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Neste documento poderá ler as duas primeiras partes
do livro Rosalía de Castro.
A obra completa poderá ser comprada
através de uma campanha de crowdfunding
no site Indiegogo.
Poderá acompanhar todo o projecto através do
Facebook, YouTube, Spotify ou através do blog
www.bookrosaliadecastro.wordpress.com
Índice
Parte I. As pessoas
0. Wall of Love
1. Àgnes Szement
2. Monika Lavova
3. Maria Cortez. Vigo sabe a mar! 4. José, Zeca ou apenas Zé 5. Reggeli 6. 29 de Dezembro de 1989 7. Praga 8. Gravity
9. Imagine 10. Younger, younger, younger. Are you?
11. OD
12. O que é que fazes. este fim-de-semana? 13. Verano Azul
14. En el día en que todo ocurrió
13
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31
34
37
41
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52
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Parte II. Santiago de Compostela
15. Signal frequency is out
16. Moore’s Law
17. Happy Birthday
18. Páginas Amarelas
73
76
78
83
5
19. Freedom
20. Ponte Vella
21. O guarda-copos
22. Por fim, Santiago
23. Espera
24. A menina dança?
25. Paris-Dakar
26. Flashback 5º Piso 27. Tenho Medo
28. Flashback Enfim Paz 29. The Book of Secrets
30. Tempo 86
95
97
101
103
105
112
117
122
124
126
128
Sobre o Autor. 131
Sobre o Livro. 133
6
“Quando aceitamos o medo como companheiro de viagem,
aprendemos a partilhar a esperança da chegada, único mapa
da nossa existência. O medo deixa de ser medo e passa
a ser o bordão que nos ajuda a transpor as montanhas
do dia-a-dia”.
Parte I
As pessoas
-0Wall of Love
E
stava exausto, tinha perdido a conta aos quilómetros caminhados
naquele dia.
Já não tinha mais cartazes para colar ou agrafar, percorrera todos
os locais que achava poderem ajudar a passar a sua mensagem.
Depois de tantas horas, o telefone nunca tocara.
As nuvens negras, por cima da sua cabeça, apenas deixavam ver
uma minúscula abertura, um pedaço de céu que o ligava ao infinito do
universo, uma porta do tempo que fazia acreditar que ainda era possível.
Sentou-se num dos bancos espalhados pela Place des Abbesses e ficou a olhar para cima.
– Sou um louco, não sou?
Jovens – alguns mais do que ele, outros da mesma idade e provavelmente alguns mais velhos – passavam ao seu redor, indiferentes ao
peso que se abatia sobre os seus pensamentos.
– Mas Tu também És!
Seguiu-se uma poderosa gargalhada, usando energia que já não tinha.
Um pouco mais à frente alguns curiosos tiravam fotografias encostados à grande parede azul de azulejos sarapintados de palavras brancas e pontos vermelhos.
– Não Te quero ofender, mas onde é que estavas com a cabeça
quando decidiste criar-nos?
– Tinhas alguma esperança de que pudéssemos ser melhores do
que isto?
O cansaço de um dia imenso era agora omnipresente nas pernas e
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Ro s a l í a de C a s t ro
nos pés assentes sob o passeio de pedra, rede que mantinha o acrobata
seguro.
O ar da noite que envolvia os seus pulmões confirmava, a cada
inspiração, a sua existência.
Ao longe, mesmo que já não estivessem a cantar, nos seus ouvidos
ainda ecoavam os sons de quem tocava na rua, ou talvez tivesse sido alguma outra música que ficara a tocar ininterruptamente dentro da sua
cabeça.
Je viens du ciel et les étoiles entre elles
Ne parlent que de toi
D’un musicien qui fait jouer ses mains
Sur un morceau de bois
De leur amour plus beau que le ciel autour
Dans la pénombre de ta rue
Petite Marie, m’entends-tu?
Je n’attends plus que toi pour partir.
Não eram os Presteej, mas sim Francis Cabrel1, num clássico dedicado à sua mulher.
E a sua Petite Marie?
Tinha conseguido chegar até ali porque se havia mantido vivo.
Se estava vivo era preciso viver.
1 Francis Cabrel (born November 23, 1953 in Astaffort, France) is a French singer-songwriter
and guitarist. He has released a number of albums falling mostly within the realm of folk, with occasional forays into blues or country. Several of his songs, such as “L’encre de tes yeux” and “Petite
Marie” have become enduring favorites in French music.
He was born into a modest family, his father was employed as a blue-collar worker and his mother was a cashier. He has a sister, Martine, and a brother, Philippe.
A shy teenager, Bob Dylan’s “Like a Rolling Stone” inspired him to pick up a guitar and start
writing his own songs. At 16, enthralled by music, he started to sing the songs of Neil Young, Leonard Cohen and Dylan. He also learned English by translating the lyrics. He would later say that his
guitar enabled him to appear more interesting to others.
Expelled from secondary school in Agen for lack of discipline, he went to work in a shoe shop
while playing gigs with a group named “Ray Frank and Jazzmen,” which later became known as “les
Gaulois” because every member of the band had a moustache. At that time, Cabrel’s appearance was
that of a hippie, with long hair and a moustache
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-1Àgnes Szement
C
ode Kft tem os seus escritórios na Váci út nº 186, bem perto do
centro de Budapeste, neste caso do lado de Peste1, que fica na margem esquerda do rio Danúbio.
Da janela do quarto piso pode observar-se, olhos nos olhos, Buda,
não o Desperto ou Iluminado2, mas a parte da cidade que decidiu cobrir-se de florestas e colinas para assim criar um pedestal perfeito e aí
fundar o Castelo e a Cidadela.
Code Kft era um exemplo da nova democracia húngara; um histórico de mais de vinte anos na gestão de recursos humanos e um milhão de
empregados húngaros que viam todos os meses os seus salários serem processados por uma das plataformas tecnológicas com a assinatura Code Kft.
Entre eles, Àgnes Szement, responsável de recursos humanos da empresa.
Tudo isto era possível por causa dos piqueniques3 junto à fronteira
austríaca. Ao que parece, foram só mesmo os soviéticos a ficar com azia
no final do repasto.
1 Peste é a porção oriental, em geral plana, da cidade de Budapeste, abrangendo cerca de dois
terços do território budapestino. É separada de Buda pelo rio Danúbio. Encontram-se no centro histórico de Peste o Parlamento húngaro, a Praça dos Heróis e a Avenida Andrássy. O topónimo “Peste” advém do húngaro Pest, e este de um termo eslavo que significa “forno”, “fogão”.
2 O Iluminado − Do ponto de vista da doutrina budista clássica, a palavra “Buda” denota não
apenas um mestre religioso que viveu numa época em particular mas toda uma categoria de seres iluminados que alcançaram tal realização espiritual.
3 The picnic that raised the Iron Curtain − On August 19, 1989, several thousand people arranged to get together near the Hungarian town of Sopron, along the Austrian border, for a pan-European
picnic. The event was organized by Hungary’s democratic opposition parties and Otto von Habs­burg’s
pan-European movement, and was sanctioned by the Hungarian authorities, who actually opened the
border for three hours for the occasion. The picnic proved a turning point in history that eventually led
to the raising of the Iron Curtain.
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Ro s a l í a de C a s t ro
Àgnes era filha única, e só poderia mesmo ser filha única, pois na
década de sessenta os casais húngaros, ao verem as suas esperanças morrerem algures a meio de Agosto do ano de 1968, reconheceram que pouco
mais havia a fazer do que aquilo que lhes era pedido, e para isso não eram
precisos muitos filhos.
Tinha nascido no seio de uma família de engenheiros que fizeram
toda a sua carreira na Videoton, se bem que falar em carreira nos países
que pertenciam ao pacto de Varsóvia é um eufemismo, pois cedo se percebia a mecânica da vida possível.
Àgnes foi a melhor aluna da sua classe na Escola Primária. Quando passou para o Liceu foi a melhor aluna de todas as turmas e, ao chegar à prestigiada Universidade de Budapeste Corvinus1, sem grande surpresa, foi a melhor aluna do seu ano.
Àgnes foi também a única menina da escola primária que depois
das aulas não ficava a brincar com as outras meninas e com as suas bonecas; foi a única rapariga do liceu que chegou ao último ano sem ter
tido um único namorado; e, sem grande surpresa, foi a única aluna da
universidade que chegou virgem ao dia da graduação.
O dia em que recebeu o diploma de Msc em business information
Systems foi, simultaneamente, o dia mais feliz e mais triste da sua, ainda,
curta vida.
Tinha atingido todos os seus objectivos de “carreira”. Tinha 22 anos
e uma lista infindável de empresas candidatas a ser o seu próximo destino.
Os pais estavam felizes, pelo menos aparentavam, e ela sabia que, a partir
daqui, iria poder dormir sem uma agenda para cumprir escrupulosamente, tal como fazia desde os seus 6 anos.
Naquele dia, ao chegar a casa depois de um jantar de celebração
com os pais, olhou-se ao espelho e viu que tinha à sua frente uma rapariga bonita.
Enquanto se despia, viu que essa rapariga, para além de bonita, revelava um corpo bem mais interessante do que alguma vez os seus colegas de escola poderiam ter imaginado.
1 Corvinus – The Corvinus University of Budapest is one of the most prestigious Hungarian
universities located in Budapest, Hungary. The name refers to the king Matthias Corvinus of
Hungary.
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J. P e r r e Vi a n a
Só não dispunha de uma vida para viver, pois tudo o que tinha sonhado estava feito, alcançado irrepreensivelmente.
As lágrimas de sofrimento que geralmente lhe escorriam para dentro da alma, naquela noite de glória foram lágrimas de sangue, rolando
sem cessar ao longo da sua face, até ser vencida pelo cansaço.
Alguma coisa teria de mudar na sua vida, a bem ou a mal.
Embora a música não tivesse sido uma companhia muito assídua
nos poucos anos de vida, naquele mesmo dia encontrou-se com The Boss1
e desde então nunca mais se separaram.
A música escolhida para a sua celebração não poderia ter sido mais
apropriada:
I’ve been knocking on the door that holds the throne
I’ve been looking for the map that leads me home
I’ve been stumbling on good hearts turned to stone
The road of good intentions has gone dry as a bone
We take care of our own
We take care of our own
Wherever this flag’s flown
We take care of our own.
1 Bruce Frederick Joseph Springsteen (born September 23, 1949) is an American musician and
singer-songwriter. He is best known for his work with the E Street Band. Nicknamed “The Boss”,
Springsteen is widely known for his brand of poetic lyrics, American working class, sometimes political sentiments centered on his native New Jersey and his lengthy and energetic stage performances,
with concerts from the 1970s to the present decade running over three hours in length.
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-2Monika Lavova
Q
uando Monika nasceu nos arredores de Bratislava, os seus primeiros passos já estavam predefinidos pela temida State Security Organization ou, se preferirmos, a omnipresente StB1.
A mãe de Monika, Ata Lavova – Ata Svitakova nos tempos de
solteira – era, no mínimo, a jovem mais bonita de Rovinka, que ficava
às portas de Bratislava e não muito longe da fronteira com a Hungria.
Ata deveria ter sido muito mais do que bonita. Por onde passava,
deixava marcas profundas nos corações de quem cometia o erro de se
apaixonar por ela!
Ata adorava o ideal comunista e tudo o que isso representava na
sua vida. Aos 10 anos era líder da sua unidade dos Pionyrska Organizace Socialistickeho Svazu Mladeze2, ou PO SSM, como eram carinhosamente apelidados.
1 StB – In former Czechoslovakia, State Security (Czech: Státní bezpečnost, Slovak: Štátna bezpečnosť ) or StB / ŠtB, was a plainclothes secret (political) police force from 1945 to its dissolution in
1990. Serving as an intelligence and counter-intelligence agency, it dealt with any activity that could
possibly be considered anti-communist.
2 Czech Young Pioneers – The Czech Pioneer movement was similar to similar organizations
created in Eastern European countries. Like other countries, the uniforms were quite simple, dominated by red scarves.
After the Soviet occupation in 1968 there were major changes in the Czech Government and
Communist Party. One of these changes was that all children’s organizations were forced to unite in a new organization, the PO SSM. Those that refused, which was not advisable, had to disband.
The popularity of the Pioneers in Czechoslovakia is difficult to assess. One Czech observer, tells
HBU that, “It’s impossible to say popular or unpopular.” From 1970 there was no alternative in the
former Czechoslovakia. All children were Pioneers. Very few children did not participate, it was virtually mandatory.
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J. P e r r e Vi a n a
Mas Ata também cometia os seus erros.
Mesmo com inúmeras actividades desportivas e debates acalorados sobre o estado da união, o coração deu mostras de ser mais forte que
a cartilha por todos seguida.
Apaixonou-se pelo rapaz mais bonito, que conheceu no campo de
férias desportivas em que tinha participado na estância balnear gigante
do partido comunista na Crimeia, mais conhecido como Artek1.
Desde esse dia nunca mais viu o seu coração, que entretanto partira com o rapaz e com ele toda a pureza dos seus dezasseis anos acabados
de fazer.
No regresso à Checoslováquia, sabia que daí em diante não se voltaria a apaixonar, devotaria a sua vida ao ideal comunista que sabia que
nunca a poderia trair e encontraria um rapaz que não fosse nem bonito
nem feio, mas que fosse leal e ambicioso.
Josef Lavova, o pai de Monika, era estudante finalista do curso de
Medicina. No início dos anos 70, os últimos anos da especialidade de
ortopedia eram feitos por todos os alunos do país na universidade da
capital.
A recém-formada família sabia que os últimos três anos do curso
seriam particularmente difíceis, tendo tomado a opção de ficarem Ata e
a pequena Monika em Bratislava, e Josef no dormitório da universidade
em Praga, fazendo o trajecto entre as duas cidades no máximo duas vezes por mês.
Curiosamente, Josef, depois de terminar os estudos, continuou a
trabalhar no Hospital Central em Praga, embora viesse todas as sextas-feiras passar o fim-de-semana com a família em Bratislava.
1 Artek (Cyrillic: Арте́к) is an international children center (a former Young Pioneer camp)
on the Black Sea in the town of Hurzuf located on the Crimean peninsula, near Ayu-Dag. It was established on June 16, 1925. The center is part of the State Management of Affairs.
The camp first hosted only 80 children but then grew rapidly. In 1969 it had an area of 3.2
km². The camp consisted of 150 buildings, including three medical facilities, a school, the film studio Artekfilm, three swimming pools, a stadium with a seating capacity of 7,000, and playgrounds
for various other activities.
Artek was considered to be a privilege for Soviet children during its existence, as well as for children from other communist countries. During its heyday, 27,000 children a year vacationed at Artek.
Between 1925 and 1969 the camp hosted 300,000 children including more than 13,000 children
from 70 foreign countries.
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Ro s a l í a de C a s t ro
O mês de Agosto era passado religiosamente nos mais reputados
sanatórios que o país tinha para oferecer aos melhores e mais esforçados
cidadãos da República Socialista da Checoslováquia.
Monika sentia-se agradecida aos esforços do pai, que praticamente não a tinha visto crescer, e compreensiva ao ponto de aceitar
que a vida era assim porque fazia sentido ser assim.
Por força genética ou puramente por teimosia da sua mãe, Monika foi também ela brilhante em quase tudo em que se envolvia: na
escola, no desporto, nas artes, com as amigas e, mais tarde, com os namorados.
Idealista ao ponto de ter sonhado fazer parte do Komsomol1, viu
no entanto os seus planos trocados quando se preparava para fazer as
malas e ir estudar em Moscovo.
O seu pai, Josef, teve de regressar a casa para ser tratado em virtude de um acidente de automóvel que quase lhe tirara a vida.
Mãe e filha fizeram todos os esforços para o ajudar, ao ponto de
Monika ter optado por atrasar a entrada na universidade.
Os dias passavam-se entre os dois turnos em que mãe e filha se
desdobravam ininterruptamente junto da cama de Josef.
Depois de verem o pai minimamente recuperado, aperceberam-se de que, realmente, algo lhe tinha sido retirado, ou partido, para
além das seis costelas e quatro dentes do lado esquerdo.
Monika tinha crescido entre os pátios tipicamente soviéticos que
se abriam entre cada bloco de apartamentos e o Palácio da Cultura2
onde a sua mãe Ata se tinha devotado3 a criar todas as condições para
o Homem novo se poder desenvolver.
1 The Communist Union of Youth − usually known as Komsomol (Russian: Комсомол, a
syllabic abbreviation from the Russian Kommunisticheskii Soyuz Molodyozhi), was the youth division of the Communist Party of the Soviet Union.
Smoking, drinking, dancing, religion, and any other activity the Bolsheviks saw as threatening
were discouraged as “hooliganism”. The Komsomol sought to provide them with alternative leisure
activities that promoted the improvement of society, such as volunteer work, sports, and political and
drama clubs.
2 Palace of Culture − was the name for major club-houses in the former Soviet Union and the rest
of the Eastern bloc. It was an establishment for all kinds of recreational activities and hobbies: sports, collecting, arts, etc.
3 Devoção − Piedade, sentimento religioso; dedicação ao culto de Deus e dos santos.
Respeito,
afeição, dedicação.
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J. P e r r e Vi a n a
Durante quase vinte anos foi a Riaditel1 na zona próxima da Novy
Most, que ao que consta ainda ostentaria o famoso Bystrica2 na sua zona
superior.
Tudo mudou no entanto, no final de 1989, altura em que a notícia
da morte de Martin Smíd3, que afinal não tinha morrido, acabou por
precipitar o fim do sonho de muitos, e o início das aspirações de outros
tantos até então impensáveis.
Quanto a Monika, a sua vida era tão popular quanto Zhanna
Aguzarova4.
1 Riaditel − head of company is Slovakia is “riaditel”.
2 Bystrica − A special attraction is its flying saucer-shaped structure housing a restaurant, called “UFO” (since 2005; previously called Bystrica), on the bridge’s 84.6 metre pylon. The restaurant
is reached using an elevator situated in the left pillar.
3 Martin Smíd was a fictitious Czechoslovak university student, who was supposedly killed in
the police attack on the November 17, 1989 student demonstration in Prague that launched Czechoslovakia’s Velvet Revolution.
The rumor of Šmíd’s death was spread by Drahomíra Dražská, a porter at a student dormitory
in the city’s Troja district. The dissident Petr Uhl believed the report and passed it along to Radio
Free Europe, which broadcast it. The news of a student’s death shocked many, and the rumor is
thought to have contributed to the fall of the Communist regime in Czechoslovakia.
4 In the mid-’80s the Russian singer Zhanna Aguzarova put a dent in the flat Soviet backdrop
with her powerful voice and unapologetic persona. First as the vocalist of the group Bravo and later
as a solo artist, her irreverent style and eccentricity made her a symbol of individuality and dissent.
Aguzarova was insolent in the face of the oppressive regime, but her voice, full of longing and romanticism, thrilled millions of fans. But Aguzarova remained a mystery, one day taking off without warning for Los Angeles, the next claiming to communicate with Martians. Fans loved her for her incongruities and took every opportunity to turn her shadowy and improbable biography into legend.
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-3Maria Cortez
Vigo sabe a mar!
Q
uem alguma vez caminhou por entre as ruas do Casco Vello1* sabe
que, se respirar fundo, mesmo tendo os olhos fechados, encontrará
alguma pista que o levará até às rias baixas.
Foi assim nos dias em que Francis Drake subiu a colina do Castro
queimando tudo o que encontrava pela frente, como no dia em que
Franco morreu e, ao que consta, terá havido festa rija até de madrugada.
O mar é o ar de Vigo!
Mas é desde as ilhas Cíes, pequeno arquipélago que forma parte
do Parque Nacional das ilhas Atlânticas, que a beleza indescritível da cidade se consegue vislumbrar melhor.
Sentado na areia da famosa praia de Rodas (ou, se preferirem, a melhor praia do mundo, na opinião de um jornal inglês), é possível ver este
anfiteatro natural que Deus ou alguém por Ele incumbido desenhou.
De volta a Vigo, se caminharmos no sentido inverso ao mar e depois
de atravessar a parte mais antiga da cidade, entramos na Calle do Príncipe
e começamos a percorrer a parte nova da cidade; são as avenidas largas que
determinam a forma de se entrar, circular e porventura sair da urbe.
Na Antiguidade era a disposição das casas que determinava a colocação e desenvolvimento das vias.
1 Vigo, O casco vello,Es la zona antigua de Vigo, la que quedaba dentro de la muralla y en el entorno próximo. Tiene sus orígenes en el siglo XVI, pero las invasiones, los saqueos, los incendios y las
epidemias han hecho que fuese derribado y construido muchas veces, modificando el aspecto de sus
calles. Salpicadas de placillas y soportales, sus callejuelas han pasado de ser lugares de tertulia de marineros a punto de reunión de la juventud. Algunas conservan todo el sabor de lo antiguo y merece la
pena pasear por ellas. Ha sido declarado monumento de interés cultural como conjunto histórico.
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J. P e r r e Vi a n a
As ruas e becos que povoam a maioria das cidades europeias, pelo
menos aquelas que resistiram a guerras ou cataclismos sem serem destruídas, existem ali, porque não poderiam existir em mais lado nenhum.
Casas e ruas tiveram de se adaptar ao tempo do mundo, servindo as
pessoas e sendo, por consequência, sua propriedade. Ter uma rua ou pertencer a um bairro era como ter um pai ou uma mãe.
Por oposição, na época moderna, são as estradas que determinam
onde é que se podem construir habitações novas e, consequentemente, onde
é que as pessoas podem habitar.
Primeiro desenha-se e apenas depois se humaniza a paisagem! Se alguma habitação tiver o azar de ver a régua e o esquadro passarem-lhe por
cima, provavelmente acabará demolida.
Sem nos apercebermos, deixou de existir a minha ou a nossa rua,
passando esta a ser um lugar estranho de passagem rápida ou muito rápida.
Era este um pensamento que acompanhava Maria nas suas subidas
e descidas entre a parte velha e a parte nova da cidade: junto ao rio, era a
cidade caótica e irrepetível e, na parte alta, a ordem e o progresso que alguém, ninguém sabe nunca quem, decidira ser assim.
Um dos principais veios rodoviários da cidade actual está situado
na parte nova, repleto de comércio e de todas as formas de capitalismo
no seu estado mais puro e que dá pelo nome de Calle Venezuela.
Uma daquelas ironias, que, depois da eleição de Hugo Chavez no
país com o mesmo nome, fazia Maria sorrir, e provavelmente não apenas
Maria.
Quando saía de manhã, ainda meio ensonada e empurrada pelos
irmãos mais velhos para chegar a horas ao colégio religioso que não ficava longe de casa, tinha sempre de atravessar a fronteira entre as ruas que
tinham crescido porque não era possível terem ido por outro lado e as
ruas largas e bonitas que alguém tinha decidido que deveriam ser assim.
A sua vida desenvolveu-se sem perceber qual a parte da cidade que
preferia. Gostava das duas, sentia-se tão bem a caminhar pelas ruas apertadas dos prostíbulos perto da ria como quando comprou o seu primeiro
manual escolar no El Corte Inglés.
O medo e o prazer pareciam caminhar de mãos dadas na sua vida:
aprendeu a dormir e a acordar com estas companhias que pareciam velar por ela como se fossem inseparáveis.
23
Ro s a l í a de C a s t ro
Quando era o seu pai Luís que a levava à escola, significava que
não só estava atrasada mas provavelmente tinha perdido a primeira aula
da manhã.
O trajecto seria então ocasião para uma mistura de laudas com
teologia da libertação temperada por um sermão de falta de responsabilidade dado pelo pai.
Depois de chegado ao colégio, teria uma segunda volta de sermões
em tudo idêntica à primeira à excepção da parte da teoria da libertação
que, no caso do colégio em questão e da respectiva congregação, se tinha
ficado por alguns raspanetes para índios e padres em locais remotos da
América Latina.
Maria chamava-se Maria muito por culpa das várias tias e primas
Marias que a família insistia em apelidar religiosamente de igual forma
há mais de duzentos anos, segundo a mãe, ou à mais de dois mil anos,
segundo a avó.
A vida na região da Galiza era estável e previsível. A chuva caía todos os dias, mais ou menos à mesma hora, a neblina matinal só levantava depois das doze badaladas do sino da catedral e até os constantes ataques de barcos que uma vez tinham pavilhão pirata ou inglês, embora a
tripulação fosse a mesma, eram possíveis de prognosticar.
Em bom rigor, a vida era previsível e isso era excelente, em particular para os homens da cidade. O mesmo se passava para as mulheres,
à excepção de ser excelente.
Quaisquer que fossem as suas origens ou classes sociais, mesmo com
o advento do novo século, a verdade é que sendo mulher se nascia para se
ser filha, mulher de alguém, mãe, de muitos de preferência, depois avó e,
se a vida fosse muito generosa, talvez bisavó.
Muito pouco mudou na vida das mulheres galegas à excepção das
colinas à volta da baía que, com o amontoado de prédios e casas, ficou
mais feia.
O pai de Maria, Luís Cortez, era um homem enorme, falava várias
línguas, bebia uma garrafa de vinho tinto à refeição e sabia um pouco de
quase tudo, pois tinha vivido em vários países com nomes estranhos e tinha estudado num seminário na Catalunha.
Como consequência, todos os encontros de família decorriam ao
som da sua voz tipo trovão, ao ritmo das suas histórias que, repetidas até
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J. P e r r e Vi a n a
à exaustão, eram motivo de prazer garantido para todos e, claro está, do
sabor do vinho, muito vinho e muito bom.
Luís Cortez era um produto acabado de uma Espanha acabada,
que não gostava do que tinha sido o seu passado recente nem o que o seu
futuro parecia trazer. Como não se pode apagar a história, resta a possibilidade de se renegar uma terra de contradições.
Enquanto estudava no seminário, Luís chegou ao ponto de, no decorrer de uma discussão mais acesa com um colega no seio de um trabalho de grupo sobre história da espiritualidade, ter pregado duas belas bofetadas ao futuro padre, e hoje bispo algures no sul de Espanha, quando
este lhe disse que toda a espiritualidade tem de ser enquadrada e tem limites que não se podem ultrapassar.
Luís era um homem grande e não suportava a pequenez de espírito, especialmente quando travestida de autoridade, tornando inevitável
a sua saída do seminário.
Por trás de um grande homem, existe sempre uma grande mulher
− pelo menos é o que todos dizem −, sendo provavelmente aí que viveu
nos últimos vintes anos Maria Luísa a mãe de Maria.
Luís era um homem grande e via-se muito pouco de Luísa de fora
da família, embora dentro de casa todos soubessem quem é que garantia
os repetidos milagres diários, invisíveis, que permitiam todos ir do início
ao final do dia sem acidentes e ultrapassar cada ano com o mínimo de
sacrifícios − à excepção, claro, de Maria Luísa.
