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Alex Vieira Libris .:...:.:.;;.;~~r---:::--x-- r' AS MlSTERIOSAS LENDAS DO MAR uma edição de Selecções do Reader' s Digest Texto: Jean D. Guerdon SEGUNDA EDIÇÃO <l:l Selecções do Reader's Digest (Portugal), S.A . R. L. Reservados todos os direitos de tradução, adaptação e reprodução FOTOGRAFIAS Anderson/Giraudon, p. 9; Anderson/Viollet, p. 6; Archives photographiques, p. 14; Bemand, p. 38; Bibliothêque nationale/S.R.D. J. P. Germain, pp. 2 , 5, 10, 13 , 15, 17, 18 , 26 , 32, 35 , 41; Bibliothêque nationale/S.R .D. R. Lalance, pp. 28, 29; Colecção Roger Delorme, pp. 45 , 46, 47; Colecção Georges Sirot, p. 42; Giraudon, p. 22; Rapho/Kay Lawson , p. 8; S.R .D./Arquivos, p. 21 . Capa: cortejo de deuses marinhos, por D. Beccafumi , o Mecherino ( 1486-1551) . Contra-capa: Triunfo de Neptuno, mosaico de Chebba século 11 d. C., que se encontra no Museu do Bardo, em Tunes . INTRODUÇÃO .......... ........ ................................ . A CRIAÇÃO DOS MARES ...................................... . DEUSES E CRJATURAS DO MAR .................. ... ......... . Neptuno .................................................... . . Sereias e fadas do mar ... ........... . ............. .... ... ....... . Gigantes e Ciclopes ........ .. ........... . .. .................... . Animais marinhos ............................................. . Do dragão à serpente marinha ....... . ............................ . Os polvos gigantes ............... . ..................... . ....... . VIAGENS FABULOSAS .. . ......................... .............. . O MUNDO VISTO PELOS ANTIGOS NAVEGADORES ............. . OS FENÓMENOS MARíTIMOS .................................. . As tempestades e o Maelstrõm ............................ . ...... . Os fogos-de-santelmo .. ... ... ............ . . ............... ..... . As ilhas magnéticas ........... ..... . ...... ..... ....... ......... . ILHAS MISTERIOSAS E ILHAS FANTASMAS ........ ....... ..... . A Atlântida ................. . .. . . . ...... . ..................... . YS E OUTRAS CIDADES SUBMERSAS .......................... . FANTASMAS E NAVIOS FANTASMAS ....... ·.................. .. O Navio Fantasma ............................................. . OS NAVIOS MALDITOS . .. .... .. ............ .. ................. . O enigma do«Mary-Celeste» ................................... · · · O triângulo da morte ...... . ................................... . A serpente marinha i como é descrita p Olaus Magnus na obra His(oria de ge tibus septentrionalib (1555) . Gravura t madeira . oceano inspirou desde sempre no homem profundos sonhos poéticos. Das vastas extensões marinhas emana uma tal grandeza que os nossos antepassados viram no oceano a fonte de toda a vida e o fim último de tudo quanto existe. As lendas do mar reflectem as nossas angústias e as nossas esperanças, o nosso desejo de evasão e de perfeição, personificados pelos super-homens ou pelos monstros com que a nossa imaginação povoa a imensidão oceânica. Estas maravilhosas histórias que os marinheiros de vigia contavam uns aos outros testemunharam até aos nossos dias uma notável permanência e uma surpreendente universalidade. Essas lendas encontram-se, com pequenas variações, em todos os povos e são o reflexo dos sonhos que a Humanidade continua a perseguir através dos séculos. Mundo fluido do mito, onde os contrários comunicam entre si, onde nada nem ninguém está esclerosado pela prisão do real, onde tudo é possível e eterno. E onde, no entanto, e aí reside uma das características do mito, os sonhos se inscrevem visivelmente num lugar, numa paisagem, vestígio legível, prova pelo absurdo das proezas do inacreditável. No nosso século, de árida técnica e de fria razão, pode ser fecundo escutar essas vozes do mar que trazem até nós o eco dos nossos receios e dos nossos desejos. Em todas as cosmogonias sagradas os continentes eram posteriores ao mar, tendo surgido do seu seio. No Génese diz-se que «O espírito de Deus pairava sobre as águaS>>, quando tudo ainda era informe e vazio. Mas os oceanos de hoje perderam as dimensões dessas águas iniciais, conservando, no entanto, como que um reflexo do seu infinito. 