Acesso ao livro

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Acesso ao livro
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Anos
de
Lutas
Relato de
um sobrevivente
do Holocausto
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ANOS DE LUTAS
Relato de um sobrevivente do Holocausto
Copyright © 2011 by Michel Dymetman
Editoração eletrônica, layout e capa: Gilberto Duobles
Revisão: Diego Raigorodsky
Imagem da capa: © Andrea Scaccabarozzi | Dreamstime
Impressão: Sumago Gráfica Editorial
Permitida a reprodução parcial desta obra, por qualquer meio,
mediante autorização prévia e expressa do autor.
2011
Printed in Brazil
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DEDICATÓRIA
“A todos aqueles que não puderam contar as suas histórias.”
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu pai, que com seus atos me mostrou a importância da palavra dada e do compromisso assumido;
Agradeço à minha mãe, que no seu último ato que eu presenciei, mostrou-me a força do infinito amor materno;
Agradeço à minha esposa, que nos nossos 62 anos juntos visou sempre o futuro, o que fez com que nós, devagarzinho,
pudéssemos minimizar os nossos traumas;
Agradeço à minha filha, por ter trazido luz e sabedoria à minha vida;
Agradeço às minhas netas e bisnetos, pela alegria que me trazem todos os dias;
Agradeço especialmente a minha neta Sharon, que durante meses cuidou de cada detalhe deste livro para que pudesse
ser publicado;
Agradeço à minha Loja Maçônica Rei David pelo apoio moral;
E para terminar,
Agradeço ao Brasil e ao seu povo amigo, que me acolheu e me deu um novo lar.
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AS HISTÓRIAS QUE MEUS
AVÓS CONTAVAM
s histórias que os meus avós - saba e safta1 - contavam sempre permearam o imaginário da minha família. Eu as
cresci ouvindo atentamente, num misto de estranhamento e fascínio. Um dia, quando adolescente, vi o
manuscrito original deste livro, escrito em 1988, guardado no canto de uma estante do quarto da minha mãe e o
peguei para folhear. Fiquei muito contente em ver que o livro era dedicado às netas, embora já o soubesse, e comecei a
lê-lo. Na época, não compreendia bem aquilo que eu lia, nem a importância daqueles relatos, só sabia que as histórias
da guerra que eu sempre ouvia estavam com mais detalhes e pareciam mais reais, o que me levou a perguntar e a
conversar mais com os meus avós acerca daquela época.
Anos mais tarde, numa estadia na Europa, resolvi conhecer alguns dos lugares descritos neste livro, como os
campos de Drancy (França) e Mauthausen (Áustria), além de visitar campos de concentração na Alemanha e na
Polônia. Aquela viagem transformou a leitura que eu fiz na adolescência. Mais que isto, me fez sentir um pouco da
emoção presente naquelas histórias que eu já conhecia tão bem. Então, eu percebi que não apenas os meus avós e
bisavós tinham sobrevivido àqueles dias sombrios, mas toda a minha família, inclusive eu e as futuras gerações.
Aquele manuscrito, então, passou a fazer parte da minha própria história.
A partir de então, entendi que sendo terceira geração de sobreviventes, eu precisava continuar os esforços do meu
avô em contar aquela história, e sugeri a ele que publicássemos o livro, me comprometendo a fazer o esforço para tanto.
Ele concordou, feliz por poder dar continuidade a algo iniciado há 23 anos. Além disto, minha mãe e minha irmã também
se envolveram neste trabalho. Assim, a riqueza deste livro não está apenas nos testemunhos presentes, mas no processo
como um todo, que envolveu o empenho de três gerações a fim de preservar a memória da família e, consequentemente,
do nosso povo.
A memória é uma forma de protesto, disse Elie Wiesel em seu discurso de premiação do Nobel da Paz. Protesto
não apenas contra o Holocausto, mas contra todas as pessoas ou Estados que negam ou perpetuam a crueldade e
desrespeitam os Direitos Humanos. Assim, é preciso ter em mente que a memória e o passado são uma constante
construção. Isto é, o passado não é apenas aquilo que ocorreu, mas é a percepção que se tem do que ocorreu,
percepção esta que é reconstruída a todo instante no nosso presente. Portanto, é no aqui e no agora que escolhemos
como queremos narrar a nossa história, e isso dá o contorno da nossa própria identidade. Da mesma forma, a maneira
como contamos a nossa trajetória também muda o nosso olhar para o futuro. Citando Wiesel, “sem passado não há
futuro, pois o oposto do passado não é o futuro, mas a ausência deste, assim como o oposto do futuro não é o passado,
mas a ausência de passado. A perda de um equivale ao sacrifício do outro”.
Primo Levi dizia que os sobreviventes podem ser divididos em dois grupos, “os que calam e os que falam”. É com
carinhosa admiração que eu agradeço imensamente ao saba por ter tido a possibilidade e o desejo de contar a sua
história e a da safta. Convido a todos a participarem desta memória, boa leitura.
A
Neta de Michel Dymetman
São Paulo, 2011
“Nós que vivemos nos campos de concentração podemos nos lembrar de homens que andavam pelos alojamentos confortando a
outros, dando o seu último pedaço de pão.
Eles devem ter sido poucos em número, mas ofereceram prova suficiente que tudo pode ser tirado do homem, menos uma coisa: a
última das liberdades humanas – escolher sua atitude em qualquer circunstância, escolher o próprio caminho”
Viktor Emil Frankl
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PREFÁCIO
homem é o único ser capaz de transmitir suas experiências e descobertas para as gerações seguintes; é o que faz
a humanidade avançar, a ciência e a cultura progredir e o conhecimento se expandir. Assim, é esperado que pais
e avós se empenhem em transmitir seus valores aos filhos e netos. Não é esta a mais valiosa das heranças?
Para os pais, esta tarefa flui naturalmente no convívio diário e em doses homeopáticas: eles passam seus ideais aos
filhos que, sem perceberem, os absorvem. E, quando adultos, questionarão estes ensinamentos, mantendo ou
modificando os valores recebidos na infância.
Mas, como fazer com os netos e bisnetos, com quem não tenho contato diário? Me lembro que no fim dos anos 80,
quando minhas netas eram pequenas, eu tinha vontade de conversar e transmitir a elas o que eu passaradurante a
guerra, mas como fazer isto? Teria que esperar quanto tempo até elas crescerem para termos uma conversa sobre o
assunto? Estes pensamentos me levaram a escrever minhas memórias e a de minha esposa, agora já falecida. Assim, o
livro é dividido em duas partes. A primeira fala sobre a família Janowski, em relatos que obtive através de antigas
conversas com meus sogros e minha esposa. A segunda parte, mais detalhada, fala da família Dymetman e se trata de
um relato autobiográfico.
O que há de mais precioso neste livro é a sua honestidade e veracidade. Apenas tive o cuidado de alterar alguns
nomes, a fim de respeitar a privacidade de pessoas que ainda estão vivas e suavizar alguns episódios envolvendo
crueldades que preferi não rememorá-las em detalhes.
Quando escrevi o manuscrito original deste livro, o meu objetivo era contar às minhas netas o que ocorreu com
seus avôs e bisavôs maternos. Também queria proporcionar a elas um relato fidedigno do que ocorreu aos judeus
durante a Segunda Guerra Mundial. Afinal, os anos estão passando e em breve não haverá mais testemunhas vivas,
além disto, nossos inimigos espalham mentiras, distorções e até ousam negar o que eu vi com meus próprios olhos e
senti na minha própria pele.
Este manuscrito permaneceu guardado durante anos, apenas para o acesso da nossa família, mas este ano minha
filha e netas me estimularam e me ajudaram a publicá-lo, o que me mostrou que valeu a pena escrevê-lo. Atualmente,
já tenho três bisnetos e espero que eles também continuem a guardar a memória do que nos aconteceu. Meu conselho
para as netas, bisnetos, futuros tataranetos e demais leitores: usem a imaginação e visualizem os personagens que vou
lhes apresentando como pessoas de carne e osso, lutando desesperadamente para sobreviver àquela época turbulenta
na qual Deus nos colocou.
Gostaria também que as reflexões deste livro fossem úteis para os dias atuais e que nunca se esqueçam de um dos
deveres mais importantes da nossa religião e tradição: Ticun Olam, isto é, “consertar o mundo”. Cada um de nós tem o
dever de melhorar a sociedade em que vive, lutar contra as injustiças e desigualdades que presencia, sejam elas
sociais, de gênero, posição econômica, religião ou qualquer outra. E, sobretudo, gostaria de passar uma mensagem que
sempre me acompanhou: quando se perde as esperanças e o futuro parece uma nuvem negra, nunca desanimem,
repito, nunca desanimem. Por mais ilógico que seja, mantenham a fé, porque quando menos se espera o sol reaparece.
Esquecer, jamais.
O
Michel (Mieczslaw) Dymetman
São Paulo, 2011
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Shemá
Primo Levi
Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não
Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no inverno.
Meditai que isto aconteceu
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração.
Estando em casa andando pela rua
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.
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EM
HOMENAGEM A
RAFAEL
JANOWSKI
(1901 – 1977)
HELENA
JANOWSKI
(1893 – 1987)
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CAPÍTULO 1
oucos meses após o término da Segunda Guerra Mundial, meu pai e eu montamos uma pequena fábrica de
confecções na Antuérpia. Os resul-tados financeiros mostraram-se logo auspiciosos. A custo de muito tra-balho, a
firma crescia. A cada poucos meses, instalávamos uma nova máquina, contratávamos algumas costureiras a mais.
Dividimos as tarefas: meu pai cuidava da fabricação, e eu da venda.
Regularmente, eu ia visitando a freguesia nas principais cidades da Bél-gica. Na praça de Liége, tínhamos uma boa
clientela, foi lá que conheci uma jovem que se tornou a pessoa mais importante na minha vida: Lili.
Me lembro perfeitamente de uma conversa que tive com meu pai, que me aguardava na estação da Antuérpia
quando eu, à meia-noite, desembar-cava do trem que vinha de Liége:
– Pai, voltei a encontrar-me com Lili, a moça da qual vivo falando. Sinto que estou me apaixonando... que se trata
de algo sério...
– Agora – respondeu meu pai sorrindo – agora, entendo por que você ultimamente só tem clientes a visitar em
Liége... Como sabe que se trata do verdadeiro amor? Daquele que dura a vida inteira?
– Não há como responder; sei que só me sinto bem quando estou com Lili. Hoje de manhã, na casa dela, percebi
quanto ela me fascinava, era tão bonita!! Um sorriso meigo tomando conta do rosto...Não consegui tirar os olhos de
seu sorriso misterioso... da curvatura insinuante de seus lábios... Deu-me uma vontade irresistível de abraçá-la, de
protegê-la, de apertá-la contra mim.
Depois de alguns minutos de silêncio, acrescentei:
– Colocando meus sentimentos em palavras, refletindo sobre o que disse, parece tão ilógico: apaixonar-se por um
sorriso!... Mas é isto mesmo! Os sentimentos não se analisam logicamente, embora determinem as nossas vidas!
Entretanto, além da atração física, percebi que Lili e eu pensamos igual, temos sonhos e metas idênticas; sinto que
combinamos em tudo.
–
Quem
são
os
pais
de
Lili?
De
que
vivem?
Onde
passaram
a guerra?
– O pai de Lili chama-se Rafael Janowski. Parece ter uns 45 anos. É alto, forte, extrovertido, possui uma
personalidade marcante e transmite segurança e simpatia. Tem postura ereta, usa óculos com aros grossos e está
sempre cuidadosamente trajado. Ostenta decorações militares na lapela, gosta de contar as últimas piadas. É o que se
chama um bom papo.
– Pois é, filho, está mesmo fisgado. O que mais você sabe a respeito da família Janowski?
– Conversando com os clientes de Liége, soube que na comunidade judaica local, o senhor Rafael é uma
personalidade carismática. É presidente de não sei quantas entidades da coletividade: da organização sionista, da
sinagoga, de algumas instituições beneficentes etc. Resumindo: não há um só judeu em Liége que não o conhece e
respeita. Por ser extrovertido, simpático, orador fluente e ativo nos trabalhos comunitários, tornou-se líder natural da
pequena coletividade judaica de Liége. Pai, veja o último empreendimento do Sr. Rafael: ele organizou um grupo de
famílias judias que oferecem diariamente almoços gratuitos a estudantes pobres judeus que cursam a universidade de
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Liége, pois há um bom número de jovens cujos pais residem longe e não possuem recursos financeiros para sustentar
o estudo dos filhos. Na casa do senhor Rafael, conheci um destes estudantes, que todo dia almoça lá. Ele confiou-me
que “ter uma boa refeição gratuita garantida por dia já é meio caminho andado”.
– O que acha você do senhor Rafael Janowski, pai?
Após três meses, Lili e eu celebramos o noivado. Após outros três meses, o casamento. Pode parecer precipitado,
mas hoje, decorridos mais de 45 anos, acho que demoramos até demais...
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CAPÍTULO 2
o decorrer dos anos, Rafael contou-me inúmeras passagens de sua vida.
Ele nasceu em 1901, em Radomsko, pequeno lugarejo da Polônia. Ele vinha de uma linhagem de judeus ultraortodoxos, entre os quais rabinos chassídicos místicos, com fama de fazedores de milagres.
Rafael tinha um caráter independente. Embora filho dedicado, não hesitou em contestar publicamente os valores
dos pais, como seu comportamento o prova, quando, convocado para prestar serviço militar no exército polonês, não
seguiu o exemplo da maioria dos judeus que, devido ao anti-semitismo reinante no exército, esforçavam-se em obter
dispensa do serviço. Bem pelo contrário, solicitou ingresso na marinha de guerra, onde praticamente não havia judeu
nenhum. Incorporado nesta armada, mandou tatuar estrelas de David nos braços, apresentando-se como voluntário
numa unidade especializada em luta desarmada.
Era tão bom aluno que logo foi promovido a instrutor, e em pouco tempo liderou um grupo de lutadores da
marinha que se exibiam em praça pública toda vez que o exército participava de festejos populares oficiais.
Com toda certeza, Rafael era o único judeu a subir no ringue e fazer demonstrações de luta. Aliás, toda vez que se
exibia em público ele via o espanto da população judia local. Imagine como esta ficava quando percebia que aquele
jovem atleta musculoso, com os braços tatuados, campeão em luta desarmada, era um jovem judeu, descendente de
rabinos famosos!
Terminado o serviço militar, Rafael deu nova demonstração de seu espírito de independência. Resolveu não mais
voltar para a casa dos pais, preferiu emigrar, escolhendo a Bélgica.
Não tinha dinheiro, nem profissão. Para pagar as primeiras noites do hotel empregou-se como pintor de paredes.
Sua alegria durou pouco, pois após só duas horas de trabalho foi sumariamente despedido! Só conseguia estragar a
tinta!
Comentou o patrão: “Se você soubesse pintar como soube me convencer de que sabia pintar...”
Na Bélgica, com o correr dos anos, Rafael foi exercendo inúmeras atividades, até encontrar seu verdadeiro
caminho: tornou-se um comerciante bem sucedido. Juntou um bom capital, que investiu em mercadorias e diamantes,
como era o costume da época.
Casou-se com Dona Helena, que lhe deu duas filhas: Lili e Fanny.
Assim que teve a estabilidade familiar e econômica asseguradas, empenhou-se em prol do judaísmo. Fundou uma
série de organizações filantrópicas e políticas na coletividade.
A sua infância e educação eram embebidas de valores judaicos. Quando adulto, afastou-se da prática da religião
institucionalizada. Só frequentava a sinagoga nas grandes festas. Mas todo o seu ser respirava o judaísmo. Engajava-se
em todas as causas judaicas, ativamente, com coração e alma, sem medir esforços.
N
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CAPÍTULO 3
ale a pena interromper a ordem cronológica que adotei até agora e descrever uma cena típica à qual (com as
variantes que a situação exigia) eu assisti inúmeras vezes, quando, anos mais tarde, vivíamos em São Paulo.
Frequentemente, meu sogro e eu passávamos pela Rua José Paulino, centro atacadista de roupas feitas, onde
então a quase totalidade dos comerciantes era de judeus.
Quando Rafael via alguns correligionários conhecidos seus, reunidos numa rodinha, conversando entre si, ele me
dizia:
– Michel, observe a minha técnica.
Ele aproximava-se do grupo e com voz jovial, perguntava:
– Vocês já conhecem a última do nosso presidente, o Juscelino?
Sem aguardar a resposta, ele brindava a turminha com uma série de piadas e histórias engraçadas.
Todo mundo ria. O ambiente tornava-se alegre...
Era o momento que Rafael aguardava para lançar o ataque surpresa:
– Hoje vocês tiveram uma sorte enorme em me encontrar. Vão ter a oportunidade de praticar uma grande mitsvá,
uma boa ação. Estou recolhendo donativos para ajudar uma moça pobre a se casar (ou era para enviar uma ambulância
para o Hospital Hadassa de Jerusalém, ou para qualquer outra obra beneficente judaica).
– Isaac – continuava Rafael – você vai contribuir com Cr$ 1.000,00, sei que é pouco para você, mas não posso
aceitar donativos maiores.
Sabia que Isaac não poderia recusar, nem regatear: na rodinha estava seu principal fornecedor, o Moisze, cujo
crédito lhe era indispensável.
Assim que Isaac punha a mão no bolso e tirava os mil cruzeiros, Rafael completava a investida, virando-se para o
fornecedor:
– Moisze, sei que você gostaria de contribuir com o dobro de Isaac, seu cliente. Só que não posso aceitar... a não
ser que queira contribuir em nome de seu sócio...
Também Moisze não tinha como negar. Ele não estava frente ao seu melhor cliente?
Geralmente, Rafael ainda conseguia envolver alguns dos participantes da rodinha, obtendo deles mais alguns
donativos.
Ao nós afastarmos do grupo, Rafael comentou:
– Se tivesse abordado Isaac ou Moisze sozinhos, eles se esquivariam e não contribuiriam, alegando dificuldades
financeiras momentâneas... prometendo que se Deus os ajudasse... no mês que vem... talvez poderiam ajudar...
Assim era Rafael: dedicado de corpo e alma às causas judaicas!
V
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CAPÍTULO 4
a Bélgica, a guerra iniciou-se em 1940, embora Hitler tivesse solenemente garantido nunca atacá-la!
Numa madrugada no começo do mês de maio, um poderoso exército alemão invadiu a Bélgica. A
superioridade militar dos nazistas era total, especialmente no ar. Eles tinham desenvolvido uma técnica
revolucionária para seus aviões, os Stukas, que mergulhavam até quase tocarem o solo enquanto despejavam as suas
bombas, que não podiam errar devido à proximidade do alvo. Quando o avião voltava a subir, as metralhadoras
atiravam sem parar, terminando a chacina. O barulho estarrecedor do Stuka aproximando-se numa velocidade cada
vez maior do solo espalhava o pânico em terra.
De imediato, a Bélgica solicitou ajuda à Inglaterra e à França. Nem os três países juntos conseguiram deter o
avanço das tropas nazistas. Em toda a frente de batalha, os exércitos aliados recuavam desordenadamente. Os
ingleses tentaram reagrupar-se em Dunquerque, mas só conseguiram levar de volta para a sua ilha um pequeno
remanescente das tropas, abandonando ainda todo o armamento. Em poucas semanas, os alemães ocuparam toda a
Bélgica e a maior parte da França.
Após poucos dias de combate, a Bélgica se rendeu.
Em seguida, a França assinou um armistício. Hitler exigiu que este documento fosse assinado no mesmo
“wagon”, estacionado na mesma estação de Compiègne, perto de Paris, onde os alemães, em 1918, se renderam
incondicionalmente, terminando assim a Primeira Guerra Mundial...
Já esta exigência de Hitler de humilhar publicamente uma nação vencida era sinal da sua arrogância patológica,
que tanta desgraça trouxe a todos os povos da Europa, e mais especialmente a nós, judeus.
Pelos termos do armistício, a Alemanha passava a ocupar a maior parte da França, inclusive a capital. A parte
menor, um enclave situadao no sul da França, entre a Itália e a Suíça, permanecia sob controle formal francês, mas o
governo era chefiado pelo primeiro ministro Pierre Laval, desde sempre conhecido seguidor do nazismo...
Quando a guerra irrompeu, a população belga logo percebeu a superioridade do exército alemão. Ninguém
apavorou-se, confiante de que esta guerra seguiria o curso da anterior, quando a Alemanha, após êxitos espetaculares
iniciais, ficou detida por quatro anos frente a uma linha que acompanhava, aproximadamente, a fronteira entre a
Alemanha e a França.
Diziam todos:
– A França nunca vai permitir um soldado alemão pisar em seu solo.
Como se enganaram!!! Pois, nesta fase inicial da guerra, ninguém conseguia parar o poderosíssimo exército
alemão!
O que aconteceu à família Janowski neste período tão conturbado?
No primeiro dia da guerra, fecharam a loja e o apartamento. Abandonaram tudo, só levaram alguns pertences
pessoais.
Foram a Bruxelas, capital do país. Logo perceberam que as tropas alemãs conquistavam terreno com rapidez
fulgurante. Resolveram afastar-se para o mais longe possível. Embarcaram num dos inúmeros trens que levavam
refugiados para o sul da França. A viagem foi caótica, tudo estava se desorganizando. Frequentes bombardeios aéreos
danificavam os trilhos. Os trens já não obedeciam mais, nem a horários nem a destinos, paravam a toda hora, em
qualquer lugar. A viagem que normalmente durava 18 horas levou mais de 18 dias...
O trem parou definitivamente em St. Goudens, lugarejo perto da cordilheira dos Pireneus, na fronteira com a Espanha,
então governada pelo General Franco, cuja ideologia fascista o tornava aliado natural de Hitler.
Mal os Janowskis chegaram em St. Goudens, a França firmou o armistício com a Alemanha.
Novamente, os Janowskis ficaram perplexos: o que fazer agora?
Ficar onde o destino os levou ou voltar para a Bélgica?
Permaneceram indecisos, aguardando os acontecimentos, até Rafael decidir:
– Aparentemente tivemos sorte por termos chegado à parte não-ocupada da França. Mas, só aparentemente, pois
mesmo aqui, a cada instante, sentimos a presença nazista. Na realidade, estamos enjaulados. Não convém
permanecermos neste lugarejo perdido. Aqui nós não temos futuro nenhum e muito menos as nossas filhas. Prefiro
assumir um risco e voltar para Liége. Quero verificar pessoalmente se há uma possibilidade de passarmos a guerra lá,
N
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na cidade que conhecemos e onde somos conhecidos, onde temos uma casa montada, e uma loja repleta de
mercadorias. Aguardem-me, voltarei rapidamente.
Despediu-se da esposa e das filhas.
Dezenas de milhares de refugiados voltavam a seus lugares de origem. Rafael juntou-se a tantos outros que
seguiam para o norte. Viajava de trem, de ônibus, até de carroça.
Parecia que toda a população estava nas estradas. Ninguém pedia documentos. Os alemães tinham todo interesse
na normalização da vida nos territórios que ocupavam. Sabiam que a produção industrial local os ajudaria a
alimentar a sua máquina de guerra. Também aprenderam com a derrota na Primeira Guerra Mundial que é bem mais
fácil dominar um país inimigo quando a população vive normalmente, trabalhando e produzindo. Assim,
facilitavam o regresso de todos os refugiados.
Sem maiores dificuldades, Rafael chegou a Liége.
Lá, ele pôde ver em primeira mão o que a ocupação nazista significava para um judeu: bandos nazistas locais
tinham arrombado as portas da loja. Toda a mercadoria fora roubada! Só sobravam quatro paredes nuas com um
letreiro enorme em cor amarela: LOJA DE JUDEUS!
Rafael desanimou e passou a se recriminar: “Para que voltei para Liége? Para ver destruído o fruto de tantos anos
de trabalho?” – Mas consolou-se logo – “Ainda bem que investi boa parte de meu capital em diamantes; estes, pelo
menos, os nazistas não vão poder tirar de mim!”
Como se previsse o que estava por acontecer, resolveu voltar para a família, que o aguardava no sul da França.
“Chegando lá, resolveremos definitivamente o rumo que vamos seguir” – pensou – “Talvez vamos permanecer
na França não-ocupada, numa cidade maior, ou vamos cruzar a fronteira com a Espanha. Dizem que há um
cônsul britânico que reside a 10 km. da fronteira e tem meios para enviar refugiados para a Inglaterra.”
No
meio
de
suas
dúvidas,
Rafael
encontrou
um
velho
amigo,
o Sr. Feldman:
– O que você acha da situação? – perguntou Rafael.
– É óbvio que temos que ficar em Liége, e podemos fazê-lo sossegadamente, pois aqui não há perigo nenhum.
Na Bélgica, nada de ruim vai nos acontecer! Estou certo de que os nazistas usaram o anti-semitismo só para
tomarem o poder na Alemanha. Trata-se, aliás, de uma velha tática que de vez em quando aparece na história
mundial. Outros povos, outros líderes, já fizeram uso deste mesmo estratagema. Exacerbar o ódio anti-semita foi
o meio que Hitler encontrou para aglutinar os alemães sob a sua bandeira política e ganhar as eleições que o
tornaram chanceler de seu país. Usou o mesmo anti-semitismo para disseminar sua ideologia pelo mundo afora, o
que lhe permitiu criar partidos nazistas em quase todos os países do mundo. Foram estas organizações que o
ajudaram a minar a resistência dos aliados. Mas agora que o regime nazista está firmemente implantado na Alemanha
e que os exércitos alemães esmagaram as tropas que Hitler atacou, a virulência do anti-semitismo vai decrescer, até
desaparecer por completo. Para que precisaria Hitler do anti-semitismo agora? Por que prescindiria ele da capacidade
financeira e produtiva dos judeus? O anti-semitismo foi só um meio útil que Hitler usou e do qual não precisa mais.
Repare – continuou o Sr. Feldman – você fugiu de Liége a toa. Perdeu tudo que tinha na sua loja. Está agora
separado da esposa e das filhas. Eu, pelo contrário, fiquei tranquilamente em minha casa, não sofri os transtornos de
uma fuga insensata e nada de mal aconteceu-me. Por isto, continuarei firme onde estou: aqui mesmo, em Liége! Os
tempos vão melhorar; você verá!
Mas Rafael não tinha tanta certeza assim.
“Nem o próprio Feldman” – especulou Rafael – “Provavelmente ele só diz acreditar o que deseja que aconteça”...
Mas como voltar para o sul da França? Este era o desafio imediato. Havia muitos deslocamentos de populações,
mas todo mundo dirigia-se para o norte, voltando para casa. Como poderia ele seguir na direção oposta, indo de Liége
para o sul, até a fronteira espanhola?
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C APÍ TULO 5
afael lembrou-se de Emil e como ele conhecia os atalhos nas fronteiras! Desde sempre, vivia contrabandeando
mercadorias da Bélgica para a França.
Rafael foi procurá-lo, solicitou ajuda.
– Tudo bem – concordou Emil. Amanhã à noite vou levar 15 pessoas para Lyon, na França não-ocupada. Bem que
gostaria de incluí-lo no grupo, mas para tanto preciso de uma autorização de meu chefe, cujo nome não posso revelar,
nem mesmo a você.
– Não é preciso, pois sei que está se referindo ao Senhor Renard. Sei que é ele quem comanda a Resistência em
Liége. Conheço-o há muito tempo. Antes da guerra, nós dois já trabalhávamos em comitês anti-nazistas. Vou procurálo eu mesmo.
Rafael foi até a casa do Senhor Renard, e expôs-lhe a situação.
– Rafael, a você posso revelar a composição do grupo que viaja amanhã: são oficiais belgas de alta-patente que
nós, da Resistência local, estamos enviando a Lyon, de onde serão levados a Londres. Lá eles vão formar o núcleo do
exército da Bélgica Livre, que está se organizando na Inglaterra. Se você quiser arriscar-se juntando-se ao grupo,
você tem o meu O.K. Mas, pense bem, sempre existe o perigo de algum informante delatar aos alemães as
verdadeiras identidades do grupo e o seu destino final.
– Sou-lhe muito grato pela ajuda – respondeu Rafael – Apesar do perigo, junto-me ao grupo.
Na noite seguinte, todos reuniram-se na casa de Emil.
– Vão viajar numa camioneta. Não haverá perigo algum. Acertei todos os detalhes com os guardas das duas
fronteiras que terão que cruzar: a primeira, entre a Bélgica e a França-Ocupada, e a outra, entre as duas partes da
França. Nestas fronteiras temos amigos que vão ajudá-los. Felizmente, as estradas não estão sendo vigiadas pelo
ocupante nazista. O último grupo que enviei poucos dias atrás chegou sem qualquer problema a Lyon. Assim, meus
amigos, desejo-lhes boa viagem! Voltem logo, encabeçando nosso exército que vai nos libertar do opressor! Viva a
Bélgica! Morte aos nazistas!!
Embarcaram. A camioneta partiu. A noite estava enluarada, a visibilidade total.
Iam em direção à fronteira francesa. Trafegavam em velocidade moderada, para não chamarem a atenção.
De repente, logo após uma curva, viram-se frente a um bloqueio! Um bloqueio montado por soldados do Reich!!
Não havia como recuar... Só podiam avançar...
Soldados alemães, fuzis prontos para atirar, cercaram a camioneta.
– Todo mundo desce! Documentos na mão! Los! Schnell, schnell! – gritou um sargento.
Quando percebeu que o grupo que estava saindo da camioneta era numeroso e composto só de homens, berrou,
nervoso:
– Todo mundo em fila! Mãos ao alto! Desçam devagar, bem devagar!
Apareceu um oficial nazista, seguido por uma dúzia de soldados.
– Tantos homens numa camioneta só? De noite? O que fazem? Para onde estão indo?
Ninguém sabia o que responder. Não tinham sido preparados para esta eventualidade. Emil tinha afirmado que as
estradas não estavam sendo vigiadas...
Rafael percebeu que a situação estava se tornando perigosa.
– Senhor Comandante – disse numa voz jovial – falo o alemão. Assim, serei eu quem lhe responderá. Somos
pescadores. Estávamos indo para Laecken, onde estão os melhores peixes. Saímos no final do dia para pescarmos à
noite, quando a pesca rende muito mais.
Sorrindo acrescentou:
– Deixamos as mulheres em casa. Suas conversas barulhentas só afugentam o peixe.
O oficial permaneceu pensativo. De repente, uma idéia brilhante apareceu-lhe:
– Estão indo pescar? Só pescar? Acham mesmo que podem tão facilmente enganar um oficial do Terceiro Reich? –
Com voz sarcástica, acrescentou – Onde estão as varas de pescar?
Rafael não se perturbou. Respondeu com a maior naturalidade:
– Não só as nossas varas, mas todo o material de pesca encontra-se na casa de amigos nossos que moram à beira do
R
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lago, onde vamos pescar. É para a mesma casa que vamos toda semana, passando sempre por esta estrada. Nunca
ninguém nós parou. Não estamos infringindo lei nenhuma!
O oficial ficou perplexo, não sabia como reagir.
No fim, resolveu transferir a responsabilidade. Era bem mais seguro.
– Estão todos presos! É a Gestapo quem vai investigar a veracidade de suas afirmações e dar a última palavra.
Anotou em seu relatório: “Maubeuge, 28/10/1940: prendi hoje 16 suspeitos e encaminhei-os para a Gestapo”.
Foram empurrados para a camioneta. Conduzidos e escoltados por soldados alemães, foram levados até a cadeia de
Liége.
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CAPÍTULO 6
á no sul da França, Helena e as duas filhas aguardavam o retorno de Rafael. Passou-se um mês, passou-se um
segundo mês. Nada. Rafael não aparecia... nem mandava carta alguma...
– Só nos resta voltarmos sozinhas para Liége – decidiu Dona Helena – Sinto que algo aconteceu a meu marido
e que ele precisa de nossa ajuda.
A volta foi bastante difícil: a França continuava desorganizada, nada funcionava. Após 8 dias de viagem cansativa,
sem poderem tomar um banho sequer, dormindo em trens e em estações, chegaram a Liége.
Voltaram ao antigo apartamento. Graças a Deus, estava intacto, exatamente como o haviam deixado.
Encontraram conhecidos. Só então souberam que Rafael tinha sido preso pela Gestapo.
Mas como ajudá-lo? Dona Helena procurou advogados. Ninguém tinha acesso à Gestapo.
De noite, apareceu o Senhor Renard.
– Tenho contatos. Sei que os alemães eståo verificando os documentos de Rafael e brevemente ele será posto em
liberdade. Aguardem-no com paciência.
Em 29/11/1940 Rafael foi solto pelos nazistas. Seus documentos estavam em perfeita ordem. Então os alemães
ainda seguiam as determinações da convenção de Geneva, que regula o comportamento de forças militares que
ocupam território inimigo.
Assim que Rafael se refez do cativeiro, procurou o senhor Renard:
– Quero participar da luta contra os nazistas. Dê-me qualquer tarefa. Quero lutar! Quero ingressar na resistência
armada!
– Não é possível. O treino militar que você recebeu na juventude já está totalmente ultrapassado. Entretanto,
podemos usar as qualidades pessoais que possui: fala fluentemente o alemão, e tem muita facilidade em iniciar
amizades, mesmo com desconhecidos. Daqui em diante, vai se tornar um assíduo frequentador dos cafés da Praça
Saint Lambert, sempre cheios de soldados alemães. Converse, trave amizades com eles, e comunique-me o que
conseguir descobrir, pois estou em contato diário com Londres.
Todo dia, Rafael passava horas nos cafés da Praça St. Lambert. Sempre conseguia entrar numa conversa com
algum soldado alemão. Batia um papo, contava umas piadas... e transmitia tudo o que ouvia ao senhor Renard.
L
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CAPÍTULO 7
tempo ia passando. A Alemanha invadiu a Rússia. Obteve sucessos inimagináveis. O avanço das tropas nazistas
foi fulgurante. Exércitos russos inteiros rendiam-se... às vezes, antes mesmo de terem entrado em combate...
A Alemanha tinha certeza de estar ganhando a guerra, que ela brevemente dominaria o mundo todo, que o
seu Reich dos Mil Anos estava se tornando uma realidade, e que tudo que Hitler predisse iria se realizar!
Foi então, neste clima de euforia e de arrogância, que os nazistas deram início ao que chamavam de
“SOLUÇÃO DA QUESTÅO JUDAICA”.
No início da guerra, em 1940, quando ocuparam a Bélgica, difundiam notícias tranquilizadoras, dizendo que o
problema judaico teria sua solução adiada para depois de guerra. Disseram que, neste momento, estavam precisando
do esforço de qualquer industrial, inclusive judeu, para obterem os suprimentos que necessitavam. Emissários do
exército alemão compravam tudo. Preferiam até negociar com judeus, pois estes entendiam a sua língua. Compravamlhes todo tipo de mercadorias, especialmente confecções, artefatos de pele e de couro, ramos tipicamente judaicos.
De repente, sem motivo visível, este comportamento alterou-se. No início, em doses homeopáticas. Em seguida, num
ritmo sempre crescente.
Surgiu a primeira lei discriminatória, aparentemente inofensiva: todo judeu era obrigado a registrar-se como tal. Não
havendo qualquer penalidade ou restrição imposta aos judeus, automaticamente, a grande maioria obedeceu. Também,
como não fazê-lo, especialmente se o nome fosse tipicamente judeu, como Isaac, filho de Jacó e de Sarah?
No mês seguinte, saiu uma nova ordem: todo judeu devia mandar carimbar em seus documentos de identidade a
letra “J”, inicial da palavra Jude (judeu, em alemão).
As leis seguintes já se sucediam quase que diariamente: todo judeu devia usar uma estrela de David, confeccionada
em tecido amarelo, costurada em sua roupa na altura do coração. A todo judeu era proibido sair à rua após às 19 horas.
Todo judeu dono de um estabelecimento comercial devia colocar um aviso em letras garrafais amarelas:
“ESTABELECIMENTO JUDEU”.
E as leis discriminatórias continuavam sendo promulgadas: a todo judeu era proibido entrar em lugares públicos,
tais como cinema, teatro ou parque. Depois, era proibido que entrassem nas escolas nas quais não-judeus também
estudavam. Em seguida, saiu a proibição de um judeu empregar funcionário não-judeu, e mais, muito mais.
Assim que estas leis começaram a vigorar, Rafael teve que interromper as suas “conversas amistosas”
nos cafés da Praça Saint Lambert...
O
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CAPÍTULO 8
assados uns meses, no meio da noite, a campainha tocou. Rafael abriu a porta.
Eram soldados alemães, chefiados por um sargento.
– Você é o judeu Rafael Janowski, já detido por atitude suspeita, viajando de noite numa camioneta?
– Sou Rafael Janowski. Fui declarado inocente, estava só indo pescar.
– Eu nunca discuto com judeu, só lhe dou ordens! Venha conosco! Já! Não leve nada, voltará daqui a uma hora.
Rafael foi conduzido à central da Gestapo. Um oficial interrogou-o:
– Seu vizinho, o Senhor Reuken, um verdadeiro patriota belga e membro do nosso glorioso partido nazista, acusao, judeu Rafael Janowski, de ter dirigido, antes da guerra, uma organização de boicote à compra de mercadorias
alemãs! É verdade?
– Sim, senhor. É igualmente verdade que este comitê fora autorizado pelo governo belga, do qual sou súdito. Faziam
ainda parte deste grupo uma série de personalidades belgas, entre os quais o Ministro da...
– Não estou interessado.
Sarcasticamente, repetiu:
– Faziam parte deste grupo uma série de personalidades belgas... – e caiu num riso descontrolado.
Acalmou-se e gritou:
– Incrível a ousadia destes porcos judeus! Dá para ver que você precisa ser reeducado. Vamos lhe ensinar boas
maneiras, temos uma ótima escola: o campo de concentração de Breendonck! Faça um bom estágio lá. Serão
férias bem merecidas... – concluiu gargalhando novamente.
Estávamos no ano de 1941. Os judeus ainda não eram sistematicamente perseguidos, nem deportados. Então, só
eram enviados ao Campo de Breendonck os cidadãos belgas que o ocupante nazista queria retirar de circulação. A
maioria era de judeus que os alemães queriam punir por algum delito real ou imaginário. Neste campo de
concentração, o único existente na Bélgica, a política nazista era quebrar espiritualmente o prisioneiro, sem,
entretanto, matá-lo.
No dia 15 de maio de 1941, Rafael chegou ao campo de Breendonck, situado a uns 25 km. de Bruxelas, capital da
Bélgica. Ali, uns 500 prisioneiros estavam sendo vigiados por soldados da S.S., e por um grupo para-militar fascista
belga, os Rexistas.
Como sempre, os nazistas belgas eram ainda mais sádicos do que seus mestres alemães.
Qual era o trabalho executado pelos prisioneiros do campo?
Os nazistas inventaram um jogo diabólico: empenharam o campo todo num gigantesco esforço de remoção de
terras! Eram toneladas e mais toneladas a serem transportadas a mão. Uma vez terminada a tarefa, estas mesmas terras
eram recolocadas... adivinhem aonde?... em seu lugar de origem!
Nesta tarefa “produtiva” trabalhava-se num ritmo alucinante. A jornada era de 16 horas por dia, com uma única
hora de descanso!
Na área da remoção de terra tinham sido colocados trilhos sobre os quais corriam carrinhos que transportavam a
terra. Os trilhos seguiam um traçado cheio de curvas, o que levava os carros a descarrilarem facilmente, fazendo-os
tombarem e derramarem a carga toda, impedindo ainda o tráfego dos demais carros. Cada viagem era cronometrada.
Todo atraso era punido. Como só havia 3 linhas para os carrinhos, muitos deles seguiam-se uns aos outros, deslizando
sobre o mesmo trilho. Assim, qualquer problema com um carrinho atrasava os demais que trafegavam pelo mesmo
trilho.
Os detentos eram divididos em grupos de 10: 4 prisioneiros carregavam o carrinho, 2 o empurravam até o seu
destino, e os últimos 4 o esvaziavam.
Este sistema fora idealizado pelos alemães com uma única finalidade: permitir sempre encontrar novos motivos
para punir os detentos. Quando o trabalho transcorria normalmente e o chicote dos guardas não encontrava motivo
racional para ser usado, os S.S. criavam deliberadamente a confusão: às vezes, mudavam os prisioneiros entre si,
colocando presos fracos e idosos a trabalharem no mesmo carrinho. Outras vezes, punham pedras nos trilhos, para que
os carros descarrilassem ainda mais facilmente.
Os guardas eram bem criativos... Sempre encontravam novas formas para se divertirem. Para eles, tratava-se de
P
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uma edição moderna da arena romana: quanto mais vítimas, melhor o espetáculo!
Como sobreviveu Rafael neste mundo paranoico?
Todo dia era um novo desafio. Cada instante trazia novos perigos. Sua atenção tinha que ser aguçadíssima. Nunca
se sabia de onde poderia aparecer algum S.S. ou um Rexista, com a sua schlague (nome dado ao chicote que os
guardas usavam).
Rafael contou um episódio característico:
Certa vez, colocaram-no junto a um outro prisioneiro para empurrarem o carrinho. Naquele dia, um dos S.S.,
bastante embriagado, resolveu divertir-se. Gritou:
– Mais rápido! Mais rápido!
O S.S., com a sua schlague na mão, perseguia os prisioneiros que empurravam os carros. Estes só podiam
aumentar a velocidade, correndo cada vez mais rápido, até o inevitável acontecer: um carrinho tombou! Era aquele
empurrado por Rafael e seu companheiro. A carga derramou-se. Os demais carros que usavam o mesmo trilho tiveram
que parar. O S.S. ficou louco de raiva... A brincadeira acabara... Tão cedo! Sentiu-se frustrado...
Conclusão: quinze dias de solitária para Rafael e o seu companheiro!
Foram quinze dias numa cela tão minúscula que só se podia dormir em pé. Foram quinze longos dias com uma
única refeição diária: meio copo d’água e cem gramas de pão.
Mas Rafael aguentou, aguentou firme.
Rafael permaneceu nove meses no campo de Breendonck. Nunca perdeu as esperanças.
À noitinha, os detentos deitavam nas camas, descansando e conversando entre si.
Apesar das condições subumanas nas quais viviam, Rafael mantinha o otimismo, o que sempre levava alguns
prisioneiros a sentarem sobre a cama de Rafael, ávidos para ouvir as suas costumeiras palavras de fé e de esperança.
A cama ao lado da de Rafael era ocupada pelo senhor Ochs, conhecido caricaturista que, até a sua detenção,
publicava diariamente desenhos humorísticos no “Le Soir”, principal jornal belga.
– Hoje – contou o caricaturista – estive no escritório do comandante do campo para pintar o retrato dele. Aproveitei
a oportunidade e roubei-lhe o jornal. Infelizmente, não entendo o alemão. Rafael, leia-o para nós – pediu ele.
Rafael abriu o jornal. Viu que falava do avanço alemão em território russo, do aniquilamento de todo um exército
soviético e da tomada de importantes cidades russas. “Transmitir estas notícias” – pensou – “equivale a matar meus
amigos, pois vai lhes tirar a esperança de sobreviverem à guerra”. Assim, ele foi traduzindo o jornal à sua maneira:
– As tropas do Reich evacuaram as seguintes cidades russas... O comando alemão resolveu recuar para melhor
reorganizar-se... Por motivos táticos, os soldados do Terceiro Reich resolveram encurtar a distância que os separa de
sua querida Alemanha...
Enquanto mentia, via a recompensa na postura dos amigos: ombros erguendo-se, costas endireitando-se; logo,
todos ostentavam um largo sorriso.
Rafael passou então a comentar as notícias que supostamente lera no jornal:
– O exército alemão avançou profundamente na Rússia, e agora já passou a pagar o preço por tanta ousadia: está
entrando em colapso, o que se percebe claramente nas entrelinhas do jornal. Foi aliás o mesmo erro que Napoleão
cometeu, e Hitler terá o mesmíssimo destino: seu exército já está sendo aniquilado e a sua derrota será total,
exatamente como aconteceu a Napoleão!!
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CAPÍTULO 9
emanalmente, Rafael podia enviar uma carta para a esposa. Ele usava de imaginação para fazer com que ela
entendesse o que era proibido escrever: “Ainda estou vivo, mas morrendo de fome. Mande pacotes com alimentos,
caso contrário, não sobrevivo!”
Nas cartas, Rafael escrevia: “Mande lembranças para meu amigo Lechem (pão em hebraico)”, ou ainda: “Pague
minha dívida ao vizinho Achilá (comida em hebraico)”.
Dona Helena entendia perfeitamente o recado, e fazia de tudo para atender o marido. Semanalmente, enviava-lhe
um pacote de 5 kg., o máximo permitido pelo regulamento do campo de concentração.
Mas não era fácil. Tudo estava racionado e caríssimo. Mesmo assim, ela conseguia verdadeiros milagres, apesar de
saber que grande parte dos pacotes seria roubada pelos S.S. do campo.
– Pelo menos algo lhe será entregue. Queira Deus que seja o suficiente para mantê-lo vivo...
Um outro problema afligia ainda Dona Helena e suas filhas. Tratava-se de uma chantagem cínica: o vizinho, o
Rexista Reucken, aparecia de vez em quando na casa dela, e com arrogância ostensiva, declarava:
– Tenho ordens expressas da Gestapo para verificar o comportamento da família do preso, o judeu Rafael
Janowski.
O que ele na realidade procurava era encontrar algum judeu que as Janowski estariam escondendo na casa delas.
“Não era, aliás, esta uma das tarefas de cada bom Rexista?... Especialmente porque os S.S. pagavam um bom
prêmio em dinheiro por cada judeu que lhes era entregue...”
O Rexista abusava da sua “autoridade”, para “confiscar” qualquer comida gostosa que encontrava na casa de Dona
Helena...
O que poderia ela fazer? O que sentiam Lili e Fanny, as duas filhas ainda menores, quando tinham que se mostrar
educadas com o Rexista que denunciara o pai delas para a Gestapo?
S
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CAPÍTULO 10
m belo dia, Rafael foi convocado ao escritório do comandante do campo:
– Judeu Rafael Janowski, você foi libertado. A rainha da Bélgica solicitou que todo prisioneiro de
nacionalidade belga fosse solto. Nosso Führer, demonstrando mais uma vez o seu profundo humanismo, aceitou
o pedido. Mas você vai continuar a trabalhar sob a nossa supervisão. Vai se juntar a um grupo de judeus que
executam consertos nas vias públicas de sua cidade, Liége. Semanalmente, vai se apresentar à Gestapo que, a cada
vez, decidirá se você permanece por mais uma semana em sua casa ou se volta imediatamente para o campo de
Breendonck.
Pela segunda vez, Rafael voltou para casa. Estava bem mais magro: perdera mais de 20 kg. Nas primeiras
semanas, uma fome insaciável não o largava. À noite, pesadelos perseguiam-no assim que caía no sono.
Amparado pela família, devagar, Rafael se refez.
Assim que foi libertado do campo de concentração, apesar da fraqueza, teve que apresentar-se a seu serviço
obrigatório. Trabalhava seis dias por semana, ao lado de um dúzia de outros judeus belgas, comandados por um
Rexista de Liége, que não escondia seu anti-semitismo. Felizmente, ficava bebericando a maior parte do dia, não
ligando para nada, e muito menos para as tarefas dos subordinados.
Todo sábado à tarde, Rafael apresentava-se à Gestapo.
Nunca podia prever o veredicto do S.S. de plantão naquele dia. Será que permitiria que Rafael continuasse em casa
por mais uma semana consertando as ruas, ou o mandaria de volta para o campo de concentração?
Assim, sua vida e a de sua família parava a cada sábado, deixando todos angustiados e apreensivos.
Todo vez que Rafael se apresentava à Gestapo, sua filha Lili seguia-o de bicicleta. Quando Rafael entrava no
prédio da polícia secreta alemã, situado no Boulevard d’Avroy, Lili escondia-se atrás de uma das árvores centenárias
que ornamentavam a rua. Ela colocava a bolsa em cima da estrela amarela de David para esconder que era judia e para
não chamar a atenção dos S.S. Quem sabe o que poderiam pensar, vendo uma jovem judia vigiando a sua sede?
Lili ficava à espreita para ver o que iria acontecer. Assim que via o pai deixando o prédio da Gestapo pedalava o
mais rapidamente possível para casa. Anunciava a boa nova para a família que, aliviada, voltava a respirar e a viver
normalmente... até o próximo sábado... quando tudo recomeçava uma vez mais...
Assim
que
Rafael
sentiu-se
recuperado,
procurou
novamente
o Sr. Renard:
– Quero trabalhar para a Resistência. Agora, mais de que nunca. Dê-me tarefas perigosas. Depois do campo, nada
me assusta!
– Tenho um serviço para você, ele é perigoso. Os nazistas colocaram-no no grupo de conserto das ruas da cidade.
A Prefeitura deu-lhes uma carroça para o transporte das ferramentas e dos materiais, o que o torna a pessoa ideal para
cuidar da entrega de nossas “encomendas”. São armas e munições que você deve esconder no meio da bagunça que
vocês levam no seu veículo. O Rexista que chefia seu grupo está bêbado demais para perceber o que está ocorrendo
bem abaixo do seu nariz. Mas é claro que há perigo, nunca se deve subestimar os alemães...
Regularmente, Rafael transportava as “encomendas” do Senhor Renard. Os demais membros do grupo de trabalho
percebiam tudo. Entretanto, ninguém falava nada.
U
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CAPÍTULO 11
nquanto as semanas iam se passando, os nazistas deram mais um passo na sua “SOLUÇÃO DA QUESTÃO
JUDAICA”.
Começaram pelos judeus que não possuíam a nacionalidade belga. A uns duzentos, do sexo masculino,
mandaram o seguinte telegrama:
“Você deverá prestar serviço obrigatório num campo civil de trabalho. Apresente-se amanhã às 7:00
horas na estação de trens de Liége. Caso não compareça, você e a sua família serão exemplarmente
punidos.
Assinado: Comando Militar da Bélgica.”
A grande maioria obedeceu à ordem. Acreditavam no que o telegrama dizia.
A cada poucos dias, novas remessas de telegramas idênticos foram enviados a outros judeus não-belgas. Com o
correr do tempo, muitos começaram a desconfiar. Surgia-lhes uma terrível pergunta: “Por que os judeus que se
apresentaram para o trabalho e que foram levados para um destino desconhecido ainda não mandaram qualquer
notícia?”. O que lhes teria acontecido para que não pudessem escrever?...
Receosos, cada vez um número maior de judeus tentava se esconder. Mas onde? Quem queria recebê-los,
arriscando a própria vida?
Quando os alemães perceberam que vinha diminuindo o número de judeus que, voluntariamente, se apresentavam
à estação, passaram a caçá-los abertamente! Fechavam uma rua, colocando guardas nas duas extremidades, e depois
revistavam todos que se encontravam presos entre os dois bloqueios. Não disfarçavam mais, fazendo acreditar que
estavam procurando homens para o trabalho. Indistintamente, prendiam todos os judeus estrangeiros que encontravam:
homens e mulheres, crianças e anciões! Ninguém era poupado!
Quando a safra encontrada nas ruas não lhes parecia suficiente, invadiam os prédios no trecho bloqueado, revistandoos meticulosamente.
Ofereciam recompensas para quem denunciasse um judeu escondido, ou um que usasse documentos falsos de nãojudeu. Fuzilavam quem ajudasse judeus, até mesmo quem simplesmente deixasse de denunciá-los.
Para Rafael, escolado pela convivência com a Gestapo no campo de concentração, ficou logo claro o terrível
significado do que estava ocorrendo.
Desesperadamente, procurava meios para salvar a família.
– Helena – relatou Rafael – conversando hoje com amigos meus, foi-me confirmado que não chegou qualquer notícia
dos judeus levados para os campos de trabalho, o que fortalece a nossa suspeita de que devem ter sido friamente
assassinados. Até agora, só prenderam judeus que não possuem a nacionalidade belga. Felizmente, somos cidadões
belgas e, portanto, estamos fora de perigo. Mas, até quando?... Não quero mais ser pego de surpresa! Não confio nos
alemães. Portanto, resolvi procurar uma outra moradia, onde poderemos nos esconder, porque o endereço deste
apartamento é conhecido da Gestapo. Mas isto levará tempo, pois vai ser bem difícil encontrar uma casa cujo proprietário
nos aceite, e não nos denuncie aos alemães. Conversando com meu amigo, Devoisier, soube que em Seraing há uma
escola que tem um internato anexo. Ela é dirigida por uma Ordem Religiosa. Devoisier deu-me uma carta de
recomendação para a Diretora, a Madre-Superiora Beatrice. Garantiu meu amigo que ela vai poder matricular nossas
filhas, dando-lhes nomes falsos de não-judias, o que vai permitir que fiquem lá até o fim da guerra. Temos que aproveitar
a oportunidade! Sejamos realistas, quem pode prever nosso destino final? É verdade que me recuso a ver as coisas em
preto, mas o perigo é grande, e, honestamente, não sei se sobreviveremos à guerra. Pelo menos, vamos salvar as nossas
filhas!
– Mas Rafael, separar-me delas? Só pelo receio de um futuro desconhecido? Você não está se precipitando demais?
Por que não aguardar mais um pouco e ver como as coisas vão correr? Não, Rafael, não quero separar-me de minhas
filhas! Sofri bastante para trazê-las ao mundo e para educá-las. E agora que já estão crescidas, mocinhas, devo
abandoná-las?
– Helena, ouça, acredite em mim. Estive em Breendonck. Conheço os nazistas. São organizados e metódicos. Hoje
estão prendendo os judeus estrangeiros, amanhã será a vez dos belgas. Será que você acha que eu quero separar-me
das minhas filhas?
E
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– Mas Rafael, você terá a coragem de enviá-las a uma escola católica? Dirigida por freiras? Você sabe muito bem aonde
isto poderá levá-las!
– Claro, Helena, sei muito bem. Não é nenhum segredo que a Igreja sempre procura novas conversões à sua fé, mas
a sobrevivência física de nossas filhas está em jogo. Manter-se vivo é o primeiro dever de cada ser humano!
Rafael chamou as filhas:
– Vocês já não são mais crianças, e sabem perfeitamente o que está acontecendo. A qualquer momento podemos
ser presos e enviados para um destes lugares de onde ninguém ainda voltou, ou enviou qualquer notícia. Assim,
resolvi colocá-las numa ótima escola, um internato. Vocês vão ficar lá até o fim da guerra, a não ser que a situação
melhore aqui. Entretanto, há um pequeno problema: a escola é católica, e portanto terão que fazer de conta que são
cristãs. Deverão imitar em tudo as colegas, assistir às aulas de religião católica, ir à missa, confessar-se, e o que mais
for necessário. Ninguém deve desconfiar que são judias; isso poderá custar-lhes a vida e trazer muitos problemas às
freiras que dirigem a escola e que, como almas puras e bondosas que são, estão unicamente querendo ajudar. Mas, não
esqueçam nunca: na verdade, são judias! Nasceram na fé mosaica, e assim devem permanecer a vida toda. Saibam que
são filhas de pais judeus, e de toda uma linhagem de ancestrais que lutaram e sofreram para permanecerem judeus!
Pois, infelizmente, esta não é a primeira vez na história de nosso povo que somos perseguidos... E, sempre, sem
termos qualquer culpa...! Assim, permaneçam judias em suas almas e corações, mesmo que o comportamento externo,
aparentemente, mostre o contrário. Quando a guerra terminar, reassumam abertamente a sua judeidade, casem com
judeus e tenham filhos judeus! Não quebrem esta corrente que tem 5.000 anos!
No dia seguinte, Rafael, o coração partido, levou as filhas à escola de Seraing. Antes de entrarem, tiraram de suas
roupas
as
estrelas
de David.
– Minhas filhas – disse-lhes a Madre Superiora – vocês terão que comportar-se exatamente como as demais alunas.
Terão que viver como católicas. Se tiverem qualquer dúvida ou dificuldade, procurem-me. Tentarei substituir seus
pais, e, principalmente, salvá-las! Quero dedicar-me à sua educação! Quero vê-las felizes!
Nos primeiros dias, as duas meninas estranharam muito.
Devagar, foram acostumando-se à vida do internato. Ao mesmo tempo, sentiram a falta dos pais.
– Pelo menos estamos juntas – consolaram-se mutuamente.
Depois de uns dez dias, a Madre Superiora chamou Lili:
– Ouvi dizer que é boa aluna, que acompanha bem os estudos, apesar de estar numa escola nova, o que prova que é
uma menina bem inteligente. Por isto, acho que você deveria usar esta inteligência que Deus lhe deu para eliminar de
vez o terrível problema que as aflige, e que só lhes causará sofrimentos! Para que teimar em permanecerem judias?
Se vocês se convertessem ao catolicismo acabariam de vez os seus problemas, os seus e os de sua irmãzinha, que
você, por ser a mais velha, deve proteger! É fácil ver que é vontade de Deus que os judeus se convertam à
verdadeira fé, a fé em Cristo! Por isto Ele mandou os nazistas perseguirem os judeus!
– Madre Superiora, meu pai disse que nasci judia e que assim devo permanecer até o final de minha vida. Acho que
se Deus quisesse que fosse cristã, já teria nascida assim. Mas, apesar das palavras de meu pai, aceitaria converter-me,
se a Senhora pudesse me provar que Seu Deus é melhor de que o Meu. Pode fazê-lo, Reverendíssima Madre
Superiora?
– A fé não se prova, minha filha. Ouça meu conselho. Só quero o seu bem. Convertam-se, você e a sua irmã. Só
assim estarão salvas, salvas das mãos dos nazistas, salvas do fogo do purgatório que pune toda infiel!
– Sinto muito, Reverendíssima Madre Superiora. Não posso aceitar seu conselho. Ele é contrário a que meus pais
me ensinaram. Mas, como o disse, se a Senhora puder provar que Seu Deus é melhor de que O Deus de meus pais e de
meus antepassados...
– Minha filha, ainda quero chamá-la assim, apesar de sua rebeldia! Saiba que se você não se converter não poderá
permanecer nesta escola... e você conhece muito bem o perigo que existe lá fora para você e para sua irmãzinha...
Nem dela você sente pena?!
À noite, a Madre Superiora estava em seu quarto minúsculo. As dúvidas perseguiam-na. Ela pensava: “Meu Deus,
ajude-me a entender Teus caminhos. Ajude-me a agir conforme Teus desejos. Percebo claramente que esta menina
judia não vai se converter. Não adiantará nada tentar de novo, nem dar-lhe mais um tempo.
Assim, o que faço, meu Deus? Mando as duas meninas embora e coloco as suas vidas em perigo ou mantenho-as
aqui, onde estão em segurança?
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Se as expulso da escola, terei vagas para outras duas meninas que talvez aceitem a conversão. Se as mantenho
aqui, Jesus não ganhará nenhuma alma nova. Como devo agir, meu Deus? Com misericórdia, salvando estas duas
meninas judias? Ou com eficiência, tentando salvar as almas de duas outras meninas, que ainda não conheço?
Meu Deus, ajude-me. Rezarei a noite inteira. Deus, ilumine-me!”
De manhã cedo, a Madre Superiora mandou chamar o senhor Devoisier.
– Venha buscar as duas meninas de seu amigo. Elas nos causaram muitos problemas: não conseguem conviver com
as demais alunas, brigam o tempo todo e são desobedientes. Mas, se o senhor conhecer duas outras meninas judias,
bem comportadas, meigas, pode trazê-las aqui que tomarei conta delas, como se fossem minhas. Farei tudo para salválas. Não é esta, aliás, a missão que Jesus me confiou?
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CAPÍTULO 12
assaram-se mais alguns dias. Era sábado. A família Janowski estava novamente reunida. Rafael apresentara-se à
Gestapo e voltara sem incidentes.
– Helena – explicou Rafael – Hoje foi a última vez que fui à Gestapo. Resolvi não mais me apresentar lá.
– Por quê, Rafael?
– Escute só: conversando com um dos S.S. que simpatiza um pouco comigo por eu tantas vezes ter ido lá, soube
que eles só têm um mês para prender todos os judeus não-belgas ainda escondidos na cidade. O S.S., com um piscar
cheio de subentendidos, acrescentou:
– Depois, passaremos para uma outra caça. Cuidado, Rafael, pois ela lhe diz diretamente respeito... Entenda, –
continuou ele, baixando a voz – o que não posso revelar-lhe mais claramente...
– Percebe-se que estava me revelando que dentro de um mês iniciarão a caça aos judeus belgas! Não vou deixar
que nos apanhem. Portanto, temos que preparar a nossa mudança. Devagar vamos levar as nossas coisas à nova
moradia que, felizmente, consegui alugar há uns dias. Faremos diversas viagens, levando pouca roupa de cada vez,
para não chamar a atenção de ninguém.
