1 I. Visão Geral Durante a última década, o problema das crianças
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1 I. Visão Geral Durante a última década, o problema das crianças
1 I. Visão Geral Durante a última década, o problema das crianças de rua em vários países da América Latina recebeu grande atenção por parte da comunidade internacional. Seja por meio de fotos de crianças passando fome, crianças vendendo chiclete no meio do trânsito, engraxando sapatos na calçada, cheirando cola na rua ou por meio de relatos sensacionalistas de crimes praticados por esses menores, esse setor da sociedade encontrou um lugar na consciência internacional (Hecht 1998, Mickelson 2001, Scheper-Hughes e Hoffman 1995). A “gangue dos três” – países onde há inúmeros relatos sobre violência e injustiça contra essas crianças que não têm culpa de absolutamente nada a não ser de morarem nas ruas - são Brasil, Colômbia e Guatemala (Tierney 1997). Apesar de toda a atenção negativa dada às crianças de rua, alguns excelentes trabalhos foram realizados com elas em países onde mais se divulgaram casos relatando a forma negligente e precária com que com essa população é tratada (Shaw 2001). Por exemplo, em países como Brasil, Colômbia e México, grandes avanços foram feitos em programas voltados para crianças de rua. Porém, devido ao tamanho da população de crianças de rua em algumas das maiores áreas da região, cidades menores tendem a ser negligenciadas e por isso enfrentam um número crescente de crianças de rua, bem como recursos insuficientes e falta de vontade política ou experiência para lidar adequadamente com a situação. Um exemplo disso é Veracruz, México, importante cidade portuária no estado de Veracruz. Este texto detalha os problemas de crianças de rua e possíveis programas para ajudar a cidade portuária mexicana de Veracruz como um exemplo típico da necessidade de novas redes sociais, econômicas e de saúde para atender as crianças de rua em regiões urbanas e peri-urbanas da América Latina. Este trabalho, espera-se também, servirá como um guia para o planejamento de programas presentes e futuros, voltados para as crianças de rua. Segundo os habitantes que têm contato com as crianças de rua, há atualmente entre 150160 "crianças" nas ruas de Veracruz (Benitez 2001, Mundo 2001). Desde novembro de 2001, com exceção de Cogra, uma lanchonete gratuita para aqueles que não têm condições de comprar almoço e que também funciona como uma espécie de moradia para idosos sem condições de sustentarem a si próprios, e Hogares Calazans, uma casa para jovens delinqüentes, não havia nenhum outro programa para lidar com crianças de rua. Entretanto, desde março de 2002, tem havido um esforço para a criação de programas voltados para crianças de rua por parte de um grupo espanhol que trabalha com uma das Igrejas em Veracruz, e outro esforço para a construção de uma casa de passagem na cidade por parte de alguns dos membros da Igreja de Cristo em conjunto com o braço de caridade da Igreja Católica, Cáritas. Os detalhes desses programas serão discutidos mais adiante na seção de Resultados. Devido à falta de experiência na criação de programas sustentáveis para crianças de rua em Veracruz e outras áreas urbanas de médio porte, este relatório busca, primeiramente, oferecer uma base genérica sobre da situação das crianças de rua nas Américas e, depois, sugerir recomendações aos programas levando em consideração a realidade das crianças de rua em Veracruz. A base genérica é fundamentada em revisões literárias e nos trabalhos deste autor em programas voltados para crianças de rua no Brasil e no México de 1999-2001. As recomendações para programas são baseadas em pesquisa feita sobre outros programas de sucesso na região e particularmente em dados coletados em pesquisas sobre necessidades, realizadas por este autor em março de 2002 em Veracruz. 2 II. CONTEXTO O "Problema" das "Crianças de Rua" Freqüentemente, quando as pessoas pensam sobre crianças de rua, imagens de crianças esmolando, roubando, cheirando e vadiando, são as únicas que vêm à mente. A maioria das pessoas só vê milhões de crianças pobres, desamparadas, abandonadas. Ironicamente, apesar da imagem popular de milhões de crianças necessitadas, quando encontradas a sós ou em grupos, essas crianças são quase sempre vistas como ameaças. Estes estereótipos contraditórios e muitas vezes equivocados das crianças de rua como sendo desamparadas e ao mesmo tempo ameaças, freqüentemente conduz a medidas erradas para lidar com a situação (Hecht 1998). É, portanto, necessário ter-se uma idéia clara e entendimento de quem essas crianças realmente são. Grande parte do recente alvoroço relativo às questões das crianças de rua nasce da visibilidade delas nas ruas (Dimenstein 1991, Hecht 1998, Hoffman e Scheper-Hughes 1995, Verde 1998). Colocar uma variedade de crianças sob um rótulo genérico de crianças de rua parece eliminar quaisquer diferenças que possam existir entre elas e suas razões por estarem na rua. O antropólogo Tobias Hecht (1998), em um estudo sobre crianças de rua no Nordeste do Brasil, realça as dificuldades de se usar o termo “criança de rua” como um termo genérico que se refere principalmente a qualquer criança pobre achada na rua. Ele declara que este termo foi amplamente divulgado por um documento da UNICEF e com isso tornou-se usado para referir-se a qualquer criança pobre encontrada na rua. Porém, este termo provavelmente faz mais dano que bem, afinal coloca estas crianças numa categoria preconcebida que pode não ter nenhuma relevância à situação delas nem a quem elas são como seres humanos (Scheper-Hughes e Hoffman 1995). Nada mais é que um estereótipo e uma categoria conveniente usadas por organizações internacionais, bem como a sociedade civil, para lidar com uma população aparentemente homogênea. É um termo mais apropriado para definir os programas do que para definir as crianças servidas pelos programas. Alguns cientistas sociais também salientam que criança de rua é constantemente associada a "problema" (Hecht 1998, Scheper-Hughes e Hoffman 1995). Associar crianças de rua com "problemas" reduz as vidas delas "a uma condição a ser curada" (Hecht 1995: 97). Além disso, a suposta homogeneidade desta população tem conduzido a grosseiras sobreestimações dos fenômenos na América Latina (Hecht, 1998). Em geral, é difícil calcular o número de crianças de rua devido aos variados papéis que elas exercem quando estão nas ruas. Alguns trabalham na rua, esmolam, dormem na rua, enquanto outros se prostituem para sobreviver; alguns fazem tudo isso (Aptekar 1988, Castillo 1997, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez, Hecht 1998, Scheper-Hughes e Hoffman 1995). Mesmo assim, eles são colocados todos numa mesma categoria (Hecht 1998). Isto presume que todas as crianças de rua trazem consigo os mesmos problemas e necessidades, e assim, mereçam o mesmo tratamento e "solução". Em sua pesquisa sobre crianças de rua, Nancy Scheper-Hughes e Daniel Hoffman (1995) explicam por que as pessoas acham a noção de crianças de rua perturbadora, conseqüentemente conduzindo a atitudes negativas e percepções relativas às crianças de rua. Eles afirmam que as crianças que desempenham suas atividades diárias na rua são vistas de forma negativa em função do fato da rua não ser um lugar para crianças. Eles afirmam: Uma criança de rua é como nossa definição de sujeira, isto é, terra que está fora de lugar. Terra quando está no solo é limpa, um jardim 3 em potencial; terra debaixo das unhas é sujeira. Da mesma forma, uma criança pobre e maltrapilha correndo pela rua sem asfalto de uma favela ou brincando num canavial é apenas uma criança. Essa mesma criança, transposta para as ruas principais e praças da cidade, é uma ameaça, uma ‘criança de rua’ potencialmente perigosa. (227-228). Esta imagem de que as crianças estão no lugar errado é que contribui para a projeção da idéia de que qualquer criança na rua é um problema para a sociedade e, portanto, precisa ser removida da rua. Estas noções erradas e destorcidas das crianças de rua conduzem a projetos mal elaborados e ineficientes. Assim sendo, para projetar-se um programa adequadamente voltado para crianças de rua, é preciso saber distinguir entre os vários tipos de crianças de rua. A próxima seção também detalha alguns dos principais fatores que levam crianças a permanecerem nas ruas. O que Torna uma Criança de Rua? Muitos cientistas sociais desconstróem as imagens estereotipadas das crianças de rua ao fazerem a distinção entre crianças que estão na rua e crianças que “pertencem” às ruas (Dimenstein 1992, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997, Hecht 1998, Impelizieri 1995). Uma criança que exerce suas atividades na rua, seja trabalhando, esmolando, roubando, passeando etc. está na rua. A rua é seu lugar social. Essas crianças ainda mantêm relações com suas famílias e têm um lugar para dormir à noite. Crianças que “pertencem” às ruas são geralmente classificadas como aquelas que abandonaram completamente suas famílias e que de fato dormem nas ruas. Ao contrário da convicção popular, este grupo é uma minoria bem pequena entre aqueles considerados como crianças de rua (Hecht 1998, le Roux 1998). Porém, é importante notar que como não há uma dicotomia rígida entre as duas classificações, torna-se difícil distinguir entre aquelas crianças que tem um lar para retornar e aquelas que não têm. Hecht (1998), que trabalhou com crianças no Nordeste do Brasil, levanta a importante questão de quantas vezes uma criança tem de dormir na rua para ser considerada uma criança de rua. Ademais, Hecht (1998) também salienta o fato de que, freqüentemente, crianças que têm casas às quais podem retornar, muitas vezes preferem passar a noite na rua com medo/receio de voltar para casa. Por exemplo, algumas crianças das quais se espera que trabalhem nas ruas durante o dia e tragam algo para casa, seja comida ou dinheiro, acabam dormindo nas ruas em vez de voltar pra casa de mãos vazias. Além disso, às vezes é mais conveniente para algumas crianças dormirem na rua se isto lhes possibilita ficar mais perto da escola ou da área onde trabalham ou ainda, se for uma questão de segurança pessoal. Em função da distância e da segurança no trajeto das crianças, às vezes é preferível passar a noite na rua a ter de se preocupar com a volta e o dinheiro para o transporte. Ademais, crianças que estão na rua não necessariamente voltam às suas casas todas as noites. Ao invés disso, por questão de conveniência, elas podem voltar regularmente, outro termo que está frouxamente definido. Como apresentado na discussão acima sobre a distinção entre crianças que estão na rua ou que pertencem às ruas, torna-se muito difícil calcular com precisão a quantidade dessas crianças. Não obstante, o fato de que algo está impelindo as crianças cada vez mais a buscarem formas de sobrevivência nas ruas não pode ser negligenciado. Uma recente publicação pela Educación para el Niño Callejero (Ednica), uma organização na Cidade do México que não só lida com crianças de rua, mas que também firma 4 parcerias e oferece treinamentos para organizações locais para trabalharem com crianças de rua, mostra que os fatores que levam as crianças a buscarem uma vida melhor ou uma vida diferente nas ruas podem ser agrupados como aqueles relacionados à comunidade, à família e às próprias crianças (Grieshbach Guizar e Sauri Suárez). Fatores relacionados à comunidade são aqueles aparte da família e que também podem afetar o desenvolvimento e bem-estar da criança. Esses fatores incluem questões ligadas à escola (públicas e privadas), grupos informais e mercado de trabalho, informal e formal. Nesse sentido, os fatores relacionados à comunidade não são capazes de reter a criança