Maria Luísa tinha olhos azuis, que em perspectiva, com a baía de
Vigo como pano de fundo, poderiam facilmente confundir quem era
quem; num dia de Verão, Maria tinha os olhos da mãe e a paixão pelo
vinho, do bom vinho, da parte do pai.
Entre o enorme acervo discográfico de seus pais, Maria tinha um
especial interesse nos discos de Luís Eduardo Aute, ou apenas Aute para
os amigos.
Quando Luís colocava a tocar Pasaba por aqui, olhava para a sua
mãe e tinha vontade de chorar.
Te veo muy distinta
es nuevo ese carmín.
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Ro s a l í a de C a s t ro
Estás mucho más guapa,
será que te embellece ser feliz.
Qué cosas se me ocurren
todo esto es tan pueril,
si yo sólo pasaba,
pasaba por aquí,
pasaba por aquí.
Chorar de alegria.
26
-4José, Zeca ou apenas Zé
J
osé, Zeca ou apenas Zé.
Qualquer destas formas podia ser utilizada para chamar da janela o
pequeno, que mais tarde ficou grande, bastante grande, José Augusto
Costa Terra.
Primeiro era convocado para brincar aos soldadinhos, depois para
jogar à bola, que por acaso sempre detestou, e mais tarde para tocar guitarra.
Quem descia as escadas do 3º Esq. do nº 10 da rua Castilho era
sempre a mesma pessoa, mas quem o chamava não.
José nasceu já depois de 1974, não se lembrava se o Verão seguinte
tinha sido quente1 ou se o Benfica2 se sagrara campeão, mas lembrava-se
bem de ouvir o Chico Fininho3 e as primeiras bandas de rock portuguesas.
1 O Processo Revolucionário em Curso, por vezes referido como “Período Revolucionário em Curso” ou, com mais frequência, apenas pela sigla PREC – designa, em sentido lato, o período de actividades revolucionárias, marcante na História de Portugal, decorrido durante a Revolução dos Cravos, iniciada com o golpe militar de 25 de Abril de 1974 e concluída com a aprovação da Constituição
Portuguesa, em Abril de 1976. O termo, no entanto, é frequentemente usado para aludir ao período
crítico do Verão Quente de 1975, com o seu antes e o seu depois, que culmina com o Golpe Militar de
25 de Novembro.
2 O Sport Lisboa e Benfica é um clube multidesportivo sediado em Lisboa. O seu eclectismo, historial e forte base de adeptos fazem do Benfica um dos maiores clubes de Portugal e um dos mais prestigiados a nível mundial. O Benfica atingiu o quarto tricampeonato consecutivo entre 1975 e 1977,
atingindo a impressionante soma de 14 campeonatos em 18 anos.
3 Rui Manuel Gaudêncio Veloso, nascido em Lisboa em 30 de Julho de 1957, é um músico português. Cantor, compositor e guitarrista, começou a tocar harmónica aos seis anos. Mais tarde deixar-se-ia influenciar por B.B. King e Eric Clapton, e lançou, com vinte e três anos, em 1980, o álbum que
o projectou no panorama da música nacional, Ar de Rock. Dele fazia parte a faixa Chico Fininho, um
dos maiores sucessos da obra de Rui Veloso e de Carlos Tê, seu letrista.
27
Ro s a l í a de C a s t ro
Desde o dia que lhe foi dado o rádio antigo da sala, estar deitado
no chão do seu quarto a olhar para o tecto e ouvir o Clube do Sargento
Pimenta, programa de rádio que o acompanhou ao longo dos anos oitenta, tornou as suas noites especiais e os seus dias suportáveis.
José cresceu antes do tempo, não por opção, mas porque assim
teve de ser; achava pouco interesse às brincadeiras e conversas dos colegas de escola e preferia levar um livro debaixo do braço, um amigo sempre certo e sempre perto.
Aluno de excelência em todas as disciplinas, excepto educação física, conseguia com um mínimo esforço obter o máximo retorno nas
notas no final de cada ano! Existem pessoas assim.
Por outro lado, mesmo do alto do seu metro e oitenta e muitos,
acabava sempre junto à linha lateral do campo de jogos. Ver 22 pessoas,
ou 10 pessoas ou mesmo 4 pessoas a correr atrás de uma bola parecia-lhe
coisa de retardados.
Preferiu procrastinar na utilização dos seus músculos, até ao dia
em que lhe ofereceram uma guitarra clássica. Nesse mesmo dia, ao colocar os dedos nas cordas, percebeu a razão pela qual tinha mãos.
Dos fascículos comprados na papelaria da esquina com esquemas
de acordes das músicas da moda, evoluiu rapidamente para as aulas de
grupo e depois individuais, pois avançava sempre mais rápido do que os
outros.
Depois das aulas, depois dos trabalhos de casa e depois dos recados que a mãe lhe pedia para fazer na rua, fechava-se no seu quarto e tocava durante as horas que tinha pela frente.
No início, os dedos e os tendões queixavam-se de tamanha punição mas, com o passar do tempo, também estes ansiavam pelas horas de
dolorosa felicidade. Foi mais ou mesmo assim todas as tardes. Até perceber que uma guitarra bem tocada era mais eficaz a arranjar-lhe uma namorada do que saber dar uns chutos numa bola.
A família de José era uma família normal, conforme à regra comum.
Um pai e uma mãe que trabalhavam o ano inteiro, faziam poupanças, iam passar férias em locais agradáveis, preocupavam-se com a sua comunidade, ajudavam quem precisava e quase sempre dormiam o sono
dos justos.
28
J. P e r r e Vi a n a
Quem não percebia as regras era José, o porquê de ter de seguir
um padrão de vida, o que era ou não aceitável, o que era ou não recomendável. A palavra normal fazia-lhe sentir um cheiro a bafio parecido
com as roupas de verão que ficavam guardadas à espera do calor.
A melhor forma de afastar os maus cheiros e os pensamentos com
perfume a mofo era sempre a mesma: tocava na sua guitarra até o pai se
cansar de o chamar e entrar no quarto para o levar para a sala.
Com as notas que alcançava todos os anos, acabou por obter uma
média final que lhe permitia entrada quase garantida em qualquer universidade do país.
O problema estava em perceber o que é que queria fazer com a sua
vida. Os meses começaram a passar demasiado depressa, à medida que
uma decisão tinha de ser tomada e isso em nada o ajudava. Detestava ser
pressionado.
No entanto, como um amigo estava constantemente a dizer-lhe,
José parecia ter nascido com o rabo virado para a Lua1, ao regressar de
um festival de Verão algures no sul do aís, conheceu uma rapariga linda
de morrer no trajecto de comboio, que por acaso era estudante do primeiro ano em Belas Artes2.
Impressionada pelos seus olhos verdes do alto do seu metro e oitenta, pela guitarra que dominava com mestria (ou por tudo isso junto?),
mais uma conversa de pseudo meio intelectual, meio de esquerda, esta
acabou por lhe cair nos braços.
A rapariga, sentada no banco da frente primeiro e no banco ao
lado depois, revelou-se um verdadeiro achado. Para além de lhe explicar
que a escola em questão era o local natural para espíritos livres, beijava
tremendamente bem e tinha umas mamocas redondas fantásticas.
Estava decidido, fez os exames de acesso de geometria descritiva e
desenho e depois foi esperar pelos resultados que chegaram em inícios de
1 Nascer com o rabo virado para a Lua – Diz-se quando uma pessoa tem sorte no amor, no jogo
e no emprego. Exemplo − Zezinho, nasceu com o cu virado para a lua: além de namorar uma menina
linda, já ganhou 52 vezes no jogo.
2 A Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa é uma instituição de ensino público
universitário dedicada ao ensino e investigação nas áreas da Pintura, Escultura, Design de Equipamento, Design de Comunicação e Arte e Multimédia, Ciências da Arte e do Património e Desenho.
As suas instalações, no Convento de São Francisco, situam-se no Largo da Academia Nacional de Belas Artes, perto do Chiado.
29
Ro s a l í a de C a s t ro
Setembro e sem grande surpresa. Era oficialmente um estudante de Design de Comunicação.
Tinham chegado ao termo da etapa, José e os seus pais estavam felizes. Curiosamente, desde esse dia, já não tinha de parar de tocar guitarra quando fosse hora de jantar, pois podia fazê-lo quando quisesse,
excepto aos domingos.
A única coisa que a rapariga do festival de Verão se tinha esquecido de mencionar era o facto de a dita escola de artistas dar demasiado
trabalho para quem costumava passar as noites e madrugadas da semana e também do fim de semana nos melhores, e piores, bares e discotecas da cidade.
Adorava caminhar pelas ruas da cidade já a noite estava a terminar.
No regresso de longas vigílias entre amigos e amigas costumava
compor melodias que, na maioria das vezes, desapareciam quando o seu
corpo tocava na cama.
Algumas letras confundiam-se com outras. No fim da noite era
quase irrelevante: toda a gente cantava a música dos outros.
Será sempre a subir1*
Ao cimo de ti
Só para te sentir
Será no alto de mim
Que um corpo só
Exalta o seu fim.
Para quem nunca tinha falhado em momento algum, qualquer
coisa que fosse, assumir que estava a viver uma vida paralela às normas
era uma experiência nova, assustadoramente inebriante.
Era impossível voltar atrás.
1 Manuela Moura Guedes − Pseudónimo de Maria Manuela Guedes Outeiro Pereira Moniz
(Cadaval, 23 de Dezembro de 1955); é uma profissional de televisão e cantora portuguesa.
O single Flor Sonhada, saído em 1981, com a canção de Miguel Esteves Cardoso Foram Cardos,
Foram Prosas, revela-se um sucesso.
30
-5Reggeli
A
o final de dois anos de trabalho na Code Kft, Àgnes tinha passado sucessivamente de trainee a analista júnior, a manager, senior manager, até
chegar a directora de recursos humanos, sem surpresas, como era a sua vida.
Tinham sido dois anos de sofrimentos e revelações dramáticas, sendo as 12 horas de trabalho diárias os melhores momentos de cada dia.
Pouco depois de terminar a universidade, a mãe adoeceu e previam-se alguns meses de vida, que na verdade não foram mais do que algumas semanas. Neste caso, o optimismo1 viera dos médicos.
Depois de Àgnes estar oficialmente formada para a vida adulta,
era como se, depois de ver cumprida a sua última missão enquanto progenitora, percebesse que já poderia partir deste mundo, do qual não levava muitas saudades.
Costumava começar e finalizar os seus dias com o pai, ao redor da
pequena mesa da sala de jantar, procurando habituar-se aos momentos
agora insuportavelmente silenciosos. Num qualquer sábado de manhã,
ao colocar na mesa o pequeno-almoço especial2 que se preparava naquela casa há mais de 20 anos, algo fez quebrar o tempo.
1 Optimismo é a disposição para encarar as coisas pelo seu lado positivo e esperar sempre por
um desfecho favorável, mesmo em situações muito difíceis. É o oposto de pessimismo. A oposição
entre optimismo e pessimismo é seguidamente evocada pelo “dilema do copo”: se ele é preenchido
com água até metade de sua capacidade, espera-se que um optimista diga que ele está “meio cheio” e
que um pessimista reconheça um copo “meio vazio”.
2 Villásreggeli – Literally breakfast with fork is a more luxurious big breakfast given on special occasions or holidays. Often guests are invited. Deviled eggs, cold steak, cold salads, salmon-omelet, pancakes, körözött, caviar, foie gras, fruit salads, compote, fruit yogurts, fruit juices, champagne and pastries,
cakes and cookies may be served.
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Ro s a l í a de C a s t ro
O pai retirou momentaneamente os olhos da secção de desporto,
que, face ao sucesso das equipas húngaras no panorama internacional, é
muito pequena, e disse-lhe que talvez fosse melhor ela encontrar um apartamento para viver.
No início da semana seguinte, iria mudar-se para o apartamento
uma velha amiga da família, que, mesmo antes de terminarem as omeletes feitas por Àgnes, seria promovida a nova senhora Szement ou, se preferirem, hölgy Szement.
Passou-lhe pela cabeça pegar na faca1 que estava em cima da bancada
da cozinha e, com uma rapidez digna das melhores agentes secretas de que
havia memória no antigo bloco de Leste, coreografou um final de conversa.
Uma investida da qual nem o pai teria noção do que lhe tinha acontecido; ao fazer entrar o gume junto à carótida, só iria parar quando o contra fio e depois a guarda tivessem trespassado a artéria.
Das aulas de primeiros socorros, obrigatórias em todos os graus de
ensino, ficaram interessantes memórias.
Se a aorta se romper, três batimentos cardíacos. Se a carótida se romper, talvez dois minutos. Se a artéria femoral se romper, eventuais cinco
minutos.
A diferença está no facto de a artéria carótida e a femoral poderem
ser controladas com tratamento apropriado, ao invés da aorta que, uma
vez danificada, não tem tratamento possível.
A cafeteira começou a apitar, indicando que a água já estava a ferver;
perguntou ao pai que chá gostaria de beber e, na volta da resposta, disse
que segunda-feira iria alugar uma casa e que até ao final da semana estaria
fora do apartamento.
No fundo, o pai acabava de lhe fazer um favor com cerca de vinte
anos de atraso.
Depois daquela manhã tinha recomeçado a respirar e, tirando a
ideia de ir até ao fundo da artéria, achou que ser capaz de pensar em pegar
naquela faca tinha-a libertado para viver da forma que sempre desejara, seguindo o seu coração e não apenas a sua cabeça.
1 As facas culinárias têm como objectivo a chamada découpage, ou seja trinchar, filetar, fatiar
as carnes, aves, peixes, tarefa feita muitas vezes no salão dos restaurantes mais sofisticados, diante dos
clientes. Os utensílios de melhor qualidade são as facas com cabo em material sintético e lâmina em
aço inoxidável com liga cromo-molibdénio.
32
J. P e r r e Vi a n a
A sua vida tinha acabado de adquirir uma segunda oportunidade,
uma repetição da partida, tal como nas corridas.
Àgnes estava absolutamente delirante com a ideia de poder tomar
decisões na sua vida, de poder ambicionar só para si.
Percebia que o seu cérebro tinha superpoderes para imaginar coisas de que alguém ao seu lado teria medo só de a ouvir sussurrar.
Ao entrar no seu quarto, colocou algumas caixas de cartão em
cima da cama, para começar a organizar a sua partida. Olhou à volta entre cadernos de apontamentos e livros escolares que guardava de forma
esteticamente irrepreensível nas prateleiras que circundavam todo o perímetro do seu quarto e fez silêncio.
Depois de alguns minutos, o único pormenor que lhe chamou a
atenção foi o último diploma que obtivera. Representava, simultaneamente, o resumo e a coroa de 25 anos de vida.
Retirou a moldura da parede, pegou na mala e saiu sem dizer uma
palavra.
Ao olhar da porta da rua para a varanda do segundo piso, jurou
que aquela Àgnes tinha morrido, estava enterrada não muito longe da
campa da sua mãe e nunca mais voltaria atrás.
33
-629 de Dezembro de 1989
A
s mudanças políticas na Checoslováquia que se seguiram ao colapso do pacto de Varsóvia fizeram com que o final do ano fosse a
maior festa em que alguma vez Monika tivesse participado, sem primeiro passar pela angústia da verdade.
O regresso do seu Pai a casa aconteceu pouco antes dos acontecimentos iniciados em Bratislava na quinta-feira, 16 de Novembro, com a
demonstração pacífica de estudantes que percorreu a cidade.
Foi com enorme angústia que se assistiu na sua casa ao desmoronar, como um castelo de areia, de tudo o que tinha ouvido, acreditado e
vivido, em especial da parte da sua Mãe.
O Pai, um quase estranho na vida de Monika − que já tinha completado os seus 16 anos −, estava finalmente em casa, com as duas pernas
e os dois braços partidos, uma verdadeira ironia para um ortopedista.
Foi um exercício de catarse1, o que Monika e Ata viveram em conjunto nos meses que se seguiram até ao dia2 em que Václav Havel foi nomeado Presidente da Checoslováquia.
Da confusão inicial por não perceberem a razão da revolta, passaram ao medo que sentiram quando se identificaram com as reivindica1 Catarse − Do grego kátharsis é uma palavra utilizada em diversos contextos, como a tragédia,
a medicina ou a psicanálise, que significa “purificação”, “evacuação” ou “purgação”. Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada
por um drama.
2 The victory of the revolution was topped off by the election of rebel playwright and human
rights activist, Václav Havel, as President of the republic (December 29th). Free elections held in June
1990 legitimized this government and set the stage for the changes needed to deal with the remnants
of the Communist party’s power and the legacy of the Communist period.
34
J. P e r r e Vi a n a
ções dos protestantes. E, finalmente ao orgulho em contribuírem com
os seus gritos para engrossar a voz dos descontentes.
Os dias começavam cedo, com reuniões espontâneas nos pátios que
definiam a geometria do bairro, seguidas de peregrinações até onde fosse
necessário.
Mais de um milhão de pessoas saíram às ruas a exigir a demissão do
camarada1 Miroslav Stepán. Nesses dias, a relação entre elas passou para
uma nova dimensão que só quem atravessa revoluções algum dia poderá
sentir.
No início de Janeiro, ao voltarem para casa depois de terem estado
ao lado de outros milhares que saudaram nas praças das cidades checas a
chegada do novo ano, repararam num enorme aparato de carros de polícia
logo no início da sua rua.
Por aqueles dias não era uma novidade; em tempos de mudança as
purgas2 de quem antes estava sentado na cadeira3 eram cada vez mais comuns e mais seriam daí para a frente, especialmente de todos aqueles que estavam directamente implicados na tortura e morte dos opositores do regime.
A novidade foi perceber que no prédio em que moravam, o marido e Pai, Josef Lavova, saía cabisbaixo e algemado, coxeava escoltado por
vários agentes da recém-formada polícia.
Não foi fácil aceitar que, ao longo dos meses que durou o julgamento de Josef, o mais próximo que ele tinha estado da ortopedia foi quando,
ao contrário da história que contara, quase morrera dentro de uma cela de
tortura fruto da reacção de um ex-boxeur ao seu interrogatório e tenha acabado com os braços e as pernas partidas.
Foram mais de vinte anos a viver numa pele que não era a sua, de
forma a poder espiar livremente a vida dos outros.
1 Camarada − Depois da Revolução Russa de 1917, os comunistas empregaram-no profusamente como alternativa igualitária à forma de tratamento “senhor” e outras palavras similares.
O termo podia acompanhar títulos para lhes dar um teor socialista, como por exemplo em Camarada General para dirigir-se a um general de exército.
Este uso tem seu antecedente na época da Revolução Francesa, quando a abolição dos títulos de
nobreza e dos tratamentos monsieur e madame (“senhor” e “senhora”, respectivamente) foi seguida do
emprego da forma citoyen (cidadão).
2 Purga (de purgar) s. f., medicamento ou substância que faz purgar.
Purgar (do lat. Purgare), v. tr., tornar puro; limpar; purificar; desembaraçar os intestinos; livrar
do que é nocivo.
3 Cadeira do poder – O lugar de quem governa ou manda efectivamente.
35
Ro s a l í a de C a s t ro
No Hospital fazia-se passar por médico, tentando descobrir conspiradores, e na relação com Ata, onde se fazia passar por marido.
Desde o momento em que ela tinha tido um caso de amor com
um jovem dissidente referenciado, a sua vida passou a ser também a vida
da famosa StB, e na vida queremos os amigos perto mas os inimigos ainda mais.
Após o julgamento, o divórcio de Ata e Josef fora decretado e,
poucos meses depois, Mãe e filha tentavam iniciar uma nova vida.
Praga, a bonita Praga, que por ironia do destino nunca tinham visitado, porque Josef não tinha tempo para as receber, foi o destino escolhido: vida nova, cidade nova.
Monika jurou à sua Mãe que nunca na vida se iria casar e que viveria de forma proporcionalmente oposta tudo o que a mãe tinha sofrido. Seria profundamente feliz até ao último dia da sua vida.
36
-7Praga
M
onika sempre achou que tinha os cabelos lisos, na medida em que
a Mãe todas as noites passava horas a escovar o seu longo rabo-de­
cavalo1. Durante o dia não se preocupava mais com isso e, como não incomodava, nunca pensou muito no assunto.
Já instaladas em Praga, Ata permanecia agora muito pouco tempo
em casa, atarefada na organização da agenda política do recém-criado
Fórum Cívico2. Pouco antes de completar dezassete anos, Monika tinha
decidido que o seu compromisso com a felicidade não passava por se envolver nos destinos políticos do País mais do que tinha ocorrido no último ano.
Enquanto a Mãe viajava entre Praga e outras cidades todas as semanas, Monika queria aprender coisas novas, conhecer a sua nova cidade e apaixonar-se pela nova rotina que a vida lhe tinha dado, acabou por
entrar na Univerzita Karlova3 em Praga, para estudar Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais.
1 Rabo-de-cavalo é um penteado no qual todo ou a maior parte do cabelo de uma pessoa é afastado da sua face, reunido e preso na parte de trás da cabeça com um grampo, um elástico ou qualquer objecto semelhante, de onde fica pendurado. O nome vem da sua semelhança com a cauda de
um cavalo (em inglês é conhecido como ponytail, “rabo-de-pónei”).
2 Fórum Cívico era um grupo defensor da reforma burocrática e das liberdades civis. O líder era o dissidente e dramaturgo Václav Havel. Intencionalmente evitando o rótulo de “partido”,
uma palavra com conotação negativa durante o regime anterior, o Fórum Cívico rapidamente ganhou o apoio de milhões de checos, assim como o seu homólogo eslovaco, o Público Contra a
Violência.
3 Charles University in Prague is the oldest and largest university in the Czech Republic. Founded in 1348, it was the first university in Central Europe and is also considered the earliest German
university. It is one of the oldest universities in Europe in continuous operation.
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Ro s a l í a de C a s t ro
Cinco anos depois de ter entrado no Campus da Rua Krize no
bairro de Jinonice, o rabo-de-cavalo tinha sido substituído por um esplendoroso cabelo encaracolado que lhe caía pelas costas.
Afinal de contas, o seu cabelo não era liso, e a menina de 17 anos
era agora uma mulher feita com 22 anos e uma maturidade que a fazia
parecer a mãe de todos os seus colegas de curso, especialmente os rapazes.
Com um mestrado em Sociologia, estava habilitada a explicar o porquê de ter começado a estudar num País e ter terminado o curso noutro1.
No entanto, ninguém estava interessado em saber as razões ou
motivações do curso da História recente. Era preciso aproveitar as oportunidades que as mudanças de poder e as crises políticas criam.
Os jovens olhavam agora na mesma direcção, como se fossem munidos de um laser talvez replicado de um qualquer filme de Hollywood
entrado nos circuitos de cinema sem dificuldade.
Todos tentavam responder, em cada momento, à questão fundamental − como ganhar dinheiro mais rápido e, se possível, com muito
menos esforço que as gerações que tinham ficado para trás.
O que era antigo tresandava, a distância, a uma humildade cheia
de suor, uma vida de trabalho duro e braçal em que as vidas bem como
as mãos toscas e ásperas, por mais cremes que colocassem, nunca poderiam disfarçar o que tinham passado.
Monika parecia estar deslocada de toda esta febre do ouro2 que se
tinha espalhado a todos os países do, agora, antigo Bloco de Leste.
Sentia profundamente que a felicidade não podia estar em algo exterior ao ser humano; não poderia ser mais dinheiro ou um melhoremprego a fazer a diferença no final de cada dia.
Seis meses depois de concluir os seus estudos, tinha enviado o currículo a todas as empresas e organismos que poderiam ter algum interesse em vir a contar com os seus serviços. As poucas respostas que recebeu
eram apenas uma forma cortês de lhe dizer que não precisavam dela.
1 * De um passa a dois − On January 1, 1993, Czechoslovakia peacefully dissolved into its constituent states, the Czech Republic and the Slovak Republic.
2 Febre do ouro ou corrida do ouro designa um período de migração de trabalhadores, súbita
e em massa, para áreas onde se fez alguma descoberta espectacular de quantidades de ouro. A mais
conhecida ocorreu na Califórnia em 1849.
Curiosamente, poucos mineiros ficaram ricos, enquanto os fornecedores dos mesmos e outros
comerciantes encontraram a fortuna graças a estes processos.
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J. P e r r e Vi a n a
Eram tempos difíceis mesmo para uma mulher linda como Monika. Inteligente, mas acima de tudo racional, sabia que no fim do dia
não passava de mais uma socióloga a engrossar as filas do desemprego.
Precisava de uma decisão de fundo para resolver uma questão de
fundo. Quando abriu a carteira verificou que tinha apenas algumas czech korunas que não seriam suficientes para uma refeição.
Teve de ir adaptando as necessidades às suas possibilidades e, entre
uma situação menos boa e uma melhor que haveria de chegar, aceitou
uma proposta para servir à mesa de um pequeno restaurante no distrito
de Malá Strana.
Os dias transformaram-se em semanas e as semanas em meses.
Fora das horas de serviço, durante o meio da manhã e da tarde, esforçava-se por não levar o corpo para casa e deitar-se a descansar as pernas que estavam arrasadas. Ao invés, colocava o seu sorriso nº 5, o seu
melhor sorriso, e voltava a palmilhar ruas, institutos, empresas, sempre
com a esperança como arma irresistível.
Quanto aos meses, estes transformaram-se em anos.
No final de cada dia, depois de o restaurante fechar, gostava de caminhar até à Lennon Wall1.
Era ali que tantas pessoas como ela, que acreditavam que a força do
amor tudo pode, se encontravam para cantar ou ouvir cantar, recitar poemas ou apenas deixar-se ficar a ler mensagens na famosa parede. Era o
ponto alto do seu dia, embora esse já tivesse ido dormir há muitas horas.
Uma noite, entre tantas outras, Monika ouvia tocar e cantar num
pequeno grupo perto de si, o refrão provavelmente repetido até à exaustão do sucesso planetário de Lennon – Imagine.
1 The Lennon Wall is a wall in Prague, Czech Republic. Once a normal wall, since the 80s it
has been filled with John Lennon-inspired graffiti and pieces of lyrics from Beatles songs.
In 1988, the wall was a source of irritation for the communist regime of Gustáv Husák. Young
Czechs would write grievances on the wall and in a report of the time this led to a clash between hundreds of students and security police on the nearby Charles Bridge.
The movement these students followed was described ironically as “Lennonism” and Czech authorities described these people variously as alcoholics, mentally deranged, sociopathic, and agents
of Western capitalism.
The wall continuously undergoes change and the original portrait of Lennon is long lost under
layers of new paint. Even when the wall was repainted by some authorities, on the second day it was
again full of poems and flowers. Today, the wall represents a symbol of youth ideals, such as love and
peace. It is owned by the Knights of the Maltese Cross, who allowed the graffiti to continue on the
wall, and is located at Velkopřevorské náměstí (Grand Priory Square), Malá Strana.