3 O «A terra estava ausente; um nevoeiro muito espesso reinava sobre toda a extensão das águas.» É assim que os índios de Nevada, nos Estados Unidos, descrevem o Mundo antes da sua criação. <<Havia água e o profundo abismo do oceano . . . Uma massa indistinta de água formava todo este universo e as águas cobriam as águas>>, diz o Rigveda, um dos livros sagrados hindus. Depois, um dia, as águas surgiram separadas da terra. Para explicar este fenómeno, uma lenda neozelandesa conta que encontrando-se o velho Morrn a pescar, o seu anzol se cravou num objecto muito pesado que não conseguiu retirar da água, embora costumasse pescar baleias. Amarrou então a linha a uma pomba, que, ao voar, fez surgir do mar a Nova Zelândia. Para certas povoações do Mississípi, foi a espuma do mar que deu origem 4 aos continentes, concentrando-se em redor de uma tartaruga que nadava e formando assim as primeiras terras . Os Calmucos crêem que o solo provém da condensação da mesma espuma. Ao sondar com a lança as vagas que sobrevoava, à procura de um rochedo onde pousar, o deus japonês lzanaqui provocou salpicos de água salgada cuja cristalização formou as colunas que, segundo se acreditava, sustinham o Mundo . Outros mitos cosmogónicos explicam-nos como nasceu o mar. Para os Melanésios, toda a água capaz de matar a sede ao homem estava contida num orifício coberto por um pano, que impedia o precioso líquido de se evaporar. Dois irmãos, porém, pretendendo saber o que o pano escondia, começaram a puxá-lo em sentidos contrários, lutando para decidir qual dos dois espreitaria em primeiro lugar. E, quanto mais puxavam, mais o pano rasgava e mais aumentava o volu das águas do mar. O oceano estava contido numa vore gigantesca, segundo contam populações Catio, que se encontr dispersas por diversas regiões das Ar lhas e da América do Sul. Um dia, 1 esquilo dotado de poderes mágicos · tombar a árvore inicial: dos seus gr' sos ramos brotaram os rios; das s1 ramagens, os riachos, e, em segui• do seu tronco, o oceano, provocar um verdadeiro dilúvio que afogaria homens se Caragabi, seu antepas ~ mítico, vendo o grave perigo que c riam, não retivesse as ondas impet1 sas com enormes rochedos que forr ram os actuais continentes. Segundo os Hurões, o mar bro1 um dia dos flancos de uma imensa que o deus lskeka abriu para irriga terra árida. Para os gregos pitagóric' o mar nasceu de uma lágrima do dt Crono; os Calmucos diziam-no pro· niente do sangue de uma mulher gante. Plutarco acreditava que o r 1 constituída pelo suor da terra :cida pelo sol, o que explicava o l, de outro modo incompreensível, i sua água, originariamente doce 10 a dos riachos, se ter tomado sali. fma lenda, presente ao longo de 1 a costa da Mancha até aos países mdinavos, conta-nos que um capida Terra Nová roubou a um feitio um moinho encantado que obeía sempre que o mandavam moer. !gando ao alto mar, o capitão orde·lhe que moesse sal; o aparelho ,se a trabalhar, mas o seu novo o esquecera a fórmula que o fazia 1r. Ao fim de algum tempo, o peso sal fez que o navio fosse ao fundo , e o moinho continuou , e continua la, ininterruptamente o seu trabalho noer sal. vura em madeira representando ~ias e crustáceos gigantes, extraída obra Cosmografia Universal, Mun· (1675) . nar deu também origem a deuses e sas . Os Hindus crêem que um ovo hante como o Sol, contendo Brama, giu das águas, que secaram em seda, sendo o rio celeste Ganges que, rendo pela espessa cabeleira de ·a, recobriu de novo a terra. Para os onésios, o deus supremo Mahatala iu os dez dedos das mãos sobre o :ano primordial : «Então, gotas de ra escorreram-lhe dos dedos, delas ergindo a criança divina, a virgem 1ta .