Ainda bem – continuou Rafael – que encontrei essa nova moradia. Pertence a um membro da Resistência, ele não vai nos
denunciar. É uma casa situada ao lado da estrada de ferro, que é um dos alvos constantes da aviação de bombardeio aliada. Por
isto mesmo pouca gente quer morar lá. Estaremos bem tranquilos. O que é a nossa grande sorte agora foi que desde antes da
guerra eu vinha aplicando as nossas reservas financeiras em diamantes. Vendendo só 5 pequenas pedras pude pagar o aluguel
adiantado por um ano. Se não tivesse esse dinheiro, não sei como poderia ter me virado.
Helena, estou novamente otimista! Ainda conseguiremos sobreviver à guerra!!
– Mãe – pediu Fanny, a filha menor – Vejo que vocês estão para sair. Deixe Dorinha brincar aqui comigo.
Tratava-se de uma menina judia de 9 anos cujos pais haviam sido recentemente deportados. A criança fora
recolhida por uma família cristã, que morava no apartamento térreo do mesmo prédio. Eram gente humilde, de bom
coração, que tivera pena da menina que, assim de repente, tornara-se órfã.
– Mande-a subir. Dê-lhe umas bolachas que preparei. Talvez esteja com fome.
O casal Janowski saiu, levando duas sacolas com roupas. Dorinha brincava com Fanny. Ambas tinham a mesma
idade. Lili permanecia na janela, observando o movimento na rua. Estava de sobreaviso. Na ausência dos pais, não era
ela, a mais velha, a responsável?
De repente, viu um carro militar alemão parar em frente à porta da casa. Desceram dois soldados. Tocaram a
campainha.
Lili pressentiu logo: o pior estava acontecendo! O que ela tanto receava estava se tornando realidade! Vinham
prendê-las para deportá-las! Mas como? Eram belgas! Eram sob a proteção da Rainha da Bélgica! Hitler tinha
prometido poupar os judeus belgas!
De repente, percebeu o perigo que Dorinha representava: era filha de judeus estrangeiros!
Correu para dentro da sala. Dirigiu-se à Dorinha:
– Saia depressa! Vá para a sua casa! A Gestapo está entrando no prédio. Se a encontrarem aqui poderão levá-la e
quem pode prever o que farão conosco? Fuja!!! Rápido!!!
Dorinha começou a rir:
– Pára de tentar assustar-me. Que bobagem esta de Gestapo...
No meio das palavras, ouviam-se batidas, cada vez mais fortes, pareciam querer quebrar a porta de entrada do
prédio!
– Um minuto, um minuto. Abro a porta já – ouviu-se a voz assustada do dono do prédio, que morava nos fundos do
térreo.
Os dois soldados gritavam:
– Por que demora tanto para abrir a porta? Está escondendo alguém? Algum judeu talvez? Abra a porta, ou será
imediatamente fuzilado!
Dorinha ouviu tudo. Apavorou-se. Levantou com um pulo. Saiu correndo pelos fundos do apartamento. Ao passar
pela porta, amedrontada, bateu-a com muita força.
P
27
– Quem está fugindo? Quem bateu a porta ao fugir? – gritavam os dois soldados – Revistaremos a casa. Ninguém
escapará! Ninguém zomba do Terceiro Reich!
Vasculharam a casa. Verificaram quarto por quarto. Abriram todos os armários. Não encontraram nenhum adulto,
só duas meninas.
– Você aí, conte-nos o que aconteceu – ordenaram, dirigindo-se a Lili.
– Nada de especial. Não entendo porque estão tão irritados. Uma amiguinha nossa, com 9 anos de idade, esteve
aqui brincando com a minha irmãzinha. Assustou-se quando vocês vieram aqui, fazendo todo aquele barulho ao entrar.
Aos prantos, voltou para à sua mãe no andar de baixo do prédio, onde elas moram. Ao sair daqui, apavorada, bateu a
porta.
– Tudo bem. Mas onde estão os judeus Rafael e Helena Janowski? – perguntaram os soldados. Temos ordens de
levá-los.
– Não estão em casa. Estes vocês não têm por que prender, pois são cidadãos belgas, sob a proteção da Rainha da
Bélgica.
– Como? São belgas? Em nossa ficha consta que são poloneses.
Lili mostrou-lhes documentos, provando que os Janowskis eram belgas e que Rafael acabara de se apresentar à
Gestapo, que lhe permitiu voltar para casa.
– Se é assim, informaremos a Gestapo. Eles é quem cometeram um erro na lista. Não estamos prendendo belgas.
Todo mundo sabe que é esta a determinação da Gestapo!
Enquanto um dos soldados proferia estas palavras, o outro, inconformado por não terem encontrado algum judeu
escondido no apartamento, fez uma vistoria final, olhando por baixa de todas as camas. Estupefato, tirou duas malas cheias
de roupas de baixo de uma delas.
– O que significa isto? – perguntou – Estou vendo que seus pais estão tramando algo! Será que estão se preparando
para se esconder, que até já tem malas preparadas para fugirem daqui? Vamos prendê-los, não mais por serem judeus
estrangeiros, que de fato não são, mas como judeus que estão desobedecendo às nossas ordens, preparando-se para
morar em lugares não previamente autorizados pela Gestapo.
– O senhor está totalmente equivocado – interrompeu Lili – Eu sei porque meus pais prepararam as duas malas.
Meu pai disse ainda ontem: “É necessário termos duas malas com roupas prontas. Se a orientação dos alemães
mudar e eles passarem a prender judeus belgas, é bom estarmos preparados; assim os soldados alemães não terão
que esperar muito tempo para a gente se aprontar. É necessário colaborar com os soldados do Terceiro Reich!”
– Ah, é só isto. Vejo que me enganei. Se todos os judeus fossem tão compreensivos como seu pai, nossa tarefa
seria bem menos árdua. Menina, dê os parabéns a seu pai!
Os soldados saíram. As meninas respiraram aliviadas. A desculpa que Lili inventara na hora salvara as duas!!
28
CAPÍTULO 13
assaram-se mais alguns dias. Paulatinamente, os Janowskis levaram todos os objetos pessoais para a nova
moradia.
Rafael tinha decidido que no próximo sábado abandonariam a antiga casa, que ele não mais se apresentaria à
Gestapo, não participaria mais do grupo de trabalho. A partir de sábado entraria na clandestinidade! Com todos os
riscos que esta decisão acarretava...
Na véspera, sexta-feira, às 6 horas da manhã, ouviam-se repetidas batidas na porta:
–
Abram!
É
a
Gestapo!
Abram
imediatamente!
A
casa
está
cercada!
Não havia como escapar. Rafael abriu a porta. Dois soldados alemães entraram.
– Recebemos ordens de prendê-los! Um caminhão aguarda-os na rua. Desta vez a Gestapo resolveu fazer uma batida
em profundidade. Dez quarteirões estão cercados, e todos os prédios serão minuciosamente revistados! Todo judeu será
preso! Ninguém escapará!
– Mas somos belgas. Sabemos que a Gestapo deu ordens expressas para não prender cidadãos belgas! Um dia atrás,
outros soldados vieram para nos prender; quando souberam que éramos belgas, saíram imediatamente e nos deixaram
livres.
– Pessoalmente – disse o mais velho dos soldados – não concordo com as medidas que os nazistas estão tomando
contra os judeus, que sejam eles belgas ou não. Sou de Berlim e lá tive bons amigos judeus. Mas, uma ordem é uma
ordem, e deve ser cumprida. Obedeço sem questionar! Sou soldado! Minha ordem é de prender todo judeu que encontrar
e de levá-lo ao caminhão lá embaixo. Ali termina a minha responsabilidade. Mas, mesmo assim, quero ajudá-los. Farei o
máximo possível. Eis algumas informações e conselhos: o caminhão os levará à prisão La Citadelle. Posteriormente,
serão deportados por trem até a Europa Oriental. Por isto, levem bastantes roupas quentes. Sei ainda que serão revistados
antes de embarcarem para o Leste Europeu e que tudo que se encontra neste apartamento será confiscado assim que
vocês saírem daqui. Assim, levem os objetos de valor para amigos ou vizinhos não-judeus. Posso dar-lhes um máximo
de 30 minutos. Aproveitem bem este tempo. Façam o que quiserem. Farei de conta que não vi nada.
O soldado sentou-se à mesa e colocou a cabeça entre os braços, demonstrando assim que pretendia cumprir a
promessa.
Rafael foi preparando as malas. Helena reuniu alguns objetos de valor e levou-os à vizinha do andar térreo.
– O que faremos com os diamantes? – sussurrou Helena ao ouvido de Rafael.
– Levo-as comigo. Não há outra solução. Será o que Deus quiser.
Fecharam a porta do apartamento. Entregaram as chaves aos soldados. Quando subiram no caminhão, tiveram uma
visão horrível: dezenas de judeus com os filhos, todos velhos conhecidos, amontoados no veículo. Estavam
cabisbaixos, calados e sem esperança. Adivinhavam para onde iam: para um lugar do qual não há retorno!
Quando não coube mais ninguém, o caminhão rumou em direção à La Citadelle. Chegando lá, os prisioneiros
foram levados a um pátio central onde mais de 200 judeus já estavam reunidos: as mulheres abraçadas com os filhos,
os homens conversando entre si, procurando alguma informação, algum sinal de esperança.
Rafael, nesta hora de desespero, quando tudo parecia perdido, não se deixou derrubar. Manteve a fé e seu
costumeiro dinamismo. Conversou com os amigos. Injetou-lhes novo ânimo. Transmitiu-lhes uma vontade de
lutar, de enfrentar a situação, por mais desesperadora que parecesse.
Dirigiu-se a um soldado que passava pelo pátio:
– Há muita gente aqui que não comeu desde ontem. Eles têm algum dinheiro. Solicito permissão para que alguns
de nós, devidamente escoltados, pudéssemos sair da La Citadelle e comprar mantimentos na cidade.
O soldado transmitiu o pedido aos seus superiores. Estes, mal preparados para alimentar tantas pessoas assim
de repente, concordaram imediatamente:
– Você aí que apresentou o pedido, junte o dinheiro de seus amigos judeus. Poderá sair na rua acompanhado por
dois guardas e comprar os alimentos que o dinheiro que arrecadou permitir.
Rafael saiu com os dois guardas. Pensou: “É, provavelmente, a última vez que vejo Liége. É uma pena... Mas, a
vida é assim mesmo...”
P
29
O número de prisioneiros na La Citadelle aumentava constantemente. Dizia-se que os alemães estavam só
aguardando o trem que viria buscar os detentos.
Rafael esforçou-se em falar com algum oficial graduado da Gestapo. Após inúmeras tentativas, foi levado a um
capitão:
– Senhor Capitão, somos cidadãos belgas, nós e a família Litvak. Pelas informações que recebi da própria Gestapo,
sei que os cidadãos belgas não devem ser presos, e muito menos deportados. Assim, solicito a nossa liberação, em
obediência às normas estabelecidas pelos senhores.
– Judeu Janowski, sua solicitação parece-me totalmente ilógica. Todo judeu permanece sempre o mesmo porco
judeu, seja ele belga ou não. Isto é óbvio. Entretanto, uma ordem é uma ordem. Assim, vou averiguar a procedência de
sua informação. Ai de você – acrescentou – se ela estiver errada!
Na segunda-feira à tarde, ouvia-se um chamado, transmitido pelos alto-falantes da prisão:
– Que se apresentem imediatamente ao escritório do Comandante do Campo os judeus Rafael Janowski e Abrão
Litwak.
– Vocês e as suas famílias estão livres. São belgas. Também no trem que aguardamos não dá para enfiar mais de
1300 pessoas, e já temos mais de 1500 judeus presos. Podem sair imediatamente. Voltem para suas casas e obedeçam
rigorosamente a todas as restrições impostas aos judeus! Caso contrário, seguirão no próximo trem!
Quando os Janowskis saíram à rua, Rafael ponderou:
– Tivemos sorte; escapamos por um triz. Se tivessem faltado judeus para preencher o trem, teríamos sido
deportados, mesmo possuindo nacionalidade belga! Não fomos revistados. Por sorte, isto só ocorre na hora do
embarque. É o método que os S.S. usam para diminuir as choradeiras enquanto os prisioneiros estão sob a sua guarda.
Assim, salvamos os diamantes, nosso único capital, que será fundamental para sobrevivermos à guerra. Iremos
diretamente ao apartamento no qual residimos oficialmente. Retiraremos o que guardamos na vizinha, e mudaremos
ainda hoje para nossa nova moradia. É arriscado demais permanecermos, mesmo que seja por mais um dia, no
apartamento que os nazistas conhecem.
Posteriormente, souberam que todos os presos na La Citadelle foram deportados naquela mesma segunda-feira.
Ninguém soube para onde foram enviados... Nenhum deles voltou vivo... jamais...
30
CAPÍTULO 14
s Janowskis foram morar na nova casa, onde ficaram durante quase três anos.
O dono do imóvel comprava tudo o que precisavam. A única pessoa a visitá-los era o amigo e companheiro da
Resistência, o Sr. Devoisier. Quando precisavam de dinheiro, entregavam-lhe mais um diamante, ele o vendia e
trazia o resultado da operação. Quase nunca saíram à rua.
Eram anos cheios de medo. Qualquer barulho os assustava. Ninguém tinha a menor idéia do que o dia seguinte
poderia trazer. Sabiam os Janowskis que a área onde moravam estava perto das linhas do trem, e, portanto, era pouco
habitada e fracamente movimentada, o que diminuía os riscos de algum vizinho Rexista perceber a presença de
pessoas que nunca saíram à rua. Mas esta casa, situada em zona militarmente estratégica, poderia despertar a atenção
de soldados alemães que patrulhavam constantemente as áreas vulneráveis à sua segurança: havia sabotadores da
Resistência que costumavam explodir as estradas de ferro...
Além do medo constante, o que mais incomodava era o tédio, pois nada é mais destrutivo do que não ter o que
fazer.
Para as duas meninas, os efeitos foram ainda mais castrativos: não iam à escola, não havia ninguém com quem
brincar, nenhuma outra criança para conversar. Só lhes restava ficarem sentadas, lendo, procurando manter-se
ocupadas.
Nada acontecia em suas vidas... Só havia o medo paralisante que os acompanhava desde o acordar até a hora de
deitar.
Lentamente, os meses foram passando. Pelo rádio, os Janowskis acompanharam o desenrolar da guerra.
Inicialmente, sofreram com as constantes derrotas militares dos aliados. Só lá pelo final de 1942 a sorte inverteu-se. A
partir de então, regozijavam-se com as boas notícias vindas de todas as frentes de batalha: vibraram com o
esmagamento do exército alemão em Stalingrado, com o aniquilamento dos blindados de Rommel na África, com o
desembarcamento dos aliados na Itália e, posteriormente, no norte da França.
A partir deste momento, sentiram que tudo estava mudando. Perceberam que tinham reais chances de sobreviverem
à guerra.
Ouviram pelo rádio que os alemães estavam evacuando a Bélgica. Das janelas, viram oficiais alemães
reposicionarem todos os veículos, para fugirem em direção à Alemanha. Os outrora tão orgulhosos nazistas estavam
desorganizados e apavorados!...
Até em sua casa, tão afastada, dois soldados alemães tocaram a campainha. Não estavam mais interessados em
prender judeus, só procuravam bicicletas para poderem fugir mais rapidamente...
O
31
CAPÍTULO 15
m setembro de 1944, os primeiros tanques americanos desfilaram pelas ruas de Liége.
Estavam livres! Durante uma semana a população inteira festejava a libertação de sua cidade!!
Foram dias de alegria delirante, de regozijo e de júbilo!!!
Mas a euforia foi passando, e as necessidades da vida normal fizeram-se sentir.
Rafael sabia que tinha que reorganizar a sua vida e a da família. Tinha que encaminhar as filhas no mundo novo
que se abria para elas. Durante estes anos, tinha gasto a maior parte do capital que economizara antes da guerra. Só
restavam-lhe os últimos três diamantes, por sinal, os menores.
Assim,
precisava
pensar
em
como
voltar
a
ganhar
o
sustento
da família.
Devido às situações anormais que costumam ocorrer logo após uma guerra, Rafael conseguiu novamente, e em
bem pouco tempo, reunir um novo capital. Foi muito hábil e criativo nos negócios. Vejam só o que conseguiu, quando
conheceu um oficial americano, o Stevens. Este trazia semanalmente de Paris suprimentos para o exército americano,
sediado em Liége. Ele não corria risco algum quando escondia em seu caminhão, em cada viagem que fazia para o
exército, mercadorias que se encontravam facilmente em Paris e que faltavam em Liége.
Steven descarregava-as na casa de Rafael, que as revendia nos cafés da Place Saint Lambert.
Quando, após poucas semanas desta atividade clandestina, Steven foi transferido para uma outra cidade, os dois já
tinham ganho um bom dinheiro.
Logo em seguida, Rafael montou uma nova operação, mais lucrativa ainda. Ela funcionava da seguinte forma:
Rafael começava por travar amizade com alguns soldados, de preferência judeus. Convidava-os à sua casa, onde
Helena cozinhava o dia todo, preparando comidas caseiras deliciosas. Os soldados, tanto tempo fora dos lares,
apreciavam o trato familiar e passavam o tempo livre na casa dos Janowskis. Este relacionamento pessoal
aumentava os laços entre os soldados e Rafael, que então lhes explicava que todo soldado americano podia trocar
no banco militar os francos belgas, que possuía a razão de 30 francos por dólar, moeda que valia, no mercado livre
local, 100 francos. Assim, Rafael dava aos soldados 3.000 francos belgas, que estes trocavam no banco militar por
100 dólares, que Rafael revendia na cidade por 10.000 francos. A operação, que levava poucas horas, dava um lucro
de 7.000 francos, que Rafael dividia com os soldados.
Esta transação não oferecia risco nenhum. Era inteiramente legal. O êxito dependia tão somente da honestidade das
duas partes: que o soldado não fugisse com o dinheiro que Rafael lhe adiantava e que Rafael entregasse ao soldado a
sua participação nos lucros.
Devido à relação quase familiar que os Janowskis criavam com os soldados, não houve nenhum caso de
desonestidade.
Enquanto o banco militar praticava uma taxa de câmbio tão irreal, Rafael e os soldados ganharam uma verdadeira
fortuna.
Devagar, as situações excepcionais de pós-guerra acabaram-se. Aos poucos, tudo entrava na normalidade.
Estávamos já no ano 1947, mais precisamente no dia 27 de julho. A guerra terminara há uns dois anos. Seus
pesadelos começavam a sumir.
Rafael estava feliz, muito feliz mesmo! Esta noite estava oferecendo um jantar festivo em honra ao casamento da
filha Lili.
Rafael convidara mais de 400 pessoas. Estava cumprimentando os amigos conforme vinham chegando.
Entraram juntos seus antigos superiores da Resistência, os senhores Renard e Devoisier, acompanhados das
esposas e de um outro cavalheiro, que Rafael não conhecia.
Seus amigos apresentaram-no:
– Pedimos ao senhor Vandervelde que nos acompanhe. Ele tem uma mensagem para você.
A orquestra tocava as músicas da moda. No centro do salão, os convidados dançavam animadamente... Todos
estavam alegres. O champanhe corria livremente...
Lá pelas 11 horas da noite, os senhores Vandervelde, Renard e Devoisier aproximaram-se do palco improvisado,
onde os músicos estavam instalados.
E
32
O senhor Vandervelde solicitou-lhes que, ao terminarem a música, parassem de tocar. Silenciando a orquestra, os
pares dançantes voltaram às suas mesas. O senhor Vandervelde anunciou então pelo microfone:
– Estou aqui numa missão oficial. Venho a mando do Ministro da Guerra e da Coroa Real. Solicito ao senhor
Rafael Janowski que se aproxime.
Quando Rafael chegou ao palco, continuou:
– Estão ao meu lado os senhores Joseph Renard e Pierre Devoisier, respectivamente presidentes de dois núcleos da
Resistência, conhecidos como “Zero O.K.” e “Les Violettes”. Em nome do Rei Bauduino e por recomendação do
Ministro da Guerra, entrego ao senhor Rafael Janowski a Medalha da “Ordem da Coroa”, que se juntará à Medalha
por Mérito Classe A, que o senhor Rafael já ganhou. O senhor Rafael Janowski fez jus à medalha “Ordem da Coroa”
pelo patriotismo e coragem que demonstrou durante a ocupação nazista, empenhando-se a fundo nos dois grupos já
citados, e cujos presidentes estão aqui comigo, prestando-lhe uma justa homenagem.
Dirigindo-se à orquestra, o senhor Vandervelde ordenou:
– Vamos ouvir a Brabançonne!
Enquanto a orquestra tocava o hino nacional belga e todos os presentes, de pé, acompanhavam a música, os
pensamentos de Rafael divagavam. Via o avô abençoando-o quando emigrou da Polônia. Pensou: “Sua benção, meu
querido avô, deu-me muita força e ajuda-me até hoje. Vê aonde cheguei: eu, um imigrante pobre, sem qualquer
profissão, consegui uma sólida posição econômica. Acabo de casar a primeira filha. Sou respeitado pela minha
comunidade e recebo honrarias até do governo, cuja nacionalidade adquiri por naturalização.”
Rafael saiu do devaneio pelos aplausos dos presentes... Viu a esposa, as filhas, o genro, felizes e orgulhosos.
“Realmente, estes foram anos de lutas e de glórias...!”
33
EM HOMENAGEM A
JACOB
DYMETMAN
(1899 – 1957)
CHANA
DYMETMAN
(1900 – 1942)
34
CAPÍTULO 1
o início deste século, a maior parte do povo judeu vivia espalhada pelos países da Europa Oriental. A grande
maioria, profundamente religiosa, vivia imersa no estudo das escrituras sagradas, formavam grupos fe-chados sem
qualquer interesse pela cultura ocidental, o que os levava a ter pouco contato com os demais povos da região.
Eram muito pobres. A maioria era pequenos artesãos ou comerciantes am-bulantes.
Um virulento anti-semitismo grassava por todos os cantos.Esporadica-mente surgiam pogroms, que costumavam
terminar em saques e mortes. Como na Idade Média, judeus ainda eram acusados de assassinato ri-tual. É famoso o
processo Beilis, que se encerrou com uma condenação à morte: o tribunal aceitou o argumento de que os judeus, para
fabrica-rem Matsot, usavam sangue fresco de uma criança cristã, que tinham acabado de assassinar...
Foi neste clima de hostilidades que meu pai nasceu, em Varsóvia, capital da Polônia. Lá vivia uma grande
população judaica, concentrada em pou-cos bairros.
Seguindo o costume dos judeus da época, a família de meu pai, que se chamava Jacó, era numerosa: mais de dez
irmãos e irmãs. Meu pai me contava sempre que a sua mãe, e uma de suas irmãs, foram interna-das no mesmo dia e na
mesma maternidade, dando ambas à luz na mesma hora...
A única lembrança que me resta da família de meu pai é uma visita à casa de meu avô.
Meus pais, dias seguidos, prometiam-me um prêmio:
“Mordchele, você só vai poder visitar o avô Menachem Mendel se você se comportar direitinho: vai comer a sopa
toda, manter as unhas bem limpas, e ser muito comportado. Se não, você não vai visitar o avô, e vai perder a
oportunidade de ver e ouvir o único rádio existente no bairro. Mas, você sabe o que é um rádio?” – perguntavam eles, e
respon-diam em seguida: “– É a última invenção da tecnologia moderna, é algo de inacreditável! De uma caixa de
madeira preta saem as mais maravilho-sas músicas! E você pode até escolhê-las! Não é incrível?”
Eu fazia de tudo para obter o tão sonhado prêmio: ver o único rádio da redondeza!
Esforçava-me ao máximo. Tomava todo cuidado, fazendo tudo como meus pais o queriam.
Chegou
o
grande
dia,
vestiram-me
roupas
novas:
íamos
à
casa
do vovô!
Lembro a escada íngreme que subimos até chegar ao apartamento dele.
Quando vi meu avô, assustei-me: meu Deus, como era alto! Um gigante, de barba enorme!
Logo reparei em suas mãos: mãozonas de gigante, com dedos fortes e ossos largos que facilmente quebrariam
qualquer ser humano, especial-mente os de uma criança como eu!
Meu avô levantou-me e sentou-me em seu colo.
Pensei que fosse desmaiar de medo, mas, olhando em seus olhos, per-cebi, de repente, o quanto eu estava errado...
Meu medo não tinha qual-quer razão de ser! Vi olhos cheios de amor e de bondade. Vi a alegria e o contentamento
espalharam-se pela sua face...
Ele abraçou-me, acariciou-me, deixou-me brincar com a barba. Sua mãozona de gigante, de repente, transformouse. Com uma delicadeza inimaginável, colocou em meus ouvidos os terminais de dois cordões pretos, dos quais saíam
as mais belas músicas...
Minha mãe chamava-se Chana em hebraico, ou Anna em polonês. A fa-mília dela, lá pelo ano de 1907,
emigrou para a Dinamarca, pois a situa-ção em Varsóvia tornara-se cada vez mais difícil. Naquela época, a
Po-lônia pertencia à Rússia, que acabara de perder a guerra contra o Ja-pão.
E quando o Czar perde a guerra, quem paga a conta é o povo russo, que, por sua vez, estava acostumado a
descontar as frustrações no in-defeso povo judeu.
Foi o acirramento da persecução contra os judeus que impeliu meu avô materno, o Sr. Benjamin, a emigrar para
Copenhaguen. Entretanto, ele não aguentou muito tempo, pois lá havia poucos judeus, as sinagogas funcionavam só
esporadicamente, e era impossível encontrar comida Casher.
Meu avô Benjamin preferiu voltar para a miséria da Polônia a con-tinuar na Dinamarca, levando uma vida que
carecia de conteúdo judaico.
E assim, por estas e outras imponderabilidades, meus pais encontraram-se em Varsóvia. Conheceram-se e
passaram a namorar. Eram ainda bem jovens: meu pai com 24 anos, minha mãe com um ano a menos.
N
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Casaram-se e logo tiveram um filho, que permaneceu filho único: eu, a quem deram o nome hebraico de
Mordechai, ou Mieczyslaw, em polonês.
Como já o disse, a vida não era nada fácil para os judeus em Varsóvia. Meus pais, assim que se casaram,
esbarraram em dificuldades econô-micas e no anti-semitismo feroz.
A Polônia, que acabara de obter a sua independência da Rússia, instituiu um regime semi-ditatorial de direita. Na
Rússia, entretanto, instalou-se o comunismo.
Uma série de revoluções sacudiam toda a Europa Oriental, onde diver-sos exércitos nacionais e particulares
procuravam, à força, impor as suas idéias políticas.
E sempre que a desordem reina, as populações desorientadas do leste europeu estavam acostumadas a procurar o
seu bode expiatório favo-rito: os judeus!
Assim, a Polônia editou uma série de leis discriminatórias contra o nosso povo, entre as quais a proibição do abate
Casher e a lei conhecida como “numerus clausus”, termo jurídico latim que significa que (números = o número) de
judeus que podem frequentar a universidade está (clausus = fechado). Por força desta lei, os judeus, na prática, não
tinham qualquer acesso à faculdade na Polônia.
Meu pai, nascido numa família numerosa e pobre, nem sonhou em estu-dar. Bem cedo teve que ajudar no sustento
do lar. Assim, já aos dez anos de idade, passou a trabalhar.
Mas que tipo de serviço um rapazinho tão jovem é capaz de executar?
Só o de ajudante em alguma lojinha pequena...
Foi assim que ele começou. No decorrer dos anos, passou a trabalhar em diversas casas de tecidos, todas de
pequeno porte, e onde ele era o único empregado. Com o passar do tempo, foi conhecendo os macetes do ramo.
Ao casar-se, tornou-se intermediário entre os pequenos comerciantes que conhecera, procurando quem possuísse
mercadorias encalhadas, pontas de estoque, para revendê-las a comerciantes do interior do país.
Infelizmente, por não ter capital próprio, não conseguia ganhar o sufici-ente para sustentar a sua pequena
família.
A minha mãe só pode terminar um curso de técnica em odontologia. Quando começara este estudo, era
permitido ao formado naquele curso executar todos os trabalhos dentários, mas quando ela terminou o es-tudo, a lei
mudou, proibindo ao técnico substituir o dentista, que era diplomado pela faculdade.
Meus pais, vendo-se em sérios apuros financeiros, resolveram seguir o exemplo de milhares de outros
correligionários: emigrar da Europa Ori-ental.
Desde o final do século passado, levas e mais levas de judeus espalha-vam-se por todos os cantos do mundo. A
maioria preferia os Estados Unidos, então chamados de “Goldene Medine”, ou seja “País de Ouro”.
Mas agora, no ano de 1930, os Estados Unidos dificultavam a imigração de quem nascera na Europa Oriental.
Meus pais lembraram-se de um amigo, o Sr. Dobzinski, que há um ano tinha emigrado para a Bélgica, por ter
uns primos bem sucedidos mo-rando lá.
Assim formava-se a corrente de emigração, um elo puxando o outro, cada família judaica ajudando a outra a emigrar e
estabelecer-se no novo lar.
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CAPÍTULO 2
o ano de 1930, estando eu com 6 anos de idade, meus pais decidiram dar o grande passo: emigrar da Polônia,
para tentarem a sorte na An-tuérpia, Bélgica.
Lembro-me da nossa primeira moradia: um só quarto, com direito ao uso de um banheiro coletivo, situado 3
andares abaixo.
De imediato, meus pais puserem-se a trabalhar: meu pai, como feirante, vendendo tecidos e confecções; minha
mãe, na sua profissão de “den-tista”. Na Bélgica, as restrições para quem só possuía diploma de téc-nico eram ainda
mais rigorosas. Mesmo assim, minha mãe sabia não ter outra opção: tinha que completar o orçamento familiar! Por
isto, arris-cava-se, exercendo clandestinamente a sua atividade. Nestas circuns-tâncias, só podia encontrar pacientes
entre os recém-imigrados, pobres demais para poderem pagar um dentista legalmente diplomado.
Geralmente, minha mãe não recebia dinheiro vivo pelo seu trabalho. Tinha que contentar-se com negócios feitos a
base de troca. Assim, minha mãe obturava três dentes pelo fornecimento de um litro de leite pelo prazo de dois meses,
ou colocava uma ponte dentária por cinco pãezi-nhos durante um ano.
A mim, matricularam-me numa escola judaica, similar ao Bialik de São Paulo.
Passados poucos meses, meus pais começaram a equilibrar-se econo-micamente. Mudamos para um apartamento
de tamanho normal, na Pro-vinciestraat, do qual lembro muito bem, devido à garagem que estava ao lado. Na frente
dela, eu e um grupo de moleques costumávamos jogar bola, até que um dia... quebramos a vidraça da fachada...
Naquela noite, fui dormir com o traseiro dolorido e o estômago vazio...
Na tarde seguinte, incorrigíveis, voltamos a jogar bola no mesmo lugar!
“Vamos aproveitar até que coloquem a nova vidraça...”, dizíamos uns aos outros.
A vida corria mansa e gostosa, cheia das travessuras que toda criança pratica. Assim...
Lembro do episódio Iukele, que deixou um gosto amargo, mas serviu-me de lição.
Iukele é um diminutivo de Jacó, contendo uma conotação de menos-prezo.
O Iukele da Antuérpia era o dono de uma pequena venda de secos e molhados, situado numa das ruas pela qual
passávamos diariamente, indo e voltando da escola.
Iukele tinha uns 25 anos de idade, era muito alto e magro, um rosto sempre triste, colocado sobre um longo
pescoço. Seus braços e pernas batiam o vento ao gesticular, lembrando as asas de um moinho de vento.
Nós, as crianças da escola, o considerávamos retardado mental, e sem-pre zombávamos dele quando passávamos
pela sua loja. Repetíamos uma anedota que circulava a seu respeito. Nela, Iukele explicava aos amigos:
“A vida é muito cara na Antuérpia, o que leva todo mundo a fazer eco-nomias. O cavalo que puxa minha charrete
de entregas me custa caro demais, portanto, tenho que ensiná-lo a comer menos. Agora, inventei um modo infalível
para conseguí-lo: todo dia diminuo em dez por cento a quantidade de aveia que lhe dou”.
Passados uns dias, Iukele lamentava-se:
“Mas que cavalo burro o meu! Nunca vi alguém tão estúpido assim! Consegui habituá-lo a comer cada dia menos,
mas a partir de hoje sua aprendizagem acabou, pois ele estava acostumado a não comer mais nada e veja... ele acaba
de morrer! Justo agora! Mas como é possível ser tão burro assim, morrer justamente no dia em que terminou de
aprender o que todo bom cavalo deveria saber desde que nasce: não comer nada!?”
A nossa turma resolveu pregar um bom susto no Iukele:
Na volta da escola, a classe toda entrou na loja dele, cada um pergun-tando preços das mercadorias expostas.
Iukele sentiu que algo estava errado. De repente, havia gente demais. Ele ficou nervoso, não sabia o que fazer.
De repente, dois do grupo saíram correndo da loja, como se tivessem roubado alguma mercadoria.
Iukele, num ato reflexo, correu atrás dos “ladrões”, dei-xando a loja abandonada. Não pensou nos outros quinze
moleques que permaneciam no estabelecimento...
Sabíamos que as chaves da loja estavam escondidas no fundo de uma gaveta. Todos nós, menos um, saímos da
loja. O último, o menor da turma, fechou a porta por dentro, deixando as chaves na fechadura. Ele saiu da loja através
da pequena janela do banheiro, pela qual nenhum adulto poderia passar...
Iukele não conseguiu prender nenhum dos dois fugitivos que, assim que se certificaram que Iukele abandonara a
loja, dispararam em direções opostas.
N
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Ofegante, Iukele foi voltando para a loja. De repente, percebeu o que acontecera: a porta trancada por dentro e
todas as crianças na rua, rindo e zombando dele!!
Iukele sentou-se no degrau da porta, abaixou a cabeça, e desatou num choro silencioso...
De repente, percebemos a crueldade da brincadeira...
Envergonhamo-nos... Arrependemo-nos...
O mesmo rapaz franzino passou novamente pela janela do banheiro, en-trou na loja e, de dentro, destravou a porta.
Iukele ficou com medo de entrar: olhava com olhos assustados, receoso de uma nova humilhação, até ver que todos
nós, cabisbaixos, estávamos nos afastando, voltando para as nossas casas.
Desde então, nossa classe protegeu o Iukele. Não deixamos ninguém zombar dele, e passamos a fazer compras só
na loja dele. O nosso ar-rependimento foi sincero... e acabou tornando-se lucrativo para Iukele.
Quando cresci, pude constatar que ele não era nem bobo, nem retar-dado. Era simplesmente fisicamente fraco, e
educado demais para saber como enfrentar um bando de moleques maldosos.
Numa outra noite, tive um vexame ainda maior.
Como eu era ótimo aluno, os pais de meus colegas de escola sempre me citavam como exemplo para seus filhos, o
que envaidecia meu ego, mas incomodava os meus colegas.
Num domingo à tarde, fui ao cinema com meu melhor amigo. Tínhamos então uns dez anos de idade e escolhemos
um cinema afastado de nosso bairro, na Turnhoutsche Baan, onde ninguém nós conhecia, e onde ne-nhum judeu
morava. Estávamos preparados a “botar para quebrar”, e não queríamos que alguém que nós conhecesse, a nós ou aos
nossos pais, nos visse.
Assim que a sala escureceu, passamos a fumar. Sentamo-nos perto de um grupo de mocinhas de nossa idade e
puxamos conversa. Algumas levantaram-se, reclamando de nossa falta de educação em fumar e con-versar num
cinema, quando o filme estava sendo exibido. Outras, porém, gostaram de nossa ousadia, e nós incentivaram,
respondendo com risa-dinhas a nosso avanço. Logo criou-se uma enorme confusão. Alias, o público juvenil que lotava
o cinema aos domingos à tarde torcia por es-tas desordens, e fazia de tudo para aumentá-las, criando novos focos de
baderna.
A luz do cinema ascendeu-se. O lanterninha apareceu, e expulsou-nós. Sim, expulsou-nos, a mim e a meu amigo!
De cabeça erguida, saímos do cinema. Estávamos radiantes. Nenhum de nossos colegas tinha obtido tamanho
sucesso! Ser expulso do ci-nema, num domingo à tarde, com a sala totalmente lotada!
Só que não podíamos adivinhar que um de nossos colegas de classe, cujos pais sempre o recriminavam por ele ter
notas baixas, estava no mesmo cinema. Ele correu para casa e contou tudo para seus pais. Es-tes, que sempre se
sentiam inferiorizados na frente dos meus, foram vo-ando para minha casa, contando tudo que acontecera no cinema...
Quando voltei para casa, percebi logo que algo de grave tinha ocorrido. Nunca poderia imaginar que meus pais
soubessem o que acontecera num bairro tão distante, onde judeus nunca apareciam. Assim, quando meus pais me
interrogaram, menti, menti descaradamente... Até que meu pai me revistou e encontrou o maço de cigarros quase
vazio...
Foi um desastre...
Estas eram simples travessuras, típicas de minha idade; conforme eu fui crescendo, também elas foram
assumindo uma conotação mais adulta.
Assim...
Com uns treze anos de idade, fui passar férias num hotel em Heide, uma estância comparável a Poços de Caldas.
Ao anoitecer, saí pela janela de meu quarto, situado no primeiro andar, segui pelo telhado e tentei forçar a janela do
dormitório da mais jovem das arrumadeiras. Só que eu não me dei conta de que a iluminação dos jardins era suficiente
para uns hóspedes me verem andando agachado pelo telhado...
Desta vez, não fui expulso do hotel: eu era um hóspede pagante!... Quem perdeu o lugar, coitada, foi a
arrumadeira!
Depois de relatar os meus pecados “menores”, vou contar casos típicos de anti-semitismo, com os quais todo judeu
tinha que conviver. Pretendo, através destas curtas histórias, dar uma idéia da vida na Antuérpia, e de como a praga
anti-semita e a nossa total vulnerabilidade moldava os ju-deus da Galut, antes da existência do Estado de Israel.
A partir de meus oito anos de idade, eu já ia sozinho para a escola. O meu caminho passava frente à uma
outra, frequentada por jovens católi-cos.
Todo dia, ao passar frente à escola cristã, eu via na rua um aglomerado de alunos aguardando o toque da
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campainha, sinal de que as aulas iam começar.
A multidão de crianças, ao me verem passar, sabiam que eu era judeu, pois eu estava a caminho da escola
judaica, situada um pouco adiante.
O que acontecia todo dia?
A turma parada na calçada passava a zombar de mim, a me xingar de vuile jood (judeu sujo, em flamenco). Às
vezes atiravam meu boné para longe, faziam me tropeçar, ou arrancavam-me a maleta com os livros escolares,
espalhando-os no chão. Outras vezes, empurravam-me para me fazer cair.
Felizmente, eles não ultrapassaram certos limites e nunca me machuca-ram para valer.
O que poderia eu fazer? Como podia eu reagir?
Só me restava levantar-me, juntar as minhas coisas, e continuar an-dando em direção à minha escola...
Passados tantos anos, refletindo sobre meu comportamento, eu me per-guntei: sabendo que eu ia apanhar, por que
continuava eu a passar, dia-riamente, frente à escola católica? Teria sido tão mais fácil pegar um outro caminho,
mesmo que mais longo!
Com um pouco de introspecção, percebi ter sido esta a minha maneira de lutar contra os anti-semitas. Não tendo
como enfrentá-los fisicamente, nem a quem recorrer, fiz questão de não ceder terreno, de não deixar intimidar-me.
Preferi apanhar a fugir!
Outro caso típico:
Eu e um outro amigo meu estávamos fora do bairro judeu. Era inverno, final de tarde de sábado, já escurecendo. A
neve caía, cobrindo tudo de branco.
De repente, uma turma de garotos apareceu. Começaram a nos provocar com o clássico insulto vuile jood, para
depois passarem a bater em nos. Éramos dois contra uma dúzia e, desta vez, a coisa ficou feia. Apanha-mos muito, o
gelo derretido tingindo-se com o sangue de nosso nariz.
A turma só parou de bater em nós quando um guarda da polícia apare-ceu e afugentou os moleques.
Com o guarda de testemunha, fomos à delegacia. Pedimos a punição dos agressores.
O delegado mandou-nos embora, justificando sua atitude:
É só uma simples briga de crianças mal-educadas...
Mas nós estávamos ensanguentados, e tínhamos as roupas rasga-das...
Um outro caso:
Eu estava de férias em Heide, num pequeno lugarejo plantado no meio de pomares e pastos. Eu acabara de ganhar
uma bicicleta nova, a primeira de tamanho adulto.
Feliz da vida, lá estava eu pedalando através dos campos.
De repente, cruzei com uma turminha de ciclistas de minha idade. Eles não hesitaram: investiram contra mim,
derrubaram-me, quebraram a mi-nha bicicleta, e bateram em mim até estarem cansados demais.
Rindo, xingando-me de vuile jood, foram embora e eu tive que empurrar até o hotel a minha bicicleta, que, embora
“nova”, estava toda quebrada. Cheguei no meu quarto com machucados pelo corpo todo.
Felizmente, não tive nenhum osso quebrado, e os ferimentos, apesar de sua aparência, revelaram-se superficiais.
Depois de poucos dias, eu estava de novo pedalando na minha bicicleta consertada! Só que eu não mais me atrevia
a sair do perímetro ur-bano!
Qual o padrão que se vê repetido nestes exemplos?
O anti-semitismo permeava o ar da Antuérpia, incutindo nos jovens um ódio irracional contra o nosso povo.
Os hooligans só nos atacavam fora do bairro judeu, e ainda quando es-tavam em ampla maioria. Também nunca
chegavam a nos machucar ao ponto de ficarmos seriamente feridos.
Era esta a vida dos judeus na Antuérpia!
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CAPÍTULO 3
ssim, os anos foram passando...
Paulatinamente, meus pais foram melhorando a sua situação econômica. Minha mãe deixou de ser “dentista”, não
por querer abrir mão deste ga-nho adicional, mas simplesmente por falta de pacientes: seus únicos clientes
potenciais, os imigrantes, melhoraram de vida e já dispunham de recursos suficientes para contratarem profissionais
legalmente habilita-dos.
Meu pai iniciou a atividade de feirante com estoque pequeno: também, quem não tem capital próprio, tampouco
consegue crédito!
Sua vida era bastante dura. Especialmente nos primeiros tempos, quando trabalhava nas feiras mais afastadas, já
que lá o lucro era maior. Duas vezes por semana ele saía de casa às 3 horas da madrugada, para chegar a tempo na
feira distante de Hasselt. Mais tarde, soube que meu futuro sogro, Rafael Janowski, pelo mesmo motivo, também
trabalhava na mesma feira de Hasselt... Os dois, enfrentando situações semelhantes, optaram pelo mesmo cami-nho:
não medir esforços!
Meus pais viviam parcimoniosamente e, assim, foram incorporando os lucros ao capital de giro, o que permitiu a
meu pai, paulatinamente, au-mentar a quantidade de mercadorias que levava à feira. E quanto maior era o estoque,
maiores tornavam-se as vendas e, assim, seus lucros iam crescendo.
Passados uns 18 meses, a barraca de meu pai já estava abarrotada de mercadorias, o que lhe permitiu passar a
poupar dinheiro vivo. Depois de mais alguns meses de muito trabalho e de uma vida sacrificada, meus pais viram-se
donos de um pequeno capital.
– É hora de começarmos um negócio de verdade – propôs meu pai.
– É isto mesmo. Chegou a hora de nosso filho orgulhar-se de seus pais: vamo-nos tornar donos de uma indústria,
por pequena que seja! – arre-matou minha mãe, com visível satisfação.
Estavam decididos: iriam abrir uma pequena fábrica de confecções.
Mas como iniciar uma indústria sem qualquer experiência?
Minha mãe, que era extrovertida, tinha muita facilidade em iniciar amiza-des novas, exatamente como meu futuro
sogro, que ela, evidentemente, não conhecia e, infelizmente, nunca chegaria a encontrar.
Sem delongas, minha mãe procurou relacionar-se com judeus recém-imigrados, donos de pequenas
confecções. Conversando com uns e ou-tros, ela, de “dentista clandestina”, transformou-se em “espiã
indus-trial”...
Em pouco tempo, descobriu tudo que precisava saber: os endereços das fábricas de tecidos, o tipo de confecções
que os lojistas procuravam, como calcular os preço de custo e de venda, quais as máquinas necessárias, e tantas outras
informações indispensáveis.
Meus pais alugaram um novo apartamento, bem maior, onde havia es-paço para uma oficina de costura: estava
localizado na Pelikaanstraat, a rua dos atacadistas em confecções.
No início, a “fábrica” contava só com 2 elementos: meu pai, o cortador e vendedor, e a minha mãe, a costureira e
passadeira...
Isto foi só o começo. Rapidamente, a fábrica foi crescendo. Depois de uns dois anos, meus pais já tinham umas dez
máquinas industriais de costura e uma produção razoável, que eles escoavam pelo país todo. Eles se especializaram
em vestidos de verão, e obtiveram resultados cada vez mais auspiciosos.
Além de estudar, eu também ajudava na fábrica: aprendi a consertar as máquinas e ainda fazia entregas e
recebimentos.
A vida corria mansa na cidade da Antuérpia.
Os judeus moravam numa área que abrangia uns 20 quarteirões, come-çando pela Pelikaanstraat, a rua onde
morávamos, estendendo-se até o Lange Kievitstraat. Os novos imigrantes abriam todo tipo de comércio, inauguravam
escolas e teatros judaicos, fundavam sinagogas; eles fala-vam o iídiche e mantinham as tradições e costumes
religiosos.
Meus pais, apesar de educados em lares ortodoxos, gradativamente, foram diminuindo a prática da religião: só
frequentavam a sinagoga nas grandes festas.
A
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O mais religioso em casa era eu. Quem foi meu mestre e guia que me levou para às nossas tradições foi o senhor
Dobzinski, aquele que in-centivou meus pais a emigrarem para a Bélgica.
Para mim, ele assumiu o papel de avô, por ser mais velho de que meus pais. Ele ensinou-me os costumes da
religião, introduziu-me no mundo da mística e da reza. Foi ele quem me ensinou a colocar Tefilin, a sentir a beleza e a
profundidade da Torá. Foi com ele que eu ia todo sábado para a sinagoga, porque meus pais não tinham tempo para
isto... precisavam trabalhar... (Como as coisas se repetem em todas as gerações...).
Inúmeras vezes, serviu de “mediador” entre mim e meus pais, de “prote-tor” contra as suas “arbitrariedades”. Entre
nós dois havia uma gostosa cumplicidade, eu sabia que sempre podia contar com o apoio dele (papel clássico de todo
bom avô...).
O senhor Dobzinski tinha dois filhos homens, seis e oito anos mais ve-lhos de que eu. Eram sionistas fervorosos,
muito ativos nos movimentos juvenis na linha do Mapam e, como tais, recusavam-se a seguir a linha religiosa do pai.
Assim, eu simbolizava para o senhor Dobzinski o futuro neto que ele gostaria de ter.
A ele devo muito, e lembro a bondade e dedicação que me demonstrou. Decorridos tantos anos, sinto uma enorme
tristeza pela sua falta de sorte, quando os nazistas ocuparam a Bélgica. Mas, sobre estes acon-tecimentos futuros, volto
a falar mais tarde.
Como todo jovem, interessava-me pela política, acompanhando o que estava acontecendo no mundo. Sabia que na
Alemanha, país vizinho da Bélgica, os nazistas, uma nova organização política, tinham tomado o poder, e que seu
líder, Adolf Hitler, era uma personagem carismática, venerado pelos seus seguidores como um verdadeiro deus.
Lembro ter ouvido diversos de seus discursos, regularmente transmitidos pelo rádio belga. Quando ele começava
a falar, sua voz fluía como mel, deixando ao ouvinte um gosto doce e agradável. As frases sucediam-se
harmoniosas e rítmicas. Havia algo de hipnótico na sua fala. As pessoas fi-cavam presas às suas palavras, perdendo
o senso do racional. Até eu, que, como judeu, era o alvo predileto de seus ataques, não podia impedir de me sentir
arrastado pelo som e a cadência de suas palavras. Mas, de vez em quando, Hitler descontrolava-se, entrava num
transe. Então sua vez tornava-se áspera, cortante, histérica. Nestes momentos, uma aluci-nação coletiva, uma
loucura contagiante empolgava os ouvintes, que, ce-gamente, aceitavam qualquer afirmação, ou sacrifício exigido
pelo grande líder, o fuhrer, Adolf Hitler!
As notícias que vinham da Alemanha a respeito dos judeus retratavam o lado paranóico do nazismo. Regularmente,
ouvia-se falar das atrocida-des praticadas pelos nazistas contra o nosso povo.
A partir do ano de 1937, refugiados judeus chegavam à Antuérpia. Pou-cos tentavam estabelecer-se na Bélgica. A
grande maioria vinha para nossa cidade, unicamente por ser um dos grandes portos internacionais, de onde partiam
navios para todos os cantos do mundo.
Cônsules de diversos países, especialmente os da América Central e do Sul, vendiam vistos de entrada. Os
refugiados alemães que possuíam dinheiro pagavam qualquer preço para obterem um destes vistos, o que lhes
permitia embarcarem legalmente para bem longe da Europa.
A comunidade judaica da Antuérpia fazia de tudo para ajudar os refugia-dos, dando-lhes apoio jurídico e
proporcionando-lhes alojamento e ali-mentação.
Eu era afiliado a uma organização juvenil sionista que colaborava ativa-mente com as entidades assistenciais.
Durante meses, ajudávamos ser-vindo mesas, lavando louças.
Um dia, meus pais disseram-me:
– Mordchele, você que está diariamente em contato com refugiados alemães no refeitório coletivo, convide um
deles para vir à nossa casa. Assim, vamos proporcionar-lhe um pouco de calor humano, e vamos obter dele
informações de primeira mão sobre o que realmente ocorre na Alema-nha. Há tantos boatos a respeito de atrocidades
alemãs, e quem pode realmente ter certeza de que elas, de fato, acontecem? Sabemos quanto os jornalistas gostam de
exagerar... nem que seja para venderem mais jornais...
Como se percebe, quem não quer acreditar, o que é mais do que normal, sempre encontra desculpas aparentemente
lógicas...
Nunca vou esquecer o vibrante apelo que o refugiado alemão fez a meus pais, e que estes... infelizmente... não
quiserem ouvir.
Lembro a cena:
Era um sábado a tarde. Subi com o senhor alemão ao primeiro andar, onde a fábrica estava instalada. Nesta hora,
não havia mais nenhum funcionário. Só meus pais ainda trabalhando, aprontando mais um pedido para a segunda-
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feira: minha mãe costurando num overlock, meu pai ve-rificando as peças que as costureiras tinham terminado de
manhã.
Quando entramos, meu pai puxou uma cadeira e pediu ao refugiado que se sentasse.
– Desculpe recebê-lo em nossa ambiente de trabalho – disse meu pai – mas, temos um pedido urgente para
entregar.
Após algumas frases de cortesia, o senhor alemão disse com a voz cada vez mais carregada de emoção:
– Não consigo entender os judeus da Antuérpia. Vocês estão sentados sobre um vulcão prestes a explodir e não se
mexem, fazem como se nada estivesse acontecendo! Permanecem aqui, assim, calmamente!! Fujam!! Fujam antes que
seja tarde demais! Vendam tudo e vão-se embora! Abandonem a Europa, ela está condenada para os judeus! Será que
vocês não têm pena de seu filho único?! Não percebem o pe-rigo mortal no qual o colocam?! É suicídio puro!!
Minha mãe, sacudindo a cabeça como se falasse a uma criança retar-dada que não entende nada, respondeu:
– Meu caro senhor, o senhor está totalmente transtornado. Será que não lê os jornais? Nós não corremos risco
algum. Hitler acaba de garantir sole-nemente que não atacará a Bélgica nos próximos 10 anos! É exata-mente por
causa de nosso filho que vamos permanecer aqui, na Bélgica. Nunca tivemos uma fase tão boa em nossas vidas. Na
Polônia, quase passávamos fome. Os primeiros anos na Antuérpia foram de muito sa-crifício. É só agora que
começamos a respirar e a construir um futuro para nós e para o nosso filho. Por que largaríamos tudo isto?
O refugiado alemão olhou para meus pais. Com ar resignado e voz de-sanimada, retrucou:
– Entendo vocês. Não é só vocês, mas ninguém aqui quer me ouvir. Eu não era melhor, também eu pensava assim,
quando ainda morava em Berlim. Também eu não quis acreditar no que Hitler escrevera em seu livro “Mein Kampf”.
Também eu pensava que ele nunca poria em prática o que preconizava. Vocês têm o mesmo direito de errar do que eu
e, in-felizmente, repetem o mesmo engano que cometi. Peço a Deus que vo-cês ainda achem um lugar para escapar,
mesmo com a perda de tudo que agora possuem, como infelizmente, ocorreu comigo. Pior será se encontrarem todas
as fronteiras fechadas...
Quando o refugiado alemão saiu, meus pais entreolharam-se:
“Será que somos confiantes demais? Será que este homem está com a razão?”
Infelizmente, a força da inércia e os problemas do dia-a-dia impediram meus pais a darem continuidade a estes
pensamentos. Eles voltaram a trabalhar duro, a economizar os lucros, tudo com a finalidade de garanti-rem um futuro
tranquilo e despreocupado...
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CAPÍTULO 4
m 1939, a tensão política subia na Europa. Marchas e contramarchas diplomáticas sucediam-se. Ameaças de
guerra pairavam no ar.
Em setembro, a Polônia foi invadida pela Alemanha. Imediatamente, a In-glaterra e a França declararam-lhe
guerra. Em poucas semanas, o exér-cito nazista ocupou a Polônia. Na fronteira com a França, escaramuças sem
qualquer importância sucediam-se; parecia que uma longa guerra de atrito se iniciara, similar a um período da
primeira guerra mundial que as mesmas partes tinham travado de 1914 a 1918.
Na Bélgica, a vida transcorria normalmente. Lógico, todo mundo sabia que Hitler havia solenemente garantido não
atacar a Bélgica. Assim, não havia qualquer perigo... Ninguém precisava preocupar-se!
A primavera de 1940 começou com muito calor.
Na primeira quinta-feira de maio, voltei para casa bastante irritado: à toa, tinha me envolvido numa briga com o professor de
francês. Ele, ao expli-car um texto de Flaubert, mandou que aprendêssemos todo o trecho de cor.
– De cor? – protestei – Para que decorar um texto? É só uma perda de tempo!... especialmente para nós, que
estamos cursando o último ano do Aténé Royal da Antuérpia.
– Você é bom aluno, Michel – respondeu o professor irritado. – Mas quem foi que pediu a sua opinião? Saiba que
conhecer trechos de bons auto-res de cor é a única maneira de captar a beleza da língua francesa, e de aprender a
expressar-se com elegância.
– Mas professor, o senhor mesmo disse outro dia que hoje não se aprende mais textos de cor, que a pedagogia
moderna manda o aluno entender a matéria, e não decorá-la feito papagaio. Assim...
O professor cortou-me a palavra.
– Basta, Michel! Já que foi você quem reclamou, será você o primeiro a recitar, amanhã, o Flaubert de cor, frente à
classe, e... cuide-se... serei severo...
Voltando para casa, lamentei a minha insistência. É verdade, geralmente o professor deixava-se levar pelos
alunos, só que desta vez, sua reação fora tão diferente! E agora teria que aprender este maldito texto de cor! Não
havia como escapar se eu não quisesse tirar zero em francês.
Mal eu podia adivinhar que acabara de assistir à minha última aula... Que nunca mais pisaria no Aténé Royal da
Antuérpia... Este texto bucó-lico, tão inofensivo de Flaubert, encerrou para sempre a minha juventude despreocupada.
De noite, quando fui deitar, continuei memorizando em voz baixa aquela página de Flaubert, enquanto a minha
raiva contra o professor crescia cada vez que uma frase me fugia da memória.
Provavelmente, adormeci logo.
De sobressalto, acordei.
“O que está acontecendo?” pensei. “Que barulheira infernal é esta?” perguntei-me. Tentei dormir de novo.
Impossível! O barulho era demais, e vinha de todos os lados.
Olhei pela janela: o dia estava raiando. Ainda meio-adormecido, percebi explosões no ar. Perplexo, saí da cama.
Fui para o dormitório de meus pais.
Também eles estavam acordando.
– O que será? – perguntaram-se – O que teria acontecido?!
Levaram tempo para entender que a guerra tinha estourado!
De madrugada, a Alemanha invadira a Bélgica. O exército nazista esma-gou facilmente as tropas belgas, e foi
ocupando território sem encontrar muita resistência. Grupos belgas pró-nazistas, os Rexistas, bem treina-dos e
organizados, ajudaram abertamente o exército alemão.
Meus pais ficaram atordoados. O que fazer? Ninguém sabia ao certo. Resolveram trancar a casa e viajar até a
fronteira com a França.
De trem, fomos para Ipres, pequena cidade belga, situada a poucos quilômetros da França. “Se os alemães
avançarem”, pensaram meus pais, “passaremos para o lado da França que, com certeza, vai parar o avanço alemão, tal
como o fez na primeira guerra mundial”.
Ficamos uns dias naquela cidade. Logo, porém, percebemos que os na-zistas estavam avançando rapidamente, pois
encontravam pouquíssima resistência. Nesta altura dos acontecimentos, não havia mais trens tra-fegando. Meus pais,
E
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por acaso, encontraram um casal de conhecidos da Antuérpia, a família Zysman, que possuíam automóvel. Mediante
um pa-gamento extorsivo, permitiram que entrássemos no carro deles, e se-guíssemos viagem juntos.
Atravessamos a fronteira com a França, distanciando-nos rapidamente da Bélgica. Infelizmente, o exército alemão
era mais veloz ainda! Em poucos dias, os nazistas cercaram todo o norte da França, imobilizando os exércitos que os
aliados ali tinham reunido; e também nós ficamos pre-sos no meio de toda esta confusão!
O caos era enorme. As tropas aliadas, assim como os refugiados que tinham abandonado seus lares, abarrotaram
todas as estradas. Ninguém podia avançar, nem recuar. Ninguém tinha para onde fugir!!
Ficamos alguns dias parados numa aldeiazinha, aguardando o rumo dos acontecimentos. Hospedamo-nos numa das
pequenas fazendas da re-dondeza. Ficamos o dia todo grudados no rádio, esperando a prometida contra-ofensiva
francesa. Infelizmente... ela só ficou na promessa... não se concretizou nunca.
Os dias eram muito quentes, e enquanto estávamos aguardando a tão sonhada ofensiva aliada, reparei que nosso
anfitrião tinha uma filha bem jovem, que vivia esbarrando em mim a toda hora e em todo lugar... Vi, ainda, que devido
ao calor, ela usava roupas muito decotadas... E aconteceu o que devia acontecer. Quando a moça me mostrou um
depósito abandonado, onde o pai guardava ferramentas, eu me aproveitei daquilo que me era oferecido: não numa
bandeja de prata, mas um chão de palha...
Após poucos dias, o exército francês rendeu-se, e assinou o armistício. Também para a França, a guerra terminara!
Não tínhamos outra alternativa a não ser voltar para a Antuérpia. Foi o que fizemos. Felizmente, encontramos tudo
em ordem. Tentamos recomeçar as nossas vidas. Da mesma forma que meu futuro sogro, fomos enga-nados pelo
maquiavelismo alemão: durante os dez primeiros meses do início da ocupação nazista, vivíamos normalmente.
Devagar, leis anti-semitas foram sendo promulgadas, cada vez num ritmo mais rápido, e com consequências mais
graves.
Para terem uma melhor ideia de como os alemães disseminaram o anti-semitismo, vou contar um fato que
presenciei: durante uma semana in-teira, o rádio anunciava que no próximo domingo, de manhã, às 9:00 ho-ras, seria
exibido em todos os cinemas do centro da cidade o filme “Der Jude Suss”, e que os ingressos seriam gratuitos. É
evidente que todos os cinemas lotaram.
O filme “Der Jude Suss” ou, em português “O Judeu chamado Suss”, era um filme de propaganda anti-semita que
durante duas horas de projeção focalizava todas as acusações clássicas contra os judeus. Terminada a exibição do filme, o
público foi-se reunindo na Keyserlei, principal artéria comercial do centro da Antuérpia. Carros distribuíam bebidas
gratuita-mente. Alto-falantes tocavam músicas nazistas que sempre terminavam com o grito: “Vamos fazer justiça com as
nossas próprias mãos! Vamos quebrar a arrogância dos judeus! Vamos saquear as suas lojas!”
Em seguida, os Rexistas distribuíram a todos bastões e sacos de pano “tamanho família”.