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Ro s a l í a de C a s t ro
Imagine there’s no heaven
It’s easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today…
Imagine there’s no countries
It isn’t hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace…
Olhou para o céu e viu uma estrela que brilhava muito mais do
que qualquer outra. Parecia ser, naquele momento, uma estrela só para
ela e pôs-se a imaginar.
40
-8Gravity
E
m meados dos anos noventa, para além de se ter tornado um frequentador assíduo dos locais nocturnos com maior afluência de almas
perdidas como a sua, continuou a tocar e a progredir na guitarra.
José tinha um professor de música excepcional, de seu nome Silvano, provavelmente um dos melhores que havia no País, ou talvez mesmo
no mundo. Por certo no mundo do aluno era assim.
Silvano ficara órfão de Mãe ainda jovem e por isso utilizou todo o sofrimento acumulado como forma de expiar os sacrifícios que exigiu às suas
mãos.
Quando atingiu o topo do reconhecimento pelo seu trabalho, era
apenas uma questão de tempo para se tornar uma lenda da guitarra clássica à escala planetária. No entanto, ao invés de crescer, engordou.
José lembrava-se bem do dia em que tinha percebido a razão
pela qual o seu mestre não desejou seguir mais além; ironicamente ou
não, foi nesse mesmo momento que decidiu abandonar as aulas de guitarra.
Detestava cada vez mais o dia. Apenas a noite lhe trazia conforto.
A luz, o barulho das ruas, a energia excessiva, em alguns casos, ou
histeria, em outros, era insuportável.
O prazer de ficar sentado a escrever o que lhe vinha à cabeça nas
toalhas de papel que cobriam as mesas das tascas e baiucas que frequentava, ouvir o que estava a tocar, e deixar-se estar tornaram-se os seus momentos de ouro.
O tempo disponível para a universidade era cada vez menor. Na verdade, nunca tinha sido muito e, sem grande surpresa, os anos começaram
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Ro s a l í a de C a s t ro
a passar por cima da sua matrícula, que se mantinha inalterada no primeiro ano.
Para José tudo estava sempre bem, pelo menos aparentemente.
Qualquer comentário ou reparo menos abonatório era quase sempre recebido com um sorriso e uma resposta tipo Don’t worry be happy1.
A Mãe e alguns amigos começaram a preocupar-se com a sua incapacidade aparente em levar a vida para zonas mais próximas da linha
que divide os loucos dos atinados. No entanto, não era de modo algum
uma conversa fácil de se ter.
Por isso, a relação com o mundo à sua volta pouco se alterou, à excepção das novas músicas que aprendia a tocar e, na sequência disso, as
novas namoradas (ou um nível abaixo dessa categoria) que arranjava
para, pouco tempo depois, aprender a tocar uma nova melodia.
Bastava olhar para as fotografias que mudavam no tampo de vidro
da secretária no seu quarto para perceber como crescia o reportório.
Quando tentava perceber as inquietações dos que o rodeavam, ficava perplexo com a falta de curiosidade das pessoas em descobrir mais
sobre a vida e o que ela tinha reservado para cada um.
Para não ter de continuar a ouvir as queixas, quase tinha vontade
de concluir um qualquer curso universitário que fosse sério, arranjar um
emprego sério e provavelmente ter um salário sério no final de cada mês.
Mas só a ideia de pensar em fazer tudo isso provocava-lhe falta de
ar e urgia levantar-se naquele mesmo instante e dar uns passos para acordar do pesadelo.
As vidas que desfilavam à sua volta pareciam todas elas feridas de
um mal maior, uma espécie de multidão que caminhava com blocos de
cimento atados aos pés, sem perceberem que nos braços havia asas que
lhes permitiam voar.
Do liceu, lembrava-se de ouvir a professora explicar o sentido
que a atracção gravitacional da Terra2* confere aos objectos, mas tudo
1 Don’t Worry, Be Happy is a song by musician Bobby McFerrin. Released in September 1988,
it became the first a cappella song to reach number one on the Billboard Hot 100 chart, a position it
held for two weeks. The song’s title is taken from a famous quote by Meher Baba. The original music video stars Robin Williams and Bill Irwin. The “instruments” in the a cappella song are entirely
overdubbed voice parts and other sounds made by McFerrin, using no instruments at all.
2 A gravidade é uma das quatro forças fundamentais da Natureza, em que objectos com massa
exercem atracção uns sobre os outros. Classicamente, é descrita pela lei de Newton da gravitação uni-
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J. P e r r e Vi a n a
lhe parecia uma enorme conspiração para nos manter a todos na ordem.
Numa das muitas conversas sem fim num dos seus lugares predilectos, o Esboço, que ficava algures em Alfama1, cruzou caminho com
antigos colegas da universidade. Tinham começado a fazer as suas primeiras exposições de pintura e escultura e aquele lugar era um dos favoritos para os novos talentos.
Em frente à mesa em que estava sentado, colocaram uma tela de
grandes dimensões, ocupando toda a extensão da parede.
Ao som de East-West2, José tentava perceber a composição na sua
frente, mas por mais que tentasse não conseguia terminar qualquer raciocínio.
De uma ponta à outra, a construção de uma imagem era repetidamente posta em causa pela imagem seguinte. Adorava aquele quadro.
Foi até ao balcão perguntar se o quadro estava à venda e quanto
custava. Não havia forma alguma de poder comprá-lo, mas estava fascinado.
versal. Foi entendida de modo matemático pelo físico inglês Isaac Newton e desenvolvida e estudada ao longo dos anos.
Do ponto de vista prático, a atracção gravitacional da Terra confere peso aos objectos e faz com
que caiam ao chão quando são soltos no ar.
A gravitação é o motivo pelo qual a Terra, o Sol e outros corpos celestiais existem: sem ela, a matéria não se teria aglutinado para formar aqueles corpos e a vida como a entendemos não teria surgido. A gravidade também é responsável por manter a Terra e os outros planetas nas suas respectivas
órbitas em torno do Sol e a Lua em órbita em volta da Terra, bem como pela formação das marés e
por muitos outros fenómenos naturais.
1 Alfama is the oldest district of Lisbon, spreading on the slope between the Castle of Lisbon
and Tejo river. Its name comes from the Arabic Al-hamma, meaning fountains or baths
2 East-West is the second album by The Butterfield Blues Band, released in 1966 on Elektra Records, EKS. It was recorded at the famed Chess Studios on 2120 South Michigan Avenue in Chicago. It peaked at #65 on the Billboard pop albums chart. The tune was inspired by an all-night LSD
trip that East-West’s primary songwriter Mike Bloomfield experienced in the fall of 1965, during
which the late guitarist said he’d had a revelation into the workings of Indian music.
43
-9Imagine
S
e a felicidade está dentro de nós mesmos, porque é que se sentia tão
incompleta, como se não conhecesse uma parte de si mesma?
Adorava viver, adorava acordar pela manhã e saudar o novo dia,
por mais duro que o anterior pudesse ter sido e mesmo os momentos
mais simples e insignificantes eram rapidamente recompensados por outros de enorme felicidade.
O pouco dinheiro mal chegava para pagar todas as contas, mas
claramente não era esse o problema, pois já tinha vivido com menos e tinha vivido muito bem.
Desde o momento em que começara a trabalhar no restaurante
Prague’s Favorite Flower, sem que desse por isso haviam passado mais de
quatro anos.
De quando em vez, gostava do sorriso de um rapaz, saíam, jantavam fora e divertiam-se nos equilíbrios e desequilíbrios de quem não
procura mais do que bons momentos.
Nunca arriscou no jogo do amor fácil de uma noite bem passada,
nem se deixou ir para além do que verdadeiramente eram aqueles momentos, instantes simples e descomplexados.
Naquela noite, ao ouvir cantar a música que conhecia tão bem,
tudo parecia tão bonito e nada poderia ser mais simples, mas não era
bem assim.
Sentia-se apertada na pequena roda de pessoas com quem se encontrava, precisava de ar, precisava dele urgentemente.
Afastou-se um pouco para trás, saindo da influência dos candeeiros mais próximos e, olhando para cima, foi observando lentamente as
estrelas à medida que os seus olhos se ambientaram à escuridão.
44
J. P e r r e Vi a n a
Da mesma forma que o céu foi crescendo, a sua alma também. As
noites bonitas têm esse efeito nas pessoas bonitas. Quanto ao oxigénio,
felizmente continuou a entrar Monika tinha outras preocupações.
Porque é que se sentia tão incompleta? A pergunta era repetida vezes sem conta, até se ter transformado na maior constelação dessa noite, e
a distância entre Monika e a estrela por cima da sua cabeça correspondia
sensivelmente ao “buraco” que sentia no seu coração.
Embora tivesse crescido num ambiente totalmente agnóstico e mesmo depois da queda do anterior regime não tivesse experimentado nunca
curiosidade em perceber o porquê das religiões para além do que o seu curso a tinha obrigado a saber, sentia que dentro de si existia um diálogo constante com “Algo” exterior a ela.
Não conseguia dissociar uma coisa da outra. “Algo” também era ela,
extraordinariamente abrangente e completo, sempre presente, emanando
continuamente paz e sorrisos.
Lembrava-se perfeitamente de, um certo dia, viajar no banco traseiro do Trabant1 de seu Pai, num viagem de verão em direcção a um
qualquer sanatório de uma terra distante no Mar Negro com um nome
dificílimo de pronunciar e que, como tal, ainda mais distante.
Em determinada altura Monika perguntou ao seu Pai quem era
Deus. Tinha ouvido algumas conversas das suas amigas na escola e a curiosidade era impossível de conter.
Os pais ficaram em silêncio durante alguns segundos, o que desde
logo a fez perceber que o assunto deveria ser sério, pois apenas quando se
falava de política ou dos jogos de hóquei no gelo da equipa de HC Slovan Bratislava as caras eram semelhantes.
Pai e Mãe trocaram olhares entre si, como que tentando perceber
qual deles deveria responder à pergunta de Monika.
Sempre pragmático no relacionamento com as pessoas, Josef respondeu:
1 The Trabant was a car produced by former East German auto maker VEB Sachsenring Automobilwerke Zwickau in Zwickau, Saxony. It was the most common vehicle in East Germany, and was also
exported to countries both inside and outside the communist bloc. The name, meaning “satellite” or
“companion” in German, was inspired by Soviet Sputnik. The cars are often referred to as the Trabbi or
Trabi. Due to the long waiting period between ordering a Trabant and actually taking delivery (in some
cases years passed as scarce materials were obtained), people who finally received one treated the car gently
and were meticulous in maintaining and repairing it. The lifespan of an average Trabant was 28 years.
45
Ro s a l í a de C a s t ro
− É complicado, Monika.
− Talvez quando fores mais velha possamos conversar acerca desse
tema. Uma rapariga da tua idade [na verdade realmente, tinha dez anos,
era quase uma mulher], não precisa de ter estas preocupações. Na verdade, são apenas problemas.
A resposta do Pai fora ainda mais confusa do que as conversas que
tinha ouvido anteriormente. Fez uma cara tão triste que não passou despercebida à sempre atenta e presente Ata.
− Minha querida, Deus é como se fosse uma voz que se ouve mas
que não se consegue ver, assim como o vento… Consegues sentir, ouvir… No entanto, não consegues ver, percebes?
− Mas se Ele é como o vento, porque é que existem igrejas? Assim
o vento não consegue lá entrar.
Perguntou Monika de volta, como se fosse um jogo de ténis e a
bola não tivesse chegado a bater no seu lado do campo antes de ser reenviada para o outro lado da rede. Geralmente estas jogadas eram as mais
perigosas.
A Mãe olhou novamente para Josef e sorriu levemente pelo canto
da boca. Era um orgulho para ela saber que a filha era tão diferente de
tanta gente que ela conhecia e que tinha medo de fazer a si própria as
perguntas que agora estava a ouvir.
Desta vez virou a cabeça para o banco de trás e, antes de responder, olhou bem nos olhos de Monika.
Fez uma pausa, para reforçar a ideia de que era importante o que
ia dizer e, como tal, ela deveria ouvir com muita atenção.
Depois de ter a certeza que a audiência estava atenta, sorriu e disse
com uma voz de veludo:
− Querida Monika, Deus apenas é importante para quem n’Ele
acredita.
Os olhos de Monika começaram a dilatar. Não tinha memória de
a sua Mãe alguma vez ter abordado um tema desta forma.
Ata prosseguiu.
− Embora se tenham escrito muitas palavras sobre a sua existência,
para mim, Deus é como se fosse Alguém que estivesse sempre acordado
a velar por ti.
46
J. P e r r e Vi a n a
Já não era apenas Monika que ouvia com atenção. Josef acabava de
transferir a sua atenção da estrada na sua frente para o que se passava
dentro do carro.
Ata continuou.
− Esse Alguém garante que nada te vai faltar, protege-te durante as
noites mais escuras, enviando-te luz que faz com que as tuas ideias e
pensamentos sejam bonitos, mesmo quando estás triste.
Parou novamente, abriu um sorriso luminoso e concluiu.
− Se algum dia sentires isso, provavelmente terás conhecido Deus.
Ajudou?
Monika acenou afirmativamente com a cabeça e encostou a cara
ao vidro da porta traseira. Fechou os olhos para tentar perceber melhor
o que a Mãe tinha acabado de lhe dizer.
A única palavra que parecia verdadeiramente fazer sentido entre
todas as outras era o que a Mãe dizia sobre a Luz.
Ela adorava apanhar sol e, em dias quentes, estava sempre mais
bem-disposta. Quanto ao vento, tinha dúvidas, pois se era agradável nos
dias de muito calor, era assustador no Inverno e ela sabia que podia até
destruir árvores e casas quando soprava muito forte.
Sentia-se voar. Embora nunca o tivesse feito, imaginava que seria
tal e qual o que vivia naquele momento.
Talvez empurrada pelo Deus que era Sol mas também era vento,
parecia ser possível ver o que se estava a passar fora da janela. Mesmo
com os olhos fechados, os raios de sol passavam por entre os troncos das
árvores à beira da estrada e aqueciam-lhe a face.
Como se fosse um jogo do esconde-esconde, onde Deus se dava a
revelar, pensou:
− Um cego sentirá sempre a presença de Deus.
Continuou assim por muitos e muitos quilómetros até ao pôr-do-sol.
Quando a memória se resumiu, o seu pensamento voltou à noite
que a envolvia perto da Lennon Wall.
Talvez porque o grupo, um pouco mais afastado de si, cantava um
cânone de vozes maravilhosas, o som fê-la voltar ao momento presente e
às dúvidas que a envolviam.
Porque é que se sentia tão incompleta?
47
Ro s a l í a de C a s t ro
Parecia ter tudo o que sempre tinha desejado. No entanto, sempre
que repetia o exercício daquela noite, recuava para ganhar perspectiva
sobre a sua vida. Tudo parecia ser um sonho, nem bom, nem mau, apenas um sonho de quem estava a viver uma vida que não era a sua.
No mínimo, era uma sensação bizarra. Tinha feito um compromisso em ser feliz mas chegava à conclusão de que, provavelmente, não
sabia o que era a felicidade.
Era como se tivesse lido a brochura da agência de viagens, soubesse o que poderia encontrar no destino, sonhava como que se estivesse lá,
mas na verdade nunca tinha comprado o bilhete de viagem. Estaria na
altura de acordar?
Porque é que se sentia tão incompleta?
Estaria na altura de casar? Ter filhos e começar uma família?
Estes, sim, eram pensamentos assustadores, pois não sentia o mínimo de instinto maternal.
Porquê?
Seria a falta de uma verdadeira vida profissional?
Tinha estudado para compreender os problemas e desafios da sociedade e o mais perto que estava dessa tarefa era ouvir com atenção os
clientes regulares do restaurante, não conseguindo chegar a grandes
conclusões até ao momento em que era pedida a conta.
Monika era uma excelente ouvinte, o que a tornava a empregada
de mesa mais requisitada do restaurante. Recebia dos clientes elevadas
gorjetas e mesmo os colegas, cozinheiros incluídos, adoravam ficar a falar com ela no final dos turnos.
Porque é que se sentia tão incompleta?
Vivia um dia de cada vez, com as preocupações próprias de cada
momento. Sem esforço, vivia em paz consigo e com quem se cruzava, e,
embora conhecesse várias histórias de amor e paixão, mais cedo ou mais
tarde, mesmo essas pareciam condenadas ao fracasso que os minutos da
implacável rotina produzem.
Não sentia que fosse esse o seu destino, não queria pensar muito
sobre o assunto e, de entre todos os rapazes que tinha conhecido, nunca
tinha sentido saudades de nenhum deles ao olhar os seus olhos quando
se despedia no final de uma noite.
Seria esse o motivo de se sentir como se sentia?
48
J. P e r r e Vi a n a
Olhou uma vez mais para cima e o seu queixo abanou a cabeça
quase como reflexo, era como se estivesse a perguntar:
“Então? E agora? O que dizes?”
Ao longe, a música era agora outra, face à pergunta que pairava no
ar mais parecia uma banda sonora feita para aquele momento, alguém
cantava If it be your will* de Leonard Cohen.
Provavelmente, outro músico, que bem poderia ter escrito a famosa canção de Lennon, caso a inspiração não tivesse chocado com o inglês
de Liverpool primeiro.
Embora a voz que cantava fosse masculina, quase fazia esquecer as
sublimes The Webb Sisters1.
Monika tirou os olhos do firmamento e olhou para o pequeno
grupo que cantava e que era ainda mais pequeno do que tinha pensado.
If it be your will
That I speak no more
And my voice be still
As it was before
I will speak no more
I shall abide until
I am spoken for
If it be your will
If it be your will
That a voice be true
From this broken hill
I will sing to you
From this broken hill
All your praises they shall ring
1 *Charley Webb and Hattie Webb were born in Kent, UK. According to Charley, music often
blared from all over the house. Although Charley became briefly interested with being an ambulance driver, the sisters early decided on a career in music. Hattie plays the harp and mandolin, and
Charley the guitar, clarinet, and piano.
In April 2008, it was announced that The Webb Sisters had been chosen to join Leonard Cohen
on his first tour in fifteen years. The world tour started in Fredericton, Canada, in May 2008 and concluded at The Colosseum at Caesars Palace in Las Vegas, Nevada, in December 2010. 246 shows were
played. The ‘Leonard Cohen Live in London’ was recorded in July 2008 at London’s O2 Arena and released on March 31, 2009. Charley and Hattie were featured on the DVD on the song If It Be Your Will.
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Ro s a l í a de C a s t ro
If it be your will
To let me sing
From this broken hill
All your praises they shall ring
If it be your will
To let me sing.
Duas pequenas lágrimas rolaram cara abaixo e depois mais duas se
juntaram, antes de um rio de dor misturado com felicidade e novamente dor e novamente felicidade perpetuassem aquele momento.
Tudo o que guardara, ano após ano, no seu coração saía finalmente da melhor forma que um sentimento alguma vez pode ser comunicado: através das lágrimas que tudo lavam, tudo renovam e fazem os olhos
ver tal e qual como no dia em que nascemos.
A vida ficara retida pelas defesas que obrigatoriamente se instalaram à volta do seu coração à medida que precisava de lidar com a hipocrisia e a mentira que era a sociedade em que crescera.
Soube, anos mais tarde, que o momento que vivera tinha sido próximo do que os cristãos denominam como efusão do Espírito Santo1, os
budistas chamam Bodhi2 ou os hindus Moksha3.
É, no entanto, irrelevante o nome que se dá quando se vive profundamente uma revelação desta magnitude. Para quem já a viveu, esta
explicação é suficiente e certamente colocará um sorriso na cara do leitor.
Quando olhou novamente para o céu, reparou que num dos lados
do firmamento o novo dia começava a despertar.
1 A Efusão no Espírito Santo segundo a Renovação Carismática Católica é uma experiência
que normalmente decorre de um momento de oração e pela qual a pessoa adquire um novo e apurado senso de valor espiritual.
2 Bodhi, no Budismo especificamente, significa a experiência do despertar espiritual alcançada por Gautama Buddha e seus discípulos. Isto é, às vezes, descrito como a completa e perfeita sanidade, ou despertar da verdadeira natureza do universo. Após alcançado, a pessoa liberta-se do círculo do Samsāra: nascimento, sofrimento, morte e renascimento (ver moksha). Bodhi é, normalmente,
traduzido como “iluminação”.
3 Moksha ou Mukti refere-se, em termos gerais, à libertação do ciclo do renascimento e da morte e à iluminação espiritual.
Na mais alta filosofia Hindu, é visto como a transcendência do fenómeno de existir, de qualquer
senso de consciência do tempo, espaço e causa (karma)
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J. P e r r e Vi a n a
Primeiro, de forma muito subtil, ao ponto de não se ter a certeza
do que estava para acontecer para, pouco depois, riscos paralelos ao firmamento tornarem claro o novo dia.
Provavelmente era hora de ir dormir um pouco. Com um sorriso
de orelha a orelha ao ponto de lhe provocar dores nos músculos da cara,
olhou lá bem para cima, onde o Criador disto tudo deveria estar a olhar
para ela, e disse, com uma convicção embrulhada numa paz infinita:
− Não tenho medo de ser feliz! Quero ser feliz!
− Quero viver uma vida completa, onde amar e ser amado é tão
natural como respirar, sem esforço, genuíno, verdadeiro, sem serem necessárias reservas para se poder tomar parte desse dia-a-dia.
O silêncio parecia adormecido pelo vento, a busca da felicidade
passaria a ser o seu quotidiano, estava finalmente a viver a sua revolução,
a verdadeira revolução.
− Vou para onde for necessário ir, farei o que for necessário fazer,
pois só assim saberei que vivi a minha vida.
Quando deixou a rua, cruzou-se com as primeiras pessoas que iam
para o emprego. Sentia-se a pessoa mais bonita da rua e, provavelmente,
tinha razão.
51
- 10 Younger, younger, younger
Are you?
C
onhecia o tipo atrás do balcão e ele a José, embora não fizessem
ideia do nome um do outro.
− O quadro ali na parede perto da casa de banho é muito louco,
está para venda ou apenas em exposição?
O tipo do balcão era conhecido por ser muito porreiro; as duas
cervejas que colocou no balcão, uma para cada, só vieram comprovar a
fama que já tinha.
− Gostas da tela?
− Acho fantástica, parece a minha vida.
− Explica lá isso melhor? Não consigo encontrar sentido algum na
sua beleza, e creio que é por isso que gosto tanto dela.
O tipo do balcão agarrou no copo que tinha à sua frente e despejou quase metade do conteúdo na boca. Ao poisar o copo no balcão,
olhou muito sério para José e arrotou com estrondo.
− Andas a fumar muito, puto.
José estava com pouca paciência para ouvir um sermão e, provavelmente, a sua expressão era consonante com o seu estado de espírito.
− Não está à venda? É isso?
A sua insistência voltou a colocar um belo sorriso na cara do tipo
atrás do balcão, ao ponto de ser evidente a desintegração molecular localizada e progressiva do primeiro e segundo molares.
− Puto, os quadros são meus, estás a perceber? Fui eu que os pintei
e estou muito feliz que alguém tenha reparado neles.
− A sério?
− Não, ‘tou a mancar com a tropa.
52
J. P e r r e Vi a n a
Pegaram ambos no que ainda restava dentro dos copos e fizeram
um brinde.
− Aos artistas que vivem dentro de cada um de nós.
José já tinha bebido bastante naquela noite, e na anterior também,
por isso demorou a pensar um pouco mais sobre o que queria dizer.
− Ao a…
− Amor, era isso que querias dizer?
Por acaso não, José estava a pensar brindar ao amigo aqui do bar, mas
devolvendo o olhar para onde as palavras tinham saído, ficou convencido
com o brinde. O esboço tinha-se transformado num dos maiores aeroportos
do mundo face ao “avião” que tinha acabado de estacionar na sua frente.
A rapariga diante dos seus olhos tinha um cigarro apagado na mão,
ao qual José fez chegar um isqueiro amarelo.
− Para brindarmos ao amor convém que se conheça com quem estamos a brindar.
José fez uma análise tipo RM1 e percebeu rapidamente que naquela noite não iria voltar a tentar comprar o quadro que tanto o tinha entusiasmado.
Antes de partir para parte incerta, agradeceu a cerveja e fez sinal de
que iria voltar.
No caminho entre a Rua do Vigário e a Estação de Santa Apolónia
ficou a perceber que por mais que bebesse e brindasse não iria conseguir
descobrir o amor naquela companhia.
Teria sido melhor que a bela companhia tivesse ficado calada e deixado apenas os olhos falar, mas a aspirante a delegada de propaganda médica não conseguiu conter-se e, ao tentar explicar o que lhe ia na alma, estragou a magia do momento.
Antes de a noite terminar, não muito tempo depois, ao chegarem à
estação de metro dos Anjos, garantindo assim que a passarinha não se
perdia no regresso a casa, José ficou em posse de valiosa informação.
A pobre alma, que por acaso beijava muito bem, era estudante de
Marketing e, ao que parece, não ia muitas vezes às aulas porque morava
longe; no entanto lá ia passando de ano.
1 Ressonância magnética é uma técnica que permite determinar propriedades de uma substância através do correlacionamento da energia absorvida contra a frequência.
53
Ro s a l í a de C a s t ro
Os raios de luz do novo dia pareciam despontar por detrás da velha colina do castelo de São Jorge1.
À medida que os passos guiavam José de volta a casa, começou a
perceber que uma ideia nascia dentro de si: estava a ficar cansado do que
fazia todos os dias, era importante tentar alguma coisa nova.
Gostou da ideia de estudar Marketing; no fundo, segundo a explicação que tinha sido obrigado a ouvir enquanto tentava desapertar, com
uma mão apenas, o sutiã da menina que tinha vindo de Almada, não era
coisa de grande monta, pois até ela conseguia.
Ouviu com atenção que estava perante uma actividade que tinha
como objectivo determinar que produtos ou serviços poderão interessar
aos consumidores. A finalidade do marketing era criar valor e satisfação
no cliente, gerindo relacionamentos lucrativos para ambas as partes. Parecia interessante.
Continuou a caminhar lado a lado com a aurora, sentido cada vez
mais que a alteração passava por ali: mudar de universidade, fazer um
curso que lhe desse pouco ou nenhum trabalho e, assim, poder continuar, sem grandes chatices, a procurar a razão de estar ali.
Ao passar na porta de um bar quase duvidoso que já deveria ter encerrado há muito, ouviu uma fantástica batida, vinda de uma janela que
dava para a rua, que quase o fez ressuscitar para uma última volta antes
de a noite partir.
There’s a conclusion to my illusion2
I ASSURE YOU THIS
There’s no end to this confusion if you let it wish you well
SOUL TO SELL
Highest bidders, can’t you tell what you’re getting?
There is a light to all this darkness, I will tell you this
There’s redemption in you asking them just why it is
1 The Castle of São Jorge is a Moorish castle occupying a commanding hilltop overlooking the
historic centre of the Portuguese city of Lisbon and Tagus River. The strongly fortified citadel dates
from medieval period of Portuguese history, and is one of the main tourist sites of Lisbon.