na comunidade, no bairro ou na cidade onde ela vive. Uma escola, por exemplo, devido à falta de recursos, pode não ter a capacidade para lidar adequadamente com aqueles alunos mais propensos a optarem por morar nas ruas. Em função do não-atendimento destas necessidades, as crianças acabam frustradas, podendo passar a apresentar problemas na escola e acabar abandonando-a por completo. Assim como as escolas, as instituições públicas e privadas voltadas para servir à comunidade ou são insuficientes e distantes ou são incapazes de atender às necessidades dos indivíduos mais ameaçados. Igualmente importante, especialmente nas áreas menos favorecidas, é a falta de oportunidades de trabalho rentáveis, particularmente quando uma criança tem que trabalhar para ajudar sua família. Por outro lado, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez (1997) sugerem que organizações informais, como um forte círculo social ou grupo de amigos, podem desempenhar um papel muito importante junto às crianças mais ameaçadas. Embora os fatores relacionados à comunidade não se limitam aos mencionados acima, é importante notar que eles têm um peso na decisão da criança de permanecer em casa ou ir para as ruas para viver, trabalhar ou se relacionar. No nível familiar, talvez o fator mais importante que leva as crianças a irem para as ruas seja o mau trato e o abuso. Embora as opiniões sobre esse aspecto sejam variadas (Aptekar 1988, Fernandez 1995, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997, Hecht 1998, Mickelson 2001), a violência doméstica não pode ser facilmente desprezada. Meninas que abandonam seus lares, freqüentemente citam o abuso sexual como o fator decisivo para tal decisão, ao passo que os meninos geralmente sofrem agressões físicas. Porém, é importante notar que alguns meninos, de forma machista, afirmam terem ido para as ruas por que assim quiseram e por que gostavam do sentimento de liberdade associado à vida na rua, em vez de admitirem que foram vítimas de abusos em casa (Aptekar 1988). De acordo com estória no Brasil contada por Hecht (1998), um menino que fugira de casa em diversas ocasiões para escapar de agressões, eventualmente se acostumou com a vida nas ruas e logo veio a preferir permanecer na rua ao invés de ficar em casa. Descrevendo as agressões que ele sofria em casa, o menino dizia que só fugira por causa do padrasto. Ele me batia com um fio de arame, me cortava todo e depois jogava água e um quilo de sal em mim (28). Em relação a outro caso (que também o fizera fugir), ele diz que: Um dia, meu padrasto apareceu e me bateu com um pedaço de metal, como se ele estivesse descascando um coco. Ele cortou minha mão toda (28). As meninas, por outro lado, são mais propensas a sofrerem abusos sexuais. Por exemplo, em uma ocasião, o padrasto de uma menina tentou estuprá-la. Quando ela falou para a mãe sobre o incidente, a mãe recusou-se a tomar qualquer providência (Hecht, 1998). De acordo com algumas pesquisas sobre crianças de rua realizadas por este autor em Veracruz, uma das razões pelas quais mães não defendem suas crianças em incidentes de violência ou abuso cometidos pelos pais ou padrastos está vinculada a questões econômicas. Mulheres empobrecidas e financeiramente dependentes de seus maridos não têm muita opção entre resguardar o bem-estar físico e emocional de suas crianças ou garantir a segurança econômica da família. Em comparação às situações confrontadas em casa, como citadas acima, a rua torna-se uma melhor e, talvez, mais segura opção para muitas crianças. 5 Essas crianças não deveriam ser culpadas ou severamente julgadas por preocuparem-se com sua própria segurança, principalmente por aqueles que não conhecem as circunstâncias particulares de cada criança. Maus tratos e abusos não são os únicos fatores no nível familiar que levam as crianças para as ruas. Relações entre familiares e os papéis e funções que cada um desempenha na família também podem afetar as crianças de rua (Villamil 2001). Por exemplo, Villamil (2001) argumenta que os papéis familiares podem ser muito rígidos ou muito confusos para uma criança. Ela afirma que esses papéis estabelecem certos limites e que uma criança pode ou não conformar-se com o papel dela na família. Além disso, confusão sobre as relações entre papéis e membros da família pode causar frustração e insegurança na criança, tanto em relação a si mesma quanto em relação àqueles ao seu redor (Villamil 2001). Nesse sentido, as relações individuais e coletivas entre familiares, além da extensão da comunicação entre eles, determinam a disposição dos familiares em ajudarem uns aos outros. A importância de boas relações familiares não pode ser esquecida ao tentar-se impedir que uma criança vá para as ruas. Para obterem sucesso, programas voltados para crianças têm que incluir às famílias como um importante componente do trabalho (Bianchi 2000, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997). Como mencionado acima, os fatores que influenciam a decisão da criança de ir ou não para as ruas não estão limitados à família e à comunidade apenas. Incluem também aqueles relacionados à natureza da própria criança (Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997). Por exemplo, muitas crianças de rua, bem como aqueles que trabalham com elas, as caracterizam como "inquietas" (Shaw 2002). Embora estes fatores influenciem significativamente a decisão das crianças de irem ou não para as ruas, estes não são os principais determinantes. Em vez disso, a confluência destes fatores relacionados com a criança, a família e a comunidade resulta no fenômeno das crianças de rua. Outro fator que merece menção é o fato de que apesar de serem estereotipadas e mal compreendidas, é importante reconhecer que estas crianças são capazes de tomar decisões e apreciar a própria liberdade (Aptekar 1988, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997, Hecht 1998, Scheper-Hughes e Hoffman 1995). Alguns também apontam que as crianças que constituem esta população altamente estigmatizada são independentes, curiosas, rebeldes e geralmente tomam decisões conscientes sobre suas ações (Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997, Hecht 1998). Não há nenhuma receita exata ou fórmula específica para determinar quem irá para as ruas ou não. Fatores determinantes variam de indivíduo para indivíduo e de região para região. Os fatores que levam uma criança ameaçada para as ruas ou permanecerem nelas, não necessariamente determinam que a criança irá permanecer nas ruas. Programas para Crianças de Rua Permanecer ou não nas ruas depende das oportunidades que as crianças terão e das oportunidades de saída. Uma vez na rua, a criança procura uma rede que a permitirá ficar na rua e com isso tornar ainda mais difícil sair desta situação (Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997, Hecht 1998, Shaw 2002). Hecht e outros (Castillo 1997, Griesbach Guizar e Sauri Suárez 1997) salientam o fato de que os indivíduos geralmente tratam as crianças de acordo com as percepções que têm delas. Na maioria dos casos, como mencionado acima, as crianças ou são vistas como ameaças à sociedade e tratadas com repulsa e indiferença, ou são vistas como vítimas de uma sociedade injusta e sem caridade e por isso são incapazes de tomarem as próprias decisões baseadas nas opções disponíveis a elas. 6 Segundo Hecht (1998), algumas organizações, geralmente as não-governamentais ou religiosas, que buscam ajudar as crianças de rua usam como o ponto de partida a recuperação e a salvação. A idéia de recuperação é fundamentada em imagens de uma infância que precisa ser salva. Essa visão é semelhante às de Scheper-Hughes e Hoffman (1995), que argumentam que crianças para serem consideradas como tais, não precisam ser encontradas em certos lugares (casa) e realizar certas atividades (brincar). Isto é freqüentemente realizado por meio de programas de trabalho ou reconstrução de um tipo de vida familiar que busca radicalmente mudar as crianças. Porém, isto só dará certo se as crianças perceberem este tipo de programa como um benefício real. Entretanto, tais programas tendem a restringir a liberdade das crianças e, portanto, são uma opção pouco viável. Estes programas tentam salvar as crianças da vida na rua e com isso, rejeitam quaisquer decisões conscientes que as crianças possam ter tido (Hecht 1998). Um exemplo disso é Ministério de Amor, no México, que gerencia abrigos para crianças de rua. Estes abrigos, com pedagogos afetuosamente chamados de "tias" ou "tios", são uma tentativa de criar-se uma atmosfera tal qual a de um lar (Shaw 2002). A segunda principal percepção das crianças de rua por parte de algumas organizações é que elas [crianças] precisam ser salvas dos males da rua. Este tipo de ajuda geralmente tenta prover às crianças os confortos materiais que elas não têm nas ruas, como comida, abrigo, roupa e a palavra de Deus. Um exemplo de tal programa é “Juventude com Missão”, na Colômbia, que busca mudar as vidas das crianças de rua por meio da palavra de Deus. Este programa também permite que as crianças morem em casas de missionários durante o tempo que elas precisarem (Shaw 2002). Porém, ao invés de ajudá-las, este tipo de assistência, às vezes, se torna parte da rede de sobrevivência das crianças de rua. Assim sendo, essas organizações estão em contradição com seus propósitos, pois ao simplesmente servirem de provedores, acabam por construir uma relação de dependência em vez de independência (Shaw 2002). Tão importante quanto as percepções das organizações em relação às crianças de rua são as percepções das crianças por parte de cidadãos comuns, conforme mencionado anteriormente. As percepções da sociedade também afetam a forma como as crianças agem e reagem na rua. O que se deve observar nos exemplos acima é a importância de se compreender a forma pela qual as crianças de rua percebem tudo aquilo que está a sua volta. Por exemplo, da mesma maneira que o pessoal da organização interveniente pode pensar que estão ajudando as crianças a saírem das ruas, a criança pode ver a organização simplesmente como algo que a ajuda a permanecer na rua, oferecendo comida, roupa, abrigo, espaço recreativo etc. Neste caso, as percepções das crianças também podem afetar seu grau de responsividade em relação ao programa. A discussão sobre definições de crianças de rua, sobre fatores que levam as crianças para as ruas e lhes permitem ficar nas ruas, é importante no planejamento, desenvolvimento e implementação de programas efetivos voltados para as crianças. Além disso, a combinação dos fatores apresentados e quais desses fatores influenciam a criança a ir e ficar na rua não só varia de situação para situação como também de região para região. A falta de oportunidades econômicas e sociais para crianças ou a quantidade de crianças numa região pode determinar a magnitude e os tipos de problemas que organizações sociais podem encontrar. Isto torna crucial saber exatamente que fatores estão em jogo na região do futuro programa. Tendo em mente isto no caso de Veracruz, onde os fenômenos são relativamente novos, o restante deste texto irá discutir a situação e o contexto das crianças de rua no Porto de Veracruz e fará recomendações baseadas em outros programas de sucesso, customizados para a situação em Veracruz. 