Corpo e Vídeo: O Embate em Direto

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Corpo e Vídeo: O Embate em Direto
Corpo e Vídeo: O Embate em Direto
Christine Mello
2004
Corpo e Vídeo: O Embate em Direto
Christine Mello1
Dos estudos inseridos na área da biologia aos estudos na área das tecnologias da
informação, encontramos noções de que o corpo é uma forma viva, um organismo
complexo, um sistema coordenado por circunstâncias que se relacionam entre si.
Compartilhamos um momento em que o corpo natural e o corpo artificial confluem
e a ciência torna a comunicação entre o cérebro e o computador uma via de mão
dupla. Em nosso cotidiano, as relações com as coisas do mundo são cada vez
mais mediadas, interfaceadas pelas máquinas. O corpo tem uma função híbrida,
torna-se um campo de passagens entre elementos orgânicos e sintéticos, uma
estrutura fluída, dinâmica, como uma comunidade em que todos os elementos
acionam intercâmbios, ou mesmo como um ambiente capaz de ser transformado e
moldado.
Observamos o corpo como lugar da construção de sentidos, espaço de
investigação e criação de novas realidades, em conexão com diferentes meios e
que se apresenta como aparelho produtor de linguagem. Pensar nesse corpo que
emerge na contemporaneidade diz respeito também a o inserir no contexto das
formas sensíveis e a conhecer os diversos perfis que compõem sua identidade.
Os artistas que desenvolvem trabalhos em torno das relações arte/vida, da arte
interativa e da performance, costumam enfocar aspectos do corpo híbrido em suas
obras. São movidos pela idéia do corpo em deslocamento e do senso de que
mente/corpo interagem com uma grande gama de realidades para além da
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Pesquisadora, professora e curadora no campo da arte e das mediações tecnológicas, é doutora em Comunicação e
Semiótica pela PUC-SP com a pesquisa Extremidades do Vídeo. É professora da FAAP-Artes Plásticas e da PUC-SP.
Realiza acompanhamento e leitura crítica de criadores em diversos meios, assim como projetos curatoriais relacionados ao
vídeo e às novas mídias.
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fisicidade do corpo biológico. Eles exploram campos novos da percepção e atuam
com processos emergentes nas artes, muitas vezes em ações que utilizam o
tempo real.
No plano das práticas artísticas oriundas da ordem do evento, do acontecimento e
da performance, constantemente recuperadas hoje em dia pelos meios
tecnológicos, encontramos a presença pioneira do brasileiro Flavio de Carvalho,
arquiteto, artista plástico e integrante, com Oswald de Andrade, do movimento
antropofágico.
Carvalho
realiza
em
1931
no
Brasil,
em
São
Paulo,
uma
primeira
intervenção/performance no espaço público, denominada Experiência nº 2. Nela,
ele atravessa a pé, em sentido contrário à multidão, a tradicional procissão
religiosa de Corpus Christi para provocar a reação e conseqüente interatividade
(mesmo que negativa, no sentido que reprovam veementemente o seu gesto antisacralizador) do público. Carvalho inaugura em nossos domínios, por meio desta
performance, a articulação de formas não-objetuais, efêmeras e imprevisíveis de
se produzir arte por meio do corpo. Desta maneira, ele introduz a idéia das ações
corporais como promotoras de um tempo presentificado e transformado ao vivo,
em tempo real, fazendo confluir simultaneamente numa mesma ação o emissor e
o receptor.
No Brasil, desde que, em meados dos anos de 1960, Lygia Clark instaurou seus
objetos relacionais, como Diálogo, em que uma máquina ocular acoplada ao
mesmo tempo a duas pessoas é capaz de oferecer situações diferenciadas de
relação com o outro, mostrou-se que essas práticas artísticas são veículos para
expandir a experiência corporal e definiu-se o início de um trabalho conceitual em
torno do corpo como aparato sensorial e coletivo, bem como introduziu
possibilidades expressivas na interação homem-máquina.
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Assim como Flávio de Carvalho, Lygia Clark e Hélio Oiticica “criaram obras que
incitavam uma gestualidade performática por parte de um espectador participante
e que repensavam assim ações corporais e psíquicas através de sua encenação
artística.”(Santaella, 2003: 256). Na análise de Lucia Santaella em torno às
questões de arte e vida ela enfatiza que:
“Os ‘objetos relacionais’ e as esculturas de vestir de Clark visavam se
dirigir ao estado psíquico do espectador. Para ela, a troca entre as
pessoas de sua psicologia mais íntima através de situações ambientais
constituía a obra de arte. Os parangolés de Hélio Oiticica eram capas
para vestir, objetos transformáveis feitos para serem incorporados ao
corpo e à personalidade da pessoa que interagia com eles. (...) Elas
não eram um objeto, mas um processo de busca, abertas à
sensibilidade participativa do espectador.” (Santaella, 2003: 256)
Advindas desta nova forma de pensar a arte em suas relações com o corpo e os
dispositivos de acionamento sensório há uma série de outras instigantes
experiências no painel brasileiro. Neste sentido, exemplificaremos aqui algumas
delas proporcionadas pelo meio eletrônico.
1. O vídeo como arte do corpo
As relações entre corpo e vídeo são introduzidas nas práticas significantes por
conta da capacidade que esta mídia possui de colocar em tempo real e de forma
simultânea ao acontecimento - pela primeira vez na trajetória da arte - o corpo do
artista e do espectador em contato direto com o aparato maquínico.
A partir dos postulados de Rosalind Krauss, em sua Estética do Narcisismo
(1976), Lucia Santaella ressalta que o vídeo é eminentemente uma arte do corpo,
pois, nele, “o corpo humano é, via de regra, usado como seu instrumento central.