2 Seinabo Sey is a Swedish soul pop singer signed to Universal Music label. Based in Stockholm,
she became known with her single Younger. particularly after Kygo, a Norwegian musician remixed
the track releasing it in Norway and the United States.
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J. P e r r e Vi a n a
Some answers are better left unspoken when you know you ain’t
getting any
Younger, younger, younger
Are you?
Younger, younger, younger
Are you?
Acabou por não entrar, mas, dali para a frente, foi a deslizar por
cima das pedras da calçada. A energia fluía de uma fonte quase inesgotável e por muito pouco não tocou a felicidade.
Já perto de chegar a casa, entrou-lhe pelas narinas − ou talvez tenha sido belo umbigo − o odor a bolos acabados de fazer. Tanto poderiam ser palmiers, croissants ou mil-folhas, eram todos deliciosos.
O cheiro, junto com a fome que tinha, tornava-se uma mistura explosiva, não importando para tal que o local em questão fosse uma padaria, pois bem poderia também ser um talho.
Recolheu todas as moedas que tinha nos bolsos e conseguiu juntar
quase 100 escudos1. Não era muito, mas o suficiente para acabar o dia
em beleza.
Ao entrar na pequena loja, ouviu o seu nome ser pronunciado por
uma voz conhecida que, no mínimo, lhe parecia familiar.
− José, que conho2!
1 O escudo português, cujo símbolo é o cifrão ($), foi a moeda de Portugal, por ocasião da proclamação da República, que veio substituir aquela que era designada por réis. Foi a última moeda antes do euro.
2 Conho, de origem espanhola, utiliza-se como expressão de espanto, mas refere-se literalmente ao órgão genital feminino.
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-11OD1
O
primeiro verão de Àgnes, na sua nova vida, foi extraordinariamente coerente.
As manhãs, tardes e princípios da noite eram dedicadas exclusivamente ao seu emprego. A sua ascensão fazia os meteoritos parecerem vagarosos.
As madrugadas, acompanhadas pelo advento da Internet, eram
passadas em sites de online dating.
Sem ter de sair da sua secretária, Àgnes tinha à sua mercê milhões,
literalmente, de homens sedentos, desesperados ou apenas dispersos.
Em poucas semanas, tinha criado dezenas de perfis de utilização
com diferentes nomes; Petra, Sabina, Nina, Tina, Anja, Kata.
Juntou várias fotografias, tornou-se loura, morena e ruiva, e finalmente temperou cada uma das suas personagens com gostos e dados
pessoais muito próprios.
Àgnes tinha-se transformado numa multiplicidade de seres diversificados, mas todos com o mesmo objectivo: descobrir-se a ela mesma,
reflectindo o mais profundo de si nos comentários de desconhecidos.
Tudo era gerido com uma precisão que só encontrava paralelo na
sua actividade diária na Code Kft.
Adorava chegar a casa e encontrar a caixa de correio repleta de
mensagens com títulos sugestivos que iam desde “adoro-te” até “pedaço
delicioso de céu”.
1 * Online dating (OD) or Internet dating is a personal introductory system whereby individuals can find and contact each other over the Internet to arrange a date, usually with the objective
of developing a personal, romantic, or sexual relationship. Online dating services usually provide unmoderated matchmaking over the Internet, through the use of personal computers or cell phones.
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J. P e r r e Vi a n a
Ficava impressionada com a facilidade com que os homens e também algumas mulheres se predispunham a qualquer coisa para um encontro fortuito ou algo mais.
O seu momento alto foi conseguir colocar a mesma pessoa a corresponder-se com duas Àgnes diferentes, que, na verdade, eram a mesma.
O mais baixo foi perceber que essa mesma pessoa era capaz de
dizer as mesmas palavras, jurando oferecer um amor único, imaculado
e intemporal a ambas as Àgnes, que, na verdade eram a mesma.
Antes de chegar ao Natal, resolveu oferecer-se a si própria uma
prenda. Cancelou todas as contas e perfis que tinha criado nos inúmeros websites de dating e registou um novo: Àgnes Szement.
Sabia as regras do jogo e também o que queria alcançar no final
do mesmo. Um dia era da caça e outro do caçador. A diferença é que o
caçador agora era outro.
Abriu uma folha de Excel e definiu as colunas que iriam ajudá-la
na sua escolha.
A fotografia de rosto da página deveria exibir um sorriso bonito,
mas não demasiado esforçado. Se tivesse mais fotografias, melhor.
A profissão deveria ser, no mínimo, manager de alguma coisa,
preferencialmente um director.
Deveria ter hábitos desportivos, nada muito radical nem demasiado popular, tipo futebol. O ideal seria a prática de vela ou de equitação.
Não se imaginava a lamber um cinzeiro; logo, não poderia ser
fumador, mesmo que ocasionalmente. Finalmente, não deveria ter sido
anteriormente casado ou ter tido filhos. A base estava definida e, tal
como fazia no seu trabalho, em pouco tempo tinha uma short-list1.
De um número inicial de cinquenta, escolheu os cinco que lhe
pareceram mais preparados para a tarefa.
Sugeriu o mesmo programa a todos os candidatos. Jantar no distrito XIII, bem no centro do parque da cidade, passear junto à Praça
dos Heróis e visitar o Castelo de Vajdahunyad.
1 A short-list − A list of preferable items or candidates that have been selected for final consideration, as in making an award or filling a position.
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Ro s a l í a de C a s t ro
No final do passeio, quando só restasse um pouco de luz no firmamento, procurava um banco de jardim onde fosse fácil apoiar a sua cabeça no ombro do candidato e ali assistir ao pôr-do-sol.
Tomou notas mentais de todos os comentários, piadas e movimentos com as mãos executados por cada um dos concorrentes e, no final de
Agosto, tinha escolhido o seu postulante.
O nome era indiferente, desde que o cargo de consultor sénior, a
experiência de vários anos na prática de windsurf, defensor dos direitos
dos não fumadores e, acima de tudo, o facto de nunca ter sido casado
ou, que se soubesse, pai de alguém, fosse verdade.
Por comodidade, optou pelo seu apartamento, com a certeza de
com que é que poderia contar. E, como era sábado, no dia seguinte poderia dormir até tarde.
Aquilo que a preocupou durante anos tinha-se solucionado em
pouco mais de dez minutos; a sua inocência1 estava resolvida e o consultor, no final de contas, não parecia ser tão sénior como se quis vender.
Domingo dormiu até tarde e, depois do almoço, saiu para um passeio no shopping West End no distrito VI. Sentia-se mais alta ao caminhar pela rua e, talvez fosse apenas impressão sua, os homens que por ela
passavam olhavam-na de modo diferente.
Àgnes voltava a existir.
1 O conceito de virgindade é construído pela sociedade, baseado em critérios tanto biológicos
quanto socioculturais e, desta forma, pode variar grandemente entre as culturas, sendo muito valorizado em alguns meios sociais ou religiosos, especialmente no que diz respeito à preservação da virgindade antes do casamento.
Biologicamente, virgindade pode ser definida como o atributo de uma pessoa (ou animal) que
nunca foi submetida a qualquer tipo de relação sexual (conjunção carnal) e por tal, no caso mais específico das fêmeas, a nenhum contacto com esperma e inseminação por meios naturais; conceito estendido actualmente também às inseminações artificiais.
A ideia de virgindade também remete para a não utilização, como em sistemas de computadores, CD, DVD e outras mídias graváveis. O azeite pode ser chamado virgem ou extra-virgem, caso se
trate da primeira prensagem e não haja óleo refinado.
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- 12 O que é que fazes
este fim-de-semana?
E
mbora pouco passasse das seis horas da manhã, o Sol já ia bastante alto.
Estávamos em meados de Julho e as manhãs eram tão quentes quanto
os finais de tarde. Lisboa podia ser um verdadeiro grelhador, quando o vento partia para parte incerta.
A voz e a cara na sua frente eram motivo de boas recordações:
Marcos Segador, adoptado por Barcelona mas nascido em Ibiza, com o
seu cabelo encaracolado e um sorriso malandro que deixava as raparigas
loucas, era um amigo do outro lado da fronteira, que tinha conhecido
num festival de Verão em Paredes de Coura1.
− José, que conho? – atirou Marcos.
− O que é que fazes por Lisboa?
Marcos apontou com o dedo para duas raparigas que estavam próximo da entrada, mas do lado de fora.
− Sabes que adoro Lisboa, e agora ainda mais.
− És imparável. Ficas até quando?
Por detrás do balcão, um rapaz com brincos a perder de vista na orelha esquerda e um corte de cabelo difícil de explicar tentava perceber porque é que tinha de estar ali a trabalhar e não em casa, debaixo dos lençóis.
Os ouvidos de tísico2 de José não puderam deixar de perceber, por
entre as palavras de Marcos, os sons que saíam das pequenas colunas de
1 Paredes de Coura Festival is a rock festival that is held every year in August at Praia do Tabuão, in Paredes de Coura, Portugal. The first edition was held in 1993. In 2005, the Spanish edition of Rolling Stone named it as one of the five best summer festivals in Europe.
2 Antes da II Guerra Mundial (l939 a l945), muitos jovens sofriam de uma doença denominada tísica, que corresponde à tuberculose. A forma mais mortífera era a tuberculose pulmonar. As pessoas que
sofrem de tuberculose pulmonar tornam-se muito sensíveis, incluindo uma notável capacidade auditiva.
A expressão «ter ouvidos de tísico» significa, portanto, «ouvir tão bem como aqueles que sofrem de tuberculose pulmonar».
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Ro s a l í a de C a s t ro
cada lado da caixa registadora. Só podia ser Daft Punk, no mínimo uma
vingança pessoal do jovem para com todas as velhotas que lhe irrompiam pela porta às primeiras horas da manhã.
Marcos tinha passado por Lisboa para visitar duas amigas e planeava seguir em direcção ao Norte de Portugal, para visitar um primo
que vivia na Galiza e que lhe prometera uma noite memorável em Vigo,
nas famosas Hogueras de La Noche de San Juan1.
Falaram um pouco, entre a digestão de duas bolas de Berlim com
mais creme do que bola, e rapidamente perceberam que estavam no
mesmo barco.
Marcos, estudante de engenharia de telecomunicações, aguardava
pelo final de Julho para terminar o curso e poder deixar para trás mais
de cinco anos de terror e frustração. Planeava fazer uma viagem, talvez
só de ida, até ao Tibete.
José ouviu com atenção o que ele lhe contou sobre o budismo e de
como estava curioso por viver de perto uma realidade que aproximasse o
homem de Deus sem tantos intermediários.
Poderia ter ficado ali durante horas. A conversa era excelente.
As amigas do lado de fora da padaria começavam a olhar de forma
permanente e Marcos, ao reparar, no seu estilo inconfundível, colocou a
mão no ombro de José e disse-lhe:
− Sexta-feira apanho o autocarro para Valença e o meu primo, que
já tem carro, vem buscar para me levar para Vigo. Por que é que não
vens comigo?
− Adorava, mas a minha vida parece estar meio caótica neste momento.
Pensou que era uma imprecisão o que tinha acabado de dizer. A sua
vida tinha sido caótica sempre; a diferença é que durante anos estava controlada e agora não.
1 San Juan en Vigo es una experiencia mágica. La tradición de celebrar la noche más corta del
año se remonta a épocas muy anteriores al cristianismo, con la celebración del solsticio de verano, en
la noche del 23 al 24 de junio. Nuestros antepasados temían que el sol no volviese a su total esplendor. Por esta razón, iniciaban ritos de fuego purificadores al atardecer, para simbolizar el poder del
sol y ayudarle a renovar su energía.
Vigo celebra San Juan con entusiasmo, en torno a las hogueras y realizando todo tipo de ritos
tradicionales, en una noche en la que no se duerme y en la que se dice que se abren las puertas a otros
mundos. El plato típico de la noche de San Juan son las sardinas asadas.
60
J. P e r r e Vi a n a
Pensou na cara da sua Mãe ao ouvir em estéreo que ia desistir da
faculdade de Belas Artes e do curso de Design, candidatar-se a um curso de Marketing e na sexta-feira iria até Vigo com um amigo que ela não
conhecia. E, para que tudo isso fosse possível, necessitava de dez contos1.
José nunca tinha viajado muito para fora de Portugal, excepto
duas ou três vezes com os Pais, nas férias de Verão. A curiosidade por
algo fora da sua realidade expandia-se, na medida em que o desinteresse
pelas coisas à sua volta era cada vez maior.
Três dias depois estava na Av. Casal Ribeiro com uma pequena
mochila pelas costas e a sua inseparável guitarra.
Nos ouvidos, uns headphones já antigos mas que não retiravam um
decibel de prazer, ao caminhar pela rua com os sons cada vez mais gastos das músicas dos anos oitenta que já não o eram, mas que continuavam a entrar poderosamente pelos ouvidos.
No bolso trazia a matrícula já efectuada no Instituto Português de
Administração e Marketing, bem como a desistência oficial do curso de
Design.
As artes tinham deixado de ser belas.
Marcos fez uma festa ao vê-lo chegar, prometeu-lhe um fim de semana inesquecível e, quem sabe, ver a sua vida mudar com novas ideias
e perspectivas.
Sentia-se com sorte, o que era muito estranho na sua vida. Não
acreditava nem no acaso nem nos papéis a promover os serviços do Prof.
Karamba2 ou Salim, ou Sado ou Fofana ou Umar ou Mamadu e, neste
último caso, com resultados garantidos em sete dias.
1 10 contos ≈ 50 euros
2 Os grandes e poderosos videntes africanos são hoje parte da paisagem europeia , i.e., «El Maestro Chaman africano, Gran Medium Espiritual Mágico, poderes naturales, 26 años de experiencia
en todos los campos de Alta Magia Africanos, ayuda a resolver todo tipo de problemas y dificultades
por difíciles que sean. Enfermedades crónicas de droga y tabaco, cualquier problema matrimonial,
recuperar la pareja y atraer personas queridas, impotencia sexual, amor, negocios, judiciales, suerte,
quitar hechizos, depresión y protecciones vida familiares, mantener puesto de trabajo, atraer clientes… Cualquier otra dificultad que tenga en el amor, lo soluciona inmediatamente con resultados positivos y garantizados al 100%, de 3 a 7 días como máximo. Todos los días de 8 a 22 h.»
61
- 13 Verano Azul1
N
a última semana de aulas já pouco havia a fazer, em especial para
quem tinha estudado pouco ao longo do ano. Os exames estavam
feitos e apenas faltavam os resultados e a cerimónia de graduação. O
tempo já estava quente e as noites eram enormes, às vezes pareciam mesmo não acabar.
Na véspera do dia de São João, dia 23 de Junho no mundo cristão,
um grupo de amigos, entre os quais Maria, decidiram acolher na sua
forma mais típica o dia do Santo e rumarem, às primeiras horas da noite, à bonita praia de O Vao.
Ficaram mesmo em frente à ilha de Torralha, para aí fazerem a sua
fogueira e expiarem doze anos de sacrifícios escolares e, quem sabe, algo
mais.
Era uma noite sem Lua envolta num enorme manto de escuridão.
Não era possível perceber onde começava a linha do mar e acabava a do céu, tornando a luz existente mais brilhante e as faces aí reflectidas bonitas portas de acesso à alma.
O grupo de amigos de Maria era constituído maioritariamente
por colegas do colégio que terminavam, nesse início de Verão, um longo
caminho de várias batalhas vencidas.
1 Verano azul (Blue Summer) was a famous Spanish television show directed by Antonio Mercero that first aired in 1981. It tells of the adventures of a group of youngsters between ages 9 and 17,
while on summer vacation in Nerja, a small town on the Mediterranean Costa del Sol, Andalusia, in
Southern Spain. The series, with 19 episodes that drew up to 20 million viewers in Spain, has been
re-run almost every summer since then. It has left a deep impact over several generations of viewers
and has become part of Spain’s common cultural memory. It was also broadcast in Latin America,
Portugal, France and some Slavic countries like Yugoslavia, Bulgaria, Poland and Czechoslovakia.
62
J. P e r r e Vi a n a
Mais tarde, juntaram-se alguns amigos dos amigos que, por sua
vez, iam telefonando a outros amigos que também acabavam por se juntar com mais amigos ainda.
A roda inicial em que se sentavam era agora formada por pequenos
círculos, ou formas próximas disso, rodando entre si garrafas de cerveja
e afins depois de misturados com mestria pelos graduados do grupo, ou
seja, os amigos que já estavam na universidade e estudavam matérias
mais interessantes, como a química do álcool e anatomia aplicada de primeiro ano.
Maria estava perto de Bea e Lúcia, amigas desde o tempo dos penteados de rabo-de-cavalo e dos Pin Y Pon, rindo das histórias de bravura que ouviam de uns quantos aprendizes de feiticeiro sentados à sua
frente.
Embalados pela coragem que a Estrella Galicia oferece a todos que
a procuram, fumavam e bebiam como se fossem as próprias fábricas dos
Hijos de Rivera1, na Corunha.
As três amigas sabiam que aquele seria provavelmente o último
Verão em que estariam todas juntas, pelo menos naquela condição.
Eram mulheres e, como tal, sabiam que dali em diante existiam
expectativas incontornáveis para cada uma das suas vidas.
Mas esta noite era para salir de farra, todos procuravam ser felizes
e, à sua maneira, já o eram.
O entusiasmo ia crescendo, ao mesmo tempo que o tom das vozes
se tornava mais alto, mais descoordenado e mais honesto.
Se alguém de fora visse as labaredas das fogueiras, diria que estavam assustadoramente descontroladas.
Um dos jovens, sentado no pequeno círculo, levantou-se e colocou-se em frente de Maria. Com um ar ameaçador, de mãos postas à
volta da cintura, estacou como se fosse um pilar, embora com dificuldade em ficar direito.
Desapertou o casaco, que caiu rapidamente aos seus pés, e lançou
ao ar o pulôver que, por milímetros, não caiu em cima da fogueira.
1 Hijos de Rivera, S.A.1 is a Spanish brewery founded in 1980 in the city of A Coruña, Galicia. The main brand is Estrella Galicia, a 5.5% abv pale lager. The company’s origins date back
to 1906 when José María Rivera Corral established La Estrella de Galicia brewery in the city of
A Coruña.
63
Ro s a l í a de C a s t ro
Num acto de total ausência de sensibilidade nos membros inferiores, tentou rasgar a camisa que trazia vestida, gritando para que todos,
incluindo ele próprio, pudessem ouvir o que tinha para dizer:
− Maria, ouve-me bem.
Falou tão alto que, quase por magia, se fez o silêncio possível.
− Simmmm… − responderam em coro quase todas as amigas que
se encontravam ao redor de Maria. Ela, provavelmente, foi a única que
ficou calada.
− Tu achas que sou um miúdo?
Paco era, efectivamente, um miúdo, imberbe e borbulhento.
− Mas sou suficientemente grande para te dizer algumas coisas importantes.
“Opsss!” − pensou Maria, à medida que o sorriso que trazia na
cara há várias horas começou a ser substituído por expressão um pouco
mais fechada.
Paco era um dos melhores amigos do seu irmão, frequentava a sua
casa e era a última pessoa de quem esperava uma declaração, qualquer
que fosse o conteúdo.
− Paco, é melhor calares-te, pois daqui para a frente só vais dizer
mais disparates. Além do mais, estás completamente bêbado − disse
Bea, que o conhecia bem.
− Maria, amo-te.
Maria era capaz de jurar que, por breves segundos, só se ouvia o
crepitar do fogo e o meio milhão de pessoas que estava disperso ao longo da praia.
− Maria − continuou Paco –, casa comigo e fugimos os dois esta
noite. Apanhamos um comboio e vamos para França e depois damos
uma volta ao mundo.
Quando somos atingidos por um raio ou por uma pedra, ou um
raio de uma pedra, levamos alguns segundos a perceber o que se passou.
Também Maria e todos à sua volta demoraram a entrar no momento.
Maria respirou fundo e, pela primeira vez em muitas horas, sentiu
o ar da noite., que era agora mais fresco, entrar-lhe pelos pulmões. Vinha
mesmo a tempo de a fazer recuperar os sentidos adormecidos pelo álcool, que corria de cima para baixo e de baixo para cima.
Pensou em Paco e no que tinha acabado de ouvir. Estava feliz por
64
J. P e r r e Vi a n a
ser desejada por um dos rapazes mais bonitos e interessantes do grupo.
Gostava da ideia de conhecer o mundo começando pela França,
adorava Paris, sabia que um dia iria viver a sua vida na Cidade Luz, mas
não percebia a necessidade de fugir e ainda menos de se casar, mesmo
que fosse com Paco.
Correu com o olhar as caras que estavam à sua volta, como se a pedir uma ajuda silenciosa, sem encontrar resposta.
A excepção foi um olhar estranho. Não sabia quem era o nome
por de trás daquela cara que, ao contrário das restantes, sorria – ou, pelo
menos parecia sorrir. Nas mãos tinha uma guitarra.
− Paco, olha bem para mim.
A voz de Maria era tão baixa ao ponto de todos, incluindo o rapaz
que estava à sua frente, de pé, terem de se debruçar e aproximar mais
para poderem continuar a ouvir.
− Vamos saltar a fogueira?
Levantou-se e tomou a mão do amigo (antes que ele deixasse de o
ser), ao mesmo tempo que Bea disparou alguns acordes na guitarra Fender deitada ao seu lado e começou a cantar.
Ouviu-se uma daquelas músicas que poderia bem ser sinónimo de
toda uma geração. Lobo hombre en París1:
Cae la noche y amanece en París,
en el día en que todo ocurrió.
Como un sueño de loco sin fin
la fortuna se ha reido de tí, ja ja
Como se fosse uma onda, daquelas que se vêem na televisão nos
jogos de futebol, todos se levantaram um a um e começaram a cantar,
dançar e saltar à volta da fogueira.
A excepção foi aquele olhar, um dos amigos de um amigo de um
outro amigo, do qual Maria não sabia sequer o nome.
1 Spanish pop/rock band La Unión got involved in the local scene in the early ‘80s. Singer Rafael Sánchez, bass player Luis Bolín, guitarist Mario Martínez, and keyboardist Iñigo Zabala hit the
charts in 1984 with their song Lobo Hombre en Paris, releasing Mil Siluetas that same year, produced
by Mecano’s Nacho Cano and followed by El Maldito Viento in 1985.
65
Ro s a l í a de C a s t ro
Aquela cara tinha sorrido para Maria, que por acaso nem era para
estar ali naquela noite.
Sentado na areia, para lá de fria, José olhava com atenção o que estava a acontecer, embora detestasse sentir o rabo gelado. As emoções daquela noite compensavam outras partes do corpo; pensou que não podia
concordar mais com Paco: Maria era digna de alguém fugir com ela, e
dar não uma, mas duas voltas ao mundo.
Maria e José não chegaram a falar um com o outro na noite das
fogueiras de São João na praia de O Vao, mas no momento em que os
seus olhares se cruzaram, nunca mais uma noite de 23 de Junho foi a
mesma.
66
- 14 En el día en que todo ocurrió
A
noite terminou com o dia. O ar fresco que se levantava da ria ajudou a extinguir as brasas das fogueiras.
Cada um dos convivas, no regresso a casa, sentia viver entre os espaços que os minutos vão deixando perdidos no tempo, tentando enganar os donos dos relógios e até mesmo quem não os tem.
José não conseguia deixar de pensar naqueles olhos azuis e em
tudo o que encerravam dentro de si. Tinha um nome – Maria –, mas o
tempo que de que dispunha para saber algo mais estava a terminar.
Caminhando em grupo, foram-se aproximando da casa de cada
rapariga e, depois de garantir que entravam, continuavam a sua peregrinação para a seguinte.
Apercebeu-se, pelas palavras da rapariga que caminhava ao seu
lado, de que a casa de Maria estava próxima e que, se não tivesse uma
ideia brilhante nos minutos seguintes, provavelmente a sua volta ao
mundo nunca chegaria a ser feita com a mulher dos olhos azuis.
Estávamos em 1996, ninguém naquele grupo sabia o que era um
e-mail e ainda menos tinham computadores em casa. Os telemóveis,
hoje peças de vestuário banais, eram então pesadas peças de luxo inacessíveis.
Respirou fundo e percebeu que este era um daqueles momentos
em que não podemos ficar a dever nada à vida que nos é dada.
A manhã estava bem fresca, mas sentia um calor enorme a percorrer-lhe as costas, até ao centro da sua cabeça.
Abriu um botão da camisa; se fossem dois, poderia ter sido mais
problemático. Acelerou o passo.
67
Ro s a l í a de C a s t ro
Fechou os olhos e o que viu foi maravilhoso. Não eram imagens definidas, mas sombras projectadas pela luz tímida de uma pequena vela.
Fechou os olhos com mais força ainda e conseguiu ouvir uma música que
nunca tinha escutado, mas que pedia para ser tocada uma e outra vez.
Respirou fundo e sorriu por dentro e por fora. Sentiu passar pela
sua cara o vento que subia das rias baixas e o dia, de repente, tinha ficado claro. Olhou para a rapariga que continuava a caminhar a seu lado,
sacudiu a areia que tinha no cabelo e disse baixinho:
− Tenho de ir…
Acelerou o passo e percorreu a parte do grupo que o separava de
Bea, Lúcia e Maria, que caminhavam na frente.
Nenhuma das três tinha reparado na sua presença e continuavam
a rir bem alto.
A brisa, que uns minutos antes o tinha empurrado para a frente,
parecia agora estar a soprar em direcção contrária. Sentiu-se o maior
parvalhão do mundo e pensou que nunca deveria ter deixado o lugar insignificante onde estava, na traseira do grupo.
Quando se preparava para desacelerar o passo, de forma a desaparecer silenciosamente algures na rua que ficava deserta para trás, a mão
de Maria pegou-lhe no braço e puxou-o para si.
− Não me vais pedir para me casar contigo e fugir para dar a volta
ao mundo pois não?
Entre os risos das amigas e os olhos tremendamente brilhantes de
Maria, José quase deixou de respirar. Era preciso reagir rápido.
− Daqui a uns anos talvez, mas primeiro temos de ser namorados.
Fechou a frase com uma enorme gargalhada que, felizmente, teve
sequência nas três amigas.
− Vou levar o teu caso às Nações Unidas, José. Chamas-te José, não é?
Por incrível que pudesse parecer Maria sabia o seu nome. Ele existia
na vida da rapariga mais bela com quem alguma vez se tinha cruzado.
Começou a chover no momento em que os seus olhos se fundiram. Era absolutamente indiferente se estavam três ou três mil pessoas à
sua volta. Não ouviam nada e não diziam nada.
Continuaram assim até que José sentiu o braço de Maria apertar
contra o dele com bastante mais força, e só saiu daquele transe quando
todos pararam.
68
J. P e r r e Vi a n a
A chuva caía sem misericórdia nas suas cabeças, ao chegarem a
casa de Maria. O caminho terminava ali.