O povo na Keyserlei foi aumentando. Ao meio-dia, já havia uma multidão de mais de 5.000 pessoas, homens e
mulheres, todos carregando bas-tões na mão direita e sacos de tecido na esquerda. Escoltados pelos Rexistas,
dirigiram-se ordenadamente para o bairro judeu.
Para chegarem lá, tinham que passar pela Pelikaanstraat, onde nós ainda morávamos. Da janela do primeiro
andar, vi a turba passando. Eram tantos que levaram mais de uma hora. Quando a multidão chegou às ruas do
bairro judeu, os próprios guardas Rexistas passaram a que-brar as vitrines das lojas e os portões das casas,
facilitando o saque.
Mais de 50 judeus foram feridos; centenas de residências e de estabele-cimentos comerciais foram invadidos e
saqueados.
A tardinha, a polícia apareceu e... ajudou os últimos saqueadores a se retirarem... e a carregar o produto de sua
expedição...
No dia seguinte, os jornais trouxeram este cabeçário:
Polícia Protege Os Judeus Contra O Povo Enfurecido Que Clama Por Justiça.
O primeiro golpe pessoal que senti foi contra meu “avô”, o senhor Do-bzinski. Ele estava então com uns 50 anos
de idade e, por causa da barba, tinha o aspecto típico de judeu. Por este único motivo, um soldado alemão implicou
com ele quando ambos viajavam de bonde. O soldado, sem apresentar qualquer acusação específica, simplesmente
chamou a polícia e mandou prender o judeu de barba.
O senhor Dobzinski foi enviado para uma prisão na Antuérpia, onde permaneceu por uns seis meses, sem ter sido
interrogado uma única vez. Ele também nunca soube por que, de repente, o libertaram. Mas quando voltou para casa,
estava irreconhecível: magro, envelhecido, de barba raspada. Nunca mais se refez, permaneceu apático, quase não
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falava, só queria permanecer deitado na cama.
45
CAPÍTULO 5
nicialmente, meus pais pretendiam reabrir a fábrica. Os alemães, preci-sando urgentemente de uniformes militares,
faziam pedidos enormes a todos os confeccionistas e peleteiros locais, inclusive aos judeus. A mai-oria ficou
radiante: nunca tiveram tanto trabalho, nunca ganharam tanto dinheiro!
Meu pai, entretanto, pensou diferente:
“Não vou trabalhar para o exército alemão, seria uma verdadeira trai-ção! Mesmo que haja judeus produzindo
mercadorias para os nazistas, eu prefiro fechar a oficina e passar o período da guerra trabalhando como representante,
vendendo mercadorias para lojistas da cidade”.
Foi o que fez. Encaixotou as máquinas, e nos mudamos para um apartamento menor, situado numa rua fora do
centro comercial, na Van-den Nestlei, aguardando o fim da guerra.
Eu continuava estudando, cursando o último ano do Aténé Royal da An-tuérpia, preparando-me para ingressar na
faculdade.
Na sequência das leis anti-judaicas, surgiu uma proibindo alunos judeus de frequentarem escolas onde nãojudeus também estudavam. Na mesma época, o ocupante alemão criou o Judenraat, para ser o elo de ligação entre
o poder nazista e a comunidade judaica. Os alemães orde-naram ao Judenraat que abrisse escolas separadas para
judeus. Só bem mais tarde entendi que esta determinação fazia parte do plano maquia-vélico nazista de incutir
confiança aos judeus, fazer que acreditassem que mesmo após a guerra continuariam a viver normalmente, tão
so-mente segregados do restante da população do país.
O Judenraat reuniu todos os alunos judeus do último ano do Aténé da Antuérpia para prepará-los para serem os
futuros professores das cri-anças judias da cidade. Pretendiam criar diversas classes, de acordo com a faixa etária dos
alunos. Já que nos tornaríamos futuros pro-fessores a serviço do Judenraat, recebemos o status de funcionários desta
entidade oficial, e foi-nos entregue uma carteira emitida pelo go-verno alemão, qualificando-nos de “Nutsfuller Jude”,
ou seja, “Judeu útil ao governo alemão”. Só depois percebi que a criação de um grupo de judeus “privilegiados”
seguia a velha tática tornada famosa pelos antigos romanos: “divides ut imperes”, “divida teu inimigo e o subjugarás
mais facilmente”.
Mas para mim, jovem rapaz inexperiente, esta época foi até bastante di-vertida. Até então, eu sempre estudava em
escolas só para rapazes. Por ser filho único, eu tive pouco convívio com o sexo oposto. De repente, na escola do
Judenraat, e pela primeira vez, vi-me rodeado de mocinhas de minha idade, de uns 17 anos. Claro que apaixonei-me
logo... Não lembro mais o nome da moça, só de seus olhos românticos e de seu sorriso contagiante...
Infelizmente, esta não era uma época apropriada para romances. Rapi-damente as situações mudaram.
Abandonando a ordem cronológica, quero contar que revi a minha pri-meira namorada depois da guerra: ela
conseguira sobreviver! Adivinhem como? Efetuando um casamento branco, isto é, fictício, com um jovem não-judeu,
o que fez que os alemães não a prendessem logo nas primei-ras levas, quando iniciaram a deportação dos judeus.
Presenciando o que os nazistas faziam com o nosso povo, seu marido levou-a a procurar um escon-derijo, onde
permaneceu até o final da guerra. Quando reencontrei a mi-nha amiga, soube que seu “marido de aluguel” não queria
mais divorciar-se dela, a não ser que lhe pagasse uma segunda soma vultuosa, porque a primeira que recebera quando
se casaram fora gasta há muito tempo.
Enquanto estava me preparando para exercer o “professorado” para o Judenraat, eu visitava regularmente meu
“avô” Dobzinski, que permane-cia acamado. Na última vez que fui à sua casa, seu filho mais jovem, Henri, então com
uns vinte e poucos anos de idade, puxou-me para um canto e confiou-me em segredo:
– Michel, a situação na Antuérpia está cada vez mais apertada. Os na-zistas estão nos encurralando. Cada dia
surgem novas leis que tolhem nossa liberdade. Nunca sabemos o que o dia seguinte pode trazer. Agora só podemos
sair à rua com uma estrela de David amarela costu-rada sobre a roupa. Após às 19 horas, não podemos mais deixar as
nossas casas. Somos proibidos de sair da cidade. É demais, e o nosso grupo do Mapam resolveu agir. Planejamos
cruzar a Bélgica e a França para chegarmos na Suíça, país neutro, de onde vamos viajar para a Pa-lestina. Os detalhes
da operação foram elaborados pelos companheiros do Mapam suíço. Recebemos instruções detalhadas e vamos ter
todo o apoio logístico possível. Esta noite vamos sair de nossas casas. Vamos viajar com documentos falsos. Há
riscos, evidentemente, mas eu acre-dito que a probabilidade de chegarmos são e salvos na Suíça é pelo me-nos de
I
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75%. Mesmo assim, um do grupo apavorou-se na última hora e desistiu da viagem. Sua vinda para a minha casa neste
exato momento, Michel, parece um sinal dos céus. Por isto, se você o quiser, poderá substituir o colega medroso e vir
conosco. Você até se parece suficien-temente com a fotografia que consta nos documentos falsos de nosso
companheiro que se acovardou, o que permite você usá-los sem risco. Se tiver fibra, junte-se a nós. Dentro de 15
minutos saímos daqui, pois não podemos atrasar o grupo, o que obriga você, infelizmente, a tomar a sua decisão agora
mesmo, de imediato. Nossa viagem está dividida em etapas, cada uma com horários pré-estabelecidos, que não podem
mais ser alterados. Assim, caso você resolver juntar-se a nós, não terá mais tempo para voltar à casa de seus pais, nem
despedir-se deles pessoal-mente. Só poderá escrever uma carta e colocá-la no correio. É muito duro, mas é a única
chance que posso lhe oferecer.
Pensei um pouco e respondi:
– Estou triste por recusar, mas não vou acompanhar vocês. Não posso abandonar meus pais assim, de repente.
Voltei para casa. Não contei nada a meus pais. Mas já no dia seguinte, todo mundo sabia que Henri tinha
desaparecido de casa. A carta que ele deixou era curta, e continha estas poucas frases, que ficaram gravadas na minha
mente:
“Queridos pais, tal como o Abraão da Bíblia, ouvi um chamado que me disse: “Saia deste país, do lugar onde você
nasceu, da casa de seus pais e vá para a terra que lhe indicarei.”
Meus pais, perdoem-me tê-los abandonado assim abruptamente, mas estou indo para este país que Deus escolheu
para nós.
Quero ainda completar, a meu modo, o desejo milenar com o qual a Ha-gadá termina rotineiramente o Sêder de
Pêssach: “No ano que vem, a gente se encontra em Jerusalém” e eu acrescento: “... e se não for na Jerusalém terrestre,
então será na Jerusalém celeste, para onde con-vergem todas as almas dos justos e corajosos, que deram suas vidas “Al
Kidush Hashem”.
Assinado: Henri.”
Lamento profundamente ter que concluir este episódio informando que nunca mais se ouviu algo a respeito de
Henri. Após a guerra, nenhum de seus tios ou primos que sobreviveu recebeu qualquer sinal de vida dele. Assim, é
mais de que certo que morreu; ninguém sabe onde, nem como, nem quando.
Os demais membros da família Dobzinski foram todos deportados: o meu “avô”, sua esposa e o filho mais velho,
que tinha se casado no início da guerra, e cuja esposa estava grávida. Todos foram levados pelos nazis-tas... Nenhum
deles jamais voltou...
Espero que suas almas repousem em paz na Jerusalém Eterna, aquela que está nos Céus, com a qual sonharam e
que sempre almejavam al-cançar; os pais através das rezas, o filho, Henri, pelo idealismo e cora-gem.
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CAPÍTULO 6
oltando para a Antuérpia de 1942, lá pelo mês de agosto, meu pai rece-beu o seguinte telegrama:
“Senhor Jacó Dymetman,
O senhor deverá apresentar-se depois de amanhã, pontualmente às 7:00 horas da manhã, na estação ferroviária
central para prestar serviço em campo de trabalho pelo período de três meses.
Leve dois cobertores, roupas quentes e comida para os dois dias de via-gem. Caso desobedeça a esta ordem, o
senhor e sua família serão exemplarmente punidos.
Assinado: Alto Comando do Exército Alemão.”
Na vida há momentos em que sabemos que qualquer ato, por pequeno que seja, terá consequências irreversíveis
que vão determinar o curso de nossa existência.
Meus pais entendiam perfeitamente o alcance da decisão: obedecer ou não à ordem dos nazistas.
Para dificultar ainda mais a escolha, tinham bem pouco tempo para refle-tir.
Receosos de tomarem uma decisão errada, saíram na rua, foram con-versando com amigos, trocando ideias,
querendo inteirar-se do que os outros pensavam.
Muitos judeus tinham recebido um telegrama idêntico; a maioria achava que devia obedecer.
Quem – perguntavam – teria a coragem de desobedecer ao poder esta-belecido, que pode nós punir com a mais
dura das penas, a nós e as nossas famílias?
Meus pais, entretanto, não concordavam com esta opinião, e acabaram por encontrar um amigo que lhes apresentou um
conhecido seu, o se-nhor Albert, um não-judeu. Este revelou a meu pai que mediante um pa-gamento elevado, estava
contrabandeando judeus até a parte da França que não era ocupada pelos alemães. Ele disse que acabara de voltar hoje de uma
destas viagens, na qual tinha levado, de uma só vez, umas 20 pes-soas até a cidade de Lyon, na França Livre. Ele garantia, ainda,
que a rota que usava não oferecia risco algum, como o provava o fato de que ele, pessoalmente, acompanhava os grupos. Como
prova adicional de suas afirmações, mostrou cartas de pessoas que tinha contrabandeado, dirigidas a familiares da Antuérpia.
Por coincidência, meu pai conhecia um dos remetentes, assim como seu destinatário, que confirmou a vera-cidade das
informações.
O senhor Albert contou a meus pais que iniciaria uma nova viagem ama-nhã, e que ainda tinha três lugares
disponíveis.
– Tão rápido? Amanhã de manhã? Já? – perguntou meu pai, assustado pelo alcance da decisão e da rapidez com a
qual tinha que ser tomada.
– Sim. Mas, se precisarem de mais tempo para se prepararem, não há problema algum. Posso levá-los na
próxima viagem; daqui a quatro ou cinco dias estou de volta, e um ou dois dias depois, parto novamente. É só
vocês escolherem a data que melhor lhes convém.
– Ficamos com os três lugares para amanhã de manhã – resolveram meus pais, aparentando uma segurança que não
sentiam.
– Ótimo. Cada um pode levar o número de malas que quiser.
O senhor Albert ainda entregou a meus pais um carimbo e três cédulas de identidade virgens.
– Peguem estas carteiras, uma para cada um que vai me acompanhar. Como podem ver, são documentos para
cidadões de nacionalidade belga não-judeus; estão em branco e não têm fotografia. Vocês devem preenchê-los, colar
suas fotografias no lugar indicado, e carimbá-los com o carimbo que estou lhes entregando.
Meus pais voltaram para casa, discutindo os detalhes práticos: o que le-var, e o que fazer com o que deveriam
deixar.
Desde o início da guerra, meus pais tinham se preparado para qualquer emergência: tinham convertido todo o
capital em dólares e diamantes. Tudo estava escondido em vazios feitos nos sapatos ou costurado nas roupas: nas
bainhas, atrás dos botões, no enchimento dos ombreiras, etc.
Antes de saírem da Antuérpia, meus pais queriam colocar em segurança as suas máquinas e ainda resolver assuntos
pendentes. Decidiram en-tão que, no dia seguinte, só meu pai e eu viajaríamos, e que cederíamos o terceiro lugar para
um vizinho nosso, um jovem solteiro, chamado Aisic. Minha mãe seguiria dali a alguns dias, na próxima viagem do
Sr. Albert, e nós nos reencontraríamos na casa de amigos nossos, antigos resi-dentes da Antuérpia que, com a guerra,
V
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chegaram a Lyon e ali se esta-beleceram com uma loja de doçarias.
– É preferível os homens partirem imediatamente – opinou minha mãe. – Em época de guerra, são sempre eles os
mais visados. Para mim, que sou mulher, o perigo não está tão premente.
Durante muitos anos, acreditei que esta infeliz decisão de meus pais foi a causa direta de tudo que foi nos
acontecendo daqui para a frente. Sempre os culpei por terem dividido a nossa pequeneninha família, pois foi esta
separação que nos levou, os três, para os campos de extermínio nazista! Depois da guerra, durante muitos anos, fiquei
com este trauma: nunca permitir que a minha nova família se separasse; fazer de tudo para que permanecesse no mesmo
país, na mesma cidade.
Só que o destino não me ouviu...
Depois desta curta digressão, voltemos para a Antuérpia.
Meus pais chegaram em casa, levaram algumas caixas com objetos de valor para amigos não-judeus, para que os
guardassem até depois da guerra.
Ao vizinho Aisic, que nos acompanharia na viagem para a França Não-Ocupada, entregaram uma carteira de
identidade, ainda em branco. A mim, deram-me as duas outras, que iriam ser usadas pelo meu pai e por mim, para que
eu as preenchesse. Quando peguei minha carteira, esco-lhi um nome tipicamente belga, François Depauw. Na carteira
de meu pai, coloquei um outro nome bem belga, Peter de Smed, e anotei que ele nascera na cidade de Mortsel, famosa
pelo hospício que ali existe... Esta brincadeira infantil de usar sobrenomes diferentes para meu pai e para mim, que no
momento parecia tão inofensiva, trouxe-nos constan-tes problemas no futuro.
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CAPÍTULO 7
o dia seguinte, de manhã bem cedo, meu pai, nosso vizinho Aisic e eu saímos de casa, e dirigimo-nos ao lugar
combinado com o senhor Albert.
Sentimo-nos, ao mesmo tempo, amedrontados e felizes. Pela primeira vez de-pois de muito tempo, saímos
sem usar a estrela de David amarela. Até rasgamos as nossas verdadeiras carteiras de identidade, que mencio-navam
nossos nomes reais e ostentavam um enorme carimbo amarelo com a letra “J”, significando que o portador era Jude
(judeu, em alemão).
Sem que alguém nos parasse, chegamos ao local combinado, onde en-contramos um grupo formado por três
senhoras, umas dez crianças, e mais um jovem não-judeu, aparentando uns dezoito anos.
Ele aproximou-se, e apresentou-se:
– Meu nome é Jean. Meu pai, Albert, teve um imprevisto e não vai poder viajar conosco, assim serei eu o seu
guia. Não se as-sustem, não receiem nada. Eu sempre acompanhava o grupo nas outras viagens, e conheço todos os
macetes tão bem quanto meu pai. Sairemos em dois automóveis que estão à nossa espera. No primeiro vão viajar vocês,
os passageiros; no segundo, vamos colocar as malas.
Nós três nos entreolhamos. Não gostávamos nada do que estáva-mos ouvindo. O senhor Alberto não tinha dito que
viajaria conosco? Não era esta uma das provas de que a viagem não oferecia perigo algum? E quem era mesmo este
moço? Será que era realmente o filho de Albert? Não se pareciam em nada! E como confiar as nossas vidas a um
ra-pazinho de uns 18 anos?
Ficamos perplexos, indecisos.
– Não há outra opção – concluímos a contragosto – Se não nos arriscar-mos com este rapaz, teremos que voltar
para as nossas casas, e não há mais tempo hábil para procurarmos outro contrabandista.
Colocamos as malas no carro de trás, e subimos no outro, estacionado na frente. Assim que as mulheres e crianças
se acomodaram, os dois automóveis partiram, um seguindo o outro a curta distância.
Viajamos diretamente até a fronteira com a França. Ninguém nos parou no caminho. Ninguém perguntou nada. O
tempo todo, ficamos apreensi-vos, os olhos grudados na estrada. Será que alguém nos pararia? Pedi-ria documentos?
O que iríamos alegar? Teríamos a coragem de apre-sentar as novas carteiras de identidade, sabendo que eram falsas?
Ficamos aliviados quando, após quatro horas de viagem, chegamos ao destino, um vilarejo, cujo nome esqueci,
mas que usufruía de uma situa-ção geográfica muito especial: no meio dele passava a fronteira, pois metade da aldeia
pertencia à Bélgica, e a outra, à França.
No lado belga, os dois carros pararam frente a um restaurante. Nosso guia desceu do automóvel, e foi conversando
com o dono do estabeleci-mento. Depois virou-se para nós, e mandou que o seguíssemos. An-dando atrás dele,
atravessamos o salão do restaurante, passamos por pátios interligados e ruelas estreitas, até chegarmos a uma outra
rua: estávamos em território francês!
Esperamos uns dez minutos e, de repente, vimos os nossos dois carros aparecerem. Não entendi de que modo
passaram a fronteira; só sei que encostaram ao nosso lado. Todos fomos verificando se as malas se en-contravam no
segundo carro. Aliviados, constatamos que tudo estava em perfeita ordem. Satisfeitos, subimos no primeiro
automóvel e prossegui-mos viagem, os passageiros no carro da frente, as malas no de trás.
Perguntei a Jean:
– Como foi que os automóveis passarem pela fronteira? Nós a cruzamos caminhando por caminhos tortuosos; mas
para os carros, como foi que fez?
– Os carros – respondeu Jean – passaram normalmente pelos guardas da fronteira. É que meu pai sabe preparar as
coisas. Ele obteve uma autori-zação oficial alemã para os carros cruzarem a fronteira, e transportarem as suas cargas.
Não se esqueça, para os alemães, esta fronteira não tem qualquer importância, pois eles ocupam tanto a Bélgica quanto
esta parte da França.
– Dê meus parabéns a seu pai. Vejo que ele é eficiente e tem muitos tru-ques escondidos na manga.
– Você nunca falou mais certo. Realmente, meu pai tem muitos truques escondidos—repetiu Jean com um
sorriso aparecendo nas lábios. – Aguarde só mais um pouco, e verá mais alguns que irão surpreendê-lo.
– Quais são estes outros truques? – perguntei, surpreso pelo rumo que a conversa estava tomando.
N
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Vendo que Jean nada respondia, formulei mais algumas perguntas:
– Quantas horas vamos ainda rodar? Até onde chegaremos hoje? Onde dormiremos esta noite? E como...
Num tom ríspido, Jean cortou o fluxo de minhas indagações:
– Não faça tantas perguntas. Aguarde mais um pouco e vai saber tudo. Como já o disse, a surpresa é um
elemento fundamental nesta viagem.
Não gostei nada da resposta, mas o que poderia eu fazer? Observei-o melhor. “Realmente”, pensei, “meu
pai tinha razão quando disse que este jovem é um bloco de gelo, sempre frio e impassível: o rosto imó-vel, as
feições não exprimindo sentimento algum. Deve ser um jovem sofrido e solitário, sem dó nem piedade, que
não sabe o que significa solidariedade humana. Mas – consolei-me –, só gente deste naipe se torna
contrabandista, especialmente em tempos de guerra, quando o castigo pode facilmente vir a ser o fuzilamento
sumário”.
Dei uma olhada para trás: à pouca distância, o segundo carro estava nos se-guindo. “Graças a Deus, tudo está
correndo bem”, pensei e disse a meu pai e a Aisic:
– Continuando as coisas como estão indo, chegaremos ainda esta noite à fronteira que separa a França-Ocupada da
França-Livre. Receio que esta seja mais bem guardada, porque cruzando-a, sairemos dos territó-rios ocupados pela
Alemanha.
No nosso carro havia muito barulho. As crianças, bem pequeneninhas, viviam chorando e brigando entre si.
Apesar da tensão, depois de tantas horas de viagem, senti que estava começando a cochilar.
De repente, uma freada.
Ainda adormecido, acordei; olhei pela janela: meu sangue congelou!
O que eu temera o tempo todo, a fantasia que tanto me apavorara, tor-nara-se realidade!
Um veículo militar alemão estava parado à beira da estrada. Quatro poli-ciais, os fuzis prontos para atirar, tinham
nos mandado parar!!
Olhando para trás, constatei que o segundo automóvel, o das bagagens, também parara, bem atrás de nós, de forma que o
nosso motorista, mesmo se o quisesse, não poderia fugir numa rápida marcha a ré.
– Judeus, hê? – gritou um dos nazistas com arrogância e menosprezo na voz.
– Desçam todos e sigam-me! Raus! Schnell!
Nosso guia desceu primeiro e fez sinal para que todos saíssemos do carro.
Instalou-se uma enorme confusão: as mulheres gritavam histéricas; as crianças, assustadas com o desespero das mães,
choravam descon-troladas.
Nós três descemos por último e ficamos um pouco apartados do resto do grupo.
Vi um dos guardas abrir a porta do segundo carro, dar uma olhada nas malas e, com o olhar triunfante, ouvi-o
dizer a seus companheiros:
– Boa pesca desta vez. Quantas malas! Estamos com sorte!
Ele sentou atrás do volante, deu marcha ré, e saiu em alta velocidade.
Jean, o nosso guia, que até então não pronunciara palavra, entrou no primeiro carro, no qual havíamos viajado o
tempo todo e, com a mesma rapidez, seguiu o carro das malas... e sumiu...
E ninguém o deteve!!
Enquanto os dois carros se afastavam à toda, os três policiais empurra-vam as mães e as crianças, forçando-as para
um estreito caminho de terra que cortava o matagal.
Mulheres e filhos choravam e gritavam descontroladamente, atordoando e confundindo os alemães.
– Temos que fugir! – sussurrei a meu pai e a Aisic – Vamos fugir já! É nossa última chance; cada um por um rumo
diferente! A gente se es-conde no mato e se reencontra aqui mesmo, mais tarde, depois do cair da noite.
Como que guiados pela mão de Deus, os três, ao mesmo tempo, dispa-ramos em direções diferentes; correndo, metemonos pela vegetação.
Ouviam-se disparos. “Que os tiros não atinjam meu pai, nem o nosso amigo” – pensei, numa prece silenciosa.
Só olhei para trás ao sentir-me protegido pelo mato alto e denso que, fe-lizmente, crescia por lá. Vi o soldado que
atirara em nós, levantando o ombro direito como quem diz: “Que me importa!”, e seguiu os colegas que, aos berros e
tapas, empurravam as prisioneiras.
O grupo ia se afastando da estrada, seguindo pelo caminho estreito, para dentro do mato.
Passaram-se uns 20 minutos. O lugar permaneceu deserto. Não havia mais ninguém. Não se ouvia qualquer
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barulho suspeito. Cauteloso, voltei rumo à estrada.
Ao mesmo tempo, apareceram meu pai e Aisic. Ninguém se ferira, gra-ças a Deus!
Abraçamo-nos, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Meu pai fez um resumo da situação:
– Fomos traídos. Jean entregou-nos aos alemães, provavelmente só para roubar a nossa bagagem. É sabido que os
fugitivos levam consigo todos os seus bens escondidos em fundos falsos ou costurados nas roupas. Sorte nossa, em
sua ganância, não se esforçaram em nossa recaptura. O que queriam mesmo, era só a bagagem.
Mas – continuou meu pai – apavora-me pensar no que farão com as mu-lheres e as crianças que levaram para o
bosque. Será que as matarão lá mesmo, naquele mato deserto?
– Não quero aceitar uma interpretação tão negativa – discordou Aisic – Não temos certeza de que Jean realmente
seguiu o guarda que levou nossas malas para partilhar seu conteúdo; parece mais plausível que Jean simplesmente
fugiu dos alemães.
– Não faz qualquer diferença se Jean nos traiu ou não. Importa é o que vamos fazer agora! Não sabemos onde
estamos, nem para onde leva este caminho. E muito mais grave: não temos nenhum dinheiro francês!
De repente, percebi o erro que cometemos ao sair da Antuérpia, dei-xando com minha mãe todo o dinheiro belga e
sem levar uma nota fran-cesa sequer; indo para a França só com diamantes e dólares escondi-dos nas roupas e nas
solas dos sapatos.
E agora, como remediar o erro?
– A única saída é tentarmos chegar a alguma cidade importante da França-Ocupada, com muita chance de
encontrarmos quem nos ajude, de preferência um judeu, e nos troque dólares por francos franceses. Portanto,
de imediato‚ temos que chegar em alguma cidade grande! Mas como consegui-lo se nós nos encontramos agora à
beira de uma es-trada, num lugar desconhecido no interior da França? Além do mais, a noite está caindo.
Resolvemos ir em frente, seguindo cegamente a estrada, até chegarmos a algum lugar habitado, para, então,
estudarmos os próximos passos.
Seguimos o asfalto, escondendo-nos cada vez que farois acesos anun-ciavam um carro aproximando-se.
Depois de algumas horas de marcha, vimos uma cidadezinha.
– Esperaremos o dia raiar – disse um de nós – Assim que houver movi-mento nas ruas, entraremos no vilarejo.
Exaustos, deitamos entre os arbustos e caímos no sono.
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CAPÍTULO 8
evantamos cedo e, ainda de madrugada, entramos na cidadezinha. Era impossível os poucos transeuntes não
perceberem, pelas nossas roupas amassadas e as barbas não feitas, que éramos foragidos da cidade grande. Mesmo
assim, ninguém nos parou, nem perguntou nada.
Chegamos ao pequeno centro comercial. Um ônibus intermunicipal, o motor esquentando, aguardava a hora de
saída. Alguns passageiros, meio adormecidos, estavam no veículo.
Sozinho, entrei no ônibus e dirigi-me ao motorista:
– Perdoe a minha ousadia; preciso viajar com o senhor, só que não tenho dinheiro para a passagem... Estamos em
guerra – acrescentei com um piscar de olhos, insinuando que algo de anormal ocorrera, sem fornecer qualquer
explicação mais clara.
– Não é preciso disfarçar – respondeu o motorista. – sei de onde você veio: do campo de concentração de Drancy,
que está pertinho daqui! Não receie nada; sou um patriota francês e odeio os alemães; não vou traí-lo; fique no ônibus.
Para que se sinta em segurança, dou-lhe um bi-lhete normal. Você não precisa nem pagar.
“Qual é o seu destino?” – perguntou ele ainda.
– Agradeço muito, só que não estou sozinho. Há mais dois amigos co-migo, aguardando lá fora. Se possível, dê-me
três passagens. O nosso destino? O mais longe possível daqui, qualquer cidade grande.
– Tudo bem. Mande seus amigos subirem. Pegue três passagens até o final da linha: a cidade de Lille.
Os três sentamos juntos; a maioria dos demais passageiros não tinha prestado a mínima atenção à nossa conversa.
O ônibus partiu, graças a Deus!
– Estamos voltando em direção à Bélgica – expliquei a meus companhei-ros. – Lille é a maior cidade do norte da
França, e lá residem muitos ju-deus. Apesar da traição de nosso guia, ainda assim, tivemos muita sorte: estamos livres!
Mas como avisar à minha mãe para ela não seguir viagem com estes miseráveis que entregam os clientes aos
nazistas? – perguntei apreen-sivo – A guerra interrompeu o serviço internacional de telefone e de tele-grafia.
Novamente os quilômetros rodados sucediam-se com uma monotonia entediante. Nosso ônibus parava em todos os
lugarejos; em cada pa-rada, havia passageiros subindo e descendo.
Numa destas paradas, dois soldados alemães entraram no ônibus e passaram a examinar os documentos.
Mostramos nossas cédulas falsas de identidade belga. Os alemães examinaram-nas.
– São belgas – explicou um alemão ao outro – Tudo bem. Podem prosse-guir viagem!
Um pouco mais tarde, um passageiro comentou:
– Para os alemães, a carteira belga é valida; se fossem policiais france-ses leais ao regime oficial nazista, teriam
criado problemas para vocês, pois cidadão belga não pode residir na França, e muito menos circular pelo país.
A viagem continuava. Estávamos com fome. Mas, não tínhamos qual-quer dinheiro francês! Só nos restava
permanecermos sentados, extremamente quietos, aparentemente cochilando, mas, na realidade, de so-bressalto a cada
nova parada.
No final da tarde, entramos na cidade de Lille.
Chegando ao centro, saímos do ônibus e entramos na primeira rua transversal.
Sendo
eu
o
único
a
falar
corretamente
o
francês,
fui
andando
na frente.
Vindo em nossa direção, vi um senhor de meia-idade usando a estrela amarela de David.
Resolvi arriscar. Também, havia outra opção? Já eram 6 horas da tarde e eu sabia que, daqui a pouco, nenhum
judeu poderia mais andar pelas ruas.
– Desculpe – disse em francês. – Preciso falar com o senhor.
– Quem é o senhor? Não o conheço!
– É verdade; mas mesmo assim, ouça com atenção. Sou judeu como o senhor, e estou em apuros, precisando de
ajuda.
– Afaste-se de mim! – balbuciou o judeu francês, a voz trêmula de medo. Não quero conversa com o senhor, que é
um provocador, querendo prejudicar-me. Como poderia ser judeu, se não usa a estrela de David?
– Acalme-se; eis a minha credencial – respondi, e recitei a principal reza judaica: o Shemá Israel.
L
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Percebendo que o meu interlocutor continuava indeciso, passei a usar o iídiche:
– Quer que lhe recite as benções que o judeu pronuncia quando está sendo chamado à Torá?
Sem aguardar a resposta, recitei as duas benções.
Vi que as minhas palavras surtiam efeito, e resolvi contar tudo que acontecera em nossa viagem.
– Inacreditável; mas mesmo que for verdade, o que posso fazer por você?
Expliquei que precisava trocar dólares para termos dinheiro francês.
Neste ínterim, meu pai e o nosso amigo, Aisic, aproximaram-se, cada um dizendo algumas palavras em iídiche.
– Estava com medo, mas, agora, vendo suas caras tipicamente judias, e ouvindo vocês falarem um iídiche tão puro,
estou convicto de que estão dizendo a verdade. Assim, vou ajudá-los.
É perigoso ficarmos juntos aqui, parados no meio da rua; logo alguém vai desconfiar, vendo que eu, um judeu,
como o prova a minha estrela ama-rela, estou conversando tanto tempo com vocês, não-judeus, pois não usam a
estrela.
Portanto, sigam-me, mas... mantendo uma boa distância. Levo vocês à minha casa.
Este homem, cujo nome não me recordo, foi a nossa salvação.
Ele repetia:
– Fiquem na minha casa; não se arrisquem nas ruas. Providenciarei o que precisarem. Tenho tempo, não estou
trabalhando mesmo, os alemães não me autorizam exercer qualquer atividade.
Permitiu que dormíssemos em sua casa. Ofereceu-nos todas as refei-ções. Trocou os dólares. Despachou duas
cartas para minha mãe, nas quais contamos o que tinha acontecido; uma, dirigida à nossa casa na Antuérpia, e a outra,
igualzinha, endereçada para os nossos amigos, os doceiros de Lyon.
Só saí uma única vez na rua, e isto por um motivo muito especial.
Eu queria criar um documento que, mesmo antes que algum S.S. o per-guntasse diretamente, lhe desse a certeza de
que eu não era judeu. Mas como e onde conseguir tal documento? Os alemães só estigmatizavam os judeus, e,
portanto, não emitiam qualquer documento, atestando que o portador não era judeu.
Imaginei então imprimir um cartão de membro associado à alguma orga-nização católica inexistente, com meu
nome falso belga, minha fotografia e uma cruz bem grande, impressa em alto relevo. O texto do cartão esta-ria escrito
em flamenco, uma das línguas faladas na Bélgica e que era muito parecida com o alemão. Portanto, qualquer soldado
do Reich a entenderia.
Também não haveria muito risco em mandar imprimir estes cartões, por-que os funcionários franceses da gráfica
não entenderiam o texto em flamenco.
Fui a uma gráfica pequena; encomendei 100 cartões.
No dia seguinte, recebi-os sem qualquer problema.
A aparência era perfeita: as palavras “Katolik” e “Kristen” saltavam aos olhos, não deixando qualquer
dúvida quanto à religião do portador.
Separei três carteirinhas de sócio: uma para meu pai, outra para Aisic e a terceira, para mim.
As demais, relutantemente, rasguei e joguei fora.
Em seguida, comprei 3 carteiras de couro, de um modelo específico: com duas janelinhas transparentes. Numa
coloquei o cartão da “Associa-ção Católica de Cristãos da Antuérpia”, com a cruz e a fotografia virados para
cima; na outra, a carteira falsa de identidade belga.
Assim, antes mesmo que algum guarda fizesse qualquer pergunta, só olhando para a minha carteira, ele veria que
eu era católico e de nacio-nalidade belga!
Era o máximo que eu poderia fazer.
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CAPÍTULO 9
oltemos agora para o nosso novo amigo de Lille. Expusemo-lhe o nosso pensamento:
– Não vamos desistir, pretendemos arriscar-nos mais uma vez, e tentar chegar à França Não-Ocupada. De lá,
seguiremos para a Inglaterra, e ingressaremos numa unidade militar, para lutarmos, de armas na mão, contra os
alemães. É este o nosso sonho!
Este homem abnegado esforçou-se ao máximo, procurando contatos, até conseguir o endereço de um pequeno
hotel em Paris, chamado Hotel des Flandres, cujos donos, o casal La Roche, eram membros ativos da Resistência.
– Eles – foi a promessa que recebeu de amigos, e que nos transmitiu –, são de total confiança, e vão ajudar vocês a
saírem da França-Ocupada.
A amarga experiência pela qual passamos deixou-nos muito desconfia-dos. Sabíamos, entretanto, que não havia
como permanecer em Lille. Sem real opção, resolvemos tentar uma vez mais, e confiar na informa-ção recebida.
Compramos passagens de trem até Paris.
Sem qualquer problema, chegamos na capital da França.
Dirigimo-nos diretamente para o Hotel des Flandres, e pedimos ajuda ao casal La Roche.
Após alguns dias de espera, eles apresentaram-nos um conhecido, um senhor alto e forte, de cognome Le
Bucheron, que se propôs a ajudar:
– Levo vocês até a Suíça. Há mais de seis meses faço esta viagem toda semana; nunca surgiu problema algum. O
preço que cobro de judeus é um pouco alto, mas quem não pode pagar... que fique em casa, aguar-dando o bel-prazer
do ocupante... Vocês pagam a metade agora, e a outra metade, só lá na Suíça. Nada mais justo – concluiu ele.
Claro que concordamos. Também, não havia como discutir e muito me-nos procurar um concorrente...
– Eis o caminho que vamos seguir – explicou Le Bucheron: amanhã, às 21:00 horas, vocês vão sair da estação de
Austerlitz. Vão viajar sozinhos até a cidade de Annecy, na fronteira com a Suíça. Não vou poder ajudá-los no percurso que
vão fazer de trem, mas o risco de serem descobertos é muito pequeno, pois os alemães não estão vigi-ando nem os trens,
nem as estações ferroviárias, como vocês mesmo o constataram, ao virem à Paris. Depois de amanhã, às 15:00 horas, vo-cês
vão desembarcar em Annecy. Uma hora depois, vão tomar o ônibus número 13 e vão descer em frente a um BarRestaurante chamado “Ao Bon Bistrot”, onde vocês devem chegar lá pelas 17:30 horas. Vocês vão sentar no terraço externo
do café, e vão me aguardar lá . Eu vou chegar um pouco depois de vocês. Estarei num ônibus que pára bem em frente ao
“Ao Bon Bistrot”. Se eu vir vocês aguardando sentados no terraço, desço do ônibus, e encarrego-me de vocês. Mas se,
por qualquer motivo, vocês ainda não tiverem chegado, volto lá no dia seguinte, no mesmo horário. Caso vo-cês ainda
não tenham chegado na minha segunda tentativa, vou enten-der que algo de grave lhes aconteceu, e nosso trato estará
desfeito. En-contrando vocês lá no Bar, vou levá-los pessoalmente até a Suíça.
Como vocês o vêem, não estou garantindo a sua chegada até o “Ao Bon Bistrot”, mas dali até a Suíça, assumo toda
a responsabilidade.
Novamente, concordamos com tudo, e despedimo-nos de Le Bucheron com a frase:
– Se Deus quiser, a gente se revê e toma uma rápida cerveja no “Ao Bon Bistrot”... e uma bem demorada no
território suíço.
Claro que estávamos com medo... Mas havia outra alternativa?
Fomos à estação. Sem problemas, compramos os bilhetes, apesar da presença de policiais alemães patrulhando a
estação.
Entramos no trem. A viagem foi longa. Quase não falávamos um com o outro; cada um estava pensando:
“Dá até para entender que não há muita fiscalização nos trens que cir-culam pelo interior da França; mas, agora,
estamo-nos dirigindo em di-reção à fronteira com a Suíça! Será que os alemães seriam tão estúpi-dos assim, deixando
qualquer um aproximar-se tão facilmente de suas fronteiras?”
Chegamos em Annecy, sem que ninguém perguntasse qualquer coisa!
Pegamos o ônibus 13. Descemos na parada do bar “Ao Bon Bistrot”. Estávamos bem na hora.
Aliviados, sentamo-nos no terraço, e pedimos uma cerveja para cada um.
– Graças a Deus, chegamos na hora exata. É bom sinal. Dá para perce-ber que Le Bucheron conhece seu ofício. A
noite já caiu; em breve, esta-remos na Suíça – ficamos repetindo, mesmo que, no fundo, sabíamos que estávamos
V
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apenas querendo nos tranquilizar a nós mesmos.
Passaram-se 5 minutos... 10 minutos... 15 minutos...
Ouvimos um ônibus chegar. Ele parou na porta do bar. Desceram várias pessoas, mas... Le Bucheron não estava
entre elas.
– Não é nada – disse um de nós. – Le Bucheron teve um pequeno atraso. Vai chegar daqui a pouco. É só
mantermos a calma.
Passaram-se mais 10 minutos, e depois mais 20!
Ficamos visivelmente nervosos; não dava mais para disfarçar.
Percebi que quem estivesse nos observando repararia logo que éramos forasteiros: havia diversos clientes sentados
no terraço do bar, mas só nós usávamos terno e gravata, e ainda carregávamos pequenas malas de viagem.
Resolvi agir. Não era eu o único a falar corretamente o francês?
Entrei no interior do bar. Apoiado no balcão, vi a moça que servira as be-bidas.
– Por favor, será que você conhece um senhor que todos chamam Le Bucheron? – perguntei. – Marcamos
encontro aqui, e ele não está apare-cendo.
A jovem ficou olhando para mim; devagar, aproximou-se e com um gesto suave, passou a mão pelos meus cabelos
(naquela época, eu tinha bo-nitos cabelos ondulados, e não a careca de hoje...) e respondeu:
– Sei muito bem o que estão esperando. Infelizmente, estão sem sorte. Faz muito tempo que contrabandistas
levam pessoas daqui para a Suíça, usando os desfiladeiros que a natureza criou em grande quantidade na região.
Nunca os alemães pegaram alguém. Até hoje, não havia quase risco nenhum. Entretanto, na noite passada, um
contrabandista, guloso demais, matou seu cliente para roubá-lo, e abandonou o corpo no meio das montanhas. Os
alemães, nas rondas de rotina, descobriram o morto e entenderam o que estava acontecendo. Reuniram 300 soldados,
e assim que a noite cair, passarão a vasculhar a região; trouxeram até cachorros, es-pecialmente treinados, e pode ter
certeza, ninguém vai escapar deles. Eu estou bem a par do que está acontecendo: nosso bar está sendo fre-quentado
tanto pelos contrabandistas, quanto pelos próprios alemães, que sempre falam alto demais, e não se dão conta de que
nós, vizinhos que somos da Suíça, onde se fala o alemão, entendemos perfeitamente a língua deles.
Mas você – continuou a moça, passando novamente a mão pelos meus cabelos, e aproximando-se ainda mais de mim,
até encostar completa-mente, – quero ajudá-lo. Se quiser, posso escondê-lo no meu quarto. Mas só você, e ninguém
mais... Moço, venha comigo... e estarás a salvo. Quando esta vigilância redobrada terminar, prometo levá-lo
pessoal-mente até a Suíça. Venha comigo, meu amigo...
Eu não sabia o que fazer. Nunca ainda tinha enfrentado uma situação destas. Claro que não iria amarrar-me a esta
desconhecida, bem mais velha do que eu. Mas como sair sem ofender a moça, o que poderia levá-la a nos denunciar,
nem que fosse por raiva?
Além do mais, como negar um pedido a alguém que se propõe a ajudar?
– Não posso aceitar – respondi. – Atravessarei a fronteira hoje com meus amigos e vou lhe escrever da Suíça.
Aguarde notícias minhas. A gente ainda se reencontra.
Menti, deixando alguma esperança no ar.
– Não, meu bem. Esta noite ninguém poderá passar; nem mesmo eu, que nasci aqui.
Saí do interior do bar, dirigindo-me ao terraço, onde meus companheiros estavam esperando.
Enquanto estava me aproximando de nossa mesa, ouvi o barulho de um ônibus chegando. Olhando para ele, vi Le
Bucheron na janela!
No primeiro instante, fiquei feliz!
Mas, logo percebi que ele estava fazendo sinais com as mãos: um si-nal negativo, seguido de um gesto de
impotência e de um pedido de des-culpas...
O ônibus parou... Le Bucheron não desceu!
Quando o carro se afastou, não havia mais dúvida alguma: Le Bucheron não podia nos ajudar e simplesmente pedia
desculpas por nos abando-nar à nossa sorte num lugarzinho ermo ao lado da fronteira com a Su-íça, que ia ser
patrulhada por 300 soldados alemães e por cachorros es-pecialmente treinados!
Meu Deus...
Eu sabia que tinha que agir, e de imediato! Aproximei-me de meus ami-gos.
Estava tão nervoso que mal conseguia pronunciar as palavras:
– Levantem imediatamente. Vamos embora daqui. Rápido!!
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Nós três saímos quase correndo. Só quando estávamos bem afastados do “Ao Bon Bistrot” consegui acalmar-me, e
transmitir as informações que a moça me dera.
Claro que não falei a respeito de sua proposta. Como poderia fazê-lo? Aconselhando meu pai a procurar uma outra
“moça” que o escondesse também?
Ao terminar o relato, justifiquei meu súbito nervosismo:
– Era muito perigoso permanecermos no terraço do bar. A noite estava caindo; o terraço onde estávamos sentados
era o único lugar iluminado, de modo que qualquer carro alemão que por lá passasse nos veria ime-diatamente. Por
isto, fiz vocês saírem correndo.
– E agora?
– Agora, voltamos... à estaca zero. Proponho que voltemos a Paris, no Hotel des Flandres. O senhor La Roche é o
único que pode ajudar.
Também pudemos constatar que tanto ele, quanto Le Bucheron, não tive-ram qualquer culpa pelo que ocorreu.
Vimos como Le Bucheron fez a única coisa que pôde, sem expor-se inutilmente: avisou-nos do perigo que corríamos.
Mas estávamos a uns 20 quilômetros da cidade de Annecy. Não podía-mos mais nos arriscar e pegar novamente o
ônibus; só nos restava vol-tar a pé.
“Como da outra vez”, – pensávamos, – “seguiremos a estrada; andando a noite toda, e chegaremos na cidade ao
amanhecer”.
Só que desta vez, a situação era bem mais perigosa! A cada poucos mi-nutos carros alemães passavam pela estrada.
Às vezes, ouvíamos poli-ciais militares descerem e se espalharem. De diversas direções ouvía-mos cães latindo. “Será
que são os cachorros adestrados que os ale-mães trouxeram para nos caçar?” – perguntávamos a nós mesmos.
– Temos que nos afastar da estrada e encontrar algum refúgio seguro e bem escondido – propôs um de nós. – Caso
contrário, não vamos esca-par desta caçada.
Mas onde encontrar um refúgio? Quem vai aceitar nos esconder? Quem vai se arriscar?
Andamos a esmo no meio dos campos, até encontrarmos uma casinha.
Havia luzes acesas. Sem outra opção, bati na porta. Um fazendeiro idoso abriu-a.
– Precisamos de um esconderijo. Só para esta noite – pedi.
O fazendeiro olhou para os três, e percebeu o nosso pânico:
– Sou francês, sou um patriota. Já lutei contra os alemães na primeira guerra mundial. Detesto-os, mas preciso ser
prudente, especialmente agora que a região fronteiriça tornou-se de repente muito vigiada. Podem passar a noite aqui.
Vão
ficar
nesta
dispensa.
Mas
só
esta noite! Amanhã, bem cedo, vão ter que partir.
Movido pela compaixão, este bom homem ainda nos deu uma farta co-mida, acompanhada de um garrafão de vinho.
57
CAPÍTULO 10
e manhã bem cedo, saímos da casa hospitaleira; evitamos a estrada, cheia de carros militares; atravessamos os
campos, andando em dire-ção à Annecy.
Os fazendeiros que encontramos não escondiam o ódio que sentiam pelos alemães, o que os levava a nos oferecer
alimentos. Mas logo em seguida, o medo fazia que pedissem para nós nos afastarmos de suas terras.
Assim, durante dois dias e três noites, fomos caminhando através dos campos, escondendo-nos a toda hora, até
vencermos os 20 quilômetros que nos separavam da estação de Annecy.
– Sugiro – propôs Aisic – não viajarmos até Paris, mas só até Grenoble, que é bem mais perto. Correremos menos
riscos, e tenho certeza de que também naquela cidade encontraremos quem nos contrabandeie para fora da FrançaOcupada.
Concordamos. Pegamos o trem para Grenoble, onde chegamos sem problema.
Durante algumas horas, fomos andando pelas ruas. Infelizmente, não encontramos nenhum judeu! Não havia
ninguém usando a estrela ama-rela.
Conforme as horas foram passando, a nossa confiança foi diminuindo. A noite estava para cair, e, novamente,
sentimos o desânimo tomando conta.
Sabíamos que o último trem com destino à Paris saía às 21 horas, e tí-nhamos resolvido não dormir num hotel
em Grenoble: seria arriscado demais por termos só documentos belgas, que não permitiam permanên-cia na França.
Já estávamos voltando para a estação de trens, quando vimos um se-nhor, que embora não usasse a estrela amarela,
tinha toda a aparência física de judeu.
– Parece ser um dos nossos – disse, meio inseguro; virando-me para meus companheiros, perguntei:
– O que acham? É judeu?
– Não há dúvida que é – concordaram os dois.
Aproximei-me do desconhecido e disse:
– Sou judeu. Não estou usando a estrela de David, mas mesmo assim sou judeu. Estou fugindo dos alemães. Meu
problema não é dinheiro, te-nho o suficiente; mas preciso de ajuda de uma natureza diferente. O se-nhor poderia darme uma mão?
Ele olhou para mim, balançou negativamente a cabeça e respondeu num tom ríspido:
– Nunca vi atrevimento igual! Não o conheço e não quero conhecê-lo! Dou-lhe três segundos para desaparecer de
minha frente. Não sou ju-deu, e ponto final – mais calmo, acrescentou – mas também não sou anti-semita, e não vou
denunciá-lo! Mas... suma daqui!
Olhei para o desconhecido e, pressionado pelo desespero, tentei mais uma vez:
– É esta realmente a sua última palavra? Mesmo que o senhor não seja judeu, não quer ajudar? Mesmo? Não
somos, afinal, todos prisioneiros do mesmo ocupante nazista?
– Pare com esta conversa. Não abuse de minha paciência por eu ter dito que não sou anti-semita. Não vou, de
forma alguma, correr riscos desne-cessários. Dou-lhe um bom conselho: dê o fora daqui e não aborde mais
nenhum desconhecido. Poderia custar-lhe a vida! E agora, suma daqui!
Desanimados, voltamos para a estação, e tomamos o trem para Paris. Novamente, e com o coração abalado,
voltamos ao Hotel des Flandres e contamos o ocorrido a nosso amigo La Roche.
– É uma pena. Parece que a má sorte os persegue. Annecy, até agora, era um lugar garantido. Mas não se
desesperem. Tenho outros contatos, e vou procurar um novo caminho para vocês.
Passaram-se mais alguns dias, até que nosso amigos nos chamou:
– Tenho boas notícias. Hoje à noite virá um novo companheiro nosso, que contrabandeia gente para fora da
França-Ocupada e de quem só se fala bem. Dizem que é o melhor de todos. Ele vai levá-los à Lyon.
Qual não foi nossa surpresa quando La Roche nos apresentou um jovem judeu, Henrique Gold, filho de um velho
conhecido nosso da Antuérpia!
Ele confirmou que contrabandeava pessoas, geralmente judeus france-ses, para a França Não-Ocupada. É o que ele
o fazia, às vezes para aju-dar a Resistência, mas, geralmente, simplesmente para ganhar um bom dinheiro.
E nós só podíamos concordar com o preço que ele exigira, e, assim, partimos já no dia seguinte, mais uma vez de
D
58
trem.
Éramos umas 20 pessoas, todos judeus: homens, mulheres e crianças. Sabíamos que a viagem de trem corria por
nossa conta e risco, cada família em um compartimento separado.
Henrique viajava no mesmo trem, mas sozinho, num outro vagão.Antes de embarcar, ele informou:
– Quando o trem chegar em Clermont Ferrand, tomem o ônibus que vai até uma aldeia, cujo nome, hoje, não
recordo mais. Até lá, cada um viaja independentemente. Se acontecer alguma desgraça até chegarem àquela aldeia,
não poderei ajudá-los. Mas, deste vilarejo em diante, respondo pela sua segurança.
Felizmente, sem qualquer problema, chegamos todos àquele lugarejo. Já eram 6 horas da tarde. A noite estava para
cair. Reunimo-nos e fomos seguindo Henrique, que nos deu as últimas instru-ções:
– O resto do caminho faremos a pé; são apenas uns 4 quilômetros. Nunca vi guardas por lá, mas, mesmo assim, é bom
sermos rápidos e silenciosos.
Caminhamos num passo acelerado no meio dos campos. Às vezes, al-guma criança dava um susto, começando a
chorar, e atrasava o grupo.
Entretanto, a cada passo dado, nossa confiança aumentava.
– Assim que passarmos esta ondulação de terreno, estaremos na França Não-Ocupada – disse Henrique. – Esta
parte é a mais sossegada do per-curso – acrescentou ele – aqui a vegetação é muito alta e densa; mas tomem cuidado,
não vão se perder!
Mal ele acabara de pronunciar estas palavras, os que andavam na frente do grupo quase tropeçaram sobre dois
casaizinhos de namora-dos deitados no meio do mato: eram dois soldados alemães com suas amiguinhas francesas...
Eles ficaram até mais assustados de que nós... Um dos soldados começou a levantar-se, a abotoar a calça, dirigindo a
mão em direção à pistola, que se encontrava no chão. Felizmente, o outro soldado interrompeu-o:
– Deixe para lá. Se os prendermos, teremos problemas para explicar por que não estávamos de guarda no nosso
posto.
– Você vai me implicar também – completou a moça que estava com o soldado. Não quero que meus compatriotas
saibam que estive aqui com vocês.
O soldado olhou para nós; sacudiu a cabeça e resmungou:– Estes aí têm uma sorte...
Aliviados, iniciamos uma correria desordenada.
Passados alguns minutos, transpusemos a ondulação de terreno que Henrique indicara.
– Estamos na França Não-Ocupada!!! – gritou Henrique. Hurrah!– ESTAMOS NA FRANÇA NÃO-OCUPADA!!!
– repetimos, todos meio histéricos, pulando e gritando descontroladamente.
Henrique levou todo o grupo para uma pequena casa, situada além da fronteira, já na França-Livre.
O dono, um francês jovem e risonho, transformara-a em albergue. Ele acolheu-nos com uma alegria
expansiva, serviu vinho e uma refeição leve. Mas nós estávamos com adrenalina demais, e sentíamos a
neces-sidade de darmos um tempo para, devagarinho, conseguir relaxar.
Sentamos na grama, passamos a contar piadas e a rir de nossas desa-venças até, aos poucos, voltarmos ao normal.
Passadas umas horas, Henrique tomou a palavra:
– Minha tarefa está terminada; vocês estão são e salvos na França Não-Ocupada.
Vou me recolher agora; amanhã volto para Paris e apanho um novo grupo. Descansem esta noite no albergue;
amanhã, terão que partir. A estação ferroviária está a menos de um quilômetro daqui, e às 9:30 da manhã parte o
primeiro trem para Lyon.
Quando fomos dormir na palha espalhada no chão, meu pai resumiu a situação:
– Graças a Deus, terminaram as nossas privações. Amanhã a tarde va-mos reencontrar a sua mãe em Lyon.
Provavelmente, vamos recomeçar a vida normal lá mesmo, como o fez o nosso amigo, o doceiro, que abriu um
comércio naquela cidade.
Infelizmente, nunca alguém errou tanto...
Quando na tarde seguinte chegamos na casa de nosso amigo, soube-mos que minha mãe nunca aparecera por lá.
Todas as cartas que lhe mandamos, ainda fechadas, estavam aguar-dando a chegada dela!
Sentimo-nos perdidos, não sabendo o que pensar, nem o que fazer.
– Vamos aguardar. Minha mãe aparecerá, ou pelo menos vai dar alguma notícia. Ela não pode simplesmente ter
desaparecido assim.
Sem muita esperança, mandamos nova carta à Antuérpia. Quem sabe, ela ainda estaria lá?
59
Foi então que nós nos separamos de Aisic, que tinha resolvido estabele-cer-se em Lyon. Sua intenção era pedir a
seus dois irmãos que tinham permanecido na Antuérpia, para que viessem juntar-se a ele.
– Em Lyon, as chances são bem melhores para um judeu que precisa passar esta época conturbada da guerra –
vivia ele repetindo.
Infelizmente, também ele estava totalmente errado...
Nunca mais revi Aisic; ele foi mais uma vítima desta época terrível.
Depois da guerra encontrei seu irmão mais velho. Onde?
No Rio de Janeiro! No ano de 1951!
Ele contou que ele próprio fora deportado da Antuérpia para um campo de concentração alemão, que conseguiu
sobreviver e que emigrara para o Brasil assim que a guerra terminara. Ele confirmou que Aisic desapa-receu em Lyon... e
que nunca mais se soube algo a respeito dele...
Passados mais alguns anos, soube que o irmão de Aisic voltara para a Bél-gica, onde se casou e deve estar residindo até agora.
60
CAPÍTULO 11
s dias estavam passando e não havia qualquer notícia de minha mãe. Tornou-se claro que não podíamos
permanecer esperando indefinida-mente, e que devíamos regularizar a nossa situação pessoal: só possuí-amos
documentos falsos, de cidadões belgas, chamados François De-pauw e Peter de Smed.
Resolvemos tomar os nossos destinos em nossas próprias mãos, e não mais permitir que os nazistas nos
transformassem em joguetes indefe-sos.
Resolvemos então alistar-nos na Legião Estrangeira!
Esta Legião fora criada pela França há mais de um século; era muito famosa e tinha uma auréola romântica. Era
uma tropa de elite formada por voluntários não-franceses que costumavam alistar-se com nomes falsos. Foi o que
transformara a Legião num refúgio para quem se es-condia, seja da polícia... seja de algum marido ciumento.
A Legião estava estacionada na África, sufocando as constantes rebeli-ões nas colônias francesas.
Em Lyon, ao nos alistarmos, fomos informados que seríamos imediata-mente enviados para a área de atuação da
Legião, na África do Norte.
Sabíamos também que as tropas francesas não-estacionadas na Eu-ropa nunca aceitaram o armistício que o
governo central francês tinha assinado com os alemães. Estes franceses livres estavam agora se aliando aos exércitos
aliados que estavam se preparando, na Inglaterra, para contra-atacarem os nazistas. Era claro, portanto, que o nosso
alis-tamento na Legião iria nos dar a possibilidade de sairmos da Europa e, brevemente, de lutarmos de armas na mão,
contra a Alemanha.
Já tínhamos assinado os papéis necessários e recebido documentos oficiais da Legião Estrangeira, declarando
que nós nos alistamos volun-tariamente, e que estávamos aguardando embarque para a África.
A Legião operava meio clandestinamente na França, justamente por es-tar do lado dos aliados, enquanto o governo
legal francês, liderado pelo Marechal Pétain e seu primeiro ministro Pierre Laval, haviam assumido uma nítida
posição pró-nazista.
O que poderia acontecer no dia seguinte ao de nosso alistamento?
Como sempre, o inacreditável e o imprevisível!
Recebemos um cartão-postal de minha mãe! Ela escrevia:
“Queridos Jacó e Michel. Só posso escrever estas poucas frases. Estou presa num campo situado no França NãoOcupada, no campo de... (infelizmente não lembro o nome). Ele está situado a poucos qui-lômetros da fronteira que
separa as duas partes da França. Se vocês estiverem em Lyon, e receberem esta carta, façam tudo para me tirar deste
horrível lugar. Estou sem qualquer notícia de vocês. Peço todo dia a Deus que Ele os proteja nesta terrível confusão na
qual vivemos.
Assinado: Anna.”
Recebemos a carta com sentimentos misturados: alívio, por sabermos que minha mãe estava viva e tão perto; raiva,
por ela estar confinada num campo; ódio contra as autoridades francesas, que a prenderam sem ela ter cometido crime
algum, a não ser o de ser judia num país cuja constituição, afinal de contas, proclamava: “Igualdade, Fraternidade,
Li-berdade!”.
Mas, principalmente, sentimos uma enorme frustração por não termos a menor idéia de como agir, estando numa
cidade onde não conhecíamos quase ninguém.
Entretanto, o bom senso e a necessidade premente de agir prevalece-ram sobre nosso desânimo.
O único contato que tínhamos em Lyon era com a Legião Estrangeira. Por intermédio dela, encontramos um jovem
que aceitou ajudar. Ele apresentou-se:
– Faço parte de um grupo que vocês poderiam chamar de mercenários. Aceitamos qualquer tarefa, só que por uma
boa recompensa. Se vocês concordarem com o preço, vamos tirar a sua mãe do campo onde está presa. Se possível,
com suborno, mas, se não der, vamos usar a força. Temos armas e estes campos não estão preparados para ataques
vin-dos de fora. Eles só têm guardas preparados para impedir fugas de den-tro.
Claro que concordamos com o preço. A título de sinal, pagamos a me-tade.
O grupo saiu na mesma noite. Só que... já no dia seguinte, recebemos nova carta de minha mãe, informando que ela
fora transferida para um outro campo, também situado na França Não-Ocupada...
O
61
Voltamos para a Legião. Contratamos um segundo grupo similar ao pri-meiro, que aceitou a mesma tarefa: tirar
minha mãe do novo campo fran-cês, até com a força das armas, se necessário fosse.
Novamente pagamos a metade do preço combinado.
Passaram-se mais uns dois dias, sem que surgisse qualquer novidade.
No terceiro dia, tivemos duas: em primeiro lugar, chegou nova carta de minha mãe, informando que já se encontrava
num novo campo. Logo em seguida, apareceu o primeiro grupo de resgate, que, evidentemente, não tinha conseguido nada
e que aceitou, mediante um novo pagamento, vi-ajar até o terceiro campo para tentar, novamente, salvar minha mãe.