~ Esta lenda lembra-nos a do ~cimento de Vénus, a mais fascilte das divindades pagãs, deusa do oor e da Beleza, muitas vezes repre- nus, nascida da espuma do mar, é tnsportada para a praia numa rrcha marinha . Este famoso quadro Botticelli ( 1486) encontra-se em orença. sentada unicamente coberta pelos seus cabelos, emergindo de uma concha marinha, símbolo feminino que liga a mulher ao domínio misterioso e insondável do mar. Também Lakshmi, companheira de Xiva, nasceu da espuma marinha, assim como grande número de enigmáticas princesas lendárias. O nome do deus inca Viracocha significa «espuma do mar». Neptuno Pode avaliar-se a importância que o mar assumia para os antigos pelas nu. merosas divindades com que estes o povoaram e pela perenidade de culto que lhes prestaram. Um dos mais antigos soberanos do mar é talvez Oanes, o deus-peixe representado nos baixos-relevos babilónicos . Os Gregos e os Romanos veneravam, pelo seu lado, Posídon-Neptuno, deus temível, filho de Sa- turno (o Tempo) e de Cibele (a Fecundidade), irmão mais velho de Júpiter, que recebera em herança os mares, as costas e as ilhas, reinando também sobre as inundações e, bizarramente, sobre as muralhas. Mostrava-se particularmente temível quando ofendido. Os sacerdotes consagravam-lhe cavalos e touros e mais particularmente o fel das vítimas sacrificadas, cujo azedume era propício às águas do mar. Lembremos que Neptuno «inventara ~ o cavalo, fazendo-o surgir da terra com o seu tridente, tendo sido também ele quem ensinou aos homens a arte da equitação. Protegia os navegadores que lhe pediam para acalmar as tempestades. Em Roma, o mês de Fevereiro era-lhe dedicado, assim como os jogos de circo, a que presidia sob o nome de Hípio. Representado a maior parte das vezes nu e barbudo, empunhando um tri- 7 dente, Neptuno surge num carro p xado por dois ou quatro cavalos co crina de ouro e pés de bronze e cu garupa termina por vezes em cauda peixe. O seu carro fende as ondas, q não o molham sequer; uma podero majestade emana desta personage respeitosamente rodeada e festejad por monstros marinhos e sustida p golfinhos. Tem o poder de ordenar ao dragões que provoquem as tempestade temidas pelos navegadores. Neptuno habitava com a sua mulher Anfitrite, filha do Oceano, no fundo d mar Egeu, num palácio imerso, ruti· Jante de ouro, nácar e pedrarias, rc· deado de imensos jardins de alga5. Muitas vezes se avistava nestas para· gens a rainha do mar passeando sobre as ondas numa concha puxada por gol finhos e cavalos-marinhos. Uma lenda conta o casamento de Ne-p\uno e 1\nfi\Ú\e·. Um golfinho precede Neptuno no seu carro puxado por fogosos cavalos-marinhos. Mosaico romano do Museu de Sousse, na Tunísia. 8 'à ueu~a ~ecu~\W\> -se em absoluto a casar com o lleu'!. ~ Mar, por quem não sentia qualquer h clinação. A fim de defender a " causa, o deus resolveu enviar-lhe u golfinho tão eloquente e tão hábil que conseguiu comover a princesa, aceitando esta casar com o seu pretendente. O casal teve por descendência numerosas ninfas marinhas e um filho, Tritão, homem-peixe, que precedia o · pai e anunciava a sua chegada emitindo sons de uma concha e que gozava da reputação de acalmar a tempestade. Sereias e fadas do mar Entre as outras divindades marinhas, as Nereides personificavam as mutações do mar. A mais conhecida e a mais bela de todas foi Tétis, que gerou o herói Aquiles. Embora alguns autores descrevam as Nereides como mulheres com cauda de peixe, não se deve confundir estas divindades com as sereias. Com efeito, na Antiguidade, as sereias não tinham ainda assumido a forma que lhes é hoje atribuída. As filhas do rio Aqueloo e de Calíope, a musa da eloquência - Ligeia, Leucósia e Parténope - , tinham herdado da mãe um incomparável dom para o canto. Companheiras de Prosérpina, Este fresco de Pompeios evoca as Nereides, graciosas divindades marinhas. Estas, cerca de cinquenta, eram veneradas nas praias mediante oferendas de leite, mel e cabras. encantavam com a sua arte a filha de Júpiter. Mas um dia Plutão, o deus dos Infernos, raptou a