O vento voltou a soprar mais forte e a coragem, que faltara uns
momentos antes, regressava ao ponto de conseguir respirar e aperceber-se disso.
Trocaram moradas e números de telefone antes de ela entrar. Não
disseram muito mais e José não acompanhou o grupo na marcha que se
seguiu.
Sentou-se num degrau próximo e ficou ali a saborear as lágrimas
de alegria que caíam na sua cabeça e que lentamente se misturavam com
as suas.
Maria chegou rapidamente ao final do curso no colégio e quase
não deu por passar o Verão mais longo dos últimos anos, vivido entre a
praia de Cangas e as festas na cidade.
Em Setembro daquele mesmo ano já estava a entrar na porta central da Universidade de Filologia e Tradução do Campus de Lagoas –
Marcosende, às portas da Cidade.
Foi naquela baía de contradições que Maria cresceu, tomando o
seu Pai como exemplo máximo de vida, ao ponto de ser impossível um
homem ambicionar estar naquela posição.
Vigo sabe amar!
69
Parte II
Santiago de Compostela
- 15 Signal frequency is out
U
m início é sempre um início. À semelhança dos primeiros passos
que se dão numa determinada direcção, o despertar dos sentidos
poderá ser mais ou menos doloroso. É sempre uma prova.
Depois de mudar os seus objectivos de vida, ou pensar que o tinha
feito, José viu-se no final do primeiro ano do novo curso de Marketing a viver um filme que já conhecia bem.
De desinteresse em desinteresse, as aulas, que estavam em segundo,
passaram para terceiro plano, ao ponto de se esquecer dos horários, exames,
trabalhos. Enfim, o sabor amargo da desilusão, um velho conhecido seu,
estava de volta.
Da promessa de poder transformar em ouro tudo em que tocava, era
hoje, aos vinte e poucos anos, uma sombra assustadora, um projecto adiado.
Uma madrugada, que já era mais manhã, ao entrar em casa em
trânsito rápido para o quarto, reparou que a Mãe estava acordada, sentada no cadeirão grande da sala, mesmo em frente à televisão desligada.
Não podia ser bom.
O gira-discos, que não fazia qualquer exercício há vários anos, tocava baixinho sons que só tinham lembrança de ser ouvidos ainda os militares1 mandavam nas vontades do país.
1 O MFA, ou “Movimento das Forças Armadas”, foi o responsável pela revolução de 25 de Abril
de 1974, que pôs termo à ditadura e ao Estado Novo em Portugal. A principal motivação deste grupo de
militares era a oposição ao regime e o descontentamento pela política seguida pelo governo em relação à
Guerra Colonial. As tropas foram comandadas no terreno por diversos capitães, de entre os quais o mais
destacado e mais recordado foi Salgueiro Maia, que comandou tropas vindas da Escola Prática de Cavalaria de Santarém. No quartel da Pontinha, as operações eram dirigidas pelo então major Otelo Saraiva
de Carvalho.
73
Ro s a l í a de C a s t ro
Ao olhar para a Srª Dª Rosa − era assim que a chamavam no prédio da Rua Castilho −, percebeu que algo tinha mudado e nunca mais
seria o mesmo. Pequenas lágrimas rolavam na sua cara, provavelmente
porque as grandes já há muitas horas tinham caído.
Debaixo da agulha, Manuel Freire cantava o melhor Manuel Freire1.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
O Professor Costa Terra já não morava naquela casa. Ao início da
noite, entusiasmado ou não com o programa do canal 22, deixou o olhar
repousar no jornal que tinha entre as mãos e partiu – segundo a Srª Dª
Rosa, para o Céu e, na opinião de José, para parte incerta.
1 Manuel Freire is a Portuguese influential left-wing singer and composer, although he also
works as a computer technician. Freire was born in Vagos, Aveiro District in 25 April 1942.
Freire’s first work was an EP, released in 1968, with the title Livre, that included 4 songs. Livre,
Dedicatória, Pedro Soldado and Eles. The best-known song was Livre, a hymn to the free will and
thought as the album was released during the Fascist regime of Oliveira Salazar, against the official
censorship. After that, Freire became a close friend of some of the most influential left-wing musicians like Zeca Afonso, Padre Fanhais or Adriano Correia de Oliveira.
Some years later, still during the dictatorial regime, Freire participated in a TV show, in the only
Portuguese station operating at the time, RTP, the Zip-Zip, singing a poem by António Gedeão called Pedra Filosofal (Philosopher’s Stone) that became his most well-known song.
2 RTP2 is the second television channel of the Portuguese public broadcasting corporation.
Commonly referred as the “Second Channel”, or simply “Dois” (Portuguese for two). Similar to BBC
Two, RTP2 aims at less mainstream and more intellectual content.
RTP2 is the only of several Portuguese and European national/international channels that has
a strict cultural and educational programming (comparable to Arte). RTP2 is the only broadcaster
from Portugal that broadcasts programming without interruptions, ad breaks or in line messaging.
74
J. P e r r e Vi a n a
A morte era algo distante na sua vida. Exceptuando o movimento
diário da casa mortuária que ficava do outro lado da rua, debaixo das arcadas da igreja paroquial, só mesmo a história de um rapaz mais velho
do liceu, que tinha sido morto, ao que parece, por ter namorado com a
rapariga errada.
Sentou-se na sala ao lado da Mãe e gostaria de ter conseguido chorar, mas não, pelo menos para fora. Sabia que iria ter saudades do Pai, que
era um homem extraordinariamente bom, sempre bem-disposto e presente, mas não conseguia sentir nada, a não ser que a sua vida não mais
poderia ser a mesma.
Entre preparativos, velórios, pessoas que chegam e partem a dar as
condolências, os senhores da agência mortuária, as flores, o padre, fica
muito pouco tempo para se pensar nos mortos.
No final do dia seguinte, parou.
Na casa de banho demorou-se mais em frente ao espelho do que o
normal. Olhou com atenção para a figura na sua frente, parecia um homem.
Já não era um menino, os olhos eram os mesmos, mas tudo o resto estava diferente.
Abriu a embalagem de espuma e começou a barbear-se. Sabia que
o Pai iria ficar orgulhoso de o ver naquele momento; infelizmente, já
não era possível.
Não podia mudar o que estava para trás, que na verdade não era
muito, mas podia olhar para a frente de outra maneira.
Existem coisas que não devem esperar. Viver é uma delas.
75
- 16 Moore’s Law
S
egundo Gordon Moore1, a velocidade com que os circuitos integrados se desenvolvem duplica a cada dezoito meses. Após a morte do
Professor Costa Terra, José conseguiu quebrar essa regra ao nível dos
seus transístores interiores.
Da noite para o dia, passou a frequentar as aulas, todas as aulas.
Os colegas, que durante o primeiro ano raramente lhe tinham
posto os olhos em cima, chegaram a pensar que José era uma transferência recente de outra universidade.
Para os professores, pelo menos para alguns, a nova estrela da turma quase os fez acreditar que valia a pena ser professor, pelo impacto que
se pode ter na vida dos outros; mas, claramente, não era este o caso.
Revelador de uma curiosidade que parecia não ter fronteiras, começou a esbarrar nos limites opostos do que tinha sido a sua vida recente. Ao perceber o conteúdo, as soluções, o que tinha pela frente passava
de imediato ao desafio seguinte, professores incluídos.
As noitadas, que eram intermináveis, passaram a ser minúsculas;
deitava-se tarde e levantava-se bastante cedo; procurava que nada faltasse
à Mãe e a hora de jantar voltou a ser religiosamente cumprida.
Gostava da experiência nova de não ter tempo. A excepção eram
os tons mais calmos, tocados na sua guitarra nos finais do dia, e a me1 Moore’s law is the observation that, over the history of computing hardware, the number of
transistors on integrated circuits doubles approximately every two years. The period often quoted as
“18 months” is due to Intel executive David House, who predicted that period for a doubling in chip
performance. The law is named after Intel co-founder Gordon E. Moore.
76
J. P e r r e Vi a n a
mória no seu pensamento daquela pele branca carregada de sardas, tão
distante quanto o tempo em que a tinha conhecido.
De nada lhe valia jurar ser mais arrumado e saber onde guardava
as coisas importantes. O pequeno papel com a morada de Maria Cortez
tinha desaparecido antes mesmo de as primeiras páginas escritas terem
sido colocadas dentro de um envelope.
77
- 17 Happy Birthday
O
que não parava de aumentar era o seu desejo de fazer mais actividades, coisas diferentes que pudessem proporcionar-lhe outras experiências, uma sede acumulada capaz de gerar uma energia que, do sítio onde estava, lhe parecia infinita.
O Verão chegou, passou e foi substituído por um Outono mais
quente do que a estação que partira.
No rés-do-chão do seu prédio, vivia ainda um velho amigo seu.
Miguel era filho da porteira do prédio e o pai era polícia, acabando por ganhar a alcunha de filho da “Portícia”. As crianças podem ser
cruéis.
José e Miguel costumavam encontrar-se todos os dias.
Miguel, durante anos, foi colega de equipa ou adversário, consoante o número de jogadores que se juntava no grande átrio de pedra na entrada do edifício.
José era quase sempre o melhor jogador, embora detestasse correr
atrás de elementos esféricos e passar a hora a levar e a dar empurrões.
Miguel, do outro lado, parecia jogar com uma bola quadrada e adoraria
ter o tamanho e o talento de José.
No início corriam atrás de um monte de folhas de papel, enroladas
e comprimidas com fita-cola, geralmente testes antigos do Professor
Costa Terra. Quando as guitarras tocaram mais alto, Miguel seguiu outro caminho.
José e Miguel começaram a encontrar-se menos.
Mais tarde, muito mais tarde, José entrou na Faculdade de Belas
Artes e Miguel no Instituto Superior de Engenharia.
78
J. P e r r e Vi a n a
José e Miguel viam-se duas vezes por ano, quando o rei fazia
anos1: em Outubro, no caso de Miguel; e em Abril, no caso de José.
O aniversário de Miguel era duplamente importante naquele ano,
para além dos 23 Outonos, tinha conseguido terminar em cinco anos o
curso de Engenharia, um feito considerado exemplar, especialmente por
quem demora mais de oito ou nove a fazer o mesmo.
À semelhança de todos os anos anteriores, os rituais de celebração
de que José conseguia lembrar-se eram sempre os mesmos. Aquele não
era excepção.
Haveria um lanche à volta da mesa de madeira maciça, quase
maior que a sala, um discurso da Dª Aurélia, explicando que as dores
de parto que tinha sofrido eram recompensadas por ter o melhor filho
do mundo. Depois os amigos, que nunca podiam ser mais do que o
tamanho do quarto de Miguel, divertiam-se com as brincadeiras da
época.
Naquele ano, o Pai de Miguel, que já não era novo, tinha feito um
esforço desmedido para cumprir um desejo antigo do prodígio da casa; rebuscando as poupanças de anos, colocou no seu quarto um computador.
Os olhos da Dª Aurélia encheram-se de lágrimas e, ao que parece,
até voltou a beijar o marido, algo que só encontrava paralelo no período
revolucionário na década de 70.
José não tinha computador, mas trabalhava com vários na universidade, pelo que o facto não lhe despertou grande emoção.
A surpresa daquela tarde estava, no entanto, para vir em forma de
modem de 32 bits.
Miguel andava entusiasmado com uma coisa nova de contornos absolutamente imprevisíveis que, na sua opinião, iriam definir o futuro da
Humanidade: a World Wide Web ou, para os mais ignorantes, a Internet.
Pediu aos amigos à sua volta que passassem para trás do ecrã. A demonstração estava prestes a começar.
Fez-se um silêncio, misto de emoção e nervoso miudinho, apenas
interrompido segundo a segundo por uns sons meio abafados, meio es1 A frase/expressão «quando o rei faz anos» encontra-se registada em vários dicionários específicos desse tipo de expressões, como locução/expressão usada para designar muito raramente, espaçadamente; de vez em quando, ou em raras ocasiões.
79
Ro s a l í a de C a s t ro
tridentes, saídos da pequena caixa branca que, por sua vez, ligava a linha
telefónica à parte de trás do computador.
Lentamente, começou a aparecer uma imagem no pequeno ecrã
que, pedaço a pedaço, se tornava parte de uma imagem maior. Ao chegar ao fim, a surpresa era geral.
− Meus amigos, isto é o futuro, é aqui que eu vou passar o resto dos
meus dias.
Miguel falava com autoridade. O rapazito com pouco jeito para as raparigas e com mais borbulhas do que pêlos na cara, era hoje uma criatura diferente. O milagre da Internet tinha-o transformado numa pessoa cool1.
− A partir da nossa casa, podemos entrar em qualquer parte do
mundo e ver coisas que até agora eram absolutamente impensáveis.
O recém-formado engenheiro continuava a abrir para os seus convidados todo o potencial das suas afirmações.
Quem não tinha ficado indiferente tinha sido José. Sem saber bem
porquê, sentia que aquele era um momento para guardar e recordar mais
tarde.
Ao olhar para aquela janela que lhe abria a possibilidade de furar todos os limites da curiosidade, sentiu uma comoção que o obrigou a sentar-se em cima da cama e recostar-se para que aquilo em que estava a pensar
não caísse para o chão.
Miguel estava feliz, provavelmente a viver um dos melhores dias
de sempre, com os pais realizados, os amigos rendidos e José esmagado
pelas suas capacidades no seu próprio quarto. Aquele sorriso não iria sair
da sua cara durante bastante tempo.
− O que é que vais fazer, agora que terminaste o curso?
José, que parecia perdido no meio das almofadas encostadas à parede, voltava à vida, tentando perceber o que tinham pela frente.
Miguel ficou surpreso; não era o tipo de comentários que estava
habituado a ouvir do amigo do 3º Esq.
1 Coolness is an admired aesthetic of attitude, behavior, comportment, appearance and style,
influenced by and a product of the Zeitgeist. Because of the varied and changing connotations of
cool, as well its subjective nature, the word has no single meaning. It has associations of composure
and self-control (cf. the OED definition) and often is used as an expression of admiration or approval. Although commonly regarded as slang, it is widely used among disparate social groups, and has
endured in usage for generations.
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J. P e r r e Vi a n a
A mãe já tinha comentado que desde que o pai, o Sr. Professor, tinha
morrido, algo se tinha passado na sua vida; estava mais rapaz e até tinha
começado a fazer a barba.
Antes de responder, Miguel olhou para José. Queria tirar as medidas da pergunta antes de mostrar a mão1 que tinha guardada, não fosse
necessário ter de se socorrer de um jóquer.
Curiosamente, José fazia o mesmo movimento, olhava fixamente,
desafiando a lógica construída na cabeça de Miguel ao longo dos anos.
− Vou criar uma empresa de Internet e conquistar o planeta.
− Porreiro, então vou ser teu sócio.
Resposta rápida e implacável de José. Estava mesmo diferente,
pensou Miguel.
− Combinado!
− Quando é que começamos?
Bolas! Foi o que pareceu sair da sua boca, embora na verdade tenha sido algo mais próximo do vernáculo usado naquela rua.
− Estás livre para a próxima semana?
− Estou livre hoje.
Nem a técnica defendida de que o ataque é a melhor defesa parecia estar a resultar, quiçá Miguel tivesse de seguir algo mais próximo da
máxima “se não podes vencê-los, junta-te a eles”.
A risada à volta do computador foi geral e total. Entre comentários
e palmadas nas costas, a festa de aniversário seguiu o seu curso normal.
Carlos Manuel, amigo de sempre, que ao invés de estudar tinha
decidido seguir uma carreira de sucesso na frutaria do Sr. Pedro, logo ali
no início da rua, debruçou-se sobre o teclado e, olhando seriamente, perguntou a Miguel.
− E gajas, podemos ver gajas?
1 O póquer é jogado com um baralho de cinquenta e duas cartas, apesar de alguns jogos usarem mais de um baralho e em alguns casos até os jóqueres. Estes são muitas vezes utilizados como
trunfos, que podem ser usados no lugar de qualquer carta de modo a ganhar uma mão.
Em termos gerais, todas as mãos incluem cinco cartas e a mão vencedora é aquela que possuir as
cinco melhores cartas. Alternativamente, alguns jogos são ganhos com a melhor mão de cartas baixas, como em Hi/Lo por exemplo.
81
Ro s a l í a de C a s t ro
− As que quiseres, Carlos.
A resposta do dono da casa foi seguida de um frenesim próprio de
quem finalmente tinha descoberto o que era a Internet.
Enquanto as investigações terrenas prosseguiam pelas mãos dos
aprendizes de feiticeiro, agora com a porta do quarto fechada, Miguel e
José afastaram-se um pouco.
− Falavas a sério?
Miguel queria tocar com os pés no chão.
− Sim, muito a sério mesmo, podes contar comigo.
Naquela tarde, selaram um acordo que respondia às aspirações de
ambos. Sabiam o queriam fazer e, para além de mais, um programador
da turma de Miguel, que não estava ali, já tinha dado o seu ok. A equipa fundadora estava encontrada.
Sem grande surpresa, este seria também o início do fim do negócio das revistas porno que o Sr. Alípio vendia no pequeno quiosque ao
pé da paragem do autocarro.
82
- 18 Páginas Amarelas
E
ncontraram-se às 9h00 da manhã. Tinham uma vaga ideia de
que era a essa hora que as empresas se reuniam para começar a trabalhar.
Uns bons quinze minutos antes, Rita Pereira, a primeira contratação da recém-criada Bits & Bytes, já aguardava à porta do nº 36 da Rua
da Guiné.
Era o seu primeiro dia como assistente de direcção, responsável
administrativa, recursos humanos, limpezas e afins e não gostava de
chegar atrasada. Aliás, era o primeiro dia para a Bits & Bytes também.
Miguel e Pedro, o programador, chegaram uns cinco minutos antes
da hora marcada. Juntos inauguraram a entrada oficial, colocando o pé direito na subcave esquerda daquela rua tão íngreme quanto a sua ambição.
José chegou quinze minutos depois. Os horários matinais eram estreias absolutas no passado recente da sua vida e, ao contrário do que os
seus sócios ou mesmo Rita pudessem pensar, estar ali àquela hora era um
sinal de enorme respeito para com eles.
Assim que os três visionários se juntaram na sala de reuniões, que
era simultaneamente sala da direcção, recepção e gabinete de trabalho,
Rita, depois de esperar mais de uma hora sem saber muito bem o que fazer, perguntou:
– Desculpem, mas gostava de saber o que é que devo fazer.
A pergunta, por mais óbvia que pudesse parecer, deixou as três almas na sua frente estupefactas, pois na verdade não tinham ideia do que
era esperado de uma secretária, assistente, tradutora e também responsável de recursos humanos. Fez-se silêncio.
83
Ro s a l í a de C a s t ro
– Bom, já temos um escritório, temos secretárias e dois computadores, um livro a explicar como é que se constrói um site, portanto agora precisamos de clientes.
Pedro, por ser aquele que originalmente tinha pensado na ideia de
criar a empresa, marcava o ritmo dos acontecimentos, os olhares dos restantes ficaram suspensos à espera do comentário seguinte.
Infelizmente, para além do tio que trabalhava numa agência de
viagens e do seu clube de futebol favorito, que não tinha sequer computadores, Pedro não tinha muito mais ideias em mente.
Fez-se novamente silêncio.
– E eu o que é que faço?
Rita voltava a insistir. Começava a perceber que as pessoas à sua
volta tinham pouca ou nenhuma ideia do que fazer; ainda estava a tempo de ir até ao centro de emprego naquela manhã.
– Tive uma ideia – começou por dizer José.
Pegando com uma mão no volume de papel de quase três quilos
de umas páginas amarelas deixadas por quem tinha vindo instalar o telefone fixo, apontou com a outra mão para a porta da rua.
– Rita, vais começar a fazer telefonemas desde o topo da página
até ao seu final, ok? Perguntas se a empresa tem página de Internet e tentas agendar uma reunião de apresentação.
Pedro e Miguel, metódicos e aplicados recém-licenciados em engenharia informática, não conseguiram esboçar qualquer reacção, porque
ficaram na dúvida entre rir na sua cara ou confirmar com o olhar a sugestão.
– Outra pergunta.
Rita parecia concentradíssima e indiferente às indecisões.
– Por que letra devo começar os telefonemas?
Miguel e Pedro olharam ordenadamente na mesma direcção, a
cara de José, a única possível, face ao inusitado da situação. Aquele que
inicialmente parecia poder contribuir com alguns conhecimentos de design e marketing revelava-se uma surpresa estratégica.
– Pelo J, Rita, começamos pelo J. Agora vamos tomar um café.
A assistente da direcção, responsável administrativa, recursos humanos, limpezas e afins sentou-se na sua secretária, que também era recepção, para começar diligentemente as suas tarefas.
84
J. P e r r e Vi a n a
Os três sócios atravessaram a rua até ao snack-bar A Gruta, que
àquela hora da manhã já teria o Record1 e A Bola2 disponíveis para leitura em cima da bancada.
Estava lançada a Bites & Bytes, o projecto mais improvável em
que alguma vez na vida José tinha pensado participar, mas que abriria
janelas por onde nunca antes se atreveria sequer a espreitar.
1 Record is a Portuguese sports newspaper, founded by Manuel Dias published in Lisbon. Although it covers most sports, football is the focal point of it, and almost always is the only sport referred to on the cover. It is generally seen as appealing to supporters of Sporting CP.
2 A Bola (English: “The Ball”) is a Portuguese sports newspaper, published in Lisbon. It was
founded in 1945 by Cândido de Oliveira and Ribeiro dos Reis, and was then published twice a week.
It became a daily newspaper in 1995.
Although its subtitle is “newspaper of all sports,” its content is mainly about football. It is generally seen as appealing to supporters of Sport Lisboa e Benfica.
85
- 19 Freedom
A
s fogueiras de São João, na interminável noite de 23 de Junho de 1996,
pareciam ter acontecido algures no século passado. Na verdade, estavam
muito perto disso: corria o último Verão bem às portas do novo milénio.
Pelo meio ficaram quatro anos sem se encontrar a justificação certa
de uma viagem a um destino que não se conseguia apagar. À medida que o
tempo passava, a lembrança diminuía como uma fonte que seca lentamente até parar. Não era o seu tempo.
Maria Cortez seguiu o seu caminho universitário, ano após ano,
disciplina após disciplina e rapaz atrás de rapaz, sem perceber exactamente o que é que estava a fazer.
Faltava pouco mais de um ano para concluir os seus estudos e, ao
contrário das amigas e colegas que já tinham inúmeros planos de emprego,
família e afins, Maria ainda não se tinha apercebido da razão pela qual estava a estudar, excepto porque parecia fazer sentido ser assim e todos os outros o faziam também.
Começou a ir cada vez menos às aulas, que insistiam em começar
demasiado cedo tendo em conta as noites que acabavam demasiado tarde.
Noites longas, acompanhadas por cigarro atrás de cigarro, onde
cada novelo de fumo se parecia cada vez mais com a sua vida: maravilhosa enquanto subia no ar, mas desaparecendo de imediato.
Os finais de tarde começavam no seu bar preferido – café Uf Negra
Sombra – à entrada da parte antiga da cidade, reunida com o seu grupo de
experimentalistas da vida; era assim que gostavam de falar de si mesmos.
As tardes entravam pela noite e a noite pela noite, longa, até saírem em
grupo com os proprietários dos bares, quando estes voltavam para casa, aos
primeiros raios da manhã.
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J. P e r r e Vi a n a
Liam o que por lá ficava nas prateleiras, jogavam às cartas, ouviam
quem tocava e bebiam, conspiravam ideologias de ocasião, jogavam xadrez e
discutiam mais um pouco, liam coisas novas ou que gostavam de repetir e era
assim a vida, de Maria e dos outros.
Uma das suas grandes amigas, a simpática Teresa, que conhecia toda
a gente e que toda a gente conhecia, fazia anos no final da primeira Primavera do novo milénio.
O grupo de amigos mais próximos decidiu ser o primeiro a acolher o dia de aniversário e fazer-lhe uma surpresa.
Quando o relógio decidisse atravessar-se para lá da meia-noite, iriam
manter a festa em andamento até perto das 5h00 da manhã, hora a que tinham combinado alugar um barco no porto que os levasse a ver o nascer
do dia ao largo da baía de Vigo.
Tudo tinha sido preparado em segredo, o que fazia com que uma
série de olhares cúmplices corressem por entre quem estava à volta da
mesa. A hora ia-se aproximando e a surpresa também.
A noite musical tinha sido dedicada ao louco Tom Waits.
Maria pensou, ao ouvir a música que tocava, que os argumentos
estavam errados, a canção estava errada, The piano has been drinking (not
me). Ela, claramente, já tinha bebido de mais, fumado de mais e, no entanto, a sua vida continuava mais ou menos na mesma, com pouco sentido excepto, claro, os serões no Negra Sombra.
Curiosamente ou talvez não, a dormência do álcool é acompanhada por momentos não raros de enorme clarividência e, por difícil que
possa parecer, de grande sobriedade, embora seja difícil prever se antes
ou depois de a dor de cabeça começar.
Este era um desses momentos na vida de Maria.
Entre os dois cigarros que restavam no maço, passou os últimos
anos em perspectiva e foi fácil concluir duas coisas: a sua vida não estava
bem; era importante mudar alguma coisa.
Tinha por hábito, desde pequenina, quando se encontrava no meio
de tantos pessoas, sons e cores, entrar numa espécie de autismo1.
1 Autism is a disorder of neural development characterized by impaired social interaction and
communication, and by restricted and repetitive behavior. The diagnostic criteria require that symptoms become apparent before a child is three years old
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Ro s a l í a de C a s t ro
Para os que estavam à sua volta, mantinha uma cara agradável, que
quase parecia sorrir e, se falassem com ela, até seria capaz de emitir algum
som que no fundo não queria dizer nada, mas poderia ser associado a uma
típica concordância.
Esta atitude permitia ao emissor falar por longos minutos, enquanto Maria se dedicava a observar as diferentes dimensões dos pensamentos
que circulavam na sua cabeça, sem ordem alguma, mas todos parte de
uma mesma trama.
Quando apagou o último cigarro, decidiu tomar duas importantes
resoluções: iria sair de Vigo à primeira oportunidade e não voltaria a fumar
enquanto não comprasse outro maço, altura em que o charro que vinha a
rodar a mesa no sentido dos ponteiros do relógio chegou até ela.
A meia-noite chegou e, tal como tinham combinado, colocaram-se todos à volta de Teresa a cantar os parabéns.
Maria olhou para a sua amiga e conseguiu ver dez anos mais à frente
a mesma imagem. Vinte anos, trinta anos e as únicas coisas que mudavam
eram os brancos que cobriam o bonito cabelo da sua amiga e as pessoas que
à sua volta desapareciam à medida que iam morrendo. Torceu o nariz, passou o charro ao amigo que estava ao lado e concluiu que não iria fumar mais
o que quer que fosse.
