Artigo

Transcrição

Artigo
A CONSTRUÇÃO DE DOIS IMAGINÁRIOS SOBRE A GUERRA DO VIETNÃ:
A TRILOGIA RAMBO E PLATOON
Roger dos Anjos de Sá (UFG)
O período em que os Estados Unidos estiveram envolvidos na Guerra do
Vietnã (1964-1975) foi objeto de grande debate no final dos anos 70 e em toda a década
de 1980. Esses debates tinham características diversas, mas todos discutiam as razões
do envolvimento e da derrota norte-americana. Nesse sentido a Guerra havia acabado no
campo de batalha, mas havia apenas começado no campo das ideias. Doravante, o que
estava, portanto, em jogo era a memória da Guerra. Ou seja, explicar e representar a
guerra eram agora o lugar do embate.
Esse embate caracteriza-se, especialmente, por ser contra um inimigo
interno: o governo e a ala conservadora, de um lado e o críticos de outro. Os primeiros
lutavam por demonstrar que a guerra não fora de todo injustificável, pois cabia aos
norte-americanos o “fardo” de vanguarda do mundo (expresso, inclusive, no mito do
destino manifesto). Assim,o governo e a ala conservadora labutavam, entre outras
coisas, por resgatar o orgulho patriótico, construir uma imagem positiva do poderio
militar e confeccionar um conceito positivo do veterano – mostrá-lo como herói cônscio
de sua função de vanguarda e além de tudo um emblema de corpo viril e sacrificador.
Além, criticavam os governos que retiraram as tropas do conflito – está embutida a ideia
de que o conflito deveria ter continuado, pois a vitória viria. Os críticos, por sua vez,
viam a guerra como um equívoco; não viam nela utilidade; entendiam-na como símbolo
da brutalidade, da tragédia para a juventude (MEQUISTA, 2004). Criticavam o Estado
norte-americano pelo aproveitamento feito da condição social dos pobres e negros –
grande maioria no conflito. Portanto, tem-se de um lado um aspecto legitimador e de
outro uma característica denunciante.
Desta maneira o governo norte-americano, sobretudo do período Reagan, e
a ala conservadora da sociedade norte-americana tentavam manter uma visão glorificada
da guerra. A administração de Jimmy Carter (1977-1981), caracterizada pela defesa dos
direitos humanos e uma política de não intervenção em assuntos internos de outros
1
países, foi vista pela ala conservadora e pelo governo Reagan como um retrocesso. Essa
política, no entanto, fazia parte do declínio1 do império estadunidense no bojo da crise
do petróleo e da derrota na Guerra do Vietnã.
Segundo Rodrigo Candido da Silva (2009a),
O discurso conservador no final dos anos 1970 aparece como uma reação a
esse clima de desilusão, uma forma de reconstruir o sentimento patriótico e,
principalmente, como meio de recuperar a hegemonia e o prestígio politico
da Direita conservadora estadunidense. Implementou-se então, em fins da
década de 1970, a “Nova Guerra Fria”, com a extinção da détentee a
retomada da corrida armamentista e das disputas políticas e ideológicas com
a União Soviética e o mundo socialista (p. 1243).
Isso corrobora o argumento de Hobsbawm (1994), segundo o qual a Guerra
do Vietnã desmoralizou e dividiu a nação. Essa divisão está no bojo da assimilação do
conflito, de seu caráter, de sua natureza e de sua (in)utilidade. Está no escopo da
chamada síndrome do Vietnã2. Essa síndrome diz respeito a repulsa da sociedade ao
conflito e suas razões. Ou seja, não há, como outrora, recepção passiva às ações
governamentais; elas são, agora, objeto de críticas. Assim, as atrocidades da Guerra do
Vietnã3, bem como suas consequências geraram na nação norte-americana uma
autocrítica que leva a um processo de auto interrogação.
1
Esse é um problema conceitual, pois o declínio é relativo, visto que o que ocorreu foi apenas um
rearranjo da dominação do Império Americano. Segundo Hobsbawm (1995) a crise dos anos 70/80
demonstrou o isolamento norte-americano mas não significou o seu declínio uma vez que o seu poderio
se fortaleceu após crise e a desintegração da URSS.