deusa para desposá-Ia. As jovens, inconsoláveis com esta separação, obtiveram dos deuses o privilégio de serem dotadas de asas a fim de partirem à procura da sua ama. Transformadas em pássaros, voaram até à Sicília, onde pousaram, perto da costa, sobre um rochedo escarpado, aí entoando durante todo o dia a sua dor em cantos melancólicos. Um oráculo previra que sobreviveriam até que um navegador resistisse aos seus lamentos. Mas todos os marinheiros que passavam ao largo do rochedo fatal, seduzidos pelo sortilégio dos seus hinos, precipitavam-se nas ondas e afogavam-se. A Odisseia, de Homero, conta-nos como apenas Ulisses conseguiu resistir a este apelo fúnebre, graças a um subterfúgio. No navio que o trazia de regresso de Tróia para ítaca, ordenou aos seus marinheiros que tapassem os ouvidos com cera e fez-se amarrar ao mastro para ouvir as mulheres-pássaros sem sucumbir ao seu canto. As sereias, 10 O nome das sereias, representadas na gravura acima, deriva da palavra grega seira, que significa «Cadeia•, símbolo da atracção irresistível dos seus cantos. alcandoradas nos ossos das suas vítimas, conseguiram seduzir o navegador, mas como este se encontrava amarrado e os seus companheiros impossibilitados de ouvir as ordens que dava para que o libertassem, passou ao largo sem se aproximar delas . Este insucesso foi fatal às sereias, que se suicidaram lançando-se ao mar. As mari morgan, sereias da costa da Bretanha, habitam em castelos submarinos , rodeados de magníficos parques . Mostram-se muito acolhedoras para com os marinheiros, mas aqueles que as seguem nunca mais regressam a terra firme. E infeliz daquele que as tenta enganar! Perto de La Rochelle , um pescador de Carântono apanhara nas suas redes uma sereia que lhe suplicou que a deixasse em liberdade . Este, porém, não atendendo aos seus pedidos , levou-a consigo. Mas, na noite seguinte , uma tempestade arrebatou-lhe a casa, afogou o imprudente e libertou a sereia. Conta-se, na Irlanda , que uma sereia arrastou um dia consigo para o fundo do mar um tocador de gaita-de-foles. A partir de então, nas noites calmas, os pescadores da costa de Kerry ouvem-no tocar a sua ária nostálgica. As sereias são aparentadas com as fadas do mar, seres anfíbios, alguns dos quais inofensivos, e a maior parte das vezes temidos pelos marinheiros . Num fiorde da Noruega, o rochedo Drowning-Stol abriga uma· rainha do mar que os pescadores vêem com frequência a secar-se ao sol, ocupada a pentear os longos cabelos de algas . Um dia, na Bretanha, uma âncora de um navio fundeado prendeu pelas costas uma fada do mar, que, irada , a lançou ao alto das vergas, gritando aos marinheiros que a prevenissem, a partir de então, quando ancorassem, com um aviso: «Fadas do mar, estais aí?» Ainda na Bretanha, as fadas das ondas vivem nas grutas das falésias , secam a roupa nos prados que dominam estes penhascos e vêm banhar-se nas cavidades rochosas da margem . Mas não suportam que as observem, fazendo recair a sua cólera sobre aquele que, tendo a sorte de as surpreender nos seus divertimentos aquáticos, revele a sua presença. Diz-se também que é preferível não avistar ao luar as damas brancas ou cinzentas, vermelhas ou negras. É verdade que as sereias e fadas são muitas vezes punidas e transformadas em rochedo por não terem conseguido seduzir algum infortunado com o seu canto. No entanto, mostram-se por vezes bastante benévolas quando se sabe tomá-las propícias com presentes. Mas quem pode saber o que lhes agrada? Os manatins e os dugongos, quando descobertos pelos sábios, foram por eles considerados como os verdadeiros inspiradores destas lendas. Por esta razão foi atribuído, em 181 I, a estes mamíferos aquáticos o nome genérico de sirenianos. A ilha de Ouessant é o domínio eleito pelos Morgans e pelas Morganas, povo de pequena estatura e muito belo que esconde sob uma capa de amabilidade uma alma muito negra. A ilha de Loch, no arquipélago de Gle11 nan, abriga uma feiticeira, a Groac'h, que