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No caso do vídeo, trata-se quase sempre do corpo do próprio artista, na
videoinstalação, muitas vezes, do corpo do espectador.” (Santaella, 2003: 267)
No Brasil, tal fenômeno ocorre em torno a toda a produção pioneira de videoarte
dos anos de 1970 (em trabalhos de artistas como Letícia Parente, Anna Bella
Geiger, Sonia Andrade e José Roberto Aguilar) e também em torno à produção de
vídeo dos anos de 1980 e 1990, como veremos a seguir, bem como na iniciativa
isolada de alguns outros criadores como Paulo Bruscky, Andréa Tonacci, Otávio
Donasci e Diana Domingues.
Em 1977, Paulo Bruscky idealiza Capacete projetor, que, como ele relata, trata-se
de “uma máquina de registrar os sonhos, que tem imaginariamente a capacidade
de coletar e projetar os sonhos das pessoas a partir de uma cirurgia do couro
cabeludo até a parte do cérebro que faz sonhar”. Em 1980, ele realiza Registros,
um vídeo experimental em que, usando um eletroencefalógrafo, propõe um
trabalho gráfico direto do cérebro para o papel sem usar intermediários. Neste
trabalho, Bruscky procura fazer o registro metafórico da atividade mental
psicológica.
Em 1994, Andrea Tonacci, durante a segunda edição do projeto Arte/Cidade2,
amplia as experiências de Clark, Oiticica e Bruscky ao criar Óculos para ver
pensamentos. Conforme explica Tonacci, este trabalho consiste na distribuição
para o público de “um par de óculos do tipo industrial de proteção, que veda
totalmente os olhos. Este par de óculos foi especialmente adaptado com
obturadores controláveis pelo próprio portador através de um comando manual. A
cada obturação a pessoa vê uma imagem, como um único fotograma/frame do
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O projeto Arte/Cidade é um projeto de intervenção artística no espaço urbano que reúne criadores das mais variadas
áreas. Este projeto é concebido e coordenado por Nelson Brissac Peixoto. Até o momento já foram realizadas quatro
edições do projeto em São Paulo no período compreendido entre 1994 e 2002. As suas duas primeiras edições foram
realizadas por meio da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Nelas, o projeto contou com Ricardo Ohtake como
Secretário de Cultura e como promotor do evento, bem como com Agnaldo Farias, que compartilhou os conceitos e as
escolhas curatoriais. As edições seguintes contaram com o Grupo de Intervenção Urbana como organizadores do evento e
a promoção do Sesc São Paulo, em trabalhos conduzidos por seu diretor Danilo Santos de Miranda.
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ambiente em que se encontra, o tempo suficiente para que a retina/filme/mente
seja sensibilizada”3.
Durante o mesmo Arte/Cidade, Otávio Donasci apresenta a instalação-intervenção
urbana Persona paulista. Neste trabalho, duas máscaras/rostos de grande porte
são projetadas do alto de um prédio (o mesmo que hoje é a sede do Centro
Cultural Banco do Brasil, no centro de São Paulo), como faces virtuais eletrônicas
que causam interferência e diálogo com os transeuntes apressados das ruas do
centro da cidade.
Já Diana Domingues, em Transe-e: My Body, My Blood, apresenta em 1997,
numa videoinstalação interativa, mediada por sistemas computacionais, a idéia de
um corpo tecnologizado, que conecta em tempo real a energia natural do corpo,
por intermédio do sangue, à energia artificial das máquinas.
Livre de dicotomias entre interior/exterior, o corpo amplia domínios em trabalhos
como estes produzidos com o meio eletrônico, até então não-suspeitos em suas
relações entre os dispositivos e o imaginário.
Destacam-se em seguida algumas maneiras de como o corpo tem suscitado
práticas estéticas e políticas no enfrentamento com o vídeo e o contexto no qual
esses trabalhos são gerados no Brasil. Interessa-nos analisar o corpo
compreendido como organismo cultural, que cria significados por intermédio de
sua mediação, ou embate direto, com mecanismos de registro da imagem – nesse
caso com a câmera videográfica.
2. Made in Brasil
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Descrição do trabalho feita pelo próprio Tonacci e publicada no catálogo do Arte/Cidade II – A cidade e seus fluxos
(1994), sob curadoria de Nelson Brissac Peixoto.
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Um corpo feminino sentado num banco com as pernas cruzadas e um dos pés
diante da câmera, no ambiente externo de uma casa. Nas mãos, agulha e linha
preta. Com firmeza, a linha é passada pelo buraco da agulha e faz um nó em uma
das pontas. A mão delicada, com as unhas pintadas de esmalte – em cor suave deliberadamente inicia uma costura incomum. Aqui o suporte não é algodão ou
linho, mas a própria pele da artista. Não há titubeios, são gestos precisos os de
Letícia Parente em sua performance, em tempo real, frente a uma câmera de
vídeo. Como resultado da ação, após dez minutos ininterruptos, sem cortes,
vemos inscrito “MADE IN BRASIL” (com s) na sola de seu pé.
A que estratégias recorrem os artistas que lidam com o vídeo para darem conta
das abordagens em que se insere o corpo contemporâneo? De que diferentes
maneiras as tecnologias possibilitam campos diferenciados de observação e são
capazes de gerar formas simbólicas que reflitam isso? Deparamo-nos muitas
vezes com situações inusitadas - como esse vídeo de Letícia Parente intitulado
Marca registrada - que remetem à destruição da noção de um corpo meramente
passivo e que apontam para a urgência de um corpo ativo, que intervém de forma
crítica e desloca de modo subjetivo o eixo de discussões até então não-previstas
por estas novas realidades.
