na rua ao lado dois dias depois, mediante uma interpretação marcada pelos humores, visões, preconceitos e interesses das agências. O evento já é entregue maquiado ao leitor, ao ouvinte, ao telespectador, e
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é também por isso que se produzem no mundo de hoje, simultaneamente, fábulas e mitos.”
A veracidade dos episódios sociais, políticos, econômicos, culturais, cotidianos ou não, exige a imagem e o texto
narrativo da televisão. Imagem e narrativa que constituem uma linguagem tão distinta e já tão comum em nossos
dias, que sua incorporação nas diferentes esferas da vida passa quase desapercebida, não fosse sua (também
característica intrínseca) necessidade de revelar-se presente direta ou indiretamente em todos os espaços coletivos (públicos ou privados).
Dessa forma, podemos entender o evento televisivo da Copa do Mundo 2002, ocorrido geograficamente (realmente) na Coréia do Sul e no Japão, porém existindo virtualmente nos milhares de canais de televisão espalhados pelo globo. A Copa do Mundo, uma disputa saudável entre nações (assim como as Olimpíadas), depara-se a
cada edição com possibilidades menores de ocorrer livremente. Frente a todas as normatizações que uma megaprodução exige e frente às singularidades do futebol enquanto modalidade esportiva, a televisão (instituição e
meio de comunicação) se impõe para fazer prevalecer suas exigências técnicas e financeiras na montagem de
seu show particular.
“... originalmente o futebol era transmitido na íntegra pela emissora de televisão. Passava-se mais de 90 minutos pondo a
câmera atrás da bola para que os telespectadores tivessem uma vaga impressão do que se passava nos estádios. A televisão
era em branco e preto, havia freqüentemente uma única câmera. Assistir a uma partida pela televisão era um espetáculo que
deixava muito a desejar em relação a ir aos estádios.
A sofisticação eletrônica inverteu integralmente esse papel, criando, a partir de evento esportivo, um espetáculo visual fascinante. Hoje, através da escolha de ângulos, de cenas, de tomadas, de enquadramentos, pela multiplicação das câmeras, pelos
efeitos especiais, pelas formas com que a imagem é parada, acionada em forma lenta, pelos efeitos de destaque, em suma,
por todas essas técnicas desenvolvidas em televisão, o jogo de futebol virou um espetáculo mais fascinante para o espectador
que aquele que encontraria no estádio.
A televisão não só equiparou-se ao espetáculo assistido num campo de futebol, mas tornou o espetáculo domiciliar mais interessante: com mais detalhes, com mais closes, com o retorno eletrônico de jogadas emocionantes e com uma dinâmica que
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faz com que aqueles 90 minutos corram mais rápido do que se imagina.”
4
MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo : Scipione, 1994, p. 64.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro : Record, 2000, p. 40.
6
MARCONDES FILHO. Televisão. Op. Cit., p. 69.
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Assim foi durante a Copa do Mundo 2002: a transmissão televisiva sendo o real de milhares de brasileiros, que
se preparavam para estar diante da televisão, que se organizavam em torno não só de seus horários [desta vez
profundamente marcado por circunstâncias geográficas], mas em torno da expectativa que criou (a televisão, não
a Copa), do sentimento difundido em extensos anúncios veiculados desde antes do início da Copa, da importância atribuída e repassada de várias formas em sua programação, em suma, de transferência de seu investimento
(financeiro - institucional) para o público, tornando, ideologicamente, num investimento patriótico - individual.
O conhecimento e a informação atualizam-se a cada show televisivo (que começa antes do momento da partida
e termina sempre depois), realizando-se de um modo padrão, preestabelecido pelo medium e difundido entre o
público-receptor como a única manifestação possível dos fatos. A atualização promovida pela televisão impõe-se
sobre qualquer outra forma de atualização, e o que deveria ser criação e invenção torna-se aceitação de uma
leitura possível do fato.