– Que falta de sorte – pensei com amargura – Nunca seremos tão rápidos como o governo francês, que vive
transferindo minha mãe de campo em campo. Por que age assim?
– O motivo é pouco importante – respondeu meu pai – só sinto que temos que procurar um outro caminho para salvar
sua mãe. Conversando com o secretário da Legião, soube que ele mantém uma amizade toda especial com o Cônsul da
Bélgica, que tem escritório oficial em Lyon. Já que temos documentos, embora falsos, atestando que somos cida-dões
belgas, por que não solicitar ao cônsul de “nosso” país, que nos ajude?
Contei nosso problema ao secretário da Legião; ele já entrou em contato com o Cônsul, que se prontificou a ajudar.
A sua mãe, embora não seja cidadã belga, tem residência legal na Bél-gica e, assim, pode perfeitamente pedir ajuda
ao representante do go-verno do país onde ela reside.
O Cônsul preferiu marcar encontro num restaurante da cidade, e não no próprio consulado, provavelmente, para
facilitar o acerto monetário pela colaboração “espontânea” dele.
Como combinado, às 17 horas, entramos no restaurante escolhido pelo cônsul.
O dia era muito quente e o salão totalmente lotado. As mesas ocupadas, os fregueses bebericando e conversando
animadamente.
Numa mesa de canto, estavam o secretário da Legião e um outro se-nhor, de aspecto aristocrático.
– Quero apresentar o Senhor De Vos, Cônsul da Bélgica em Lyon – disse o secretário da Legião.
Sentamos e entramos logo no assunto: poderia o Cônsul libertar minha mãe do campo francês e ajudá-la a obter o
status de residente legal na França Não-Ocupada?
No meio da conversa, de repente, percebemos que algo de anormal es-tava ocorrendo no restaurante. Com espanto,
percebemos que policiais em trajes civis e outros fardados estavam bloqueando a saída do salão, verificando os
documentos de todos os presentes.
Os policiais iam de mesa em mesa, e acabaram por chegar à nossa.
Quando mostramos as nossas carteiras de identidade belga, eles nos informaram que estas não nos davam direito
legal de residência na França Não-Ocupada.
Exibimos,
então,
os
documentos
de
alistamento
na
Legião
Estrangeira.
– Estes não vão ajudar – informou um deles – A Legião, apesar de fazer parte de nosso exército, não reconhece a
autoridade de nosso presi-dente, o Marechal Pétain, e assim está desobedecendo ao governo le-gal. Já que você traiu o
juramento de fidelidade à hierarquia de nosso país, esta-mos obrigados a prender os que se alistaram voluntariamente nesta
cor-poração; para nós, vocês tornaram-se traidores de nossa pátria.
O Cônsul belga tentou ajudar. Não éramos belgas?
Só que não adiantou nada.
– Vocês dois estão presos! Esta era a frase que os policiais, educada, mas firmemente, repetiam.
– Será que vocês estão, na realidade, querendo prender judeus? – per-guntou o Cônsul, e continuou:
– Neste caso, posso afirmar, amparado que sou pela minha autoridade de Cônsul da Bélgica, que estes dois
senhores não são judeus, pois suas carteiras de identidade, emitidas sob a ocupação nazista, não apresentam o carimbo
distintivo de judeu.
Mas nada ajudou.
Ao sair do restaurante, fomos reunidos a outras pessoas, igualmente presas. Todos permanecíamos sob a guarda de
uma dúzia de policiais.
Neste momento, eu estava pensando:
“Como a vida é cheia de surpresas: fomos presos tentando salvar outra presa. Quanta ironia!”
Como poderíamos adivinhar que o governo da França chamada “Livre”, acabara de assinar um acordo com os
nazistas de Berlim, comprome-tendo-se a entregar aos alemães todos os judeus que se encontravam em seu território?
62
Também a França Não-Ocupada seguiria a mesma sequência estabelecida nos países sob domínio direto alemão:
pren-dendo inicialmente os judeus que não tinham a permanência legalizada, depois os de nacionalidade não-francesa,
para terminar, por fim, com qualquer ju-deu que encontrassem.
63
CAPÍTULO 12
número de presos reunidos na rua foi aumentando. Quando passou da centena, o chefe dos policiais subiu numa
cadeira e gritou:
– Todos os presos em colunas de cinco. Todos acompanhem os guardas que os escoltarão, e que vão andar
nos dois lados da formação, impe-dindo qualquer fuga! Em frente, marchem!
E assim, todos nós, homens, mulheres e crianças, iniciamos a cami-nhada rumo a um destino desconhecido...
As ruas estavam lotadas de gente: era uma tarde bem quente. Os tran-seuntes, curiosos, observavam os detentos
passarem, sem saberem quem éramos, nem porque estávamos sendo presos. Meu pai, não sei se por acaso ou
premeditação, estava posicionado na fila lateral da es-querda, enquanto eu estava a seu lado, à direita dele.
Quando a coluna chegou a uma esquina, os policiais, dobraram à direita, e fizeram sinal à primeira fila da coluna,
para que seguissem na mesma direção.
Meu pai, num passo extremamente rápido, virou à esquerda, saindo as-sim da coluna! Misturou-se imediatamente
aos transeuntes que olha-vam os presos passarem!
Nenhum guarda percebeu o que acontecera...
Vi meu pai acompanhar o avanço da coluna, não mais andando no meio dos presos como eu, mas entre o povo que
passeava na rua.
Na primeira oportunidade, imitei meu pai. Tentei sair da coluna... mas não tive sorte! Um golpe de fuzil no ombro,
fez-me voltar à formação, no meio dos prisioneiros.
Diminuí o passo, para colocar-me numa das últimas fileiras. Repeti a tentativa. Desta vez, um outro policial viume, e aplicou-me uma cacetada na cabeça.
Meu pai percebeu minhas tentativas infrutíferas.
O que fez ele então?
Meu pai voltou para a coluna! Colocou-se entre os presos! Bem a meu lado!
Preferiu voltar a ser prisioneiro, só para ficar junto comigo!!
Assim que chegamos à prisão, fomos imediatamente interrogados: um a um entramos numa sala onde nossos
documentos eram examinados. Mas o que realmente decidia a sorte do prisioneiro era a resposta a esta simples
pergunta:
– Você é judeu?
Todos que responderam afirmativamente, ou cujos nomes eram indícios suficientes de que eram judeus, foram
separados e, logo de madrugada, enviados para o campo de concentração de Drancy, na França-Ocu-pada. De lá
foram, como se soube depois da guerra, transportados para os campos de extermínio nazista, situados no Leste
Europeu.
Era o início da deportação do judeus da França chamada “Livre” ou “Não-Ocupada pelas Forças Alemãs” (quanta
hipocrisia nestas denomi-nações...)
Meu pai e eu apresentamos nossos documentos falsos belgas. Decla-ramos que não éramos judeus, como os nossos
papéis o provavam. Não posso afirmar que a carteirinha da “Agremiação Católica dos Cristãos da Antuérpia”, com a
cruz em alto relevo, influiu na decisão dos examinado-res, mas uma coisa é certa, meu pai e eu ficamos entre os
poucos a não sermos enviados à Drancy.
À tarde, fomos informados que seríamos remetidos ao campo de Rive-saltes, na França Não-Ocupada, onde se
averiguaria com maior rigor se éramos realmente cidadões belgas não-judeus.
A viagem foi feita de trem e durou dois dias. O policial que nos vigiava era um homem de meia idade, bem mais
humano do que a maioria de seus colegas.
De noite, ele nos algemava ao banco; de dia, tirava alternativamente as algemas de cada um de nós, de forma que
podíamos movimentar sufici-entemente o corpo para não sofrermos de câimbra. Também permitiu que, com o nosso
dinheiro, comprássemos a cada parada do trem a alimentação que queríamos.
Para mim, filho único e tão mimado pelos pais, foi uma experiência amarga permanecer sentado num trem,
algemado ao banco, ostensiva-mente vigiado por um policial fardado...
Vi como as mães me mostravam com o dedo para os filhos... como as se-nhoras evitavam de sentar-se no mesmo
O
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compartimento que nós... como os homens colocavam a mão no bolso, para assegurarem-se de que nada lhes faltava...
Na segunda noite, lá pelas 22 horas, desembarcamos na estação de Rive-saltes, um lugarejo situado a poucos
quilômetros de Perpignan, perto da fronteira com a Espanha.
Muitos anos depois, no ano de 1987, voltei a visitar esta cidadezinha.
Vi, então, um lugar tranquilo, todo adormecido. Frondosas árvores ao longo das poucas ruas que serpenteavam
através das suaves ondulações do terreno.
Os poucos habitantes, a maioria de idade avançada, já aposentados, passando o tempo em conversas intermináveis,
acompanhando o voo dos pássaros e das borboletas.
A Rivesaltes de agora tornou-se um lugar de descanso e de repouso para idosos.
Mas quando nos chegamos lá, de noite, pelo final do ano de 1942, Rive-saltes era bem diferente.
Os franceses transformaram um conjunto de barracas, onde seus solda-dos eram aquartelados antes da
guerra, num campo de concentração.
O policial que nos escoltava da prisão de Lyon algemou-nos um ao outro e entregou-nos à administração de
Rivesaltes.
O campo estava todo cercado por arame farpado. A cada 50 metros erguiam-se torres de madeira, guardada por
soldados armados com me-tralhadoras. A cada poucos metros, holofotes móveis iluminavam a área, jogando feixes de
luz a esmo.
Por toda parte via-se policiais franceses em uniformes pretos com as suas botas de couro, refletindo a luz dos
holofotes.
O ambiente todo espalhava medo: a escuridão da noite, cortada por lu-zes ofuscantes que corriam por todos os
lados.
Ao mesmo tempo que nós dois, outros prisioneiros estavam dando en-trada no campo. Todos eram encaminhados
para uma sala, para serem identificados e registrados.
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CAPÍTULO 13
ormou-se uma longa fila, cada um aguardando a sua vez.
De repente, apareceu um guarda idoso que, dirigindo-se à fila, repetia em voz alta:
– Se há neste grupo pessoas vindas de Lyon, quero avisar que estou procurando os senhores Jacó e Michel
Dymetman. Se eles estão aqui, ou se alguém conhece o paradeiro deles, que entre em contato comigo.
Ouvindo esta comunicação, meu pai e eu nos entreolhamos. O que significava esta chamada? Quem estaria nos
procurando?
Não havia como nos apresentar, declarando que os nossos nomes eram Jacó e Michel Dymetman, nomes
visivelmente judeus, quando os nossos documentos diziam que nós nos chamávamos François Depauw e Peter de
Smed, cidadões belgas não-judeus!
Entretanto, era impossível ficarmos quietos e não dizermos nada, tínha-mos que saber quem estava nos procurando,
e o porquê!
Sem trocarmos qualquer palavra, reagimos por igual: seguimos o policial com os olhos. Vimos ele passar algumas
vezes frente à fila que estava sendo registrada, repetindo a mesma pergunta: alguém viu ou conhece Jacó e Michel
Dymetman?
Constatando que ninguém respondia ao chamado, o policial afastou-se do grupo, e entrou num corredor que levava a
outras dependências.
Nós o seguimos.
Percorrida uma distância razoável, aproximei-me dele:
– Ouvi o senhor procurar por duas pessoas vindos de Lyon, com o so-brenome Dymetman. Eu venho de lá, onde conheci
alguém com este nome. Quem os está procurando? Qual é o recado que o senhor tem para eles? Seremos libertados
amanhã, e poderíamos transmitir seu recado para o Dymetman de Lyon; não nos custaria nada.
– Não tenho recado algum. Só sei que há uma senhora presa aqui que me pediu que eu averiguasse, a cada vez que
prisioneiros chegas-sem de Lyon, se entre eles estão os Dymetmans.
– Mas – continuou o guarda – se vocês quiserem, podem falar diretamente com esta mulher; ela está numa sala no
final deste corredor. Digam ainda a ela que entendi que minha tarefa agora terminou, e que ela me pagou o
suficiente – terminou o guarda com um sorriso de quem entendeu tudo, mas prefere fazer de conta que não sabe
de nada.
Não tive tempo, nem a calma de espírito necessária para avaliar até que ponto o policial entendera quem na
realidade éramos, nem do risco que deliberadamente assumimos quando, desordenadamente, corremos na direção que
o guarda nos indicara.
Percorremos o corredor e entramos numa sala comprida e dividida em duas partes por uma grade de ferro.
Do outro lado da grade, havia um outro grupo de prisioneiros.
De repente, no meio destes, junto à grade, vi a minha mãe, sim, a minha mãe! A MINHA MÃE!
Meu pai e eu corremos!! Minha mãe logo nos viu; ela estava o tempo todo vigiando o corredor, verificando quem
estava che-gando, como se uma premunição lhe tivesse revelado: “Seu marido e seu filho vão aparecer. Aguarde-os.”
Abraçamo-nos através da grade... Tentamos nos tocar através do ferro frio...
Sinto ainda hoje este metal gelado separando-me de minha mãe...
Começamos a falar, os três ao mesmo tempo. Estávamos só despe-jando palavras: ninguém tinha a calma de
escutá-las...
Ríamos e chorávamos descontroladamente...
Depois de um tempo de total abandono, a consciência do perigo e da re-alidade externa voltou às nossas mentes,
abafando a manifestação visí-vel de nossas emoções.
Sabíamos que tínhamos que nos conter, isso levantaria suspeitas perigosas, a visão de cristãos com sobrenomes tão
arianos como Depauw e de Smed, abraçando uma mulher judia!
Através da maldita malha de ferro, aos trancos e barrancos, contamos à minha mãe todas as nossas aventuras.
Ela, por sua vez, relatou-nos o que lhe acontecera desde que saímos da Antuérpia: inicialmente, esperou pela volta
do senhor Albert. Quando ele não apareceu, ela tentou localizá-lo através de nosso conhecido comum. Foi tudo em
F
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vão. Albert desaparecera por completo. Até a sua esposa não soube o que lhe acontecera (desconfio que Jean
assassinou-o fria-mente para herdar seus contatos e assim mais facilmente roubar-lhe os clientes).
Minha mãe contou ainda que neste ínterim, muitos judeus receberam a mesma convocação para se apresentarem ao
serviço alemão, igual à que veio para meu pai.
Em poucos dias, percebeu-se que os judeus que obedeciam à ordem do ocupante nazista desapareciam por
completo.
Minha mãe não recebera nenhuma das cartas que lhe mandamos, sim-plesmente porque se mudara, para não sofrer
qualquer punição por ter seu marido desobedecido às ordens da Gestapo, não se apresentando à estação de trens e
desaparecendo de sua residência!
A minha mãe estava convicta de que tínhamos chegado a Lyon, e que a esperávamos lá, tudo de acordo com o
combinado. Por isto, ela resol-vera viajar para Lyon para juntar-se a nós. Mas como conseguí-lo?
Ela não encontrou nenhum outro contrabandista que a conduzisse até a França Não-Ocupada. Conversando com
uns e outros, ela soube que os trens que circulavam pela Bélgica e pela França não estavam sendo vigi-ados pelos
alemães. Assim, resolveu tentar a sorte, partir sem a ajuda de um guia experimentado, e procurar chegar sozinha até a
França Não-Ocupada, até Lyon.
Até aqui, a sua decisão estava mais de que correta! Só que...
Infelizmente, minha mãe achou mais conveniente empreender esta via-gem acompanhada por uma prima, chamada
Helena.
Quem é a prima Helena, que de repente entra nesta história, e que vai desenvolver um papel tão fatal no destino de
minha mãe?
Era bem mais jovem de que meus pais. Casou-se na Antuérpia antes da guerra com um primo meu, chamado
Simão.
Lembro perfeitamente que numa noite, quando a guerra ainda estava no seu início, com o exército alemão
invadindo a Polônia e a Bélgica ainda em paz, estes primos, Simão e Helena, vieram em visita à nossa casa. Logo
percebi que meus pais queriam que fosse dormir mais cedo. Entendi que pretendiam tocar em assuntos que queriam
esconder de mim.
Agi como todo adolescente:
Fiz de conta que fui dormir... e de meu esconderijo particular, do topo da escadaria, acompanhei a conversa toda!
Ouvi Helena dizer à minha mãe:
– Estou grávida e com medo. A guerra começou, a Alemanha está inva-dindo a Polônia; dizem que a Bélgica será
poupada. Mas quem pode ter certeza disto? Não seria aconselhável interromper a gravidez, tão ino-portuna neste
momento?
Minha mãe respondeu:
– Não faça isto. Toda criança traz a sua própria sorte; deixe seu filho vir ao mundo, e ele vai lhe trazer a sua
bênção.
Foi a pura verdade; este filho trouxe a sorte grande para a mãe dele, mas... só para a mãe dele... enquanto que para
a minha...
Quando a Bélgica foi invadida pelos alemães, meus primos fugiram da Antuérpia. Não tenho a menor idéia de
como e onde o casal separou-se, só sei que meu primo acabou chegando na cidade de Casablanca, no norte da África,
enquanto a prima, Helena, foi internada numa materni-dade no sul da França, onde ela deu à luz um filho a quem deu
o nome de Gilbert.
Um pouco depois da assinatura do armistício entre a França e a Alema-nha, Helena, levando o filho recém-nascido,
voltou para Antuérpia, en-quanto o marido permaneceu em Casablanca.
É natural que Helena desejasse juntar-se ao marido. Assim, minha mãe, tendo resolvido viajar para o sul da
França, convidou Helena para acom-panhá-la.
Elas pensaram: “Quem criará dificuldades para duas senhoras, ainda mais levando uma criança de menos de um
ano de idade?”
Continuou a minha mãe o relato: na Antuérpia elas conseguiram docu-mentos falsos de belgas não-judias, e
embarcaram num trem, chegando sem qualquer problema até a França Não-Ocupada, onde a polícia as deteve e as
interrogou longamente, amedrontando-as de todas as manei-ras possíveis.
Hoje, sei que esta pressão foi consequência da França-Livre ter assi-nado naqueles dias um acordo com os nazistas,
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comprometendo-se a entregar todos os judeus residentes em seu território, a começar por aqueles que lá se
encontravam ilegalmente.
Contou ainda minha mãe que ela não fraquejou; sustentou até o fim que era belga e, principalmente, não judia.
Mas Helena não foi tão firme, caindo logo em contradições. Apavorou-se pelas ameaças dos policiais e acabou por
confessar que ambas eram judias: ela belga, e minha mãe polonesa, viajando com documentos fal-sos de não-judias.
Minha mãe desmentiu a confissão, mas, mesmo assim, a admissão da Helena foi o suficiente para que fossem
retiradas do trem e enviadas para um campo, de onde minha mãe mandou-nos a sua primeira carta, pedindo socorro.
Chegando a este campo, as duas foram novamente interrogadas.
Quando Helena contou que seu filho Gilbert nascera na França, e por-tanto tinha a nacionalidade francesa, ela foi
imediatamente libertada e enviada para uma residência obrigatória. Naquela época, judeus france-ses, ou pais de judeus
franceses, ainda não eram enviados para campos de concentração. Minha mãe, porém, sendo polonesa, de religião judaica, e
não tendo o direito de residência na França, devia ser imediatamente deportada.
Por isto, ela foi transferida por diversos campos, até chegar ao de Rive-saltes, que a França tinha preparado para ser
um campo de concentra-ção, isto é, nele, ela concentrava os judeus que queria deportar para a Europa Oriental,
cumprindo assim o acordo que Pétain assinara com os nazistas.
Quase diariamente, trens inteiros lotados de judeus saíam de Rivesaltes, com destino aos campos da Polônia.
Assim que minha mãe chegou à Rivesaltes, ela soube o que se passava no campo. Encostada naquela grade fria,
bem calma e com o espírito alto, ela explicou:
– Percebendo que seria logo deportada, tentei a todo custo encontrar al-guma saída; procurei a enfermaria;
dirigi-me à médica de plantão:
– Doutora, estou grávida; mesmo que não o pareça, estou já bem adian-tada na gravidez. Será que a senhora
poderia obter uma autorização para que eu fique aqui em Rivesaltes até dar a luz?
A médica – contou minha mãe – olhou-me como se eu estivesse total-mente louca, e respondeu ironicamente:
– Imagine se este tipo de conversa boba pega aqui! Se bastasse ser grávida para não ser deportada, até os homens
declarariam que estão esperando neném.
– Só que eles não lhe oferecem o que eu lhe darei – continuou minha mãe, mostrando à médica 10 notas de 100
dólares.
– Não, a senhora tem razão. Muitos prometem, mas poucos podem pa-gar. Serei honesta com a senhora: de nada
lhe adiantará admiti-la no hospital por estar grávida; isto não lhe ajudará em nada; a senhora seria deportada da mesma
maneira. Mas posso fazer algo melhor – continuou a médica, pegando o dinheiro e colocando-o na sua bolsa – Vou
anotar na sua ficha que a operei e que a senhora precisa de uma semana de repouso para poder embarcar sem correr o
risco de uma hemorragia, que seria mortal.
– Ontem – continuou minha mãe dirigindo-se a nós – a médica chamou-me e informou-me que dera alta na minha
ficha e, assim, presumo que serei deportada amanhã.
Quando meu pai e eu ouvimos esta previsão sombria, pareceu-nos que o mundo estava desabando.
Mal acabávamos de encontrar a minha mãe, e ela seria deportada, já, provavelmente no dia seguinte!!
– Pelo menos há algo de bom no meio de toda esta desgraça – consolou-se minha mãe – Seus documentos são
perfeitos e provam que vocês são belgas e não-judeus. Ouvi dizer que há outros detentos aqui no campo que exibiram
documentos mostrando que são arianos. Até hoje não fo-ram deportados.
– Michel – acrescentou minha mãe – quero que você pegue a malha que está comigo. Ela lhe ajudará no inverno; é
bem grossa.
Minha mãe tentou passar a malha através das aberturas da grade.
– Mas mãe, que absurdo! Não foi você mesma que disse que seria envi-ada para a Europa Oriental, onde o frio
chega a 30 graus abaixo de zero? E você quer me dar uma malha, a mim, que tenho todas as chances de
permanecer no sul da França, onde o ano todo é um verão?
Mas minha mãe ficou insistindo; e eu também!!
Senti que minha mãe queria, a todo custo, ainda fazer algo de especial por mim, o filho dela.
Mas o que poderia ela fazer? Nada! Assim, ela resolveu dar-me a única coisa de valor que possuía, a malha, o seu
único agasalho!
A malha que poderia vir a ser a diferença entre ela sobreviver ou não nas neves da Polônia...
De repente, sentimos a exaustão tomar conta de nossos corpos e de nossas mentes. Deitamos no chão, ao lado da
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grade, colocando nossos dedos nas mãos de minha mãe.
Novamente, interrompo o curso do meu relato, para contar o que acon-teceu com Helena após ela ter sido libertada
no primeiro campo e envi-ada para uma residência forçada. Isto significava, na linguagem policial da época, que ela
tinha que permanecer residindo num lugar predetermi-nado pelas autoridades francesas.
Ela e seu filho foram enviados para um lugarejo cujo nome nunca soube.
Chegando lá, ela estabeleceu uma amizade muito especial com um se-nhor politicamente influente da região. Era
bem natural: ela era uma mu-lher jovem, simpática, com o marido bem longe...
“C’est la vie”, dizem os franceses...
Seu protetor conseguiu que seus documentos fossem alterados, omi-tindo-se que era judia. Assim, os documentos
que ela recebera qualifica-ram-na de belga, residente legalmente na França, mãe de uma criança francesa e não-judia...
Com estes papéis e a ajuda de seu protetor, ela passou mansamente os anos turbulentos que se seguiram.
Alguns meses após o fim da guerra, ela voltou para a Antuérpia.
Um mês depois, seu marido chegou de Casablanca.
Após a guerra, continuei a manter uma relação amistosa com meus pri-mos. Nunca houve qualquer recriminação
de minha parte. Mas também nunca falamos sobre a época da permanência da Helena na França, ou das causas da
deportação de minha mãe...
Como eu disse: “C’est la vie”...
No ano passado, em 1987, estivemos na Bélgica, eu e minha esposa Lili. Helena, já com mais de setenta anos,
estava ainda em plena forma: o filho Gilbert casado, os netos já na idade de namorarem. Novamente, falamos sobre
tudo, menos sobre a estadia de Helena na França du-rante a guerra...
Já na manhã seguinte, ao raiar do dia, uma sirene tocou ininterrupta-mente.
De sobressalto, acordamos.
A deportação está começando! – esclareceu minha mãe. – É sempre as-sim que é anunciada. Que pena, justo hoje,
quando acabamos de nos reencontrar...
Mal ela terminara essas palavras, os alto-falantes do campo grita-ram:
– Todos os prisioneiros devem reunir-se no pátio central para verificação de identidades. Quem não comparecer, ou
tentar esconder-se, será imediatamente fuzilado!
Sem interrupção, o aviso continuava jorrando pelos alto-falantes.
Os guardas passavam, abrindo as portas, inclusive a da grade que nos separava de minha mãe.
Todo mundo saía das barracas e juntava-se na praça central.
Foi o único momento em que pudemos realmente estar juntos com a mi-nha mãe e abraçar-nos de verdade.
Novamente, ela insistiu em me dar a sua malha, e eu, mais uma vez, re-cusei-a.
Havia uma fila de caminhões estacionados no pátio.
Um dos policiais pegou um megafone e gritou:
– Quem for chamado, que se aproxime imediatamente, e se ponha ao lado do primeiro caminhão para a devida
verificação. Quem não obede-cer de pronto ou tentar se esconder, será sumariamente fuzilado!
Nomes e mais nomes foram chamados. A quase totalidade obedeceu; o prisioneiro aproximava-se do primeiro
caminhão; mostrava os docu-mentos e subia no carro, que partia assim que estava lotado.
Quando a pessoa chamada não vinha, uma centena de guardas vascu-lhava o campo. Em poucos minutos, eles
encontravam o infeliz. Eles não o fuzilavam, mas batiam tanto que ele não podia mais subir sozinho no caminhão...
tinha que ser jogado em cima dele...
Imaginem o nosso estado de espírito. Cada nome chamado parecia afastar o perigo; mas, logo em seguida, vinha
um outro nome, e mais um, e mais um ainda, numa sequência alucinante... que não parecia terminar nunca.
Até o nome de minha mãe ser chamado! Anna Dymetman!!
Ela deu uma última olhada para nós. Depois, endireitou as costas e com passo firme, cabeça erguida e olhar
desafiador, aproximou-se do cami-nhão.
Em poucos minutos o carro estava lotado... e partiu...
Como foi passando perto de onde meu pai e eu estávamos, minha mãe jogou a sua malha para mim... Não havia
mais como recusá-la...
Não tenho a coragem de fazer qualquer comentário a respeito da cena que descrevi.
Só sei que enquanto viver, ela sempre voltará a se desenrolar na minha mente, com todos os detalhes do cenário:
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uma manhã linda, quente; céu azul, sem nenhuma nuvem; ar límpido, transparente.
Ouvia-se até os pássaros cantarem...
Nunca mais revi minha mãe.
Nunca soube para onde ela fora deportada.
Nunca encontrei alguém que a tivesse visto.
Nunca soube quando e onde seu corpo fora separado de sua alma.
Só sei que uma série enorme de infelicidades ocorreram, cuja sequência inexorável culminou com a sua
deportação.
Se minha mãe não tivesse sido deportada tão rapidamente... se perma-necesse por mais alguns dias em Rivesaltes...
se... se...
Mas o que Deus decidiu, tem que acontecer... e acontece... Sempre!
A maioria dos presos que estavam em Rivesaltes foi deportada no mesmo dia.
Os nomes de meu pai e o meu não foram chamados. Quando o último caminhão saiu, permaneceram só umas 50
pessoas na praça central do campo. Estas respiraram aliviadas: permaneceriam em Rivesaltes. Mas por quanto tempo?
Ninguém poderia responder.
Já no mesmo dia, novas remessas de presos vinham chegando. O campo encheu-se novamente.
No dia seguinte, houve mais uma chamada na praça central, e uma nova deportação. Novamente o campo
esvaziou-se, pronto para receber no-vas vítimas... que vinham chegando sem parar, num rodízio infernal.
Rivesaltes cumpriu com a sua meta: transformou-se numa enorme área de baldeação: milhares e mais milhares de
judeus trazidos de todas as partes da França Não-Ocupada davam entrada no campo. Após um a dois dias, eram todos
deportados para o Leste Europeu.
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CAPÍTULO 14
assados alguns dias, meu pai e eu fomos chamados ao escritório do campo:
– Examinei suas fichas; dizem que são belgas, alistados na Legião Es-trangeira e que não são judeus.
O oficial francês pegou nossos documentos, perscrutou-os com aten-ção, franziu as sobrancelhas com ar
ameaçador e continuou:
– Já mandei verificar a autenticidade de seus documentos, e o teor dos registros de nascimentos registrados nos
cartórios. Pela filiação, vou saber se têm algum avô ou bisavô judeu.
– Mas – prosseguiu o policial, olhando atentamente para os nossos rostos – vocês não são parentes pelo que consta
na documentação e são tão parecidos... Como? Como seria isto possível? Seria por que usam pa-péis falsos?!
– Não – respondi rindo, querendo provar que estava totalmente descon-traído – De forma nenhuma. Mas o senhor é
muito observador. O que realmente aconteceu é que este senhor que está a meu lado é meu ver-dadeiro pai, apesar de
que minha mãe nunca o contou a seu marido que, sem desconfiar de nada, bem naturalmente, assumiu minha
paternidade. Eu mesmo soube desta pequena “irregularidade” só após o falecimento de quem eu pensava ser meu pai.
É dele o sobrenome que uso, e que consta na minha certidão de nascimento. Para dizer a verdade, acho até que minha
mãe tinha toda razão de agir como o fez: meu verdadeiro pai é muito mais homem do que aquele ou-tro, que sempre
andava com uma garrafa na mão e nunca trazia um tos-tão para casa.
O oficial da polícia olhou para nós, sacudiu a cabeça por diversas vezes, deu um sorriso e encerrou a entrevista
com estas palavras:
– Se for uma mentira, ela é muito boa. Esta, ainda não ouvi.
De repente, uma nova ideia ocorreu ao policial; num tom de comando, ordenou:
– Se você for mesmo cristão, reze o “Ave Maria”, já, de imediato, de uma vez só!
– Como não – respondi. E recitei o “Ave Maria” numa tal velocidade, que as palavras se atropelavam.
Meu pai, que tinha declarado não falar o francês, mas somente o fla-menco, nem chegou a ser interrogado, como
geralmente acontecia; eu sempre falava pelos dois.
O policial não tinha mais por onde nos pegar.
– Podem sair – encerrou o interrogatório – Mas não se esqueçam, seus documentos estão sendo verificados nos
cartórios de suas cidades de origem; por enquanto, quero vê-los na Igreja todo domingo!
Ao sairmos, meu pai revoltou-se:
– Eu não ponho os pés na Igreja; podem até me deportar. Nesta emer-gência, não é imoral mentir, até negar ser
judeu; mas entrar numa Igreja, ajoelhar-me frente à imagem de Cristo, isto nunca! Mesmo que me custe a vida, não
violarei o primeiro mandamento de nossa fé: não adorar ído-los.
– Pai, você não tem razão. Eu vou entrar na Igreja, e vou me ajoelhar tantas vezes quantas forem precisas. Não diz
a Torá que devemos fazer tudo para salvar uma vida humana? Inclusive a nossa... Foi, aliás, o que os marranos
fizeram!
Ambos agimos conforme nossas ideologias: meu pai nunca entrou na pequena capela que existia no campo; eu a
frequentava todo domingo, assistindo à missa, copiando fielmente o comportamento dos verdadei-ros cristãos.
Todo domingo eu batia um papo com o oficial que nos tinha interrogado.
– Seu pai nunca vem? – perguntou ele. – Será que é melhor amante do que cristão?
– Para dizer a verdade, acho que o senhor tem razão. Foi meu outro pai que me acostumou a ir à Igreja. O senhor
vê como às vezes é até bom ter dois pais...
Escrevendo este relato, percebo quanto a relação com meu pai foi mu-dando, lenta e naturalmente. Antes de
sairmos da Antuérpia, era meu pai quem decidia tudo, enquanto eu era o filho obediente. Assim que entra-mos na
França, os papéis inverteram-se. Meu pai não falava o francês e seu flamenco era misturado com muitas palavras em
iídiche. Assim, tor-nei-me o porta-voz, enquanto meu pai mantinha o silêncio para não de-nunciar a nossa origem.
Vale a pena notar como as pessoas fazem de tudo para salvarem sua vida (eu inclusive!); ainda mal refeito do
trauma de ter presenciado a deportação de minha mãe para os campos do Leste Europeu, não he-sitei em transformá-la
em adúltera, e meu pai em alcoólatra e vagabundo, só para explicar a diferença de sobrenomes, problema que eu
mesmo tinha criado ao preencher as nossas cédulas falsas de identidade.
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Continuei a usar a mesma mentira por todo o tempo em que a guerra durou. Percebi quanto meus interlocutores
apreciavam a perversidade deste relacionamento na minha família, onde todo mundo enganava todo mundo e, assim,
esqueciam de especular sobre a diferença de nossos sobre-nomes.
Logo, tornamo-nos veteranos em Rivesaltes. Éramos entre os poucos que permaneciam no campo. Os dias, as
semanas, iam se passando, a rotina continuando a mesma: Rivesaltes ajuntava milhares de judeus por dia, e os
deportava imediatamente.
O ritmo dependia, na verdade, do número de vagões que os alemães en-viavam para Rivesaltes. Os franceses
sempre mantinham um “estoque” de judeus presos, com os quais lotavam imediatamente os trens, assim que
chegavam à estação.
Nossa vida começou a organizar-se na enorme balbúrdia que existia no campo.
A comida que recebíamos no campo era insuficiente, mas sempre con-seguimos enganar a cozinha, devido ao número
sempre variável de pre-sos.
Todos os prisioneiros, assim como nós mesmos, dormíamos na palha, que estava estendida sobre o chão das
barracas. Ninguém tinha a me-nor privacidade.
Um policial, já de meia idade, encarregou-me de preparar uma relação nominal diária dos prisioneiros que
pernoitavam no barraco no qual dor-míamos. Nos demais, outros prisioneiros prestavam o mesmo serviço, para que a
cozinha soubesse o número de refeições necessárias em cada alojamento.
Pensei: “Vale a pena criar uma boa relação com este policial. Será fácil, basta conversar com ele todo dia quando lhe
entrego a lista nominal. Se eu for hábil e captar sua confiança, ele será a chave de nossa liber-dade! É só puxar conversa e
ele acabará por contar aqueles pequenos detalhes que vão nos permitir fugir do campo”.
Infelizmente... nunca cometi engano maior!
Após repetidas conversas, constatei que este guarda nunca nos ajuda-ria. Ele era daqueles que obedecem
cegamente ao regulamento; seu único interesse era aposentar-se com a pensão integral.
Assim, não havia argumento ou suborno que pudesse levá-lo a trans-gredir as ordens de seus superiores.
Até aqui, pode parecer que só perdi um pouco de esforço, porque tempo eu tinha de sobra. Mas não foi só isto, não.
Perdi muito mais, como o ve-rão em breve.
Aguardem... e verão como em épocas de guerra só o impossível acon-tece...
Um belo dia, um acontecimento inacreditável surpreendeu o campo: apa-receu uma delegação de judeus de
Perpignan! Eram cidadãos france-ses, e, portanto, ainda não perseguidos pelas autoridades.
Eles obtiveram uma autorização especial para visitarem diariamente o campo de Rivesaltes para darem apoio moral
aos presos. As suas pos-sibilidades de ajuda concreta, entretanto, eram muito restritas, pois bem pouco podiam fazer.
Mas para mim, esta delegação de Perpignan transformou-se num ver-dadeiro milagre!
Fazia parte da delegação, um rapaz que, antes da guerra, morava na Antuérpia, com o qual eu estudara na mesma
classe durante anos! Be-rel fazia parte de minha turma, a mesma que tinha pregado aquele susto em Iukele!
– Como chegou aqui, Berel? – perguntei.
– Quando a guerra estourou, meus pais fugiram da Bélgica e chegaram até Perpignan, onde obtiveram autorização
oficial para se estabelece-rem. Quem veio hoje no campo – continuou meu amigo – é um grupo de judeus de
Perpignan, todos homens cujas famílias residem há séculos na França; eles organizaram-se e receberam uma
autorização do governo de Vichy (capital provisória da França Não-Ocupada), para prestarem ajuda humanitária aos
judeus presos em Rivesaltes. Eles ainda enviaram uma delegação a Vichy, onde mantêm muitas ami-zades, para tentar
sustar as deportações. Como são ingênuos! Pensam que vão conseguí-lo. Mas eu faço parte da Juventude Comunista.
Nós temos informações muito mais fidedignas de que estes cartolas franceses; sabemos que o governo da França NãoOcupada é um simples fantoche na mão dos alemães. Temos a certeza que não somente esta delegação não
conse-guirá nada em Vichy, mas que, em breve, todos os judeus serão deporta-dos, mesmo que sejam franceses, e que
seus ancestrais residiam nestas terras desde os tempos do Império Romano. Foi o que Pétain e Laval prometeram aos
nazistas. Eles cumprirão as promessas, Pétain para ganhar a benevolência dos alemães, Laval por ser nazista e antisemita desde sempre. Eu não vim a Rivesaltes para dar uma ajuda homeopática aos judeus presos aqui. Estou aqui por
motivos outros, ligados à resistência armada contra o ocupante nazista. A delegação dos judeus franceses virá aqui
diariamente. Eu planejava acompanhá-los só hoje. Mas agora que encontrei você, meu amigo de infância, vou fazer de
tudo para ajudá-lo, não com paliativos ou promessas vãs, mas de uma maneira concreta. Se você puder escapar do
campo, e chegar a Perpignan, posso fazer muito por você. Se o quiser, você vai entrar na resistência, onde eu já atuo;
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se não, irá para onde você o preferir. Posso arrumar documentos 100% genuínos de cidadão francês não-ju-deu.
Eles serão aparentemente emitidos pela prefeitura, de uma cidade destruída pelos bombardeios, de forma que será
totalmente impossível provar que eles não foram regularmente registrados nos cartórios locais.
E uma vez que seu francês é perfeito, você não vai correr qualquer pe-rigo. Ninguém, jamais poderá suspeitar
de você, e muito menos prendê-lo!
– Mas como ajudar meu pai? – perguntei – O francês dele é simplesmente horrível, o que, afinal de contas, é bem
normal, pois os emigrantes que vieram para a Bélgica nunca aprenderam a falar corretamente nenhuma das línguas do
país, nem o francês, nem o flamenco.
– Não vai haver problema algum – respondeu Berel – Para seu pai vou providenciar papéis de identidade de
cidadão apátrida, com residência legal na França desde antes da guerra. Também este documento ates-tará que seu pai
não é judeu e será 100% genuíno.
Teu documento, Michel, é mais fácil de ser providenciado e ficará pronto no mesmo dia. A carteira de seu pai será
confeccionada por compa-nheiros de outra cidade, e vai demorar uns cinco dias. Mas, permanece ainda o problema
principal: será que vocês terão a possibilidade de escapar de Rivesaltes e chegar à Perpignan? O campo aqui é
muito bem guardado e não pode ser atacado, nem invadido de fora.
– É um problema sério, Berel. Mas acho que encontrei a solução. Faz dias que descobri uma maneira de escapar do
campo, embora ela seja bastante arriscada! Já que tenho você como apoio assim que chegar à Perpignan, sinto-me
incentivado a arriscar-me e tentar escapar. Se eu for bem sucedido, vou estar depois de amanhã em Perpignan, nas
primeiras horas da madrugada.
– Ótimo; preciso agora só de uma foto sua e uma de seu pai. Assim vo-cês terão as suas carteiras de identidade
falsas prontas quando chega-rem em Perpignan. Assim que estiver na cidade, Michel, vá imediatamente para este
ende-reço. Sua carteira vai estar lá, aguardando-o. Volto ainda aqui amanhã de manhã, para que você me confirme sua
real possibilidade de fuga – terminou Berel.
– Perfeitamente – concordei, entregando-lhe as duas fotos.
Meu pai acompanhava a conversa.
– Como pensa escapar? – perguntou.
– Você deve ter visto a carroça que diariamente traz palha fresca para o campo. O carroceiro a espalha nos barracos
e retira a velha, que ele amontoa no seu carro.
Quando termina seu giro pelos diversos barracos, ele sai do campo atra-vés do portão principal, levando a
palha suja e fedorenta em sua carroça.
No portão, há sempre dois guardas que verificam se ninguém se escon-deu no meio deste enorme monte de
palha. Como fazem a inspeção?
Você já deve ter reparado como procedem. Cada um deles tem uma longa lança, terminada em ponta, e eles a
atravessam por diversas vezes no monte de palha.
Percebi que os guardas executam esta tarefa mecanicamente, sem prestar muita atenção no que fazem. Eles sabem
que ninguém nunca se escondeu nesta carroça.
Os guardas têm a convicção de que o medo das lanças pontiagudas é tão forte que ninguém seria tão louco de
expor-se a elas.
Mas eu acho que se me esconder bem em baixo do monte de palha, di-retamente sobre o piso de madeira da
carroça, as chances que as lan-ças me encontrarem serão muito pequenas: a carroça é realmente bem grande e algumas
investidas de lanças são claramente insuficientes. Sei que sempre há um risco; mas esta é a única maneira de fugir do
campo. Assim, estamos novamente sem outra alternativa. Sou de opinião que devemos ir em frente, e será o que Deus
quiser.
– Existe mais um outro perigo – complementou meu pai, com a voz visi-velmente apreensiva – Será necessário
tomar muito cuidado para que o carroceiro não perceba que alguém está se escondendo no meio da pa-lha descartada;
caso contrário, será ele próprio quem vai nos dedurar para os guardas no portão.
– Você tem toda razão, pai. Não só ele, como qualquer prisioneiro, pode transformar-se em delator. Assim, hoje
vamos acompanhar atentamente o carroceiro para ver como ele age, qual é o roteiro que segue, etc. Ele já deve ter
adquirido uma rotina, que repete diariamente. Eu vou fugir amanhã, e você, pai, vai me seguir dois dias depois,
quando sua carteira deve estar pronta. Nós nos reencontraremos no endereço que meu amigo Berel forneceu-nos hoje.
Com certeza, ele ficará em contato consigo, vindo visitá-lo diariamente no campo. Não haverá problema algum.
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Enquanto estava escrevendo esta parte de meu relato, percebi que as pessoas não aprendem nunca, nem mesmo
com os próprios erros.
Reparei, de repente, como imitei a decisão de meus pais que eu tanto criticava: eles achavam conveniente a gente
separar-se na Antuérpia, e eu tomei a mesmíssima decisão em Rivesaltes; as consequências tam-bém foram
identicamente infelizes.
Claro, na hora pensei que agira inteligentemente, mas o preço que pa-gamos por causa destas separações foi
altíssimo!
É ainda interessante notar como a mente humana funciona: o erro de meus pais, eu o percebi e critiquei logo; mas o
meu, somente agora, após 45 anos... É assim que todo mundo sempre age: percebe e critica os erros dos outros,
enquanto permanece cego para os seus próprios.
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CAPÍTULO 15
o dia seguinte, acompanhamos atentamente todos os passos do carro-ceiro. Constatamos que seria fácil esconderse no meio da palha: ele trabalhava sozinho, abandonando o veículo quando levava a palha limpa para o barraco,
ou quando carregava a usada de volta para a carroça.
Quando o veículo aproximou-se do portão de saída do campo, prende-mos a respiração; era este o momento
crucial! Analisamos cada gesto, cada detalhe.
Vimos os dois guardas, sem muito empenho, passarem repetidamente as lanças pela palha, dirigindo-as para a parte
superior da carroça, onde a palha era mais fofa. Nunca apontavam as lanças para baixo, na dire-ção da madeira que
formava o piso do veículo. Quem sabe receavam quebrar as pontas das lanças e serem punidos?
Esta observação deixou-nos bem mais confiantes. Até meu pai parou de morder o lábio inferior.
– Amanhã, é o dia da fuga! Você vai ver, pai, tudo vai dar certo.
No dia seguinte, à tardinha, como de costume, a carroça apareceu, cheia de palha nova.
Quando o carroceiro, na última parada, levou a palha fresca para o bar-raco, meu pai seguiu-o e posicionou-se bem
atrás dele, para bloquear-lhe a visão, caso fosse, de repente, se virar.
Com um pulo, enfiei-me no monte de palha suja, e coloquei-me em baixo da carroça, bem em cima do
madeiramento.
Ouvi o carroceiro subir no veículo, e mandar o cavalo seguir para frente.
Após ter andado poucos minutos, a carroça parou.
“Minha sorte vai se decidir agora; estamos frente ao portão”, pensei, re-zando silenciosamente.
Meu coração disparou. Fechei os olhos, apesar da total escuridão que havia por baixo da palha. Coloquei um lenço
na minha boca, para impedir qualquer grito involuntário de dor, caso a lança me atingisse.
– Que dia abafado – ouvi um guarda dizer ao carroceiro – Está muito quente hoje, e a sua palha está cada vez mais
fedorenta.
– Transportá-la é a coisa mais nojenta do mundo; mas em compensação, dá um ótimo adubo! – retrucou o
carroceiro.
– Não se queixe tanto, seu velho rabugento – respondeu o segundo guarda, bocejando bem alto.
Eu sabia que agora tinha chegado o momento decisivo.
Ouvi as lanças passarem através da palha. Por duas vezes, senti a palha mexer-se perto de mim, mas... as lanças
não me atingiram!
NÃO ME ATINGIRAM!!
– Vá e leva este mau cheiro embora – disse um guarda – E não beba de-mais – terminou o outro.
Ouvi os guardas abrirem o portão. A carroça voltou a locomover-se; saiu do campo de concentração e seguiu pela
estrada a fora.
Durante uns 20 minutos, permaneci imóvel.
Percebi pelo barulho das rodas que a estrada não era mais de asfalto, mas de terra com cascalho.
Devagar, afastei a palha e olhei à minha volta.
O campo tinha sumido do horizonte! Só se viam árvores! A carroça estava caminhando no meio dos campos!
O carroceiro tinha largado as rédeas, deixando o cavalo dirigir-se pelo instinto; estava ocupado demais, tomando uns
goles de sua garrafa.
Pulei do carro, o carroceiro não percebeu nada! Continuava bebericando e cantarolando.
Pensei: “Estou livre! Livre! LIVRE!” Dei uns pulos desajeitados, gritei para mim mesmo; senti-me eufórico, leve,
flutuando no ar.
Mas sabia que tinha que me acalmar. Sentei à beira da estradinha e dei-xei as emoções fluírem livremente até
ser capaz de pensar racional-mente.
Sabia que devia chegar a Perpignan só pelas 8 horas do dia seguinte, por-tanto, tinha a noite toda para percorrer os
vinte quilômetros que me se-paravam da cidade.
Andei pelos campos, guiando-me pela estrada. Deitei algumas vezes, até cochilei.
Enquanto estava saboreando a minha liberdade reconquistada, meus pensamentos voltaram-se para minha mãe.
N
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“Que pena ela ter sido deportada tão rapidamente”, concluí com amar-gura. “Se tivesse ficado mais alguns dias em
Rivesaltes, não seria eu, que não estava ameaçado de deportação, quem teria escapado do campo, mas seria ela, a
minha mãe!
Que falta de sorte...”
Então surgiu na minha mente aquela velha pergunta que perturba os ho-mens desde quando moravam nas cavernas:
“Por quê, meu Deus? Por quê? Por que esta desgraça? Por quê?”
E eu pergunto: quem pode responder?
Neste mundo, ninguém! Só Deus mesmo, Aquele que, como o descre-vem os nossos sábios, vê o final dos
acontecimentos antes mesmo que se iniciem, e, por isto mesmo, é O único a conhecer a resposta à esta eterna
pergunta.
No dia seguinte, cheguei a Perpignan. Fui logo no endereço fornecido por Berel; o próprio estava me aguardando.
Entregou-me a minha nova carteira de identidade. Estava perfeita. Eu tinha um nome bem francês, que já esqueci há
muito tempo.
– Michel, como estou feliz! Deu tudo certo. Você vai morar comigo até seu pai chegar. Hoje vou ao campo de
Rivesaltes e vou contar a ele as boas novas. Ele deverá fugir de Rivesaltes na segunda-feira, quando já vou ter
recebido a nova carteira de identidade dele.
À tarde, fui com Berel no melhor restaurante da cidade; estava faminto pelas coisas boas da vida.
– Se ainda tivesse que usar meus papéis falsos de belga, como o fazia até estar preso, estaria receoso de frequentar
um lugar público. Mas com estes documentos de cidadão francês, não tenho medo de ninguém – disse com alívio.
– É isto mesmo – concordou Berel – você não corre perigo nenhum; pode aposentar os seus medos: seus
documentos são genuínos, expedidos por uma prefeitura destruída pelos bombardeios. Assim, ninguém poderá provar
algo contra você, e muito menos prendê-lo. Desfrute destes dias até seu pai chegar. Na semana que vem, você terá que
decidir o rumo de sua vida. Venha comigo, lutaremos juntos na Re-sistência, e ajudaremos a construir um mundo sem
classes e sem ódio: a ditadura do proletário universal! Seu pai também poderá juntar-se a nós. Há bastante espaço para
todos os homens de boa vontade.
No dia seguinte, domingo, dormi até mais tarde.
Tomei café com os pais de Berel. Agradeci por tudo que seu filho fizera por mim.
– Vou dar uma volta pela cidade – disse, sentindo-me tão feliz – além do mais, tenho umas roupas sujas para mandar
lavar. Não posso mais an-dar de qualquer maneira, como em Rivesaltes; sou um homem livre agora!
– A única lavanderia aberta no domingo está no centro da cidade – adi-antou-se Berel – Se quiser, acompanho
você.
– Não gostaria que fizesse isto – interrompeu sua mãe – fique um pouco em casa; é domingo hoje. Por que será que
desde que se tornou ativo no partido comunista nunca mais quer ficar com os pais?
– Deixe, vou sozinho; é bom aprender a me virar sozinho na cidade – disse, tentando apaziguar o ambiente
familiar.
Claro, não podia adivinhar que nunca mais voltaria à casa do Berel, que nunca mais veria seus pais, e que, ele
mesmo, só encontraria daqui a uns oito anos, em circunstâncias bem diferentes... totalmente inimagináveis naquele
momento.
Vejam: no ano de 1950 estive com meu pai em Israel, que acabara de conquistar a sua independência.
Estávamos voltando para o aeroporto, que então se chamava “Lud”, e não “Ben Gurion”, como hoje.
Na estrada de acesso ao aeroporto, um soldado parou nosso carro, pe-dindo documentos. Era um procedimento bastante
corriqueiro; havia muitos atentados terroristas e a região do aeroporto era uma área sen-sível.
Sem me preocupar em olhar para o rosto do militar, entreguei-lhe meu passaporte.
De repente, vejo o soldado colocar a cabeça para dentro da janela do carro, e dizer emocionadamente:
– Mas é você, Michel?! Não é possível!!
Espantei-me, especialmente porque nos meus documentos meu nome consta como Mieczyslaw, e não
Michel, que é somente um apelido.
Saí do carro. Olhei bem para o soldado. Reconheci-o então: era Berel!
Aproximei-me dele. Dei-lhe um abraço bem apertado, envolvendo-o nos braços.
– Michel, estou de guarda. Não posso dar vazão pública a sentimentos pessoais. Preciso manter o decoro.
– Mas, Berel, meu avião sai daqui a 20 minutos. Viajo para a Europa. Pre-ciso falar com você. Devo-lhe tanto. Não
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posso ir embora assim. E como estão seus pais?
– Michel, meus pais morreram durante a guerra. Eu estou muito bem. Não posso mais continuar a conversa. Se o
destino o quiser, nós nos reen-contraremos.
Infelizmente, o destino, até agora, não nos proporcionou esta oportuni-dade. Nunca mais revi Berel, nem sei onde
se encontra, nem como seus pais morreram.
Depois desta rápida viagem para o futuro, volto para Perpignan, quando saí da casa de Berel para dar um passeio
pelas ruas da cidade.
Senti-me feliz. Estava com sede de respirar o ar da liberdade: ir para onde o quisesse, sem ter que pedir autorização
a ninguém.
Cheguei ao centro. Parecia que toda a cidade estava passeando pelas ruas. “É bem natural” – pensei – “é domingo;
o tempo está tão bonito e as árvores cheias de flores; exatamente como meus pensamentos e a mi-nha alma... É tudo
alegria e felicidades”.
Parei frente a um grande cruzamento circular, de onde saíam umas dez ruas, como se fossem raios do sol. No
centro deste cruzamento, ha-via uma pequena ilha; em sua volta, os carros circulavam morosamente, toda a área vivia
entupida: carros demais, gente demais.
Os que atravessavam o cruzamento, temerosos dos carros que vinham por tantas ruas, dividiam a travessia em duas
etapas. Olhando por todos os lados para não serem atropelados, procuravam chegar incólumes à pequena ilha central.
Davam uma pequena parada neste refúgio, olha-vam novamente em todas as direções, para depois prosseguirem até o
outro lado do cruzamento.
Segui o fluxo dos que estavam curtindo este domingo ensolarado. Iniciei a travessia do cruzamento. Com muito
cuidado, andei em direção à pe-quena ilha. Fui olhando para a direita e para a esquerda a fim de evitar que algum dos
carros que vinham de todos os lados me pegasse, até chegar à ilha central.
Quando a alcancei, de repente, vi-me frente a um homem que vinha vindo em sentido contrário. Não nos vimos até
chegarmos à ilha, por estarmos, cada um no seu lado da ilha central, atentos demais ao atravessarmos este cruzamento
movimentado.
Nunca, mas nunca mesmo, alguém vai adivinhar quem era o homem com quem esbarrei!
Era a mais improvável das coincidências tornando-se realidade!
Era o guarda do campo de Rivesaltes a quem eu entregava diariamente a relação dos prisioneiros que pernoitavam na
minha barraca!
É possível uma coincidência destas acontecer na vida real?
Sim, infelizmente aconteceu! Aconteceu mesmo!
Esbarrei numa das pouquíssimas pessoas para os quais meus docu-mentos de cidadão francês não tinham o menor
valor. Ele me conhecia muito bem do campo de Rivesaltes e sabia que eu era cidadão belga, que me chamava François
Depauw.
– Mas François, você aqui? Não é possível! Quando não o vi no campo ontem dirigi-me imediatamente ao
escritório: estava precisando de sua lista. Fui informado que você não tinha sido transferido para outra bar-raca, nem
deportado, nem libertado.
Agora, entendo o que aconteceu: você fugiu do campo! Pensando bem, você foi o único a ter conseguido fugir de
Rivesaltes... mas, feliz-mente, só por poucas horas!
Enquanto falava, colocou uma mão pesada sobre meu ombro, virou-se de volta para a direção de onde veio, e
continuou:
– Está preso. Venha comigo. Não procure escapar; caso contrário, serei obrigado a atirar em você. Não me force a
matá-lo!
“Não só este guarda de Rivesaltes é um dos poucos que me co-nhece bem pessoalmente, mas também é um policial
incorruptível. Nada posso oferecer-lhe: ele só está interessado em sua aposentadoria”, pensei amargamente,
lamentando minha falta de sorte.
Mesmo assim, tentei falar, suplicar. Mas foi tudo em vão. Não consegui fazê-lo mudar de opinião.
Atravessamos o cruzamento. O guarda, sempre me segurando com fir-meza, entrou no saguão de um hotel luxuoso,
que estava situado numa das esquinas.
Dirigiu-se à mesa da telefonista, instalada na parte do fundo do hall de recepção.
– Ligue para a polícia. Informe que o guarda Duvallier, de Rivesaltes, acaba de prender um fugitivo do campo.
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Peça-lhes que mandem uma vi-atura, imediatamente, para recolher o prisioneiro e levá-lo de volta para Rivesaltes.
E você, François – continuou o guarda – fique a meu lado. Não se afaste, nem dê um passo sequer. Vamos
aguardar aqui o carro da polícia. Sua brincadeira estúpida em querer fugir poderia abalar o conceito de nosso campo e
dificultar a minha aposentadoria, teve um fim bem merecido: você está novamente preso, e eu ainda obterei o crédito
de sua recap-tura!
O guarda postou-se entre a mesa da telefonista e o portão de saída do hotel, barrando-me qualquer possibilidade de
fuga.
Ao lado da mesa telefônica, vi uma escada que dava acesso ao primeiro andar, onde estavam os quartos do hotel.
Vi um hóspede descer pela escada. Outra incrível coincidência!
Vejam só quem desceu! Foi Henrique que, umas semanas atrás, nos tinha guiado, a meu pai e a mim, até a França
Não-Ocupada...
Quando ele me viu parado ao lado do guarda, entendeu logo o que tinha ocorrido. Ele me fez um sinal discreto que
significava: “Sinto muito, não tenho qualquer possibilidade de ajudá-lo; não mostre que me conhece, não me coloque
em perigo.”
Percebi que só tinha poucos minutos para salvar-me. Caso contrário, a viatura da polícia apareceria, eu estaria
novamente preso, e, quem sabe, como castigo pela fuga, seria deportado no primeiro comboio para o Leste Eu-ropeu!
Olhando bem, vi no fundo do hall de recepção, atrás da mesa da recep-cionista, uma porta dupla aberta,
que dava acesso a um espaçoso salão-restaurante, onde havia uma centena de mesas, todas elas ocupadas.
“Hoje é domingo! Dia clássico do almoço em família!”, pensei imediata-mente.
Em todas as mesas viam-se famílias inteiras, pais, avós e netos, todos bem vestidos, saboreando os pratos
domingueiros.
Vi também que o restaurante, que tinha uma entrada pelo hall do hotel, terminava lateralmente por uma longa
sucessão de portas fixas envidra-çadas, através das quais a rua estava visível.
Estas portas tinham a parte inferior em madeira trabalhada; na parte su-perior, um vidro grande que deixava entrar
a claridade da luz e o calor do sol.
“Deve haver alguma outra porta de entrada para este restaurante, ser-vindo as pessoas que vêm entrando pela rua”,
pensei. “Com certeza, este estabelecimento não limita sua clientela somente aos hóspedes do hotel; é claro que eles têm
interesse em atender qualquer transeunte que passe pela rua, especialmente por estar numa área superlotada de gente”.
Vi que o guarda Duvallier estava com o rosto virado para a porta de en-trada do hotel, aguardando
impacientemente a chegada do carro policial; devido à sua posição, ele não podia acompanhar meus atos.
Para ganhar alguns minutos extras, postei-me atrás dele, coloquei meu embrulho com roupas sujas entre as pernas
dele, empurrando-o com força. Surpreendido pelo imprevisto de minha investida, ele caiu no chão, numa mistura
grotesca de pernas e de braços.
No mesmo instante, entrei correndo no salão do restaurante, aproxi-mando-me das portas envidraçadas, procurando
uma que abrisse para a rua.
Vi que as primeiras portas eram fixas, e prossegui correndo entre as mesas, procurando aquela que, pelo meu
raciocínio, devia permitir aos transeuntes da rua entrarem diretamente para o restaurante.
Enquanto estava correndo no enorme salão, no meio das mesas cheias de clientes, Duvallier levantou-se.
– Peguem o ladrão! – gritou ele. – Peguem o ladrão!
É um assassino! É perigoso! Peguem-no!
Enquanto corria, vi um verdadeiro pandemônio estabelecer-se no restau-rante: homens levantando-se, querendo me
agarrar; outros protegendo os filhos, envolvendo-os nos braços; mulheres gritando histericamente, tentando esconderse por baixo das mesas...
Vendo tudo isto, senti que só tinha alguns segundos até que alguém me agarrasse, ou me derrubasse.
Vi também que estava chegando ao fim da sequência das portas de vidro e que todas estavam fixas!
Fixas! Meu Deus! FIXAS!!
Nenhuma delas abria. Nenhuma permitia uma saída para a rua.
Não hesitei.
Com um golpe da mão, quebrei um dos vidros.
Pulei pela abertura, apesar dos cacos ainda presos na moldura.
Supus que o nível da rua, que eu via através do vidro, estava igual ao da entrada do restaurante.
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Enganei-me...
Também, como poderia saber que nesta esquina, a rua que eu estava vendo através das portas envidraçadas estava
fortemente inclinada e nem passeio possuía, mas... uma escada íngreme, que acompanhava o desnível de mais de
quatro metros.
Desnorteado pela diferença de nível, desequilibrei-me ao cair na escada e rolei pelos degraus, até chegar ao último.