2
Segundo Ana Paula Spini (2011) Reagan conseguiu reverter a “Síndrome do Vietnã” mediante uma
propaganda agressiva calcada no mito e na ideologia do excepcionalismo norte-americano. Escreve
ela:“A ‘síndrome do Vietnã’ foi um problema que Reagan enfrentou revertendo o discurso da perda. Foi
o porta-voz de um revisionismo histórico da Guerra do Vietnã, apresentando-a como nobre, altruísta, e
que poderia ter sido vitoriosa se os políticos liberais de Washington não tivessem atado as mãos dos
militares” (p. 65).
3
A Guerra do Vietnã tornou-se um produto da mídia. “Pode-se dizer”, argumenta Mesquita (2004), “ que
foi a primeira guerra amplamente televisionada, e a relativa liberdade de acesso de jornalistas ao teatro
de operações muitas vezes acompanhando patrulhas e pelotões em missões de combate nas selvas
vietnamitas, permitiu uma grande documentação filmada que, via de regra, chegava ao público nos EUA
no noticiário noturno, quando não ao vivo (mais comum nos últimos anos da Guerra)”( p. 13). A
população que assistia isso tomou ciência das atrocidades da guerra o que contribuiu significativamente
para a oposição popular ao conflito.
2
Segundo Mesquita (2004), somada a efervescência cultural e política dos
anos 60, a Guerra do Vietnã tornou-se ponto de referência para compreender a história
recente dos Estados Unidos4. Compreendida a partir desse prisma a guerra é um ponto
de ruptura da história norte-americana, indicando, portanto, um ponto de clivagem
quanto a concepções políticas, militares, diplomáticas na própria estrutura do Estadonação e na relação que este empreende com o indivíduo, com o cidadão comum.
As discussões e os debates na sociedade norte-americana no período são de
naturezas e aspectos diversos: ensino, política, economia, cultura. A partir desse
momento, floresce debates variados que empreendem mudanças indeléveis na
concepção de sociedade, de política, de guerra, de economia, de produzir e consumir
cultura, de entender o outro e a si mesmo, etc. As manifestações contra a Guerra do
Vietnã – um dos arautos da contracultura – que marcaram o período é sinal evidente que
aquele momento significava não uma continuidade, mas uma ruptura no seio dessa
sociedade. Dali surgiria, portanto, uma fissura que a partir daquele momento lutaria pela
confecção de uma memória histórica da nação.
As críticas surgidas nos momentos finais do conflito ganha força nos anos
80. O cinema é um espaço onde essas discussões tomam uma característica privilegiada
com força e vitalidade singulares. Dessa forma, ele é um campo de expressão e difusão
de discursos, sendo, portanto, lugar onde lutas sociais, políticas e ideológicas são
travadas. O cinema, ao retomar a Guerra do Vietnã como foco de análise, como objeto
representativo, elenca elementos da memória sobre o conflito. Dessa maneira,
empreende e mobiliza aspectos da lembrança social. Esse processo opera de duas
formas: a primeira, que podemos chamar de positiva, opera fazendo um recorte que
acentua exatamente aquilo que quer ser rememorado. A segunda, que podemos chamar
4
Os anos 50 e 60 é um período de grandes transformações culturais nos Estados Unidos. Estas
transformações que estão no bojo do movimento de Contracultura abarcam a totalidade da sociedade
norte-americana. A revolução cultural empreendida pela contracultura alterou a maneira como esta
sociedade percebea si mesma e também o outro (PEREIRA, 1986). Nesse sentido a contracultura alterou
a auto concepção histórica dos Estados Unidos, contribuindo de maneira indispensável para o surgimento
daautocrítica que se percebe nas produções culturais do final dos anos 70 e na década de 80. O cinema
éum lócus privilegiado onde essa autocrítica e todos os debates em torno dela se mostram de maneira
mais clara e politizada.
3
de negativa, o efeito rememorador opera na base do esquecimento, da negação. Ou seja,
aquilo que foi rejeitado pelo efeito do recorte, trabalha como elemento desprezador.
Destarte, a análise sobre o cinema acerca do conflito no Vietnã não se pode
circunscrever ao aspecto descritivo, mas deve abarcar e considerar que as produções
fílmicas estão no contexto de um embate ideológico. Sendo assim, a peça fílmica é a
defesa de uma posição ideológica e exatamente por isso, deve-se, ao analisá-la, ater não
apenas ao dito, mas também ao que foi silenciado (MESQUITA, 2004).