Segundo Parente, a marca registrada pode “se assemelhar ao ferro de posse do
animal mas também ela constitui a base de sua estrutura e acima da qual a
pessoa sempre estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as
plantas dos pés”4.
O que traz coesão a trabalhos como este de Letícia Parente aos de outros artistas,
pioneiros do vídeo no Brasil, como Sonia Andrade, Paulo Herkenhoff, Anna Bella
Geiger, Ivens Machado, José Roberto Aguilar, Regina Vater, Regina Silveira,
Gastão de Magalhães, Roberto Sandoval, Geraldo Anhaia Mello e Paulo Bruscky
realizados no mesmo período - em torno de 1974 a 1980 - e aos de Inês Cardoso,
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Fernando Lindote, Cao Guimarães, Carlos Nader, Neide Jallageas, Wilton Garcia,
Nina Galanternick, Lia Chaia, Lucila Meirelles, Letícia Cardoso, Carlos Magno e
Amílcar Packer produzidos mais recentemente, entre 1995 e 2002?
Trata-se de práticas poéticas entendidas como ações performáticas, captadas em
tempo real e criadas especialmente para o vídeo. O resultado situa-se no limite de
saber onde termina o corpo e começa o vídeo, ou na relação dialógica entre corpo
e vídeo. Encontramos nessas obras a criação de um campo nas artes em que
corpo e máquina são ao mesmo tempo contexto e conteúdo, interpenetrando-se
na construção de significados.
O vídeo possibilita a inscrição do tempo na imagem e oferece características
específicas da instantaneidade para a criação artística. É possível, assim, tanto
visualizar e intervir ao vivo nas imagens que são captadas quanto deixar o registro
fluir em tempo real, sem interrupções da ação, tendo como único limite o tempo da
fita – geralmente estimada em uma ou duas horas de duração. A versatilidade
deste meio e o seu fácil manejo também colaboram para uma maior interação e
uma relação mais íntima do artista com o equipamento.
Dentro desse contexto, Marca registrada, de Letícia Parente, dialoga com outros
trabalhos extremamente radicais de Sonia Andrade – realizados nesse mesmo
período. Estes trabalhos de Andrade são apresentados como uma série de oito
vídeos, Em um deles, “com martelo e pregos, a artista prende a própria mão sobre
a mesa, em outro ela envolve seu rosto com fio de náilon até a sua total
deformação, e em um outro corta os pêlos do corpo com uma pequena tesoura,
mutilando sua aparência”5.
Também há sintonia nos trabalhos criados por Parente e Andrade na
videoperformance Sobremesa. Nela, Paulo Herkenhoff literalmente ingere notícias
4
Texto que integra a sinopse de seu trabalho, escrito pela própria artista, que foi gentilmente oferecido para esta pesquisa
por intermédio de seu filho André Parente em julho de 1998.
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de jornal, mastigando-as e engolindo-as diante da câmera. Assim como nos
trabalhos de Parente e Andrade, o corpo é revelado aqui, antes de mais nada,
como instância política, contestadora e insubmissa para além de qualquer forma
de censura.
Da mesma forma Anna Bella Geiger cria a videoperformance Passagens nº 1, em
que conceitualmente gera uma travessia com a linguagem da tessitura eletrônica.
Nesta mesma geração de artistas e obras Ivens Machado realiza Versus, em que
a câmera registra em simultaneidade ora o rosto do próprio artista, ora o de um
outro homem, em certo ângulo da parede.
Nesta direção, há também os trabalhos The trip (em que uma mão percorre a
imagem), Lucila, filme policial (em que um filme policial dos anos 40 é projetado
sobre o corpo de Lucila Meirelles) e Auto-retrato, todos de José Roberto Aguilar.
Regina Vater, que produz sistematicamente trabalhos em videoarte neste período,
produz o vídeo Miedo, que consiste numa performance encenada pelo seu rosto,
fazendo sucessivas caras de medo e terror, em tempo real, sem cortes e sem
edição. Nele, a trilha sonora é composta das mais variadas declarações do povo
de Buenos Aires sobre a substância do medo.
Em vídeos como Campo, Objetoculto, Videologia, Sobre a mão e A arte de
desenhar, Regina Silveira problematiza entre a segunda metade dos anos de
1970 e o início dos anos de 1980 a representação por intermédio do corpo. Nesta
mesma época, há o vídeo Typology of my body, de Gastão de Magalhães, em que
há a indagação do próprio corpo do artista como obra de arte por meio de uma
experiência temporal. Há também no final dos anos de 1970 a radical experiência
de Geraldo Anhaia Mello com a videoperformance A situação, um manifesto
artístico-político acerca de sua visão pessoal sobre a situação literalmente sem
saída que enfrentava o país.
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Descrição feita por Arlindo Machado, publicada no Catálogo do XVI Salão Nacional de Artes Plásticas. Rio de Janeiro:
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Obras do período pioneiro, estes trabalhos indicam um ponto de partida para a
arte do vídeo no Brasil e suas interseções entre arte e política. Esse conjunto de
artistas, que introduzem a arte do vídeo em nosso país, revelam a presença do
corpo em muitos dos seus trabalhos. Eles apresentam inicialmente o vídeo como
um dispositivo de registro para a performance, embora promovam uma arte capaz
apenas de ser realizada no entrecruzamento do corpo com a realidade simbólica
de uma câmera videográfica. Um diálogo nada ingênuo, como é possível observar,
na análise das relações entre corpo e vídeo. Trata-se assim de um tipo de
proposição que exige um dialogismo homem-máquina para que seja possível a
potencialização de seus significados.