Desmaiei...
Como num sonho, tive a sensação de estar rodando numa ambulância.
Adormeci de novo. Devem ter-me administrado algum sonífero.
Só acordei mesmo deitado numa cama de hospital!
Um médico estava me examinando.
Logo percebi que minha mão esquerda estava enfaixada. Doía muito.
– O senhor foi operado – disse o médico – Ainda bem que meu assistente estava hoje de plantão. Sua operação foi
realizada imediatamente, antes mesmo que eu pudesse chegar ao hospital.
– Mas, doutor, o que aconteceu? Fiquei inconsciente. Não lembro de nada.
– Você teve um corte profundo na mão. Conseguimos estancar a hemor-ragia e o corte foi costurado. Sua
recuperação talvez demore um pou-quinho, mas não vai deixar qualquer sequela.
Infelizmente o médico enganou-se. A operação foi muito mal feita, prova-velmente por ter sido realizada num
domingo, por um assistente pouco interessado numa operação que não seria remunerada: era efetuada num prisioneiro
que se encontrava sob custódia policial!
Até hoje, as sensações de tato e de dor estão embaralhadas na minha mão esquerda, de forma que quando toco em
algo, sinto, ao mesmo tempo, uma dor percorrendo a mão. Até o mais leve vento faz com que eu sinta o sopro do ar
misturado à dor. Mas, felizmente... trata-se da mão es-querda.
Depois da guerra, consultei outros médicos: já era tarde demais para se tentar uma nova operação que pudesse
aliviar o incômodo.
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CAPÍTULO 16
outor – disse baixinho ao ouvido do médico – estive preso em Rive-saltes, por ordem do ocupante nazista.
Fugi do campo e fui recapturado. Ajude-me, faça que permaneça o maior tempo possível no hospital. Não
permita que me mandem de volta para Rivesaltes; provavelmente vão me deportar para os campos gelados do
Leste Europeu.
O médico não respondeu. Olhou para mim e piscou com o olho es-querdo, como se dissesse: “Vou ajudar o mais
que puder, mas sem comprometer-me”.
Eu era o único paciente a ocupar o quarto. Dois policiais estavam senta-dos, conversando entre si.
– Senhores – perguntei – como cheguei aqui? Por que estão me vigiando?
– Você está preso. Deveria ter sido levado para o campo de Rivesaltes; mas, feriu-se e teve que ser imediatamente
operado; levaram-no ao hospital, onde vai permanecer sob nossa custódia. Assim que o médico lhe der alta, você vai
ser reconduzido à Rivesaltes.
Passados uns quinze dias, senti-me bastante recuperado, e comecei a pensar em fugir.
Na primeira visita de rotina do médico, pedi-lhe:
– Doutor, gostaria que o senhor permitisse que eu vestisse as minhas roupas e pudesse perambular pelo hospital.
– Em termos médicos, não tenho nada contra o seu pedido; entretanto, ele me obrigará a lhe dar alta daqui a uns
dias. É bem isto que você de-seja?
– Doutor, o senhor tem razão; quero só poder sair um pouco da cama, mas é prematuro demais receber alta.
– Para este caso, tenho a solução perfeita.
O médico pegou meu prontuário, e anotou:
“O paciente pode vestir-se e andar pelas dependências do hospital das 9 às 11 horas da manhã, e das 13 às 15 à
tarde, para melhorar a circula-ção sanguínea. O restante do tempo, deve permanecer deitado na cama, por estar ainda
fraco demais.”
– Perfeito, doutor; sou-lhe muito grato.
De tarde, saí da cama; vesti-me e dirigi-me aos policiais:
– Como vocês o veem, o médico mandou-me andar pelo hospital; acom-panhem-me, por favor.
Um dos guardas respondeu:
– Eu vou com você; meu companheiro Antoine está com o sono atra-sado; vamos deixá-lo descansar.
Saímos os dois; fomos passeando devagar, até chegarmos à entrada do hospital. Era esta a área que eu pretendia
estudar, para traçar meu plano de fuga.
Enquanto eu estava acompanhando o movimento da portaria, vi um poli-cial graduado entrando no hospital.
Ele dirigiu-se diretamente para nós e, apontando-me com o dedo, perguntou ao guarda:
– É este o prisioneiro que foi confiado à sua guarda?
– Sim, meu comandante.
– Onde está seu companheiro, o guarda Antoine?
– Acabou de subir no quarto do prisioneiro; teve que ir ao banheiro – mentiu o guarda.
– Policial Lafayete, você e seu companheiro serão punidos, pois demos-traram não terem a mínima capacidade
para o desempenho de suas fun-ções. Vocês, por acaso, não sabem que um prisioneiro hospitalizado não pode usar
roupas civis? Não sabem que ele não pode sair sem ser algemado? Voltem já para o quarto do prisioneiro, retirem-lhe
as roupas, e só permitam que transite no andar dele usando pijama, e em qualquer outra área, coloquem alge-mas nele.
E assim, terminou a minha tentativa de fuga... antes mesmo de ter con-cebido meu plano, ele já estava abortado.
Permaneci no hospital por mais de dois meses. O médico ajudou-me, protelando a minha alta.
Fui interrogado por diversos policiais, querendo saber como obtive meus documentos falsos. Contei mentiras
convincentes, conseguindo não de-nunciar meus amigos.
Durante todo o tempo, fui constantemente vigiado por dois policiais, que se revezavam a cada oito horas. Parece
tão desproporcional a mobiliza-ção de tamanho efetivo policial para vigiar um preso, menor de idade, sobre o qual
pairava uma única suspeita: a de ser judeu!
Enquanto estava no hospital, sabia que não podia procurar contato com a família de Berel: seria denunciá-los de
D
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me terem fornecido documentos falsos.
Recebi duas visitas: a primeira foi a do cônsul belga, cuja presença soli-citei à polícia. Pude conversar longamente
com o representante da Bél-gica, que concordou em entrar em contato com meu pai, em Rivesaltes, e contar-lhe o que
me acontecera.
Enquanto estava no hospital, a Alemanha invadiu a França-Livre e ocu-pou-a sem desferir um só tiro.
Alguns dias depois, recebi a segunda visita, totalmente imprevisível: a de meu pai!
Imaginem só, de repente, meu pai apareceu no meu quarto de hospital.
Não pude acreditar no que meus olhos viam: meu pai estava livre!
Nós nos abraçamos longamente, e aos poucos meu pai foi me contando as últimas novidades:
– Quando a Alemanha invadiu a parte da França, chamada Não-Ocu-pada, ela precisava alojar as suas tropas.
Requisitou o campo de Rive-saltes, cuja direção recebeu 24 horas para esvaziá-lo.
Para cumprir com a ordem, deportaram imediatamente todos os judeus para a Polônia, e libertaram os casos ainda
em apuração, inclusive o dos dois belgas, que realmente não lhes pareciam judeus: François Depauw e Peter de
Smed...
Você, Michel – continuava meu pai –, constava nos seus livros como prisi-oneiro em tratamento no hospital em
Perpignan. Por isto, sua libertação só pôde ser anotada em sua ficha, mas não efetivada; eu, presente no campo, fui
imediatamente solto, sob condição de providenciar residência e emprego fixos, imposição também válida para você.
Fui à Perpignan – continuou meu pai – Entrei em contato com a família de Berel. Pedi ajuda: precisava obter
emprego e residência!
Eles contaram-me que a Resistência tinha se infiltrado numa organiza-ção inicialmente criada pelo governo fascista
de Vichy. Trata-se do Grupo de Trabalhadores Estrangeiros que prestam Serviço Voluntário à França. A denominação
da organização já esclarece a atividade de seus membros. Mas, na realidade, este grupo não executa trabalho algum; a
Resistência só o usa para acobertar o envio de voluntários para o exér-cito aliado, sediado em Londres.
Ela transfere as pessoas de um campo para outro, sem levantar qual-quer suspeita e as leva, por etapas, até a
fronteira com a Suíça ou com a Espanha.
Entre tantos outros, a Resistência também usa o campo de Château-neuf-les-Bains. Neste, ela ajunta os que
possuem recursos, porque lá não existem as barracas típicas para trabalhadores, mas somente um hotel de boa
categoria que, evidentemente, deve ser pago pelo próprio voluntário.
É para lá que vocês devem dirigir-se, aconselharam-me os pais de Berel. Para a burocracia policial, vocês vão estar
perfeitamente em ordem: vão ter residência e emprego fixos!
Michel – prosseguiu meu pai – achei ótima a sugestão de nossos amigos. Registrei você e a mim mesmo neste campo.
A administração de Rive-saltes aceitou e deu-nos a devida autorização para residirmos e traba-lharmos em
Châteauneuf-les-Bains.
A mim, que fui libertado, deram-me dois dias para chegar ao campo.
Desta vez, recebi documentos genuínos com o nome de Peter de Smed, cidadão belga, não-judeu, com a
permanência legalizada na França!
Hoje mesmo tenho que embarcar para Chateauneuf. Infelizmente, não posso permanecer aqui em Perpignan,
aguardando a sua alta do hospi-tal. Michel, fale com o médico, e siga-me o mais rápido possível.
– Pai – respondi – você está certo. Hoje mesmo, vou falar com o médico; sei que quanto mais cedo chegar a Chateauneuf,
mais rápido vamos rei-niciar a nossa viagem para a Inglaterra, e esquecer as nossas privações atuais.
Sinto-me um idiota – continuei – em ter fracassado tão lamentavelmente na minha fuga. Não fui um tolo querendo
passear pelas ruas de Per-pignan e um incapaz, deixando-me apanhar?
– Não fique se culpando, filho, o que aconteceu são coisas da vida que ninguém pode prever. Não adianta nada se
lamentar. O que você tem que fazer é extrair uma lição dos erros cometidos.
Despedimo-nos, tristes por ficarmos novamente separados, mas espe-rançosos de nos reencontrar brevemente em
Châteaunef-les-Bains. Quem sabe seria esta a última etapa antes de alcançarmos a tão so-nhada e verdadeira
liberdade?
Na próxima visita do médico, pedi que me desse alta.
Ele atendeu-me prontamente.
Na tarde seguinte, a polícia devolveu-me as minhas roupas e mandou que me vestisse.
Levaram-me para a chefatura da polícia.
81
– François Depauw, você foi capturado enquanto fugitivo de Rivesaltes; agora que recebeu alta do hospital, deveria
ser levado de volta para o campo de onde fugiu. Acontece que Rivesaltes não está mais sob jurisdição da polícia
fran-cesa, por estar sendo usado pelo exército alemão.
Assim, não sei bem o que devo fazer com você.
– A resposta está bastante óbvia. Sei que fui libertado do campo de Rive-saltes e que devo dirigir-me a Chateaunefles-Bains, onde foi fixada mi-nha residência legal; lá devo prestar serviço para uma organização cri-ada pelo próprio
governo francês.
– É possível que o que você diz seja pura verdade. Mas, para poder soltá-lo e deixá-lo livremente subir no trem,
preciso receber uma autori-zação escrita, assinada pelo meu superior direto, o superintendente das prisões. Assim, não
tenho outra opção a não ser solicitar-lhe que ele se pronuncie.
Enquanto esperamos, você permanecerá confinado numa cela no porão desta delegacia, onde você terá muito
espaço à sua disposição. Tenho certeza que será só por pouco tempo.
Mas, em nenhum momento desta cruel guerra, este “pouco tempo” e “muito espaço” foram tão duros e
desumanos...
Especialmente por este sofrimento ser totalmente desnecessário e unicamente devido à indiferença e ao sadismo
dos “guardiões da lei”, característica própria das polícias de todos os tempos.
Vejam só... No mundo todo existe uma lei chamada “habeas corpus”. O que determina ela?
Ela garante que ninguém pode permanecer preso sem ordem judicial. Assim, quando a polícia prende algum
suspeito, ela deve solicitar que um juiz decrete sua prisão. Caso contrário, no prazo máximo de 24 horas, ela deve
libertá-lo.
Assim, qualquer preso permanece em custódia na delegacia policial so-mente o tempo necessário para que o juiz
assine a ordem de prisão, o que, normalmente, só demora algumas horas.
Por ser esta detenção provisória e de curta duração, o porão da chefa-tura da polícia não possuía qualquer
instalação sanitária, e não servia alimentação nenhuma.
Entretanto, permaneci por 15 dias neste porão! Quinze dias!!
Só podia satisfazer as necessidades fisiológicas no chão da cela; eu não recebia qualquer alimento ou mesmo uma
gota d’água.
Minha salvação foi o passeio diário, que se fazia numa área interna da delegacia, pelo tempo necessário para que as
faxineiras lavassem com esguicho o chão do porão, para remover “aquelas” sujeiras acumuladas no dia anterior.
Nesta meia hora, eu podia tomar água à vontade e tinha a possibilidade de contatar algum guarda que, mediante
“comissões” generosas, con-cordava em ir buscar comida nos restaurantes da redondeza.
Mas, além de pagar preços exorbitantes, havia um problema adicional: a Europa estava em guerra, a Alemanha
requisitava tudo. Assim, havia uma escassez de comida, e só quem tinha acesso ao mercado negro podia suprir suas
necessidades.
Por isso, tanto no campo de Rivesaltes como no hospital, a alimentação estava racionada.
Nos restaurantes de Perpignan, a situação era idêntica: faltava de tudo. Resumindo, eu estava num estado crônico
de fome: conseguia, quando tinha muita sorte, uma refeição por dia; na maioria das vezes, nem isto.
Mas além da falta de higiene e a escassez da alimentação, um problema bem maior ainda me afligia no porão: os
outros detentos!
Quem é levado à cela de uma delegacia? Só quem acaba de ser preso e aguarda a ordem de prisão assinada por um
juiz.
Mas eu fui trancafiado no porão da delegacia principal de Perpignan. Para lá só eram levados os acusados de
assassinato, presos em fla-grante!
Em média, todo dia passavam, pelo “meu” porão, dois a três destes acu-sados.
Para terem uma ideia de como era meu “convívio” com eles, vou descre-ver o meu encontro com o
assassino Villeneuve, preso em flagrante.
O porão não tinha janela; uma luz elétrica amarelada estava acesa inin-terruptamente; ninguém sabia se era dia ou
noite.
De repente, a porta de ferro abriu-se. Um homem de uns 50 anos fora empurrando para dentro: era baixo,
gordo, com o rosto todo vermelho e a roupa desarrumada. A camisa estava para fora da calça, gravata
desatada e o colarinho aberto. Viam-se coágulos de sangue na calça e na camisa.
82
– Eu a matei – gritou ele ao entrar – eu a matei, aquela puta desgraçada. Eu mostrei a ela quem eu sou!
De repente, apercebeu-se de minha presença.
Agarrou-me pelo paletó; sacudiu-me e continuou gritando:
– Ninguém ri de mim. Eu mato quem se atreve a zombar de mim.
Sua raiva foi aumentando, alimentada pela sua própria histeria.
– Vou matar você mais uma vez, seu Harold nojento. Você pensou que podia enganar-me. Mas a mim, ninguém
me passa a perna! Quem tentar, morre!
O assassino pôs as mãos em volta de meu pescoço, e passou a estran-gular-me.
Com dificuldade, consegui desvencilhar-me.
– Não sou Harold – tentei dizer; só que minha voz mal saía da garganta dolorida.
– Você não é Harold. Claro, o Harold já matei. Quebrei o pescoço dele. Quebrei-lhe a cabeça. Bem feito. Ele
mereceu morrer! Mas não toquei na Madalena, na minha mulher. Eu nunca a machucaria. Nunca. Amo-a demais.
De repente, caiu num choro convulsivo.
– Não sei mais o que digo. Será que matei Madalena, que matei Harold? Não é possível! Meu Deus, não sei mais
nada! Será que estou ficando louco?
O assassino continuou a chorar; desta vez o choro acalmou-o. Devagar, sua respiração normalizou-se.
Vendo que o recém-chegado se acalmara, aproximei-me dele:
– O senhor não teria, por acaso, umas bolachas, um pedaço de chocolate, enfim, alguma comida qualquer no bolso?
Estou com muita fome. Há tempos que não como quase nada.
Percebi que o assassino nem ouvia meu pedido; estava perdido em seus pensamentos. O remorso começava a surgir
em sua consciência.
Vi que estava bem mais calmo. Enfiei minha mão nos seus bolsos à pro-cura de alguma comida.
De repente, o recém-chegado entrou numa nova crise de raiva; voltou a gritar; a histeria tomou novamente conta
dele.
– Quero a Madalena, é minha mulher! Jurou-me fidelidade eterna.
Virou-se para mim, levantou o punho direito e, com ar ameaçador, gritou:
– Foi você quem matou Madalena. Não vou deixar seu crime impune. Mato você já!
Vi
que
se
tornara
novamente
perigoso.
Tentei
fugir
dele,
mas
para onde?
Corri, ele veio atrás de mim. Logo estávamos correndo em volta da cela... em círculos... um atrás do outro.
No meio à nossa correria, a porta do porão abriu-se.
Entraram dois guardas.
– Villeneuve, venha conosco!
Pegaram meu visitante à força; algemaram-no.
Um dos policiais virou-se para mim, e disse bem humorado:
– Pelo menos você não sente tédio. Veja como nós nos preocupamos com você; preparamo-lhe uma boa diversão.
Pode nos agradecer.
Já vai dar entrada um novo suspeito; um tarado sexual.
Tome cuidado, ele ainda estupra você...
Assim passaram-se os 15 dias no porão da delegacia central de Per-pignan; pode até parecer exagerado o retrato
que pintei de meu “compa-nheiro” de cela, mas, a maioria deles realmente se comportava daquela maneira louca que
tentei descrever. Não é de estranhar: eram todos as-sassinos presos em flagrante, totalmente desnorteados e ainda sob
o impacto de seu gesto desesperado e irreversível, cometido no auge de uma explosão de paixão incontrolável.
E eu... Eu só queria saber se eles tinham alguma comida nos bolsos, eu estava com tanta fome...
Lá pelo décimo quinto dia, o delegado mandou chamar-me:
– Recebemos a informação que solicitamos. Você disse a verdade. Nos documentos de Rivesaltes consta a sua
libertação e a fixação de sua residência em Chateauneuf-les-Bains. Você está livre! Pegue o trem que parte hoje à
noite, e boa viagem!
– Senhor capitão – arrisquei-me, apresentando um pedido, que se tor-nara necessário – Preciso de um favor seu.
Gostaria que me permitisse ficar mais alguns dias em Perpignan para poder consultar o dentista que estava me
tratando no seu consultório particular enquanto eu estava no hospital.
83
Nestes últimos dias, tive fortes dores de dentes e tenho que concluir o tratamento iniciado enquanto eu estava
hospitalizado, para não perder os dentes.
– Posso permitir-lhe uma permanência máxima de dois dias aqui na ci-dade, e nada mais; depois, terá que viajar
para Châteauneuf-les-Bains, estando seus dentes tratados ou não.
– É mais de que o suficiente. Agradeço-lhe muito.
Ao sair da delegacia, senti quanta fome eu tinha.
Pedi informações, e logo encontrei a rua onde só havia restaurantes, um ao lado do outro.
Entrei no primeiro, e encomendei todos os pratos que o racionamento em vigor permitia que fossem servidos; a
comida, pouco consistente, não acabou com a minha fome.
Não pensei muito. Paguei a conta e fui para o restaurante ao lado, onde consumi o almoço completo que lá
serviam.
Mas, nem este me satisfez, e, assim eu fui continuando, indo de restau-rante em restaurante, até chegar ao final da
rua, sempre com a mesma fome.
Eu estava pensando: “À primeira vista, parece um exagero comer, um após o outro, oito almoços completos em
oito restaurantes diferentes, mas, na realidade, a minha fome não passou, permaneceu igual, como se eu não tivesse
comido nada!”
Em seguida, procurei um hotel despretensioso. Caí na cama, uma cama de verdade, com lençóis e tudo, e dormi...
umas 18 horas.
No dia seguinte, dirigi-me ao consultório do dentista. Subi no mesmo bonde que os guardas costumavam pegar
quando me levavam, alge-mado, para tratar de meus dentes.
Encontrei o prédio do dentista; subi ao 3o andar e abri a porta da sala de espera.
Como sempre, alguns pacientes estavam aguardando a sua vez.
Dirigi-me à recepcionista:
– Desta vez, eu vim sozinho. Fale com o doutor e diga-lhe que estou com muita pressa e que insisto em ser
atendido de imediato.
A recepcionista entrou na sala do dentista. Passados alguns minutos, saíram a cliente que terminara de ser atendida,
e a recepcionista, que me fez sinal para entrar no consultório.
Ao passar pela porta, vi o dentista, de costas, procurando algum instru-mento num armário.
– Sente-se, senhor François – disse o dentista, com a voz meio esqui-sita.
Sentei-me, aguardando que o dentista se aproximasse, para explicar-lhe o motivo de minha pressa.
Fiquei esperando por alguns minutos. Não vendo o dentista aparecer, não ouvindo qualquer barulho na sala, virei a
cabeça... e percebi que não havia mais ninguém no consultório.
“O que teria acontecido?”, pensei, “Diabos, para onde foi o dentista? Onde foi ele se meter?”
“Só pode ter ido para a sala de espera”, conclui.
Esperei por mais uns minutos; vendo que o dentista não aparecia, le-vantei-me, e fui até a porta que levava à sala
de espera.
Estava trancada! “Como trancada?”, perguntei-me; “o que significa isto?’’
Bati na porta, e em voz alto, perguntei:
– Doutor, o que está acontecendo? Estou com pressa; só hoje posso ainda permanecer em Perpignan.
O
dentista,
com
voz
tremenda
e
claramente
amedrontada,
respondeu:
– Não se atreva a sair. Tranquei a porta. Caso o senhor tente arrombá-la, saiba que estou com meu revólver pronto
para atirar.
– Mas por que faria isto? – perguntei.
– Sei que o senhor é um preso altamente perigoso, pois sempre aparecia aqui algemado, sob a custódia de dois
guardas, que nunca tiravam os olhos do senhor, e sempre mantinham as mãos sobre seus revólveres. O senhor pensou
que poderia enganar-me? Que eu não entenderia que fugiu da polícia?
– De maneira nenhuma. Fui libertado e só vim aqui para o senhor fazer o tratamento necessário para eu não perder
os dentes, pois amanhã tenho que viajar para bem longe daqui.
– Senhor François, a mim o senhor não me engana. De qualquer maneira, já telefonei para a polícia, e eles devem
estar chegando a qualquer ins-tante. O senhor vê, não adianta nada o senhor tentar enganar-me.
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Percebi que não tinha como argumentar. Resolvi sentar-me e aguardar a vinda da polícia.
Fiquei pensando: “se algum conhecido meu da Antuérpia me visse agora, o que pensaria?, vendo-me mantido
prisioneiro num consultó-rio dentário, trancado por um dentista meio-paranoico, que tem certeza que sou um
delinquente perigosíssimo, fugitivo da justiça.”
Eu não sabia se devia rir ou chorar pela situação na qual eu estava me-tido... eu, filho único, sempre tão mimado
pelos pais...
Quando os policiais apareceram, caíram numa gargalhada. Eles me co-nheciam muito bem, por já terem sido
destacados várias vezes para vi-giar-me durante estes meses que eu estava sob custódia policial, e sa-biam que eu
tinha sido libertado.
Eles explicaram a situação ao dentista.
– Mesmo assim – retrucou ele, ainda amedrontado – peço a vocês que fiquem aqui no consultório até eu terminar
de atender este cliente. Não me sentindo a vontade, a minha mão vai tremer e eu poderia causar da-nos irreparáveis ao
paciente.
– Tudo bem – responderam os policiais.
O dentista foi examinando a minha boca.
– Senhor François, como já lhe disse na outra consulta, seus dentes es-tão em péssimo estado. Vai ser muito difícil
salvá-los, ainda mais se o tratamento for novamente interrompido.
– Foi o que eu também imaginei. Comecei um tratamento há mais de um ano e os problemas da guerra não me
permitiram ir ao dentista como eu deveria. O que faço agora?
– O melhor seria arrancar de vez todos os dentes que estão podres.
– Quantos são?
– Oito. O senhor ainda precisa saber que, devido à guerra, estamos sem anestésico.
– Então?
– O ideal seria o senhor mandar arrancar os dentes condenados e, para aguentar o tranco, só lhe resta uma solução:
tomar umas garrafas de vinho...
Foi o que eu fiz; mandei arrancar os oito dentes de uma só vez; assim que cheguei no meu quarto de hotel,
comprei duas garrafas de vinho que fui tomando, uma após a outra.
Caí num estupor e novamente dormi umas 18 horas...
Quando acordei, a dor ainda estava latente, o meu rosto inchado.
Mesmo assim, fui para a estação de trens, e peguei um com destino a Châteauneuf-lesBains.
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CAPÍTULO 17
ncontrei meu pai no principal hotel; num terraço cheio de flores, ele es-tava tomando chá com bolachas.
– Graças à Deus estamos novamente reunidos – disse, enquanto olhava à minha volta, admirando a paisagem,
respirando o ar puro.
– Chateaunef é mesmo bonita – continuei – tão calma e sossegada, como se esta maldita guerra não existisse.
– Não é à toa que muitos franceses passam as férias aqui. Parece que suas águas milagrosas curam inúmeras
doenças. Infelizmente, não a loucura deste mundo...
– Pai, quais são os planos?
– Teoricamente, fazemos parte de um grupo de estrangeiros que prestam serviço voluntário à França, mas, na
realidade, ninguém faz nada aqui. Somos todos hospedados neste ótimo hotel, onde estamos sendo servi-dos como
reis. Somos mais de 30 pessoas na mesma situação; a maioria judeus, que se fazem passar por arianos, e como tais
estão registrados.
– Eles também pretendem sair da França e ingressar no exército aliado?
– A maioria sim. Há alguns de idade mais avançada que querem perma-necer aqui até o fim da guerra.
– Não os culpo. Mas nós, quando é que vamos sair da França e esque-cer todas as privações e humilhações que
sofremos?
– Vamos ter que aguardar mais alguns dias, até você recuperar as for-ças. Você está muito enfraquecido. Precisa de
umas boas noites de sono e de um regime alimentar revigorante antes de enfrentar uma nova viagem com seus perigos
imprevisíveis.
– Você tem razão, pai. Passei por uns maus bocados.
– Mas o que foi que aconteceu a seu rosto, Michel? Parece inchado.
– Não é nada, pai; só arranquei alguns dentes cariados.
E
Os dias corriam maravilhosos: o tempo estava delicioso, havia comida em abundância por estarmos rodeados de
fazendas que produziam de tudo. Não se via um só soldado alemão, parecia que a guerra estava sendo travada num
outro planeta.
Passou-se uma semana, minhas forças estavam voltando.
Apareceu em Châteauneuf-les-Bains um outro belga, era uma personali-dade importante no cenário político de
Bruxelas: chamava-se Mâitre Fur-quim. Era o secretário particular de Van Zeeland, primeiro ministro da Bélgica.
– Vim para cá para juntar-me ao próximo grupo que vai, daqui a dois dias, seguir para a Inglaterra – informou ele.
Ficamos felizes. Estávamos prontos e ansiosos para partir.
Fomos dormir, cheios de alegria e de expectativas, sonhando com a nova viagem que, após tantas tentativas
infrutíferas, nos levaria à liber-dade.
Desta vez, não seríamos nós a preparar a viagem, mas uma organiza-ção experimentada, que até incluía o
secretário do primeiro ministro belga!
Mesmo assim, o destino deu uma reviravolta... Uma reviravolta que nunca poderíamos prever.
De madrugada, sonhei que ouvi o barulho de botas pelos corre-dores do hotel.
Abri os olhos.
Infelizmente, não se tratava de um sonho, era pura realidade!
Ouvi soldados alemães percorrerem os corredores do hotel, batendo nas portas de todos os quartos e gritando:
– Acordem! Abram as portas! Já! É a polícia militar! É a Feldgendarme-rie! Los! Raus!
Também bateram na nossa porta.
Olhei pela janela: em frente ao hotel estavam estacionados diversos veículos militares alemães: motocicletas, carros e
um caminhão fechado.
– Estamos cercados, pai. Desta vez são os alemães, e não mais os franceses. Estamos perdidos!
– Não há como escapar. Temos que abrir a porta – concluiu meu pai com um leve tremor na voz.
Todos saímos dos quartos. Fomos levados para o caminhão, que rumou diretamente para Lyon.
– Estamos de volta na mesma prisão – disse meu pai melancolicamente – Só que, desta vez, na mão dos nazistas.
86
Todo nosso grupo foi reunido num salão. Imediatamente, oficiais ale-mães passaram a nos interrogar, gritavam
muito, ameaçavam, distribu-íam bofetões.
Queriam saber o que estávamos fazendo em Châteauneuf-les-Bains.
Pelas perguntas que formularam, percebemos que não sabiam nada de concreto, mas que algum informante nazista
chamou sua atenção sobre este campo de trabalho, onde ninguém fazia nada e, mesmo assim, morava num hotel
luxuoso.
Depois de umas horas de interrogatório, o mais graduado dos alemães declarou:
– Já que vocês não estão colaborando com as forças da lei, estamos obrigados a impor uma punição coletiva:
todos serão deportados para um campo de concentração, enquanto seu chefe será sumariamente fu-zilado.
Sem esperar um segundo, ele continuou, dirigindo-se a dois guardas:
– Levem este aqui, o de bigode. Fuzilem-no imediatamente! Vá servir de exemplo para os outros.
Mâitre Furquim olhou para nós, pálido, mas com voz firme, declarou:
– Quem sobreviver, que relate tudo a Van Zeeland. Ele vai saber o que fazer. Vai vingar a minha morte! Viva a
Bélgica!
Pela janela do salão, vimos os dois guardas escoltarem nosso compa-nheiro até um quintal interno. Num
determinado momento, os guardas di-minuíram os passos. Assim que Mâitre Furquim estava uns metros adi-antado,
eles tiraram os fuzis dos ombros e atiraram nele.
No meio do quintal, Mâitre Furquim caiu!
Os dois soldados aproximaram-se dele, e dispararam mais alguns tiros a queima-roupa.
Deixando o corpo no meio do pátio, viraram-lhe as costas, e voltaram ao salão onde, atônitos, seguimos esta cena
surrealista.
– Alguém de vocês quer dar novas respostas às perguntas que formulei antes? – indagou o oficial alemão – Caso
contrário, serão todos deportados. Como vocês o viram, eu cumpro imediatamente as minhas promessas. É a última
oportunidade que lhes dou.
Ninguém disse nada. Ninguém mexeu-se. Estávamos todos petrificados pela rapidez e a crueldade do ato gratuito
ao qual assistimos.
“Nem permitiram que morresse com dignidade. Nem lhe deram a oportunidade de enfrentar, face a face, os que o
fuzilaram. Atiraram nele pelas costas, covardemente”, constatei com amargura.
– Perfeitamente – ouvi o oficial alemão concluir, enquanto nos olhava com arrogância – Vocês vão se arrepender
por não terem falado; mas agora já é tarde demais. Guardas, levam-nos à sua cela. Devem ser deportados no primeiro
comboio que sair daqui.
Na mesma noite, fomos levados para o campo de Compiègne, ao norte da França. Lá, os nazistas reuniam os nãojudeus que pretendiam de-portar para o Leste Europeu.
Para este campo, eles só mandavam os homens, e não famílias inteiras, como em Rivesaltes.
Após cinco dias de permanência em Compiègne, chegou o dia que tanto temíamos: os alemães reuniram todos os
prisioneiros, e levaram-nos à estação ferroviária.
Os guardas da S.S. dividiram-nos em grupos de cem, e postaram-nos ao longo dos trilhos da estrada de ferro,
enquanto aguardavam a che-gada do trem.
Quando este chegou, vimos que era composto de vagões de transporte de gado. Cada vagão tinha portas grandes de
correr e uma minúscula janela gradeada.
O trem parou. Em cada vagão os alemães fizeram subir um grupo de cem prisioneiros. Depois lacraram as portas e
ainda pregaram tábuas para impedir qualquer tentativa de fuga.
Meu pai e eu permanecemos todo o tempo juntos. Assim, fomos coloca-dos no mesmo grupo de cem, e, em
seguida, no mesmo vagão.
O espaço era muito apertado. Não havia lugar para sentar. Tínhamos que permanecer em pé durante a viagem, que
levou três dias e duas noites.
Logo ficamos cansados de permanecer em pé, mas não havia como sentar, e muito menos deitar. A falta de espaço
obrigou-nos a permane-cermos colados uns contra os outros durante toda a viagem. Como nin-guém tinha onde se
segurar, toda vez que o trem mudava de velocidade, ou virava numa curva, toda aquela massa compacta de presos
ondulava de acordo com a força da gravidade.
Como não havia nenhum espaço extra, não tínhamos onde fazer as nos-sas necessidades fisiológicas, a não ser no
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próprio local onde estáva-mos... sobre nós mesmos...
Logo, o ar ficou pesado e malcheiroso. A pequenina janela era absolu-tamente insuficiente para obter-se
qualquer ventilação. Assim, ficamos todos suados, sem termos a mínima possibilidade de tirar o suor de nos-sos
corpos: não havia nem espaço para movimentarmos os braços...
Ninguém recebeu qualquer alimento durante a viagem. Mas, toda vez que o trem parava, os presos que estavam
perto da janela gritavam e supli-cavam por água. Às vezes, a população local fornecia-nos um pouco do precioso
líquido. Outras vezes, ela se afastava devido ao mau cheiro do vagão ou fazia de conta que não via nada, por medo de
ajudar a quem os S.S. deportavam. No terceiro dia, o trem chegou a seu destino.
Guardas da S.S. abriram as portas dos vagões e mandaram que saís-semos.
Todos estávamos enfraquecidos, com a garganta ressecada e a mus-culatura endurecida. Mal podíamos andar.
Quando saímos do vagão, percebemos que pelo menos uma dúzia de detentos permaneciam imóveis no vagão.
Estavam rígidos! Tinham mor-rido durante o trajeto...
Mesmo assim, alguns tinham permanecido em pé até o final da viagem, espremidos entre os demais prisioneiros.
Outros tinham deslizado no chão e foram pisoteados pelos companheiros.
Quando saímos dos vagões, pudemos ler o nome da estação: Mauthau-sen.
Em código, os alemães chamavam este campo de “Nacht Und Nebel”, ou traduzido para o português: Noite de
Neblina; o que significa que quem entrava em Mauthausen desaparecia para sempre, como quem se aventura numa
noite de neblina.
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CAPÍTULO 18
esembarcamos em Mauthausen no dia 22/04/1943. Na estação rece-bemos uma boa refeição quente que nos
forneceu as forças necessá-rias para percorrermos os três quilômetros que nos separavam do campo.
Visto de fora, ele era muito parecido com o de Rivesaltes. Ao seu redor, numa faixa de terreno de uns
cinquenta metros de largura, inúmeras cer-cas de arame farpado e eletrificado cruzavam-se. No meio deste
amar-ranhado de arame vimos torres de madeira, nas quais S.S. armados estavam de guarda.
Apreensivos pelo desconhecido que nos aguardava, passamos pelo portão de entrada do campo.
Logo fomos conduzidos a uma grande praça.
– Todo mundo, dispa-se! Completamente! – ordenou um dos S.S.
– Deixem as roupas à margem da praça. Vocês vão tomar um bom banho para se limparem. Vamos eliminar os
piolhos e outros parasitas com um produto especial – continuou o mesmo S.S. – Não levem nada consigo. Deixem
tudo nas roupas – repetiu ele – Na volta, ao saírem do chuveiro, poderão pegá-las.
Todo mundo obedeceu.
– Em frente! – gritou o S.S. – E agora, aos chuveiros!
Depois de termos dobrado uma esquina, a longa coluna dos presos pa-rou de repente.
– Vamos proceder a uma revista minuciosa – informou o mesmo S.S. aos gritos – Quem tentar esconder algum
objeto de valor no próprio corpo será fuzilado! – terminou ele.
Meu pai e eu estávamos, por acaso, no final da longa fila.
Pude ver que os S.S. que estavam postados no início da coluna revista-vam todos os prisioneiros antes de deixá-los
prosseguirem.
Uma vez que os prisioneiros estavam todos nus, havia bem pouco lugar para se esconder algo.
Assim, os S.S. mandavam que cada prisioneiro abrisse a boca, se vi-rasse, e se abaixasse, separando as duas
metades das nádegas.
Os S.S. olhavam, então, em todas as aberturas do corpo humano.
– Pai, deixo tudo nas minhas roupas e sapatos. Não vou arriscar-me – disse, prevendo que meu pai não gostaria
muito de minha decisão.
Logo os S.S. encontraram algo escondido num dos prisioneiros.
O que era, não pudemos descobrir, devido à distância que nos separava do início da fila, mas, mesmo assim, deu
para ver que o detento foi imedi-atamente fuzilado, lá mesmo, no meio da fila.
Vendo a minuciosidade da revista, muitos prisioneiros jogavam no chão objetos que pretendiam esconder.
A revista continuava. Depois de algum tempo, os S.S. enjoaram, pas-sando a só examinarem cada terceiro ou
quarto prisioneiro, deixando os demais simplesmente passar.
Chegou a nossa vez. Sem que o S.S. me desse alguma ordem, abri a boca bem grande, virei e abaixei-me,
separando as nádegas para mos-trar que não escondia nada. O S.S. porém, prestou pouca atenção, es-tava
bocejando... Com a mão fez sinal para que fosse em frente. Meu pai, que me seguia, também passou sem que o S.S.
sequer olhasse para ele.
A revista, todavia, continuou até o último dos prisioneiros passar.
– Entrem nos chuveiros! – ordenou o S.S.
Obedecemos. Os S.S. fecharam as portas.
Abrimos as torneiras... Saiu água... normalmente...
Não sabíamos, e nunca poderíamos imaginar, naquele momento, que em outros campos, quando se abria as
torneiras dos chuveiros, não saía água nenhuma, mas... um gás venenoso, o Ziklon B, que lentamente matava todos
que lá estavam.
Isto não aconteceu conosco... O nosso era um chuveiro normal, um do qual só saía água...
Enquanto estávamos no chuveiro, meu pai disse bem baixinho no meu ouvido:
– Michel, olha!
Escondido na palma da mão, mostrou-me um pacote em-brulhado num pedaço de lona.
– Não pude abandonar toda a fortuna que estava em minha roupa.
D
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Trabalhei duro demais para conseguí-la. Arrisquei-me. Escondi este pa-cotinho no meu ânus. Felizmente, passei.
Mas, imagine só como foi difícil andar até o chuveiro... com este pacote no lugar onde estava... sem ninguém perceber
nada...
– Mas, pai, você arriscou a vida por alguns diamantes, que provavelmente não tem qualquer valor aqui?
– Pode até ser, meu filho. Mas trabalhei e economizei tanto para ganhá-los. Como poderia deixá-los para os
nazistas?
Saímos do chuveiro. A coluna formou-se de novo e pôs-se em marcha.
Quando passamos pelo lugar onde tínhamos deixado as roupas, vimos que outros detentos já as tinham recolhido e
as estavam desmanchando, procurando objetos de valor. Dezenas de S.S. permaneciam por lá, vigi-ando atentamente
cada movimento dos prisioneiros, recolhendo imedia-tamente tudo o que estes descobriam.
Sempre nus, fomos levados até um barraco de madeira.
– É aqui que vocês serão registrados e equipados – informou um S.S.
Na entrada, estavam postados detentos veteranos.
A cada um distribuíram novas roupas que usaríamos até o fim da guerra: uma calça, uma camisa, um paletó e um
boné, tudo feito em tecido lis-trado, com as listas pretas e brancas de três cm. de largura. Recebemos ainda um par de
sapatos com sola de madeira, um prato e uma colher de metal.
– Guardem bem o que recebem. Caso percam algum objeto, a punição é sempre totalmente desproporcional e pode
chegar até a morte por es-pancamento – informou um dos detentos.
Para finalizar, fomos para uma outra mesa, onde recebemos uma chapi-nha de metal com um número gravado.
– Este número será sua identificação para o resto de suas vidas – disse um dos detentos – arrume qualquer pedaço
de arame, e use a chapa como pulseira. Saibam que a punição para quem perder a chapa de identificação é a morte por
enforcamento!
Meu pai recebeu o número 26.967 e eu o 26.968.
Como ninguém tinha qualquer documento, fomos registrados com os nomes que demos: François Depauw e Peter
De Smed, ambos belgas não-judeus.
Passamos por um barbeiro que raspou nossas cabeças, deixando os cabelos com menos de um cm. de altura.
Depois, usando uma navalha, ele abaixou ainda mais uma faixa central, criando uma risca de dois cm. de largura que
dividia nossas cabeças em duas metades iguais.
Assim, começamos nossas vidas em Mauthausen.
Éramos um grupo de 3.000 prisioneiros, todos procedentes da França.
Em nossos uniformes de detentos já estava costurado, na altura do co-ração, um triângulo em tecido vermelho com
a ponta dirigida para cima, e a letra “F” impressa no triângulo.
– Estes sinais nos uniformes qualificam o portador – explicou um dos ve-teranos – Os triângulos vermelhos
significam que se trata de prisioneiros políticos. A ponta para cima indica que o detento não passou por um
jul-gamento formal e a letra “F” diz que o portador é francês, ou, que che-gou aqui, vindo da França.
Inicialmente, fomos alojados numa parte separada do campo.
Um prisioneiro informou:
– Esta é a quarentena. Vocês vão permanecer aqui por uns 15 dias, sem sair do campo, sem trabalhar. Os S.S.
preferem que todo novo grupo passe por um período em observação, para evitar que presos portado-res de doenças
altamente contagiosas sejam introduzidos no campo: poderiam dar início a uma epidemia incontrolável que
contaminaria até os próprios S.S.
Durante quinze dias ficamos o dia todo perambulando no pátio, sem ter o que fazer. Conversas sem fim e
especulações sem rumo tomavam conta de nossos dias. Ninguém nos incomodava, ninguém queria nada conosco. A
comida que recebíamos era insuficiente, mas os nossos corpos ainda possuíam muitas reservas acumuladas.
Um dia, no pátio da quarentena, apareceu um detento veterano que nin-guém tinha visto antes. Ele usava
um triângulo vermelho com a letra “L”.
Percebi que muitos prisioneiros ajuntaram-se em volta dele. Curioso, aproximei-me também.
– Estou procurando alguém que conheça perfeitamente o alemão e o fla-menco. Quem se candidata? – perguntou –
Haverá uma boa recompensa: uma dose dupla de sopa, daquela servida para os S.S.!
– Eu! Eu entendo e escrevo perfeitamente as duas línguas – gritei, empur-rando-me o mais perto possível do centro
da agitação, na expectativa de ganhar uma sopa extra de S. S.!
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– Venha comigo – ordenou o desconhecido.
Saiu comigo da quarentena e acrescentou:
Todos chamam-me “O Luxenburguês”. Se você conseguir traduzir um texto do alemão para o flamenco vai
receber a sopa bem nutritiva que prometi. Mas, se você me enganou, e não souber fazer a tradução cor-retamente,
vou quebrar todos seus ossos. Não posso errar na frente dos S.S., meu prestígio está em jogo!
Entramos num dos poucos barracos construídos em alvenaria, que ser-via de escritório para os S.S.
Sentaram-me numa mesa e deram-me um texto comprido, de propaganda nazista, que os alemães queriam traduzir
em todas as línguas faladas na Europa, entre as quais o flamenco.
Sem qualquer dificuldade, fiz a tradução.
Enquanto estava escrevendo, presenciei uma cena estarrecedora que se passava bem a meu lado:
Alguns S.S., usando porretes, estavam batendo num prisioneiro de uma forma sistemática, quebrando-lhe
os ossos das pernas e dos braços.
O detento, chorando e gritando de dor, totalmente desnorteado, sem po-der manter-se em pé, repetia sem parar:
– Nunca soube que um de meus bisavós era judeu. Ninguém na nossa família jamais se referiu a ele. Não tenho
culpa de ter-me declarado ari-ano (de raça não-judia) se eu ignorava a existência deste avô maldito. Aliás, nasci
muitos anos depois de sua morte!
Os S.S. batiam com raiva e gritavam, cheios de ódio:
– Seu judeu no-jento, você quis esconder que tem sangue judeu?! Até um só bisavô ju-deu é suficiente para tornálo um judeu fedorento!
O prisioneiro continuou apanhando, até que parou de se mexer.
Não sei se morreu naquela hora ou se simplesmente desmaiou.
Imaginem como eu me sentia, ao ver alguém sendo massacrado desta maneira brutal somente por ter declarado que
era ariano, quando tinha um bisavô judeu, enquanto eu era circuncisado, prova sempre visível de minha judeidade...
Terminada a tradução, o Luxemburguês veio me buscar. Deu-me uma sopa suculenta que devorei com o maior dos
apetites, apesar da cena horrível à qual acabara de assistir.
Levou-me de volta para a área da quarentena.
Como poderia eu, naquele momento, imaginar que esta tradução seria o primeiro passo da minha sobrevivência em
Mauthausen?
Vocês devem estar chocadas com a descrição da viagem de trem, que nos levou de perto de Paris para o campo de
concentração de Mauthau-sen, no centro da Áustria.
O campo de concentração chamavam-se em alemão: “Konzentrazions-lager”, ou, abreviado: “K.Z.” (pronuncia-se
Katset). Nestes campos na-zistas de extermínio vivia-se num outro mundo, totalmente surrealista, fechado em si mesmo,
onde os valores eram totalmente diferentes daqueles que conhecemos no nosso dia-a-dia normal.
Todos os conceitos ético-morais oriundos da religião judaica e codifica-dos pelo direito romano deixaram de
existir.
Lá, só se conhecia uma única lei: sobreviver!
Sobreviver a qualquer custo! Sobreviver de qualquer maneira!
Ainda antes da guerra, os nazistas criaram os primeiros campos de con-centração; então seu intuito era isolar os
adversários e matá-los pelo trabalho pesado e intencionalmente mal organizado.
Então fora criado o campo de Mauthausen: os presos trabalhavam numa pedreira que fora montada de tal forma
que acidentes fatais aconteciam constantemente.
Só para dar um pequeno exemplo: os degraus pelos quais os presos ti-nham que subir, carregando pesadas pedras,
eram desiguais e mediam até quarenta cm. de altura, quando o normal só tem dezessete.
Com o decorrer da guerra, e das enormes perdas em vidas humanas e em material bélico que os alemães sofreram,
eles decidiram usar os pri-sioneiros dos campos de concentração como uma mão-de-obra ines-gotável, geralmente
experiente e, ao mesmo tempo, gratuita.
Por isto, não matavam mais os prisioneiros por mero capricho, davam-lhes um mínimo de alimentação e os faziam
trabalhar até morrerem de desnutrição, cansaço e mau tratos... Também era tão fácil substituí-los por outros... bastava
mandar a polícia prender mais umas levas de judeus: não havia sete milhões deles na Europa?
Em alguns campos, mais eficientes ainda, aproveitavam até dos próprios cadáveres: dos dentes retiravam o ouro,
dos ossos fabricavam sabão, dos cabelos, vassouras, e recolhiam ainda as últimas gotas de gordura que sobravam nos
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corpos anêmicos para fabricarem sabão.
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CAPÍTULO 19
assado o período da quarentena, os alemães dividiram-nos em diver-sos grupos. Meu pai, eu, e mais uns
quinhentos prisioneiros fomos envia-dos a Wiener Neustadt. Então eu soube que Mauthausen funcionava como
matriz, que comandava dezenas de campos satélites, entre os quais o nosso novo lar, Wiener Neustadt.
Era um campo novo. Devíamos pôr em funcionamento uma usina que os alemães tinham desmontado na
Iugoslávia, e estavam reconstruído num subúrbio de Wiener Neustadt. (Reparem só como o ocupante na-zista pilhava
os países que ocupava durante a guerra...).
Assim que chegamos no campo, fomos reunidos na praça central. Para mim foi uma grata surpresa constatar que o
Luxemburguês estava no comando.
Para entenderem mais claramente como os campos de concentração estavam administrados, segue uma breve
descrição:
Havia uma dupla direção: a dos S.S. e uma outra, paralela, dos detentos.
Poucos eram os S.S. que entravam no campo. Eles delegavam a organi-zação e a administração interna aos
próprios detentos, que, por sua vez, formavam uma máfia que se protegia mutuamente, e, geralmente, era mas
sádica que os próprios S.S. Eles eram chamados os “proeminentes”, detinham o poder de vida ou de morte sobre
os demais prisioneiros. Os proeminentes eram sempre muito bem tratados pelos S.S.
Havia um Lagerälteste (chefe do campo), um Lagerschreider (secretário do campo), Blockältestes (chefes de
barraca), Blockschreibers (secretá-rios de barraca), o Blockfriseur (barbeiro da barraca) e o Stubendienst
(encarregados da limpeza das barracas).
Cada grupo que saía do campo para o trabalho externo era chamado Comando e era dirigido por um detento, o
Capo, escolhido pelos S.S. por sua brutalidade. Os S.S. acompanhavam e vigiavam cada Comando, impedindo
qualquer fuga, e, a título de passatempo, ficavam maltratando os prisioneiros.
Em Wiener Neustadt, por ser ainda um campo pequeno, o Luxemburguês acumulava os dois cargos principais:
chefe e secretário do campo.
Quando ele nos reuniu na praça central, informou:
– O campo é ainda pequeno: somos atualmente só 500 prisioneiros. As-sim que estiver organizado, o número de
presos aumentará até chegar a uns 3.000. Hoje – continuou – vou escolher aqueles entre vocês que vão receber os
cargos atualmente necessários para o campo funcionar.
Foi o que ele fez, baseando-se na aparência física.
– Preciso ainda de um ajudante para o escritório. Será meu braço direito. Quem fala e escreve corretamente o
alemão?
Dois ou três detentos levantaram o braço; eu era um deles.
Logo pensei: “Este cargo é o melhor de todos, tenho que conseguí-lo!”
Saí da fila, dando um passo para a frente e dirigi-me ao Luxemburguês, usando meu melhor alemão:
– Senhor Luxemburguês, o senhor com certeza se lembra da tradução que fiz alguns dias atrás em Mauthausen, no
escritório geral dos S.S. O senhor ficou tão satisfeito que me deu uma sopa extra da cozinha dos S.S.
– Ah sim. É você, Franz? Perfeito. Você vai ser meu ajudante. Venha co-migo, mas fique advertido: se
cometer qualquer deslize, será imediata-mente colocado no pior dos Comandos! Comigo ninguém brinca!
O Luxemburguês autorizou-nos a descansar o resto do dia.
– Amanhã, todo mundo vai começar as suas tarefas - ordenou.
O campo de Wiener Neustadt era bem mais moderno do que a maioria dos outros campos de concentração, onde as
barracas em que dormía-mos eram de madeira. Em Wiener Neustradt, a edificação era toda em alvenaria e formava
um único bloco com dois pisos. No térreo estava a parte administrativa: escritório, cozinha, enfermaria e
almoxarifado. No primeiro andar, um grande banheiro coletivo e um enorme dormitório com mais de 200 camasbeliche de 3 andares.
No dia seguinte, dirigi-me ao escritório.
Com exceção de alguns outros detentos que tinham tarefas no próprio campo, os demais dividiram-se por
Comando e saíram pelo portão em direção à fábrica iugoslava que estava sendo instalada.
P
93
O Luxemburguês entrou no escritório e explicou-me o trabalho que eu devia executar: nada de muito complicado.
Entre outras tarefas, eu devia diariamente atualizar o fichário com o nome dos prisioneiros, anotando seus
respectivos Comandos.
Percebi logo que poderia transferir qualquer prisioneiro para o Comando que desejasse. Bastava mudar as
anotações na ficha do detento e depois informá-lo que tinha sido transferido de Comando, por ordem do
Luxemburguês.
À noite, quando meu pai voltou do trabalho, contou que o clima na usina estava muito tenso. Os prisioneiros
trabalhavam como ajudantes de civis, que estavam sendo fortemente pressionados para colocarem a usina em
funcionamento o mais rapidamente possível.
Ele relatou ainda que havia alguns poucos civis bondosos que tentavam ajudar os presos. A grande maioria,
entretanto, era de nazistas convictos ou simples sádicos, que se aproveitavam da oportunidade para maltratar os
presos, exigindo uma produção impossível de ser alcançada.
Os dias foram passando e minha relação com o Luxemburguês estrei-tava-se. Ele não ostentava mais o papel de
déspota cruel. Mostrava a sua verdadeira face, tornava-se cada dia mais acessível e humano.
Ele contou:
– O regime nazista, assim que tomou o poder, resolveu limpar a socie-dade alemã: prendeu os ladrões, assaltantes,
vigaristas, exploradores de prostitutas, e todo tipo de vagabundos, e colocou-os em campos de con-centração. Estes
prisioneiros, conforme o tipo de delito, receberam um triângulo lilás ou preto. Depois prenderam os judeus, que
geralmente usavam uma tira amarela sobre os triângulos, ou às vezes, um triângulo todo amarelo. Com o início da
guerra, prisioneiros de todas as nações européias foram enviadas para os campos. A eles foi dado um triângulo vermelho.
Os primeiros prisioneiros alemães, por terem se tornado veteranos no campo, e por falarem a língua dos S.S., acabaram
por ocupar os postos de comando. Foi o que me ajudou – confiou-me o Luxemburguês – porque sou conside-rado de
raça alemã pelos nazistas, que, oficialmente, anexaram o grã-ducado de Luxemburgo ao Reich. Este convívio de
soldados da S. S. com a escória da sociedade alemã, criou o clima sádico que domina em todos os campos de
concentração. Assim eu mesmo, que sou um prisioneiro político, que fui professor de faculdade, não tive outra opção a
não ser transformar-me numa besta humana, para poder sobreviver e manter o status de proeminente. Neste campo, onde
só há prisioneiros franceses, que ainda não foram corrompidos pela selvajaria nazista que impera nos demais campos, é
ainda um oásis de humanismo. Ele só vai permanecer assim até a che-gada de novos contingentes de prisioneiros
veteranos, que trarão con-sigo a corrupção e a bestialidade que lhes foi incutida. Você verá, Franz, como o campo
mudará, quando eles chegarem.
De vez em quando, alguns S. S. vinham visitar o escritório. Então o Lu-xemburguês mudava de comportamento. Com
os alemães mostrava-se servil e bajulador. Com os presos, não se expressava mais de uma ma-neira normal: só gritava e
xingava, se algum prisioneiro passasse por perto, ele dava-lhe umas bofetadas, mesmo sem qualquer motivo. O jogo dele
era claro: fazer-se passar por um durão que só se sente realizado quando distribui castigos violentos e, de preferência,
imerecidos!
A minha maneira de agir era exatamente a oposta: tentava ser o mais invisível possível. Evitava falar com os S.S.,
fazia tudo para eles não perceberem a minha presença.
Depois de poucos dias, escolhi o Comando ideal para meu pai.
Tenho certeza que ninguém vai adivinhar qual era o cargo que eu, como filho, escolhi para meu pai: ser limpador
dos banheiros coletivos dos prisioneiros!
Pode parecer esquisito que tornar-se limpador dos banheiros usados por uns quinhentos detentos seja um cargo
cobiçado!
Mas vejam as vantagens: é executado em recinto fechado, onde, claro, nunca chove, nem há sol em demasia.
Nenhum S.S. está vigiando, só se trabalha duas vezes por dia: de manhã, após os presos saí-rem do campo, indo cada
um para seu Comando; e à noite, depois de esta-rem todos deitados, pois todos tínhamos que nos recolher às 21:00
ho-ras. Só o limpador dos banheiros tinha autorização para deitar-se mais tarde, justamente para poder limpar o
banheiro.
Meu pai gostou do novo cargo. O dia todo ficava sentado na porta do banheiro, sem ter o que fazer, sem ter que
vigiar o aparecimento impre-visto de algum S.S.. Só trabalhava uma boa hora de manhã e uma outra à noite, efetuando
toda a tarefa com um esguicho.
Eu, de meu lado, travei logo uma boa amizade com os cozinheiros.
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Regularmente ia à cozinha, pedindo algum prato de comida da S.S. para um eventual visitante que estaríamos
aguardando no escritório.
Claro, boa parte deste prato desaparecia no caminho da cozinha até o escritório... geralmente no banheiro coletivo,
onde meu pai me aguar-dava... e onde dividíamos tudo...
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CAPÍTULO 20
ssim, passaram-se algumas semanas.
Até que... até que, num belo dia, vi o Luxemburguês entrando no escritó-rio, todo nervoso, todo suado.
– Agora vou morrer – repetia ele, tremendo como uma vara – desta vez não há mais como escapar.
– Mas o que aconteceu? – perguntei incrédulo.
– Fritz pegou-me. Não me resta nenhum escapatório. Chegou meu fim.
O Luxemburguês não tinha terminado de falar, logo apareceu um S.S. que eu nunca tinha visto ainda. Era alto, de
porte atlético, loiro, um rosto angelical, um sorriso sarcástico e olhos escuros brilhando como carvões acesos.
– Peguei você Albert – disse o S.S., acentuando seu sorriso triunfal, e acrescentou:
– Dê três voltas em torno do campo! Em passo de corrida acelerada! Já!
O Luxemburguês obedeceu. De imediato passou a correr ao redor do campo.
“Mas o que está acontecendo?”, pensei. “Os S.S. nunca castigam os proeminentes, os seus lacaios vips!”
O S.S. percebeu a minha presença.
Seu sorriso acentuou-se ainda mais, enquanto as faíscas de seus olhos me penetraram.
– Você aí, como se chama?
– Franz, às suas ordens, Senhor Oficial da S.S. – respondi, colocando-me em posição de sentido, como os nazistas
o exigiam.
– Qual foi o erro que cometeu hoje? – perguntou o S.S.
– Nenhum que eu saiba, Senhor Oficial da S.S. – respondi.
Vi o S.S. colocar suas luvas pretas bem devagar.
– Tire os óculos.
Obedeci, tentando adivinhar o que ele pretendia.
O S. S. deu-me um golpe fortíssimo no rosto que me fez cair no chão; tudo parecia rodar: o escritório, os móveis,
até a cabeça.
Levantei-me. Pus-me novamente em posição de sentido, apesar da ca-beça continuar girando.
Lentamente, consegui enxergar o S.S. Seus olhos continuavam a brilhar, ostentando um triunfo sádico.
– Você já sabe qual é o erro que cometeu?
“O que devo responder?”, pensei. “O que digo?”
– Não, senhor Oficial da S.S.. Não cometi erro nenhum.
Novamente o S. S. aplicou-me o mesmo golpe no rosto. Novamente, tudo rodopiou em minha volta e mais uma vez
caí no chão.
Levantei-me de novo. Com dificuldade, coloquei-me em posição de sen-tido.
– Já se lembra de seu erro?
– Sim, senhor Oficial da S.S., o senhor deve estar com a razão. Devo ter cometido algum erro, embora não o
percebi na hora – respondi, rezando que fosse esta a confissão que meu torturador queria ouvir.
– Ah! Então você confessa que errou! Errou mesmo, não é?
Agora vi os olhos do S.S.: eram duas brasas mortíferas.
Desta vez, o golpe foi mais forte ainda. Senti que estava prestes a des-maiar. Lutei contra o enjoo. Levantei-me,
apesar de meus joelhos treme-rem. Pus-me novamente em posição de sentido. Não enxergava quase mais nada.
Através de um véu, ouvi o S.S. dizer:
– E agora, Franz? Você cometeu um erro ou não?
Não sabia mais o que responder. Preferi ficar calado.
– Pode recolocar os óculos – disse o S.S., usando de repente um tom suave e doce como o de uma moça acanhada.
– Nunca sujo minhas mãos com prisioneiros – acrescentou ele na mesma voz, enquanto tirava a luva da mão
direita.
Neste momento, o Luxemburguês foi voltando.
– Terminei as três voltas – disse todo ofegante.
– Venha comigo – ouvi o S.S. dizer, com aquela voz de menina tímida – Para você, tenho mais algumas surpresas
A
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gostosas, você não vai es-quecer-se delas tão já...
Os dois saíram, deixando-me sozinho. Sentei-me na cadeira e lentamente recuperei-me.
Passaram-se umas horas.
O mesmo S. S., aquele que o Luxemburguês chamara de Fritz, voltou no escritório.
– Venha cá, acompanhe-me. Quero vistoriar as camas dos detentos para ver se descubro algo escondido. Você vai
me ajudar, revirando os colchões.
Subimos ao 1º andar e passamos pelo banheiro coletivo.
Infelizmente, meu pai não nos ouviu chegar, permaneceu sentado.
– Você aí – gritou o S.S. para meu pai – você não está trabalhando? Que vida mansa é esta?
Ele aproximou-se de meu pai, sacudindo-o pelo paletó.
Inesperadamente, picou-se na ponta de uma agulha que meu pai tinha escondido numa das lapelas.