Dessa forma, os filmes do período sobre a Guerra do Vietnã, de maneira
geral, têm duas vertentes principais: ora tentam construir uma visão glorificada ou
legitimar de alguma forma o conflito, ora o criticam, o denunciam como uma atrocidade
que, inclusive, poderia ter sido evitada. Da primeira vertente podemos citar os filmes
Rambo(Rambo: programado para matar – FirstBlood, 1982; Rambo II: a missão –
FirstBlood – Part II, 1985 e Rambo III – Rambo III, 1988), De volta para o inferno
(Uncommon Valor, 1983) ea trilogia Missingaction(Braddock, 1984, 1985 e 1988).
Mesquita (2004), argumenta que:
Esses filmes na verdade tentam “resgatar” o orgulho patriótico estadunidense
e a imagem positiva do seu poderio militar, redimindo um passado recente e
duro que pesava sobre a memoria nacional através da reabilitação da imagem
do veterano como herói. Além disso, endossavam a crítica conservadora às
decisões tomadas pelo governo que levaram ao fim da intervenção norteamericana e às visões liberais do problema do Vietnã, vistas como covardes,
derrotistas, argumentando que o uso da força e o intervencionismo não
deveriam ter sido contidos (p. 17).
Da segunda vertente podemos citar Apocalipse Now(1979), Platoon
(Platoon, 1986), Nascido para matar (FullMetal Jacket, 1987), Pecados de Guerra
(Casualtiesofwar, 1989) e Nascido em 4 de Julho (Born on The fourthof July, 1989).
Esses filmes apresentam uma visão crítica sobre o conflito, apresentando-o como um
grande erro que trouxera a tragédia para as vidas da geração de jovens que nele se
envolveu. Essas produções, portanto, através da reconstrução da memória, fizeram uma
denúncia sobre as atrocidades da guerra.
4
Com o objetivo de demonstrar como o cinema tornou-se um campo de
debate e embate político-ideológico, este artigo aborda os filmes Rambo (I, II e III)
ePlatoon como produções opostas na maneira de elaborar uma memória da Guerra do
Vietnã. Esses filmes são todos dos anos 80 demonstrando que essa década é um
momento de revisão sobre esse conflito5.
A década de 80 é o período de tentativa de reafirmação do poderio norteamericano. O conservadorismo do governo Reagan expresso em sua política externa e
no reordenamento da política interna encontrou ecos na sociedade norte-americana. A
ascensão da Nova Direita, do conservadorismo, não esteve presente apenas no campo da
política interna e externa, mas também dominou o cenário cultural norte-americano. As
ideias conservadoras, ou a ideologia direitista, encontrou forte expressão nos jornais,
revistas, rádios, televisão e no cinema hollywoodiano do final dos anos 70 e, sobretudo
dos anos 806.
A TRILOGIA RAMBO
Os filmes da trilogia Rambo7são exemplos dessa expressão no cinema.
Juntamente como outros filmes essa trilogia evoca a ideia do poderio militar norteamericano que precisava ser resgatado após a derrota no Vietnã. Esses filmes
pertencem, portanto, ao que já apontamos como a Nova Guerra Fria. Assim, eles têm
em seu bojo a função de transmitir uma ideia muito clara: os Estados Unidos são a
5
Ao vincular o momento histórico, final dos anos 70 e, sobretudo a década de 80, como foco de análise da
produção cinematográfica sobre o conflito do Vietnã, não queremos demonstrar que há um reflexo
automático, lógico e mecânico entre a produção cinematográfica e o público. Objetivamos apenas
evidenciar que o momento é um período de debate e efervescência social, política e cultural cujo cinema é
campo privilegiado desse embate. E que esses não estão isentos ideologicamente: eles cumprem um papel
de propagação de uma ideologia.
6
Acerca dessa ideologia do poderio militar americano não apenas o Vietnã foi campo de pano de fundo
para demonstração do poderio militar norte-americano. Filmes como Ases Indomáveis (Top Gun, 1986),
Águias de Aço (Iron Eagle, 1986), por exemplo, contribuíram de modo decisivo para isso. Além do mais,
esses filmes corroboraram a ideia legitimadora perante a sociedade estadunidense da vanguarda que os
Estados Unidos exerciam no mundo. Top guncontribuiu inclusive para o aumento em 500% no número de
alistamentos de candidatos a piloto naval dos EUA (http://www.naval.com.br).
7
Os filmes Rambo surgiram inspirados no romance “FirstBlood” escrito por David Morrel e lançado em
1972.