7 III. ESTUDO DE CASO: CRIANÇAS DE RUA EM VERACRUZ Escopo do “Problema” Veracruz é uma cidade portuária no estado de Veracruz. O fato de ser portuária e possuir clima ameno faz a cidade ter um fluxo constante de marinheiros vindos de todas as partes do mundo e de turistas vindos de outras regiões do país. Em função disso, a cidade é um centro de atividade econômica. Até recentemente, havia poucos registros de crianças abandonadas ou sozinhas nas ruas. Porém, em novembro de 2002, este pesquisador/autor foi convidado a colaborar com o Diretor de Cáritas, o braço de caridade da Igreja Católica local, para ajudar a planejar um programa para as crianças de rua, já que não havia nenhum programa oficial no Porto de Veracruz (Shaw, 2001). Uma preocupação sobre a crescente quantidade de crianças de rua no estado tem recentemente sido ecoada. Contudo, a distinção se estas crianças estão na rua ou são de rua, ainda não está clara. Segundo o órgão de serviços sociais do governo, o Desenvolvimento Integrado da Família (DIF), desde 1997 há 2000 crianças de rua no estado de Veracruz e aproximadamente 350 delas vivem nas ruas, e destes 350, acredita-se que 110-120 vivem em Xalapa, a capital (Calcetas-Santos 1998). Habitantes locais que têm interação com as crianças de rua em Veracruz calculam que há entre 150-160 crianças (Benitez 2001, Mundo 2001). O DIF (2002), em seu mais recente relatório, declarou que os números de crianças de rua na capital e no porto estão subestimados. Programas Atuais para Crianças de Rua em Veracruz Como o nome da instituição insinua, a missão do DIF é “promover a integração e o desenvolvimento individual, familiar e comunitário por meio de políticas, estratégias e modelos que privilegiam a prevenção de fatores de risco e vulnerabilidade social...”. Apesar desta missão bem intencionada, parece que o DIF é incapaz ou deliberadamente não está levando a cabo sua promessa, uma vez que não há evidência alguma de seu trabalho com crianças de rua em Veracruz. Em um artigo recente publicado num dos principais jornais de Xalapa, el Diario Xalapa, Dr. Luis Rodríguez Gabarrón, um ex-funcionário da UNICEF e psicólogo especializado em trabalho com crianças, sugere que atualmente não há nenhum apoio para as crianças de rua (Corrêa 2002). Ele aponta explicitamente que a situação das crianças que trabalham ou vivem na rua em Veracruz é tal que urge ação e atenção por parte de todos os níveis do governo. Além disso, ele afirma que não há ninguém no governo cujo trabalho seja diagnosticar os problemas desta importante população. Ele declara que a única coisa que o governo está fazendo para combater o problema das crianças de rua é ordenar as unidades de segurança pública para que retirem as crianças das ruas. Em outras palavras, o governo está ordenando a detenção arbitrária das denominadas crianças de rua problemáticas. Remover as crianças das ruas é uma maneira tão visível e poderosa que acaba dando a impressão à população de que o governo realmente está fazendo algo sobre a situação. Entretanto, simplesmente remover as crianças das ruas não irá milagrosamente resolver o problema. São necessários mecanismos que não só ajudem a prevenir que crianças procurem a rua como moradia, mas que também auxiliem as que já estão lá. Gabarrón também realça o fato de que os direitos civis das crianças estão sendo violados quando estas são detidas sem razão alguma. Ele afirma que remover as crianças das ruas, levando-as para longe de sua fonte de renda (lavando pára-brisas, tomando conta de carros), pode forçá-las a ter 8 de roubar para sobreviver, dessa maneira, reforçando os estereótipos que as pessoas em geral têm das crianças de rua. Segundo o Secretário de Segurança Pública de Xalapa, as organizações nãogovernamentais deveriam ser as responsáveis por resolver a situação das crianças de rua (Correa 2002). Este comentário claramente indica uma falta de vontade política ou capacidade de fazer qualquer coisa em relação à situação. Além disso, delegar essas responsabilidades às ONGs não leva em conta a missão do DIF e os recursos públicos que devem ser usados para ajudar famílias ameaçadas. Segundo os resultados das pesquisas do pesquisador-chefe no Porto de Veracruz, participantes das pesquisas que dormiam nas ruas o fazem devido a problemas com a família. Isto indica que não estão sendo realizados esforços suficientes nas áreas de violência doméstica e outros problemas familiares, que são da alçada do DIF e, conseqüentemente, que o DIF está concentrando suas energias e recursos nos lugares errados. O Programa Cáritas Em novembro de 2001, fiz minha primeira viagem ao Porto de Veracruz para conhecer o Diretor de Cáritas que havia me convidado para ajudar a levar adiante um programa para crianças de rua que ele tinha concebido. Durante esta viagem, eu tive a chance de discutir com o diácono sobre as idéias para o projeto dele e procurei dar-lhe feedback com base em meu conhecimento de programas voltados para crianças de rua. Eu também me encontrei com Josue, diretor de Cogra, uma lanchonete gratuita freqüentada por muitas crianças de rua que vão lá para o almoço. Segundo Josue e alguns diretores de organizações religiosas, há cinco grupos diferentes de crianças de rua em Veracruz, classificadas em função da localização na cidade. Os grupos tendem a se juntar nas áreas mais movimentadas, como a orla turística, o Malecón; ao redor da rodoviária central, a ADO; numa esquina perto do prédio da previdência social, Cuahtemoc e Icazo; no Parque Zaragoza e no Parque Zamora no centro de Veracruz. Durante minha visita em novembro de 2001, considerei que, exceto os trabalhos realizados pela lanchonete, oferecendo refeições e em alguns casos roupa, e por Hogares Calazans, que administra abrigos para jovens ameaçados até 16 anos, nenhum outro trabalho estava sendo feito com as crianças. Basicamente, as crianças de rua foram deixadas à própria sorte. Porém, quando retornei à Veracruz por duas semanas em março de 2002 para conduzir pesquisas de avaliação de necessidades para o programa Cáritas, fiquei sabendo pelo Diretor que uma equipe da Espanha havia chegado recentemente e também estava trabalhando junto à igreja local para estabelecer um programa para as crianças de rua. Este programa não estava afiliado ao Cáritas, embora eu fora apresentado à equipe da Espanha pelo Diretor de Cáritas em uma reunião para discutir mais profundamente o projeto dos espanhóis, compartilhando nossas idéias e opiniões. O programa bancado pelos espanhóis, Casa del Frijol, será localizado numa fazenda a aproximadamente quarenta minutos do Porto de Veracruz. Este programa tem como objetivo permitir que as crianças se desenvolvam longe dos perigos e tentações das ruas, onde elas não só teriam um abrigo, mas também receberiam educação vocacional para prepará-las a conseguirem empregos e com isso, lentamente, abandonarem a vida nas ruas. As casas estão atualmente em construção. Contudo, a equipe já começou a conhecer as crianças, indo às ruas duas vezes por semana dando almoço para as crianças, jogando futebol com elas na praia quando o clima permite e distribuindo roupas semanalmente. Isto segue o modelo tradicional usado em outros programas para crianças de rua, como por exemplo, "Criança no Sol", um caso de sucesso de 9 alojamento e centro de treinamento vocacional longe das áreas urbanas na Tanzânia (Ramarajan 2002). Entre novembro de 2001 e março de 2002, o Diretor de Cáritas havia consolidado sua visão em torno da idéia de um programa de alojamento; porém, desde que fosse localizado próximo ao centro de cidade. Juntamente com alguns outros membros da Igreja de Cristo, Cáritas já havia desenvolvido um plano para construir uma casa na cidade, onde as crianças pudessem morar, deixando para trás a atmosfera das ruas. Em meados de março, o padre da Igreja de Cristo, que também compartilhava a visão do diácono de Cáritas a respeito de uma casa para as crianças de rua, estava no processo de negociar a compra de uma casa. Neste momento, também ficou claro que meu papel de pesquisador-chefe não mais estava voltado para o planejamento, mas sim para fazer recomendações no intuito de garantir a eficiência e sustentabilidade deste programa e de outros a serem desenvolvidos. IV. METODOLOGIA Conforme comprovado pela falta de literatura sobre crianças de rua em Veracruz e pelos comentários do Dr. Gabarrón, o ex-consultor de UNICEF, não existia nenhum estudo formal sobre crianças de rua em Veracruz. Assim sendo, eu planejei uma avaliação de necessidades que seria a base para as recomendações para o programa, fundamentadas nas necessidades e experiências das crianças de rua em Veracruz. Eu também fiz uma análise das partes interessadas, utilizando o modelo de mapeamento de Michael Reich (1993), para sugerir recomendações e ajudar Cáritas a avaliar as posições das principais partes interessadas no programa. Usando diretrizes e sugestões de Lewis Aptekar (1988), Melanio Estela (1994) e Tobias Hecht (1998), projetei três conjuntos de pesquisas. Mais especificamente, realizei pesquisas com as crianças de rua, pessoas que estão trabalhando ou que já trabalharam com crianças de rua e a população em geral, para formar um quadro o mais completo possível da situação de crianças no Porto. Até onde sei, minhas pesquisas de avaliação de necessidades foram as primeiras dessa natureza na região. As pesquisas consistiram em perguntas abertas que permitiram aos participantes falarem tudo aquilo que desejassem. A participação era voluntária e mantida em anonimato. Todas as pesquisas foram administradas verbalmente visando com isso não preconceber a condição literária (alfabetizado ou analfabeto) dos entrevistados. Crianças de Rua As pesquisas foram projetadas visando adquirir um melhor entendimento a respeito da vida cotidiana das crianças e a situação individual de cada uma delas. Conforme discutimos no início, a população de crianças de rua não é homogênea e as diferenças precisam ser consideradas no planejamento de programas voltados para elas. Foram feitas perguntas sobre as razões que levaram as crianças para as ruas, sobre suas relações familiares e sobre suas situações financeiras. As perguntas também tinham como objetivo entender se as crianças estavam ou pertenciam às ruas. Inicialmente, quando eu estava planejando o estudo, eu havia decidido agradecer às crianças que tivessem participado nas pesquisas oferecendo-lhes um pequeno pacote de produtos de higiene pessoal. Entretanto, como em nenhum momento eu estava sozinha 10 com os entrevistados, percebi que eu não poderia lhes dar esse prêmio sem que isto parecesse coercitivo demais e dessa forma, estimulando repostas menos espontâneas ou mais tendenciosas. Embora eu estive em Veracruz por duas semanas, eu tive apenas uma para realizar a pesquisa, em função de pendências com o Comitê de Ética em Pesquisa para a aprovação da mesma. Portanto, passei minha primeira semana em Veracruz utilizando dois métodos distintos para conhecer melhor as crianças de rua da cidade. Eu passei um tempo observando as crianças no Parque Zamora e em Malecón. Em ambos os lugares, permaneci tempo suficiente para que alguns jovens se aproximassem de mim e puxassem conversa, em vez do inverso. O fato deles terem tomado a iniciativa de me abordar garantia que eles não tinham desconfiança de mim. Além disso, conheci alguns dos jovens por intermédio de Josue, na lanchonete Cogra, e por intermédio da equipe espanhola da Casa del Frijol. Eu fui à Cogra quase que diariamente durante uma semana e meia e lá realizei algumas de minhas pesquisas após o horário de almoço. Essa tática se provou mais eficiente pelo fato das crianças que almoçavam lá confiavam em Josue e em sua esposa, Tere, e portanto, eram mais abertas às minhas perguntas. Eu também me aproximava mais das crianças à medida que permanecia mais tempo na Cogra e isso contribuiu para que algumas delas me apresentassem aos seus amigos para que eu também os entrevistasse ou como forma de minimizar as suspeitas que estes poderiam ter de mim. Além disso, Josue, ao apresentar-me para os outros jovens, fazia questão de salientar que eu estava lá sozinho e que não era afiliado ao DIF ou à polícia. Na Cogra, conheci os