O S.S. deu-lhe umas bofetadas violentas.
Eu assistia a tudo. Sentia-me impotente, fiquei petrificado. Não sabia o que fazer, como parar a fúria de Fritz.
Assim que meu pai começou a balbuciar algumas palavras, mesmo que ininteligíveis, apressei-me em dizer ao
soldado da S.S., como se esti-vesse traduzindo:
– O prisioneiro está explicando que...
A raiva descontrolada do S.S., de repente, acalmou-se, sem que eu pu-desse entender o motivo da súbita mudança.
Virou-se para mim, e disse:
– Amanhã volto, e vou determinar o castigo deste desgraçado. É bom ele passar a noite suando frio, tentando
imaginar o que o amanhã lhe reser-vará.
Desceu. Afastou-se num passo rápido. Saiu do campo.
Na mesma noite transferi meu pai de Comando. Coloquei-o num que tra-balhava fora do campo, na fábrica
iugoslava.
Sabia que se o S.S. o encontrasse novamente, poderia matá-lo.
No dia seguinte, o Luxemburguês, todo aliviado, informou:
– Felizmente, Fritz partiu de madrugada, mas ele deve voltar brevemente com um novo contigente de presos.
Paulatinamente, daqui para frente a população do campo vai aumentar.
– Por que Fritz tornou-se seu inimigo? O que o senhor, afinal de contas só um prisioneiro, mesmo que proeminente,
pode fazer contra ele?
– É uma longa história – respondeu o Luxemburguês – uma daquelas nas quais a gente é envolvido sem ter culpa
nem escolha. Franz, ouça: Antes de vir para a matriz de Mauthausen onde o conheci, eu estava numa outra de suas
filiais, em Melk. Lá, a vida era muito boa. Nós, os alemães, mantínhamos todos os pos-tos de comando, havia entre
nós um prisioneiro com triângulo preto, fa-moso desde antes da guerra, por ser um dos maiores falsificadores de
documentos da Alemanha. O que fizemos? Montamos no campo uma pequena gráfica na qual falsi-ficávamos os
selos de racionamento de gasolina. Um outro prisioneiro alemão, com o triângulo lilás de cafetão, tinha contatos
nas cidades vizi-nhas, aos quais podia vender os selos falsos. Os S.S. permitiram, então, que ele saísse
livremente do campo e os comercializasse. Com o dinheiro que trazia, o grupo de S.S. que vigiavam o campo de
Melk e nós, os pri-sioneiros proeminentes alemães, fazíamos uma farra do diabo. Até trazí-amos mulheres e
bebidas para dentro do campo! Isto durou por mais de um ano, até que a polícia alemã, por um destes acasos,
prendeu nosso comprador de selos falsificados. Ele delatou tudo e a Gestapo entrou no campo para proceder a
uma investigação em profundidade. Logo descobriram toda a engrenagem. Houve um processo. Eu fui uma das
testemunhas arroladas. Não pude evitar de confirmar em juízo o que a Gestapo já sabia. Oito S.S. foram considerados
culpados e condena-dos a uma pena, na realidade, bem leve: envio para a frente da guerra contra a Rússia. O nosso
Fritz era amigo íntimo de dois destes S. S... De lá vem o ódio que nutre contra mim. Sabendo disso, obtive minha
transfe-rência de Melk para a matriz, Mauthausen. Pensei que Fritz, não me vendo mais em Melk, iria esquecer-se de
mim. Infelizmente... foi o contrário que ocorreu. Ele me seguiu e me descobriu aqui, em Wiener Neustadt. Franz, ele o
considera como um dos meus protegidos, e só por isto você entrou na mira dele. Ele é totalmente desequilibrado: um
sádico. Em Melk, era chamado de Pantera Loira.
Examinei o rosto do Luxemburguês: estava inchado, com placas de um vermelho-roxo que logo se tornariam
pretas. Sabia que meu rosto apre-sentava o mesmo aspecto.
Passaram-se alguns dias, sem o Pantera Loira voltar.
97
CAPÍTULO 21
omo o Luxemburguês o previu, novas levas de detentos chegaram no campo. A maioria era prisioneiros de guerra
russos, que por diversos moti-vos tinham sido enviados a campos de concentração.
O ambiente no campo começava a piorar. Os Capos franceses nunca batiam nos prisioneiros. Os novos já não
tinham os mesmos escrúpulos, bem pelo contrário.
O Luxemburguês permanecia no cargo de secretário do campo. Um outro detento, também alemão, tornou-se o
Lagerälteste, isto é, chefe do campo.
No escritório, porém, tudo permanecia como antes: eu continuava a ser o único a trabalhar lá.
O número de prisioneiros e de Comandos que saíam para trabalhar fora do campo aumentava constantemente.
Os detentos, antes de saírem, agrupavam-se por Comando, em filas de cinco, preparando-se para passarem
pelo portão de saída do campo.
No portão, alguns S.S. faziam a contagem dos prisioneiros que iam saindo. Para que não tivessem qualquer
dificuldade em contar as filas, os prisioneiros eram instruídos a se manterem rigorosamente alinha-dos. Qualquer mau
posicionamento na fila era severamente punido.
Por isto mesmo, os próprios prisioneiros fiscalizavam-se mutuamente para que todos estivessem bem alinhados.
Numa manhã, um grupo de russos estavam se preparando para passar pelo portão. Um deles, provavelmente por
descuido, não se colocou na posição adequada. Seu companheiro, que vinha logo atrás dele, por medo de ser considerado o
culpado e ser punido, gritou em russo:
– Seu imbecil de Ivrei, coloque-se na posição certa!
Provavelmente para dar vazão à sua irritação, ele incluiu nesta frase o pior insulto possível, e qualificou o
descuidado de Ivrei (o que significa judeu em russo).
Por infelicidade, um dos S.S. postados no portão de saída do campo tinha lutado na frente russa, e queria
demonstrar a seus companheiros o seu conhecimento desta língua estrangeira:
– O quê? – perguntou o S.S. aos brados, dirigindo-se ao prisioneiro que tinha sido chamado de Ivrei – Você é judeu
e não usa a faixa amarela so-bre seu triângulo para que todo mundo saiba, de imediato, a merda de judeu que você é?
Saia já da fila! Siga-nos no escritório para resolver-mos qual vai ser a sua punição.
O russo defendeu-se. Como não sabia falar o alemão, tentou fazer-se compreender numa mistura de línguas, típica
do campo de concentração. Repetia ele:
– Niet. Niet. Nicht Ivrei. Niet. Nicht Ivrei. Niet! Nein!
Os S.S. de plantão no portão levaram o russo, aos tapas, até o escritó-rio. Interrogaram-no. Bateram mais ainda
nele.
O russo manteve-se firme. Fazia tudo para os alemães entenderem que não era judeu.
Mas, em vão, especialmente agora que os S.S. começavam a gostar da brincadeira imprevista...
Colocaram-no em cima de uma mesa e postaram-se nos seus quatro lados, empurrando-o, batendo nele, fazendo-o
rodopiar e deixando-o cada vez mais tonto.
Mas o russo continuava a negar:
– Niet Ivrei. Nicht Ivrei. Niet! Nein!
Infelizmente, ele não percebera que a repetida negativa só o prejudi-cava. Os guardas já se tinham cansado da
brincadeira: ela se tornara monótona demais, estavam prestes a desistir.
Só o S.S. que queria gabar-se de seus conhecimentos da língua russa estava ainda com raiva: seu prestígio
estava em jogo!! Seus amigos po-deriam suspeitar que ele não entendera o sentido da palavra Ivrei!
Ele não hesitou.
– Franz – gritou ele para mim, que estava sentado na minha escrivaninha, preenchendo papéis – Vá buscar um
balde cheio de água.
“Para que precisariam de água?” – pensei – “Seria para reanimar o po-bre russo, já meio desmaiado?”
Trouxe o balde.
Quando o entreguei aos soldados, vi que eles o tinham pendurado pelas pernas à armação do lustre do escritório, de
forma que a sua cabeça, que pendia para baixo, quase tocava a mesa.
C
98
Um S.S. colocou o balde d’água em cima da mesa, e enfiou a cabeça do russo dentro do recipiente!!
Ele começou a se afogar, a ficar sem ar. Tentou erguer a cabeça, só que a sua posição invertida não lhe permitiu
executar este movimento. Ele tam-bém já estava bastante enfraquecido pelos golpes que recebera.
O russo sentiu-se asfixiando. Mexeu-se espasmodicamente por al-guns minutos.
Os soldados da S.S. riram quando perceberam que o russo parou de se movimentar e ordenaram:
– Franz, faça o médico examinar aquele judeu fedorento. Parece que morreu afogado. Imagine! Num balde d’água!
Só um judeu russo pode ser tão burro para afogar-se num mísero balde d’água!!
Os soldados saíram rindo.
E eu, o que acham que senti naquela hora?
Tinha certeza que o russo não era judeu, mas, mesmo assim, fora morto só porque algum colega seu, por raiva
misturada com medo, chamou-o de judeu!
E eu... que tinho no corpo a marca física de ser judeu! Eu não era cir-cuncisado?
Hoje, escrevendo e refletindo sobre estes fatos com o recuo que o tempo dá, vejo que este episódio salvou a minha
vida quando, dois anos mais tarde, um acontecimento totalmente imprevisto, e que durou menos de dez segundos,
poderia ter-me levado a um destino igual ao do pobre russo... à morte...
Passaram-se mais alguns dias. Estávamos no final do verão. A tempe-ratura estava amena.
De manhã bem cedo, o Luxemburguês veio no escritório:
– Franz, o Pantera Loira voltou. Desta vez, está acompanhado por seu melhor amigo, Otto, que, em Melk,
chamávamos de Pantera Negra. For-mam uma dupla perigosa: ambos são sádicos, só que o Negro é menos
esquizofrênico que seu amigo.
O Luxemburguês mal tinha terminado de falar, o Pantera Loira apa-receu.
Ele olhou para mim. Seus olhos iluminaram-se.
– Mas é você, Franz? Aquele que nem sabe se errou ou não?
Virando-se para o Luxemburguês, acrescentou:
– Albert, vá ver se eu estou no primeiro andar! Se não me vir lá, aguarde-me! Mas, para manter-se em boa forma
física até eu chegar, faça sem parar exercícios de genuflexão. Pelo menos uns cinquenta. É um ótimo exercício para a
sua saúde... que me parece bastante precária neste momento...
Virou-se novamente para mim:
– Agora, estamos só nós dois. Vamos aproveitar?
Devagar, colocou a luva preta na mão direita.
Resolvi não me deixar intimidar.
Sabia que era a única tática possível. “Quem sabe” – pensei – “se eu demonstrar coragem, ele me respeitará?”
– Devo tirar meus óculos? – perguntei, enquanto me colocava em posição de sentido.
– Não! – veio a resposta, rápida e seca como um golpe de chicote.
O Pantera Loira aproximou-se. Com a mão direita, pegou meu pescoço e começou a apertá-lo, cada vez mais forte.
Senti suas unhas através do couro. Fiquei sem ar.
O S.S. afrouxou a pressão. Aproveitei para respirar. Gulosamente, tentei aspirar o máximo de ar possível.
Depois de poucos segundos, o Pantera Loira reforçou novamente o aperto sobre meu pescoço. Novamente fiquei
sem poder respirar.
Por diversas vezes, repetiu o mesmo jogo: impedia-me de respirar, até perceber que eu ia morrer asfixiado.
Che-gando a este ponto, permitia-me aspirar um pouco de ar. Mal eu conse-guia regularizar a respiração, ele
voltava a me sufocar novamente.
– Para hoje chega – ouvi o S.S. dizer, após o que me parecia uma eterni-dade – Seu amigo Albert deve estar
impaciente lá em cima. Não posso desapontá-lo, não é, Franz?
Quando me vi sozinho no escritório, desabei na cadeira.
A garganta doía muito. Percebi que nenhum som saía da minha boca. Um choro descontrolado apossou-se de mim.
“Da próxima vez, ele vai me matar” – pensei. “Não lhe fiz nada, mas, mesmo assim, entrei numa fria, para qual só existe
uma única saída”.
Agi imediatamente.
Tirei minha ficha e eu próprio transferi-me para o mesmo Comando do meu pai.
Depois, peguei a ficha de um dos franceses que falava um pouco de alemão e anotei nela que o prisioneiro estava
99
trabalhando no escritório.
À noitinha, quando os Comandos voltaram para o campo, procurei o fu-turo funcionário do escritório e lhe disse,
como se ele tivesse tirado a sorte grande:
– Você foi transferido para trabalhar no escritório do campo! Parabéns! Que sorte a sua! Não foi, aliás, o que
você pediu quando se apresentou como voluntário no dia em que chegamos aqui? O Luxemburguês lembrou-se de
você. Meus parabéns!
Pensei: “Assim, o Pantera Loira não me verá mais, nem no escritório, nem no campo. Quando os Comandos voltam, a noite
já caiu, e ele não está mais no campo. Ele vai me esquecer pois vai poder se divertir su-ficientemente com o Luxemburguês...”
E agora, eu pergunto: Agi corretamente? Meu comportamento foi moralmente ético, ou sim-plesmente cínico e
covarde?
Posso defender-me, alegando: não fui e quem criou a situação. Não me restava qualquer outra alternativa!
E mais ainda: Era pouco provável que meu substituto no escritório se tornasse o novo alvo da perversidade de
Fritz.
Mas, mesmo assim, eu pergunto novamente: será que posso ser um juiz honesto quando eu próprio sou réu?
O Comando no qual entrei ficava o dia inteiro na fábrica, transportando vigas de ferro que os civis usavam para
reforçar a estrutura da usina.
O serviço era pesado, mas, mesmo assim, eu me sentia feliz só por me saber longe do Pantera Loira.
As semanas iam passando. A população do campo crescia constante-mente. A maioria já não era mais composta
por franceses.
O chefe do campo (Lagerälteste) reformulou todos os Comandos. No nosso, um novo Capo foi nomeado: era um
russo.
A nossa vida começou a piorar. O novo Capo nos perseguia o dia todo e, sem motivo nenhum, distribuía pauladas à
torta e à direita.
Ele queria mostrar aos S.S. que, sob sua direção, o ritmo de trabalho era bem mais acelerado. Só que se tratava de
pura encenação: a violência gratuita a qual nos submetia só nós deixava apavorados, correndo por todos os lados, mas
não resultava num incremento real da produção que, na realidade, dependia só dos civis que nos dirigiam.
Soube que o Luxemburguês tinha sido transferido para um outro campo e que ninguém mais via o Pantera Loira...
“Deve ter novamente seguido o Luxemburguês” – conclui com o cora-ção pesado, com pena pela falta de sorte de
meu antigo chefe.
Já não sabia mais se eu fora tão inteligente, demitindo-me do escritório com tanta rapidez... Mas o que fora
feito não podia mais ser alterado.
100
CAPÍTULO 22
o campo havia uma rotina diária que nunca mencionei até agora. Era o que os alemães chamavam de Apel: duas
vezes por dia, de manhã cedo e ao anoitecer, os prisioneiros eram contados na praça principal do campo. Para
que os S.S. pudessem executar esta tarefa, todos os de-tentos tinham que se colocar em fila e se manter, às vezes
por longas horas, em posição de sentido.
O Lagerälteste (chefe do campo), ajudado por outros proeminentes que ele designava, verificava pessoalmente se
estávamos todos bem alinha-dos antes que os S.S. procedessem à nossa contagem.
Muitas vezes, os guardas usavam o Apel para nos castigar ou para se divertirem, deixando que ficássemos por muitas
horas em posição de sentido, especialmente quando nevava, chovia torrencialmente, ou ainda quando havia um sol de
rachar. Além de proceder à contagem dos prisi-oneiros, os S.S. sempre nos faziam executar exercícios típicos, que o
recruta alemão está obrigado a executar quando ingressa no exército.
Era esta a sequência das ordens que, invariavelmente, os S.S., nos da-vam:
“Stillgestand”! (em posição de sentido), e todos os prisioneiros tinham que endireitar os ombros, levantar as
cabeças, e bater os braços na face lateral das pernas.
“Augen rechts!” (olhos à direita), todos os detentos viravam as cabeças para a direita, todos ao mesmo tempo.
“Die Augen links!” (olhos à esquerda), desta vez todos os prisioneiros tinham que virar as cabeças à esquerda.
Depois vinha a ordem: “Mutsen!”(boné), e cada detento levantava a mão direita e colocava-a na borda do chapéu.
Então era dada a ordem final: “Ab!” (tirar), e os prisioneiros tinham que tirar os bonés e, todos, num estalo só, batêlos contra a perna direita.
Bastava um dos S.S. estar mal-humorado e ele nos faziam repetir estes movimentos dezenas de vezes, só para se
divertir um pouco, e para se sentir um deus onipotente, puxando a seu bel prazer as cordinhas de suas marionetes
indefesas.
Num sábado, ao proceder a este exercício paramilitar, o S.S. reparou que um dos prisioneiros estava sem o chapéu.
– Onde está seu boné? – perguntou ao detento.
– Não sei. Alguém roubou-o. Procurei-o por todos os lados, e não o achei – respondeu o prisioneiro.
O S.S. pensou um pouco e, dirigindo-se a todos os prisioneiros do campo que continuavam em posição de sentido,
informou-nos, com um sor-riso diabólico tomando conta do rosto:
– Quero só ver na contagem de hoje à noite quem vai estar sem o boné. Este vai se arrepender amargamente!
A punição: 15 golpes de schlague!
Todos sabíamos o que isto significava. A schlague era um cabo de fio elétrico grosso, normalmente usado em
serviços de alta tensão. Sabía-mos que cada batida doía muito, era quase insuportável. Após a dé-cima pancada, a
vítima geralmente desmaiava, e após a vigésima, costumava morrer...
O dia todo, cada detento segurava o boné como se fosse o objeto mais valioso do mundo. Aliás, ele se tornara isto
mesmo.
À noite, no Apel, todo mundo ficou apreensivo para verificar se o S.S. executaria a ameaça.
Ao dar a ordem “Tirar”, ele constatou imediatamente que um prisioneiro não tinha o chapéu.
Ele não hesitou.
– Traga um banquinho – ordenou.
– Você, venha já para a frente – continuou ele, apontando para o detento sem chapéu.
– Desça as calças! Deita sobre o banquinho!
O S.S. aplicou os 15 golpes de schlague, contando em voz alta.
Nos três primeiros, o detento gritou. No quarto, passou a choramingar. No sétimo, desmaiou...
Terminadas as 15 chicotadas, o S.S. mandou remover o prisioneiro in-consciente para o hospital. Em seguida,
aproximou-se de um outro de-tento, e tirou-lhe o chapéu.
– Está faltando novamente um boné – declarou radiante – Amanhã de ma-nhã, vamos ver quem se mostrou incapaz
de cuidar do seu!
Durante a noite, ninguém dormiu direito. Todo mundo só pensava em cui-dar de seu boné. Estranho passatempo
este...
N
101
De manhã cedinho, todos continuávamos a vigiar nossos chapéus.
No Apel, houve a repetição da cena da noite anterior. O detento que es-tava sem boné recebeu o mesmo
castigo: 15 chicotadas de schlague. Também ele foi removido em estado inconsciente para o hospital do campo.
Mais uma vez, o S.S. tirou um boné de um dos prisioneiros, para que a brincadeira pudesse continuar.
Era domingo. Não se trabalhava no campo. Novamente, todos só tinham uma ideia na cabeça: cuidar dos bonés. A
maioria o segurava com as duas mãos, para ter certeza que não o perderia.
Eu estava andando pelo campo ao lado de meu pai e segurava meu cha-péu com minhas duas mãos, quando, de
repente, senti que alguém me tirava o meu boné!
Não podia acreditar no que meus olhos viam: meu chapéu estava desli-zando entre meus dedos! Mas como? Não
era possível! Meu chapéu desaparecera!
Fiquei petrificado. Parecia-me que o tempo parara de girar.
Senti-me hipnotizado.
Com um esforço sobre-humano virei-me, mas não vi ninguém que pu-desse ter-me tirado o chapéu!
Mas não era possível! Lá estava eu, só fazendo uma única coisa: cui-dar de meu boné; e, mesmo assim, alguém
conseguiu tirá-lo de mim, sem que eu pudesse impedí-lo.
Parecia-me que morreria lá mesmo: de vergonha, por ter sido incapaz de vigiar o que era meu, e de medo, sabendo
qual era o castigo que me aguardava.
Inicialmente, meu pai, que estava a meu lado, não percebera nada. Toda a cena, totalmente surrealista,
deve ter durado uma fração de segundos.
Mas logo, só de olhar para meu rosto, ele adivinhou o que tinha aconte-cido.
Ele não falou nada, nem mesmo perguntou como o roubo acontecera.
Nós dois nos olhamos e a nossa mútua compreensão era tão com-pleta que sentíamos que não havia nenhuma
necessidade de usarmos palavras.
Traçamos nosso plano de ação através de nossos olhares.
Ambos, ao mesmo tempo, precipitamo-nos sobre o primeiro prisioneiro russo que, por acaso, estava na nossa
frente.
Com minhas duas mãos, agarrei o boné que ele estava segurando, ten-tando, à força, arrancá-lo dele. Meu pai
pulou sobre suas costas, procu-rando separar os dedos dele, para obrigá-lo a soltar o chapéu.
Os três entramos numa luta impiedosa, como animais selvagens, pas-samos a gritar histericamente. O russo, devido
ao imprevisto de nosso ataque, nós, para amedrontá-lo o mais possível.
Um S.S., por acaso, estava passando pelo local. Ouvindo os gritos, aproximou-se.
Resolvi aproveitar a sua presença: num alemão perfeito, disse, todo ofe-gante pela luta:
– Veja de que estes russos danados são capazes: este aí está ten-tando arrancar-me o meu boné. Imagine, está
tentando arrancar o meu boné da minha mão! Como esta gente tem a moral baixa... Não é à toa que ninguém gosta
destes russos covardes!
Nossa vítima, vendo o soldado se aproximar, começou a contar a ver-dade... só que ele não falava o alemão,
somente o russo...
Percebeu logo que o soldado estava do lado de quem falava a língua que ele entendia, e portanto estava me dando
razão. O russo sentiu que não somente perderia o chapéu, mas que ainda receberia um castigo suple-mentar... por ter
tentado me roubar... o meu boné!
Abaixou a cabeça e deixou-me levar o chapéu dele!
Meu pai e eu mergulhamos entre os demais prisioneiros, que tinham formado um círculo a nossa volta. Sabíamos
que tínhamos que nos misturar rapidamente no meio dos demais prisioneiros, para não sermos alvo da vingança do
russo que, com certeza, chamaria logo alguns de seus compatriotas para ajudá-lo a recuperar seu chapéu, e a nos dar
aquela surra... aliás, bem merecida...
À noite, no Apel, tudo transcorreu como das outras vezes.
O S.S. chamou para a frente o infeliz prisioneiro que não tinha mais seu boné. Com alívio, constatei que não se
tratava do “meu” russo, aquele que eu tinha roubado, mas de um outro detento, que nunca tinha visto antes.
Também este prisioneiro recebeu as 15 chicotadas de schlague; também ele teve que ser carregado para a
enfermaria.
O S.S. encerrou o Apel com o seguinte pronunciamento:
102
– Amanhã é segunda-feira, quando recomeça o trabalho na usina. Precisamos de produção, o que me leva a ser
mesericordioso com vo-cês. Podem me agradecer: está terminada a brincadeira do boné!
Respiramos aliviados...
E agora, o que acham de meu comportamento?
Para ser honesto, não me atrevo mais a me julgar.
Vejam o que os S.S. conseguiram! De seres humanos, criados à ima-gem de Deus, transformaram-nos em animais
ferozes, que não conhe-ciam dó nem piedade.
Não disse que neste relato eu contaria a verdade, toda a verdade, e só a verdade, por mais que ela possa doer até em
mim mesmo?!
103
CAPÍTULO 23
s dias iam passando. As condições em Wiener Neustadt pioravam constantemente. Não se passava um só dia sem
que nosso Capo ba-tesse fortemente em alguns de nós. Era cada vez mais violento e traiço-eiro.
Também a fome tornara-se insuportável.
Desde sempre, nossa alimentação era insuficiente. Só não passávamos fome na fase inicial de nossa permanência em
Wiener Neustadt, quando eu trabalhava no escritório e arrumava comida extra à vontade.
Nos primeiros tempos de Wiener Neustadt, a distribuição feita pelos pri-sioneiros franceses era bem mais
equitativa. Com o ingresso de tantos detentos veteranos, que logo obtinham a maioria dos postos de mando, a situação
mudou radicalmente: eles sabiam como manipular a distribuição de alimentos em seu favor, diminuindo,
consequentemente, as nossas porções.
Todos nós, prisioneiros comuns, íamos dormir com fome, e acordáva-mos com mais fome ainda.
Comecei a sentir as minhas forças diminuírem drasticamente.
– Pai – disse eu um dia – não dá para continuarmos assim. Duvido que aguentaremos este regime por
muito tempo. Daqui a pouco nossa fra-queza física vai minar a nossa vontade de lutar. Assim, tenho que fazer
algo imediatamente. Para falar a verdade, já tenho um bom plano.
Na tarde seguinte, dirigi-me à enfermaria do campo. Eu conhecia bem o médico, um francês que me devia seu
cargo.
– Dr. Pierre, preciso de um favor seu. Quero que me interne por um dia só, como se eu tivesse sofrido algum
acidente.
– Não posso negar seu pedido, Franz. Você também me ajudou quando trabalhava no escritório do campo:
colocou-me neste cargo. Mas, mesmo assim, fica combinado entre nós que você só vai ficar um dia no hospi-tal.
Assim, não vou correr qualquer perigo. Até o S.S. efetuar a inspeção diária, você já vai estar fora do hospital, de volta
ao seu Comando. Mas, em que ficar um dia no hospital vai ajudá-lo?
– Tenho certeza, Dr. Pierre, que vou conseguir aproveitar esta curta permanência no hospital para obter alguma
colocação boa, de preferên-cia, para trabalhar no próprio campo. É só aqui que posso arrumar a co-mida extra
indispensável à nossa sobrevivência.
“Agora que o Pantera Loira desapareceu por completo, não há mais risco em permanecer no campo durante o dia”,
raciocinei.
Na manhã seguinte, informei ao Capo que uma dor atroz nas costas me impedia de levantar qualquer peso. Ele
autorizou-me a procurar o médico da enfermaria.
O Dr. Pierre examinou-me e fez as anotações necessárias. Disse em voz alta, para ser ouvido por quem estivesse
por perto:
– Coloquei sua coluna em ordem. Caso seu Comando já tenha saído, descanse o dia de hoje, e volte a trabalhar
normalmente amanhã.
Saí da enfermaria. Dirigi-me a uma pequena sala do andar térreo, onde funcionavam uma alfaiataria e sapataria,
especialmente montadas para efetuar consertos para os guardas S.S.
Dois franceses, um alfaiate, chamado Gregoire, e um sapateiro, cujo nome esqueci, formavam a mão de obra.
– Gregoire – disse eu ao entrar – acabei de ganhar um dia de descanso. Como não tenho nada a fazer, resolvi ajudálo. Hoje, vou ser seu intér-prete, e vou lhe facilitar a comunicação com os S.S. que vêm constan-temente aqui, pedindo
que lhes consertem as roupas e botas.
– Ótimo. Toda vez que não entendo o que os S.S. desejam me dá medo perder este cargo que, indubitavelmente, é
um dos melhores do campo. Não quero nem pensar o que ocorreria comigo, na minha idade, se eu tivesse que
trabalhar num Comando externo.
Logo em seguida, apareceu um S.S..
– Quero que me aperte estas duas calças – ordenou o recém-chegado, em alemão.
– Senhor Oficial da S.S. – disse eu no meu alemão fluente – sou o novo ajudante nesta oficina, especialmente
destacado para servir de intér-prete. Vai evitar muitos erros, não é? Além do mais, também sou exímio cerzidor de
meias. O senhor talvez teria algumas com furos para que eu as conserte? Pela tarde estarão prontas.
O
104
– Que ótimo! É um serviço que faltava. Nesta fase da guerra, até para nós é difícil obter meias novas. Trago-lhe já
meia dúzia de pares. Você as consertará ainda hoje?
Quando o S.S. voltou, trazendo mais de uma dúzia de meias, cheias de buracos enormes, eu disse:
– A ideia de colocar nesta oficina um prisioneiro que servisse, ao mesmo tempo de intérprete e de cerzidor de
meias, partiu do Lagerälteste (prisi-oneiro, chefe do campo). Trata-se porém de uma experiência, que deve ser aceita
pelos senhores. Se o senhor a aprovar, queira, por favor, ir comigo até o escritório e lá dar ordem para que este serviço
seja definitivamente mantido e que eu seja o encarregado deste trabalho.
– Acho a ideia fabulosa – respondeu o S.S., feliz em ter encontrado al-guém que lhe consertasse as meias, que ele já
tinha dado por perdidas.
Foi assim que eu fui nomeado cerzidor de meias dos S.S..
Sabia que era impossível encontrar um serviço melhor no campo: per-manecer sentado, não fazer nenhum esforço
físico, não sofrer nenhum controle de produção, comida adicional à vontade, por estar trabalhando diretamente para os
S.S.. Até eles nos tratavam bem na oficina de con-serto: agora eram eles que estavam precisando de nossa boa
vontade, se quisessem receber um serviço rápido e bem feito.
Assim, passaram-se umas duas semanas. Meu pai e eu conseguimos rapidamente recuperar as forças perdidas. Não
só eu arrumava comida suficiente para nós dois, mas ainda sobrava o necessário para subor-narmos o Capo do
Comando no qual meu pai continuava a trabalhar. Nunca mais ele bateu em meu pai. Pelo contrário, só lhe designava
ser-viços leves.
Um dia, o comandante do campo, um S.S. de alta-patente, foi benefici-ado com uma semana de férias. Ele foi
substituído por um outro S.S., da mesma patente, que acabara de voltar da frente de guerra da Rússia, e que nunca ainda
tinha servido num campo de concentração.
Ele sabia que só ficaria uma semana neste cargo. Assim, o que pensam que ele fez quando assumiu
provisoriamente seu posto de comando?
Resolveu arrumar o guarda-roupa, mandando consertar uniformes e bo-tas!
Advinhem onde?
Evidentemente, na oficina do campo, onde tudo lhe era gratuito.
Quando entrou em nossa oficina, declarou logo:
– Ficarei só uma semana neste campo. Assim quero que neste curto pe-ríodo vocês deem uma aparência de novo a meus
uniformes e às mi-nhas botas, gastas na campanha da Rússia. Também trouxe dois cortes de tecido para vocês me
confeccionarem uniformes novos, feitos sob medida.
– Às suas ordens, senhor Major – respondi, traduzindo as palavras de Gregoire – Mas se o senhor quiser ter tudo
pronto numa semana, o se-nhor deverá passar a maior parte do seu dia aqui na oficina, para expe-rimentarmos as
roupas conforme nos as aprontarmos. Caso contrário, não podemos garantir um trabalho perfeito.
– Não tem problema. Vou ficar com vocês todo o tempo necessário, pois não pretendo envolver-me muito com a
administração do campo. Não vale a pena pelos poucos dias de minha permanência aqui.
O Major da S.S. manteve a promessa. Permaneceu durante uma boa parte de cada dia em nossa oficina. Como eu
era o único a falar o ale-mão, naturalmente, entramos em conversas prolongadas. Logo estabe-leceu-se um tipo de
relacionamento amistoso entre nós dois, que nin-guém poderia imaginar que pudesse ocorrer entre um major da S.S. e
um prisioneiro naquele mundo cruel e desumano que era o campo de concentração.
O Major, que se chamava Von Wienman, morava em Bremen, e era ad-vogado formado.
Ele falou-me de seus problemas com a esposa, bem mais jovem, e que ele suspeitava de lhe ser infiel. Falou de seu
filho, que se tinha alistado como voluntário no exército alemão e do qual não tinha qualquer notícia há mais de seis
meses. Falou de sua relutância em assumir em caráter definitivo a chefia de algum outro campo de concentração, e de
inúmeros outros problemas de sua vida.
E eu ficava lá, a escutá-lo: ele, um homem feito, um major da S.S. com mais de cinquenta anos, falando de
assuntos tão íntimos comigo, um pri-sioneiro, ainda menor de idade...
Cada dia nossa amizade estreitava-se, parecíamos realmente dois ve-lhos amigos, trocando confidências, ele
pedindo-me apoio e aceitando meus conselhos.
Nunca entendi o que levou aquele major, um homem culto, inteligente e com uma larga experiência de vida, a
se abrir tão profundamente comigo.
A única explicação que encontro foi a pista que ele mesmo me forneceu: eu era muito parecido com seu filho, que
105
nunca queria escutá-lo...
Quando a semana de sua permanência foi se encerrando, o major ofe-receu-se para ajudar-me, especialmente após
a sua partida. Pen-sei: “Se o Pantera Loira estivesse aqui, poderia pedir a “meu” major que lhe dissesse algo em meu
benefício. Ocorre que Fritz não estava em Wiener Neustadt. Aliás, se Deus fosse clemente comigo, faria com que
nunca mais nossos caminhos se cruzassem.”
Assim, não havia nada que pudesse pedir ao major.
No dia seguinte, o nosso antigo chefe de campo voltou e eu, é claro, continuei normalmente a trabalhar como
cerzidor de meias dos S.S.
No mesmo dia, desci pelas escadas e, ao passar pelo patamar do andar térreo, vi-me frente a frente com... com o
Pantera Loira, com o PAN-TERA LOIRA!!
Soube depois que ele tinha voltado juntamente com nosso antigo chefe de campo.
– Mas e você, Franz? Que surpresa agradável! Já o tinha quase esque-cido.
Ele olhou à sua volta.
Vi seus olhos começarem a brilhar, e seu rosto a sorrir maliciosamente.
– Franz, dê-me este balde!
Entreguei-lhe o balde, que estava cheio de água, que alguém deixara num canto do patamar.
O Pantera Loira jogou a água no chão.
– Vá buscar mais água. Quero que derrame mais 6 baldes neste pata-mar! Rápido! Vou contá-los!
Obedeci correndo. Fui buscar a água, esvaziei os 6 baldes.
– Ótimo, Franz, agora, vou sair e fumar meu cigarrinho. Quando terminar, volto e quero ver o chão seco, mas tão
seco, como se nunca, ninguém tivesse derramado uma única gota de água. Se não conseguir, será pu-nido! O que você
acha, uns 10 golpes de schlague seriam suficientes? Ou será que a medida certa seria 15?
Bem devagarinho, o Pantera Loira acendeu o cigarro e saiu.
Como um louco, procurei um pano. Com a rapidez do relâmpago, fui jun-tando a água no balde. Assim que estava
cheio, jogava-a fora no quintal. Trabalhei com tanta rapidez que quando o Pantera Loira voltou não ha-via mais
nenhum vestígio de água.
– Bonito trabalho, Franz, gostei. Você foi ótimo! Mas mesmo assim será punido. Como trabalhou bem, só receberá
5 golpes! Diga, não sou justo? E agora, vá buscar um banquinho e desça as calças.
Obedeci.
“Não gritarei”, pensei. Fechei a boca com toda a força. Tranquei os den-tes para não deixar escapar o menor som.
Mas nada adiantou. Já no primeiro golpe de schlague um grito de dor es-capou-me. No terceiro, ele se converteu
num longo gemido.
Contei o quinto golpe. Felizmente, não desmaiei. Ouvi o Pantera Loira dizer:
– Terminou, Franz. É bom você ir para a enfermaria. Não quero que algo de grave lhe aconteça. Quero-o
bem vivo! O que faria sem você?
Desta vez permaneci por uns dez dias no hospital... sem ter que pedir qualquer favor especial ao Dr. Pierre.
Meu pai veio me visitar na enfermaria.
– Pai, soube que os S.S. enganaram-se e trouxeram gente demais para o nosso campo e que logo vão retirar
daqui os quinhentos prisioneiros que estão sobrando. Acho preferível nós nos juntarmos ao grupo que será
removido daqui: é a única forma de fugir do Pantera Loira.
Foi o que decidimos fazer.
De um lado, a nossa decisão foi acertada. Durante uns dois anos não vimos mais o Pantera Loira. Só poucos meses
antes do fim da guerra, numa noite quando eu passava por uma das ruas do campo de concen-tração de Linz, onde eu
então estava, de repente, vi o Pantera Loira passeando na companhia de mais alguns guardas da S.S.
Ele não ostentava mais a sua arrogância anterior. Parecia triste e aba-tido, o que era bem natural: então as tropas
alemãs recuavam constan-temente em todas as frentes de batalha. Sentia-se que o nazismo tinha os dias contados, que
a Alemanha estava perdendo a guerra.
Pensei que Fritz não fosse me reconhecer. Nós, os detentos, tínhamos todos o aspecto bem parecido: cabeça
raspada de forma igual, corpos esqueléticos, a mesma roupa listrada. Mesmo assim, o Pantera Loira reconheceu-me
imediatamente. Afastou-se dos amigos e aproximou-se de mim:
– Mas quem diria? Nem acredito! É mesmo você, o Franz de Wiener Neustadt? Você ainda não morreu?
106
Sobreviveu por tanto tempo... Meus parabéns! Não posso dizer o mesmo do seu amigo e protetor, Albert, aquele
Lu-xemburguês nojento: ele se enforcou! Eu sei por que fui eu mesmo a anotar na ficha dele: “Suicídio por
enforcamento”.
Mas Franz – acrescentou ele, o velho sorriso sarcástico voltando aos lábios – suponho que você suspeita de ter sido
eu a passar-lhe a corda em volta do pescoço?
O Pantera Loira ficou silencioso por uns minutos. Um véu parecia cobrir seus olhos. Dava para ver que seus
pensamentos estavam bem longe... saboreando a sua vingança!
– Franz, estou só em visita neste campo. Mesmo assim, não posso sepa-rar-me de você sem lhe deixar alguma
lembrança bem gostosa: encoste na parede e faça umas 30 genuflexões. É pouco, não é? Vê como me tornei bonzinho?
O Pantera Loira afastou-se. Juntou-se novamente aos amigos. Nunca mais o revi, nem sei o que lhe aconteceu
depois da guerra.
107
CAPÍTULO 24
gora, voltemos para trás no tempo, quando eu estava prestes a receber alta do hospital. Soubemos que os S.S.
estavam separando prisioneiros, para transferi-los para um outro campo.
Sem maiores dificuldades, infiltramo-nos no grupo que estava sendo formado.
Fomos colocados em caminhões e levados para o nosso novo destino: Redl Zipf.
Como poderíamos suspeitar que este campo era um verdadeiro inferno? Mil vezes pior de que Wiener Neustadt!
Só para dar uma visão estatística: o campo contava com uns quatro mil prisioneiros, dos quais mil morriam a cada
semana! Imaginem só: 25% da população do campo morria a cada semana... o que também signi-fica que a
expectativa de sobrevivência média era de quatro semanas, sim de quatro semanas!
Pensei: “Fugimos de Wiener Neustadt para melhorar nossa situação. Infelizmente, Redl Zipf é bem pior; não mais
pela culpa pessoal de um S.S. sádico como em Wiener Neustadt, mas pela forma como Redl Zipf fora planejada, desde
a sua constituição.”
No início da guerra, Hitler só conhecia vitórias. Entretanto, já no começo de 1943 ele se viu repentinamente na
defensiva em todas as frentes de batalha. Com espanto crescente, percebeu que a vitória final escapava-lhe das mãos.
Assim, resolveu incrementar a pesquisa de armas novas, na esperança que estas lhe devolvessem a supremacia militar
perdida.
Seus cientistas, liderados por Werner Von Braun, desenvolveram os pri-meiros foguetes chamados “V1” e “V2”.
Eles tinham um raio de alcance de algumas centenas de quilômetros e carregavam uma potente carga de explosivos,
capazes de destruir quarteirões inteiros.
Neste estágio da tecnologia militar, não existia nada que pudesse inter-ceptá-los. Imaginem só os efeitos
devastadores desta arma.
Mais tarde, em meados de 1944, os alemães dispararam centenas de bombas V1 e V2, a maioria sobre Londres,
onde semeavam a morte, o pânico e a destruição.
Hitler sabia que tinha que proteger a fábrica dos novos foguetes contra os bombardeiros aliados, que então já
dominavam os céus alemães. Re-solveu construir esta usina no lugar mais seguro possível: nas entranhas de uma
montanha, no centro de seu Reich, na Áustria, num lugarejo afastado e pouco habitado.
O Estado Maior escolheu um antigo depósito de cerveja, cavado numa enorme montanha, ao lado de uma
aldeiazinha totalmente desconhecida, Redl Zipf.
Hitler dera ordem para que os túneis existentes fossem ampliados e pre-parados para receberem toda a infraestrutura necessária para a insta-lação da nova fábrica.
É claro que Hitler tinha muita urgência: ele aguardava ansiosamente que a entrada em ação dos novos foguetes
invertessem a sorte da guerra, que lhe era cada dia mais adversa.
Assim suas ordens eram taxativas: Prioridade máxima! Não importa o preço, nem o número de vítimas, a usina de
Redl Zipf devia entrar em funcionamento o mais rapidamente possível!
Mesmo assim, o alto-comando alemão teve que tolerar que o sadismo dos S.S. prejudicasse a produtividade de sua
máquina de guerra: não contrataram mão de obra remunerada e, portanto, mais eficiente, prefe-rindo usar prisioneiros
dos campos de concentração para a execução dos serviços prioritários de infra-estrutura. Esta decisão, obviamente,
atrasou sobremaneira o início da fabricação dos foguetes.
O mesmo procedimento paranoico se repetiu em outras oportunidades: inúmeros trens militares de transporte de
tropas, ou mesmo de muni-ções, foram desviados ou atrasados, dando prioridade ao transporte de detentos indo para
os campos de extermínio.
Incrível até que ponto a crueldade nazista fê-los inverter a ordem de prioridades: colocaram até em segundo plano
o esforço de guerra... obcecados que eram com o aniquilamento do povo judeu!
Para compensar o atraso provocado por eles mesmos, o que fizeram os S.S. para recuperarem o tempo perdido em
Redl Zipf?
Puseram em serviço o número máximo de prisioneiros que o espaço fí-sico dos túneis permitia: dois mil. De
imediato, dobraram a quantia de operários, criando dois turnos que se revezavam, cada um trabalhando doze horas
seguidas.
A
108
Este exagero na carga horária foi o segundo erro que cometeram: ele levou Redl Zipf a uma ineficiência crônica e,
infelizmente para nós, transformou o campo num matadouro impiedoso.
Vejam só um dia típico na vida de um prisioneiro em Redl Zipf, e somem as horas nas quais ele ficava em pé:
éramos acordados às quatro horas da madrugada, arrumávamos as camas, entrávamos na fila dos chuveiros, que,
evidentemente não com-portavam tanta gente de uma só vez. Depois, ficávamos na fila do café, que era um simples
líquido e que de café só tinha o apelido e a cor, sem qualquer valor nutritivo. Depois nos alinhávamos no Apel, o que
normalmente durava uma boa hora.
Em seguida, marchávamos por mais de uma hora, para chegarmos aos túneis e iniciarmos a nossa jornada às 7
horas da manhã. O trabalho era interrompido ao meio dia, por meia hora, quando recebíamos o al-moço. Este consistia
num litro de sopa, que vinha em botejões grandes de cinquenta litros, trazidos da cozinha do campo.
Na sopa havia legumes, algumas rodelas de batata, às vezes algum ves-tígio de carne. Naturalmente, a parte
mais líquida estava em cima do bo-tejão, enquanto a mais nutritiva se encontrava no fundo. Quem fazia a
distribuição da sopa eram os Capos, que nos davam só o liquido, guar-dando a parte consistente para eles
próprios, e para os seus protegidos.
Às 7 da noite, após 12 horas de trabalho, terminava nosso turno. Voltá-vamos para o campo, andando novamente
durante uma hora, participá-vamos do Apel noturno, para depois recebermos nosso jantar: 250 gra-mas de pão, uma
fatia de queijo e meio litro daquele líquido escuro que chamávamos de café.
Fazíamos nossa toalete e podíamos ir dormir. Geralmente, após às 22 horas.
Resumo final: ficávamos de pé mais de 18 horas, e, portanto, só podía-mos dormir de 5 a 6 horas.
Quem é capaz de aguentar tal maratona diariamente? Sete dias por se-mana? Pois trabalhávamos até aos domingos!
Ninguém, é claro!
Assim, os prisioneiros estavam o tempo todo com o sono atrasado, dor-mindo enquanto faziam o trajeto campotrabalho e vice-versa, ou quando estavam no Apel.
Às vezes acontecia um outro desastre: os S.S. tinham determinado que sempre, em cada turno, a cota de dois mil
prisioneiros devia estar com-pleta, para ocupar os postos de trabalho nos túneis. Se por qualquer mo-tivo faltavam
prisioneiros para perfazerem este número, os Capos não hesitavam em retirar do turno que encerrava o período de
trabalho o número de detentos que faltavam. Estas vítimas tinham a sorte selada! Tinham que continuar a trabalhar tanto
de dia quanto de noite, porque seus números constavam nos dois turnos... nenhum Capo podia abrir mão deles, para que
seu Comando não fosse desfalcado. Também nunca recebiam o jantar, que era nosso prato principal, porque nunca mais
voltavam para o campo, onde ele era distribuído.
Imaginem por quantos dias estes infelizes conseguiam sobreviver: tra-balhando vinte e quatro horas por dia, sem
nunca dormir, sem receberem qualquer comida consistente.
Não é de se estranhar que a mortalidade neste campo se mantinha em 25% por semana.
Numa das primeiras noites que estávamos voltando ao campo, após um dia de trabalho, vimos um aglomerado de
prisioneiros empurrando-se uns aos outros.
– O que está acontecendo? – perguntei.
– Você ainda não sabe? É Kese que está, mais uma vez, distribuindo ali-mentos. É bom nos apressarmos. A gente
nunca sabe quando esta comida extra vai acabar.
Enfiamo-nos no meio da confusão. Vi que alguém estava distribuindo pe-daços de pão e de salsichão. No meio de
todo este empurra-empurra, lutamos com unhas e dentes até conseguirmos agarrar alguns bons pe-daços.
Olhei com mais atenção para quem estava fazendo a distribuição: era um moço atlético de uns vinte e cinco anos,
com mais de 1,90 de altura, vigoroso e ao mesmo tempo ágil como um gato. Tinha os traços perfeitos de um deus
nórdico, olhos azuis e cabelos loiros. Tratava-se de um prisioneiro, um proeminente, como se via pelo corte dos
cabelos. In-compreensivelmente, porém, usava roupas normais de civil, e não as listradas dos prisioneiros.
– Mas quem é Kese? – perguntei a um grupinho de detentos, que estavam saboreando os pedaços que conseguiram
arrancar no meio da confu-são.
Todos responderam ao mesmo tempo, cada um contando aventuras di-ferentes de Kese, descrevendo uma
personagem totalmente incrível.
Kese era um ladrão famoso de antes da guerra, um daqueles herois sim-páticos tipo Robin Hood, admirado por
todos, que sempre conseguia fu-gir da polícia e das prisões.
No campo, ele tinha um status especial: não trabalhava em nenhum Co-mando. Não participava do Apel e tinha um
109
alojamento separado só para si próprio ao lado do hospital. Era tratado como se fosse um rei. Só falava com os S.S.
graduados, não se colocava em posição de sentido quando se dirigia a eles e não dava a menor atenção aos S.S. sem
patente.
Ele tinha uma autorização especial da chefia dos S.S. para sair do campo quando o quisesse, sozinho, mesmo que
de noite, sem ser acom-panhado por nenhum guarda!
De onde vinha seu prestígio, exatamente o que fazia quando saía sozi-nho à noite, ninguém o sabia ao certo, mas
todo mundo contava que ele vivia distribuindo presentes fabulosos aos guardas.
Contava-se que trazia de fora do campo e distribuía aos S.S. o que mais faltava na Alemanha por causa da guerra:
cigarros, queijos, até charutos de Cuba. Dizia-se que, muitas vezes, trazia caminhonetes cheias de obras de arte, de
pinturas, de esculturas.
Contavam-se inúmeras histórias sobre Kese, cada uma mais fantástica de que a outra. O que era verdade, e o que
era ficção, ninguém podia garantir, mas uma coisa era evidente: Kese era um prisioneiro muito es-pecial, do qual até
os S.S. tinham medo.
Contava-se que uma vez Kese fez uma aposta com o chefe do campo e que a ganhou: conseguiu roubar os fuzis
dos S.S. que guardavam um Comando e voltar ao campo, levando as suas armas, que só entregou ao próprio chefe do
campo.
Dizia-se ainda que Kese, de vez em quando, passeava fora do campo, ao longo da linha de arame farpado, onde os
S.S. montavam guarda. Nestas ocasiões, ele jogava maços de cigarros no chão, perto de onde os S.S. estavam,
obrigando-os a se abaixarem na frente dele para apa-nharem os maços... e tudo isto à vista dos detentos, que assistiam
à cena através do arame farpado...
110
CAPÍTULO 25
assadas algumas semanas, eu disse a meu pai:
– A situação em Redl Zipf tornou-se insustentável. Mais alguns dias e vamos estar totalmente exaustos,
provavelmente até mortos. Temos que reagir!
– Mas o que podemos fazer, Michel? Você é sempre afoito demais. Não foi você quem quis sair de Wiener
Neustadt? Vê o resultado! Tenha um pouquinho de calma, filho, e vamos torcer para que a situação se aco-mode por si
só.
– Pai, você não reconheceu o S.S. que estava saindo do campo, quando nós, há pouco, voltamos do
trabalho? Era o Major Von Wienman, o co-mandante interino de Wiener Neustadt, o “meu” amigo, o major. A
minha ideia, pai, é bem simples: preciso só falar com ele. Tenho certeza que ele vai me ajudar, dando-me algum cargo
bom. Éramos realmente amigos em Wiener Neustadt. Mas como fazer para que ele me veja, para que eu possa falar
com ele? Suponho que ele só se encontra no campo durante o dia, e nunca de manhã cedo ou tarde da noite, quando
nós estamos aqui. É este o procedimento normal dos S.S. que dirigem campos de concentração: eles só o inspecionam
durante o dia. Assim, só me resta uma alternativa: permanecer no campo durante o dia, quando vou poder encontrá-lo
e falar pessoalmente com ele.
– Mas, Michel, você conhece o risco ao qual vai se expor se tentar ficar no campo durante o dia, quando deveria estar
trabalhando nos túneis. Se você tentar se esconder e não acompanhar o Comando quando ele sair do campo, você será
morto no mesmo dia pelo Capo, seja minutos antes da saída para o trabalho, quando ele constatar sua ausência e
conseguir achá-lo, ou seja na volta, quando ele vai estar obrigado a de-nunciá-lo ao Lagerälteste. Ele sentirá uma raiva
terrível contra você, por-que sabe que ele próprio também poderá ser responsabilizado pela sua ausência no trabalho. Ele
vai estar com medo de ser punido e de perder o cargo de Capo! Onde você vai se esconder o dia todo no campo,
aguardando a vinda de “seu” major? Não, Michel, seu plano só tem pouquíssimas chances de êxito e o risco de você
morrer é enorme.
– Mas, pai, continuar assim é impossível também: é morte certa.
– Michel, pelo amor de Deus, pára de me atormentar. Imagine só como vou me sentir enquanto estiver trabalhando
nos túneis sem saber o que está acontecendo com você aqui, no campo. Como é que vou passar o dia? Será que vou ter
forças necessárias para voltar vivo ao campo? É bem simples: no mesmo dia você vai se matar a si mesmo e a mim.
Mas... nada que meu pai dissesse, mudava minha resolução.
No dia seguinte, após o café, escondi-me.
Vi meu pai procurando por mim. Mas o que ele podia fazer?
Vi também meu Capo olhando por todos os lados. Também ele desistiu.
Meu Comando, assim como os demais, saíram normalmente do campo, dirigindo-se ao trabalho.
Passado um tempo, olhei em minha volta: o campo estava deserto, nin-guém passando pelas ruas.
“Preciso esconder-me, por enquanto”, pensei “pelo menos até umas 9 horas. É praticamente impossível o ‘meu’
major aparecer no campo antes disto”.
Encontrei uma maneira de me infiltrar no pátio do hospital, onde uns cin-quenta prisioneiros estavam aguardando a
vinda do médico.
Misturei-me ao grupo.
Após as 9 horas, saí do pátio. Já havia prisioneiros passando pelas ruas do campo, cada um tratando de seus
afazeres.
Começou a minha vigília: esperar por Van Wienman.
As horas iam passando lentamente... bem lentamente.
“Meu” major ainda não tinha aparecido.
“Não tem importância”, pensei. “Eu já previa que ele somente viria de-pois do almoço. Mas onde posso me
esconder agora? E onde posso arrumar meu litro de sopa?”
Não hesitei. Voltei ao hospital e misturei-me novamente aos pacientes que estavam esperando no pátio.
Consegui não despertar nenhuma curiosidade, e até receber uma sopa, como todos os demais.
Lá pelas 14 horas, saí novamente e comecei a perambular pelas ruas do campo.
P
111
“Ele virá logo” – tranquilizei-me.
Mas, as horas foram passando...
14:00
14:30
15:00
15:30
16:00
Quando o relógio marcou 16:30, toda a minha coragem me abando-nou.
“O que fazer agora?”, pensei. “Será que meu pai estava com a razão, que sou inquieto demais, tentando o
impossível? Daqui a pouco, a noite vai cair e não vejo nenhum sinal de “meu” ma-jor, nem de qualquer outro S.S. aqui
no campo.”
As fantasias mais aterradoras surgiram na minha cabeça. Vi meu Capo desferindo-me pesadas pauladas,
enforcando-me, matando-me.
Eu sabia que não eram meras fantasias, pois eram cenas que eu vira se repetirem muitas vezes, quando se apanhava
algum prisioneiro que ten-tara se esconder para não ir trabalhar.
Senti-me arrasado.
“Serei ainda o culpado da morte de meu pai. Também ele perdera todo o estímulo para lutar, também ele vai
morrer, e terá sido por minha pró-pria culpa, minha própria culpa, minha própria culpa”.
Estas palavras começaram a me martelar na cabeça.
Minha própria culpa. Minha própria culpa.
Sentia-me cada vez mais perdido.
Sabia que a cada minuto que passava eu estava mais próximo do meu fim. Eu sabia que uma morte brutal,
provavelmente por espancamento, me aguardava tão logo meu Capo voltasse do trabalho.
Enquanto estes pensamentos negros martelavam a minha cabeça, repa-rei em um S.S. parado perto da cerca do
campo. Ele estava sozinho, e pa-recia absorvido em seus pensamentos. “Mas é o Otto”, constatei sur-preso,
reconhecendo-o. “É o Pantera Negra”.
Lembram ainda quem é Otto? Era o amigo do Fritz, o Pantera Loira, que o Luxemburguês conhecera no campo de
Melk, onde estes dois guardas faziam parte de um grupo de S.S. que se juntara a alguns prisioneiros que vendiam selos
falsificados e que, no final, foram descobertos pela Gestapo.
Olhei novamente: não havia qualquer dúvida, era bem Otto.
Neste momento aconteceu algo comigo, algo de totalmente imprevisível e de inexplicável, como se uma varinha
mágica tivesse alterado todas as re-gras que norteavam minha vida até então.
Para que entendam exatamente o que significava a atitude que tomei, assim de repente, é preciso que se lembrem
de que todo prisioneiro es-tava obrigado, ao se dirigir a um S.S., a tirar o boné, de se colocar em posição de sentido e
de usar umas frases estereotipadas, repletas de expressões de submissão.
Vejam o que eu fiz: não hesitei um só segundo; não refleti, nem preparei qualquer plano concreto de ação, nem
pesei as consequências, nem medi os riscos, mas, de uma forma bem natural, aproximei-me de Otto, sem tirar o
chapéu, sem colocar-me em posição de sentido e disse-lhe na forma mais jovial e descontraída possível, como se
fossemos velhos amigos:
– Mas Otto, você está ótimo! Quem diria que você também chegaria a Redl Zipf e que nós nos reencontraríamos
aqui após tanto tempo! Quanta coincidência! Infelizmente, não estamos mais em Melk, aqueles eram bons tempos!
Com certeza você se recorda das farras que fazíamos, você se lembra como o Fritz, normalmente tão calmo e
controlado, se transformava quando tomava uns schnapps (bebida alcoólica popular alemã) a mais. E da Teresa, você
lembra? Esta sim, esta tinha sangue quente! Ela nos enlouquecia a todos. Tenho certeza que você também não
esqueceu a gonorréia que ela passou a um de nossa turma, um prisioneiro legal, Al-bert, o Luxemburguês?! Ainda
bem que sou médico e consegui curar os dois da doença, se não, todos nós estaríamos contagiados e, como você
sabe, com a gonorréia não se brinca.
É claro que perceberam o que tentei: no meu desespero, vendo-me tão perto da morte, arrisquei tudo numa única
grande aposta. Juntei as poucas informações que tinha recebido do Luxemburguês em Wiener Neustadt aos rumores
que circulavam em Redl Zipf a respeito de Kese, e criei o enredo mais fantástico do mundo.
A minha atuação foi totalmente inesperada, especialmente para mim mesmo. Era tão impensável um detento
112
comum dirigir-se desta maneira a um S.S., tratá-lo com tanta familiaridade, que Otto engoliu meu ato, atropelado que
foi por minhas palavras, tentando lembrar-se dos fatos que eu citava.
Percebi que ele hesitava, que não sabia bem como reagir.
Então aumentei a pressão, tentando fisgá-lo pela megalomania tão co-mum entre os S.S., especialmente entre os
mais sádicos.
– Vê como o pessoal deste campo é incapaz: a mim, não me deram cargo nenhum. Imagine só, colocaram-me num
Comando comum, a mim, que prestou tantos serviços pessoais aos S.S. É inacreditável como o Lagerälteste
(prisioneiro, chefe do campo) é ine-ficiente. Mas você me conhece, sabe quem eu sou: médico formado, que resol-veu
tantos problemas sérios dos S.S., e não só os médicos. Se você ti-vesse me encontrado antes, nunca teria permitido
tamanha idiotice. Teria mostrado a todos os seus conhecimentos e a sua garra e teria mandado que me colocassem no
mesmo cargo que sempre exerci: o de médico!
Otto, na realidade, não soube muito bem como reagir e deve ter pensado: “Claro, não sou nenhum idiota.
Mostrarei a todos eles, que eu, e só eu, sei como organizar um campo e concentração. E tem mais, quem sabe
posso ainda precisar deste médico: não sou imune, posso ainda con-trair alguma doença venérea”.
– Lagerälteste – gritou Otto com a sua voz mais potente, chamando o pri-sioneiro que dirigia os detentos do
campo.
Como era costume nestes casos, todo prisioneiro repetia o grito:
– Lagerälteste! Lagerälteste!
O grito “Lagerälteste” ecoava por todos os cantos, até ele aparecer. Era um prisioneiro baixo, gordo, com a
maldade estampada no rosto. Dois olhos furtivos sempre à espreita, procurando tirar proveito de qualquer
oportunidade.
Ele apareceu correndo, tirando o boné enquanto aproximava-se de Otto. Colocou-se em posição de sentido,
bateu os calcanhares e proferiu a frase clássica, que todo prisioneiro devia usar, ao dirigir-se a um S.S.:
– Senhor Oficial da S.S., com profundo respeito coloco-me, obediente-mente, à sua disposição, pronto a executar
as suas ordens.
– Mas que merda de Largerälteste você é? Você não sabe merda ne-nhuma! Nem percebe o que se passa por baixo
do nariz! Ainda bem que estou aqui para consertar os erros que comete. Ah, se não fosse eu!
Mostrando-me com o dedo, Otto continuou:
– Este ai é meu amigo particular. Você não sabia que era médico? E dos bons! Daqueles que entendem a gente!
E você, você o colocou num Co-mando comum, seu incompetente! Desde já ele passa a ocupar o cargo de médico.
Como o disse, a partir deste exato minuto! E você, merda de Lagerälteste, mais um erro destes e será você que
passará a trabalhar num Comando comum, você com a sua cabeça cheia de vento.
Otto retirou-se, deixando-me com o Lagerälteste.
É claro que durante todos estes anos que se passaram, revi a cena mi-lhares de vezes.
Quando reflito sobre o meu comportamento, tão estranho, tão inespe-rado até para mim mesmo, surge-me sempre a
mesma pergunta: como fui capaz de vender uma história tão maluca, sem pé nem cabeça?
E como foi possível que um guarda da S.S. , um sádico como Otto, e, com certeza, acostumado a ouvir mentiras,
caísse assim facilmente neste conto do vigário?