5
principal potência do mundo e que a derrota no Vietnã não tem outro culpado a não ser
o erro de governantes anteriores que numa posição de covardia recuou.
Dessa forma, a derrota ganhou outra dimensão: não aquela de um fracasso
devido a força do inimigo e a fragilidade do exército norte-americano, mas sim a
ineficiência dos governos, sobretudo, os dos últimos anos da Guerra. Portanto, a culpa
pela derrota não estava no combatente e nem na fraqueza do exército, mas na forma
como a guerra foi conduzida.
Nesse sentido, a trilogia constrói uma imagem, uma memória sobre a Guerra
do Vietnã que concorda com a visão conservadora. Logo, ela corrobora com a
perspectiva Reaganista de construir uma visão glorificada do conflito. Ela está, portanto,
no bojo da implementação de uma nova versão da Guerra do Vietnã, do poderio militar
norte-americano, na confecção de uma nova roupagem para o ex-combatente e na
reafirmação negativa do inimigo da Guerra Fria: o comunista.
O primeiro elemento que podemos elencar deste processo é a tentativa de
reconstruir a imagem do veterano, especialmente nos dois primeiros filmes. De vadio o
veterano é elevado à categoria de herói. Logo, o problema que está posto é a adequação
desse veterano à sociedade que o rejeita. Rejeição essa que provem da ideia de que é ele
o símbolo maior da vergonha e o emblema perfeito da derrota e do fracasso. A covardia,
portanto, sede espaço à honra, uma vez que o veterano é um sofredor sacrificial, pois o
seu sofrimento é em função da nação.
Além disso, há um indicativo no primeiro filme, no último diálogo de John
Rambo (Sylvester Stallone) com o coronel Trautman (Richard Crenna) de que a
covardia é culpar o veterano, pois a guerra não era dele e os que o julgam nem
estiveram lá para ver o que de fato aconteceu. O veterano não é uma máquina que possa
ser desligada, visto que a batalha foi intensa e não pode ser apagada com apenas um
click.
O veterano quer dignidade. Na guerra ele era especializado, pois pilotava
helicóptero e dirigia tanques – símbolos da tecnologia e da sofisticação – no entanto, em
6
sua volta, ele não consegue nem ocupar funções subalternas no mercado de trabalho. O
veterano precisa então de dignidade e de reconhecimento.
Assim, os filmes Rambo tentam reconfigurar uma imagem do veterano.
Esses filmes, segundo Silva (2009b),
Visam chegar ao outro extremo da concepção acerca do veterano. De culpado
pela derrota, desajustado, e problemático para a sociedade, o veterano se
transforma em herói, em representante da nação que merece reconhecimento
pela bravura na guerra (p. 220).
Outro elemento é a ideia de soldado perfeito. O soldado do exército norteamericano é um combatente bem formado, com qualidades magnas. Qualidades que
exprimem indispensavelmente bravura e altruísmo: ele não mediu esforços na batalha e
não os mede após a guerra para resgatar os concidadãos que ficaram nas mãos do
inimigo. Sobretudo nos dois últimos filmes o personagem encarna o herói de forma
escancarada. Ele assume a postura de um herói da nação que enfrenta tudo e todos em
nome do país.
Isso elenca outro elemento: a questão de que a guerra ainda não acabou e
que é possível dar a ela outro fim. Os regastes, dessa forma, estão relacionados à
especulação de que cerca de 2500 soldados desapareceram durante a guerra.
Especulava-se que muitos deles ainda estivessem vivos e presos em campos de
concentração, sofrendo privações alimentares e torturas físicas e psicológicas. Assim, as
missões de resgates, feitas pelos veteranos, transmitiam a ideia de vitória. No inicio do
segundo filme da série, quando John Rambo é convocado para a verificação da
existência desses soldados ele pergunta ao coronel Trautman: “Vamos vencer desta
vez?”. Pertence, portanto ao escopo imaginário do filme a ideia de reverter o resultado
da guerra. Na resposta dada pelo coronel – “Esta depende de você” – é possível
perceber outro elemento importante: o individualismo.
O individualismo ganhou grande força na Era Reagan. Debaixo da insígnia
do Neoliberalismo o Reaganismo despreza o coletivo e enfatiza a força do indivíduo.