jovens do Parque Zamora, da esquina próxima ao prédio da previdência social e das redondezas da rodoviária. A equipe da Casa del Frijol também me ajudou bastante ao me apresentar aos jovens do Parque Zamora durante os dois encontros semanais para almoço. A importância de ser apresentado por pessoas que os jovens já conheciam e confiavam foi fundamental. Após conhecer os jovens e antes de realizar as pesquisas, eu fazia questão de explicarlhes o porquê das pesquisas e salientar que as mesmas eram para benefício delas [crianças] e que elas poderiam falar o que quisessem. Nos casos em que os jovens não compreendiam muito bem a razão da pesquisa, eu explicava usando figuras. Eu sempre levava giz colorido, lápis de cera e um caderno novo para brincarmos de “jogo da velha” quando sobrava tempo. Eu também usava o giz para explicar-lhes o porquê de certas perguntas que eu estava fazendo. Eu pegava um pedaço de giz colorido e o representava como aquilo que eu tinha, dava-lhes um giz de outra cor representando o que eles tinham e um outro giz, de outra cor, representando o que eles desejavam ou precisavam. Eu lhes explicava este cenário e depois lhes entregava o giz que estava na minha mão e perguntava como o meu pedaço de giz iria lhes ajudar se o que eles realmente queriam ou precisavam era o outro giz. Após certificar-me de que eles de fato haviam entendido a situação, eu lhes explicava que a razão para a pesquisa era entender exatamente o que aquele terceiro pedaço de giz representava. De uma maneira geral, essa forma de explicação funcionou muito bem, pois era visualizável e mais tangível que uma mera explicação verbal. Pessoas que Trabalham com Crianças de Rua Assim como as perguntas feitas às crianças de rua, as feitas àqueles que trabalham ou trabalharam com crianças de rua, também eram abertas. As perguntas visavam analisar as atitudes das organizações com relação às crianças e avaliar a quantidade de trabalho sendo realizado em Veracruz. Além disso, indivíduos de diferentes organizações também foram 11 perguntados se eles sabiam de outros programas ou pessoas que trabalhavam com crianças, para saber se havia comunicação entre os vários setores da sociedade. População Geral As pesquisas junto à população geral tinham como objetivo compreender como as crianças de rua eram vistas pela sociedade como um todo, pelo fato dessas percepções terem implicações na forma como as crianças são tratadas e como elas reagem. As pesquisas consistiam em apenas três perguntas para que não se tornasse maçante para as pessoas. Além disso, as perguntas davam a possibilidade para que alguns dos entrevistados se alongassem em suas repostas sobre a situação das crianças de rua em Veracruz. Os entrevistados eram primeiramente perguntados sobre o que eles achavam da situação das crianças no Porto, se eles viam as crianças de rua como um problema e o que eles achavam que deveria ser feito para melhorar a situação. Eu entrevistei a população geral em regiões diferentes sempre que possível. Eu escolhia regiões específicas da cidade para entrevistar as pessoas em função da visibilidade das crianças de rua nessas regiões. Escolhi a movimentada área comercial perto da Cogra, já que as crianças permaneciam um bom tempo por lá, o Malecón, já que esta área abriga muitos vendedores locais e é um grande ponto turístico e o Parque Zamora, já que muitas pessoas passam por lá diariamente e os jovens ficam assistindo à TV pelas vitrines das lojas de móveis que existem naquela área. Antes de conduzir cada entrevista eu me certificava de que o entrevistado não estivesse ocupado e, no caso de ambulantes e vendedores, que eu não estivesse atrapalhando as vendas. V. RESULTADOS Crianças de Rua As entrevistas com as crianças de rua forneceram informações muitas vezes contraditórias às opiniões dadas pela população e por profissionais a respeito da situação desses jovens. No total, trinta e oito crianças de rua foram entrevistadas. Dessas 38, 17 abandonaram seus lares devido ao esfacelamento de suas famílias, que geralmente se dava em função de agressões perpetradas pelo padrasto. As outras 21 disseram que deixaram suas casas em função de necessidades econômicas, por que gostavam da atmosfera das ruas ou por que simplesmente assim quiseram. Das 17 crianças que abandonaram suas casas devido a problemas familiares, 11 ainda mantêm contato com suas famílias e 14 dormem nas ruas. Das 21 que disseram que foram para as ruas por outros motivos, apenas 10 dormem nas ruas. Vinte e quatro das 38 crianças trabalhavam para conseguir pelo menos uma de suas refeições realizando tarefas triviais, lavando pára-brisas, tomando conta de carros, vendendo chiclete e balas, ajudando pessoas em suas casas ou ajudando no mercado. Eu também as perguntei como as pessoas geralmente as tratavam nas ruas e a maioria das crianças disse que eram tratadas com indiferença, porém algumas salientaram o fato de que algumas pessoas sempre achavam que elas iriam assaltá-las ou olhavam para elas com medo. Além disso, quase todos os entrevistados disseram que usavam drogas, principalmente cola, aspirada pela boca. A maioria disse que cheirava cola por que gostava ou por que simplesmente queria fazê-lo. 12 Pessoas que Trabalham com Crianças de Rua Os resultados das pesquisas realizadas com pessoas que atualmente trabalham ou que já trabalharam com crianças de rua, mostram que essas pessoas consideram a situação das crianças em Veracruz bastante séria. Os entrevistados mencionaram o esfacelamento das famílias, o clima quente, o turismo e a falta de programas voltados para as crianças como alguns dos principais fatores que tornaram problemática a situação das crianças de Veracruz. Todos concordaram que lidar com a situação é difícil e que algo de fato precisa ser feito. Além do programa proposto por Cáritas, existem apenas dois outros programas voltados para crianças: Cogra e Casa del Frijol. No presente momento, os únicos serviços sendo oferecidos às crianças de rua em Veracruz são as refeições na Cogra, de segunda a sábado, os almoços às quintas e aos sábados oferecidos pelo pessoal da Casa del Frijol e um abrigo sustentado por Hogares Calazans. Apesar do diretor de Hogares Calazans não poder ter sido entrevistado, o trabalho desta instituição consiste em oferecer um abrigo para jovens até 16 anos, um ambiente de lar e disciplina. As crianças que ficam nestes abrigos freqüentam a escola e têm de seguir às regras estabelecidas pelo abrigo. Em relação às ações que precisam ser tomadas para melhorar as condições das crianças de rua, os entrevistados afirmaram que era necessário conscientizar a população sobre a situação, trabalhar com as crianças visando alertá-las de que drogas não são a solução e que deveria haver algum tipo de programa que as ajudassem a conseguir empregos. População Geral Devido ao tempo exíguo para a realização das pesquisas junto à população geral, eu não tive condições de conduzir a quantidade de entrevistas que desejava. Entretanto, realizei as entrevistas em áreas onde as crianças de rua eram mais visíveis: no centro da cidade e na orla marítima, Malecón. Os entrevistados podem ser classificados em duas grandes categorias: pedestres ou funcionários das lojas da região e vendedores ambulantes. A impressão geral sobre as crianças de rua em Veracruz era muita negativa. A maioria dos entrevistados dizia que as crianças tornavam a cidade mais feia e apontavam que isso era em grande parte causado pelo descaso do governo. Muitos entrevistados também disseram que as crianças são um problema não só pelo fato delas usarem drogas, mas também por as usarem em público. Uma outra preocupação mencionada era a de que muitas dessas crianças roubavam. Contudo, algumas pessoas também diziam que as crianças roubavam pois tinham fome. Quando perguntadas sobre o que deveria ser feito para melhorar as condições das crianças de rua em Veracruz, várias pessoas colocaram a responsabilidade sobre o governo. Entretanto, as ações sugeridas iam de simplesmente recolher as crianças e as colocar em abrigos, a idéias de programas que oferecessem trabalho e educação às crianças. Alguns poucos entrevistados culpavam diretamente o DIF e davam a entender que o DIF não estava fazendo absolutamente nada para resolver a situação. No entanto, sendo a culpa do governo ou não, os resultados da pesquisa junto à população revelaram que as crianças são vistas com uma combinação de medo, repulsa e pena. VI. DISCUSSÃO SOBRE OS RESULTADOS DA PESQUISA Uma análise mais profunda sobre os resultados apresentados acima mostra que as percepções sobre as crianças de rua são geralmente equivocadas e não retratam fielmente a 13 situação. Ademais, os resultados também mostram que as necessidades das crianças não estão sendo atendidas pela assistência que recebem. Crianças de Rua Ironicamente, apesar da expressão “criança de rua” ser usada no intuito de classificar esta heterogênea população em categorias mais simplificadas, esta população é, na verdade, mais velha do que o nome sugere. A idade média dos entrevistados é de 20 anos, condição essa que geralmente os impossibilitam de receberem ajuda dos governos devido ao limite de idade de 16 anos. Além disso, este grupo, em média, passara muito tempo nas ruas. Esse tempo excessivo contribui para que eles tenham mais dificuldade em deixar as ruas. O fato deste grupo ser mais velho e ter permanecido um longo nas ruas sugere que há uma nítida falta de serviços e oportunidades para ajudar esses jovens. Ademais, o fato de quase a metade dos jovens abandonou seus lares devido à violência doméstica também indica que há pouco ou nenhum apoio para as famílias ameaçadas. Em sua discussão sobre crianças de rua em Cali, Colômbia, Lewis Aptekar (1988) salienta o fato de que a maioria dos estudos sobre esses jovens cita a violência doméstica como um dos fatores que os levam para as ruas, mas nada citam sobre os jovens que enfrentam a violência em casa e mesmo assim permanecem em casa. No entanto, o fato de que a maioria dos jovens que dorme nas ruas abandonou suas casas devido à violência doméstica sugere que mais trabalhos de prevenção precisam ser postos em prática junto às famílias. Outro fato interessante trazido à tona pela pesquisa mostra que a maioria dos entrevistados trabalha por pelo menos uma de suas refeições; contradizendo a noção geral de que os jovens roubam por estarem com fome. Muitos desses jovens, além de iram à Cogra, a lanchonete que oferece almoços grátis, disseram que realizavam tarefas ou ajudavam em mercados ou lares em troca de comida. Esses jovens são injustamente julgados com base em falsas impressões e imagens estereotipadas que as pessoas têm delas. Um dos pontos altos de minha viagem até Veracruz em março de 2002 foi quando eu acompanhei dois garotos até o estacionamento vazio onde eles dormiam, perto da rodoviária. Quando eu estava na Cogra, o diretor sugeriu pegar os dois garotos para que eles me ajudassem a conduzir as entrevistas com os outros jovens que ficavam próximos à rodoviária já que os dois dormiam no mesmo lugar e portanto, eram conhecidos pelos demais. Os garotos me levaram até o estacionamento, onde pude conhecer e entrevistar o resto do grupo. Não havia nada no estacionamento a não ser um colchão e um lençol velhos e alguns potes e panelas que os jovens usavam para cozinhar. Assim que cheguei lá, um dos garotos mais velhos me ofereceu o lençol para que eu sentasse em cima e não me sujasse e, me trataram com todo respeito. Todos, com exceção de uma jovem, estavam bastante dispostos a conversar comigo. Entretanto, assim que expliquei o propósito de minha pesquisa, usando o giz colorido, e seu namorado lhe dizer que não tinha problema, ela concordou em participar. Ela vendia chocolate durante o dia e, como eu não