É interessante notar que muitas das inquietações observadas no período dos anos
de 1970 retornam ao momento atual, embora os contextos, de modo geral, sejam
completamente outros. Este é o caso de trabalhos como Dreaming, de Inês
Cardoso (vídeo integrante da série Privacy invasion, em que a artista projeta
imagens sobre seu próprio corpo), Edax e Simbionte, de Fernando Lindote (em
que o artista morde no primeiro uma borracha, cortando-a com os dentes, dando
forma para os objetos e cuspindo-a logo depois, e no segundo uma câmera
trêmula, imprecisa, acompanha o movimento, quase imperceptível, de um close
em sua língua lambendo um tecido muito fino); The Eyeland, de Cao Guimarães, e
o inquietante Carlos Nader, do próprio Carlos Nader.
Em 1995, sob curadoria de Henrique Siqueira, é apresentada nos MIS (Museu da
Imagem e do Som) de São Paulo e de Belém uma mostra individual dos
videopoemas de Betty Leirner. Nestes trabalhos, Leirner, que considera o vídeo
como material híbrido de ilusões e linguagens, e o tape uma pele magnética que
permite a instantaneidade, estende seus conceitos de matéria mentale ao universo
audiovisual a partir da premissa do corpo em performance e em tempo real, sem
contudo se auto-referenciar. Em Dentures, Amor, e Satz, entre outros, Leirner
empreende pesquisa acerca das representações imateriais e acentua a
Funarte.
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subjetividade na percepção do corpo e do imaginário diante da mediação
videofilmográfica. Em Figuras de linguagem, de 1996, ao som de Sodade, de
Cesária Évora, transforma a figura de corpos embalados pela dança em signos
verbo-sonoro-visuais.
Já em Entrevista, realizado em 2000 por Neide Jallageas, a artista se autoreferencia. Ela está deitada, com a câmera sobre seu peito, e com o campo de
visão voltado para seu rosto. O movimento da câmera provém de sua própria
respiração, assim como o som. À medida que seu rosto é mais enquadrado e fica
mais em close, surge o som de cliques de uma máquina fotográfica – também
acionados pela própria artista -, como se nos revelasse que, embora sua boca
esteja fechada, suas palavras soam como os dispositivos fotográficos. Este
mesmo tipo de processo ocorre também em Intervalo, da mesma autora.
Esta forte relação do corpo exposto abertamente diante do aparato maquínico
também é encontrada em Domênica, de Wilton Garcia, em Entre, de Nina
Galanternick, e em Desenho-corpo, de Lia Chaia – trajetórias pertencentes à
quarta geração do vídeo no Brasil, desenvolvidas após o surgimento da internet e
do estabelecimento das mídias digitais interativas.
Também encontramos o embate aberto e direto da câmera com o corpo no vídeo
Umbigo (da série Corpo presente, de 2001), de Lucila Meirelles, e nos trabalhos
intimistas de Letícia Cardoso e Elisa Noronha. Há também este tipo de
preocupação nas narrativas desconstrutivas e pessoais de Daniel Seda, nas
narrativas trash de Leandro Vieira e Mariana Meloni, da Brócolis VHS, bem como
nas inquietações do mineiro Carlos Magno (como em Funeral elétrico, de 1999).
Vale ressaltar também, neste sentido, a dinâmica encontrada na série de trabalhos
de Amílcar Packer, como Vídeo#0, Vídeo#01 e Vídeo#2, apresentados entre 2000
e 20023, em que ele expande as noções de tempo dilatado, dos tempos paralelos
da ação e dos múltiplos pontos de vista, no embate direto doseu próprio corpo
com o ambiente da performance e com a câmera de vídeo.
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Todos esses exemplos constituem um repertório de visões sobre o corpo na
contemporaneidade, já que é o corpo em performance, e em relação direta e
frontal com a câmera, que constrói a ação videográfica. É por conta desse tipo de
atitude exercida e pelo fato da imagem ser registrada em tempo real possibilitando a inserção de todo o processo criativo, do tempo e da ação contínua
- que esses trabalhos conseguem expor seus esgarçamentos, seus percursos
gestuais, suas contundências, seus corpos limítrofes, estranhos de serem
absorvidos.
3. Contextos criativos entre corpo e vídeo: anos 1970, 1980 e 1990
A diferença entre os trabalhos realizados nos anos de 1970 e os trabalhos
recentes reside no contexto político-estético de criação de cada época. No Brasil,
a arte dos anos de 1970 possui um forte caráter de protesto, pois o país está em
confronto civil, tomado pela ditadura militar.
Em trabalhos como os de Letícia Parente, Anna Bella Geiger, Sonia Andrade,
Paulo Herkenhoff, Ivens Machado, José Roberto Aguilar, Regina Vater, Regina
Silveira, Gastão de Magalhães e Geraldo Anhaia Mello, corpo e vídeo são
revelados como instrumentos políticos, como fronteiras últimas de manifestação
estética e atribuídos como mecanismo de circulação de mensagem e idéias. Tais
manifestações, ou videoperformances,
tangenciam o momento em que esses
autores associam o seu próprio corpo no cerne da prática discursiva e convertem
o vídeo em uma ferramenta conceitual na produção artística.
Em relação ao maquinário videográfico oferecido na atualidade, os equipamentos
existentes naquela época eram raros, eminentemente analógicos, pesados e de
difícil acesso. Embora o vídeo representasse o mais puro campo do
experimentalismo, uma tecnologia emergente, ou a vanguarda dos meios
eletrônicos, não foi permitido aos pioneiros do vídeo no Brasil nem mesmo o
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acesso aos equipamentos de edição. Usavam o Portapack6 da Sony, que ora lhes
era disponibilizado por um amigo – vindo do exterior com a novidade –, ora por
alguma instituição que os cedia para a produção específica de um trabalho.