Contudo, esse individualismo só encontra expressão debaixo do ornamento do
7
patriotismo. Reagan, “retomando a metáfora dos colonizadores solitários desbravando
o Oeste, vislumbrava um país feito pelo empreendedorismo, onde prevalece o selfmademan e não as conquistas coletivas” (MAURO FILHO, 2011. p. 177).
Esse país foi fundado na fé no indivíduo, não em grupos ou classes, mas fé
nos recursos e generosidade de cada e todo espírito humano separado. A
história dos Estados Unidos da América é na realidade uma história de
conquistas individuais. Foi seu trabalho duro que construiu nossas cidades e
cultivou nossas pradarias; sua genialidade que continuamente nos empurrou
para além das fronteiras do conhecimento existente, remodelando nosso
mundo com o motor a vapor, a vacina anti-pólio e o chip de silício
(REAGAN, 1986, apud MAURO FILHO, 2011, p. 177-178).
O mito do self-mademan cabe perfeitamente no imaginário norte-americano
para o personagem Rambo: no segundo filme ele, abandonado pelos burocratas, símbolo
dos que levaram a guerra ao fracasso, triunfa sozinho contra os mais cruéis dos
inimigos. Não interessa se está ou não adaptado às novas tecnologias8.
É possível perceber ainda a reconstrução ou reconfiguração do inimigo. A
Nova Guerra Fria é, portanto, o pano de fundo do período. Essa representação fica mais
evidente nos dois últimos filmes da série. No terceiro filme o Vietnã não é mais o lugar
do combate, cedendo espaço para o Afeganistão, que fora invadido pela União
Soviética. Os russos são representados como exterminadores, covardes, rudes e
incivilizados, que massacram indefesos. Na perspectiva da reconstrução da imagem do
veterano e do próprio exercito norte-americano, John Rambo é exatamente o contrário:
um homem sensato, civilizado, gentil, que compreende a cultura do outro e está
disposto a sofrer e a celebrar com ele.
8
A aparente aversão de John Ramboà tecnologia é contraditória, assim, como o individualismo. Segundo
Douglas Kellner (2001)“Num dos níveis, o filme é sobre o triunfo do indivíduo sobre o sistema, dando
continuidade ao tropo dominante do individualismo na ideologia americana, mas conferindo ao conceito
um cunho particularmente direitista e masculinista após a apropriação do individualismo dos anos 1960
que tinha a forma de revolta social e inconformismo. Além disso, Rambo usa cabelos compridos, faixa na
cabeça, só come alimentos naturais (enquanto o burocrata Murdock [Rambo II] bebe Coca-Cola), está
próximo da natureza e é hostil à burocracia, ao Estado e à tecnologia – exatamente a postura de muitos
contraculturalistas dos anos 1960. Esse é um excelente exemplo de como as ideologias conservadoras
são capazes de incorporar figuras e modismos que neutralizam e até invertem suas conotações originais
como estilo e comportamento de contestação” (p. 452).
8
No segundo, onde se inicia o processo de reconfiguração do inimigo, os
russos – os comunistas – são representados de maneira absolutamente dirigida para criar
uma imagem negativa do “mundo alternativo” reforçando a perspectiva da civilização
ocidental capitalista.
Desse modo percebe-se que a trilogia está imersa em muitas construções
ideológicas que pertencem ao seu contexto de produção como acima apresentado.
Consideramos, contudo, que esse processo não ocorre de maneira mecânica, mas sim
imerso em contradições. Num movimento dialético, o cinema absorve a ideologia
presente no Estado, na sociedade e ao reproduzi-la imprime-lhe uma nova roupagem e
vice-versa.
PLATOON
Escrito e dirigido por Oliver Stone, Platoon é, com certeza, um dos filmes
mais lembrados, comentados e estudados sobre a Guerra do Vietnã. Ele é o primeiro de
uma série de cinco filmes de Stone sobre a história norte-americana dos anos 60 e 709.
Desses, três abordam diretamente a questão do Vietnã, da guerra em si (Platoon), bem
como suas consequências na vida das pessoas envolvidas (Nascido em 4 de Julho e
Entre o Céu e a Terra).