A televisão retira do público qualquer sentimento em relação ao espetáculo real (ao vivo) na medida em que se
utiliza de uma linguagem totalizante, ocupando os espaços e as brechas do real com imagens, sons e movimentos superpostos e justapostos. Essa linguagem totalizante apela incessantemente para a percepção do telespectador, de forma icônica (através de representações do real já desobrigadas desse real), monitorando não só o
olhar, mas a compreensão, a inserção, a valorização do acontecimento, a comunhão do indivíduo-telespectador
com a coletividade. Nesse sentido, como podemos pensar na construção de um coletivo inteligente num mundo
teleguiado? E mais, um mundo teleguiado por um ator totalizante?
O coletivo inteligente
Para Lévy os coletivos inteligentes constituem-se a partir dos grupos de interesse (em oposição às estruturas
institucionais – hierarquizadas e burocráticas – e à valorização dos saberes sedimentados, curriculares), interagem afetivamente, moldam-se e transformam-se de acordo com condições momentâneas do mundo vivido, não
humano e principalmente humano; através delas [condições de existência] os indivíduos interferem mutuamente
na vida da coletividade. É neste sentido que discutimos a presença da televisão (media) na Copa do Mundo 2002
(condição momentânea) quanto às possibilidades de estruturação de um coletivo inteligente.
“E compreendemos assim por que coletivos humanos enquanto tais podem ser ditos inteligentes. Porque o psiquismo é, desde
o início e por definição, coletivo: trata-se de uma multidão de signos-agentes em interação, carregados de valores, investindo
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com sua energia redes móveis e paisagens mutáveis.”
Lévy propõe o surgimento de coletivos inteligentes, a partir de um novo prisma, ao abordar a conformação de
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uma nova cultura, construída no uso do ciberespaço . Trabalha questões de teor cultural, em muitos sentidos,
frente à revolução tecnológica que se vive na virada para o século XXI. O que esperávamos para o ano 2000? O
que fantasiávamos (individual e coletivamente)? Onde chegamos? Em quais condições? O autor sugere a formação de um “universal não totalizante” permitido pela tecnologia digital9 e pela World Wide Web10.
Lévy considera comunicação, no sentido interativo da palavra, toda a permanência no ciberespaço. Acredita que
a forma telemática e digital oferece ao Homem aquilo que outros recursos (o telefone, a escrita, o livro, a televisão, a imprensa) construídos ao longo da história ofereceram: a possibilidade de vencer os obstáculos do tempo
e do espaço, trocando conhecimento e armazenando-o para gerações futuras, ou momentos futuros. No entanto,
no entender de Lévy o ciberespaço acrescenta vantagens aos indivíduos e às sociedades no sentido de tornar
toda informação à disposição nas redes digitais de computadores (universal) sem centralizar e sem sacralizar
estas informações (não totalizante).
O saber construído no ciberespaço é mutante, permanentemente em processo, permitindo a interação com ele
próprio e os demais envolvidos. Isto graças ás ferramentas de comunicação disponíveis e acessíveis a um número sempre crescente de usuários. Eis o que Lévy denomina de Inteligência Coletiva: “A inteligência ou a cognição são o resultado de redes complexas onde interagem um grande número de atores humanos, biológicos e
técnicos. Não sou ‘eu’ que sou inteligente, mas ‘eu’ com o grupo humano do qual sou membro, com minha lín11
gua, com toda uma herança de métodos e tecnologias intelectuais (...)” . O modelo sustenta-se na idéia de
grupos de interesse, em oposição àqueles de poder ou institucionais.
A Inteligência coletiva, então, considera as individualidades, as competências pessoais, os interesses de cada
um para desenvolver estas competências, estabelecendo-se em comunidades mutáveis e cujo elo principal não
7
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo : Editora 34, 1996, p. 109.
“O ciberespaço (...) é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica
não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga,
assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.” LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo : Editora 34,
1999, p. 17.
9
“Em relação às técnicas anteriores de ajuda à leitura, a digitalização introduz uma pequena revolução copernicana: não é
mais o navegador que segue os instrumentos de leitura e se desloca fisicamente no hipertexto, virando as páginas, deslocando
volumes pesados, percorrendo a biblioteca. Agora é um texto móvel, caleidoscópico, que apresenta suas facetas, gira, dobrase e desdobra-se à vontade frente ao leitor.” LÉVY, Pierre. Cibercultura. Op. Cit., p. 56.