Tom Waits continuava a sua luta dentro das colunas espalhadas no
bar e sem grandes ajudas, se é que precisava delas, cantava uma velha canção dos anos sessenta – Sea of Love – quando Maria se lembrou de que o
amor ainda não lhe tinha batido à porta, ou se tinha, ela já se esquecera.
O tempo, esse malandro, quanto mais gostamos do que estamos a
fazer mais depressa ele parece querer sair dali. Eram quase quatro e meia
da manhã e estava na hora de seguirem para a segunda parte da festa.
Quando se preparavam para sair, cruzaram-se com um grupo grande
só de rapazes, uns mais novos e outros mais velhos, que acabava de entrar.
Pelo barulho que faziam, traziam uma pequena festa dentro de si,
e esta não seria certamente a sua primeira estação na peregrinação daquela noite.
Olhando para um dos rapazes que andava com uma coroa de flores
na cabeça, tudo lhe fazia crer estar perante uma despedida de solteiro.
Olhou melhor e viu uma chucha gigante ao peito e um cartaz nas
costas que tinha escrito “Caso-me amanhã, hoje podem dar-me os beijos
que quiserem”; sorriu e quase se atreveu a fazê-lo.
88
J. P e r r e Vi a n a
Por entre as muitas caras que passavam na entrada, viu uma que,
mais do que conhecida era uma cara desejada, desejada de longa data.
Por entre o grupo que entrava, um olhar na direcção de Maria com
uma expressão, aquela mesma que tinha deixado à porta de casa há alguns
anos e não muito longe daquele mesmo local. Estava mais velho, pensou
Maria, mas mais bonito também.
– José?
Maria tentou que as suas palavras chegassem com alguma segurança aos ouvidos do visitante inesperado.
– Maria! Que bom encontrar-te.
Provavelmente queria ter dito bastante mais do que isso, mas o
tempo, esse ladrão que se esconde entre os dias da nossa vida, não o deixou ir mais longe.
– Por Vigo? Que fazes aqui?
José olhou para o amigo que seguia na sua frente com a enorme
chucha ao pescoço e esboçou um sorriso ainda maior.
– Viemos fazer a despedida de solteiro de um grande amigo, casa
amanhã em Portugal, junto à fronteira.
– Coitado do rapaz.
Maria respondeu poisando a sua mão no braço direito de José, ao
que este respondeu colocando a sua mão esquerda por cima da de Maria.
– Sim, teve pouca sorte.
Olharam um para o outro por um segundo, com uma cara séria,
para de seguida se desfazerem numa enorme gargalhada, que acabou por
se diluir com todo o barulho que os rodeava.
– Já vais sair? Não ficas mais tempo?
José não queria acreditar que, no preciso momento em que se tinha reencontrado com Maria, ela iria desaparecer de seguida.
– Estou com umas amigas e vamos fazer uma surpresa a uma delas.
– Tens de sair?
– Sim, alugámos um barco para nos levar até às ilhas e daqui a
meia hora temos de estar lá em baixo no porto.
– Claro, compreendo.
– E tu ficas mais tempo?
Maria olhava fixamente para José.
Os sorrisos tinham quase desaparecido, à medida que o diálogo
avançava e a inevitabilidade de se separarem novamente se tornava real.
89
Ro s a l í a de C a s t ro
– Gostaria muito – respondeu José –, mas regressamos a Portugal
dentro de umas horas.
– As obrigações dos que se vão casar, entendo.
– Mas talvez possa voltar noutra altura. Comecei a minha própria
empresa com uns amigos e viajo bastante.
– Senhor empresário, parabéns. Fico feliz por ti.
Maria sorriu de tal forma que o oxigénio de José começou a desaparecer devagar. Talvez fosse do calor que se sentia no bar.
Era provável que Maria estivesse a fazer um compasso de espera
para responder, mas no entendimento de José, talvez não tivesse percebido bem o que tinha acabado de dizer.
– Posso voltar – insistiu Maria.
Sem ter medido as palavras, elas já tinham saído. Arriscava-se a fazer uma figura bem triste, se Maria não respondesse.
Mas Maria não teve tempo para responder: Teresa tinha voltado atrás
para ver onde estava a sua amiga e, a pouca distância, começou a chamá-la
para fora.
Uma combinação estranha de amigos levou-os a um inesperado
reencontro. Parados e bem perto um do outro, ficaram imóveis. O barulho era tal que foram os olhares que falaram, substituindo as palavras que
teimaram em não sair.
– Caminha comigo. – As palavras nem chegaram a assumir o grau
de sussurro.
– Fica mais um pouco. – Era o desejo de José.
Tal como anos antes tinha puxado o braço de José no meio da rua deserta, Maria voltou a repetir o gesto com o mesmo efeito no seu termostato1.
Sem reacção, saíram os dois lado a lado para a rua e seguiram em direcção ao porto, logo atrás do grupo de amigos onde seguia Teresa, a aniversariante.
Passadas largas entre as golfadas de ar cada vez mais fortes e frias que
chegavam do mar ajudaram cada um a pensar no que é que queria dizer a
seguir.
1 O termostato é um dispositivo destinado a manter constante a temperatura de um determinado sistema de regulação automática. Tem a função de impedir que a temperatura de determinado
sistema varie além de certos limites estabelecidos.
90
J. P e r r e Vi a n a
Maria sentia que este encontro não se dera por acaso. Desejava estar com ele, mas o interesse de José talvez fosse apenas igual a tantos outros que chegam e partem depois de conquistarem o primeiro beijo.
Porque é que ele nunca lhe tinha enviado uma única carta?
Teria sido apenas Maria a sentir a energia daquela noite?
Por seu lado, José procurava lembrar-se e rever no seu pensamento
a carta escrita e nunca enviada. Não que estivesse a pensar ressuscitar o
assunto, mas apenas para o caso de ele aparecer.
– A minha vida mudou desde que nos conhecemos.
Por segundos, Maria pensou o pior, olhou rapidamente para as
mãos de José e dos dez dedos que conseguiu contar, não encontrou prova ou vestígio de que a mudança tivesse passado por ali.
– Talvez numa próxima ocasião, gostava de falar contigo.
– Sim, eu também.
José começou por explicar que tinha de voltar ao encontro do seu
grupo de amigos.
Em breve, teriam de estar de regresso a Viana do Castelo, no lado
português da fronteira, para refrescarem o noivo, que se casava às 12h00
e ele, como bom padrinho que era, não podia falhar.
– Gostei muito de te encontrar aqui.
Começou por dizer José, embalado pela rua íngreme que descia
por debaixo dos seus pés.
– Eu também – respondeu Maria.
Fez um compasso de espera, mas apenas para ganhar balanço e
continuar o que estava a dizer.
– Não podia ter sido uma melhor altura para te reencontrar.
José teve receio do que iria ouvir a seguir. Foram segundos aterradores. Iria Maria casar-se? Teria ele chegado demasiado tarde? Ou algo
pior? Haveria algo pior?
– Vou deixar Vigo no início de Setembro. Pedi transferência para a
Universidade de Santiago de Compostela e vou terminar os meus estudos lá.
Afinal não era tão dramático como inicialmente tinha chegado a
admitir, embora tenha ficado a pensar na razão pela qual se tinha preocupado tanto.
O que é que Maria fazia despertar dentro de si que lhe tinha causado tamanha aflição?
91
Ro s a l í a de C a s t ro
– Santiago?
Acabou por ser a sua única resposta enquanto pensava nos efeitos
que este encontro lhe estavam a provocar.
– Mas, se podes voltar a Vigo, também podes andar mais cem quilómetros para norte e visitar-me em Santiago, não podes?
A resposta de Maria fez-lhe lembrar os foguetes que são lançados
nas aldeias, avisando que a festa está prestes a começar.
A ideia de poder voltar a estar com Maria era o prémio maior para
uma despedida de solteiro onde tudo lhe tinha parecido deprimente e
triste. Além do mais, nunca visitara Santiago de Compostela.
– Claro que sim – respondeu com um sorriso, saltando de imediato para coisas mais práticas.
– Qual é a melhor maneira de lá chegar?
Maria, por seu lado, estava surpreendida com o entusiasmo da
reacção. O seu pensamento avançou no tempo, ao ponto de se imaginar
com José a caminhar nas pedras ao redor da velha catedral.
Olhou para José e, depois de um pequeno compasso de espera,
sorriu e respondeu:
– Podes fazer como os peregrinos.
José ficou a meio caminho entre rir ou levar a sério a sugestão. Só
não fazia a mínima ideia porque é que as pessoas, os peregrinos, gostavam
de andar tanto quando tinham outras formas bem mais práticas de chegar
ao destino.
– Creio que para ires de Lisboa a Santiago, e conseguires chegar
em inícios de Setembro, já tens pouco tempo para começar a andar.
José continuava a pensar nos peregrinos, pessoas estranhas essas,
caminharem durante semanas ou meses para depois chegarem a um sítio e irem-se embora.
– É melhor ires já preparar a mochila – sorria cada vez mais Maria.
Prosseguiu, aproveitando-se de um José meio surpreendido com o
que ouvia e com os seus próprios pensamentos.
Não era, nem nunca tinha sido muito bom em geografia ou orientação, mas, assim de repente, percebeu que tinha uns bons seiscentos
quilómetros a separar as duas cidades.
– Sim, era capaz de o fazer, mas preciso de saber mais sobre esta
peregrinação – replicou José.
92
J. P e r r e Vi a n a
– Em alternativa, se vieres de autocarro até Valença, podes sempre
atravessar a pé a velha ponte de ferro e depois, do lado espanhol, em Tui,
apanhar o comboio até Santiago.
– Vou ver a melhor forma. Falaremos em breve.
Desta vez, lembrando-se do que se tinha passado dois anos antes,
José fez questão de anotar bem os números de telefone, assim como reforçar a promessa de se verem em breve em Santiago.
A conversa foi interrompida com um grito saído do grupo que seguia na sua frente.
– Maria, anda depressa, temos o barco à tua espera.
Olharam um para o outro e, naquele momento, perceberam que
apenas poderiam desejar que o tempo voasse depressa. Deram um abraço apertado para não deixar espaço a que a saudade triunfasse e seguiram em direcções opostas.
Antes das 6h00, já o barco estava a meio caminho do porto de
Vigo para as Islas Cies quando os primeiros raios de luz apareceram por
trás dos montes que circundam a cidade em redor da baía.
A não muitos quilómetros de distância, alguns carros com matrícula portuguesa tentavam manter as rodas direitas na estrada que atravessava a fronteira rumo a Valença.
No barco, o barulho que acompanhava a comitiva de festas tinha
sido substituído pelo silêncio do horizonte e um pequeno rádio, que o
marinheiro contratado para a surpresa tinha colocado na coberta.
Tocava um som típico da rádio pirata universitária que, por acaso
ou não, se chamava A Hora do Pirata.
Àquela hora da manhã, para quem estivesse acordado, o prazer era
sempre redobrado, A night @ Budha Bar Hotel, provavelmente porque
também o DJ olhava para a linha do horizonte.
Apenas duas palavras se repetiam ao longo dos minutos, Freedom
& Spirit.
Na autoestrada, num dos carros, todos dormiam, à excepção do
condutor que, embora não fosse o dono do carro, era o único que estava
em condições de levá-lo de volta ao destino.
A música que tocava no auto-rádio sintonizava um sinal que iria
desaparecer assim que passasse a fronteira.
Durante vários minutos, apenas duas palavras se repetiram.
93
Ro s a l í a de C a s t ro
Freedom & Spirit.
Maria e Teresa seguiam lado a lado, bem na frente do barco, cosendo os buracos do tempo das suas histórias recentes até não haver muito mais a dizer.
O vento discutia com as velas do barco o melhor caminho de volta ao
porto e Maria preparava-se para partir. Setembro já estava no horizonte.
Ao descer a autoestrada do Atlântico, José recuperou mentalmente
as últimas horas daquele dia. Tentava perceber quando é que poderia voltar à Galiza, ou melhor, voltar a Maria. Por ela seria capaz de ir até ao fim
do mundo, onde quer que esse fim estivesse.
94
- 20 Ponte Vella
A
viagem fora bastante mais longa do que alguma vez pudesse imaginar. Tinha saído de casa antes das 5h30 da manhã, não falhando a
boleia para Vigo por um verdadeiro milagre.
Ao sair de casa, viu o dia hesitar entre a noite, que tinha sido escura, e a manhã, que queria ser luminosa. Por um momento, trevas e luz
gladiaram-se para saber quem era o mais forte e, como não repararam
em José, lá foi ele até à central de autocarros.
Tal como o espectáculo que tinha acabado de presenciar, também
uma parte de si queria ficar, porque tinha medo do que poderia acontecer.
Sabia que estava a desafiar o seu próprio destino e, quando assim
é, sabemos que podemos magoar-nos.
A outra parte não conseguia esperar por chegar. Era dia 2 de Janeiro
do ano 2000 e o mundo ainda não tinha acabado de acordar da longa madrugada do dia anterior, com uma agravante: era segunda-feira e estava frio.
A poucos minutos da partida, comprou o bilhete, instalou-se o melhor que conseguiu nos bancos traseiros e depois foram seis longas horas até
Valença do Minho, bem no extremo norte de Portugal.
Guiado por um impulso que o fazia simultaneamente tremer e
sorrir de prazer, não tinha previsto tudo o que era necessário para chegar
ao seu destino.
Quando o autocarro deixou os passageiros na estação de Valença,
percebeu que tinha de atravessar a fronteira portuguesa a pé, tal como
Maria lhe tinha dito meses antes.
Foi caminhando pelas ruas de empedrado, perguntando direcções
às poucas pessoas que passavam na rua, até começar a ouvir, por detrás
95
Ro s a l í a de C a s t ro
de uma fiada de árvores, a corrente do rio, como se de um rugido de dragão se tratasse.
Era necessário utilizar a velha ponte, ao que parece construída pelo
mesmo senhor que espantaria o mundo em 1889, na Exposição Mundial
de Paris, com a famosa torre que acabou por ganhar fama com o seu próprio nome1.
Caminhava da mesma forma que milhares ou milhões de minhotos e galegos o fizeram durante séculos, unindo pelo pé e pelos seus contrabandos as duas margens que não se tocam. Olhou para baixo, para a
torrente de água, e pensou no que estava ali a fazer.
O seu corpo movia-se, atraído por algo que nunca desejara tanto
na vida; tinha apenas uma dúvida: se estava apaixonado por Maria ou
pela ideia de estar apaixonado.
Voltou a olhar para a teimosia desse rio chamado Minho, que corre ora depressa, ora devagar, em direcção ao mar, não se importando
com quem por cima passa. Corre porque sabe para onde vai. E quase
teve uma ponta de inveja.
Ao longe, na direcção do oceano e já do lado espanhol, olhou para o
monte de Santa Tecla, que lhe parecia perguntar porque é que insistia em
desafiar uma sorte que talvez não fosse a sua, sorriu e apressou o passo.
Nesse mesmo dia, não terão sido muitas as pessoas que entraram
em Tui caminhando por debaixo da linha do comboio; o contrabando
era hoje bem mais sofisticado.
Embora não soubesse exactamente onde estava, sabia que, ao
acompanhar as duas linhas negras, paralelas, por cima da sua cabeça,
acabaria por chegar a uma estação qualquer que o levaria até Santiago de
Compostela, o destino da sua viagem, que um destino maior teimava
em afastar de si.
Mentalmente, ia recordando o que tinha vivido dois meses antes,
na companhia do seu ainda sócio mas agora ex-amigo, Miguel.
1 Alexandre Gustave Eiffel (December 15, 1832– December 27, 1923; French: was a French
structural engineer from the École Centrale Paris, an architect, an entrepreneur and a specialist of
metallic structures. He is acclaimed for designing the world-famous Eiffel Tower, built 1887–1889
for the 1889 Universal Exposition in Paris, France.
96
- 21 O guarda-copos
D
esde Agosto daquele final de século tinha tentado convencer os
seus dois sócios de que o futuro do negócio digital estava na internacionalização, mais concretamente em Espanha e, se possível, onde os
portugueses fossem olhados como iguais.
Como nenhum deles estava interessado em deixar de fazer o que tinham em mãos em Lisboa, acabou por ser José a ficar responsável pelo processo.
Sem grande espanto, pelo menos para ele, acabou por identificar
um número interessante de possíveis contactos para reuniões no Norte
de Portugal.
Empurrava um sonho que, por sua vez, puxava outro.
Fiel ao que parecia ser uma vocação universalista tardia, José andava
de terra em terra apregoando os benefícios milagrosos para as empresas em
se juntarem ao grupo cada vez maior de quem queria estar presente no ciberespaço e comunicar com o mundo através da sua página na Internet.
Estávamos em 1999, não o espaço1, mas algo ainda assim electrizante de se viver. José, os seus sócios e amigos viviam um verdadeiro conto de ficção científica, que muitas vezes lhes colocou em cima uma verdadeira pele de extraterrestres.
1 Space: 1999 is a British science-fiction television series that ran for two seasons and originally
aired from 1975 to 1977. Space: 1999 centres on the plight of the inhabitants of Moonbase Alpha,
Earth’s Space Research Centre on the Moon, following a scientific cataclysm, on 13 September 1999,
detonates in a massive thermonuclear explosion. The force of the blast propels the Moon like an enormous booster rocket, hurling it out of Earth orbit and into deep space at colossal speed. During their
interstellar journey, the Alphans encounter an array of alien civilizations, dystopian societies, and
mind-bending phenomena previously unseen by humanity.
97
Ro s a l í a de C a s t ro
Tinham sido os bits, o HTML e o Flash, o TCP/IP e os domínios.
com a proporcionar-lhe e ao seu amigo Miguel, sócio na empresa de Internet criada um ano antes, subir até ao Minho e depois um pouco mais
a norte, até Santiago de Compostela.
Em inícios de Outubro, o vento frio disputava a atenção de José e
Miguel, à medida que a chuva, mais tímida do que o normal, tocava no
pára-brisas do carro emprestado pelo Pai do segundo.
De quando em vez, abriam as janelas para refrescarem o ar dentro
da Citroën Berlingo, que, mesmo tendo para cima de cinco anos, pouco
mais de 10 mil quilómetros percorrera.
As reuniões seguiam-se umas atrás das outras a um ritmo tão alucinante como o teor das conversas que traziam para cima da mesa dos anfitriões.
Já na Antiguidade os primeiros cristãos sabiam que não era fácil
evangelizar1. Após conversarem durante dias inteiros com os interlocutores
mais improváveis do Portugal profundo, tinham comprovado essa mesma
experiência.
Era impossível esquecer-se da secretária de direcção de uma fábrica de móveis à entrada da cidade do Porto, que ficava muito feliz quando via chegar os “meninos da Internet”.
Um dia chamou-os à parte para a ajudarem a resolver um problema gravíssimo.
Ao que parece, tinha tirado momentaneamente um dos cd de música do patrão quando este estava de férias no Brasil com uma sobrinha (que
ninguém sabia muito bem de quem é que ela era filha), quando algo verdadeiramente assombroso aconteceu, nas suas próprias palavras.
Ao abrir o guarda-copos2 do computador, o dito CD de música
que ela queria muito ouvir acabou por desaparecer no vácuo, nunca mais
tendo regressado. O patrão voltaria dentro de dois dias e ela estava muito nervosa.
Os meninos da Internet lá resolveram o problema, embora, ao que
conste, o patrão não chegou a regressar do Brasil. Ou então da reunião
1 Evangelizar – Em grego, o verbo é utilizado para resumir a expressão «anunciar boas notícias»:
alguém que é «evangelizado» é, basicamente, alguém a quem «foi dado a conhecer». Pode ser usado para
anunciar um nascimento, um armistício ou um novo líder. Não tem, por si só, um significado religioso.
2 A unidade de entrada dos CD-rom nos primeiros desktops comerciais foi muitas vezes confundida com um verdadeiro 2 em 1, permitia ouvir música e quando aberto poisar copos.
98
J. P e r r e Vi a n a
que agendaram no solar do Alvarinho em Melgaço, já muito próximo da
fronteira com a Galiza.
Foram recebidos na sala de provas do Edifício dos Três Arcos por
uma simpática funcionária da câmara que, para além de lhes ter explicado o que desejava ver na página de Internet, os presenteou com algumas
iguarias da região e um Alvarinho de honra.
Duas horas e duas garrafas depois, a simpática funcionária era, no
mínimo, comparável a Gisele Bundchen1. Miguel e José tiveram de “fugir”,
mal sabendo onde colocar os pés, visto que o chão tinha tendência a mover-se a cada passada.
No carro, a única forma de acalmarem o estado de euforia em que
se encontravam foi com música, música que naquele final de século era
o combustível da sociedade possível.
I know I know for sure2
That life is beautiful around the world
I know I know it’s you
You say hello and then I say I do
Where you want to go
Who you want to be
What you want to do
Just come with me.
Depois de 72 horas alucinantes, atravessaram a fronteira rumo ao
Norte. Ainda havia tempo para mais uma reunião, agora no lado de lá
da fronteira, uma estreia para os jovens empresários.
Cada vez que abriam a janela para fumar mais um cigarro, evitando que o Sr. Polícia mais tarde viesse a descobrir, o ar ficava mais frio na
medida em que a distância para Santiago era cada vez menor.
1 Gisele Caroline Bündchen, born July 20, 1980, is a Brazilian fashion model. In the late
1990s, Bündchen became the first in a wave of Brazilian models to find international success.
2 Red Hot Chili Peppers are an American funk rock band formed in Los Angeles in 1983. The
group’s musical style primarily consists of rock with an emphasis on funk, as well as elements from
other genres such as punk rock and psychedelic rock. When played live, their music incorporates many
aspects of jam band due to the improvised nature of much of their performances. Red Hot Chili
Peppers have won seven Grammy Awards, and have become one of the best-selling bands of all time,
selling over 80 million records worldwide.
99
Ro s a l í a de C a s t ro
Haviam passado pouco mais de três meses desde que José e Maria
tinham voltado a encontrar-se, quando participara na despedida de solteiro de um amigo em Vigo. Nessa altura cruzara-se com Maria no mesmo bar em que o seu grupo de amigos decidira terminar a noite.
A amiga tinha-se transferido da Universidade de Vigo para a de
Santiago no início do semestre e José estava desejoso de a reencontrar.
Desde o Verão que falavam ao telefone quase todas as semanas,
uma espécie de correio dos velhos tempos, mas muito mais rápido e mais
cómodo, apenas interrompido, geralmente depois da primeira hora,
quando as irmãs de Maria ameaçavam desligar a ficha da tomada.
Sem ninguém pelo meio a interromper, cada troca de palavras encaixava como peças de um puzzle que ia sendo preenchido na fotografia
maior das suas vidas.
Desde o reencontro em Vigo que o seu único pensamento era voltar a estar com Maria e, para tal, precisava de encontrar uma justificação, em primeiro lugar para si e depois para os seus sócios.
Sabia que ela partilhava um espaço com algumas colegas de universidade e que isso lhe permitia juntar o melhor de dois mundos.
Não teria de esticar o seu já curto budget e, simultaneamente, encontrar a desculpa perfeita para estar mais perto de Maria, sem que ninguém,
incluindo ele próprio, se apercebesse da verdadeira razão da sua visita.
Nada como o trabalho para justificar tudo, ou pelo menos quase
tudo, um argumento que não necessitava de explicações, toda a gente sabia que o trabalho é importante.
Era uma quinta-feira e estavam muito longe de casa. José e Miguel
tinham concordado em ficar aquela noite em Santiago de Compostela;
José podia rever uma amiga e eles iriam oferecer a si próprios um dia de
descanso. Sentiam que seria bem merecido.
Terminada a última reunião de trabalho na zona industrial de O
Porriño, terra com um nome fantástico que sempre fazia José rir, pois
pensava sempre que era a capital dos porros1, já não havia nada que o separasse de Maria.
1 Porro es un término popular que en varios países hispanohablantes se le da a un cigarrillo de
cannabis o hachís.
100
- 22 Por fim, Santiago
A
ideia era ficar essa mesma noite em Santiago. Seriam poucos quilómetros mais, permitindo acordar tarde no dia seguinte, dar um
passeio, visitar a cidade que tanto José como Miguel não conheciam. Na
verdade, era a primeira vez que Miguel saía de Portugal.
Depois do almoço, poderiam iniciar o trajecto de regresso a Lisboa, frescos e conduzindo sempre de dia. Aliás, desde que José andava
de bicicleta, nunca gostava de conduzir à noite.
Deixaram a autovia do Atlântico ao início da noite e entraram em
Compostela pouco passaria das 20h00.
Rodeada por pequenas montanhas, Santiago parece mais pequena
e insignificante do que realmente é; o mesmo acontecia com várias pessoas com quem José se tinha cruzado na vida.
Entrar numa cidade pouco ou nada conhecida é geralmente acompanhado por inúmeras voltas às mesmas ruas, sem que geralmente o
condutor dê conta, excepto quando os nomes e fachadas das lojas começam a tornar-se familiares.
Quando isso aconteceu, desistiram e estacionaram o carro. De seguida, procuraram um restaurante que lhes parecia popular, o que ali é
fácil de encontrar.
Em Espanha, e provavelmente em outros locais, significa um espaço com muita gente, muito barulho e, já agora, para termos a certeza de
que se pode comer bem, com muito lixo debaixo do balcão, ou barra
como dizem por aquelas paragens.
Sentaram-se e pediram alguma coisa para comer e beber, enquanto esperavam que Maria fosse ao seu encontro.
101
Ro s a l í a de C a s t ro
Estavam bastante cansados, mas agora reconfortados com o caldo
galego que lhes tinham colocado na frente.
O nervoso miudinho que tinha vindo a crescer à medida que se tinha aproximado de Santiago começou a fazer das suas. José, sem reparar, colocou a sua perna esquerda a bater freneticamente, como se fosse o
baterista dos Iron Maiden no auge de um solo.
Sentia as costas doridas e a cabeça meio vazia. Esta parte não era
novidade, mas a certeza de que estava prestes a rever a razão maior da
sua viagem e de tantas outras viagens dentro de si afastou de imediato o
que quer que pudesse retirar a magia do momento, que só os reencontros
sabem fintar ao destino.
– Hola viajantes, como foi a aventura para chegarem até aqui?
Concentrados que estavam em devorar a comida deliciosa e a inventar conversa para preencher o momento, não se aperceberam da chegada de Maria.
Quiçá libertado dos anos concentrado nos estudos, Miguel olhou
para Maria e, não dando oportunidade a José de engolir o que tinha na
boca, respondeu como se já se tivessem cruzado várias vezes.
– Agora que estamos aqui ao pé de ti, uma maravilha – disse Miguel.
José não se importava de estar na presença de rapazes que conseguiam quebrar o gelo inicial e brilhar em frente a uma rapariga, mas este
caso era diferente: esta era a “sua” Maria.
Teve vontade de lhe dar um murro no cimo da cabeça, tal era a
lata de se estar a meter naquela relação. No entanto, ficou-se por um sorriso meio amarelo.