A história norte-americana desse período, na perspectiva dos filmes de
Stone, tem seu centro no conflito do Vietnã. Essa revisão da Guerra então tem o escopo
de fornecer uma interpretação do momento, os anos 80. Assim, os EUA são o que são
pelo seu passado recente. De imediato, percebe-se que ele oferece uma interpretação
alternativa à oficial, à conservadora, portanto, de esquerda e liberal. Desta maneira,
Platoon, contrapõe aos filmes conservadores como Rambo. “O fato de aglutinar,
segundo Mesquita (2004, p.23), alguns elementos das visões liberais e esquerdistas
sobre a politica americana, podendo colocar-se em oposição ou reação a filmes da
9
Platoon (1986), Nascido em 4 de Julho(Born on The fourthof July, 1989), JFK (1991),Entre o Céu e a
Terra(Heaven and Earth, 1993), e Nixon (1995).
9
vertente conservadora que emergiu dominante na década de 1980 nos Estados Unidos”,
é uma de suas características mais marcantes.
Compreendendo-o como produto de sua época, o filme está imerso no
contexto dos anos 80, acima caracterizado. Assim, ele discute por um viés alternativo ao
conservador, Reaganista e direitista, o problema do Vietnã e as vicissitudes que ele
ainda apresenta para a sociedade e o governo norte-americano na década de 1980.
Propõe, deste modo, uma visão crítica e uma perspectiva denunciante da Guerra.
Em Platoon, o glamour cede espaço para brutalidade hiper-realista do
conflito. Se em Rambo e em outros filmes conservadores há uma espécie de louvor à
guerra em Platoon a guerra é demonstrada como uma atrocidade que pode suscitar do
ser humano o pior. Os combatentes são transformados em indivíduos loucos, sem
escrúpulos. São vistos apenas como parte de uma engrenagem que, se não funcionar
bem, pode e deverá ser descartada. Esse descarte ocorria enviando os soldados novatos,
mal preparados, para as emboscadas. Portanto, novatos eram os que mais sofriam com o
processo de descarte. O filme, então vê nisso um equívoco covarde, pois a única certeza
que esse soldado tem é a morte.
Esse soldado é forjado para destruir. A guerra opera, portanto como um
elemento de embrutecimento desse indivíduo. A crítica se aprofunda ainda mais devido
ao fato desse combatente ser muito jovem – menos de 20 anos. Neste sentido, a
denúncia ganha um contorno mais amplo, pois a juventude fora perdida e junto com ela
a inocência. Segundo Mesquita (2004), a perda da inocência foi tema latente nos 80.
Ela tinha dupla interpretação: 1) uma mais literal, em que os jovens que participaram,
direta ou indiretamente, da Guerra do Vietnã e dos movimentos contraculturais dos anos
60; 2) uma segunda, mais política, em que os sonhos e o ideal de nação foram perdidos
em função da prática política de certos grupos políticos.
Isso diz respeito tanto aos políticos de Washington do período, que
conduziram os Estados Unidos a uma escalada trágica no Vietnã, quanto os
do período em que o filme foi produzido, e se traduz numa crítica ao
‘reaganismo’ e seu militarismo agressivo (MESQUITA, 2004, p. 59).
10
Outro elemento levantado pelo filme é a crítica à origem social dos soldados
e à concatenação com ideia da inutilidade da Guerra. Esses soldados lutam por uma
Guerra que não atendiam os seus interesses, mas dos grandes; eles lutam pela liberdade
de uma sociedade que os rejeita e os despreza. Situação que se agravará com a volta
para casa onde eles serão rejeitados. Na visão do filme, esse indivíduo comum, que ama
sua pátria, é o esteio da sociedade norte-americana.
A divisão existente no pelotão acentua essa crítica da divisão na sociedade
estadunidense. O grupo de Elias (Willem Dafoe) composto por negros, brancos
“progressistas”, hispânicos, Hippies e usuários de drogas são mais humanos e mais
conscientes e críticos em relação à situação na e da Guerra. Enquanto o grupo liderado
por Barnes (Tom Berenger) – brancos, racistas, beberrões e reacionários – são menos
cônscio sobre o conflito e, portanto, não compreendem que a Guerra é um jogo dos
poderosos que veem neles apenas um instrumento de sua vontade. Essa divisão é a
representação do que ocorria na sociedade norte-americana nos anos 80 em torno da
questão Vietnã (MESQUITA, 2004).
Segundo o mesmo autor essa disputa representa, também,
A rivalidade política que existia em Washington entre os favoráveis à
escalada maciça pra a resolução da guerra, não importando os meios – os
chamados Hawks (Falcões [Barnes]), e aqueles que argumentavam por uma
ação coordenada e limitada que implicasse em perdas materiais e humanas
menores – os Doves(Pombas [Elias]) (MESQUITA, 2004, p. 62).