Associavam o conceitualismo, a performance e a body art, e procuravam se
articular de forma crítica em torno do aparato televisivo, como registro de
processos efêmeros ou como forma de questionamento dos meios de
comunicação de massa.
Ao longo dos anos de 1980 e início dos de 1990, os processos efêmeros de
trabalho com o corpo no vídeo deslocam-se para práticas mais relacionadas à
manipulação do corpo na superfície da imagem, às noções de materialidade da
linguagem, à desestruturação do sistema enunciativo eletrônico, à invenção de
novos sintagmas audiovisuais e à descoberta de uma linguagem específica para o
meio.
Neste período no Brasil, os mecanismos de apresentação do corpo no vídeo são
revelados de formas bem diferenciadas aos dos anos de 1970. Como já visto em
capítulos anteriores, uma nova geração passa a lidar com o meio. Os artistas
desta nova geração deixam de travar um embate performático entre corpo e vídeo
e passam a travar um embate de ordem mais estruturalizante.
Os trabalhos de vídeo deste período processam o corpo por meio dos
procedimentos de manipulação e edição das imagens. Eles tendem de uma forma
geral a fragmentar o corpo e a decompô-lo em um ritmo alucinante. É na
reconstituição desses fragmentos multifacetados do corpo que ocorre a visão de
organismo e de uma nova imagética para ele.
Nas novas relações entre corpo e vídeo, encontramos como exemplo trabalhos
como Marly Normal (1984), da produtora Olhar Eletrônico, em que é no ritmo da
edição e dos cortes das imagens e dos sons que fluem os sentidos do tempo e da
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Conforme Arlindo Machado, trata-se de “marca registrada do primeiro gravador/reprodutor portátil de meia polegada,
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narrativa videográfica. Também observamos aspectos acentuados das relações
do corpo com a temporalidade do vídeo em trabalhos como RYTHM(O)Z (1986),
de Tadeu Jungle, e Deus come-se (1990), de Luiz Duva.
Nesse período, há no Brasil uma crise de identidade, visível por meio destes
corpos videográficos fragmentados. Mesmo que o país respire ares outros que
não os do totalitarismo, há um grande ressentimento. Inicia-se a busca por novos
processos de afirmação tanto estética quanto política. Surge esta nova geração
que vai ao encontro da linguagem específica do meio videográfico, que entra em
contato com os equipamentos profissionais e com os recursos de edição
associados ao computador. Esta geração se organiza em torno à produção
independente e à abertura de novos circuitos de exibição para o vídeo.
O alvo em discussão no decorrer dos anos de 1980 e início de 1990 é a
descoberta de um ritmo específico e próprio para a imagem eletrônica, bem como
as descobertas das potencialidades narrativas do meio. O corpo recebe toda
ordem de interferência no vídeo. Ele é reticulado, multifacetado e segmentado. Os
inúmeros efeitos possibilitados na alteração da velocidade, na edição, nas fusões,
nos frenéticos movimentos de câmera e nos compassos ritmados dos cortes
impedem que o corpo seja visto nas variações lentas e lineares do tempo real,
como o fora antes nas videoperformances dos anos de 1970.
Um exemplo que pode ser considerado marcante neste momento sobre a
identidade em trânsito do corpo é o processo de desconstrução empreendido em
1986 por Ruth Slinger no vídeo Interferência. Ela, que já realizara em 1982 o vídeo
Quimanguinada, bem como uma série de trabalhos que podem ser considerado
hoje como os primeiros videoclipes produzidos no Brasil7, apresenta em
Interferência um rosto de mulher desconfigurado frame a frame, sucessivas vezes,
fabricado pelo Sony e responsável pelo sucesso do vídeo como meio de massa” (MACHADO, 1988: 216)
7
Vale lembrar os pioneiros videoclipes de Ruth Slinger Trem Azul (de 1981, com música de Raul Seixas), Momento
Cachorro (de 1982, com o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone), e Jacira num Selvagem Verão (de 1985, com música de
Laura Finocchiaro).
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até se tornar nada mais além de uma mancha e um borrão composto por linhas e
pontos eletrônicos.
Slinger em Interferência realiza um ensaio arrasador sobre a impossibilidade de se
encontrar o corpo delineado, estático, e insere a visão de um corpo em
movimento, dilatado, alterado, sem linhas divisórias. Ela reflete, dessa maneira, a
condição contemporânea como um lugar em que os contextos individuais são
mais importantes do que os gerais, bem como um universo em que a diferença é
instituída, e eventualmente ampliada, esgarçada.
Este novo processo cultural em torno ao sujeito já havia sido preconizado por Rita
Moreira e Norma Bahia, em 1975, no vídeo She has a beard, sob a forma de
documentário experimental e em torno a circunstâncias políticas feministas.
É possível observar por meio de trabalhos como os de Slinger, Moreira e Bahia,
desta maneira, o abandono da noção modernista de corpo como um todo, e a
convivência com noções do corpo em fragmento. Nestas circunstâncias, a poética
videográfica direciona o corpo a se mover culturalmente pela noção não mais de
identidade, mas de celebração da diferença.
É possível encontrar também em trabalhos como Migrações (1989) de Diana
Domingues, no contexto imaginário feminino, mais exemplos para as relações
suscitadas no âmbito corpo-vídeo, relacionadas às noções de fragmentação,
dispersão e presença diretamente observada. Este trabalho para Lucia Santaella:
“Dentro da perspectiva de uma estética da metamorfose, trata-se de um
vídeo poético com narrativa puramente formal de imagens de um corpo
feminino que passa por metamorfoses virtuais através de efeitos
especiais
eletrônicos.