1010
“De forma simplificada, a Web pode ser descrita como um sistema de hipermídia para a recuperação de informações através da Internet. Na Web, tudo é representado como hipermídia (em formato HTML) e os documentos estão ligados através de
links a outros documentos. A Web engloba seu próprio protocolo, HTTP, e também alguns protocolos anteriores, tais como
FTP, gopher e Telnet. (Carlos Irineu da Costa – Glossário. In: LÉVY, P. Cibercultura. Op. Cit., p. 251-260: 259.
11
LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. São Paulo : Editora 34, 1993, p. 135.
8
é a localização espacial. Ela pode manifestar-se momentaneamente (durante um jogo de futebol, por exemplo)
ou de forma duradoura (o Projeto Genoma). A Inteligência coletiva comporta vários suportes, desde a memória
humana até as redes digitais de comunicação. Pierre Lévy percebe uma certa fragilidade na troca de conhecimento sem alguma intermediação técnica, uma vez que não há registro das discussões, considerações, percursos, conclusões. Inclusive porque, se estamos trabalhando num plano coletivo, é preciso elaborar o conhecimento sob formas compartilháveis, decodificáveis pela maioria.
“É impossível exercermos nossa inteligência independentemente das línguas, linguagens e sistemas de signos (...) que herdamos através da cultura e que milhares ou milhões de outras pessoas utilizam conosco. Essas linguagens arrastam consigo
maneiras de recortar, de categorizar e de perceber o mundo, contêm metáforas que constituem outros tantos filtros daquilo que
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é dado (...).”
Nesse sentido, a televisão enquanto meio de comunicação (abordagem técnica e estética) e de lazer (descanso,
entretenimento, escolha) contém condições para promoção de um estado coletivo. Porém as práticas convencionais nas emissoras atuais – abertas ou fechadas – não nos permitem alguma expectativa em torno do desenvol13
vimento de um “sujeito cognitivo coletivo” Não basta que todos tenham acesso a uma mesma informação, num
mesmo momento, mas que todos possam interagir na elaboração de novos conhecimentos, a partir de uma base
comum, para a transformação coletiva. A televisão oferece a base comum, tão só e apenas.
O problema da televisão é a imposição de um recorte único do real. Durante a Copa do Mundo 2002 tínhamos
notícias de países e culturas orientais, onde aconteciam os jogos; informações sobre o desempenho das seleções; entrevistas com jogadores, treinadores, torcedores; outras informações menos relevantes. No entanto,, de
algum interagimos com o programa televisivo, com o real do qual se originou e, menos ainda, a partir dele com o
14
coletivo humano envolvido naquela mesma assistência. Assis, parodiando Lévy , em torno do conteúdo televisivo as coletividades absolutamente não pensam (nem podem pensar) através de alguma alquimia. Não há um
projeto coletivo, a obtenção do conhecimento é desordenada, fortuita, aleatória, fragmentada e individualizada.
“Por outro lado, as ferramentas e os artefatos que nos cercam incorporam a memória longa da humanidade. Toda vez que os
utilizamos, recorremos portanto, à inteligência coletiva. As casas, os carros, as televisões e os computadores resumem linhas
seculares de pesquisa, de invenções e de descobertas. Cristalizam igualmente os tesouros de organização e de cooperação
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empregados para produzi-los efetivamente.”
De fato, vivemos nas sociedades informatizadas e globalizadas uma situação social não resolvida, experimentando diariamente pseudo-realidades apresentadas pelos media. Essa situação traz para as relações de troca
um acúmulo de informações, mas reduz a comunicação social a um plano de descartabilidade e intensa renovação, em que a formação de laços de solidariedade e de aprendizagem coletiva vão se comprometendo. Dessa
forma, está no uso crítico e criativo das tecnologias de comunicação e lazer (ênfase para a televisão) o aproveitamento destas mesmas tecnologias em prol da elaboração coletiva de uma inteligência ampla, comunicativa,
renovadora - e não apenas instrumental como temos vivido hoje.
Lévy toma de uma cena típica do jogo de futebol para metaforicamente explicar o que é um coletivo inteligente.