A esta indagação, só tenho uma única resposta: dizem que toda vez que Deus quer ajudar alguém, Ele manda um
anjo. Foi o que Ele fez por mim.
Foi este anjo que andou com minhas pernas. Foi Ele que se dirigiu com tanta naturalidade a Otto, que usou a minha
boca para lhe falar com tanta familiaridade, que movimentou meus braços, meu rosto, meus olhos para, através da
mímica, confirmar as mentiras que Ele mesmo inventara.
Depois, o mesmo anjo confundiu a mente do Otto, e fê-lo acreditar nas palavras que saíam da minha boca e fez
com que chamasse o Lageräl-teste, dando-lhe a ordem de me nomear médico do campo. Assim, para mim, todo este
episódio foi um verdadeiro milagre e é a Ele, a nosso Deus Onipotente e Misericordioso, que devo a vida e é a Ele que
devo agradecer por ter-me salvado de uma morte certa.
Mas, voltemos ao Largeälteste.
Ele nunca iria aceitar passivamente a humilhação que sofrera. Tinha que descontar o desaforo em alguém.
Assim, também ele deu um grito com a maior força possível:
– Lagerfriseur! Lagerfriseur! (Barbeiro do campo).
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Este grito foi igualmente repetido pelos prisioneiros até o barbeiro apare-cer.
– Lagerfriseur – perguntou o Lagerälteste com uma voz que parecia mor-der – como é possível que este médico tão
competente ainda não tenha o corte de cabelo dos proeminentes? Será que você não sabe fazer nada direito? Será que
tenho que lhe dar umas dez chicotadas de schlague para você se tornar eficiente? Faça o corte de meu amigo, o
médico, já! Providencie para ele roupas novas, bem limpas, e leve-o ao hospital para que ocupe seu cargo de imediato.
Avise a Kese que a ordem veio de mim e que o Otto concordou com a minha decisão.
O Lagerfriseur cumpriu imediatamente as ordens recebidas: levou-me para os chuveiros para que pudesse tomar
um bom banho, cortou meus cabelos na forma prescrita para os proeminentes, deu-me roupas novas e conduziu-me até
a barraca, encostada ao hospital, onde Kese morava sozinho.
– Em todos os campos – explicou o Lagerfriseur – é o médico-chefe que atua como Capo do hospital, mas aqui,
deram este cargo a Kese, para dar-lhe a possibilidade de não participar do Apel.
O Lagerfriseur transmitiu a Kese a ordem do Lagerälteste.
– Só que percebi que ela veio do Otto, e não do Lagerälteste – concluiu o Lagerfriseur ao sair.
– De onde você conhece Otto? – perguntou Kese – Aliás, você me parece jovem demais para ser médico formado –
concluiu, sorrindo maliciosa-mente e apontando com tanta facilidade a inconsistência de minha men-tira.
Contei a verdade a Kese, mas com uma pequena ressalva: sustentei que estava cursando o último ano de faculdade
e que já tinha tido muita ex-periência hospitalar.
– O.K.! Nunca vi ainda alguém aplicar este golpe nos campos de concen-tração, e olha que aqui sou macaco velho.
Gostei, Franz, gostei. Eu também adoro enganar os S.S.. São tão cré-dulos! No fundo não passam de cabeças de
criança com corpos de adultos. Vou ajudá-lo. No hospital temos um só médico, um polonês, cha-mado Anton. Ele
conseguiu tornar-se popular com os S.S., dos quais cuida com eficiência, mas, em relação aos prisioneiros, está
totalmente omisso. No hospital, praticamente nunca aparece. No pronto-socorro, usa doentes convalescentes sem
nenhuma formação médica para que executem o serviço de urgência que não pode ser adiado. Ele mesmo só fica
bebericando com os S.S.. Pelo menos nós, prisioneiros, deveríamos nos ajudar mutuamente. É o que vou fazer agora
mesmo, começando por você!
Kese mandou chamar o médico polonês:
– Anton – disse Kese – Otto mandou-nos mais um médico, o Franz, que está aqui. Ele vai facilitar a vida a todos
nós. Vou dividir as tarefas entre vocês dois: Anton, você só trata dos S.S., enquanto Franz fica proibido de se
aproximar deles. Ele vai se dedicar somente aos prisionei-ros, tanto no hospital quanto no pronto-socorro, onde você
não vai mais ter que perder tempo.
Este acerto agradou ao médico polonês: eu não seria nenhuma ameaça para ele, por não ter nenhum contato
com os S.S., e eu ainda faria todo o trabalho que não dava prestígio nem regalias, tratando dos detentos.
E foi assim que me tornei o médico que, sozinho, tomava conta de um hospital onde havia mais de 300 pacientes e
de um pronto-socorro que atendia mais de 100 pessoas por dia.
Eu, que só tinha 18 anos na época, que nunca tinha ingressado numa faculdade, e que não entendia nada de
medicina...
– Kese – disse eu, tão logo Anton saiu – estou com uma fome imensa.
Kese abriu um armário, abarrotado de mantimentos.
“Ele Não só mora sozinho num alojamento que normalmente abriga du-zentos e cinquenta prisioneiros, mas o seu
armário contém dez vezes mais comida do que se distribui por mês a este mesmo número de detentos”, pensei com um
misto de sentimentos contraditórios: indigna-ção pela injustiça, admiração e até uma pontada de inveja, pelo incrível
prestígio de Kese.
Ele deu-me um pão inteiro e um pedaço enorme de salsichão.
Eu escondi tudo por baixo do casaco e fui correndo para o portão de entrada do campo: os prisioneiros do turno de
dia estavam voltando! Po-dia ouvir seus passos martelarem ritmicamente o chão, os Capos gri-tando ordens e batendo
nos prisioneiros para demonstrarem sua efici-ência aos S.S., por sua vez ocupados em contar as filas que estavam
voltando pelo portão do campo.
Tive sorte. Cheguei no portão quando o Comando de meu pai estava en-trando.
Meu antigo Capo olhou para mim sem conseguir tirar os olhos do corte de meus cabelos, prova da minha nova
posição privilegiada.
– Já ouvi o que aconteceu – disse ele – soubemos que você foi promo-vido: será nosso novo médico! Você não se
114
esquecerá de mim? – per-guntou com a voz que se esforçava em ser simpática – Se estiver com má sorte e acabar
sendo internado no hospital, você vai me ajudar? Eu não fui tão ruim assim com você, sempre lhe estendi uma mão
amiga.
Meu pai chegou logo em seguida.
Abraçamo-nos com todo o calor, felizes por nos reencontrar, indiferentes à presença dos demais prisioneiros.
– Você nem imagina o dia de cão que passei – desabafou meu pai – feliz-mente, a turma da noite que chegou nos
túneis contou-nos que você foi nomeado médico. Que alívio senti...
Disfarçando o mais que pude, entreguei a meu pai a comida que Kese me dera.
– Tenho que voltar para o hospital, é lá que vou dormir doravante. Amanhã à noite, na hora de sua volta do
trabalho, esperarei por você aqui mesmo, no portão de entrada do campo. Com certeza vou poder trazer tanta comida
que ainda sobrará o suficiente para você distribuir o para o seu Capo e para o seu Blockälteste. Assim, você será bem
tratado por todos.
E foi exatamente o que foi acontecendo.
115
CAPÍTULO 26
o dia seguinte, comecei a minha nova profissão: médico!
Fui ao hospital e logo constatei que lá não havia qualquer remédio. Só en-contrei material para tratar ferimentos:
instrumentos cirúrgicos, desinfe-tantes, pomadas cicatrizantes, gazes e ataduras.
Entre os doentes, encontrei logo um médico francês. Pedi que me orien-tasse, que me ensinasse aquilo que os
poucos recursos disponíveis permitiam realizar.
No pronto-socorro, a situação era idêntica: também lá não havia qual-quer remédio. Percebi que a única coisa que
poderia fazer, tanto no hospital, como no pronto-socorro, era tratar das infeções e dos feri-mentos dos prisioneiros.
Assim, passei, diariamente, a fazer inúmeros curativos e pequenas ope-rações externas, tornadas necessárias
pelos maus tratos aos quais os prisioneiros estavam submetidos: constantemente apareciam prisionei-ros com dedos
quebrados, com infecções e ferimentos profundos: os S.S. e os Capos não mediam a força das pancadas que
davam... e me-nos ainda se incomodavam em atingir alguma área sensível ou órgão vital...
Aprendi depressa, usando os prisioneiros como cobaias... As primeiras operações não eram aquele grande sucesso,
mas logo tornei-me um especialista naquelas que apareciam regularmente. Para as outras do-enças, o máximo que
podia oferecer eram compressas quentes ou frias. Não havia nem calmantes, nem qualquer droga para aliviar as
do-res.
Mesmo assim, lentamente, comecei a organizar o próprio hospital. Aprendi as técnicas de auto-vacina, que eram
ótimas para fazer as infe-ções regredirem. Trabalhei muito e sem parar, desde a hora de acordar até cair na cama.
Havia tanto para fazer e eu não tinha como conseguir ajuda competente. Diariamente, um S.S. passava pelo hospital,
retirava todo paciente que conseguia andar e o mandava de volta a seu Co-mando. Seu lema era: “O paciente está
considerado curado quando tem forças suficientes para chegar até os túneis. Se ele estiver fraco demais para trabalhar,
isto já não é mais o meu problema, mas o de seu Capo”.
Assim, só podia obter alguma ajuda dos pacientes convalescentes, pelas poucas horas que permaneciam no
hospital.
Com o tempo, os que trabalhavam na cozinha vieram procurar-me, pois sabiam que se adoecessem e fossem
enviados ao hospital perderiam o cargo. Sendo eu o único médico que trabalhava para os detentos, eles precisa-vam
contar com a minha boa vontade.
O que eles faziam, então?
Mandavam-me comida de S.S. à vontade!!
Claro, a meu pai não lhe faltava nada. Ele vinha todo dia ao hospital e levava, além da melhor comida possível,
roupas e sapatos de boa quali-dade, que eu conseguia arranjar com proeminentes que precisavam de mim. Às vezes,
conseguia até arrumar cigarros para meu pai, o que era o bem mais cobiçado no campo.
Passaram-se uns dois meses neste ritmo de vida, até que num determi-nado dia, Kese mandou chamar-me:
“É a primeira vez desde que assumi o hospital”, pensei, receoso por al-guma novidade desagradável.
– Franz, num campo da Rússia surgiu uma epidemia de tifo. Você co-nhece os alemães: sempre eficientes e
impediosos. Eles cercaram ime-diatamente o campo, fuzilaram e sepultaram todos, inclusive os S.S. que montavam
guarda em volta do campo. O medo de ocorrer novamente um episódio destes fez com que nosso Lagerführer (chefe S.
S. do campo) mandasse que criássemos uma “quarentena” permanente aqui: de hoje em diante, só será admitido no
hospital quem apresentar alguma doença leve e diagnosticável com segurança absoluta. Todos os demais, ou seja os que
tiverem a menor possibilidade de serem portadores de doenças contagiosas, ou que provavelmente não vão mais sair
vivos do hospital, vão ser encaminhados diretamente para a quarentena.
Você, Franz, será o médico que vai chefiar a quarentena, para onde a quase totalidade dos doentes vai ser enviada.
Anton vai voltar a cuidar do hospital, que, com certeza, vai permanecer praticamente vazio. Isto fará com que você,
Franz, não possa mais sair da querentena, o que, apesar de tudo, tem seu lado bom: você não vai mais precisar
participar do Apel e vai ficar isento de qualquer fiscalização, já que nenhum S.S. vai entrar num lugar onde sempre há
perigo de contágio.
– Mas há suprimentos que preciso receber regularmente, como comida, algum material hospitalar, os caixões para
os mortos, etc.
N
116
– Você tem razão, não é possível cortar todo contato com o exterior. Para resolver o problema, Franz, você vai
escolher um ajudante que vai poder locomover-se livremente pelo campo, mesmo que isto seja irregu-lar. Mas você,
como o responsável, está terminantemente proibido de sair da quarentena, que será instalada na área mais isolada: na
última barraca, bem no fim do campo e ao lado da cerca, onde praticamente ninguém passa. É exigência expressa dos
S.S., que sentem um pavor enorme por doen-ças contagiosas e que poderiam facilmente atingí-los,
a eles próprios.
E foi assim que me tornei médico da quarentena. Enquanto eu permane-cia em vida, os S.S. tinham a certeza de
que não havia nenhuma epide-mia.
Não me senti nada feliz com o papel, que lembrava o provador de bebi-das nas cortes reais da Idade Média, aquele que
impedia que o monarca pudesse ser envenenado.
O ajudante que escolhi, um iugoslavo com o nariz típico dos Bourbons não entendia nada de medicina, mas ele,
além de resolver os problemas externos da quarentena, ia diariamente à barraca de meu pai e entre-gava-lhe tudo que
eu podia arrumar.
Novamente, passaram-se mais alguns meses. Eu vivia e trabalhava na quarentena, numa rotina que nada
quebrava. Todos os dias transcorriam exatamente iguais. Eu não tinha contato com ninguém, a não ser com meus
pacientes, que, num ritmo alucinante, davam entrada na quarentena e quase todos, após pouquíssimos dias, vinham
a falecer.
A contragosto, sinto-me obrigado a relatar um curto episódio que não precisa de nenhum comentário, pois ele, por
si só, mostra toda a cruel-dade da qual o homem é capaz.
Um dia, deram entrada no hospital dois franceses, um pai e o filho, que eu conhecia muito bem desde o campo de
Compiègne.
Estavam muito enfraquecidos. Não soube diagnosticar sua doença, mas era visível que o estado deles era precário.
Havendo só pouquíssimos leitos disponíveis, coloquei meus amigos numa só cama, no 2º andar de um beliche.
Como de costume, à tardinha, eu fiz a distribuição do pão e, natural-mente, dei duas porções a meus amigos
franceses, uma para cada um.
De manhã cedo, encontrei o corpo do pai no chão. Estava morto! Rígido! Visivelmente, caíra do beliche.
Seu filho, que continuava sozinho na cama, contou-me sem o menor re-morso ou constrangimento:
– Percebi que meu pai não sobreviveria à noite. Assim, pedi-lhe que me desse a sua porção de pão, mas ele recusou
meu pedido. Brigamos e eu joguei-o fora da cama! Se morreu na hora, foi só uma simples antecipação. Comi seu pão.
Quem sabe vai me dar as forças necessárias para supe-rar a minha doença?
Na mesma noite o filho faleceu sem sequer ter dado a primeira mordida na sua nova porção de pão.
A cada poucos dias, o campo-matriz de Mauthausen mandava um cami-nhão com caixões de madeira nos quais eu
colocava os corpos dos mortos. Uns dias depois, o mesmo caminhão levava os mortos de volta para Mauthausen, para
serem incinerados nos fornos crematórios, que só havia no campo-matriz.
Devido à escassez crônica de caixões, eu costumava colocar dois ou três mortos em cada um.
Acontecia, às vezes, que a chegada de novos caixões atrasava demais. O que fazer então com os cadáveres que
sobravam? Onde colocá-los?
Só havia uma solução: empilhá-los numa das dependências do hospital, da mesma forma como se estoca tijolos,
em pilhas, cruzados de dois cor-pos, subindo até o teto!
Num certo dia, meu ajudante não pôde sair da quarentena e, portanto, não levou nada para meu pai. Mandei um
outro detento hospitalizado avisar meu pai, para que assim que voltasse do trabalho viesse na área localizada nos
fundos da barraca da quarentena. Disse que ele devia levar uma vassoura e fazer de conta que estava varrendo a área,
para despistar algum S.S. curioso demais. Disse ainda que lá mesmo eu lhe entregaria a comida que eu tinha preparado
para ele.
Tudo ocorreu como combinado. Abri a porta dos fundos e vi meu pai, vassoura na mão, varrendo diligentemente a
área deserta.
Saí rapidamente de minha barraca, puxei meu pai para dentro da qua-rentena e dirigi-me a um monte de cadáveres que
eu tinha empilhado.
Com a maior tranquilidade do mundo, levantei o traseiro de um dos cadá-veres e de debaixo dele tirei um pão
inteiro e alguns pacotes de marga-rina, que eu tinha escondido entre os corpos.
Foi com espanto que reparei a cor do rosto de meu pai mudar: tornou-se verde!
117
Meu pai abriu a porta da quarentena e fugiu precipitadamente, colocando a mão na boca para segurar o vômito que
ele sentia subir.
Só então percebi o quanto o convívio constante com mortos tinha alterado a minha percepção das coisas, e anulado
toda minha sensibilidade: para mim, os cadáveres eram só uma perfeita câmara frigorífica... e não se-res humanos,
possuidores de uma alma imortal, que poucas horas atrás ainda sonhavam com a liberdade, rezavam para que Deus
lhes demons-trasse piedade, e os mantivesse vivos...
Passaram-se mais alguns meses, sem qualquer novidade especial.
Até que numa manhã eu senti que algo fora do comum estava aconte-cendo: o Apel durava muito mais tempo do
que de costume! Por horas os prisioneiros permaneciam parados, em posição de sentido, e nenhum Comando saía do
campo.
Ouvia-se o barulho de soldados correndo por todos os lados.
“O que estaria acontecendo?”, pensei, quando alguns guardas bateram na porta da quarentena:
–
Kese
estaria
aqui,
escondido
na
quarentena?
–
perguntaram
os solda-dos.
Abri a porta.
– Senhor oficial da S.S. – respondi – informo obedientemente que ele não está aqui. Aliás, nunca apareceu na
quarentena, que é uma área proibida para quem não estiver sob suspeita de ter contraído uma doença conta-giosa.
– Estamos procurando Kese. Se ele aparecer, chame-nos imediata-mente! É uma ordem! Transgredi-la acarretará
punição com fuzilamento sumá-rio. Não se atreva em protegê-lo só por ele ser seu Capo!
Enquanto os S.S. ainda estavam pronunciando estas ameaças, ouviram-se tiros.
– Deve ser Kese. Pegaram-no! Já deve estar morto. Agora acabou-se a sua arrogância! Desta vez chegou a hora
dele. Ela chega para qualquer prisioneiro... por mais proeminente que seja.
Foi o que de fato, acontecera. Os S.S. tinham matado Kese!
Exatamente por que o fizeram, nunca se soube com certeza. Dizia-se que Kese estava roubando objetos de arte
de alto valor, que estavam sendo transportados de trem da Itália para a Alemanha e que ele teria sido surpreendido
pela Gestapo. Disseram que os S.S. de nosso campo não po-diam permitir que a Gestapo interrogasse Kese, que
então poderia incri-miná-los como parceiros no lucro dos roubos. Se esta versão for a ver-dadeira, seria quase uma
réplica de que o Luxemburguês contou que ocorrera em Melk.
O que aconteceu com o corpo de Kese também permaneceu um misté-rio, porque ele não foi colocado nem nos
caixões para defuntos, nem enviado diretamente para os fornos crematórios de Mauthausen.
Uns quinze dias após a morte do Kese, Anton, o médico, chamou-me:
– Nosso campo será desativado em breve. O trabalho dos prisioneiros terminou. Agora é a vez dos especialistas
em foguetes tomarem conta dos túneis de Redl Zipf.
Franz, lave tudo com água fervendo, desinfete a quarentena, estamos de saída.
Diariamente, caminhões e mais caminhões cheios de prisioneiros saíam do campo. Em poucos dias as barracas
esvaziaram-se e até na quaren-tena não havia mais quase ninguém.
118
CAPÍTULO 27
endo o que estava acontecendo, resolvemos, meu pai e eu, precipitar as coisas para podermos ficar juntos. Assim,
na primeira oportunidade, subimos no mesmo caminhão, indo novamente para um destino desco-nhecido.
– Para que campo vão nos levar? – perguntou meu pai.
– Será difícil termos lá a mesma vida boa como a que tivemos ultimamente em Redl Zipf – respondi apreensivo.
Desta vez fomos levados para o subúrbio de uma cidade grande: Linz.
Também este era um campo novo, em formação. Diariamente, novas le-vas de prisioneiros estavam chegando.
Assim que demos entrada no campo de Linz, começamos, meu pai e eu, a trabalhar na Herman Goerings Werke,
onde aviões e tanques eram montados.
Neste campo as condições de vida e de trabalho eram bem melhores do que as dos prisioneiros comuns em Redl
Zipft. Mesmo assim, procurei logo estabelecer contatos com as pessoas influentes do campo, procu-rando um cargo na
administração.
Conhecia muito bem o Lagerschreider (prisioneiro, secretário do campo), um checo moreno, alto e bonitão: em
Redl Zipft ele sofria de uma erupção de furúnculos, mal bastante comum no campo, que eu con-segui debelar através
da aplicação de auto-vacinas.
Diariamente, via o Lagerschreider no campo. Parava-o sempre, pedindo que me arrumasse algum cargo, agora que a
população do campo es-tava aumentando e, portanto, necessitava expandir os seus quadros.
Um dia, ele chamou-me:
– Franz, hoje você vai ter a sua grande chance. O S.S. chefe da cozi-nha escolherá 10 elementos novos para
ingressarem no seu Comando, entre os 60 candidatos que eu fui incumbido de apresentar-lhe. Siga-me para que o
coloque na turma que estou reunindo. Ser escolhido pelo S.S., entretanto, dependerá de sua habilidade.
Em poucos minutos, o checo formou o grupo. Mandou que ficássemos em posição de sentido. Em seguida, chamou
o S.S. para que proce-desse à escolha dos dez elementos que iriam trabalhar na cozinha.
Logo o S.S. apareceu. Era um gigante: alto, forte, musculoso, com bra-ços de lutador de boxe.
Ele examinou-nos rapidamente e passou a fazer a triagem.
Percebi que procurava os mais fortes, os mais altos. Entendi que não teria chance nenhuma: eu ainda tinha o corpo
de um adolescente, era magrinho devido à falta de alimentação das últimas semanas, e só media 1,70 m de altura.
Sabia que se quisesse sobreviver teria que fazer algo imediatamente.
Saí da fila, tirei o boné da cabeça, batendo-o com força contra minha perna para chamar a atenção e dirigi-me ao
S.S., chefe da cozinha:
– Senhor Oficial da S.S., obedientemente e com respeito peço permis-são para dirigir-lhe a palavra. É minha
obrigação informá-lo que tenho muita prática em cozinhas internacionais. Trabalhei durante 5 anos no Piccadily de
Paris, famoso pelo mundo inteiro, e que o senhor deve conhe-cer, e, quem sabe, talvez até tenha degustado alguma
refeição lá.
Enquanto estava falando, pensei: “Será que existe um Piccadily em Paris?”
O S.S. reagiu como eu o esperava: com um gesto indiferente, mandou que me juntasse ao grupo que estava
escolhendo.
Assim que os 10 prisioneiros estavam separados, ele levou-os até a co-zinha.
– Capo – gritou ele ao entrar – eis os novos ajudantes. Daqui para a frente, não quero mais saber de atrasos por
falta de pessoal. Quero efi-ciência! Acabaram-se as suas desculpas!
Seguindo o S.S., entrei na cozinha, onde presenciei uma cena pareci-díssima com a gravura de um livro de minha
infância: “O Inferno de Dante”.
Vi mais de 30 prisioneiros, todos quase nus, transpirando devido ao es-forço físico e ao calor reinante. Estavam
todos atarefados em volta de umas 15 auto-claves, enormes panelas de pressão industriais que me-diam 2 metros de
altura por 3 de diâmetro, dentro os quais cozinhavam diversas comidas que seriam servidas, umas para os S.S., e
outras para os prisioneiros.
Os cozinheiros, precariamente equilibrados sobre andaimes, mistura-vam o conteúdo das auto-claves, das quais
subiam espirais de fumaça que dificultavam a visibilidade, escurecendo o ambiente, exatamente como na ilustração de
V
119
minha infância.
Os prisioneiros corriam por todos os lados, carregando sacos de manti-mentos, enchendo algumas auto-claves e
esvaziando outras.
Vi que o trabalho era pesado e não permitia nenhum instante de des-canso.
“Parece o retrato clássico do inferno”, pensei, “ou talvez de um grupo de alquimistas da idade média...”
– Vocês aí – gritou o Capo dirigindo-se a nós – vocês, os novos, não fi-quem parados aí admirando o esforço de
seus companheiros. Vocês não estão em férias! Mexam-se! Vamos já descarregar o caminhão de farinha que acaba de
chegar. Em passo acelerado! Aqui não se dá mo-leza, não!
Colocou-nos em fila. Mandou-nos descarregar sacos de farinha que pe-savam oitenta quilos cada, e levá-los a um
depósito ao lado da cozinha.
Quando chegou a minha vez, mal consegui equilibrar o pesado saco so-bre as costas.
– Nenhum de vocês tem qualquer prática – queixaram-se os dois encar-regados do caminhão, enquanto colocavam
os sacos sobre os nossos ombros – E você – acrescentaram, dirigindo-se a mim com menosprezo na voz – é o mais
desastrado de todos.
Depois de ter descarregado três sacos, percebi que não aguentaria mais pegar nenhum outro: minhas costas doíam,
minhas pernas tremiam, meus olhos não conseguiam mais focalizar nada. Senti que não podia mais me mexer, que
estava prestes a desmaiar.
Pensei: “Será que o trabalho na cozinha, que me parecia ser um para-íso, vai se tornar pior de que o inferno de
Dante?”
Enquanto uma onda de auto-piedade e de desânimo tomava conta de mim, dei mais uma boa olhada pela cozinha.
Desta vez, reparei que num canto havia um grupo de prisioneiros sentados, todos com um balde ao lado dos pés:
estavam descascando batatas.
DESCASCANDO BATATAS!
Esta visão produziu um estalo na minha mente. Sem hesitar, dirigi-me ao Capo:
– Transportar sacos de farinha não é a minha especialidade: nunca fui carregador e não tenho preparo físico
para este trabalho. Minha profis-são é bem outra: sou pianista profissional. Antes de entrar no campo de
concentração costumava dar concertos ao piano. Tenho certeza que a cozinha vai aproveitar melhor as minhas
capacidades se me deixarem fazer o tipo de trabalho para o qual fui treinado, usando a dexteridade e rapidez de
meus dedos. Saiba que durante 10 anos pratiquei exercícios diários de piano, por horas a fio. Por isto, proponhome a trabalhar como descascador de batatas, e não como carregador. Aliás, o Major Von Waiman da S.S. sempre
gosta de me ouvir tocar pi-ano. Foi ele quem pediu a seu chefe que me colocasse na cozinha. Foi por isto que seu
S.S. me trouxe para cá, a mim, um rapaz franzino, e não um daqueles brutamontes que ele costuma escolher para
trabalhar aqui.
O Capo olhou para mim, o riso tomando conta de seu rosto:
– Espertinho, não é? Você acha mesmo que vou engolir a sua história? Você um pianista? Um concertista? Que
conhece um major da S.S.? Será que você pensa que vou me deixar amedrontar só porque citou o nome de uma altapatente da S.S. que nem sei se realmente existe?
– Meu Capo, fico realmente lisonjeado por você achar que sou um rapaz esperto. Concordo com você: o mundo é
dos que sabem se virar. Só eles vão conseguir sobreviver nos campos de concentração. Aliás, não é você mesmo a
melhor prova desta verdade? Não é você quem conse-guiu o cargo máximo na cozinha, ser o Capo!? Enquanto que eu,
eu... somente procuro ser um mísero descascador de batatas... Afinal de contas, o que há de mal nisto? O que há de
mal em ser esperto, em lutar para sobreviver a esta maldita guerra? Meu Capo, só posso di-zer que o admiro pela sua
capacidade e esperteza!
Foi assim que fui nomeado descascador de batatas... depois de ter sido médico que dirigia um hospital com mais de
300 doentes...
Passados umas poucas semanas, realizei meu segundo sonho: conse-gui que meu pai também passasse a trabalhar
na cozinha, e mais ainda... no mesmo cargo, de descascador de batatas!
Imaginem nossa alegria: os dois sentados, um frente ao outro, tendo como única tarefa ficar descascando batatas...
batendo papos intermi-navelmente...
Sim, agora começamos a desfrutar de uma situação privilegiada e inima-ginável no mais arrojado dos sonhos: os
dois juntos, fazendo um trabalho que não cansava, para o qual não existia nenhuma norma de produção. Ocorria num
120
ambiente fechado, onde não caía chuva, nem neve e onde havia co-mida à vontade.
Aliás, nosso cargo nos proporcionava tanto prestígio que morávamos num Block (barraca) separado, só para
proeminentes, onde o tratamento dispensado era bem mais ameno e não precisávamos participar do Apel.
Permanecemos trabalhando na cozinha durante uns 8 meses, até o fim da guerra, sim, até O FIM DA GUERRA!
Neste período, surgiram inúmeros problemas: substituição do Capo da cozinha, do próprio S.S. que nos dirigia,
alguns roubos de comida prati-cados por cozinheiros, e pelos quais muitos foram severamente punidos, até mandados
embora da cozinha. Mas, nós dois conseguimos manter os nossos cargos até o fim da guerra.
121
CAPÍTULO 28
epararam? Introduzi um novo tempo no meu relato: “O fim da guerra”.
É isto mesmo, devagar estava se aproximando este tão sonhado mo-mento: o fim da guerra, e o início de nossa
libertação...
Também agora chegou o momento para abandonar a ordem cronológica que adotei até agora e falar a respeito de
alguns problemas que, para maior clareza, omiti deliberadamente.
Eles formaram-se assim que fomos presos na França e levados aos campos de concentração.
O menor deles refere-se ao pacote de jóias que meu pai, arriscando a vida, escondera com tanto sangue frio e
coragem quando entramos no campo de concentração de Mauthausen.
Assim que possível, meu pai retirou do pacote as pedras maiores: eram seis diamantes de mais de três quilates cada
um, que ele costurou no interior de cinto contra hérnia que usava. O resto das jóias permaneceu embrulhado no mesmo
pedaço de lona.
Guardar este pacote deu-nos muita dor de cabeça, acarretou-nos cons-tantes riscos: no campo, qualquer
“autoridade” nos revistava, às vezes para nos humilhar, mas, geralmente, para procurar algo de valor que pu-desse
confiscar em proveito próprio. Os banheiros onde nós nos laváva-mos eram coletivos e, portanto, todos tiravam a
roupa na frente dos demais.
Assim, tivemos que esconder as jóias mudando constantemente de es-conderijo: nas nossas camas, sobre nós
mesmos, nos recintos de tra-balho, até em buracos na terra. Às vezes as abandonávamos por sema-nas inteiras
embaixo de alguma pedra ou por cima de um armário. Ou-tras vezes podíamos nos dar o luxo de não as largar de vista
por algum tempo.
Uma vez aconteceu um desastre que poderia ter trazido consequências fatais para meu pai: já por diversas horas,
estávamos no Apel, em posi-ção de sentido, quando um dos Capos começou a nos revistar demora-damente. Ele era
homossexual, aproveitando sempre destas revistas para transformá-las num apalpamento demorado. Meu pai, que
escon-dera o pacote em suas roupas, percebeu que o Capo o encontraria com certeza. Assim, colocou-o dentro da
boca, único lugar que lhe parecia seguro.
Um outro Capo que estava fiscalizando o alinhamento lateral dos prisio-neiros achou que o rosto do meu pai estava
demasiadamente avançado em relação aos demais prisioneiros. Pensou que meu pai, por simples brincadeira, enchera
as bochechas de ar, enquanto, na realidade, o es-paço a mais estava ocupado pelas jóias.
Este segundo Capo, especialista no uso do chicote, aplicou de longe uma chicotada no rosto do meu pai que,
surpreso pelo impacto imprevisto, engoliu o que tinha na boca.
O pacote seguiu normalmente o caminho anatômico, passando por todo o aparelho digestivo e saiu por onde o
organismo humano expele o que de impróprio engoliu...
Meu pai conseguiu recuperar o pacote, apesar de ter que procurá-lo quando fazia as necessidades nas latrinas
coletivas...
Terminada a guerra, voltamos para a cidade onde morávamos antes: Antuérpia. Lá, abrimos o pacote: embrulhado
numa destas raras notas de quinhentos dólares encontramos um broche em platina com aproxi-madamente catorze
quilates de diamantes.
A nota estava parcialmente destruída, a parte central corroída pela ação dos ambientes adversos nos quais, muitas
vezes, ficou escondida. Ao trocá-la, só recebemos a metade de seu valor nominal. Quanto ao bro-che, tínhamos que
reformá-lo, por estar amassado e deformado. Nós o transformamos num broche-clipe, isto é, um broche que no
simples toque de dedos se separa em duas metades iguais.
Quanto aos diamantes que meu pai escondera no seu cinto contra hér-nia, estes perdemos. Uma vez, sem qualquer
motivo real, um Blockäl-teste (prisioneiro, chefe de barraca), chamado Remi, bateu com tanta violência na cabeça de
meu pai que ele ficou meio desacordado. O Blo-ckälteste reparou então que meu pai segurava o cinto com as duas
mãos e não protegia a cabeça, como teria sido o normal.
Remi entendeu logo que, para meu pai, o cinto era o mais importante. Ele passou então a examiná-lo com toda a
minúcia, até encontrar os dia-mantes, que retirou e simplesmente guardou para si.
Quando meu pai me relatou o que tinha ocorrido, percebi ele estar cor-rendo perigo de morte: era lógico que Remi
R
122
iria querer matar meu pai na primeira oportunidade, para que ninguém soubesse que ele se apossara de diamantes de
alto valor. Ainda mais que Remi tinha fama de ser um assassino brutal, por ser ele quem os S.S sempre usavam como
car-rasco. Ele era chamado toda vez que se promovia um enforcamento público, o que acontecia quando os S.S.
queriam fazer um show e punir espetacular-mente alguns detentos.
O que foi que eu fiz?
No dia seguinte, dirigi-me à barraca de Remi e, fingindo uma segurança que eu, na realidade, não sentia, disse-lhe:
– Você sabe que eu sou Franz, o médico-chefe da Quarentena. Normal-mente, eu não saio de lá, mas hoje tive que
fazê-lo para conversar con-sigo. Eu sou o filho daquele prisioneiro de quem você tomou uns diamantes. Posso
tranquilizá-lo de que não vamos contar a ninguém o que aconteceu, pois, para nós, estes diamantes representam muito
pouco. Na vida civil, somos uma família muito rica e é, aliás, este o motivo que levou Kese a colocar-me como
médico na chefia da quarentena. Ele co-nhece a nossa família de antes da guerra e sabe perfeitamente quem somos.
Prometemos a Kese que, caso saiamos vivos do campo, o recompensa-remos com uma quantia alta em dinheiro e eu,
agora, prometo a você o mesmo. Se nós, meu pai e eu, sobrevivermos à guerra, o seu futuro eco-nômico estará
garantido. O nosso endereço na Bélgica é fácil de guar-dar: é na cidadezinha de Heide, perto de Antuérpia, onde todo
mundo nos conhece. Já meus avós eram donos da maioria das terras de lá.
O intuito desta conversa é bastante clara, e ela funcionou! Também o que arriscava Remi? Nada!
Eu receava, entretanto, que Remi fosse conversar com Kese a nosso respeito. Felizmente, a rivalidade que existia
entre os proeminentes sal-vou-nos, pois estes dois figurões não devem ter tido qualquer contato pessoal entre si.
Durante o tempo que Remi e eu ficamos em Redl Zipf, toda vez que nós nos cruzávamos trocávamos olhares de
cumplicidade e de desafio ao mesmo tempo.
Não tenho a mínima idéia do que aconteceu com Remi depois de sair-mos de Redl Zipf.
Nunca mais o revi, nem ouvi nada a respeito dele. Suponho que foi morto pelos prisioneiros no dia da libertação do
campo, para o qual o destino o levou.
O segundo problema que nos perseguiu durante nossa permanência nos campos de concentração era uma verdadeira
espada de Dâmocles: a cada dia, a cada instante, sabíamos que ela poderia cair sobre nossas cabeças. Era uma
decorrência inevitável do fato de que meu pai e eu es-condemos a informação de sermos judeus, mesmo sabendo que
todos os que foram pre-sos junto conosco em Chateauneuf-les-Bains desconfiassem que o éramos.
É natural que eles, nas longas horas de tédio que surgem em toda en-carceração, conversassem com os amigos a
respeito de suas suspei-tas. Havia ainda uma razão adicional que levava os prisioneiros france-ses a especularem a
nosso respeito: era a enorme inveja causada pelos cargos de destaque que eu sempre conseguia!
Mesmo que mudássemos muitas vezes de campo, sempre alguns dos franceses que tinham ouvido algum sussurro a
respeito de nossa origem acompanhavam-nos nas transferências, e, no novo campo, repetiam as suspeitas aos novos
companheiros.
Com o correr do tempo, e devido às diversas mudanças de campo, nin-guém tinha certeza se éramos judeus ou
não, mas sempre persistiam fortes suspeitas que nos acompanhavam para onde quer que fôssemos transferidos.
Havia mais um motivo que aumentava estes rumores: nos lavatórios co-letivos, todo mundo podia constatar que
éramos circuncisados. É ver-dade que contávamos uma mentira bem bolada: dizíamos que a Antuérpia, a cidade onde
morávamos e que era um dos maiores portos do mundo, estava repleta de marinheiros e de prostitutas, que espalhavam
inúmeras doenças venéreas. Dissemos que a melhor proteção contra estas doenças era uma operação similar à
circuncisão, cuja diferença o leigo não podia perceber e que a grande maioria dos cidadãos da Antuérpia se submetera
a esta operação, inclusive meu pai e eu.
Mas é claro que esta explicação não convencia a todos...
Assim, tínhamos que usar de muita diplomacia e de habilidade para que nenhum dos franceses sentisse a vontade
de nos denunciar aos ale-mães, ou mesmo aos Capos com os quais tinham contato diário.
Mas apesar das nossas precauções, eu fui acusado por duas vezes de ser judeu. Em cada uma destas ocasiões eu só
dispunha de uma fração de segundo para tomar a única atitude eficaz, capaz de me salvar.
Nas duas vezes, por mais ilógico que possa parecer, usei de técnicas diametralmente opostas. Felizmente,
funcionaram perfeitamente.
Caso contrário, estaria morto, provavelmente na hora mesma da própria acusação, exatamente como ocorreu com
aquele russo não-judeu, que em Wiener Neustadt fora afogado num balde de água sob a mesma acu-sação: “ Você é
um judeu disfarçado”, embora ele nem judeu fosse.
123
O primeiro incidente deu-se quando eu não tinha cargo nenhum, e como qualquer outro prisioneiro comum,
trabalhava num Comando externo. Eu estava sozinho, cavando uns buracos na terra. Alguns metros atrás de mim, dois
outros prisioneiros abriam valas.
Eram poloneses, como se via pelos triângulos que usavam em seus pa-letós: vermelhos com a letra “P”, inicial de
polonês. Eu entendia perfei-tamente sua língua, mas, passando no campo por belga preso na França, eu tinha que fazer
de conta que não entendia o polonês, pois se-ria ilógico demais um francês entender uma língua eslava...
– Este jovem francês aqui na nossa frente é judeu – ouvi o mais alto dos poloneses dizer a seu companheiro, apontando
para mim... Você sabe, nós, poloneses de Varsóvia, temos um sexto sentido. Dizem que cheira-mos quem é judeu e eu
tenho a certeza absoluta que este francês aí é judeu.
– Não esteja tão seguro assim, Wollek – respondeu o outro – Você sem-pre quer descobrir judeus escondidos,
desde que, em Varsóvia, você achou um. Você pensa que é mesmo um perito que reconhece um judeu só olhando para
ele?
– Com certeza absoluta! Mas veja bem, daquela vez, quando entreguei aquele porco judeu aos alemães, eles deramme um prêmio de cem mar-cos. Valeu a pena, não é? E agora, se conseguir entregar um outro judeu para os S.S., com
certeza eles vão me dar um bom pedaço de pão. Assim, não é bom negócio trocar um judeu por uma boa fatia de pão?
Quem sabe até vão me dar um pão inteiro!
– Claro Wollek, vale a pena. Mas se você se enganar, os S.S. vão fazê-lo pagar caro. Cuidado, Wollek!
– Então observe-me bem. Você vai ver com que facilidade vou desmas-carar este engraçadinho nojento, que tenta
se disfarçar.
Wollek aproximou-se de mim.
Mas eu, é claro, estava bem preparado.
– Ei, tu szidsze – disse o polonês em tom alto – dirigindo-se a mim – tu zsi-dsze – repetiu ele, aumentando o tom de
sua voz, cuspindo no chão em sinal de menosprezo.
Eu sabia muito bem o significado destas palavras: ele estava se dirigindo a mim, chamando-me de “zsidsze”
(judeu, em polonês).
Estando prevenido, eu fiz de conta que eu entendera que ele estava se apresentando, informando-me que o nome
dele era Zidze.
Abri um enorme sorriso em seu benefício. Apontei meu dedo indicador para o peito dele e repeti suas palavras,
errando propositadamente na pronúncia:
– Zidze, Zidze! Polônia? Você polonês? Agora entendi.
Esta pantomina significava: “Você se chama Zidze, não é? Você é po-lonês? É isto que está querendo dizer?”
Depois, colocando a mão no meu peito, eu lhe disse num misto de ale-mão e de francês:
– Eu sou Franz Depauw, da Bélgica, de Antuérpia. É bom sermos amigos.
Repeti estas frases por diversas vezes, ostentado o sorriso mais idiota e ao mesmo tempo mais simpático que pude
conseguir.
O polonês ainda repetiu sua acusação de que eu era um zsidsze, um judeu, mas seus esforços de nada lhe adiantaram. Eu
só ficava na mi-nha. Só entendia que ele me dizia chamar-se Zidze, que era polonês, enquanto meu nome era Franz
Depauw, um belga da cidade da Antuérpia e que eu achava ótimo iniciarmos uma boa amizade. De-pois de prosseguir por
mais algum tempo neste diálogo de surdos, o po-lonês desistiu, levantou os ombros em sinal de derrota e voltou para seu
amigo:
– É francês mesmo. Não é possível que seja judeu. Eles sempre se traem quando são encurralados, como aconteceu
com aquele judeu de Varsó-via, que logo confessou sua verdadeira origem.
– Sabe, Wollek, os franceses são um povo latino. Eles, assim como os italianos, parecem-se muito com judeus. São
todos igualmente morenos. Mas eles não têm nada de judeu. Quem sabe se nos tempos antigos não houve alguma
mistura de sangue entre os judeus e os povos latinos que viviam em volta do mar Mediterrâneo?
A segunda vez que a mesma acusação aterradora, “Você é judeu!”, foi jogada na minha cara, foi quando eu estava
num lavatório coletivo, de uso exclusivo dos prisioneiros proeminentes.
Havia só poucos minutos que eu ali entrara. O lavatório era amplo, filas de pias e de chuveiros permitiam que mais
de cem prisioneiros o usas-sem simultaneamente.
Neste horário, só havia poucas pessoas no lavatório. Alguns estavam sozinhos, outros em grupos de dois ou
três, rindo e conversando entre si. Todos usavam pias afastadas umas das outras, procurando alguma privacidade.
124
Naturalmente, para poder lavar-se, todo mundo tirava a roupa e, por desconfiança, guardavam-na perto de si,
amontoada num dos bancos de madeira.
De longe, vi dois vultos ainda nus que estavam se secando com as toa-lhas e começando a se vestir.
Surpreso, reparei que suas roupas eram uniformes de S.S.!!
Não era esta a primeira vez que vi membros da S. S. usarem este lavató-rio especial. Com certeza, tendo terminado seu
turno de guarda no campo, acharam mais conveniente usar o lavatório dos prisioneiros proeminentes.
Os dois S.S., no maior dos bate-papos, descontraídos, terminaram de se vestir e, devagar, dirigiam-se para a saída.
O caminho que seguiam levava-os para perto de mim.
Enquanto se aproximavam, ouvi um deles dizer ao outro:
– Como vê, Hans, fiquei por mais de um ano na frente russa, onde fuzila-mos mais de...
Enquanto estava falando, olhou distraidamente para mim. De repente, pa-rou, fazendo com que seu amigo
também diminuísse o passo.
– Aqui você pode ver um exemplo vivo do que lhe falei há pouco. Olhe só para este prisioneiro: é judeu! Observe
bem: é assim a circuncisão que eles praticam. Não há como enganar-me.
Dirigindo-se
a
mim,
perguntou,
seguro
de
que
confirmaria
suas palavras.
– Não é verdade que você é judeu e que foi circuncisado?
Senti o sangue congelar-se ao ouvir estas palavras, tão inesperadas, dirigidas a mim, que estava me treinando todos
estes anos para negar convincentemente que eu era judeu, e nunca dar nenhum sinal da minha verdadeira origem.
“De repente, este S.S. declara que sou judeu, que sou circuncisado, e pede ainda que eu confirme as suas palavras!!
O que devo fazer? O que posso fazer, meu Deus? Negar que sou judeu seria desafiar abertamente o soldado da S. S.,
logo na presença de seu amigo.
Qual seria a consequência inevitável? Tortura até que eu confessasse!
Mas, admitir que sou judeu? Como poderia fazê-lo?
Se alguém da cozinha estivesse por perto, e ouvisse a minha confis-são, o que aconteceria conosco no futuro?”
Dizem que o computador desenvolve uma velocidade fantástica. Einstein sustenta que a maior velocidade
possível no universo é a da luz.
Neste momento, soube que estavam todos errados! A rapidez do cére-bro humano supera tudo que jamais existiu
neste mundo!
De imediato, instintivamente, soube como reagir.
Com o maior sorriso e uma falsa tranquilidade, respondi:
– Sim, Senhor Oficial da S.S., o senhor tem toda a razão. Sou judeu e, como tal, fui circuncisado. Gostaria ainda de
lhe cumprimentar pelo seu profundo conhecimento e capacidade de observação, que bem poucos possuem.
– Vê quanta coisa eu sei – concluiu o guarda, olhando para seu compa-nheiro, um sorriso de superioridade
aparecendo em seu rosto.
Conversando animadamente, os dois S.S. continuaram seu caminho, saindo lentamente do lavatório.
Só então ousei olhar para as minhas roupas, que estavam a meu lado, empilhadas sobre um banco. Minha suspeita
confirmou-se: meu paletó estava por cima, o triângulo vermelho e a letra “F” (de francês), clara-mente visíveis. No
meu paletó, porém, não havia nenhuma faixa amarela, o que era obrigatório para todo judeu...
“Se tivessem olhado para meu paletó, teriam percebido que ele só po-dia pertencer a um não-judeu”, pensei; “e
como teria saído desta enrascada?”, perguntei-me.
Todo o episódio durou pouquíssimos segundos. Com certeza, muito me-nos de que o tempo necessário para lê-lo.
125
CAPÍTULO 29
avia mais um outro medo constante que nunca nos largava no campo de concentração.
Como já contei, meu pai era um imigrante com poucos anos de perma-nência na Bélgica, falando mal as duas
línguas do país: tanto o flamenco, usado no norte da Bélgica, quanto o francês, falado no sul, pelos Wallons.
Nos primeiros momentos, esta situação não nos causou qualquer problema mais sério. Nossos amigos franceses
acreditavam que éramos flamen-cos e, portanto achavam normal que meu pai falasse mal o francês, su-pondo que a
sua língua materna fosse o flamenco, que nenhum dos fran-ceses entendia.
Assim, o único perigo era que aparecessem belgas no campo, especial-mente flamencos... O que poderíamos então
alegar? Como poderí-amos explicar o inexplicável: que meu pai, cidadão belga, não falava ne-nhuma das línguas de
seu país?
Sabíamos também que era norma no campo todo recém-chegado procu-rar compatriotas veteranos para obter
conselhos e ajuda.
Ocupando eu geralmente algum cargo de destaque no campo, era lógico que qualquer belga que ali chegasse nos
procurasse
imediatamente.
Numa tarde, meu pai e eu voltamos do trabalho da cozinha.
Bem na porta de nosso Block (barraca), vimos um grupo de prisioneiros esperando.
Assim que nos viram, perguntaram:
– Vocês são os dois belgas da cozinha?
– Sim – respondi.
– Também somos belgas. Acabamos de chegar hoje. Precisamos de ajuda; já que vocês trabalham na cozinha, bem
que poderiam...
Não consegui escutar o final da frase, aquele medo que tanto tempo ficou re-calcado, subiu-me à tona.
“Chegaram belgas, meu Deus, o que fazer? Como nos livrar deles, sem que percebam que meu pai não fala
corretamente nem o francês, nem o flamenco?”
Vi meu pai comprimir os lábios. Sabia que ele não pronunciaria uma única palavra.
– Tudo bem, tudo bem, meus amigos – interrompi os pedidos de ajuda. Quero primeiramente saber quem e quantos
são, quais seus nomes e de que cidades são originários.
– Viemos em nove belgas – responderam, e passaram a se identificar.
Com alívio crescente, percebi que eram todos wallons, a maioria de Ver-viers, e, portanto, de língua francesa.
Quando terminaram, posicionei-me:
– Nós somos flamencos, mas aqui no campo não podemos nos permitir o luxo de continuarmos a briga entre nós,
flamencos, e vocês, wallons. Eu, que falo o francês, tratarei com vocês, enquanto que aquele que está ai – disse
apontando com um certo menosprezo para meu pai – só fala o flamenco e não se dá muito bem com os wallons. Ele
vai ficar de fora de nosso trato. Quero ajudá-los. Como belga, é o meu dever. Regularmente, vou provi-denciar comida
extra para vocês. Mas como o entendem, corro perigo se for apanhado. Assim, prometo-lhes o seguinte: toda terça e
sexta-feira vou lhes dar três pães inteiros que vão dividir entre si. Eu vou en-tregá-los a um de vocês, que vai me
aguardar aqui mesmo, na mesma hora de hoje, nos dias que mencionei. É preferível os demais não virem, para não
chamarmos demasiadamente a atenção dos outros prisionei-ros não-belgas. Combinado? – perguntei.
– Ótimo, estamos muito gratos – responderam os belgas, felizes por te-rem obtido um suprimento regular de
comida adicional.
Mas, de repente, reparei que só havia oito belgas na minha frente, e não os nove que eles disseram que haviam
chegado no campo.
– Quem é o belga que está faltando? – perguntei. Na realidade, não es-tava tão interessado em vê-lo, mas
queria certificar-me que não era fla-menco.
– É um jovem muito tímido. Não quis acompanhar-nos, apesar de saber que vínhamos pedir ajuda a compatriotas.
– Então vão buscá-lo. Quero ajudar a todos os belgas, indistintamente. Se um não participar do grupo, retiro meu
apoio. Não quero tratar com cada compatriota individualmente, seria perigoso demais.
H
126
Dois belgas resolveram ir buscar o jovem ausente, enquanto os demais continuaram a conversa comigo.
Passados uns 15 minutos, apareceu o belga faltante. Era mesmo jovem, bem magro, pálido, com dois olhos escuros
muito expressivos.
– Quem é você? Como se chama? Em que cidade nasceu? E onde viveu antes de ser preso?
Eu as fiz todas estas perguntas de uma só vez, impaciente pelas res-postas.
– Sou Charles – respondeu o jovem, informando ainda o sobrenome que infelizmente esqueci. Nasci e sempre
morei em Bruxelas.
Já não gostei muito desta parte da resposta. Bruxelas era a capital da Bélgica, e sua população era, geralmente,
bilíngue.
“Agora estamos com má sorte”, pensei. “Como vamos sair desta?”
– Que língua você fala? O flamenco ou o francês? – perguntei com uma ponta de esperança.
– Falo ambas. Acho um absurdo nós belgas brigarmos para impor só uma destas culturas à Bélgica toda. Por que
não incentivar as duas?
Pela lógica, deveria ter me afastado deste jovem, mas percebi logo que ele não representava um real perigo para
nós, que nunca nos denuncia-ria: era frágil, educado e tímido demais.
Aliás, desde o momento em que o conheci, gostei dele. Um verdadeiro sentimento de amizade recíproca estabeleceuse logo entre nós.
Rapidamente, despedi-me dos oito belgas que nos procuraram. A Char-les, pedi que ficasse mais um pouco.
Conversei demoradamente com ele e pedi que voltasse na tarde do dia seguinte.
Daqui em diante, Charles vinha nos visitar quase todo dia. Toda vez, dá-vamo-lhe comida extra, e nós dois
passávamos longas horas conver-sando. Geralmente, abordávamos temas filosóficos. Num lugar onde a morte está
sempre presente, a mente humana é facilmente levada a re-fletir sobre o verdadeiro significado da vida.
Ficávamos sempre os três juntos. Mas quem falava era só eu e Charles. Meu pai estava fisicamente presente, mas
nunca participava da con-versa. Também, que língua poderia ele usar sem se denunciar?
O tempo ia passando.
Um domingo, dia de descanso no campo, Charles veio nos visitar. Logo entramos nas nossas conversas filosóficas
costumeiras, até que, abruptamente, e pela primeira vez, meu pai cortou-nos no meio de uma frase:
– Diga, Charles – perguntou ele no seu péssimo francês – qual é o ramo de negócios de seu pai?
– Ele tem uma loja de tecidos por atacado.
– É mesmo? Qual é o nome da loja?
– Le palais des tissus.
– É uma loja de judeus – disse meu pai, colocando toda a ênfase na pala-vra “judeus”.
Um silêncio pesado estabeleceu-se.
Apavorei-me. “Meu pai está ficando louco”, pensei. “De onde ele tirou a coragem de começar a falar usando seu
francês cheio de erros e com sotaque de estrangeiro? Por que estaria ele acusando o pai do Charles de trabalhar numa
loja de judeus?
– É verdade. Um dos sócios da loja é judeu. Evidentemente, meu pai não o é.
– Charles – continuou meu pai, pronunciando cada palavra separada-mente – sejamos francos. Seu verdadeiro
nome é Charles Weisz. Você é judeu e seu pai também o é!
Vi Charles ficar totalmente vermelho. Após alguns minutos, tornou-se pálido como um morto. Tentou falar, porém
nenhum som saiu-lhe da boca.
– Charles – continuou meu pai – não só você é judeu, mas meu filho e eu também o somos. Conheço pessoalmente
toda sua família. Antes da guerra eu era cliente regular de sua loja na Antuérpia, situada na Pe-likaanstraat, na mesma
rua onde eu mesmo estava estabelecido com uma confecção.
Meu pai tinha reconhecido Charles Weisz pela sua semelhança física com os Weiszs. Seus tios, que dirigiam a
filial da Antuérpia, tinham os mesmos traços, o mesmo porte, e até a voz tinha o mesmo timbre.
Imaginem como nós nos sentimos em ter encontrado no campo, não só um judeu disfarçado, como nós mesmos o
éramos, mas ainda alguém cuja família meu pai conhecera de antes da guerra.
Adotamos então o Charles. Fizemos tudo que estava ao nosso alcance para facilitar-lhe a vida e ajudá-lo a
sobreviver no campo. Apesar do risco, roubamos diariamente da cozinha baldes de batatas, com os quais compramos
tudo que lhe era necessário: roupas quentes e sapatos que tinha conseguido roubar do almoxarifado e também a
127
benevolência do Capo, do Blockälteste (prisioneiro, chefe de barraca) e do Stubenälteste (prisioneiro, chefe de quarto).
Assim, Charles estava bem agasalhado e calçado. Tinha a proteção de todos que detinham um poder decisivo sobre
sua vida.
As semanas, os meses iam passando. Quase diariamente, encontráva-mos Charles, batíamos papos intermináveis,
dando-lhe toda a ajuda pos-sível. Arriscávamo-nos constantemente, roubando batatas na cozinha.
Infelizmente, Charles tinha uma predisposição para doenças pulmonares. Um dos seus tios falecera na
Antuérpia de complicações respiratórias, e Charles também começou a apresentar sintomas inquietantes.
Ajudamos como pudemos. Conseguimos a boa vontade do chefe do hospital, ao qual pagamos com a nossa moeda
usual: batatas!
Assim, internamos Charles no hospital, onde ele recebia o melhor trata-mento possível. Infelizmente, seu estado foi
piorando, devagar, mas constantemente...
Quando a guerra terminou, e fomos libertados, Charles continuava no hospital. Ele estava muito debilitado, ainda
vivo, e totalmente lúcido.
O médico avisou:
– Vocês têm que providenciar ajuda imediata. Caso contrário, ele não vai sobreviver. Seria pena morrer nos
primeiros dias depois da libertação!
Resolvemos retirar Charles do hospital. O vestimos e o levamos até a estrada.
Paramos o primeiro carro militar americano que passou.
– Soldado, este é um dos poucos sobreviventes de um campo de con-centração. Ele está morrendo. Ajude-o. Não
deixe que um ex-prisioneiro de um campo de concentração morra, agora que a guerra terminou. Por favor, leve-o para
um hospital militar. A vida dele está em suas mãos.
O americano atendeu a nosso pedido. Prometeu levar o doente imedia-tamente para o hospital americano de
Salzburg. Ajudou-nos a colocar Charles no jeep, e partiu imediatamente.
Nunca mais revimos Charles. Nunca!!
Agora, vou fazer uso das prerrogativas de escritor e dar um rápido pas-seio pelo tempo e pelo espaço para expor – em
todos os seus detalhes – o enigma a respeito do destino final de Charles. Este mistério foi se aprofundando cada vez mais.
Analisem meu depoimento e tentem deci-frá-lo.
Eis as pistas:
Terminada a guerra, voltamos para a Antuérpia. Uns dois anos depois, ouvi dizer que Charles Weisz voltara de
uma clínica especializada para doentes pulmonares da Suíça, para onde tinha sido levado pela Cruz Vermelha
Internacional por solicitação do Exército Americano. Ouvi dizer que ele estava curado, que residia novamente em
Bruxelas e tinha ingressado numa faculdade, estudava advocacia.
Tempos mais tarde, quase na época de nossa partida para o Brasil, soube que ele já estava formado e que se casara com
uma moça muito rica.
Enquanto ainda estávamos morando na Bélgica, estranhei ele nunca nos ter procurado.
Perguntei-me: “Será que já esquecera que nos devia a vida? Mas – raciocinei– “é sabido que certos homens se
sentem ocupa-dos demais para fazer o que não lhes traz algum benefício imedi-ato!! E que vantagem obteria Charles
em nos procurar agora?! Nenhuma!! Especialmente por estar casado com uma moça extremamente rica.”
Alguns anos após nossa chegada ao Brasil, o governo alemão promul-gou uma lei indenizando os que tinham sido
deportados para campos de concentração nazistas.
Meu pai e eu solicitamos as indenizações.
Para obtê-las, tínhamos que provar que no campo de concentração usávamos os nomes falsos de François Depauw
e Peter de Smed, que constavam nas listas de prisioneiros de Mauthausen.
Para conseguirmos cumprir com esta exigência, precisávamos de tes-temunhas oculares que nos conheceram no
campo, quando usávamos estes nomes falsos.
Naturalmente, pensamos em Charles Weisz. Mas ele morava em Bruxe-las, na Bélgica, e nós estávamos agora
residindo no Brasil...
O correspondente em Bruxelas de nosso advogado, que no Brasil cui-dava da obtenção de nossas indenizações,
encontrou o endereço de Charles e enviou-lhe o texto da declaração que precisávamos juntar a nossos pedidos.
Poucas semanas depois, recebemos em casa, no Brasil, a declaração assinada por Charles, que se tinha ainda dado
o trabalho de reconhecer a autenticidade de sua assinatura no Consulado Alemão em Bruxelas, tudo conforme o
128
advogado solicitara.
No envelope que continha a declaração, havia o endereço de Charles, que guardei com muito cuidado.
Durante as décadas seguintes, toda vez que viajava para a Europa e pretendia passar uns dias na Bélgica, levava o
endereço de Charles, com a intenção de visitá-lo.
Chegando na Bélgica, eu sempre mudava de opinião.
“Se Charles, que, afinal, é nosso devedor não se interessa em nos pro-curar, para que devo eu fazê-lo? Não
pareceria que estou querendo cobrar uma dívida de quem não quer pagá-la?”
Assim, toda vez a coragem me faltava, e eu acabava por voltar ao Bra-sil, sem ter procurado Charles.
Da última vez que, em companhia de minha esposa Lili, fui para a Bél-gica, percebi que a maioria de nossos
parentes e conhecidos de tempos passados já tinham desaparecido: uns morreram, outros mudaram-se. Conclui, então,
que esta seria, provavelmente, a minha última visita à Bélgica.
“Neste caso, tenho que criar coragem e visitar Charles agora mesmo”, pensei. “Esta é a minha última
oportunidade”.
Passeando pela Pelikaanstraat, vi que agora a antiga loja dos Weiszs estava novamente aberta, e ostentava a mesma
denominação comercial: “Le palais des tissus”. Pude ver o nome Weisz escrito em letras me-nores nas portas.
Resolvi entrar.