havia comido nada ainda, perguntei a ela que tipo de chocolate ela vendia e quanto custava. Ela me disse quais os tipos que ele tinha e os colocou no meu colo. Quando perguntei quanto custavam, ela disse que eram um presente. Fiquei surpreso, pois não esperava por tal boa vontade. Eu a agradeci pelos chocolates, mas também lhe disse que não achava justo pegá-los de graça afinal aquilo era seu ganha-pão. Enquanto eles faziam o jantar numa fogueira, também me convidaram para jantar com eles antes de eu partir. Essas atitudes amigáveis eram uma maneira 14 de me tratar com respeito, de forma que eu fizesse o mesmo. Minhas experiências com esses jovens foram totalmente contrárias ao que a maioria das pessoas pensa desses jovens. A maioria dos jovens de fato tenta trabalhar para sobreviver, entretanto, a situação é complicada devido às poucas oportunidades que existem para eles e à desconfiança geral. Ademais, as opiniões negativas sobre as crianças de rua têm implicações profundas na questão da auto-estima das crianças e conseqüentemente atrapalham o desenvolvimento das mesmas. Um outro fator importante é o fato de que a maioria dos jovens que dormia nas ruas não era do Porto propriamente dito, eles vinham de regiões próximas à Veracruz, o que tornava difícil a volta para suas casas com freqüência mesmo que eles desejassem assim fazê-lo. Outro importante fator referente às pesquisas, os jovens, quando perguntados sobre do que mais sentiam necessidade, citavam sempre necessidades básicas como roupa e comida. Pessoas que Trabalham com Crianças de Rua As pesquisas com pessoas que trabalham ou que já trabalharam com crianças de rua claramente indica que boa vontade não falta. Entretanto, elas esclarecem que muito provavelmente os programas não atendem às necessidades das crianças de rua em Veracruz. Quando perguntadas sobre do que mais necessitavam, muitos dos entrevistados disseram que precisavam de comida, sapatos, roupas e ajuda para conseguir um bom emprego. Entretanto, os programas atuais têm nos abrigos um de seus principais componentes. Isso não significa que o que está sendo feito atualmente não é satisfatório, apenas sugere que as ações podem não ser adequadas. Isso se torna ainda mais evidente quando olhamos para a população que afirmou que foi para as ruas simplesmente por que queria ou por diversão. Essa população provavelmente será mais resistente a programas que ela enxergue como “confinantes” embora este não seja o caso de nenhum dos programas. Outro aspecto dos dois programas que surgiu em conversas informais foi o uso de drogas. Contudo, não havia um plano concreto para lidar com a situação. O fato da maioria dos entrevistados serem viciados em cola também ressalta a necessidade de um amplo programa para lidar com uso de drogas e de profissionais qualificados para trabalharem com estes grupos. Conforme discutido na seção anterior, a população de crianças de rua em Veracruz é mais velha, o que também tem implicações na questão da educação sexual. Até onde sei, não havia nenhuma informação sendo disseminada sobre o assunto, embora o mesmo pudesse ser discutido individualmente com um adulto de confiança. Ademais, pelo fato das duas organizações serem religiosas, o assunto pode ser mais difícil de ser abordado pela Igreja do que pelo próprio pessoal. Assim sendo, profissionais treinados em assuntos ligados à saúde ou educadores, poderiam também ser úteis aos programas. População Geral Os resultados das pesquisas junto à população geral ressaltam a forma negativa pela qual as crianças são vistas. Entretanto, é importante salientar que há uma clara diferença em relação à forma pela qual as pessoas vêem as crianças de rua com base em suas experiências pessoais. Por exemplo, pedestres e funcionários de lojas que tinham pouca interação com as crianças tendiam a se referir com maior repulsa em relação às crianças, dizendo que elas deixavam a cidade mais feia. Os comentários deles tinham uma forte conotação negativa. Em um dos casos, quando eu estava me familiarizando com as crianças em Malecón, perguntei a um homem se ele sabia onde 15 ficava a maioria das crianças. Ele apontou para o outro lado da rua onde alguns meninos mergulhavam para pegar moedas que os turistas e pedestres jogavam, e perguntou se eu me referia aos viciados “que não serviam para nada”. Em outra ocasião, quando eu estava explicando a razão de minhas pesquisas a outro pedestre, o mesmo homem entrou na conversa pra explicar exatamente a qual grupo eu estava me referindo, mais uma vez usando insultos. Por outro lado, descobri que os vendedores de alimentos em Malecón eram mais solidários e sensíveis em relação às crianças de rua em Veracruz. Embora muitos deles considerassem que as crianças de rua fossem um “problema”, eles também tinham noção de alguns dos fatores econômicos que levavam as crianças a permanecerem nas ruas. Um entrevistado respondeu que era uma combinação de baixos salários e as promessas vazias do prefeito. Ele continuou, citando o atual slogan de Veracruz, ‘Limpa e Linda’, e afirmou que se o prefeito quisesse ver um porto bonito, o governo teria de começar com os vendedores. Se os vendedores não têm permissão para vender suas mercadorias legalmente, estes se voltarão para a venda de drogas ou outros produtos ilegais, pois assim conseguirão maior faturamento. Outro vendedor, que às vezes dava sanduíches às crianças de rua, reconheceu o valor do envolvimento comunitário e disse que a comunidade precisava cooperar para que fosse viabilizado um centro de reabilitação. Outra questão que surgiu nas entrevistas com a população geral e algumas vezes em conversas e entrevistas com os jovens, era o sentimento geral de que as crianças de rua deveriam ser removidas. Isso insinuava que simplesmente retirar as crianças das ruas resolveria o problema. As atitudes de certos oficiais de segurança pública reforçavam esse sentimento. Por exemplo, nas duas ocasiões em que tentei entrevistar alguns policiais que estavam patrulhando o centro da cidade, eu fui tratada com apreensão. Um dos policiais se recusou a falar qualquer coisa argumentando que não tinha permissão para falar sobre a questão das crianças de rua e disse para que eu entrevistasse outras pessoas. O outro policial respondeu que o assunto não era responsabilidade dele e que ele fazia apenas aquilo que o governo mandava e zelava pelos interesses da população. Essa questão chamou mais ainda minha atenção na ocasião em que eu estava no parque central com um grupo de jovens e dois policiais nos retiraram dali só por que estávamos conversando em grupo. Os jovens foram vistos como ameaças, mesmo sem culpa de nada quando estavam apenas almoçando e passeando. Numa terceira ocasião, eu estava caminhando com cinco jovens no parque para pagar-lhes um sorvete, como forma de agradecimento pela ajuda que me deram, quando um dos policiais que estava do lado de fora da delegacia disse aos garotos que eles não podiam ficar ali. Disse que eles não podiam caminhar pelo parque. Os jovens estavam apenas andando pelo parque e foram tratados como se não fossem cidadãos. Parece que tanto a população geral quanto a polícia estão reforçando os preconceitos e estereótipos que têm das crianças; em vez de melhora a situação, estão de fato tornando-a ainda pior. VII. RECOMENDAÇÕES Os resultados das pesquisas realçam a série de fatores que afetam a situação das crianças de rua em Veracruz. A princípio, existe uma diferença generalizada entre aquilo que as crianças querem e precisam e aquilo que lhes é oferecido pelos programas e serviços existentes. Ademais, interpretações equivocadas em relação às crianças e os resultantes maus tratos a elas mostram como as crianças não estão sendo tratadas com o devido respeito e conseqüentemente têm dificultada a progressão de suas vidas. Outro fator importante que também ficou nítido nos 16 resultados da pesquisa é o fato de que aquelas a serem beneficiadas pelo programa, as crianças e rua, não eram envolvidas no processo de planejamento dos programas tampouco tinham voz no que diz respeito à estrutura e ao conteúdo dos programas. O Projeto Axé, um dos programas de maior sucesso, é um ótimo exemplo de programa que tem nos seus beneficiários seu ponto mais forte. Este programa não apenas têm um forte componente de prevenção, como também possui um excelente sistema de educação de rua que serve como incentivo ao ingresso no programa. A premissa do Projeto Axé é “estimular a criança a ter interesse pela escola por meio de atividades artísticas e recreativas, bem como outras formas não-tradicionais de ensino” (BID 2001: 41). Como Tobias Hecht eloqüentemente aponta em seus estudos com crianças de rua, essas crianças são atores sociais e podem ser agentes de mudança. Elas não são necessariamente delinqüentes ou crianças necessitadas como a maioria das pessoas tende a vê-las, afinal, somente se tratadas dessa maneira é que elas se comportarão como tal. Essas crianças são capazes de tomar suas próprias decisões, mas precisam que lhes sejam dadas as ferramentas e oportunidades apropriadas para fazê-lo. Essas ferramentas incluem, mas não se limitam, a um aumento da autoconsciência e auto-estima. Portanto, para criarem-se programas mais eficazes e sustentáveis para as crianças de rua, ações e/ou intervenções têm de ser feitas em quatro níveis diferentes: institucional, comunitário, das crianças de rua e familiar. A próxima seção fará uma análise mais profunda das ações/intervenções que devem ser feitas em cada nível. Recomendações para o Programa – Ações e Intervenções Crianças de rua Uso de Drogas Embora a melhor maneira de controlar e impedir o uso de drogas entre as crianças de rua seja a de intervir antes que elas tenham chance de se tornarem viciadas ou antes de passarem a usar substâncias mais “pesadas”, é importante reconhecer o fato de que um número crescente de crianças estão se tornando viciadas, principalmente em cola (Griesbach Guizar e Sauri Suárez 1997). Devido ao longo tempo que as crianças em Veracruz já passaram nas ruas, é provável que muitas delas já sejam viciadas em cola. Entretanto, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez (1997) indicam que é muito difícil isolar os vários fatores que levam ao uso de drogas, como por exemplo, os determinantes sociais, econômicos, culturais e políticos. Assim sendo, Cáritas terá de concentrar esforços no estabelecimento de um programa para lidar com o uso de drogas, principalmente cola, que é a substância mais usada em Veracruz. Embora pouco tenha sido feito em relação à questão do uso de drogas entre as crianças de rua, a norma vigente nos programas tem sido a de proibir o consumo, porém não necessariamente ajudando as crianças a abandoarem o vício. Como o uso de drogas está geralmente associado ao ambiente das ruas, alguns programas como o Ednica na Cidade do México e o Projeto Axé em Salvador, Brasil, esperam que a participação no programa eventualmente conduza as crianças de rua a viverem melhor fora das ruas e com isso tomarem suas próprias decisões de abandonar as drogas. Apesar de ser um esforço válido, este pode ou não dar certo com as crianças de rua em Veracruz, simplesmente pelo fato delas já terem passado muito tempo nas ruas. No entanto, devido ao fato da população de crianças de rua em Veracruz ser relativamente menor se comparada às de regiões metropolitanas, mais atenção pode ser dada à combinação dos fatores que resultam nas decisões individuais de consumir drogas e, com isso, ser mais efetiva. 