Esse coletivo (os jogadores em campo) tem como referência a si mesmo, o objeto de conhecimento está sob seu
domínio (eles dão usos à bola) e a participação de cada um altera o estado do objeto de conhecimento e ainda a
condição de atuação dos demais (jogadas). Somente o que acontece em campo pode ser considerado um momento de verdadeira elaboração do conhecimento por um coletivo inteligente. A arquibancada não tem autonomia inerente a seu estado coletivo – ela depende do jogo em campo para se manifestar. Daí se extrapola para as
inúmeras situações coletivas em que nos encontramos cotidianamente, nas quais podemos elaborar cognitivamente ou não.
“Os espectadores não podem agir sobre o espetáculo que os reúne, todos têm a mesma função face ao ponto alto, ou ao ponto
baixo, de qualquer maneira fora de alcance, que é o campo. O elo (o espetáculo do jogo) é transcendente em relação às pessoas que compõem o coletivo. Nas arquibancadas, fazer sociedade é ser a favor ou contra, torcer por um time, aplaudir os
seus, vaiar ou outros.
No campo, ao contrário, não é suficiente detestar o time adversário. É preciso estudá-lo, adivinhá-lo, prevê-lo, compreendê-lo.
Sobretudo é preciso coordenar-se com a própria equipe em tempo real, reagir de maneira fina e rápida ‘como um só homem’,
embora sejam vários. Ora, essa sinergização espontânea das competências e das ações só é possível graças à bola. No
campo, a mediação social abandona sua transcendência. A ligação entre os indivíduos cessa de estar fora de alcance, ela se
estabelece, ao contrário, entre as mãos (ou os pés) de todos. A animada unidade dos jogadores de organiza em torno de um
objeto-ligação imanente. Passando pelo desvio de um ser que circula, de um centro móvel que designa sucessivamente cada
um como pivô transitório do grupo, o grupo inteligente dos jogadores é em si sua própria referência. Os espectadores têm
necessidade de jogadores, as equipes não têm necessidade de espectadores. (...) um provérbio chinês diz que o dedo mostra
a lua e que o idiota olha o dedo. Sagazes, os jogadores fazem da bola ao mesmo tempo um indicador que gira entre os sujeitos individuais, um vetor que permite a cada um designar cada um, e o objeto principal, a ligação dinâmica do sujeito coletivo.
Consideraremos a bola como um protótipo do objeto-ligação, do objeto catalisador de inteligência coletiva. Faço a hipótese de
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que tal objeto, que chamarei doravante e por convenção simplesmente o objeto, é desconhecido dos animais.”
Se nos remetemos à assistência televisiva, então, o que pensar? No momento da recepção, tudo está pronto,
bastando no máximo arrumar as condições de assistência, testar novas maneiras. Isto é criação? Onde fica, de
12
LÉVY, P. O que é o Virtual? Op. Cit., p. 97-98.
Id. Ibid., p. 64.
In: As tecnologias da inteligência. Op. Cit.
15
Id. Ibid., p. 98.
16
Id. Ibid., p. 122-123.
13
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fato, a participação do sujeito; como ele marca a história? Pode a televisão embotar um processo de inteligência
coletiva nas sociedades que cada vez mais desenham-se mediáticas? Pode-se perceber alguma permanência
das relações de troca de mensagens, de saberes, alicerçada em práticas de comunicação social e de lazer?
Como, então, o coletivo inteligente pode fazer uso da televisão? Talvez a televisão digital venha a nos apresentar
novas possibilidades, agora ainda desconhecidas. De todo modo, somente a postura dos sujeitos coletivos frente
aos media tem a capacidade de dar a eles (meios) um sentido social e inteligente.
Referências Bibliográficas
FRIEDMANN, Georges. O trabalho em migalhas. São Paulo : Perspectiva, 1972.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo : Editora 34, 1996.
_____. Cibercultura. São Paulo : Editora 34, 1999.
_____. As tecnologias da inteligência. São Paulo : Editora 34, 1993.
MARCELLINO, Nelson. Lazer e humanização. Campinas : Papirus, 1995.
MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo : Scipione, 1994.
MARTÍN-BARBERO, Jésus. ‘América latina e os anos recentes. In: SOUSA, Mauro Wilton de. Sujeito, o lado
oculto do receptor. São Paulo : Brasiliense, 1995.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro : Record, 2000.

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