102
- 23 Espera
P
assando próximo da Igreja de San Bartolomeu já perto da estação
de Tui, olhou para o relógio estrategicamente colocado sobre a fachada da farmácia central e constatou que pouco faltava para as 14h00, bem
como para o ponto de solidificação da água.
Encolheu as mãos o mais que pôde dentro dos bolsos do casaco e
seguiu para a gare central. Ainda tinha tempo, mas com o frio que se
sentia, o melhor era procurar um lugar mais quente.
A sua memória voltava de uma viagem alguns meses atrás e, embora não se conseguisse lembrar do momento em que Maria chegou ao
restaurante e Miguel começara a armar-se em imbecil, sabia que isso lhe
tinha trazido paz, sabia que tinha sido feliz e isso, provavelmente, bastava.
Durante anos tentou estar a sós com ela, mas o máximo que conseguiu foram sempre mais ou menos pessoas à sua volta. Por mais que
tentasse, o momento nunca chegara.
Uma vez mais ali estava ela, acabada de entrar no restaurante, vestida de negro, a sua pele muito branca salpicada por sardas ruivas, parecia brilhar, mais uma vez ali estava José e tanta gente pelo meio.
Quando na vida decidimos deixar de conduzir na direcção daquilo
que achamos ser o certo de acontecer, Alguém, lá em cima, decide brincar com os nossos planos e com as nossas frustrações.
Durante o jantar tinha descoberto algo extraordinário e simultaneamente motivo de vergonha.
Maria fazia anos no dia seguinte e convidava-os a ficar até sábado
de manhã. Iria fazer uma festa no dia seguinte e seria bom poderem ficar.
103
Ro s a l í a de C a s t ro
Curiosamente, naquela mesma noite, Miguel revelou-se de uma
forma nunca antes vista por José.
Bebeu até não mais poder, e no restaurante, bem como no caminho até ao apartamento de Maria, era rara a rapariga que por ele passasse que não ouvisse um piropo ou algo mais.
Coincidência, ou talvez não, e sem que nada o fizesse prever, na
sexta-feira de manhã Miguel disse que tinha telefonado para casa e infelizmente não ia poder ficar, tinha necessidade de estar no final da tarde
em Lisboa.
José soube, apenas mais tarde, que o abraço que Miguel lhe deu à
porta do apartamento de Maria era um abraço ao jeito de um Judas moderno, pois nesse mesmo dia, ao regressar a Lisboa consumou uma traição profissional, ferindo de morte a sua amizade.
Com os pensamentos de volta à pequena estação de Comboios de
Tui, ouviu pelo altifalante que se aproximava, na linha 2, o comboio
com destino a Santiago de Compostela, com paragem em Vigo.
A espera era longa, mas agora menos: algumas horas mais e poderia estar novamente nos braços de quem amava.
Pela janela da estação eram evidentes os efeitos secundários da folia
que as aldeias por onde passava tinham sofrido na passagem do milénio.
104
- 24 A menina dança?
A
pós a partida de Miguel ainda antes do meio-dia, José saiu do apartamento e passou boa parte da tarde sozinho, a andar pela parte antiga da cidade, enquanto Maria estava na universidade.
Utilizou a melhor técnica para se descobrir algo que se não conhece: vagueou, perdendo-se propositadamente sempre que uma pequena
rua lhe parecia menos óbvia.
Foram horas caminhando por cima de pedras de calçada tão antigas como a memória do tempo, tentando apreciar o que tinha à sua
volta.
Por cada minuto que passava, pensava na chegada da noite, pensava no que queria dizer a Maria quando estivessem juntos e na melhor
forma de o fazer se estivesse à frente das suas amigas e amigos.
Gostaria de sair só com ela, caminhar por aquelas mesmas ruas,
gostaria que ela lhe mostrasse os seus locais preferidos e risse com ele.
Depois de várias voltas, acabou por se encontrar na Praza de Obradoiro1, caminhou até ao centro da praça, virou-se e ali à sua frente, com
mais de 70m de altura, vivia a catedral de Santiago.
Do que se lembrava de ter lido, depois de ouvir os comentários de
Maria sobre os peregrinos, a catedral teria sido várias vezes construída
para logo depois ser destruída e novamente reconstruída, enfim, um
clássico na história da Humanidade.
1 A Praça do Obradoiro é a principal e mais famosa da cidade de Santiago de Compostela, capital da Galiza. Nela destacam-se edifícios emblemáticos como o Paço de Raxoi, o Hostal dos Reis
Católicos e a própria Catedral de Santiago de Compostela.
105
Ro s a l í a de C a s t ro
Voltou ao apartamento de Maria perto das 19h00. Tinham combinado sair todos para jantar e, embora não quisesse dar a entender que
era uma noite única e especial, queria aparecer com a sua melhor roupa
e parecer que acabara de chegar da rua.
Não tinha memória de alguma vez uma rapariga o ter feito sentir
tão nervoso. Era estranho, mas simultaneamente uma óptima sensação.
A porta de entrada da rua estava aberta e subiu até ao 5º piso. Quando ia bater à porta, percebeu, pelas vozes que falavam por trás da mesma,
que já estava alguém em casa.
Ao entrar, para além das duas colegas de piso, Chiara e Letizia, estava também um amigo chamado Sancho1 − neste caso, bastante magrinho; logo, sem pança.
Percebeu que tinha vindo interromper um daqueles momentos
que apenas as mulheres conseguem verdadeiramente compreender.
Corriam do quarto para a casa de banho e novamente para o quarto, entre sorrisos e gritinhos de cada vez que apareciam com uma roupa
diferente ou experimentavam uns sapatos com outra cor, ou então colocavam algo que só mesmo elas poderiam ver. Confessou para si mesmo
que tudo lhe parecia um pouco igual. Estavam todas giras e pronto.
Sentou-se no sofá da sala, que ficava entre um dos quartos e a casa
de banho, enquanto fazia de conta que lia algo interessante e que, supostamente, lhe fazia mergulhar a atenção entre as páginas.
A tentativa estava, no entanto, condenada ao fracasso, tendo em
conta a quantidade de pernas, collants e decotes do tamanho da sua imaginação que teimavam em passar por dentro da sua visão periférica.
Só não percebeu porque é que o Sancho Sem Pança podia estar
com elas naquele final de tarde entre mudas de roupa e a ele apenas lhe
disseram para esperar na sala. Life is not fair, pensou.
Como é tradicional em Espanha, já passava das 21h30 quando
saíram para jantar. José estava com uma fome capaz de produzir visões.
1 Sancho Pança (em castelhano Sancho Pannizaa) é uma personagem do livro Don Quixote de la
Mancha, conhecido apenas como Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Actua como um personagem
contraste ao personagem principal, o próprio Dom Quixote. Enquanto Quixote é sonho, é fantasia,
Sancho é realista. À medida que o relato avança, Sancho, aos poucos, vai aceitando os delírios do cavaleiro de quem é o fiel escudeiro. Finalmente, não se pode pensar em Dom Quixote, sem ter junto o
notável e comilão Sancho Pança.
106
J. P e r r e Vi a n a
Na verdade, não eram visões; eram três lindas mulheres que caminhavam à sua volta pelas ruas de Santiago. Fazendo-o sentir como um
actor de cinema a caminho de uma première, só faltava mesmo a carpete vermelha. Mas, enfim, não se pode ter tudo.
O primeiro erro da noite foi a primeira bebida, mais a segunda, a
terceira e as outras, antes mesmo de a comida aterrar na mesa. Quando
esta chegou, já o seu cérebro tinha partido para parte incerta.
Maria estava absolutamente deslumbrante: os cabelos ruivos compridos caídos pelas costas e a pele absolutamente branca salpicada por
fantásticas sardas ruivas.
Talvez por ser a rapariga que fazia anos, parecia brilhar no meio de
tanta confusão. O próprio barulho de fundo ficou cada vez mais fundo.
Quanto a José, levitava nos seus próprios pensamentos.
Enquanto lutava por se manter de pé, tentou algumas vezes chegar
à fala com Maria, mas a porra da língua espanhola é tramada, especialmente quando se tem a língua enrolada numa dezena de Estrella Galicia1.
A distância entre pensar num idioma e falar noutro é quase a mesma
de se ir até à Lua, e José, naquela noite, não tinha nenhuma nave espacial.
Finalmente, conseguiu colocar os dois pés no chão em posição paralela, o que lhe permitia caminhar em frente sem cair.
Passo a passo, foi até ao centro do bar, que naquele momento mais
parecia uma pista de dança. À medida que a noite avançava, foram-se retirando as mesas e cadeiras e ficaram apenas as pessoas que estavam a
jantar, mais umas mil que, entretanto, foram entrando.
Maria, ao ver José caminhar na sua direcção, olhou com mais atenção. Assim que os olhares se tocaram, esboçou um sorriso daqueles, fazendo um gesto com a mão para a acompanhar na música que começava.
Respirou fundo, abriu os braços para a abraçar; pelo menos, assim
teria a certeza de que não cairia antes mesmo de começar o exercício.
Um passo mais, e era capaz de jurar que alguém lhe tinha pregado
uma rasteira.
A música era certamente bastante mais ritmada do que aquilo que
José estava a tentar fazer. A sua cara ficou colada na cara de Maria, logo
ao primeiro passo de dança.
1 Estrella Galicia is a brand of pale lager owned and produced by Hijos de Rivera.
107
Ro s a l í a de C a s t ro
Procurou colar os lábios no ouvido de Maria. Estava de tal maneira em outra dimensão que não tinha a mínima preocupação sobre o que
ela ou alguém à sua volta iria pensar.
− Parabéns.
Terá dito com maior volume do que o necessário…
− Gosto muito que estejas aqui comigo – respondeu Maria, alguns
decibéis bastante abaixo.
− Eu também, embora não saiba muito bem onde esteja neste momento.
Largou uma gargalhada que só poderia ter sido lançada boca fora
com a ajuda da quantidade de álcool que havia no seu estômago, veias e
devidas ramificações.
Maria não respondeu, passou-lhe a mão pela nuca e puxou-lhe a
cabeça mais para o lado, até José ficar de frente para ela.
Provavelmente, se naquela altura tivesse dito algo, ele não teria conseguido ouvir.
Pensou que deveria beijá-la naquele preciso momento. Os olhares
estavam dentro um do outro e, por não sentir algumas partes do corpo,
achou que estaria a voar baixinho. Como ao voar existem regras próprias, seria aquele o momento.
Poderia ter sido um camião TIR numa qualquer autoestrada, vindo
por detrás ou mesmo saltando o separador central da faixa contrária, mas
neste caso foi mesmo o Sancho Sem Pança que chegou pelo lado direito.
Sem fazer sinal de luzes, apalpou a nádega esquerda de José e este,
ao virar-se na mesma direcção, perdeu o centro e o equilíbrio do que estava a fazer antes.
Sancho agarrou os dois braços de Maria e, num passe de mágica,
começou a dançar com ela ao ritmo dos sons que saíam das colunas.
José, por seu lado, tentava perceber o que mais o tinha atrapalhado,
se o roubo da mulher que estava à sua frente e, por segundos, prestes a ser
beijada, se o seu pudor de macho latino acabado de ser apalpado.
Antes do final da noite viria a perceber que não era um concorrente aos seus objectivos.
Estava baralhado e a única coisa que queria era sair daquela confusão. O desequilíbrio era medonho. Arrastou-se devagar e conseguiu chegar até ao bar.
108
J. P e r r e Vi a n a
Ao aproximar-se do balcão, ouviu alguém a falar inglês, o que o
obrigou a parar e tentar sintonizar agora algo completamente diferente.
− Hi − disse José num americano quase perfeito.
− Hello, stranger.
Foi a resposta, fazendo-o recuperar a compostura depois da vergonha que tinha sentido segundos antes. Abriu bem os olhos, preparando-se para responder.
− Are you with the birthday party?
Foi a melhor coisa que conseguiu dizer depois de perceber que estava a falar com uma rapariga linda, ou que, pelo menos, parecia ser linda.
À noite All cats are grey, algo que Thomas Lodge já sabia em 1596,
quando escreveu um livro chamado Margarite of America. Será que ela
se chamava Margarite?
− It depends, why do you ask?
Novamente a resposta obrigou-o a pedir ainda mais à sua cabeça
que voltasse rapidamente a juntar-se ao resto do corpo.
− Because I am in love with the birthday girl and I don’t want to
make a fool out of myself in front of her friends.
Uma vez mais poderia ser o álcool a falar por José, pois aquele tipo
de honestidade não era comum entre adultos, a não ser que não se conhecem bem ou estivessem cheios de etanol1.
− Don’t worry, you already did, now it can only get better.
Se José fosse uma equipa de futebol a jogar a final da Liga dos
Campeões, sentir-se-ia como se estivesse a perder ao intervalo e sofresse
um golo logo no início da segunda parte. Estava em desvantagem, mas
ainda tinha 45 minutos pela frente; o importante era não se deixar ir
abaixo.
− Do you see that redhead beauty dancing with a character from
Hair2, the musical?
1 Etanol, also called ethyl alcohol, pure alcohol, grain alcohol, or drinking alcohol, is a volatile, flammable, colorless liquid. It is a psychoactive drug and one of the oldest recreational drugs. Best
known as the type of alcohol found in alcoholic beverages, it is also used in thermometers, as a solvent, and as a fuel.
2 Hair: The American Tribal Love-Rock Musical is a rock musical with a book and lyrics by
James Rado and Gerome Ragni and music by Galt MacDermot.
A product of the hippie counter-culture and sexual revolution of the 1960s, several of its songs
became anthems of the anti-Vietnam War peace movement. The musical’s profanity, its depiction of
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Ro s a l í a de C a s t ro
José fazia a pergunta apontando para o magote de gente que dançava na sua frente.
− You mean Sancho?
A resposta era obtusa, mas ao mesmo tempo interessante. Como é
que ela conhecia aquele ladrão?
− Yes, that one, with the jungle on top of is brain, if he has brains there.
Tentou ter alguma graça, mas pelos vistos não se tinha saído nada
bem. A rapariga na sua frente olhava seriamente.
− Do not worry with Sancho, he is in my literature class, a good friend
and totally gay, he will not harm the birthday girl.
Dito isto, virou-lhe as costas e José acabou por ficar literalmente a
falar sozinho.
O melhor era não tentar mexer-se muito mais. Encontrou uma posição confortável, recostado ao balcão e, usufruindo da dormência mental em
que chapinhavam os seus pensamentos, pediu um cigarro a quem estava
próximo e ficou entretido a ver os novelos de fumo rumarem até ao tecto.
Saíram da festa já era dia, percorrendo uma boa parte do trajecto até
casa cantando o reportório que cada um sabia. Quando não sabiam, inventavam.
Mesmo sem ter conseguido estar tão próximo de Maria quanto tinha desejado, estar ali já era uma sensação fantástica, das melhores coisas
que guardava na memória, como se todas as suas vidas pudessem caber
dentro daquelas canções. Na verdade cabiam.
O ar fresco da manhã fazia promessas de uma mão-cheia de oportunidades para quem tivesse a coragem de abrir o dia que estava prestes
a começar.
Calaram-se depois de saborear umas belas bolas com creme de
uma pastelaria que tinha acabado de abrir as portas. Sentiam-se mais
mortos do que vivos. Era preciso recuperar as energias.
Chegaram a casa enquanto a loja de brinquedos que ficava ao lado
da entrada abria os estores. Àquela hora já não havia forças para brincar.
the use of illegal drugs, its treatment of sexuality, its irreverence for the American flag, and its nude
scene caused much comment and controversy.
Hair tells the story of the “tribe”, a group of politically active, long-haired hippies of the “Age of
Aquarius” living a bohemian life in New York City and fighting against conscription into the Vietnam War
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J. P e r r e Vi a n a
Depositaram os restos mortais, sem sequer puxar os cobertores e sem dizer muitas palavras.
Com as persianas recolhidas, não havia forma de perceber o que é
que o mundo estava a fazer lá fora. Honestamente, isso também não era
relevante.
José acordou já passava das 15h00, com aquele sabor na boca de
quem perdeu a conta do que se bebeu e uma dormência no cérebro muito para além do desejável.
Conseguiu pensar em abrir os olhos, o que na verdade era um feito, mas nem se atreveu a fazê-lo em simultâneo.
Pelo canto do olho, viu um bilhete manuscrito colocado em cima do
relógio despertador. Com esforço, pediu ao seu braço esquerdo para se esticar e pegar no papel e, com alguma dificuldade, leu o que estava escrito.
Querido José, espero que te tenhas divertido ontem à noite, mas ainda temos uma dança para terminar.
Volto perto das 18h30. Podemos ir jantar. Descansa.
Bicos1…
Maria.
lha).
1 Bico – No caso em questão, creio ter sido uma referência ao ponto 4.
(latim beccus, -i, bico, especialmente o do galo) s. m.
1. Parte córnea que remata a boca das aves (e também de alguns peixes, ex.: bico do peixe-agu-
2. [Por extensão] Ave doméstica.
3. [Figurado] Boca.
4. [Figurado] Beijo.
5. Extremidade saliente ou aguçada de alguns objectos… = PONTA
6. Aparo para escrever.
7. Extremidade de um queimador de gás (ex.: um dos bicos do fogão está entupido).
8. Dívida insignificante.
9. [Informal] Princípio de bebedeira.
10. [Informal] Pessoa que gosta de beber vinho.
11. [Informal] Serviço remunerado que se faz para além do emprego habitual (ex.: o cunhado é
mecânico e faz uns bicos de vez em quando). = BISCATE
12. [Calão] O mesmo que felação.
111
- 25 Paris-Dakar
S
ubiu os três degraus que separavam a plataforma do comboio que tinha
acabado de chegar na linha 2 e, ao abrir a porta da composição, sentiu o
ar quente do ar condicionado tocar-lhe na cara.
Procurou um lugar para se sentar, o que, não tendo acontecido, não
constituiria um problema. Na carruagem inteira era o único passageiro.
Poucos minutos depois, as casas de pedra e a igreja de São Bartolomeu ficavam lentamente para trás, estavam em marcha em direcção a Vigo,
primeiro, e depois a Santiago de Compostela.
Ainda pensou em recuperar o ponto onde tinha deixado de ler. Tinha na mão O Fio da Navalha1, mas era impossível fazê-lo. As suas fantasias eram alimentadas pela noite que tinha passado com Maria após o aniversário desta.
Lembrava-se de que, ao acordar e depois de ter visto o bilhete deixado perto do despertador, tinha a noção de que as suas vidas mudariam
para sempre. E mudaram.
Quando Maria voltou, ao final da tarde, José já estava pronto, provavelmente há mais de duas horas, sentado à pequena mesa redonda perdida no meio da sala, tal como ele.
1 * O Fio da Navalha − The Razor’s Edge is a book by W. Somerset Maugham published in 1944. It’s
epigraph reads, “The sharp edge of a razor is difficult to pass over; thus the wise say the path to Salvation
is hard,” taken from a verse in the Katha-Upanishad. The Razor’s Edge tells the story of Larry Darrell, an
American pilot traumatised by his experiences in World War I, who sets off in search of some transcendent meaning in his life. The story begins through the eyes of Larry’s friends and acquaintances as they
witness his personality change after the War. His rejection of conventional life and search for meaningful
experience allows him to thrive while the more materialistic characters suffer reversals of fortune. The
book was twice adapted into film, first in 1946 starring Tyrone Power and Gene Tierney, and Herbert
Marshall as Maugham and Anne Baxter as Sophie, and then a 1984 adaptation starring Bill Murray.
112
J. P e r r e Vi a n a
Ali estavam os dois, frente a frente, rodeados por um silêncio ensurdecedor. Se alguém se tivesse aproximado do peito de José, ouviria o seu
coração, qual tambor de guerra, procurando perceber onde estava o inimigo, se à sua frente, se dentro de si.
Saíram para jantar caminhando em redor do Casco Antiguo, ruas que
nenhum arquitecto, à excepção do tempo, poderia desenhar. Um passo de
cada vez foi a forma como a conversa se desenvolveu.
Era um prazer sem precedentes estarem ali, juntos, caminhando
lado a lado, descobrindo naquele antigo caminho novos e surpreendentes percursos dentro de cada um.
Do trabalho de José aos estudos de Maria, passaram à música, de que
lhes dava imenso prazer falar. Por ser algo tão natural na sua vida, era quase como respirar.
Nos minutos intercalados pelos olhares, José conseguiu explicar como
o tempo tinha corrido penteando os últimos anos de encontros e desencontros.
As referências sucediam-se e sentiam crescer o interesse de um
pelo outro. À medida que os passos avançavam e a noite engolia a cidade, Maria ia ficando cada vez mais bonita.
Pararam na entrada do que parecia ser o restaurante para jantar. Tinha um letreiro estranho por cima da porta, onde se podia ler sem problema: Paris.
− Adoro Paris! − disse Maria, colocando a mão no puxador da entrada.
− Um dia irei viver lá.
José sorriu e pensou na única vez em que tinha estado em Paris,
com os Pais. Na verdade tinha sido a última viagem que tinham feito os
três juntos.
O tempo que tinha passado na cidade fora tão curto que não lhe
permitia emitir qualquer opinião sobre o assunto mas, ainda assim, disse antes de entrarem no restaurante:
− Vamos conhecer-nos melhor em Paris?
Abriu a porta do restaurante com uma mão, fazendo um gesto
com a outra, para que Maria passasse à sua frente.
Entraram e estava bastante mais quente do que fora. Tiraram os cachecóis, os casacos e, sem poder evitar, José reparou como eram bonitos os
seios de Maria.
113
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Provavelmente por se ter demorado mais alguns milésimos de segundo no olhar, era óbvio que ela tinha notado o seu ar de surpresa e, simultaneamente, de desejo.
Quando os olhares voltaram a cruzar-se, não encontrou embaraço
ou mesmo reprovação. Pelo contrário, o sorriso de Maria emoldurou o
pequeno silêncio entre eles, tornando-o num dos primeiros momentos
de ouro da sua vida.
Sem nada melhor para ultrapassar a situação, José voltou para uma
zona de conforto e perguntou:
− Como é viver e estudar em Santiago de Compostela?
− É bom; há uma energia especial nesta cidade, existe sempre algo
a acontecer e, quando não são estudantes, são peregrinos.
Depois de ter feito uma pequena pausa, como que se as palavras
fossem um bem escasso que era importante preservar, acrescentou:
− É a energia que vem da velha catedral. As suas pedras milenares
falam em silêncio para quem as quer escutar.
O que sempre o tinha desconcertado em Maria eram as suas tiradas de sabedoria, imprópria para quem não tinha mais de vinte e poucos
anos. Ficava louco de paixão e só a desejava mais.
Da música passaram a Deus e de Deus ao Amor1, voltaram a Espanha
e seguiram em direcção ao que pensavam um sobre o outro, desde o dia em
que se tinham conhecido nas famosas fogueiras de San Xoan.
Os olhos já não faziam esforço algum para se evitar; estacionados
uns nos outros, continuaram lado a lado, até as suas almas começarem a
tocar-se.
Nesse trajecto até à sobremesa, tinham já feito inúmeras viagens
sem que, falando directamente de sentimentos, fosse possível mostrar o
que cada um sentia.
José tocou, por engano ou talvez não, nos dedos de Maria, e de seguida voltou a fazer o mesmo movimento, acabando por agarrar-lhe a mão.
1 A palavra amor (do latim amor) presta-se a múltiplos significados na língua portuguesa. Pode
significar afeição, compaixão, misericórdia, ou ainda, inclinação, atracção, apetite, paixão, querer
bem, satisfação, conquista, desejo, libido, etc. O conceito mais popular de amor envolve, de modo
geral, a formação de um vínculo emocional com alguém, ou com algum objecto que seja capaz de receber este comportamento amoroso e enviar os estímulos sensoriais e psicológicos necessários para a
sua manutenção e motivação. É tido por muitos como a maior de todas as conquistas do ser.
114
J. P e r r e Vi a n a
− Conheces o muro do amor, em Paris?
Maria olhava fixamente os olhos de José. Não era uma pergunta,
mas uma porta para uma dimensão desconhecida que se abria diante de
si.
O pensamento livre da coerência que estes momentos costumam
exigir ficou a milímetros de arriscar a tirada de que o único muro que
conhecia era o de Berlim, mas esse já tinha caído. Felizmente, a boca ficou fechada.
− Se algum dia me perderes, é lá que me podes encontrar.
Maria olhava fixamente para José.
− Não te esqueces disso?
Não foi capaz de dizer nada, nem ela tão pouco. No entanto, primeiro com força e depois apenas com carinho, deixou a sua mão continuar a segurar a de Maria.
Lentamente, em movimentos circulares, começou a massajar com
o polegar a palma da sua mão, e foi assim que, em silêncio, lhe disse que
ela era o seu futuro, o seu passado e, porque o Universo sussurrava o seu
nome, o maior presente.
Sem necessidade de traduções ou interpretações, a noite ficou
maior e o restaurante onde estavam o local mais pequeno do mundo.
Sem lugar para mais do que duas pessoas e um punhado de oxigénio,
pediram a conta, pagaram e saíram de volta para as ruas milenares. Tinham acabado de entrar para a história dos caminhos de Santiago.
Continuaram em silêncio, mão na mão, em direcção ao apartamento de Maria, que ficava na Rua Rosalía de Castro1, mítica poetisa
galega, que os acolhia naquela noite ainda prestes a começar.
1 *Rosalía de Castro nasceu em Santiago de Compostela, 24 de Fevereiro de 1837 e morreu em
Padrón, em 1885. Foi uma das maiores escritora e poetisa galega.
Considerada como a fundadora da literatura galega moderna, o 17 de Maio, Dia das Letras Galegas, é feriado por ser a data de edição da sua primeira obra em língua galega, Cantares Galegos.
Rosalía de Castro nasceu em Camiño Novo, um arrabalde de Santiago de Compostela, sendo
baptizada com os nomes de Maria Rosalía Rita. No registo do Hospital Real de Santiago de Compostela figura como filha de pais desconhecidos.
Sua mãe, María Teresa de la Cruz de Castro, fidalga da casa grande de Arretén pertencente à
linhagem dos Castro, estabelecida na Galiza desde a Idade Média. Considerada tradicionalmente
filha de José Martínez Viojo − embora não exista documentação que acredite este facto, um sacerdote católico de trinta e nove anos que, devido à sua condição, não pôde reconhecer nem legitimar
a sua filha.
115
Ro s a l í a de C a s t ro
Ao saírem da parte velha, já no final da Rua do Franco, José reparou no último bar antes de se entrar no grande passeio da Alameda.
Chamava-se Dakar.
Na sua cabeça o mítico rally1 tinha ganho outro sentido.
1 Rally Paris-Dakar − The Dakar Rally (or simply “The Dakar”; formerly known as the “Paris–Dakar Rally”) is an annual rally raid organised by the Amaury Sport Organisation. Most events
since the inception in 1978 were from Paris, France, to Dakar, Senegal, but due to security threats in
Mauritania, which led to the cancellation of the 2008 rally, the 2009 Dakar Rally was run in South
America (Argentina and Chile). It has been held in South America each year since 2009. The race is
open to amateur and professional entries, amateurs typically making up about eighty percent of the
participants.