atrai às suas redes os seus amantes de um dia, antes de os transformar em peixes. lemanjá é a deusa-mãe africana cujo culto se estendeu ao Brasil, senhora das águas, por quem o filho Urungá, fruto da união da deusa com seu irmão, se apaixonou, começando a persegui-la; na sua fuga desesperada, Iemanjá caiu de costas e morreu. Dos seus seios surgiram caudais de água que convergiram num determinado ponto da Nigéria, formando um lago; o seu ventre rompeu-se, dele surgindo várias divindades africanas. Iemanjá vive recolhida num palácio no fundo do mar, de onde sai uma vez por ano para receber as oferendas dos fiéis . Gigantes e Ciclopes As sereias não são as umcas criaturas temíveis quando se embarca para longínquas paragens. Existem gigantes impiedosos que vivem nas ilhas desconhecidas que se corre o risco de abordar. Deixaram mesmo no nosso planeta 12 indícios VISlveis da sua passagem, como as «marmitas de gigantes», amplos buracos redondos escavados nos rochedos que se encontram nas costas escandinavas e sicilianas. Para os Tchuktches foi o combate desses gigantes com um urso branco que provocou a separação da Ásia e da América. Neptuno, lutando com os gigantes, espalhou pelo mar Egeu ilhas e bancos de areia, vestígios desta luta titânica. Aliás, é bastante comum um gigante transformar-se em rochedo. Um colosso da Noruega apaixonara-se por uma donzela que o repeliu. Furioso, lançou-lhe uma flecha que atravessou a montanha Torghat, originando uma fenda ainda hoje visível. A seta cravou-se aos pés da jovem, transformando-se numa pedra. Então o gigante metamorfoseou a bela em rochedo, hoje designado por Virgem de Lek, que os marinheiros saúdam sempre ao passar. Conta-se também que Santo Olavo transformou em pedra uma mulher gigante com a sua roca e o seu fuso. Quando o capitão Cook abord~ Taiti, os indígenas falaram-lhe, t~ mendo, de gigantes da altura de nav· que viviam nas ilhas do Pacífico. E tempos remotos habitavam no ca Miseno, em Itália, os gigantescos Leso trigões, temidos pelos navegadores, pois divertiam-se a lançar rochedos sobre os navios, ajudados nesta tarefa pelos seus vizinhos e primos, os Ciclopes, monstros ferozes cujo único olho foi tomado como símbolo dos vulcões que abundam nesta região. Mas é mais poética a descrição atemorizada que deles faz Sindbad, o Marinheiro, num dos contos das Mil e Uma Noites: <<Brilhava-lhe, no meio da :festa, um único olho vermelho e ardente como um carvão aceso; saíam-lhe da boca, tão ra&gada como a de um cavalo, dentes compridos e aguçados; o lábio inferior Este mapa da Europa Setentrional t dos seus mares pertence a uma obra de carácter geográfico de Olaus Magnus, publicada em Veneza em 1539. descaía-lhe até ao peito; as orelhas, semelhantes às de um elefante, cobriam-lhe os ombros. » Estas criaturas temíveis devoravam os infelizes náufragos que o destino atirava à ilha. Animais marinhos O bestiário fantástico que os mistérios do mar inspiraram parece inesgotável, como nos prova a maravilhosa série de imagens dos primeiros livros de navegação. Bastava a S. Brandão, monge gaélico que partiu no século x à procura das ilhas Afortunadas, celebrar missa na sua nau para chamar a si uma «diversidade inacreditável de animais que deslizavam em todas as direcções ou permaneciam em repouso nas profundidades, como animais nas pastagens!». Tomaram-se tão numerosos que impediram o avanço do navio. Em 1555, Olaus Magnus, arcebispo de Upsália, descrevia esses animais gigantescos na sua História dos Gados: <<Ao longo das costas norueguesas existem peixes monstruosos com nomes estranhos, que alguns consideram como 1~ uma espécie de baleia. A sua crueldade é evidente ao primeiro olhar, bastando o seu aspecto para aterrorizar os homens, que, se os fitam longamente, são possuídos por um medo fantástico. Estes animais apresentam formas horríveis, cabeças quadradas e eriçadas de espinhos e, a toda a volta, tentáculos compridos e pontiagudos que lhes conferem a aparência de