17 Griesbach Guizar e Sauri Suárez (1997) também ressaltam que certos tipos de programas e intervenções importantes tais como comunidades terapêuticas, grupos de auto-ajuda, reintrodução ao núcleo de uma família (anfitriã) e, finalmente, mudança de comportamento. O tipo de programa escolhido depende das necessidades das crianças de rua, quão receptivas elas são com cada programa e quão eficiente cada programa é no tratamento das principais causas que levam ao uso de drogas. Outro importante fator que não pode passar despercebido é o fato de que em algum momento, essas crianças de rua fizeram uma decisão consciente de começar a usar drogas e sua decisão de parar também deve ser respeitada. Assim sendo, a abordagem usada deve fazer com que as crianças sintam como se elas estivessem tomando a decisão de parar, em vez de impor essa condição a elas. O fato das crianças serem incluídas no processo de decisão não só é um dos pontos fortes do Projeto Axé no Brasil, mas também é um dos principais fatores no incentivo à saúde infantil. Segundo alguns profissionais da área de saúde, com base em seus comentários na Carta de Ottawa para Promoção da Saúde (Ottawa Charter for Health Promotion). E a “Convenção dos Direitos da Criança”, o envolvimento ativo dos jovens em seus ambientes têm um significante valor de incentivo à saúde. Não tratá-los como objetos dependentes de intervenções por parte de adultos, mas envolvê-los como peças ativas e competentes no planejamento das intervenções... também lhes dá o sentimento de que elas podem tomar conta de si mesmas e de sua saúde (de Winter et al. 1999: 19). Isto é extremamente importante ao lidar com crianças de rua principalmente se considerarmos o fato que de que a sociedade como um todo as trata como se fossem inúteis, incapazes de ajudar a si mesmas. Este sentimento certamente apareceu nas pesquisas junto à população geral em Veracruz. Quanto mais as pessoas tratarem as crianças de certa forma, maior a probabilidade das crianças passarem a agir dessa forma. Percebam, contudo, que isso não significa que é fácil para uma pessoa viciada em cola parar de cheirá-la. Drogas inaláveis (i.e., cola) estão amplamente disponíveis para as crianças de rua e custam barato. Segundo o Departamento de Saúde de Nova Jersey (EUA), os principais efeitos causados pelo uso de drogas inaláveis são falta de memória recente, perda de audição, espasmos, danos cerebrais, danos à medula óssea, risco de morte súbita e intoxicação. A maioria das crianças de rua viciadas em drogas inaláveis muito provavelmente não sabem as conseqüências a longo prazo ou então não conseguem pensar além dos prazeres imediatos que as drogas lhes trazem. Drogas inaláveis têm ação imediata na medida em que os pulmões jogam-na diretamente na corrente sangüínea e cérebro (Casa Alianza 2000). O fato do prazer ser mais tangível que os efeitos a longo prazo ressalta a urgência não apenas de programas voltados para a questão do uso de drogas, mas também de educação sobre os perigos dos efeitos colaterais. Lidar eficazmente com a questão do uso de drogas entre crianças de rua em Veracruz significa estabelecer parcerias com centros de reabilitação na cidade, dispostos a lidarem com crianças à medida que estas se comprometem com o programa. Independentemente das crianças se comprometerem com o programa, elas devem ser informadas sobre os perigos das drogas. Ademais, os programas também devem procurar entender as razões que levaram cada criança a consumir drogas. O programa Cáritas, contudo, precisa ter cuidado para não se tornar muito coercitivo. O programa deve ser aberto a qualquer um que gostaria de uma chance de aproveitar os benefícios que o programa oferece, tais como abrigo, trabalho com famílias, educação etc. Porém, uma vez que a criança decide fazer parte do programa, um acordo entre ela e o programa Cáritas deve ser firmado, citando claramente as responsabilidades assumidas ao ingressar no programa, como por exemplo, não consumir drogas quando estiver no abrigo. Essas responsabilidades, entretanto, 18 terão de ser melhor detalhadas pelo Cáritas em conjunto com outras organizações parceiras. Cáritas talvez precise contratar alguém cujo trabalho seja especificamente o de monitorar e avaliar o progresso daqueles que estão participando do programa. Educação Sexual Embora as pesquisas com crianças de rua tenham gerado algumas informações sobre o fato de algumas delas serem sexualmente ativas, este assunto era notadamente ausente das pesquisas realizadas com as organizações que cuidavam das crianças. Isso se torna preocupante à medida que considerarmos que as organizações que mais lidavam com as crianças de rua em Veracruz eram afiliadas a instituições religiosas e podiam não estar muito dispostas a oferecerem educação sexual. Por ser uma questão delicada, esta seção fará uso de uma abordagem baseada nos direitos humanos para defender a absoluta necessidade de oferecer educação sexual face à incidência crescente do HIV/AIDS no mundo. Ao trabalhar com crianças de rua e defender, para benefício delas, a educação sexual, é importante reconhecer e fazer um esforço para compreender az razões pelas quais elas se tornam sexualmente ativas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), crianças de rua fazem sexo (por vontade própria ou não) pelas seguintes razões: por satisfação, por poder, iniciação e como punição. Embora os motivos e significados relacionados ao sexo variem, o fato de que as partes envolvidas precisam saber a respeito e praticar o sexo seguro não pode ser ignorado. Casos em todo mundo mostram que isto está acontecendo, prova de que as partes envolvidas devem ir além de simplesmente pregarem a abstinência sexual. Amartya Sen sugere que desenvolvimento não é simplesmente tornar-se rico ou conseguir bens materiais. Ao invés disso, é o aumento da quantidade de opções que uma pessoa dispõe que caracteriza o seu desenvolvimento (Marks 2000). Tais opções são referidas como capacidades. Essas opções são ferramentas com as quais as pessoas podem melhorar suas vidas. Três elementos que causam a privação básica de capacidades são a mortalidade prematura, a má nutrição e o analfabetismo. Como ressaltado por Martha Nussbaum, as capacidades têm um direito humano correspondente. Em outras palavras, quando uma pessoa é privada de uma capacidade, um direito humano está claramente sendo violado. As capacidades mais pertinentes à situação particular das crianças de rua e os perigos da contração e transmissão do HIV/AIDS (e outras doenças sexualmente transmissíveis) são a vida, a saúde e a integridade física – capacidades que são mais ainda comprometidas quando se usa drogas. O direito à vida, como citado no Artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é violado quando uma pessoa é impedida de viver uma vida plena e saudável. Morrer prematuramente ao contrair-se HIV/AIDS em condições que poderiam ser evitadas por meio da disponibilidade de informação, acesso a preservativos, bem como a habilidade de usar as informações disponíveis para manter um bom estado de saúde, podem ser considerados uma violação. Ademais, o Artigo 25 da Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que declara que as pessoas devem ter acesso (não devem ser privadas de) ao “nível mais alto possível de saúde mental e física”, e o Artigo 24(1) da Convenção dos Direitos da Criança, que declara que “nenhuma criança deverá ser privada de acesso ao mais alto nível de saúde disponível”, são também violados quando crianças de rua são negadas acesso a informações sobre a prática de sexo seguro – informações estas que poderia salvar-lhes a vida. O modelo de capacidades tal qual ilustrado pela violação de direitos acima descrita, ressalta as responsabilidades do governo de satisfazer, proteger e assegurar os direitos humanos. 19 Não só tem a obrigação de assegurar que pessoas tenham acesso a informações e conhecimentos, mas também, assegurar que as pessoas possam tomar suas próprias decisões. Sem acesso a informações adequadas sobre sexo seguro, as crianças de rua não conseguirão tomar decisões acertadas de forma a praticar suas capacidades. Programas de sucesso voltados para crianças de rua, como o Projeto Axé e Grupo Transas do Corpo no Brasil e el Caracol na Cidade do México, vêm obtendo sucesso por que levam em consideração a realidade das crianças de rua e trabalham dentro dos limites dessa realidade particular (Shaw 2002). Não faz sentido algum para as crianças receber informações sobre os benefícios da prática de sexo seguro quando estas já são sexualmente ativas. Pregar a abstinência sexual não permitirá que elas aprendam sobre sexo seguro tampouco lhes dará a capacidade de poder optar pelo sexo seguro. Como mencionado acima, há várias organizações na região que fazem um excelente trabalho na área de saúde sexual. Transas do Corpo (TC) no Brasil, por exemplo, tem um amplo programa que focaliza principalmente o sexo, devido à falta de informações, principalmente para as crianças mais pobres (Shaw 2002). TC também utiliza a educação entre pares como forma de incentivar as crianças a assumirem o controle sobre sua educação, mas também como forma de mais eficazmente comunicar com os colegas. Tal programa seria eficaz em Veracruz uma vez que poderia aliviar a pressão sobre Igreja de ter de tratar de um assunto tão delicado. Além disso, se Cáritas firmar parcerias com organizações de saúde, como por exemplo o DIF, ele poderia também contratar alguém para incentivar as crianças a conversarem sobre saúde sexual. El Caracol tem feito um trabalho inovador não só na avaliação do comportamento sexual das crianças, mas também na avaliação do quanto elas sabem sobre o tema (Perez Garcia 2001). Eles também fornecem informações sobre sexo seguro de maneiras mais facilitadas e customizadas para os interesses das crianças, como por exemplo, um gibi que trata da vida sexual de jovens adolescentes, o qual tem o duplo propósito de ensinar sobre o uso de preservativo além de oferecer um jogo de cartas que representa situações (boas e más) da vida real, sobre saúde sexual. El Caracol tem um kit contendo os materiais acima mencionados, incluindo um guia para educadores disseminarem práticas de sucesso. O diretor de el Caracol já expressou seu interesse em conduzir um seminário de treinamento para educadores de saúde sexual em Veracruz (Perez Garcia 2001). Educação e Treinamento Vocacional O longo tempo que muitas das crianças de rua em Veracruz já passaram nas ruas também ressalta o fato de que muitas delas ou não estão mais na escola ou não receberam educação suficiente. Ademais, o fato de que muitas desempenham atividades como realizar tarefas triviais, lavar e tomar conta de carros, engraxar sapatos e vender chiclete e bala sugere que elas não possuem as habilidades vocacionais para obterem um emprego melhor ou não têm a oportunidade de consegui-lo devido à sua condição de “criança de rua” e a sua precária situação financeira. Embora Casa del Frijol esteja incluindo um programa vocacional, nem todas as crianças de rua necessariamente optarão por participar do programa, principalmente se elas estiverem nas ruas pelo ambiente que a rua oferece e pelo prazer de estarem na cidade. Portanto, Cáritas também deve trabalhar em parceria com as escolas para integrar um componente educacional ao seu programa. Um primeiro passo, entretanto, para avaliar o interesse pela educação e habilidades vocacionais, e pelo programa em si, é abordar as crianças em seu ambiente, ou seja, as ruas. O método de educação na rua tem obtido grande sucesso no Projeto Axé, entre outros. A idéia por 20 trás da educação na rua é estimular as crianças no ambiente em que elas se sintam confortáveis para assim estabelecer-se uma relação com elas. O objetivo da educação na rua é possibilitar que as crianças aprendam sobre coisas que de fato lhes serão úteis na vida (Bianchi 2000). Os métodos usados pelo Projeto Axé estão baseados na teoria Lacaniana sobre desejo e a teoria educacional Freiriana de possibilitar que as