A crítica acerca do despropósito da guerra também está presente no filme. E
é exatamente o despropósito que gera uma brutalização do conflito onde muitos crimes
são cometidos. Enseja também que esses crimes ocorreram com a ciência do governo. A
cena da aldeia, por exemplo, em que ocorrem assassinatos de camponeses indefesos sob
o comando de Barnes em que o tenente Wolf (Mark Moses), símbolo do poder do
governo, viu tudo e nada fez representa essa denúncia.
Neste sentido, assevera-se a censura à desumanização impetrada pelo
conflito, configurando uma acusação de que a guerra produziu a morte de civis
11
indefesos – não combatentes, idosos, crianças, deficientes. (A cena na aldeia, dentro da
cabana, em que Bunny (Kevin Dillon) estoura os miolos de um deficiente é chocante e
hiper-realista). Intenta provocar exatamente essa sensação no espectador para
demonstrar que a desumanização foi levada até as últimas consequências na guerra. Se
em Rambo, reformulação do conservadorismo sobre a guerra, tudo isso é reconstruído e
o combatente é humanizado (Vide, por exemplo, o trato dispensado a mulher no
segundo filme e sua repulsa ao combate de criança no terceiro filme), em Platoona
brutalidade do combatente é escancarada. Portanto, a denúncia sobre as atrocidades da
guerra é consumada, negando, assim a perspectiva da interpretação conservadora sobre
o conflito.
Essa brutalidade, no entanto, é impetrada, não como culpa do soldado, mas
daqueles que estavam no comando. Assim, o soldado também é vítima da política. Aqui
os dois filmes se aproximam. Tanto John Rambo como Chris Taylor (Charlie Sheen)
são vítimas da política.
Além da imoralidade da desumanização, segundo Mesquita (2004) Platoon
denuncia que a guerra foi, também
[...] imoral no sentido [de] que foi fruto das conspirações de homens que não
respondiam aos ideais originais dos Estados Unidos e aos interesses de seus
cidadãos, mas aos desígnios de grupos econômicos e políticos específicos,
que provinham de setores corporativos como a indústria bélica. Imoral
porque conduziu os que nela combateram num inferno, que nas palavras do
protagonista Chris era a “impossibilidade da razão”. Uma guerra sem causa e
sem objetivos, ou baseada em causas vazias e sem efeito (p. 64).
Alguns elementos no filme parecem carecer de um pouco mais de pesquisa
que não comporta nesse artigo. Barnes ter matado Elias – apossado de sua alma –
remete a ideia de que o conservadorismo, a direita, com sua versão sobre o conflito
triunfou mesmo com a morte de Barnes por Chris? O problema de o inimigo ser pouco
caracterizado pode ser um indício que o verdadeiro inimigo não são os vietnamitas, mas
sim eles mesmos – um inimigo interno? O filme parece não ser essencialmente anti-
12
guerra; isso faz dele um filme que não crítica de maneira aprofundada a política externa
norte-americana?10
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou demonstrar como a Guerra do Vietnã tornou-se um
importante tema de debate na sociedade norte-americana nos anos 80. Período
caracterizado pela retomada do conservadorismo como modelo político de governar.
Tudo isso encontrou eco na sociedade estadunidense que procurava um sentido para sua
história recente. Portanto, a construção da memória estava submetida a um contexto
social permeado, histórico e socialmente, pela efervescência cultural da Nova Direita
que tentava demonstrar uma versão glorificada e glamorosa do conflito.
No entanto, por mais que tem sido essa a memória mais dominante ela
encontrou oposição. Uma perspectiva crítica propôs outro construto memorialístico
embasado num concepção que via na Guerra do Vietnã uma atrocidade e um conflito
que deveria ter sido evitado.
Mesmo que esse processo, esse embate, tenha sido travado em diversos
segmentos da sociedade é no cinema que ele encontra um lugar privilegiado. Por ser um
produto cultural de alcance enorme, o cinema foi construtor primaz dessa memória. Para
demostrar como isso ocorreu escolhemos filmes que procuraram cada um a seu modo,
confeccionar essa memória.