uma árvore com todas as suas raízes. O seu comprimento oscila entre os dez e os doze côvados e a circunferência formada pelos seus olhos enormes mede pelo menos de oito a dez côvados. O globo ocular, sendo de um vermelho muito intenso, permite aos navegantes divisá-los sob a água como se fora um grande fogo. Estes monstros, cobertos de espinhos, compridos como penas de ganso, pos- Jonas na Boca da Baleia. Iluminura da escola francesa (século uma bíblia da Abadia de Saint-Bertin, em Saint-Omer. XIV) pertencente a suem um corpo de pequenas dimensões em relação à cabeça gigantesca. Um desses monstros pode afundar facilmente vários navios. » Esta descrição, que pretende ser objectiva, pode levar-nos a crer que se tratava de lulas gigantes; permite-nos também imaginar o terror que dominaria os espíritos simples ao verem-se diante de semelhantes monstros, num meio desconhecido e sempre em movimento . As baleias gigantes inspiraram também muitas descrições fantásticas, nas quais esses enormes animais são muito frequentemente confundidos com promontórios. É assim que S. Brandão e os seus companheiros, ao acenderem um fogo no cimo de uma ilhota, se apercebem, um pouco tarde demais, de que estão instalados no dorso de um cetáceo. Quando arpoados, estes animais gigantescos desferem com a cauda golpes tão violentos que escavam fendas no litoral; os indígenas das ilhas Andamão apontam ainda os vestígios desses combates titânicos . O narval , mamífero marinho do hemisfério norte, possui um dente extraordinariamente comprido, durante muito tempo confundido com o apêndice tão precioso do unicórnio, animal fabuloso , emblema da virgindade, representado com corpo de cavalo e cabeça de cavalo ou cervo, coroada por um único como. Reis, senhores, dignitários da Igreja·, compravam a preço de ouro o dente do narval, que utilizavam como bastão de comando, cruz ou ceptro. Atribuíam~lhe virtudes mágicas. Limado , revelava, segundo se cria, os venenos que se corria o risco de encontrar nos alimentos. Os golfinhos, ou delfins, excitaram durante muito tempo a imaginação do homem . Animais sagrados de Apolo, o deus da Luz e das Artes, eram para os marinheiros, na Antiguidade, criatu- A Caça ao Narval. Gravura extraída da obra Relation des pays du Nord, de P. Martin de La Martiniere , publicada em Amsterdão em 1685. ras benéficas, com frequência amigas, embora dotadas por vezes de um humor brincalhão. Fizeram mesmo prevalecer o nome de Delfos (cuja origem é a mesma da palavra delfim, delphinus) para designar o célebre santuário grego. Apolo aparecia muitas vezes sob a forma graciosa destes animais , também assumida por Neptuno para seduzir a ninfa Melantho. O poeta Aríon, atacado por marinheiros do navio que o transportava de regresso a casa, lançou-se ao mar, tendo sido recolhido por delfins que o conduziram até à margem. São numerosas as histórias que nos contam a ajuda prestada pelos golfinhos a marinheiros em perigo . Na baía de Saint-Quay-Portrieux (nas costas bretãs do Norte) habitava outrora um animal brincalhão chamado peixe Nicole, que na realidade devia ser um marsuíno. Pregava partidas a todos os pescadores , deslocava-lhes as redes, libertava o peixe, empurrava os barcos, levando-os para outro destino que não era o seu, impedia-os de avan- 16 çar, etc . Contava-se que Nicole era um antigo guarda de pesca, homem muito desagradável que uma fada transformara em peixe . Desapareceu depois de exorcismado pelo pároco, a pedido dos pescadores, cuja paciência se esgotara. Entre as criaturas estranhas do mar, não esqueçamos as aves de rapina, animais fantásticos que vivem nos escolhos e semeiam o terror entre as tripulações, atacando os navios . S. Brandão, na altura do seu périplo, encontra um grifo 1 : «Sabei que este pássaro tão cruel é assim .chamado devido ao poder das suas garras. Muitas vezes agarra e leva os navios no mar. » Do dragão à serpente marinha Terror dos mares, o dragão tem o poder de provocar as tempestades. Guarda