Fusões,
pausas,
colorizações,
modificam
imagens gravadas em relação macro e micro. A câmera, como um
espelho, reflete o corpo e simula momentos de imaginação da figura
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feminina diante de si própria, experimentando migrações imaginárias
das partes do corpo a partir de efeitos eletrônicos num clima bastante
onírico.” (Santaella, 2003: 269)
Já em torno de meados dos anos de 1990, os artistas que trabalham com o vídeo
no Brasil deslocam suas visões para noções de um corpo híbrido, ou um novo
corpo que emerge. O corpo passa a ser modelado e transformado com os
recursos propiciados pelos meios digitais. Toda ordem de artifício é possibilitada à
imagem e a veracidade entre corpo real e corpo construído passa a ser
questionada. Com a inserção dos computadores na cena cotidiana, intensificamse as relações entre o homem e as máquinas de modo geral, bem como há a
ampliação do uso de câmeras de vigilância num amplo escopo social.
Verifica-se neste período o corpo como potencializador dos trânsitos e das
interfaces propiciadas por todo o universo da informática e pelas redes de
comunicação, como a internet e a telefonia celular. A partir dos recursos
oferecidos pelos meios interativos, as experiências da arte também intensificam a
partilha do gesto criador com o próprio espectador, de forma simultânea,
presencial e em tempo real, bem como intensificam-se também os trabalhos com
as videoinstalações.
Encontramos neste contexto o projeto poético de Adriana Varella - promotora de
uma das pesquisas conceituais mais intensas no painel brasileiro - que, entre suas
múltiplas formas de organização do pensamento, se propõe a estabelecer visões
do corpo em seus deslocamentos e tensões entre o interior e o exterior, e na
construção de novos tipos de identidade. Este é o caso da sua videoperformance
interativa Corpo provisório, que realiza em 1997. Neste trabalho, uma dançarina
gera gráficos a partir dos movimentos de seu corpo com relação à incidência de
luz sobre ele, estabelecendo assim a relação virtual entre seu corpo e seu
espectro. Também encontramos esses procedimentos em seus vídeos Todas as
minhas camadas, Manobra e Ariadne, realizados em 1999, e também em seu
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projeto Identidades, iniciado em 2000, em que apresenta as videoinstalações
Narciso e Deslocamentos do feminino.
Na direção do corpo presentificado nos ambientes instalativos, encontramos
trabalhos de Alberto Saraiva, Bruno de Carvalho e Júlio Rodriguez, alunos de
Adriana Varella no Núcleo de Imagem Técnica da Escola de Artes Visuais do
Parque Laje, no Rio de Janeiro, que apresentam uma série de videoinstalações na
exposição coletiva “Freqüência Circular”, promovida pela própria escola em janeiro
de 1998.
Nesta exposição, Alberto Saraiva realiza Internidade, externidade, em que a obra
é composta por dois ambientes, um interior e outro exterior, interligados por um
circuito fechado de vídeo, que transmite imagens em tempo real por meio de dois
monitores conectados por sistema de câmera de vigilância. Como um corpo
sinuoso flexível que se estende no espaço arquitetônico, como relata o próprio
autor, o trabalho evidencia o dentro e o fora, confluindo sentidos e direções
interpenetrantes.
Bruno de Carvalho, que também desenvolve em sua poética aspectos do corpo
em tempo real, e no embate direto com o próprio corpo do espectador para a
produção de significados, faz para esta exposição a videoinstalação interativa
Rede. Nela, o participante entra dentro de uma malha (afixada rente à parede, que
oferece respostas instantâneas a movimentos corporais) e interage por meio de
circuito fechado de TV (transmitindo em tempo real a imagem externa para um
pequeno monitor instalado na parede interna do pano), em que vê seu próprio
corpo co-participar deste contexto. Como analisa Bruno, para entender a obra é
necessário se permitir tocar, perceber seu calor e investigar as mais diversas
possibilidades do movimento corpóreo.
Júlio Rodriguez, médico de formação, empreende nesta mesma exposição
Caseum II, um trabalho baseado na realidade do corpo frente às imagens
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científicas, proporcionadas, no caso, pelo problema da tuberculose pulmonar.
Nele, como uma metáfora, decompõe as imagens extraídas de seus diagnósticos
(como o Raio X e o BAAR) e introduz relações de ordem visual análogas às
deformações da imagem no processo videográfico.
Outro campo da pesquisa desenvolvida nos anos de 1990 relacionada às
questões do corpo nos cruzamentos do vídeo e das novas tecnologias diz respeito
ao trabalho de Bia Medeiros e do grupo Corpos Informáticos8. Constituído desde
1991, este grupo conduz suas atividades no enfrentamento das questões de
caráter vivencial do corpo, no embate ao vivo, mediado por câmeras de vídeo ou
por web câmeras, em torno da performance digital, videoinstalações, net art e
telepresença. Em 2002, o grupo realiza Macula@corpos, performance em
telepresença apresentada em São Paulo no 1º Circuito Centro da Terra de Artes
Cênicas. Neste trabalho, web câmeras interagem com o corpo dos espectadores e
essas intervenções são transmitidas simultaneamente tanto para um circuito
interno de monitores de vídeo e de computadores (localizados no interior do
teatro) quanto on-line, pela internet.