crianças assumam a responsabilidade de seu próprio aprendizado. Segundo Wallerstein et al (1999), dizer às crianças o que fazer ou o que não fazer faz com que elas assumam total e individual responsabilidade por seu comportamento face às condições sociais que alimentam o sentimento de incapacidade e alienação (195). O Projeto Axé busca combater esse efeito com o conceito Freiriano de fazer com que as crianças de rua se tornem agentes de seu próprio aprendizado e não um recipiente enchido pelo conhecimento dos professores (Wallerstein et al 1999: 197). Esse método estimula a participação ativa das crianças e com isso gera um maior interesse no desenvolvimento pessoal de cada uma. Espera-se que em última instância, as próprias crianças determinem o que elas querem aprender. Afinal, elas só poderão de fato colher os benefícios da educação se elas considerarem que tal será útil a elas. Assim sendo, Cáritas, dentro de seu componente educacional, deve estimular um ambiente que permita as crianças escolherem o que elas gostariam de aprender e, fica a cargo de Cáritas, atender a essas vontades. Família Esfacelamento familiar, geralmente devido à violência doméstica, foi também um ponto que surgiu diversas vezes na pesquisa com crianças de rua em Veracruz. Entretanto, este importante fator parece ter sido negligenciado por aqueles que trabalham com as crianças. Essa omissão pode ser devida ao fato de acharem que a responsabilidade de trabalhar junto ás famílias seja do DIF ou que isto seja algo fútil haja vista que quase a metade dos indivíduos entrevistados citou problemas familiares como sendo a razão por terem abandonado seus lares. No entanto, um importante fator que previne as crianças de irem para as ruas é o trabalho no nível familiar, fortalecendo o desenvolvimento das crianças no núcleo familiar (BID 2001). Ademais, uma vez a criança estando na rua, trabalhar com as famílias pode levar às crianças a abandoarem as ruas devido a um melhor relacionamento em casa (Bianchi 2000, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez 1997). O trabalho de Ednica com crianças de rua, crianças essas sob risco de permanecerem nas ruas, e suas famílias, visa melhorar a dinâmica familiar no sentido de fazer com que todos achem seu espaço e identidade no núcleo familiar de forma a satisfazer suas necessidades físicas, emocionais e afetivas (Griesbach Guizar e Sauri Sánchez 1997: 239). O programa consiste em quatro componentes distintos, o primeiro sendo a identificação de famílias que precisem de apoio externo. O segundo componente inclui grupos de apoio e aulas para os pais, abordando diversos assuntos, como por exemplo, como lidar com os problemas relacionados à educação dos filhos. Em vez de simplesmente fornecer informações, essas aulas procuram ensinar os pais diferentes formas de resolver os problemas em casa. O terceiro componente inclui terapia familiar quando a dinâmica familiar é tal que nem os grupos de apoio nem as aulas são suficientes para aprender a lidar com os problemas do dia-a-dia. O ultimo componente, e talvez o mais importante para a comunidade como um todo, é o treinamento de “promovedores de famílias” da própria comunidade, com o objetivo de fortalecer a comunidade e ajudá-la a buscar suas próprias soluções para os problemas de forma a não depender de fontes externas que podem ou não estar disponíveis. Outra vantagem de ter promovedores da própria comunidade é a possibilidade de 21 melhor se identificar as famílias que, de outra forma, não teriam sido enxergadas por organizações de fora. A discussão acima ressalta o fato de que o trabalho no nível familiar é uma parte crucial do trabalho com as crianças de rua e com aquelas sob ameaça de permanecerem nas ruas. Entretanto, devido à falta de experiência de Cáritas nessa área, ao fato de que muitas das crianças de rua em Veracruz vêm de outras cidades e à presença de várias agências locais do DIF, sugere que pode ser mais vantajoso para Cáritas formar uma parceria com o DIF no trabalho junto às famílias. O DIF tem o pessoal e o conhecimento para conduzir trabalhos com as crianças de rua e suas famílias. O DIF pode não apenas trabalhar com as crianças que estão na rua, mas também podem desempenhar um importante papel no fortalecimento das famílias daquelas [crianças] ameaçadas de irem paras as ruas, com isso, evitando com que mais crianças optem por morar nas ruas em vez de com suas famílias. Comunidade Como evidenciado pelas pesquisas com a população geral, muito trabalho ainda precisa ser feito no nível da comunidade para derrubar os preconceitos contra as crianças de rua e fortalecer as redes sociais da comunidade. Ednica reconhece que o trabalho com crianças de rua não pode ser feito apenas no nível institucional, mas que precisa ser melhorado e complementado pelo apoio no nível comunitário. Os resultados das pesquisas em Veracruz mostram que as imagens mais fortes das crianças são aquelas que as retratam como delinqüentes ou casos perdidos que precisam de ajuda. Essas imagens influenciam a forma pela qual a sociedade as trata. Por exemplo, as pessoas que vêem as crianças como delinqüentes as tratam como se elas fossem reles membros da sociedade e que não merecem o respeito e os direitos dados aos cidadãos comuns. Por outro lado, aqueles que vêem as crianças como casos perdidos podem tentar ajudá-las dando-lhes folhetos para distribuir, ações que, como essa, se tornam parte da rede de sobrevivência das crianças nas ruas. Essas pessoas não percebem que suas boas intenções, embora agradem as crianças num primeiro instante, acabam contribuindo para que as crianças continuem a viver nas ruas. Ao contrário das imagens das crianças de rua tidas pela comunidade, as pesquisas com as crianças de rua em Veracruz revelam que muitas delas, quando não estavam comendo na lanchonete, estavam trabalhando para conseguir alimento e também mostram que as crianças não praticavam comportamentos delinqüentes, como por exemplo, roubar. A diferença entre as imagens das crianças de rua e a realidade claramente indica a necessidade de ação no nível comunitário. Griesbach Guizar e Sauri Suárez (1997) apontam que trabalhos institucionais com crianças de rua, sem o envolvimento da comunidade, correm o risco de ter o bem-estar das crianças exclusivamente dependente das instituições. Uma das principais ações recomendadas por Ednica é sensibilizar as redes sociais das crianças de rua, as pessoas com as quais elas interagem no dia-a-dia. O objetivo disso é mudar essas imagens equivocadas a respeito das crianças por meio do envolvimento da comunidade no processo de educação. Por exemplo, Grieshbach Guizar e Sauri Suárez sugerem que os membros da comunidade podem começar por mudarem a forma pela qual eles tratam as crianças de rua, como por exemplo, em vez de tratá-las mal ou entregar-lhes folhetos para distribuir, poderiam dar emprego a essas crianças, em troca das crianças concordarem em não usar drogas ou manterem uma boa aparência. Esse tipo de troca não apenas ajuda a melhorar o relacionamento das crianças com a comunidade vizinha, 22 mas também tem o potencial de melhorar a auto-etima das crianças e combater estereótipos negativos. O BID, em sua campanha “Não me Chamem de Criança de Rua”, fortemente conclama estratégias de divulgação para combater as imagens negativas a respeito das crianças de rua. Eles produziram um vídeo que ressalta alguns dos mais eficientes e inovadores programas da região e recomendam usar o vídeo como forma de iniciar diálogos sobre a situação das crianças de rua nos vários setores da sociedade. Ademais, eles também sugerem que uma coletiva de imprensa pode ser uma forma eficaz de atingir uma maior audiência via diferentes formas de comunicação de massa. Cáritas pode utilizar os diferentes elementos da campanha e destacar um membro da comunidade para liderar o esforço em conjunto com outras organizações que trabalham com crianças de rua em Veracruz. Somente após ter sensibilizado o público a respeito da complexa situação das crianças de rua, é que mudanças poderão ser feitas na forma com que as pessoas interagem e tratam essas crianças. Recomendações Institucionais (para os serviços de Cáritas) Na discussão acima sobre as várias questões que precisam ser abordadas quando se planeja um programa de sucesso e sustentável para crianças de rua, embora sejam necessários diferentes métodos, todos têm em comum a necessidade de uma abordagem mais participativa em todos os níveis da sociedade, mas especialmente entre as próprias crianças de rua; a necessidade de se reconhecer e respeitar os direitos humanos fundamentais das crianças de rua como uma parte crítica do trabalho sendo feito com elas; e, finalmente, a necessidade de fortalecer parcerias locais entre a sociedade civil, as outras organizações que trabalham com crianças de rua e o governo. Quando refletir sobre as recomendações acima, é muito importante que Cáritas tenha muito claro quais são as metas e objetivos de seu programa em todas as fases do processo de planejamento. Manter a visão do programa tem contribuído para o sucesso de programas como o Projeto Axé no Brasil e Ednica e el Caracol na Cidade do México. Cáritas deve continuamente avaliar sua evolução e analisar se as metas estipuladas estão sendo alcançadas. Além das recomendações para o programa, esse relatório também apresenta uma análise das partes interessadas visando ajudar Cáritas a identificar as áreas em que precisa fortalecer o relacionamento com os vários setores da sociedade. VIII. ANÁLISE DAS PARTES INTERESSADAS Quando se planeja um programa social é crucial estar ciente dos vários agentes que compartilham o mesmo espaço e podem ser determinantes do sucesso ou fracasso do programa. A seção abaixo apresenta uma análise das posições dos vários agentes que são cruciais para o sucesso do programa de Cáritas e faz uma avaliação das potenciais partes interessadas por meio do modelo de mapeamento de Michael Reich. Setor Político O governo de Veracruz irá se beneficiar muito de um forte programa de intervenção para as crianças de rua uma vez que o programa irá contribuir diretamente para uma sociedade mais sadia e produtiva. Uma sociedade apoiada fortemente por todos os seus cidadãos possibilitará melhores vidas para todo mundo. Ademais, o governo de Veracruz tem incentivos adicionais 23 para apoiar este programa uma vez que poderá alavancar sua meta de conseguir uma “Veracruz mais Limpa e Bonita”. Entretanto, o Governo de Veracruz e o setor político provavelmente dariam um apoio apenas mediano ao programa, pois com base na atual falta de ações governamentais voltadas para as crianças de rua, este setor da sociedade não constitui uma prioridade. Cáritas teria de conseguir seu apoio por meio de parcerias com órgãos do governo como o DIF além de ter de realizar mais ações governamentais em áreas complementares tais como aconselhamento familiar, violência doméstica etc. antes de conseguir qualquer acesso a recursos do governo. Da mesma forma, se o programa tiver o apoio financeiro do BID e outras agências, o governo daria mais apoio, principalmente se isto garantir recursos do BID para outros projetos no futuro. ONGs e Outras Organizações Locais As ONGs e outras organizações locais descritas nesse relatório também apoiariam o programa uma vez que crianças de rua e aqueles sob ameaça de permanecem nas ruas estariam sendo ajudadas. Ademais, quanto mais Cáritas focar em seu programa, mais as ONGs poderão direcionar seus recursos naquilo que elas realmente fazem bem, em vez de ter de realizar grandes esforços com poucos recursos e pessoal. Crianças de Rua e Crianças Ameaçadas de Permanecerem na Rua Este grupo pode ser classificado como tendo alta prioridade e grande interesse no programa uma vez