no fundo das águas os tesouros ocultos nos navios naufragados . Também ele provém do elemento marinho, como o prova a falésia de Tanfoutchi, 1 Grifo deriva da palavra francesa griffe, que significa . .: garra .. . em Madagáscar, onde se vêem os rastos deixados pelo monstro quando vinha à costa devorar seres humanos. As Nereides, a quem a rainha Cassiopeia ofendera, proclamando-se mais bela que elas, enviaram um dragão marinho para destruir as costas do seu reino, perto de Jafa. Para o acalmar, a rainha foi obrigada a consentir em oferecer ao monstro a sua própria filha, Andrómeda . Mas o herói Perseu, montado no seu cavai~ voador, Pégaso, veio em socorro da jovem, que se encontrava agrilhoada a um recife, libertando-a . Outra versão da lenda relata como Hé rcules salvou a princesa Hesíone , oferecida em holocausto a um monstro marinho instigado por Neptuno. Em tempos que se pretendiam mais «científicos», sucedeu ao dragão a ser- A serpente marinha avistada pela tri pulação da fragata Daedalus, em 6 de Agosto de 1843. Desenho executado com base num esboço que reproduz a cena com muita fidelidade. Peixe monstruoso destruindo um navio ao largo da Noruega . Gravura sobrt; madeira extraída de uma obra de Olaus Magnus. pente marinha. No século XVI, Olaus Magnus conta-nos que os marinheiros noruegueses encontravam frequentemente uma serpente gigantesca, revestida de escamas cintilantes e de olhos brilhantes como brasas. Um dos que a observaram foi um bispo do sé- 18 cuJo XVIII que navegava em direcção à Gronelândia, quando, ao largo do cabo Farewell, apercebeu a serpente do mar: «Ano de 1743, Julho. No dia 6 deste mês apareceu-lhes um terrível monstro marinho que, de tempos a tempos, se elevava sobre as vagas, chegando en- tão com a cabeça quase à altura do nosso mastro mais alto. Tinha um focinho muito pontiagudo, o corpo coberto de escamas grosseiras, duas poderosas barbatanas de cada lado da cabeça e soprava como uma baleia. Na extremidade inferior, o monstro assemelhava-se exactamente a uma serpente e, quando mergulhou de novo na água, a cauda revelou-se em todo o seu comprimento, igual ao de um navio.• Deve ser esta a mesma «serpente» que o navegador Hans Egede avistou na Gronelândia em 17 40. A partir dessa data, as observações sucederam-se. Mas a sua acumulação provocou, no século XIX , época do racionalismo triunfante, uma espécie de cepticismo geral e trocista. Um dos mais célebres encontros com a serpente marinha foi o do capi- tão Peter Mac Quhae, comandante da fragata britânica Daedalus, ao largo da ilha de Santa Helena, no dia 6 de Agosto de 1843. Foi também frequentemente avistada na baía de Along, nas costas da Indochina, onde o primeiro-tenente L'Éost, comandante da canhoneira Décidée, a descreveu, em , 1904: «Apercebi primeiro, a bombordo, o dorso do animal, aproximadamente a 300 m de distância, sob a forma de uma massa escura arredondada. Pouco depois vi essa massa alongar-se e emergir com a aparência de uma serpente achatada, cujo comprimento seria, segundo calculei, de cerca de 30 m e a largura máxima de 4 m ou 5 m. A sua pele era negra, com manchas marmóreas amarelas. A cabeça tinha a cor das rochas da baía (acinzentadas, com manchas brancas amareladas), assemelhando-se à de uma tartaruga. A rugosidade da pele parecia dever-se mais a escamas do que a pêlos. O diâmetro da parte mais larga da cabeça oscilava, segundo testemunhas, membros da tripulação, en- tre 40 em e 80 em. Pela cabeça expelia dois jactos de vapor de água. Ninguém viu barbatanas.