Temos de um lado os filmes da trilogia Rambo que representam a
construção coligada com a perspectiva do conservadorismo. Nesse sentido a trilogia
constrói uma imagem, uma memória sobre a Guerra do Vietnã que concorda com a
visão conservadora. Logo, ela corrobora com a perspectiva Reaganista de construir uma
visão glorificada do conflito. Ela está, portanto, no bojo da implementação de uma nova
10
Se Platoonnão o for ao menos Oliver Stone o é. Antes de lançar Platoonele lançou Salvador – O
Martírio de um povo (1986) em que critica a posição intervencionista dos EUA em El Salvador no início
dos anos 80.
13
versão da Guerra do Vietnã, do poderio militar norte-americano, na confecção de uma
nova roupagem para o ex-combatente e na reafirmação negativa do inimigo da Guerra
Fria: o comunista. Essa coligação tem, portanto, como escopo principal rearranjar o
orgulho patriótico norte-americano bem como confeccionar uma perspectiva positiva
sobre seu poderio militar, reconstruindo, assim, a memória sobre o seu passado recente.
De outro lado temos Platoon que discute por um viés alternativo ao
conservador, Reaganista e direitista o problema do Vietnã e as vicissitudes que ele ainda
apresenta para a sociedade e o governo norte-americano na década de 1980. Propõe
deste modo, uma visão crítica e uma perspectiva denunciante da Guerra.
Esse embate travado no cinema não significa que a relação entre o real e a
ficção se dá de modo automático e mecânico. Ao contrário, há um processo de interação
e de mútua confecção num movimento dialético.
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos
Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: estudos culturais: identidade e política entre o
moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001.
MELLO FILHO, Marcelo Soares Bandeira de. “Economia Política da Era Reagan:
Corporações, Ideologia Neoliberal,Políticas Fiscal e Tributária”. In: Revista Oikos, v.
10, n. 02, Rio de Janeiro, 2011, pp. 174-195. Disponível em:
http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/article/view/255/158 . Acesso em:
17/08/2012
MESQUITA, Luciano Pires. A Guerra no Pós-guerra: O Cinema norte-americano e a
guerra no Vietnã. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal
Fluminense, 2004.
SILVA, Rodrigo Candido da. As máquinas de guerra: Rambo e o Ideal Reaganista
(1981-1989). II Encontro Nacional de Estudos da Imagem: 12, 13 e 14 de maio de
2009a.Londrina, Paraná.
________. Cinema e conservadorismo: os filmes Rambo no contexto da Era Reagan nos
EUA (1982-1989). Congresso nacional de História: 09, a 11 de setembro de 2009b.
14
SPINI, Ana Paula. Mito da guerra nos Estados Unidos. In: Recôncavo: Revista de
História da UNIABEU Ano 1 Número 1 Agosto- Dezembro de 2011. Acessado em:
10/07/2012.
PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SITES

http://www.naval.com.br/blog/2011/05/13/25-anos-de-top-gun-asesindomaveis/#axzz23vC6XUTa> acesso em 18/08/2012

cinema10.com.br

www.imdb.com/
FILMOGRAFIA ANALISADA
Rambo: programado para matar (FirstBlood, 1982). Direção: Ted Kotcheff.
Roteiro: David Morrell e Michael Kozoll
Elenco: Sylvester Stallone, Richard Crenna e Brian Dennehy
Distribuidora: Universal Pictures
Rambo II: a missão (First Blood – Part II, 1985). Direção: George Pan Cosmatos
Roteiro: David Morrell e Michael Kozoll
Elenco: Sylvester Stallone, Richard Crenna e Charles Napier
Distribuidora: Universal Pictures
Rambo III (Rambo III, 1988). Direção: Peter MacDonald.
Elenco: Sylvester Stallone, Richard Crenna e Kurtwood Smith
Roteiro: David Morrell
Distribuidora: Universal Pictures
Platoon (Platoon, 1986). Direção e roteiro: Oliver Stone
Elenco: Tom Berenger, Charlie Sheen e Willen Dafoe
Distribuição: Fox film doBrasil
15
16

Documentos relacionados

DOI: 10.4025/4cih.pphuem.524 CINEMA E CONSERVADORISMO

DOI: 10.4025/4cih.pphuem.524 CINEMA E CONSERVADORISMO sofrido pelos veteranos do Vietnã nos EUA e o posicionamento do filme, como podemos situar a representação do ex-combatente no cinema? Com a retirada estadunidense do Vietnã, os EUA passam a viver ...

Leia mais