O coletivo Neo Tao9 gera significados em seus usos libertários e subversivos do
corpo como suporte maquínico. Experiências desta natureza ocorrem em
trabalhos como CicloTAOro(1) – Espelho Virtual10. Neste trabalho multimídia,
elementos do vídeo permeiam as performances potencializando as relações com
computadores ou amplificando detalhes invisíveis ao público, como durante um
ritual de suspensão11 feito ao vivo diante do público).
8
O grupo é coordenado por Bia Medeiros e atualmente fazem parte dele Carla Rocha, Cila MacDowell, Cyntia Carla, Maria
Luiza Fragoso, Alice Stefania Curi, Robiara Beccker e Viviane Barros. Para uma melhor compreensão da abrangência de
suas atividades, procurar em http://corpos.org.
9
O NeoTao é um grupo de artistas de diversas vertentes (body art, performance, vídeo, novas mídias) que se unem sob o
signo da colagem. Existe desde 1997 e possui como núcleo de criação os artistas Alê A. Torium, Daniel Sêda, Erik Thurm,
Filipe Espíndola, Francisco Ivan Russo, Marina Reis, Paulo Costa e Rogério Borovik. Para mais informações, procurar em
www.neotao.etc.br.
10
Performance multimídia apresentada de 15 a 17 de novembro de 2002 no 1º Circuito Centro da Terra de Artes Cênicas,
em São Paulo. Além do núcleo de criação do NeoTao, contou também com Priscila Jorge, Samira Brandão, Mônica Rizzolli,
Iam Campigotto, Benjamin Saviani, André Lemgruber, Rafael Rosa, Fábio Luchiari, Cheli urban e Guilherme Fogagnoli,
entre outros.
11
Ritual de body art em que alguém é suspenso do chão por ganchos cravados na própria pele.
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Conforme é possível verificar, no início do século 21, o vídeo no Brasil já se
encontra consolidado como linguagem, possui um caminho próprio no circuito das
artes e é uma das ferramentas mais próximas e acessíveis aos artistas. Insere-se
plenamente no contexto digital, com câmeras leves, uma variedade de aplicativos
de edição, bem como enorme difusão e atualização tecnológica propiciada por sua
associação ao computador. Não se trata mais – como no período pioneiro – da
exploração de uma inovação tecnológica, mas de um campo de passagens
expandido para as mais diferentes áreas.
Fazer vídeo hoje em dia – relacionado às dimensões simbólicas do corpo significa um reposicionamento dos sentidos, bem como uma reconfiguração da
linguagem videográfica estabelecida em um ciclo de experiências – de cerca de 30
anos no Brasil. Assim como no período pioneiro, trata-se de um conjunto de
proposições artísticas que mesmo hoje não fazem concessões, não banalizam o
registro do corpo e tampouco elaboram cenas familiares ou reconhecíveis em
nosso cotidiano.
Os trabalhos contemporâneos com o vídeo recuperam o corpo em sua idéia de
todo, tanto quanto nos anos de 1970, e - num mundo contaminado pela
proliferação dos tempos simultâneos, das imagens sintéticas, codificadas,
programadas - oferecem experiências de estranhamento em tempo real, ou aquilo
que Arlindo Machado nos apresenta (como as idéias defendidas pelo teórico russo
Chklóvski) como “um conjunto de técnicas de construção, cuja função seria
perturbar as nossas percepções rotineiras e forçar a sensibilidade ‘estranhar’ o
arranjo simbólico que lhe é apresentado.
Este é o caso do vídeo Entre (1999) de Nina Galanternick. Nele, a artista permeia
um diálogo inusual. Ela está de pernas entreabertas e a sua púbis é apresentada
de forma frontal. A partir desta situação de confronto e desejo, Galanternick faz
um jogo enunciativo intermitente entre seu corpo e a câmera de vídeo. Para a
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autora, trata-se de imagens que investigam o corpo e que revelam diversos
olhos/olhares que podemos ter sobre os objetos (materiais ou não) de desejo.
A videoperformance Domênica (2000) de Wilton Garcia, expõe um corpo, da
bailarina Vera Sala, que durante dez minutos desconstrói-se à nossa frente. É o
corpo em performance e em processo de conhecimento, introspectivo, em agonia,
diante da câmera de vídeo. Um corpo estranho, ambíguo, um contraponto aos
corpos tão leves e ágeis produzidos pela publicidade e transmitidos pelos meios
de comunicação de massa. Este corpo em diálogo com o vídeo está encerrado
num ambiente fechado, num banheiro, mas o que percebemos é o embate entre o
dentro e o fora, o eu e o outro, uma tensão provocada no agenciamento do
registro videográfico, na relação de poder entre quem exerce o ato e quem
inscreve a imagem.
Na radical experiência do vídeo Desenho corpo (2002) de Lia Chaia, a artista faz
um exercício de limite. Nele, Chaia está nua diante da câmera. Ela desenha sobre
seu próprio corpo com uma caneta esferográfica de cor vermelha. Ela inicia o
processo de desenhar sobre a própria pele, mas não sabe em que momento
terminará a performance, no máximo tem como limite o tempo de duração da fita
Mini-DV de vídeo: uma hora. No decorrer do desenho as linhas traçadas pela
caneta transformam seu corpo numa imagem de chaga. O vermelho da caneta
toma conta de toda a cena, e a superfície do corpo confunde-se com as linhas e
os pixels da superfície da própria imagem videográfica.
O gesto audaz de Lia Chaia de intervir na própria pele faz com que repudiemos a
imagem, a estranhemos por completo. Ao final, o vídeo termina aos 51 minutos,
no momento em que termina a tinta. O tempo da performance de seu corpo com o
vídeo revela-se como tempo de conhecimento e relacionamento com a matéria.