Na loja vi uma senhora beirando os 60 anos de idade. Tinha cabelos brancos cuidadosamente arrumados. Estava
elegantemente vestida e, sem sombra de dúvida, era a dona da casa.
– O sobrenome da senhora é Weisz? – perguntei.
– Sim. Mas o que o senhor deseja? O senhor é cliente do interior?
– Não sou cliente. Venho de bem mais longe de que do interior da Bél-gica. Venho do Brasil.
– Do Brasil?
– Sim. Vivo lá há mais de 40 anos, mas eu e a minha família morávamos aqui na Antuérpia uns 10 anos antes da
guerra e mais alguns anos depois de ela terminar. Durante a guerra estive no campo de concentração de Mauthausen. É a
este respeito que quero conversar com a senhora, se possível, em parti-cular.
Vi que a senhora Weisz estava ficando pálida.
– Siga-me no escritório – pediu ela em voz baixa. Mas quem é mesmo o senhor? – continuou ela – e quem pediulhe para que me procurasse?
– Meu nome é Michel Dymetman. Vou tentar explicar o que me levou a procurá-la. Estive prisioneiro no campo de
concentração de Mauthausen. Passei por diversas filiais deste campo, terminando em Linz onde, no ano de 1945, fui
libertado pelos americanos. Neste campo conheci um jovem, ou pelo menos quem naquela época ainda era um jovem,
chamado Charles Weisz. Sei que ele é o filho de um dos Weiszs, sócio deste estabelecimento atacadista. Não vim
aqui movido por qualquer interesse financeiro. Não estou preci-sando nem de dinheiro, nem de ajuda. Faço
questão de deixar isto bem claro. Simplesmente queria aproveitar de minha estadia aqui na Bélgica, onde
pretendo ficar só mais uns dois ou três dias, para rever Charles e renovar a nossa amizade, surgida no campo de
concentração.
Conforme eu estava falando, a senhora Weisz ficava cada vez mais pá-lida, olhando-me com olhos incrédulos.
– Repita o nome de seu companheiro, por favor.
– Já lhe disse, Charles Weisz.
– Com quem ele se parecia? Era de estatura média? Tinha muitos cabe-los? Ondulados? Olhos marrom-escuro?
– Não posso descrevê-lo. No campo todos parecíamos iguais: magérri-mos, sempre famintos, cabelos raspados.
Também, já se passaram tantos anos. Sei que ele era um pouco mais baixo que eu, sofria dos pulmões, era da minha
idade, ou um pouco mais jovem. Aliás, tenho seu antigo endereço de Bruxelas. Gostaria de saber se ele ainda reside lá
e qual é o número de seu telefone. Assim, poderia telefo-nar para previní-lo de minha intenção de visitá-lo.
– Como? Você tem seu endereço?
– Sim. Alguns anos depois da guerra eu precisava de uma declaração dele e ele me enviou uma carta, na qual
constava seu endereço.
A senhora Weisz fez sinal para que eu aguardasse um pouco e a dei-xasse se recuperar.
Ela abaixou a cabeça, respirou fundo e disse:
– A gente nunca perde a esperança, por mais tola que for.
Eu tinha um irmão, chamado Charles Weisz. Ele foi deportado e eu soube que ele foi parar em Mauthausen. Só que
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nunca voltou... Morreu lá... Não sei nem quando, nem como.
Assim, quando o senhor entrou, pensei que o senhor o conhecera, e que estava falando dele.
– Mas eu conheci Charles Weisz no campo. É dele mesmo que estou fa-lando.
– Não senhor, não é a meu irmão que o senhor está se referindo. Há um outro Charles Weisz! Nossa família,
bastante numerosa, deu em homenagem ao mesmo avô o nome de Charles a duas crianças que nasceram com um ano
de inter-valo: um deles era meu irmão e o outro meu primo. Este primo também foi deportado para Mauthausen, onde
ficou até o fim da guerra: ele foi ferido, contraiu uma pneumonia e foi enviado para a Suíça, onde se curou.
– Seria então seu primo que eu conhecera no campo?
– Se ele lhe assinou um documento depois da guerra, só pode ter sido meu primo que então estava vivo, e não meu
irmão, que morreu um pouco antes da guerra terminar. Mas, tem uma coisa que não entendo direito. O senhor disse que
foi libertado em Linz, mas sei que meu primo estava no fim da guerra em Grosz-Rozen. Lembro-me bem do nome do lugar,
porque ele recebera uma condecoração do nosso governo por um ato de bravura que ele prati-cara em Grosz-Rozen, na hora
da libertação do campo pelo exército americano.
– Quanta confusão: dois jovens com o mesmíssimo nome?
– Vamos procurar esclarecer tudo já, apesar de haver mais uma pequena dificuldade. Parece que meu primo, que
tem a residência fixa em Bruxe-las, está atualmente fora de casa, em viagem ao exterior. Não sei se o senhor está a
par, mas ele está imensamente rico e viaja muito. Ele possui uma casa em Biaritz e outra na Riviera Francesa. Deve
estar passando as férias numa delas.
Agora comecei a me sentir mal de verdade. Se Charles estava tão rico assim, pareceria lógico que eu só o estava
procurando movido por inte-resses escusos...
“O que posso fazer?”, pensei comigo mesmo. “Afinal, não tenho culpa de ele estar tão rico”.
A senhora Weisz pegou o telefone e ligou para a mãe de Charles, em Bruxelas.
Terminada a conversa, ela informou:
– Sim, ele está em Biaritz. Ligo já para lá.
– Charles, aqui é sua tia Rosa da Antuérpia. Tenho uma surpresa agra-dável para você. Está comigo, no meu
escritório, um senhor que mora no Brasil e que se chama Michel Dymetman. Ele me disse que esteve com você no
campo de concentração de Linz, que é uma filial de Mauthausen, e que gostaria muito de reencontrar você. Mas o que
me deixa ligeiramente confusa é que ele conta que vocês dois foram libertados em Linz. Mas não era em Grosz-Rozen
que você passou os últimos dias de guerra? Não foi lá que você ganhou a sua segunda medalha militar, aquela
outorgada pelo nosso governo?
Claro que não ouvi a resposta de Charles, mas era visível que Dona Rosa Weisz estava ficando cada vez mais
irritada. Num determinado momento, ela interrompeu a conversa e disse ao telefone:
– Charles, aguarde um momento. Deixe-me falar com aquele senhor do Brasil.
– Senhor Michel, Charles afirma nunca ter estado em Linz e, portanto, suspeita de algo que não tenho a coragem de
repetir. Ele não tem o mínimo interesse em conversar com o senhor, achando que será só perda de tempo. Está ainda
insinuando que nunca caiu num conto do vigário... e que não será hoje que isto lhe acontecerá...
– Minha senhora, eu lhe disse claramente que não tenho qualquer inte-resse monetário. Não quero e nem preciso
nada de seu precioso Char-les. Mas agora que estou aqui, faço questão de entender o que real-mente aconteceu no fim
da guerra. Parece incrível ter havido dois rapazes com o mesmo nome, ambos presos na mesma época no mesmo
campo de concentração! Assim, quero falar com Charles, desde que fique bem claro que sou eu quem vai pagar o
custo da ligação telefônica. Já com raiva, peguei o telefone e deixei que minha irritação se manifes-tasse abertamente
na minha voz.
– Alô, Charles. Eu moro no Brasil e não estou minimamente interessado em seu precioso dinheiro. Pretendo
simplesmente esclarecer um aconteci-mento que se deu há mais de quarenta anos atrás e que interessa a você, que tem
o sobrenome de Weisz, tanto quanto a mim. Em seguida, passei a contar a Charles tudo que acontecera em Linz, com
todos os detalhes.
Quando terminei, Charles respondeu num tom cuja rispidez ia aumen-tando:
– Escutei você só por deferência pela minha tia Rosa, que já tem uma idade que você também deveria respeitar.
Afirmo categoricamente: nunca estive em Linz. Nunca conheci nem você, nem seu pai. Não co-nheci lá nenhum
Franz Depauw ou Peter De Schmidt. Nunca recebi no campo qualquer ajuda e muito menos aquela mordomia
fantástica que você declara ter-me proporcionado. Assim, não tenho mais nada a lhe dizer, nem agora, nem nunca.
130
Em seguida, cortou a lição.
Eu fiquei estarrecido. Não pude acreditar no que ouvi.
Fiquei calado por um tempo, refletindo.
– Senhora Weisz, vou-me embora, magoado e desorientado. Sinto muito tê-la colocado nesta situação que se
tornou embaraçosa. Minha esposa, que está comigo na Antuérpia e, felizmente, permaneceu no hotel, bem que me
disse: “Não procure remexer coisas do passado. Elas estão mortas e enterradas. Geralmente, não querem mais ver a luz
do dia.” Pena que não a escutei.
– Senhor Michel. Sinto muito pela forma abrupta com a qual meu primo dirigiu-se ao senhor. Saiba que não
concordo com o que lhe disse. Gostaria de lhe dar um pequeno presente, um corte de tecido para sua esposa, talvez?
– Não, agradeço muito. Dos Weiszs já recebi o bastante... Mas, se a senhora quiser mesmo me oferecer algo, sei o
que gostaria de lhe pedir.
– O que seria? – perguntou Dona Rosa, com a suspeita se manifestando claramente na voz.
– Não é nada que custe dinheiro. Gostaria só que a senhora me respon-desse a algumas perguntas. Afinal, é o mínimo
que os Weiszs me devem.
– Pode formulá-las.
– A senhora sabe se Charles residiu alguma vez na Avenue Maréchal Foch, No. 115, em Bruxelas?
– Claro, é o endereço da mãe de meu primo. É lá que ela mora agora e é onde Charles ficou até se casar. É para lá
que telefonei, há poucos mi-nutos atrás.
– Seu primo Charles nasceu na Bélgica?
– Não, nasceu na Polônia, mas veio para a Bélgica só com 2 anos de idade.
– Pelo que entendi, Charles recebeu duas condecorações. Suponho que por atos de coragem. Por favor, nestes atos
participaram outras pes-soas? Houve testemunhas oculares de seus feitos heroicos?
– Não, nos dois casos não houve nenhuma participação de terceiros. Mas, se o governo da Bélgica e o dos Estados
Unidos lhe outorgaram medalhas, ele deve tê-las merecido.
– Senhora, tenho ainda uma última pergunta, talvez a mais importante de todas: o Charles que eu conheci no
campo era um rapaz meigo, muito edu-cado, facilmente amedrontado. O Charles de Biaritz é exatamente o contrário.
Seu primo foi sempre assim agressivo e insanamente descon-fiado? E como era seu irmão? Igualmente impetuoso e
sem a menor conside-ração para com os outros?
– Para dizer a verdade, os dois, quando jovens, comportavam-se como moças: meigos, educados, respeituosos. Meu
primo, ao casar-se, mudou radicalmente. Não fica bem falar mal de sua esposa, mas devo admitir que Charles casou-se com
uma moça muito rica e, por isto mesmo, exigente, egocêntrica, desconfiada e muito fechada em si. Charles mudou
radicalmente após o casamento. Um dia destes, até sua mãe queixou-se: “Não reconheço mais meu filho”, desabafou ela.
Como sempre acontece, dinheiro em demasia fez mais mal do que bem. O casal, cada vez mais, parece sofrer de uma mania
de perseguição: só pensa em aumentar a fortuna e afastam-se de todos, receosos de serem rou-bados.
– Senhora Weisz, agradeço muito pela confiança que a senhora me de-monstrou, falando tão abertamente. Saio
satisfeito em tê-la conhecido e reencontrei na senhora algo de “meu” Charles de Linz. Muito obrigado.
Saí da loja dos Weiszs. Fui para o hotel.
Pelo telefone interno, pedi à minha esposa Lili que viesse juntar-se a mim na cafetaria.
Contei-lhe tudo que acontecera.
– Lili, admito que você estava com a razão. Não se pode ressuscitar o passado.
– Mas, também, é impossível prever que alguém possa ser tão grosso quanto este Charles. Sinto muito por você,
Michel.
– Lili, vamos unir forças e juntos entender o que realmente aconteceu. Qual dos dois Charles é o “meu”, aquele que
tanto ajudei? Seria o primo que sobreviveu à guerra ou o irmão que, pelo que se diz, faleceu no campo?
– À primeira vista, parece que não pode ser o irmão de Dona Rosa, já que a declaração de Charles fora assinada
alguns anos depois do fim da guerra, quando ele já estava morto.
– Lili, vamos refletir melhor. Esta assinatura não prova nada. Veja, eu nunca vi Charles assinar a declaração. Só a
recebi pelo correio. Quem tratou dela foi o correspondente de meu advogado, que foi pesso-almente à casa de Charles
pedindo-lhe que assinasse o documento. Su-ponhamos que ele recusou, alegando que não me conhecia e que nunca
esteve em Linz, o que faria um advogado se fosse inescrupuloso e interessado nos honorários? Falsificaria a assinatura
e a autenticação! O documento não seria envi-ado a um país estrangeiro? Para impedir que eu tivesse qualquer dúvida
131
quanto à idoneidade do do-cumento, ele mesmo o mandaria pelo correio, colocando como sendo do remetente
Charles, na Avenue Franklin Roosevelt, nº 216.
– Então, não há mais mistério?
– Há, sim. Também posso inverter todo o raciocínio e chegar à conclu-são oposta. Veja só: que prova tenho que
“meu” Charles não é, na verdade, o primo, aquele com o qual falei hoje pelo telefone? Unicamente por que ele o nega.
À primeira vista, é impossível que al-guém que recebera tanta ajuda quanto o “meu” Charles fosse tão per-verso, por
mais ingrato ou egoísta que fosse. Mas, será que não se pode imaginar uma situação que obrigasse o “meu” Charles a
negar a verdade? Por mais que, no íntimo, lhe doesse fazê-la? Há um motivo plausível! Não é fruto de minha
imaginação, mas me veio das respostas que Dona Rosa Weisz deu. Você, que é belga, sabe perfeitamente que seu
governo, tanto antes da guerra, como nos primeiros anos depois, proibia a todo cidadão estran-geiro o exercício de
qualquer atividade profissional ou liberal no país. Sabemos que Charles não nasceu na Bélgica, mas na Polônia,
portanto era cidadão polonês e, por consequência, nunca poderia exercer a ad-vocacia, mesmo tendo se formado na
Bélgica. Posso facilmente imaginar Charles “manipulando” alguns fatos reais, “ar-ranjando” atos de bravura, na
realidade inexistentes, unicamente para poder receber a cidadania belga, como recompensa pelos seus atos
“he-roicos”. Nas épocas confusas da guerra, tudo é possível... É só ter imaginação... e coragem... Ninguém deve saber
que ele “fabricou” seus atos de patriotismo, nem mesmo a sua esposa. Posteriormente, assinou minha declaração,
convicto que este docu-mento, que seria enviado ao Brasil e serviria unicamente para fins buro-cráticos junto ao governo
alemão, nunca seria conhecido na Bélgica. Quando, de repente, tia Rosa telefonou-lhe falando de um passado dife-rente
daquele que ele “inventou”, parecia-lhe que uma bomba explodira na sua cara, uma bomba que poderia destruí-lo.
Nesta emergência, ele só pôde negar o que sabia ser verdade, preso que estava à própria mentira.
– Michel, você sempre foi um sonhador. Sempre se esforça em en-contrar o lado bom dos homens. Mas, neste
caso... não entendo como você ainda pode defender este grosseirão, que o ofendeu tanto.
– Bom, de qualquer forma, nunca vamos saber a verdade. Mas estou muito desiludido com o gênero humano...
No dia seguinte, fomos para Bruxelas. Conversando com velhos amigos, perguntei:
– Vocês conhecem Charles Weisz? – perguntei.
– Sim, conheço-o – respondeu um do grupo – Com grande pesar, devo afirmar que não há, na Bélgica toda, um
outro judeu tão desonesto e imo-ral quanto este. Ele é uma vergonha para nós, judeus.
– Por quê?
– Você se lembra de David, o conhecido comerciante de Bruxelas, que logo depois da guerra ganhou uma
verdadeira fortuna comprando e vendendo os remanescentes dos estoques do exército americano?
– Sim, ouvi falar a respeito dele. Sei que comprava trens inteiros de mer-cadorias que o exército americano
tinha trazido para a Europa e para as quais, com o término da guerra, não tinha mais qualquer utilidade.
– É este mesmo. Seus negócios prosperaram com uma rapidez incrível. A cada ano, ficava mais rico.
Ultimamente, tinha a maior indústria de confecção do país, e uma rede com mais de cem lojas de varejo. Ele teve
dois filhos: um rapaz e uma moça. A moça casou-se com Charles Weisz. Quando o velho David morreu, ele deixou
tudo a seus dois filhos, que logo começaram a brigar pela posse de seus bens. Charles sugeriu que dividissem a
herança: a fábrica para o filho, as lojas para a filha. Assim que a partilha terminou, a filha de David, incentivada pelo
marido, enviou uma carta-denúncia ao Ministério da Fazenda, informando os detalhes de todas as irregularidades
fiscais praticados pela fábrica... que, como ex-sócios, conheciam bem... e pelos quais não eram mais responsáveis, por
estarem desvinculados da sociedade... O governo aplicou multas tão pesadas que o irmão perdeu tudo, e de herdeiro
rico transformou-se num pobre diabo, vítima da vingança da própria irmã...
Naquela noite, não pude dormir direito. Revia o campo de concentração de Linz e tudo que meu pai e eu fizemos, e
quanto nós nos arriscávamos para ajudar Charles.
“Será que foi para um crápula destes que dispensamos tantos esfor-ços, que corremos tantos riscos?” – pergunteime.
Revi como nós nos organizávamos para roubar comida da cozinha. Ar-ranjávamos, meu pai e eu, ceroulas
compridas, que iam até dentro de nossas meias e que, para maior segurança, ainda amarrávamos nas pernas com um
barbante.
Enchíamos os vãos da ceroula com batatas, que era o comestível ao qual tínhamos o acesso mais fácil. Não éramos
descascadores de ba-tatas?
Já sabíamos qual era a quantidade que podíamos colocar dentro da ce-roula sem que a perna ficasse pesada demais,
132
e sem que ninguém percebesse nada quando andávamos.
Com as ceroulas cheias, saíamos da cozinha através de uma de suas portas, rezando para que encontrássemos uma
em que não haveria nenhum S.S. montando guarda.
Todos os que trabalhavam na cozinha roubavam o que podiam. Assim, ninguém tinha como delatar o colega, o que
diminuia um pouco o risco de sermos pegos em flagrante.
O perigo consistia na severidade do castigo, caso fôssemos apanhados. A pena mínima era a expulsão da cozinha, o
que já era assustador: si-gnificava não mais trabalhar numa área fechada e abrigada da chuva e dos ventos, onde a
gente tinha comida à vontade. Caso isso ocorresse, éramos transferidos para um Comando externo, o que normalmente
acarretava a morte dentro de poucos meses.
Conforme o humor do momento do S.S., arriscava-se muito mais de que a simples expulsão. Muitas vezes ela era
acompanhada de uma tre-menda surra que podia deixar o infeliz aleijado para sempre. Uma vez, o nosso S.S. mandou
enforcar três funcionários da cozinha só por terem roubado alguns pães...
Para ajudar Charles, saímos inúmeras vezes da cozinha com as cerou-las cheias de batatas. Às vezes, voltávamos
ainda no mesmo dia para a cozinha para roubarmos mais alguns pães, ou alguma outra comida espe-cial para
podermos subornar o Capo ou o Blockälteste, de cuja boa vontade Charles dependia.
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CAPÍTULO 30
té uns poucos meses antes do fim da guerra, não havia nenhum prisio-neiro judeu em Mauthausen, nem nos seus
campos satélites.
Mas, quando os exércitos alemães recuaram na frente da guerra contra a Rússia, os nazistas foram evacuando
os campos situados na Polônia, nos quais ainda haviam muitos judeus vivos.
Eles foram transferidos para diversos campos da Áustria, inclusive ao nosso, em Linz.
De repente, começamos a ver prisioneiros que tinham sobre os triângu-los vermelhos marcados com a letra “P”
(inicial de polonês), um largo traço amarelo horizontal: eram judeus!
O tratamento que lhes era dispensado era ainda pior do que o dos de-mais prisioneiros.
Imaginem só o que isto significava...
Assim que as primeiras levas apareceram, meu pai sugeriu:
– Michel, vamos fazer algo para ajudar nossos irmãos.
– Claro, vendo em que estado se encontram, dá para imaginar o que já sofreram antes de chegarem aqui.
– Mas, como vamos fazê-lo? Não vai ser nada fácil ajudar a tanta gente. Já estamos roubando comida que
distribuímos aos nossos amigos fran-ceses, aos oito belgas, sem mencionar Charles, com o qual temos um
compromisso diário.
– Mais complicado ainda será entrarmos em contato com os judeus polo-neses. Os alemães segregam-nos em
barracas separadas. Caso nos aproximemos deles, seremos logo rotulados de “amigos de judeus”, o que vai levar
alguns a suspeitarem de que nós também o somos!
– Você tem razão, filho. É muito delicado. É preciso encontrar uma es-tratégia inteligente.
– A única forma que me ocorre é ajudar nossos irmãos de uma ma-neira anônima, sem que se saiba quem o faz.
Na noite seguinte, subtraímos dois pães da cozinha. Assim que escure-ceu, fomos passeando pelas ruas do campo.
Quando vimos um prisioneiro com a faixa amarela de judeu sozinho, nos aproximamos dele e, sem dizer palavra,
simplesmente colocamos um pão em sua mão.
O prisioneiro, surpreso, não entendia nada. Antes que pudesse esboçar algum gesto, proferir alguma pergunta, nós nos
afastamos rapidamente.
Por diversos dias, repetimos o mesmo procedimento.
Numa outra noite, quando estávamos passeando pelas ruas escuras do campo, procurando algum judeu solitário
para repetirmos nosso ritual, vimos uma rodinha de judeus conversando entre si em polonês.
Paramos perto deles, para ouvirmos o que estavam dizendo.
Um do grupo disse:
– Espero ter sorte esta noite, e encontrar os franceses que estão distri-buindo pães a judeus. Ouvi dizer que só o dão
a quem está sozinho. Não perguntam nada e nada exigem em troca. O que eles sempre fazem é... fugir!
Um outro da rodinha ponderou:
– Devem ser franceses que se arrependeram por ter denunciado algum judeu. Devem ter a consciência pesada e estão
querendo se redimir.
– A não ser que se trate de judeus franceses que se disfarçam – rebateu um outro. É só um judeu que se arriscaria tanto
para ajudar outro judeu.
Ouvindo esta conversa, só havia uma maneira de reagir: parar com este tipo de distribuição anônima. Era perigosa
demais!
Alguns dias depois, estávamos trabalhando na cozinha. O S.S., que nos dirigia, chamou-me:
– O Comando que efetuou os reparos no telhado deixou todo este entulho na cozinha. São uns irresponsáveis! O
que querem, que misturemos en-tulho à comida? Vá e traga uns dois prisioneiros que ficam à toa parados perto da
cozi-nha para que façam uma boa limpeza. Dê-lhes uma sopa, mas só após executarem o serviço a contento.
Saí da cozinha à cata de alguns prisioneiros, que ganhariam uma boa alimentação adicional.
Logo vi dois judeus, facilmente reconhecíveis pela lista amarela. Convi-dei-os a entrarem na cozinha.
– Tirem este entulho daqui. Mas não se apressem demais em executar o serviço. Quanto mais demorarem, mais
comida vou poder dar a vocês.
A
134
Enquanto trabalhavam, entramos numa bate-papo amistoso.
Eles contaram que eram de origem polonesa, que o mais velho era o tio do mais jovem e que o restante da
família tinha sido executada pelos ale-mães. Disseram ainda que os dois formavam uma dupla inseparável,
ajudando-se mu-tuamente.
“Exatamente como meu pai e eu” – constatei.
É natural que esta similitude tenha me aproximado ainda mais deles.
Dei-lhes toda a comida que eram capazes de engolir.
No final da tarde, eu disse:
– Não sou anti-semita. Não compartilho do ódio que os nazistas nutrem contra vocês, judeus. Não entendo o que
levou estes hitleristas paranoi-cos a transformar vocês em suas vítimas indefesas.
É o que me leva a querer ajudá-los.
Eis o que vou fazer: todo dia vocês vêm ao anoitecer em tal lugar (que eu lhes descrevi). Se eu o puder, estarei lá
com um boteijão de 50 litros de sopa. Se vocês não me virem naquela hora, é sinal que não pude reti-rar nada da
cozinha e vocês deverão voltar no dia seguinte, no mesmo local e horário. Eu não procuro obter nenhuma vantagem
pessoal com a ajuda que vou dar a vocês. Só exijo que distribuam esta sopa a judeus, que vocês mesmos vão poder
escolher, e que não contem a ninguém quem está fornecendo a alimentação.
Os dois poloneses olharam-me como se fosse louco.
“Onde já se viu alguém dar algo de graça, especialmente se este pre-sente só pode ser feito com o risco da própria
vida?”
Os dois agradeceram-me, mas com certeza estavam pensando:
“Ele só promete e não nos dará nada”.
Mas... se enganaram.
Mais da metade das noites do mês e meio que a guerra ainda durou, meu pai e eu conseguimos trazer-lhes a sopa
que eu lhes prometera. Era arriscado sairmos tantas vezes da cozinha carregando um boteijão, fa-zendo de conta que
íamos entregá-lo a alguma barraca....
Felizmente... ninguém nos perguntou nada.
Provavelmente porque agimos como se fôssemos obedecendo a uma ordem de nosso S.S., saindo abertamente com
o boteijão, sem tentar esconder nada.
Assim foram chegando os últimos dias no campo de Linz.
Sabíamos pelas conversas dos S. S., e pelos jornais que conseguimos roubar, que o Terceiro Reich estava em total
colapso e que, diariamente, os exércitos aliados libertavam novas cidades.
Há dias ouvia-se o estrondo dos canhões, cada vez mais próximo!
À
noite,
o
fogo
dos
bombardeios
e
dos
incêndios
iluminava
o horizonte.
No dia 5 de maio de 1945, de manhã bem cedo, percebemos que algo de anormal estava acontecendo.
Havia um Apel geral, no qual todos tinham que participar, inclusive nós, os cozinheiros, normalmente isentos da
obrigação.
– O campo vai ser evacuado! – anunciou um oficial da S.S., e continuou: – Não pensem que estamos perdendo a
guerra! Nunca! O nosso Führer está desenvolvendo novas armas, com as quais rechaçaremos os inva-sores. Ele nos
levará à vitória final! Ele o prometeu! Todos os prisioneiros deverão sair na mais perfeita ordem: um bloco se-guindo
o outro! Não tolerarei qualquer indisciplina! Quem tentar se esconder no campo será fuzilado! Só os doentes, já internados
no hospital, vão permanecer no campo. Algumas horas mais tarde, serão evacuados em caminhões. Nós vamos partir já,
marchando todos no mesmo passo! Quem atrasar a coluna será fuzilado! Quem tentar fugir, será fuzilado! Os guardas
da S.S. acompanharão a coluna em marcha, e têm ordens expressas para atirar imediatamente! Sem prévio
aviso! Sem hesitar!
Meu pai e eu vimos que não havia como esconder-se no campo. Só nos restava obedecer e seguir a coluna, que já
estava saindo do campo.
Seguimos por uma estrada que ninguém conhecia. Nenhum Comando ainda tinha passado por lá.
Logo estávamos no meio dos campos, por todos os lados viam-se árvo-res carregadas de frutas. A vista era linda,
toda multicolorida. O verão estava no início, o céu azul, o sol radiante, nenhuma nuvem.
Os moradores observavam-nos enquanto passávamos. Até as crianças olhavam para nós. Ninguém disse nada,
135
ninguém esboçou o menor gesto de solidariedade ou de ajuda... seja por medo dos S.S., seja por indife-rença.
Mas nenhum prisioneiro interessou-se pela beleza da paisagem ou sen-tiu-se frustrado pelo desinteresse da
população local. Toda nossa aten-ção estava voltada para os S.S. que, como de costume, andavam nos dois lados da
coluna, os fuzis prontos para atirar.
Constatamos que seria impossível fugir. A cada poucos metros havia guardas da S.S., estavam todos com a cara
amarrada e os olhos cheios de raiva.
Logo a estrada transformou-se num caminho de terra, que ia subindo morro acima.
Após a primeira hora, começamos a ouvir tiros: os S.S. estavam ati-rando nos prisioneiros que não tinham forças
para prosseguirem a mar-cha, e seus corpos eram jogados à margem do caminho.
A estrada subia sempre. A caminhada começava a cansar. Os tiros es-tavam cada vez mais frequentes. Percebia-se
claramente que o número de prisioneiros fuzilados estava aumentando.
Ficávamos cada vez mais apreensivos.
Após umas três horas de marcha, chegamos a um amplo platô. No fundo, havia uma enorme gruta. Sua entrada era
mais alta do que a maior das árvores, sua largura passava dos 50 metros.
Aos berros, os S.S. ordenaram que entrássemos na gruta, e empurra-ram-nos para dentro.
Nós nos assustamos com a escuridão que se via logo na entrada e, pela primeira vez, ousamos opor uma resistência,
que se tornou bem suce-dida, apesar de passiva. Éramos tantos que os S. S. não conseguiram empurrar toda a massa
humana. Mesmo que momentaneamente parecia que uma boa parte dos prisioneiros já estava dentro da gruta, logo em
seguida, a maioria, num movimento de refluxo, conseguiu sair.
Ficamos uma meia hora neste empurra-empurra: os S.S. tentando nos fazer entrar e os que estavam dentro da gruta
forçando a sua saída para fora.
Nesta confusão, vi-me separado de meu pai: senti-me empurrado por uma força cega, irresistível como a das ondas
do mar, e, de repente, lá estava eu, alguns metros dentro da gruta!
A escuridão era assustadora, o frio e o silêncio absolutos. A sensação de morte era total. Ela fez surgir em nós, que
estávamos dentro da gruta, forças atávicas tão poderosas que, numa só investida, conseguimos in-verter o fluxo da massa
humana e empurrá-la para fora da gruta.
De repente, percebemos que os S.S. não estavam mais atirando em nós. Estavam somente usando a força bruta, e
nós éramos em número infini-tamente maior!
Alguém gritou:
– Os S.S. têm medo de atirar! Os alemães receiam chamar a atenção dos americanos! Eles devem estar bem perto
daqui!
Neste momento, uma força irresistível apoderou-se de nós.
Como se fôssemos uma onda gigantesca, jorramos todos para longe da gruta e espalhamo-nos pelo platô.
Só então percebemos que não se via mais quase nenhum S.S.: a grande maioria tinha sumido! Tinham sumido!
OS S.S. TINHAM SUMIDO!!
Uma explosão de alegria sacudiu a todos.
Pulamos no ar. Gritamos. Ficamos atordoados. Parecíamos bêbados.
Meu pai e eu nos abraçamos, gritando e rindo ao mesmo tempo.
– Estamos livres! LIVRES! – gritava todo mundo.
– Vamos voltar para o campo! – ouvia-se de todos os lados.
– Vamos procurar os S.S. que estão fugindo. Vamos matá-los! – gritavam outros.
Uma confusão total estabeleceu-se.
A explosão de alegria incontrolada que envolveu todos os prisioneiros teve em mim o efeito oposto. Senti os
perigos que esta massa irracional representava.
– Pai, estou com medo. Estes momentos de euforia transformam-se fa-cilmente em loucura. Vamos voltar logo
para o campo. Lá aguardaremos os acontecimentos. Hoje haverá muito perigo nas ruas.
– Você tem razão, filho – concordou meu pai – Não vamos nos expor à toa. Festejaremos nossa libertação só nós
dois, sem participarmos de ne-nhuma loucura.
Um grupo de prisioneiros subiu por cima da gruta, a procura de algum S.S. escondido no meio da vegetação
abundante.
O que eles encontraram, entretanto, foi um amarrado de explosivos, pre-parado para dinamitar a entrada da gruta:
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caso todos tivéssemos en-trado nela, a explosão teria selado definitivamente a saída da gruta, to-neladas de rocha
escondendo a entrada para sempre.
Todos teríamos morrido... e nem os nossos corpos teriam sido encon-trados.
Meu pai disse:
– Antes de voltarmos ao campo, vamos dirigir uma reza de agradeci-mento a Deus
e a recitaremos aqui mesmo, na entrada da gruta, que os alemães prepararam
para ser nosso túmulo eterno.
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CAPÍTULO 31
coluna, histérica, desceu do morro correndo, rindo, pulando e gritando descontroladamente.
Agora sim, percebemos a beleza dos campos: por todos os lados, só haviam plantações cuidadas e lindas
flores, rodeando confortáveis ca-sas rústicas ao mais puro estilo germânico.
Só que agora não havia mais nenhum alemão fora de casa a nos obser-var. Estavam com medo... a sorte se
invertera!
No meio da descida, cruzamos com um grupo de prisioneiros que porta-vam fuzis e revólveres. Eles contaram:
– Encontramos alguns soldados da S.S. que estavam tirando os unifor-mes para trocá-los por roupas civis. Nós os
surpreendemos e os mata-mos com as próprias mãos, e ficamos com as suas armas.
Agora estamos procurando por mais alguns dos nossos carrascos. Ai deles, se os encontrarmos... Nenhum vai
permanecer vivo! Também estes vamos esmagar na hora, como baratas! Sem dó, nem piedade! Exatamente como eles
agiam, julgando-se donos do mundo!
Chegamos ao campo. Entramos no nosso Block (barraca).
Estava lá um outro cozinheiro, um polonês, o Janusz, com o qual não tí-nhamos tido quase nenhum contato: ele só
falava o polonês e nós sem-pre fazíamos de conta que não entendíamos sua língua.
Quando ele nos viu, dirigiu-se a nós em polonês:
– Tenho certeza que são judeus e que entendem a língua que estou fa-lando. Tive esta sensação desde que os
conheci na cozinha. Não se assustem, meus amigos, também sou judeu!! Sou judeu, sim! Agora ninguém mais precisa
esconder que é judeu! Até agora não quis me identificar a vocês porque não queria vincular minha vida à sua sorte: o
que aconteceria comigo se alguém os denunci-asse? Agora que a guerra acabou, posso proclamar sem receio: sou
judeu, exatamente como vocês o são!! Sinto orgulho por nós três termos conseguido enganar os nazistas!
Sobrevivemos à guerra com a ajuda de Nosso Deus! Que Seu Nome esteja louvado!!
Ficamos desnorteados, não acreditando no que ouvimos: este rapaz alto, forte, sempre grosseiro e mal educado, que
em nada se parecia com um judeu, era um dos nossos, um judeu!!
Não era possível!
E todo este tempo ele disfarçara a verdade até de nós, seus correligio-nários?
Não era possível mesmo!
E como sua linguagem era diferente: agora, ele falava educadamente, até citava Deus!
Meu pai refletiu um pouco e respondeu em polonês:
– Sim, falo a sua língua, mas agora quero ouvir você provar o que afir-mou. Termine esta frase para mim.
E meu pai começou a recitar as primeiras palavras da principal reza ju-daica.
– Shemá Israel – e parou ali, convidando Janusz a continuar.
Antes que ele pudesse pronunciar uma só palavra, um grupo de uns quinze prisioneiros poloneses, aos gritos,
invadiu nosso Block.
– Venha conosco, Janusz! Temos facas e marretas. Vamos arrumar ar-mas mais eficazes no caminho. Vamos caçar
os guardas da S.S. que ainda andam pela cidade. Vamos nos vingar! Nosso lema é: “Olho por olho! Sangue por
sangue!”
– Esperem um pouco, tenho uns assuntos a resolver com os dois france-ses.
– Não dá, venha já! Os S.S. não vão ficar esperando, nem os america-nos. Amanhã vão decretar lei marcial e não
vamos mais poder fazer nada. É só esta noite que “a bruxa anda solta”. É só esta noite que so-mos os donos da cidade.
Amanhã será tarde demais.
Janusz virou-se para nós:
– Vou acompanhá-los! Não tenho como recusar! Para ser sincero, eu também sinto cócegas nas mãos. Elas só vão
sossegar quando matarem um monte de nazistas. Amanhã vamos terminar a conversa. Afinal das contas, não há pressa.
Num tom mais baixo, confidencialmente, acrescentou:
– Amanhã vou responder ao desafio que me lançaram. Por enquanto, prefiro que meus amigos não saibam que sou
judeu. Todo polonês é anti-semita nato e ninguém sabe o que ainda vai ocorrer nestes últimos dias de guerra.
Assim que Janusz saiu, virei para meu pai:
A
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– Será que ele é realmente judeu ou está só fingindo fazer-se pas-sar por tal por pensar que ser judeu vai lhe abrir portas
para um futuro dourado?
– Se for esta sua intenção, ela é novidade. Até há pouco, ser judeu era a maior das desgraças. É interessante ver
com que rapidez este conceito mudou.
– Acho que daqui para a frente muita gente, especialmente nazistas e seus colaboradores, tentarão fazer-se passar
por judeus. Mas quanto a Janusz, deu para perceber que ele não estava muito apressado em terminar o Shemá Israel. O
que esta relutância significa, só vamos saber amanhã.
Assim que o grupo de poloneses saiu da barraca, apareceu um outro pri-sioneiro, um francês chamado Serges
Bagno.
Nós o conhecíamos desde o campo de Compiègne, na França. Todos estes anos, os passamos juntos.
Era mais velho que eu, mais próximo à geração do meu pai. Era sem-pre mal humorado e costumava falar muito
pouco. Assim, é natural que as nossas relações fossem esporádicas e superficiais.
Estranhei quando o vi aparecer, procurando por nós.
– Enfim estamos livres – disse eu, à guisa de boas vindas.
– Meus amigos – respondeu Serges, falando em francês, como era cos-tume entre nós – Agora está começando
uma nova época em nossa vi-das. É o que me leva a vir vê-los.
Não sabia se os encontraria agora aqui no campo, quando a grande maioria dos prisioneiros, sedenta de vingança,
está na cidade, embe-bedando-se, fazendo arruaça.
– Achamos preferível passar esta primeira noite de liberdade aqui, no campo mesmo, bem sossegados e longe das
confusões.
– Vocês têm toda a razão. Foi exatamente o que eu mesmo fiz. Mas eu vim aqui porque tenho uma surpresa para
vocês. Abram bem os ouvidos. Escutem!
Durante alguns minutos, Serges criou um suspense, mantendo-se calado.
De repente, passou a nos falar em iídiche. Em iídiche!!
– Sabem, sou judeu, exatamente como vocês o são. Também não sou francês, mas belga, da capital Bruxelas. Só o
nome que uso é verda-deiro: Serges Bagno. Sempre soube que vocês eram judeus. Como? Pelas expressões em iídiche
que Peter às vezes usava, misturadas ao seu péssimo francês.
– Mas por que nunca o revelou antes? Por que nunca mantivemos uma amizade mais profunda, tendo tanto em
comum?
– Entre os franceses havia um boato que vocês eram judeus. Como po-deria eu ter uma amizade especial com
vocês? Seria denunciar-me a mim mesmo! Pelo contrário, fiz tudo para vocês não gostarem de mim. Queria vocês bem
longe. Por isto sempre fui meio estúpido com vocês. Mas agora a situação mudou, não precisamos mais nos esconder. Se
Deus o quiser, nunca mais!!
NUNCA MAIS!! – repetimos os três, colocando toda a força de nossos sentimentos recalcados nestas duas
palavras.
– Mas nunca passou pela minha cabeça que o senhor pudesse ser ju-deu, nunca mesmo – repeti, ainda chocado pela
revelação.
– Foi esta a minha sorte. Também os nazistas nunca pensaram que eu o era.
Quando Serges saiu, meu pai comentou:
– Quem sabe quantos judeus conseguiram se salvar fazendo-se passar por arianos? Que seja nos campos de
concentração, ou fora deles.
De manhã, quando acordamos, vimos como o céu estava bonito.
– É verão – disse meu pai – É verão na Áustria, é verão em nossos cora-ções. Como a gente se sente diferente
quando é livre – acrescentou.
Logo vimos um grupo numeroso de judeus poloneses entrarem em nossa barraca. Na sua frente, estavam os dois
que tínhamos conhecido na co-zinha, e aos quais dávamos quase toda noite um boteijão de sopa.
– Viemos agradecer-lhes – disse o mais velho, o tio – Queria também apresentar a vocês todo o grupo ao qual
distribuímos as suas sopas. Quero que os conheçam.
Os poloneses começaram a falar, todos ao mesmo tempo. Na realidade, sabiam que, em grande parte, nos deviam
as vidas. Procuravam encon-trar as palavras certas para manifestarem sua gratidão.
– Não tem motivo para agradecer – disse meu pai – Fizemos só o que pude-mos, e sabemos o quanto foi
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insuficiente.
– Vamos sair ainda hoje do campo. Os russos estão aquartelados há só alguns quilômetros daqui. Pretendemos
passar para a zona deles e vol-tar para a Polônia, que eles ocupam. Somos de opinião que cada um deve voltar à sua
cidade de origem, para mais facilmente reencontrar o que sobrou de sua família.
Saímos de nossa barraca, acompanhando o grupo. Despedimo-nos, de-sejando-nos mutuamente um feliz retorno
para as nossas casas.
Já na rua do campo, encontramos um dos poloneses que ontem vieram buscar Janusz.
– Como foi a caça? – perguntamos – Proveitosa?
– Proveitosa, sim. Mas acabou mal. Perdi meu melhor amigo. Inicial-mente, capturamos uns 10 soldados da
Wehrmacht que tentavam se es-conder. Os desarmamos e os entregamos a um destacamento militar americano.
Guardamos suas armas, que passamos a usar logo em se-guida, quando esbarramos num foco de resistência alemã.
Desta vez, tratava-se de soldados da S.S. que não queriam se render.
Seguiu-se um pesado tiroteio, e conseguimos matar todos os nazistas. Infelizmente, também pagamos um preço
alto. Não é de se estranhar: poucos de nossos camaradas tinham qualquer prática no manuseio de armas. Assim, mais
da metade de nosso grupo morreu, entre os quais meu melhor amigo.
– O que aconteceu ao nosso, ao Janusz?
– Ele foi um dos primeiros a cair. Morreu na hora.
Meu pai e eu nos entreolhamos. Ficamos quietos. Não perguntamos mais nada.
É preferível ficarmos na dúvida – opinou meu pai – Não há mais por que fazer perguntas.
– Seja quem ele tenha sido, judeu ou não, que repouse em paz!
Depois de tantos anos de sofrimento nos campos de concentração, ele merece nosso respeito, sem
investigarmos a sua origem ou integridade.
Foi na mesma manhã que o médico-chefe informou-nos que Charles Weisz estava em péssimo estado, precisando
urgentemente de cuidados médicos mais eficientes. Foi neste mesmo dia que o levamos até a es-trada e o entregamos a
um soldado americano, que prometeu interná-lo no hospital de Salzburg.
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CAPÍTULO 32
os dias seguintes, o exército americano empenhou-se em normalizar a vida nos territórios que acabara de ocupar.
Lentamente, as coisas começaram a funcionar. Até os trens voltaram a circular, embora sem qualquer horário
pré-estabelecido.
Uns dez dias após a nossa libertação, conseguimos entrar num trem com destino a Paris. Era uma composição de
mais de cem va-gões de carga que só levava ex-prisioneiros.
A viagem foi bastante demorada: a Alemanha ainda estava desorgani-zada e o trem parava muito, às vezes no meio
do mato.
A comida era farta. Todo mundo estava eufórico, cada um contando os milagres que lhe permitiram permanecer
vivo.
Ouviam-se canções de todos os povos oprimidos pelos nazistas. Todos acompanhávamos as músicas. Formávamos
uma verdadeira família, discutindo sem parar, discordando na maioria das vezes. Mas, mesmo assim, sentimo-nos
todos unidos pelo passado comum.
Afinal chegamos a Paris. Lá fomos interrogados pelos serviços de segu-rança do exército americano, à procura de
ex-nazistas.
Em Paris, permanecemos alguns dias num hotel que antes da guerra estava entre os mais luxuosos da cidade, e que,
durante a ocupação na-zista, servia de quartel-geral para o exército alemão: o Hotel Letícia.
Foi só lá que meu pai e eu pudemos tirar os nossos primeiros retratos que conservo até hoje. Só então pudemos
verificar o nosso peso: nós, que medíamos 1,70 m de altura, pesávamos cada um 38 kg! Só 38 quilos, e isso um mês
após o fim da guerra, quando já estávamos descansados e bem alimentados.
De lá, fomos para Bruxelas, capital da Bélgica, onde recebemos roupas novas (na realidade uniformes alemães sem
as insígnias) e dez francos cada um (o equivalente a menos de dois dólares!): era o que o governo belga dava aos exprisioneiros de campo de concentração, para que rei-niciassem “com dignidade” as suas vidas...
– Agora, estamos chegando na reta final – disse meu pai, quando entra-mos no trem que nos levaria à Antuérpia –
Nosso pesadelo está termi-nado – acrescentou – Faltam só trinta minutos e chegaremos à nossa ci-dade de onde
saímos, Antuérpia.
– Será que devemos tentar apagar o passado, esforçando-nos em es-quecer o que foram as nossas vidas no campo
de concentração?
– A resposta é um sim e um não ao mesmo tempo. Para nossa sanidade mental, nada melhor do que esquecermos
os horrores pelos quais pas-samos. Entretanto, seria um terrível desperdício não aproveitarmos o que esta experiência
pode nos ensinar de valioso!
– Será praticamente impossível tirar de nossas cabeças o que se passou nos campos. Alguns traumas levarão anos
para desaparecerem, outros nos acompanharão para o resto de nossas vidas.
– Analisar o que foi o campo de concentração será uma de nossas tare-fas para a vida toda.
– Você tem razão, pai. Seria interessante fazermos agora mesmo um esforço, avaliando juntos o que agora, poucos
dias após o fim da guerra, aprendemos, como resultado desta nossa experiência tão traumática.
– A idéia é ótima, Michel. Você que a apresentou comece a desenvolvê-la – terminou ele sorrindo.
– Para mim, a maior lição que aprendi é que o amor é a maior das forças que existe. Ele, por si só, resolve tudo.
Parafraseando o provérbio, eu diria: “O amor move montanhas.”
– É isto mesmo, Michel. Quantas vezes eu não me senti totalmente desa-nimado para continuar lutando? Quantas
vezes eu já não estava prestes a entregar os pontos? Mas eu sabia que o que ocorreria comigo reper-cutiria
imediatamente em você. Foi este pensamento que me dava forças para continuar. Foi a minha preocupação pela sua
sorte, Michel, que renovou as minhas energias. O maior incentivo para minha própria sobrevivência foi querer
proteger você, meu filho.
– O mesmo deu-se comigo, pai. Lutei não somente por mim, mas tam-bém por você. Sabia que as nossa sortes
estavam entrelaçadas. Tinha certeza que a única maneira de qualquer um de nós sair vivo do campo era
permanecermos vivos os dois, e que se um de nós mor-resse, o outro não o sobreviveria por muito tempo.
– Há mais outra coisa que percebi, que à primeira vista parece ilógico. Mesmo assim, trata-se da pura verdade: o
N
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excesso de brutalidade e de sadismo que havia no campo tornaram-me cada dia mais humano, mais tolerante e mais
compreensivo. Percebi ainda que a força bruta nunca pode destruir uma ideia. Os ale-mães usaram a força bruta,
tentando aniquilar fisicamente o povo judeu. Mas o que foi que conseguiram? Mataram muitos judeus, é verdade, mas
não chegaram a destruir o nosso povo como um todo. Você viu quantos judeus encontramos nos trens que voltavam
para a Europa Ocidental? Eles sobreviveram, apesar de todos os esforços dos nazistas. O povo judeu, como expressão
concreta de um ideal, de uma ideia filo-sófica e religiosa, continua vivo e presente, como sempre.
– E se Deus o quiser, assim permanecerá, vivo e atuante, até o final dos tempos.
Ambos ficamos quietos por uns minutos, pensativos.
Depois, como se o tivéssemos combinado, começamos ao mesmo tempo a cantar bem baixinho a Canção dos
Partisans Judeus, que ou-vimos repetidamente no trem que nos trouxe a Paris:
“Não digas nunca que esta é a tua última caminhada,
Mesmo que as nuvens escuras escondam o céu azul,
Chegará o dia com o qual tanto sonhamos,
Quando o eco de nossos passos provará ao mundo:
Estamos aí – firmes como sempre”.
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POSFÁCIO DO AUTOR
ostaria de esclarecer alguns pontos relevantes. Este livro é um testemunho de duas pessoas que, cada uma ao seu
modo, atravessaram os árduos anos da segunda Guerra Mundial. Não se trata de um romance ou de fruto da
imaginação, mas sim de fatos realmente vividos. Mais que isto, não são apenas relatos pessoais, mas, pode-se
dizer, fazem parte da história de um povo e da história da humanidade, sendo preciso registrá-la.
Devida à relevância histórica dos presentes relatos, entendo que esta obra deva ser gratuitamente disponibilizada a
qualquer pessoa interessada. Assim, este livro terá sua distribuição em instituições particulares e públicas, tais como
escolas, bibliotecas, centros culturais e clubes. Além disto, a versão online do livro poderá ser consultada
gratuitamente no seguinte endereço: www.anosdelutas.com.br. Por meio dele, os leitores interessados poderão se
comunicar com o autor e receber maiores esclarecimentos sobre passagens do livro.
G
Raiva dos alemães?
Gostaria de ressaltar que não nutro qualquer ódio contra o povo alemão, valendo a pena contar um pequeno
episódio que ocorreu após o final da guerra.
Meu pai e eu estávamos no trem que levava milhares de prisioneiros dos campos de concentração da Áustria para
as suas cidades de origem na Europa Ocidental. Estes eram trens montados com as sobras do material ferroviário que
funcionavam precariamente. Estávamos num vagão com mais uma centena de ex-prisioneiros, sentados, deitados,
usufruindo a liberdade reconquistada e batendo papos intermináveis quando o pessoal entrou no tema: vingança contra
o povo alemão.
Cada vez que alguém falava, eu ia sentindo a raiva crescendo até que eu resolvi me posicionar contra a maioria:
“Não odeio a nação alemã” – disse – “respeito demais seu legado intelectual e sou apaixonado pelo Fausto de Goethe,
que era o livro que eu estava relendo na Antúerpia antes da guerra. Agora, os nazistas, os SSe seus colaboradores,
sejam alemães ou não, estes sim devem ser julgados e condenados, mas não torturados nem linchados”.
Minha postura não foi muito aceita, quem quase foi linchado fui eu!
Hoje mantenho ainda esta posição, embora saiba que grande parte da população alemã ou austríaca sabia o que
estava acontecendo nos campos de concentração, mas achava mais prudente fazer de conta que não via, nem ouvia
nada. Não acho que seja possível esconder de uma população o que se passa perto delapor tantos anos. Os fornos
crematórios exalavam um cheiro característico e uma fumaça escura, formando uma nuvem negra que escurecia o
céu. Nas redondezas dos subcampos de Mauthausen havia áreas habitadas, onde a população percebia tudo
diariamente; eles viam os Komandos saírem para trabalhar fora do campo e, no retorno, corpos mortos sendo
levados pelos próprios prisioneiros, que mal agüentavam sem este peso extra. Além disto, cidadãos também
trabalhavam ao nosso lado nas fábricas, viam o tratamento que recebíamos e ouviam as histórias que contávamos,
alguns, vendo nossa situação, até nos ajudavam com roupa velha e comida.
Terminada a guerra, como transcorreu a minha vida?
Após a guerra meu pai e eu retornamos à Bélgica e em 1947 eu casei com a Lili. Em 1948 ganhamos uma filha,
Annie, cujo nome em hebraico é Chana, em homenagem à minha mãe, que tinha o mesmo nome . Meu pai também se
casou, pela segunda vez, com uma senhora cujo primeiro marido e uma filha haviam sido mortos na guerra.
Nos primeiros dias de 1952, emigramos para o Brasil: meu pai e a sua esposa, eu e a Lili, sua irmã e seus pais;
todos fixamos residência em São Paulo.
E, por incrível que pareça, mesmo após anos morando em outro continente, pesadelos e medos nos perseguiram de
maneira intensa por aproximadamente 10 anos.
A Lili, por exemplo, como passara anos escondida com medo de ser descoberta pelos SS, só conseguia relaxar o
suficiente para poder cair no sono se a porta do nosso apartamento estivesse aberta, assim ela “poderia fugir caso eles
– os SS - aparecessem”. Então, eu aguardava ela adormecer para poder trancar a porta.
Já eutinha a esperança de encontrar a minha mãe. Quando estava andando na rua e via uma senhora de costas com
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o corpo parecido com o da minha mãe, logo pensava: minha mãe voltou agora de algum campo ou hospital; chegou na
Antuérpia; soube de nós e da nossa vinda ao Brasil - São Paulo; chegou hoje aqui e está à nossa procura. Eu sabia que
este pensamento não tinha pé nem cabeça, mas eu não conseguia me controlar, tinha que correr desordenadamente e
olhar o rosto daquela senhora, e ter certeza de que não era ela. Além disto, nos primeiros anos da nossa vida em São
Paulo, eu viajava bastante e toda vez que o trem parava na estação da Antuérpia, eu corria para a minha casa, pois
quem sabe minha mãe não estaria me aguardando lá.
Os anos foram passando, fomos trabalhando no comércio e construindo uma nova vida. Felizmente, eu e a Lili
pudemos viver juntos por mais de 60 anos, porém em 2009 ela veio a falecer. Hoje, com orgulho, posso dizer que a
nossa pequena família cresce cada vez mais: tenho uma filha, duas netas e três bisnetos e, como todo bom bisavô
coruja, devo acrescentar, são os mais lindos do mundo.
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SER SEGUNDA GERAÇÃO
urante a maior parte da minha vida ter pertencido à Segunda Geração do Holocausto foi penoso. Penoso na
infância e nos primeiros anos da adolescência, por conta do sofrimento mais adivinhado do que realmente
entendido pelo qual meus pais haviam passado, e penoso porque parecia ser essa uma experiência solitária,
absolutamente particular de minha família, impossível de ser repartida, comunicada.
Em um mundo em reconstrução, ávido por deixar para trás os horrores da guerra, falou-se muito pouco sobre o
Holocausto, durante muito tempo.
Depois, já na década dos anos 1970, nos tempos de faculdade, quando se começava a criar disciplinas e cátedras
sobre o Holocausto, descobri que eu fazia parte de um coletivo, que tínhamos referencia uns nos outros, e que, enfim,
em Israel, nos Estados Unidos, ou no Brasil, constituíamos uma geração, compartilhando significados, percepções,
vivências.
Foi um alívio.
Um alívio relativo, no entanto, pois o sofrimento dos sobreviventes, agora que eu podia apreendê-lo em toda a sua
profundidade e o seu horror, parecia impregnar de alguma forma a minha vida e a de toda a nossa Segunda Geração.
O testemunho dos sobreviventes, enfim abertamente expresso, discutido e difundido, dava-nos a medida de como
parte de nossas vidas, diante do impacto dos relatos, das narrativas e mesmo dos silêncios, era vivida como “vidas
emprestadas”.
Era como se a experiência deles tivesse sido incorporada em nós, fazendo parte da nossa própria biografia. Nós nos
dávamos conta de que, como se nossos inconscientes tivessem sido colonizados, parte de nossas vidas haviam sido
vividas antecipada e penosamente, nos campos, nos esconderijos, nos refúgios, nas dobras da dor, no ostracismo, no
vazio.
E reagimos: aprendemos a superar, a transformar nossas “vidas emprestadas”. Desenvolvemos terapias, criamos
grupos de apoio, escrevemos manuais, tratados e teorias sobre vitimas, desequilíbrios e traumas secundários.
Havíamos nos tornado a Segunda Geração, não mais do Holocausto, mas de sobreviventes.
Assim como nossos pais, penosamente, nos tornamos uma geração de fortes.
Um pouco mais tarde, no final da década de 1980, meu pai, ao escrever “Anos de Luta”, ensejou a transformação
do meu olhar: pelas brechas da sua narrativa pude, pela primeira vez, entrar em contato com o heroísmo do
sobrevivente, com a sua ousadia, a sua coragem e a sua “super-humanidade”. Eu podia, finalmente, entender porque
eu e toda a Segunda Geração, apesar de nossas “vidas emprestadas”, fomos (e ainda somos) a concretização mais
dramática do grito judeu de “no pasaran!” ao nazismo.
Hoje, a iniciativa da minha filha caçula - Terceira Geração do Holocausto - que escolhe organizar, ilustrar e
publicar o relato de meu pai, transformando a memória da dor dele e da minha penosa “vida emprestada” em uma
criação coletiva, que nos ata a todos, Primeira, Segunda e Terceira gerações, tem o poder de conotar um significado
verdadeiramente novo a minha geração, libertando-me do empréstimo, redimindo-me da penosa sombra de um
sofrimento antecipadamente vivido.
Obrigada, pai e obrigada, filhas.
D
Annie Dymetman, São Paulo, 2011.
Filha de Michel Dymetman
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“OBRIGADA, SABA1”
resci ouvindo histórias sobre a Segunda Guerra Mundial. Ouvia-as no colégio judaico da minha infância, em casa e
nos espaços sociais e culturais que eu frequentava: no clube, no movimento juvenil, nas grandes comemorações. O
foco era sempre o mesmo, a shoá - o extermínio de seis milhões de judeus e a crueldade da Potência do Eixo.
Para mim, o Holocausto era um acontecimento histórico incontestável, pano de fundo do judaísmo contemporâneo.
Isso até a adolescência, quando mudei de colégio.
Na nova escola, eu e um colega de sala éramos os únicos judeus e, lá, pela primeira vez, passei pela
experiência de ver contestada a veracidade dos fatos da Segunda Guerra e de ser indagada sobre se o Holocausto
não seria, na verdade, uma invenção dos judeus para se “fazerem de vítimas” e, assim, serem mais bem aceitos na
sociedade ampla.
Imediatamente rebati, não me deixando abalar pelas falas dos colegas. Mas, depois, refletindo sobre as acusações e os
argumentos, titubeei e cheguei a me perguntar se o Holocausto realmente ocorrera. Como meus avós haviam passado
pelo Holocausto, resolvi consultá-los.
Jamais esquecerei a expressão chocada e a palidez do rosto de meu avô à minha pergunta! Aos poucos ele foi se
recompondo e, então, começou a me falar sobre a sua história na Segunda Guerra, sobre a história da nossa família,
sobre o sofrimento e a luta, dia após dia, durante aqueles seis longos e terríveis anos.
E foi naquela ocasião que ele me mostrou, pela primeira vez, o livro dedicado às netas - Anos de Lutas -, que ele
escrevera alguns anos antes. Tratava-se do testemunho sobre o que as famílias de meu avô e minha avó haviam
passado durante a guerra e sobre as suas dificuldades. Falava como eles haviam lutado, como foram heróicos e como
recomeçaram suas vidas, depois de terem perdido praticamente tudo o que possuíam e tudo o que eram antes da
instauração do horror.
Foi lendo cada palavra desse livro, que imprime emoção e realidade subjetiva aos fatos históricos, que tive absoluta
certeza de que as histórias do Holocausto eram verdadeiras e tive a percepção do quanto é importante e fortalecedora a
união tanto do povo judeu, como a do núcleo familiar.
Meus questionamentos haviam sido respondidos, sim. Mas, e o eventual questionamento dos outros? Daqueles que
nunca haviam entrado em contato com um testemunho direto e vívido como, por exemplo, o de meu avô?
O término da Segunda Guerra foi há mais de 60 anos, e hoje são poucos os sobreviventes que ainda estão entre nós.
Precisamos das histórias, das informações e da divulgação das atrocidades vividas por eles, para formarmos uma
corrente com nossos filhos e netos e não deixarmos que a memória desapareça.
É importante sabermos de onde viemos para sonhar e projetar o nosso futuro. Nossa coragem coletiva resulta de
conhecermos o que o nosso povo e a nossa família já enfrentaram, conquistaram, venceram, assim como a nossa força
pessoal nasce, também ela, da força do coletivo.
Enquanto meu avô dedica seu livro às netas, fico imaginando o dia em que os meus filhos lerão as histórias de seus
bisavós e, por sua vez, se emocionarão com as vidas, as passagens, o sofrimento, a coragem e a força de nossos
familiares. Também eles saberão que descendemos de lutadores heróicos e vitoriosos.
E é pelo seu testemunho, Saba, que expresso aqui, em nome da minha e das gerações futuras da nossa família:
“Obrigada!”, por nos transferir suas histórias, seus sentimentos e suas emoções.
C
Galah R. Dymetman Sanz Strul, São Paulo, 2011.
Neta de Michel Dymetman

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