que seria o maior beneficiário do programa. Porém, este é o mesmo grupo que atualmente tem a menor participação no programa. No entanto, o sucesso do programa depende da receptividade desse grupo. A quantidade de apoio que o programa receberá deste grupo dependerá da relação dos indivíduos com o Cáritas e quão bem atendidas forem suas necessidades e desejos. Famílias Assim como o grupo acima, as famílias também têm alta prioridade e grande interesse no programa uma vez que são beneficiárias indiretas. O sucesso do programa também depende da receptividade das famílias ao trabalho sobre violência doméstica e sua predisposição para participar ativamente nas vidas de suas crianças. Setor Comercial O setor comercial pode ser considerado como tendo baixo ou médio interesse em apoiar o programa, uma vez que não é amplamente mobilizado e muito provavelmente esteja mais preocupado com sua condição financeira do que com as condições das crianças de rua. Entretanto, uma campanha de alerta em apoio ao programa, que explique de que outras formas as crianças de rua podem contribuir para a sociedade e para a economia, pode aumentar o apoio por parte do setor comercial. A parte do setor comercial que provavelmente não apoiaria o programa para crianças de rua seria aquela que se beneficia do lucro que esta pode auferir da utilização das crianças como mão-de-obra barata e da condição destas de principais consumidores de cola. Em geral, o apoio 24 por parte deste setor pode ser considerado baixo pra médio, e o nível de comprometimento provavelmente seria baixo. Setor Social O apoio por parte da sociedade pode ser classificado de acordo com o status sócioeconômico. Populações de baixa renda tendem a apoiar mais do que aqueles das classes média e alta uma vez que se solidarizam mais com a situação das crianças de rua. Contudo, se as classes media e alta pudessem ser convencidas de que elas também podem se beneficiar de tal programa, talvez assim estas pudessem se predispor a ajudar o programa. No entanto, o setor social, de uma forma geral, é muito desorganizado. Agências Internacionais Entre as agências internacionais, a única que apóia ativamente o trabalho voltado para as crianças de rua é o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento (BID). Como o BID está atualmente firmando parcerias com ONGs na América Latina para o lançamento da campanha “Não me Chame de Criança de Rua”, com o objetivo de derrubar preconceitos sobre essa população heterogênea, ele daria bastante apoio ao programa. A UNICEF, embora trabalhe com crianças e adolescentes, não mais vêem as crianças de rua como uma alta prioridade, ao invés disso, seu trabalho atual é focado em órfãos da epidemia de AIDS (Shaw 2002). Contudo, se Cáritas obtiver sucesso em conseguir apoio internacional, isso lhes daria mais poder no planejamento dos governos local e federal. Rede de Políticas A análise das partes interessadas mostra que há potencial de grandes interações em parcerias entre ONGs e o governo, principalmente entre Cáritas e agências locais do DIF. Uma vez que esse programa pode ser apoiado pelo BID, o banco também poderia ajudar na formação de parcerias mais sólidas entre as ONGs e o governo. Além disso, levando-se em consideração a estrutura de poder dos três principais grupos de influência: BID, governo e ONGs, o BID, como organização de apoio, pode fazer com que o governo se responsabilize pelo desenvolvimento de serviços complementares que terão efeitos sobre as crianças de rua, tais como aconselhamento familiar e intervenções à violência doméstica. Em relação aos outros setores da sociedade, como o comercial e o social, se estes conseguissem enxergar como eles poderiam se beneficiar de tal programa, embora indiretamente, eles poderiam ser mobilizados a exercerem pressão sobre agentes importantes tais como os representantes do governo. Avaliação de Transições e Estratégias de Mudanças No presente momento, não há nenhuma transição ou mudança importante sendo feita em Veracruz que possa afetar a implementação do programa Cáritas. Na verdade, recentes reportagens sobre a situação das crianças de rua em todo México (Correa 2002, Caballero 2002) têm ajudado no desenvolvimento de uma consciência sobre a situação e, com isso, pondo mais pressão sobre o Governo para que aja a respeito. O aumento do número de reportagens sobre a 25 situação das crianças de rua espera-se que poderá levar a um aumento do relato da situação em termos de uma resposta holística à situação. Para que este programa atinja seu potencial máximo, ele terá de ser entendido em diferentes termos por diferentes setores da sociedade. Por exemplo, para assegurar o apoio dos setores políticos e governamentais, este programa poderia enfatizar o bom trabalho e comprometimento deste setor com a população, e com isso, conseguir mais apoio internacional para futuros programas e projetos. Além disso, o apoio direto do BID claramente ressalta a importância de tal programa para a sociedade como um todo. Ademais, tal programa pode ser “vendido” aos setores comerciais e sociais como uma solução que irá melhorar as condições de vida da população em geral. No caso de Veracruz, aqueles que se solidarizam com a situação das crianças de rua, como os vendedores ambulantes, o apoio deles ao programa poderia também lhes beneficiar. Para esse setor, podem ser enfatizadas as vantagens econômicas que poderiam ser auferidas como resultado do desenvolvimento de uma população mais ativa e produtiva. Contudo, muito cuidado deve ser tomado para que as crianças de rua, aqueles sob ameaça de permanecerem nas ruas e suas famílias não sejam negligenciadas no processo de convencimento dos agentes principais sobre a importância do programa, pois são eles que, em última instância, determinarão o sucesso do programa. IX. LIMITAÇÕES Uma limitação desse estudo, que pode ser endereçada mais adiante por Cáritas, diz respeito ao curto espaço de tempo no qual foram realizadas as pesquisas. Este tempo tem implicações na validade de algumas das respostas das pesquisas, principalmente aquelas dadas pelas crianças de rua. Como conseqüência disso, respostas tendenciosas (i.e., responder aquilo que o entrevistador supostamente quer ouvir) podem ter sido um fator importante a ser considerado se as crianças de rua não tivessem se sentido confortáveis conversando com o pesquisador-chefe. Ademais, devido ao fato do pesquisador-chefe ter idade mais próxima às das crianças de rua ao contrário das pessoas com as quais elas estão acostumadas a trabalhar, alguns entrevistados podem ter exagerado ou minimizado a realidade das condições e experiências que vivem se eles imaginaram que isso de alguma forma poderia ter efeito sob a forma com que o pesquisador-chefe as trataria. No entanto, espera-se que estes fatores tenham sido minimizados à medida que o pesquisador-chefe conheceu as crianças de rua por meio de pessoas da comunidade que já haviam conquistado sua confiança. Além disso, o fato do pesquisador-chefe não ser afiliado ao governo ou à polícia, pode ter contribuído para a maior receptividade por parte das crianças de rua nas pesquisa. Outro fator limitador, somado ao curto espaço de tempo da pesquisa, foi o fato de que o pesquisador-chefe era a única pessoa a realizar as entrevistas. Isto afetou o número total de entrevistas realizadas. Portanto, sugere-se que Cáritas continue as pesquisas com as crianças de rua que não foram entrevistadas para que se obtenha um retrato mais completo da situação das crianças de rua em Veracruz. VIII. CONTRIBUIÇÕES Embora este relatório apresente uma síntese de elementos de programas de sucesso com crianças de rua na região, sua contribuição para o trabalho sendo feito por Cáritas em Veracruz é significativo uma vez que os dados colhidos das pesquisas a respeito do contexto das crianças de 26 rua na cidade é o primeiro conjunto de dados de sua natureza. O relativo baixo número de crianças de rua em Veracruz, aliado ao tamanho pequeno da cidade, podem levar as organizações a pensarem que estão familiarizadas com o contexto das crianças de rua em Veracruz. Portanto, os dados colhidos junto às três populações podem iluminar algumas questões que poderiam ter sido negligenciadas pelas organizações. Além disso, este relatório não só provê ao Cáritas recomendações customizadas para a situação específica das crianças de rua em Veracruz, como também ilustra algumas das principais medidas a serem tomadas e fatores a serem considerados no planejamento do programa para as crianças de rua. 27 Pesquisador-chefe: Mala Shah HIC #____________ Informação sobre participação na pesquisa Meu nome é Mala Shah e sou estudante de Saúde Pública em Yale University nos EUA. Fui convidada para ajudar Cáritas no planejamento de um programa voltado para crianças de rua em Veracruz. Para fazer isso, é importante sabermos o que você pensa sobre a situação das crianças de rua em Veracruz para que possamos melhor organizar o programa. Irei fazer algumas perguntas sobre as crianças de rua em Veracruz. A participação é voluntária e se você não se sentir confortável respondendo alguma pergunta você não precisa respondê-la. Você não terá seu nome ou organização revelados. A participação será estritamente anônima. Caso você tenha alguma pergunta em relação ao programa ou à pesquisa, dirija as perguntas a mim ou ao diretor de Cáritas, Diácono Francisco Mundo. Mais uma vez, a participação nesta pesquisa é voluntária. 28 Pesquisador-chefe: Mala Shah HIC #__________ Pesquisa para avaliar a realidade das crianças de rua em Veracruz, México 1. Quantos anos você tem? 2. Onde você mora? 3. Onde você dorme? Você passa as noites nas ruas ou na casa de alguém? [Você não precisa citar um local específico] 4. Onde você passa a maior parte do tempo? 5. Há quanto tempo você está nas ruas? 6. O que você faz durante o dia? 7. O que você faz à noite? 8. O que fez você ir para as ruas? 9. Quando você se alimenta? 10. Onde você se alimenta? 11. De que forma você geralmente consegue suas refeições? 12. O que você faz quando está com fome? 13. Existe alguém que te ajude regulamente? 14. Como as pessoas geralmente te tratam quando vêem você na rua? 15. O que você pensa sobre o que você faz atualmente? O que você acha que estará fazendo daqui a um ano? 16. Como você se vê em relação a outras crianças de sua idade? 17. Você ainda mantém contato com sua família? 18. Com que freqüência você vê sua família? 19. Você gostaria de receber ajudar com alguma coisa em particular? 20. Quando você está na rua, do que você acha que mais precisa? 21. Existem recursos na sociedade que possam lhe ajudar a atender essas necessidades? 29 Pesquisador-chefe: Mala Shah HIC #____________ Pesquisa para avaliar como as organizações/instituições em Veracruz estão ajudando as crianças de rua 1. Você considera que há um problema de crianças de rua em Veracruz? 2. Caso positivo, por quê? 3. Como sua organização enxerga a questão das crianças de rua? 4. Sua organização possui alguma atividade ou programa voltado para crianças de rua? 5. Quão freqüente sua organização interage com as crianças de rua? 6. Quão freqüente você interage com as crianças de rua? 7. Você vai até elas ou elas vêem até você? 8. Quais serviços/apoio sua organização fornece ás crianças de rua? 9. O que você acha que deveria ser feito em relação à questão das crianças de rua em Veracruz? 10. Quais são as principais organizações que lidam com crianças de rua em Veracruz? 30 Pesquisador-chefe: Mala Shah HIC #____________ Pesquisa para avaliar como os cidadãos de Veracruz enxergam a situação das crianças de rua em Veracruz 1. O que você acha sobre a situação das crianças de rua em Veracruz? 2. Você acha que elas são um problema? Por quê? 3. O que deve ser feito para melhorar a situação?