Na performance de Lia Chaia diante da câmera de vídeo, acompanhamos durante
seus 51 minutos de duração toda a ordem de interferência e estranhamento visual
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num corpo absorvido entre as dobras da vida privada e pública. Um corpo
midiatizado a partir da sua transformação diante do aparato eletrônico. Ao mesmo
tempo, o corpo-vídeo de Lia Chaia nos revela uma nova ordem de manifestação
subjetiva, no nível da micro-política, enquanto corpo desejante, transformador,
aberto em sua intimidade e consciência crítica à experiência artística.
Nas confluências entre corpo e vídeo, desse modo, é possível verificar que o
discurso do estranhamento, difícil e tortuoso encontrados nestas práticas
discursivas da contemporaneidade, bem como o ponto de vista não familiar,
impedem o envolvimento inocente e exigem o empenho do leitor/espectador para
decodificar - sobre uma nova lógica - o ‘texto’ contaminado do vídeo no universo
da arte e da vida.
4. Corpo e vídeo: espaços/tempos da subjetividade
Na diversidade dos universos aqui apresentados entre corpo e vídeo, nos são
permitidas visões particulares do corpo, que causam incômodos, verdadeiros
estranhamentos. Percebemos estratégias estéticas em que o corpo não é
meramente objetificado, mas sim agente – emissor e receptor ao mesmo tempo –
do gesto performático e da criação de ações participativas.
André Parente analisa que “desde o momento que a imagem passou a se
reproduzir, ela passou a reproduzir o sujeito: a imagem na era da sua
reprodutibilidade técnica é a imagem na era da automatização do sujeito. A
imagem, que integrava uma cultura, se colocou ao lado da tecnociência como
forma de estabelecer seu pequeno império e sujeição” (Parente, 1993: 30).
Nesses casos – dos trabalhos aqui reunidos –, o sujeito, embora aparentemente
solitário, interage com a câmera e situa-se na maioria das vezes em dialogismo
com os dispositivos. A imagem é centrada no ponto de vista da câmera
videográfica e, na falta de contraplano, poderíamos identificá-la como a dimensão
da própria câmera, denotando uma quarta parede. A presença do outro é assim
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destruidora, diz respeito ao visor da máquina inserida no quadro discursivo. Em
embate direto e em tempo real, é a câmera que acompanha toda a ação,
questiona e traz à tona o conteúdo crítico.
Para além dos contextos formais de construção do trabalho de arte, a importância
do corpo nesses vídeos reside no modo como se expõe de maneira direta e
testemunhal, no realismo com que os criadores manipulam a linguagem e no
agenciamento dos conteúdos simbólicos da cena videográfica. Não se trata de
percebermos um corpo definido por intermédio dos artifícios de edição de imagens
e os mecanismos propiciados pelas muitas ferramentas criativas do meio digital,
mas sim, antes de mais nada, de identificarmos um corpo que se torna o sujeito do
discurso. Um corpo crítico, político, que questiona sua própria condição, aberto
frontalmente à exposição pública, e que se desconstrói à nossa frente,
insubordinado às convenções vigentes de linguagem e ao que a cultura dominante
habitualmente lhe impõe como natural e aceitável.
Este conjunto de trabalhos com o vídeo mostra diferenças de atuação entre um
corpo objetificado – como no caso da tradição da pintura e da fotografia dos
retratos e auto-retratos – e um corpo autoral, performático, que toma posições,
decide, interage com o meio e é o responsável pelos desígnios no interior da obra.
Cria uma espécie de ambigüidade, como se fosse possível haver autonomia entre
autor do trabalho e o corpo que atua no interior da obra. Um corpo enunciado pela
máquina e exposto frontalmente por ela: ao mesmo tempo que é a enunciação, a
mensagem, é ele também quem, ao vivo, de forma performática, tem o poder de
transformá-la.
Essas propostas muitas vezes rejeitam a alta tecnologia e, no sentido inverso,
situam-se na contemporaneidade como exercícios poéticos em low technology. É
nesta síntese, no embate não-hierárquico entre corpo e tecnologia, que a obra se
concretiza. Um não se sobrepõe ao outro, eles dialogam entre si. Em grande
parte, é na ação do vídeo, em tempo real, captando todo o processo criativo, que
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são possibilitados espaços novos de identidade para o corpo. Uma experiência do
movimento, do tempo não-estático, em fluxo linear e contínuo, que oferece, ao
universo da arte performances inusitadas e carregadas de subjetividade.
No desejo de um corpo atuante, a idéia de um exercício político. Num tempo
mediado pela tecnologia, esses trabalhos inserem as máquinas conceitualmente
no campo da arte/vida. Num momento em que a contemporaneidade aponta para
a idéia de um corpo acoplado às máquinas como um sujeito interfaceado12 e que
acena para a perspectiva de criação de membros artificiais-inteligentes para seres
humanos, esses corpos/vídeos subvertem a lógica predominante ao insinuarem
que a idéia de corpo não pertence a categorias idealizadas, mas sim a um estado
de questionamento de suas potencialidades sensíveis. No embate aberto e
simples, bem como no jogo limítrofe entre corpo e mídia eletrônica, encontramos
uma postura estética direta, do universo do que possa ser considerado como o
mais puro registro de ação, ao que poderíamos interpretar como novas
perspectivas poéticas na arte. Esses corpos/vídeos ampliam, assim, domínios da
linguagem e causam deslocamentos.
Corpo e vídeo são tratados nesses trabalhos como práticas estéticas e políticas,
como espaços/tempos da subjetividade, como campos de experiência em que se
tem a oportunidade de operar alguns dos muitos trânsitos e cruzamentos
introdutórios entre o homem e a máquina.
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