Despite its “rally” name, it is an off-road endurance race, properly called a “rally raid” rather
than a conventional rally. The terrain that the competitors traverse is much tougher and the vehicles
used are true off-road vehicles rather than the modified on-road vehicles used in rallies. Most of the
competitive special sections are off-road, crossing dunes, mud, camel grass, rocks and erg among
others. The distances of each stage covered vary from short distances up to 800–900 kilometres
(500–560 mi) per day.
116
- 26 Flashback - 5º Piso
D
ois meses depois do jantar no Restaurante Paris, ali estava José novamente.
Dois meses depois voltava à rua Rosalía de Castro, bem próxima
do parque de Santa Susana, sentado nas escadas do quinto piso, esperando e desesperando simultaneamente.
As memórias do encontro com Maria em Outubro de 1999 estavam todas presentes na sua cabeça. Cansado da aventura para chegar até
ali, entreteve-se a revisitá-las uma a uma.
O processo apenas era interrompido quando ouvia lá em baixo a porta da entrada do edifício a abrir. Nesse momento, o seu coração batia como
se fosse rebentar e apenas relaxava, desanimado, ao perceber que não era
Maria quem subia.
Sem forma de falarem, pois viviam numa época em que ter um telemóvel era ainda o mesmo que andar com uma mala de viagem, cara
por sinal, na mão.
José não conseguia perceber no que se tinha tornado aquele final
de tarde.
Um desencontro de difícil compreensão; tinham falado ao telefone no dia anterior. Sabiam ambos que chegaria no comboio que vinha
de Vigo pelas 20h00 e Maria estaria na escadaria grande de pedra, logo
em frente à saída.
Quando José saiu, chovia ainda com mais intensidade do que ao
longo do dia. Estava mais frio do que o frio que o acompanhara desde
Portugal.
117
Ro s a l í a de C a s t ro
Depois de ter deixado todos os passageiros saírem à sua frente,
bem como atrás de si, preparou-se mentalmente antes de sair da estação.
Desejava um reencontro perfeito.
Apenas ele e Maria desfrutando toda a felicidade do Universo.
Ao sair viu, para enorme tristeza sua, que não estava ninguém na
escadaria.
Subiu e desceu as escadas várias vezes, na esperança de que fosse
ele que estivesse no sítio errado, mas 15 minutos depois continuava sozinho, molhado até aos ossos e com mais perguntas do que respostas na
sua cabeça.
Não se deu por vencido. Pensou que, mesmo que algo tivesse acontecido, quer Maria tivesse decidido mudar de ideias e não quisesse mais aquele reencontro, quer um louco a tivesse atacado no caminho para a estação
de caminhos-de-ferro, ele iria procurar as respostas para as suas perguntas.
É curioso observar como o cérebro humano é capaz de ter uma
imaginação sem limites, pois em momento algum pensou que poderia
apenas ter sido algo muito mais simples, quiçá um desencontro.
Molhado e sem conseguir olhar direito para o que se passava à sua
volta, caminhou até à rua onde Maria morava, na esperança de que ela
estivesse em casa.
Ao chegar tocou várias vezes à campainha no intercomunicador
da rua e, como resposta, teve apenas silêncio.
De seguida, pensou que talvez o botão estivesse estragado, e decidiu tocar para outro andar, em que alguém rapidamente abriu a porta
sem sequer lhe perguntar quem era.
Com as esperanças renovadas, pois provavelmente Maria estaria
doente e a campainha da porta estragada, subiu os cinco lanços de escadas como se tivesse acabado de se levantar.
No 5º piso, ao bater com a mão na porta, teve uma vez mais como
resposta silêncio total. A única coisa que conseguia ouvir era um televisor ligado, mas provavelmente no andar de baixo.
Restava-lhe esperar, uma, duas, três horas, as horas que fossem necessárias. Quando se apercebeu de que era demasiado tarde para voltar a
Portugal, começou a pôr em causa a razão daquela viagem relâmpago.
Os minutos foram passando, dando espaço para o pensamento ser
povoado pela incerteza.
118
J. P e r r e Vi a n a
Pensou nos sinais que lhe pareciam dizer que talvez não devesse
mesmo ter feito aquela viagem. Enfim, a dúvida, essa malandra, ganhava terreno dentro de si.
A cada porta que se abria lá em baixo, não trazendo a pessoa que
esperava, aumentava a sua angústia e as vozes da dúvida que não queria
ouvir naquele momento.
Era curioso observar como aquele “outro”, que também era ele,
aparecia sempre quando menos era necessário. Uma espécie de oportunista mal-educado que, sem ser convidado, fazia a sua entrada em cena
para o confundir e retirar todo e qualquer brilhantismo do que pudesse
estar para acontecer.
Foi essa mesma voz que ouviu, dois meses antes, quando regressavam ao apartamento depois de jantarem no restaurante Paris, caminhando por entre uma Santiago deserta depois do final do período de
aulas e ainda demasiado cedo para a chegada dos primeiros peregrinos e
turistas.
Sem espaço para mais ninguém naquele passeio que iam conquistando com um passo dançado, a voz questionou-o se era mesmo aquilo
que ele queria fazer.
Obtendo uma resposta positiva, devolveu a provocação com um
ataque ainda mais cruel. Seria isto que ambos queriam mesmo?
Seria amor e paixão ou apenas o seu melhor egoísmo levando não
uma, mas duas pessoas de mão dada para o abismo?
Apercebeu-se do poder daquela voz, às vezes maldita, às vezes
“Santa”, quando Maria olhou para ele preocupada e lhe perguntou se estava tudo bem.
Respondeu que sim, sorriu, mas nem o seu melhor sorriso disfarçou o que ia dentro de si. A “dança” no passeio desacelerou até ao ponto
de parar, bem na porta de entrada do nº 9.
Parecia que caminhavam e falavam em câmara lenta. Nada se afigurava real, era preciso garantir que existiam limites nessa noite. Uma
negociação difícil, mas que teria de acontecer para poderem subir de
mão dada até ao apartamento.
José prometeu a si mesmo, entre o primeiro e o segundo andar, que
não faria nada que ambos pudessem ter dúvidas em fazer. Pareceu-lhe ser
esse o mínimo e simultaneamente o máximo que lhe podia ser exigido.
119
Ro s a l í a de C a s t ro
Maria colocou a chave na fechadura, abriu a porta entrando na escuridão do pequeno apartamento.
Sentaram-se à volta da mesa na sala de jantar e, sem terem acendido as luzes. Continuaram de mãos dadas, olhando um para o outro apenas com o reflexo de uma pequena vela que Maria tinha acendido antes
de se sentarem, colocada no centro do tampo de madeira.
O silêncio fazia o resto. Cada toque que os dedos iam trocando
aumentava o prazer pelo momento, ao ponto de o tornar irreal, único, e,
sem terem bebido nada que pudesse ampliar as sensações, sentiam-se nas
nuvens. Ou seria no inferno, de onde não existe forma de escapar?
A porta do edifício, lá em baixo, voltou a abrir-se e a fechar com
um valente estrondo, levando os pensamentos de José de volta à sua fria
espera. Levantou-se para contrabalançar o rabo gelado com a expectativa de que fosse ela.
Ninguém abriu as portas no primeiro e segundo lanço e, como
que um torpedo que nos atinge sem avisar, imaginou a sua mão a abrir a
blusa e a tocar os seios de Maria.
Percebeu que era um déjà vu: um mês antes, naquele mesmo prédio, quando estavam sentados na mesa por detrás da porta onde se encontrava naquela longa espera, também sentiu algo semelhante.
À medida que tocava com a ponta dos dedos na palma da mão,
imaginou os mesmos a percorrerem a pele branca de Maria, coberta de
sardas, desde as suas costas até aos peitos, volumosos, cheios de prazer
para dar e receber.
Em Outubro passado, quando estavam no apartamento de Maria,
as defesas foram ficando mais curtas à medida que olhavam mais profundamente nos olhos um do outro.
Não proferindo uma palavra, dizendo tudo de uma vez, José pegou com mais firmeza na sua mão e levantaram-se os dois, tal e qual
como dois ímanes que não podem fazer nada para se repelirem e evitar
tocarem-se.
Sentindo de imediato o calor da boca de Maria junto da sua e sem
nunca se beijarem, José rendeu o seu peito esmagado contra o de Maria,
ambos pulsando cada vez mais e mais de vida, de erotismo, transpiravam prazer. A ideia de poderem tê-lo sem limites e a qualquer momento
era algo de maravilhoso.
120
J. P e r r e Vi a n a
Do diálogo silencioso que tinha sido iniciado à volta da vela e da
mesa que a suportava, seguiram através de um bailado que nunca antes
ousaram experimentar até ao quarto. Curiosamente, não o quarto de
Maria, mas aquele mais próximo dos seus corpos; deitaram-se lentamente sobre uma cama, ou terá sido sobre um precipício? Não conseguia
lembrar-se.
A cabeça de José parecia estar a ficar completamente alterada, lutando por se focar em decifrar os sons que vinham dos primeiros andares do edifício na esperança de que fosse Maria a subir e que, de uma vez
por todas, aquela espera terminasse e o desencontro dessa noite fosse explicado.
Por outro lado, as memórias ainda frescas da noite que tinham vivido meses antes e que José se tinha entretido a revisitar para o ajudar a
passar o tempo, na escuridão do vão da escada, tinham-se tornado fantasmas assustadores. Assaltavam-no repetidamente, sem piedade, tornando cada segundo que passava uma tortura de prazer entre a dúvida e
o desejo.
Mais uns segundos e conseguia ouvir os passos que subiam ao terceiro piso. Nenhuma porta se abriu.
Seguiu-se novamente um silêncio e os passos continuaram em direcção ao quarto piso. Pensou então que não tinha preparado nadapara
dizer, caso fosse Maria.
Nenhuma frase brilhante que pudesse minimizar toda aquela situação.
Provavelmente nem seria ela, embora o seu desejo a conseguisse
imaginar de saia negra, curta, logo acima dos joelhos, e meias pretas.
Iria dar-lhe um abraço sem limites e as suas mãos percorreriam
desde as suas ancas até aos seus joelhos brancos e no regresso, afagariam
o centro do seu mundo. O seu sangue estava em ebulição1.
1 O fenómeno da ebulição ocorre quando uma substância passa do estado líquido para o estado gasoso, e é constante para uma mesma substância, nas mesmas condições de pressão. O ponto de
ebulição da água no nível do mar é de 100,0 °C.
121
- 27 Tenho Medo
D
ois meses antes, ao regressarem do jantar na parte antiga da cidade,
e depois de terem conversado à volta da mesa que agora ficava para
trás, José lembrou-se do que tinha acontecido depois de se terem deitado
na cama do quarto da colega de Maria.
José vivia um dilema desde que tinha saído do restaurante Paris,
embora soubesse que não obrigaria Maria a fazer algo que ambos não quisessem.
Desligou todas as preocupações quando se beijaram depois de se
deitarem sobre a cama. José achou que seria um caminho sem retorno.
Queria muito que fosse um caminho sem retorno, queria amá-la verdadeiramente de todas as formas que sabia e podia imaginar.
Sentiu no toque de Maria que o desejo era mútuo, e embora estivesse
muito escuro, conseguia ver uns pequenos olhos azuis que pareciam dizer-lhe algo que não compreendia. Não eram consistentes com tudo o resto.
Parou de beijá-la por instantes e, ao contrário das respirações ofegantes que preenchiam aquele momento, foi o silêncio que ocupou o espaço que restava no pequeno quarto. Era inevitável que falassem.
Ele não sabia o que dizer, embora no fundo quisesse perguntar
porque é que ela não queria continuar, quais eram os seus receios.
Não teve tempo para dizer nada. Os olhos que antes lhe pareciam
pequenas luzes azuis eram agora imensos oceanos que vinham até si em
torrentes de questões.
Queria evitar a todo o custo o que estaria prestes a ouvir, mas estava nos braços de Maria. Não podia fugir para lado algum e, mesmo que
pudesse, no fundo não queria fazê-lo.
122
J. P e r r e Vi a n a
− Sabes José, é a minha primeira vez e tenho medo…
As palavras de Maria tinham saído entrecortadas, como se estivesse aterrada com receio de falar.
− Quero muito estar contigo aqui, e quero muito que sejas tu o primeiro, o único homem da minha vida, mas hoje apenas quero estar junto
a ti.
Quando acabou de falar, os olhos de Maria abriram-se ainda mais
e, em simultâneo, o seu corpo pareceu desaparecer entre os seus braços.
José não conseguiu dizer uma só palavra. Limitou-se a abraçá-la o
mais que podia e procurou encontrar um espaço dentro de si onde fosse
possível pensar sem ser ouvido.
Será que quando ela lhe disse que era a primeira vez, estaria ele a
entender bem que ela lhe dizia que era virgem?
Parecia ter nos braços uma menina de 14 anos. Teve vontade de
desaparecer… Como era possível?
Seria capaz de jurar que, com aquele estilo confiante, misto de rebeldia em cara de santa, já tinha ido para a cama com mais gajos do que
ele tinha inventado em canções na sua guitarra.
Abraçaram-se ainda mais, provavelmente até que choraram os dois
e, mais cedo ou mais tarde, dormiram como se um só corpo estivesse naquela cama. Um momento irrepetível, embora não o soubessem naquela
altura.
123
- 28 Flashback - Enfim Paz
O
s passos no andar de baixo ficaram tão fortes que podia ouvi-los dentro
da sua garganta, estavam tão próximos que achou melhor pôr-se direito, numa posição quase natural de quem teve uma surpresa.
Desejava sentir-se menos parvo naquela situação em que estava, isto
para além de ter o rabo enregelado e as hormonas a fazer um cocktail de esperma dentro da sua cabeça.
O som passou a vulto e o vulto passou a quem ele esperava.
Mesmo no escuro, era fácil ver os seus olhos muito azuis quando ouviu:
− Hola, José.
− Maria?
Como se estivesse à espera de ser encontrado ali mesmo.
− Maria, estive quase uma hora na estação de comboios à tua espera,
mas não estavas, não estava ninguém.
− José, também eu estive mais de uma hora na estação de comboios,
debaixo de um chapéu-de-chuva, esperando por ti, mas não te vi chegar, ninguém chegou.
Olhavam-se entre as sombras da luz das escadas, que se apagara naquele instante.
− No tienes que mirar mas allá!
− Amo-te, querida.
Antes de continuarem a falar, tentando perceber o desencontro, já tinham feito as pazes com o destino.
Foi incrível perceber como o ser humano é capaz de ultrapassar situações extremas, tanto físicas como psicológicas, com uma simples mudança de
observação.
124
J. P e r r e Vi a n a
Todas as dúvidas, das mais profundas às mais simples, não apenas as
de José mas também as de Maria, tinham-se dissipado e apenas a presença
de um em frente ao outro bastava.
No final, José tinha-se esquecido de fazer algo muito simples, mas de
vital importância quando mudamos de País. Não tinha adiantado o seu relógio, o que queria dizer que tinha estado uma hora antes do combinado esperando por alguém que apenas deveria chegar uma hora depois.
José sentia-se um completo anormal ao perceber que tinha sido demasiado rápido a julgar, a criar factos novos e, logo depois, novas realidades.
O segredo de uma vida feliz passa por uma separação entre as coisas
que nos acontecem e nós próprios. Os acontecimentos não somos nós.
Entre a escuridão que os rodeava no hall de entrada, existia apenas felicidade.
Viviam novamente! O relógio e o tempo, que anteriormente tinham
feito misérias, tornavam-se agora o maior aliado.
Dispunham de três dias repletos de segundos, horas e minutos, à espera de serem abertos, vividos e nada mais. Não havia outras preocupações
para além de receber e dar prazer um ao outro.
Momentos de total perdição que ambos tinham desejado, levando a
sua paciência aos limites, mestres de um amor masoquista.
Entrelaçaram os dedos sem que os pés tocassem o chão que os separava da entrada ainda escura do quarto de Maria e entraram.
125
- 29 The Book of Secrets
D
ois meses depois, estavam de volta à mesma casa, para completar o
que tinha sido iniciado numa noite semelhante.
Sem mais palavras do que as necessárias para perceber que tudo
não passara de um enorme desencontro, a roupa a mais que os corpos
transportavam caiu no chão.
No quarto de Maria confirmaram o que tinham começado um século antes.
A cama encostada à janela criava um recanto natural, uma reentrância escavada nas suas vidas, iluminada com os recortes dos seus corpos
projectados pela luz da vela que anteriormente os tinha acompanhado.
Perderam a conta das vezes que se amaram durante aquele final de
semana. As horas eram deles, a música era de Loreena Mckennit1, a vela
à beira da cama provavelmente da colega de piso, Letizia.
Poucas vezes deixaram o quarto, eventualmente apenas para mordiscar alguma comida no frigorífico, mas apenas por breves instantes.
Cada vez que se olhavam, a única coisa que queriam era voltar a
amar-se, regressando abraçados à sua caverna2.
1 * Loreena Isabel Irene McKennitt,born February 17, 1957, is a Canadian singer, composer,
harpist, accordionist and pianist who writes, records and performs world music with Celtic and Middle Eastern themes. McKennitt is known for her refined, clear soprano vocals.
2 The Allegory of the Cave, also known as the Analogy of the Cave, Plato’s Cave, or the Parable of the Cave − is an allegory used by the Greek philosopher Plato in his work The Republic to illustrate “our nature in its education and want of education”.
In the dialogue, Socrates describes a group of people who have lived chained to the wall of a cave
all of their lives, facing a blank wall. The people watch shadows projected on the wall by things passing in front of a fire behind them, and begin to ascribe forms to these shadows.
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Anos depois, a memória de José continuava presa algures entre a
sexta-feira e o domingo daquele frio e chuvoso final de semana dos primeiros dias de Janeiro. Estavam em 2000 e o mundo, curiosamente, não
tinha acabado.
127
- 30 Tempo
L
ife is what happens to you while you’re busy making other plans1.
Pouco importa saber se foi John Lennon, Allen Saunders ou
Quin Ryan o primeiro a utilizar a famosa expressão, desde que se perceba o seu verdadeiro significado.
Por um minuto, ou mesmo um segundo, se perde ou se salva uma
vida; por um minuto, ou mesmo um segundo, nos cruzamos com a pessoa que poderá mudar-nos para sempre.
Por um minuto, ou mesmo um segundo, se diz ou se deixa de dizer algo que nunca mais poderemos repetir.
Embora as oportunidades possam passar por nós e mais tarde regressar, o mesmo já não se passa com o tempo.
Por cada minuto que o ponteiro dos segundos perfaz em redor do
mecanismo de um relógio, sessenta segundos voam para sempre da ampulheta da vida e jamais alguém conseguiu recuperá-los.
Quando confrontado com as voltas que a vida gosta de dar a quem
tem por tentação fazer planos da sua existência, tropeçou, caiu e não foi
capaz de se levantar.
Quando se pensa que bater no fundo é o mais baixo que se consegue descer, tendo a ilusão de que, daí em diante, o caminho inverso é o
da inevitável redenção, enganamo-nos.
Para muitos, continuar a rastejar indefinidamente na lama da tristeza e do desalento é apenas o começo de um definhar em direcção a
uma morte lenta, mas certa.
1 John Lennon did compose a song containing this saying and released it in 1980. The song was
called Beautiful Boy or Darling Boy and it was part of the album Double Fantasy. Lennon wrote the
lyrics about his experiences with his son Sean, whose mother is Yoko Ono.
128
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O ano 2000, para além de ter trazido a José o novo milénio, trouxe também um Inverno só comparável à pequena idade do gelo1.
O sabor da morte, que pouco antes já tinha experimentado na sua
vida, estava de regresso.
Sem perceber bem de quem teria sido a culpa. Da Primavera não
poderia ser, pois naquele ano fora realmente tardia. A Srª Dª Rosa acabou por acompanhar o Professor Costa Terra, um coração fraco ou um
fraco coração terá, aparentemente, sido a causa e o efeito.
Toda a situação lhe pareceu um déjà vu, a entrada em casa, a vizinha do 2º D.to, a Dª Aurélia porteira e a tia Lurdes que só via no Natal,
todas sentadas em redor do sofá na sala.
Os mesmos procedimentos, a mesma capela mortuária, o mesmo
Padre, e – era capaz de jurar – a mesma chuva, irritante e desoladora,
que também caíra aquando a morte do Pai.
Não teve tempo de partilhar com a Mãe o amor que tinha a certeza de ter encontrado, tinha sido tudo tão rápido, incluindo a morte.
Pela primeira vez experimentara a sensação de estar absolutamente sozinho. Ficava sentado e depois deitado na sala em frente a uma televisão ligada para ninguém ver. Às vezes, é esta a única função de certas
companhias.
Achou estranho que o seu amigo e sócio, Miguel, não tivesse estado ao seu lado naqueles dias de luto, que pareciam não ter fim.
Talvez até tivesse passado pela Igreja e tenha sido o olhar turvo a
bloquear-lhe a visão.
Durante vários dias não saiu de casa, mas quando o fez percebeu
que, afinal de contas, o mundo não tinha parado. Ninguém, para além
de si próprio, das vizinhas e da tia, choravam a ausência de quem partira.
1 A Pequena Idade do Gelo foi um período de arrefecimento que ocorreu na Era Moderna. Teria sido
nos anos 1650, 1770 e 1850 que ocorreram os mínimos de temperatura, cada um separado por intervalos
ligeiramente mais quentes. O período mais frio da Pequena Era Glacial parece estar relacionado com uma
profunda queda nas tempestades solares conhecida como “Mínimo de Maunder”. No século xvii, devido
à Pequena Idade do Gelo, os Vikings abandonaram a Groenlândia, cuja vegetação passou de verdejante a
tundra. A Finlândia perdeu então um terço da sua população e a Islândia metade. Na Inglaterra, o Tamisa gelou (pela primeira vez em 1607, pela última em 1814). No Inverno de 1780, a zona fluvial de Nova
Iorque gelou e podia-se ir a pé da ilha de Manhattan à de Staten Island, tendo sido bloqueadas as ligações
comerciais por via marítima. Os canais holandeses costumavam ficar completamente congelados. As geleiras nos Alpes cobriam aldeias inteiras, matando milhares de pessoas, tendo-se formado uma grande
quantidade de gelo no mar, a tal ponto que não existia mar aberto em torno da Islândia em 1695.
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Seguindo a melhor tradição do Latim, Malis mala succedunt1 e, antes
da missa de sétimo dia, ficou também a saber que, na sua ausência, ambos
os sócios na empresa que ajudara a fundar tinham preparado um plano de
futuro do qual José não fazia parte.
Pelo meio, ficaram não um, nem dois, nem três telefonemas para Santiago, mas várias mãos com todos os dedos a que geralmente se tem direito.
Nem por uma vez as suas tentativas foram atendidas, quiçá tivesse novamente confundido os sete algarismos, mas era pouco provável.
Ocorreu-lhe fazer a viagem de regresso à Galiza para perceber a razão
de Maria não lhe ter respondido, mas a cada telefonema sem resposta sentia
cada vez mais dúvidas. A distância entre as duas cidades parecia ficar cada
vez maior.
Passavam-se dias em que a única coisa que lhe reconfortava o espírito
e o estômago era a sopa de legumes ou a canja de galinha, que a tia trazia de
três em três dias.
As forças para acolher mais um revés na sua vida não suportavam sequer a possibilidade da ideia, daí que tenha preferido ficar em casa acumulando dias de escuridão.
Quem pagou a raiva e frustração acumulada foi a belíssima Fender all
solid classical2, acabando esmagada contra a parede do corredor, numa das
poucas viagens que fez entre o quarto e a casa de banho.
A cereja em cima do bolo numa semana irrepetível fora o fim de algo
que nunca tinha sequer chegado a ser, a não ser, ao que parece, na sua própria cabeça.
Em menos de três meses, o 3º Esq do nº 10 da Rua Castilho tinha
sido vendido. A família Costa Terra já não morava ali.
O tempo, esse, continuou o seu rumo, implacável, ano após ano.
A pouco mais de quinhentos quilómetros de Lisboa, Maria fazia as
malas para um destino há muito pensado. Agarrara com as duas mãos
a oportunidade de poder deixar para trás a vida que não tinha chegado a
ser.
1 Malis mala succedunt − Uma desgraça nunca vem só.
2 Fender is a US manufacturer of stringed instruments and amplifiers, such as solid-body electric guitars, including the Stratocaster and the Telecaste. The company began as Fender’s Radio Service in late 1938 in Fullerton, California. It got its name from the surname of its founder, Leo Fender.
130
Sobre o Autor
João Perre Viana nasceu a 10 de Agosto de 1972 em Lisboa. Formou-se
em Direito em Portugal e mais tarde fez um MBA na Bélgica, estando
há mais de 20 anos dedicado à gestão e criação de empresas.
A sua vida profissional levou-o a trabalhar em diferentes países e
culturas tendo mantido em paralelo a actividade de docente. Actualmente é professor convidado em diversas universidades onde lecciona
disciplinas nas áreas de empreendedorismo e da comunicação de marca.
Durante a adolescência leu vorazmente tendo começado a escrever
de forma apaixonada as histórias e os relatos dos diferentes locais por
onde tem vivido e trabalhado.
Ao atravessar a fronteira dos 40, prometeu a si mesmo que iria dedicar mais tempo à literatura. Rosalía de Castro e a primeira das histórias que sonham transformar-se em livro que tem para contar.
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Sobre o Livro
Rosalía de Castro é um projecto literário que se desenvolveu de forma orgânica e inovadora, tanto pelas pessoas envolvidas no seu lançamento
como na forma de o fazer, através de uma campanha de crowdfunding.
O enredo baseia-se numa parábola sobre os encontros e desencontros na vida de quatro pessoas. Nascidas em quatro países diferentes acabam por cruzar-se na busca que cada um faz na procura da felicidade.
As notas de rodapé que salpicam cada capítulo ajudam-nos a viver
duas histórias paralelas, a que está escrita e aquela que o leitor fará por
sua iniciativa.
Ao longo dos anos iremos acompanhar a vida de três mulheres.
Àgnes Szement, nascida em Budapeste, com uma ambição que
poderá não encontrar limites na dimensão do nosso mundo.
Monika Lavova, viveu parte da sua vida em Praga, nasceu na antiga Checoslováquia, um país que já não existe, tal como as certezas com
que cresceu.
Maria Cortez, uma galega misteriosa, tal como muitas das suas
conterrâneas, sonha com uma vida diferente em Paris.
Na ponta de cada história, um mesmo homem, José Costa Terra.
Deixe-se guiar pelos espaços, sons e desafios de um caminho que
se vai estreitando até uma longa noite na Veneza do norte.
Rosalía de Castro é uma ponte no tempo.
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