>> Apesar do medo do ridículo que atingia aqueles que avistavam o monstro dos mares, os testemunhos continuaram a afluir num ritmo de dois por ano aproximadamente. No dia 12 de Maio de 1964, o monstro foi avistado por pescadores ao largo de Nantucket, na baía de Massachusetts. Era negro, media 15 m de comprimento e apresentava várias bossas no dorso. Foi cronologicamente a última das aparições da famosa serpente do mar, avistada regularmente ao longo da costa da Nova Inglaterra desde 1808. No dia 12 de Dezembro de · 1964, um casal francês, os Le Serrec, e um amigo, que navegavam ao longo da grande barreira de recifes australiana, avistaram, não longe da costa da ilha de Hook, um enorme animal em repouso, deitado na areia branca, a menos ~ 2 m de profundidade, semelhante a um girino de rã gigante, com cerca de 25 m de comprimento e reves- tido de uma pele negra, desprovida de espinhos dorsais. O estranho animal foi diversas vezes fotografado pelos Le Serrec. Aqueles que admitem a possibilidade da existência real de um tal monstro marinho imaginam, evidentemente, uma espécie sobrevivente de épocas pré-históricas, talvez um enorme sáurio dos mares da era secundária. Para o zoólogo Bernard Heuvelmans, que estudou cuidadosamente todas as observações respeitantes ao monstro, existiriam na verdade várias espécies de serpentes do mar, sete ao todo, pertencentes a diferentes tipos de animais marinhos muito arcaicos, cetáceos, pinípedes ou sáurios. Em todo o caso, todos os contraditares ·são unânimes em considerar que o monstro tem de serpente apenas o nome. Note-se que, em 1930, o navio oceanográfico Dana pescou uma larva de enguia com I ,80 m de comprimento. Não existiriam enguias gigantes de 20m? Se é um facto que se conhecem enguias de 3 m, também é verdade que 19 nunca foram encontradas outras de maiores dimensões, o que não exclui a possibilidade da sua existência. Todas as dissidências diminuiriam se um dia fosse descoberto qualquer vestígio do animal, mas tal nunca aconteceu. Foi evidentemente assinalado o aparecimento em praias de animais estranhos, que, porém, se decompuseram sempre antes que os zoólogos os pudessem examinar e identificar com segurança. E assim foi que, em 1951, em Hendaia, alguns pescadores descobriram os restos de um animal marinho que podiam ser considerados como fragmentos de uma serpente do mar, mas que os cientistas designaram por tubarão-peregrino. O mistério do monstro marinho permanece total. A controvérsia continua e espera-se que uma descoberta imprevisível prove, como a do celacanto, em 1938, que o animal está realmente vivo. Os polvos gigantes Na Odisseia, Homero descreve um monstro marinho particularmente re- 20 pugnante. Trata-se de Cila, de que Ulisses, ao atravessar o estreito de Messina, que separa a Sicília da Itália, deve aproximar-se para evitar o escolho de Caríbdis: «É um monstro terrível cuja visão é isenta de encanto, e, mesmo para um deus, o encontro é desagradável. Os seus pés - em número de doze - não passam de cotos; mas as seis goelas das suas horríveis cabeças, assentes em seis pescoços gigantes, deixam ver, quando escancaradas, três séries de dentes cerrados, imbricados, cheios das sombras da morte. Conservando metade do corpo enterrada na cavidade da rocha, projecta os seus pescoços para fora do antro terrível e pesca do alto do seu reduto, à volta do escolho que o seu olhar pesquisa, os golfinhos e os cães-do-mar e, por vezes, um desses monstros maiores que a uivadora Anfitrite alimenta aos milhares. Ainda nenhum homem do mar se orgulhou de ter feito o seu navio passar incólume por tal pe~igo: até ao fundo dos navios de proa azulada cada goela do monstro vem arrebatar um homem.» Cila é uma hidra, anim lendário sem dúvida inspirado pel polvos gigantes, .outros monstros mar' nhos temidos pelos navegadores. N costa da Bretanha, os recifes de Tri goz gozam da fama de abrigar polvos gigantescos, que agarram os navios com os seus tentáculos e os lança para o fundo das águas, sendo necessário ·pagar-lhes um tributo. Para certos marinheiros, os turbilhões marinhos, tão fatais aos navios, são originados pelo agitar dos tentáculos de certos polvos, que atingem algumas centenas de metros. No dia 30 de Novembro de 1861, a corveta da marinha francesa Alecton encontrou ao largo de Tenerife um polvo de 6 m de comprimento e de cor vermelho-tijolo, o qual, ao ver-se atacado a tiros de canhão, expeliu a sua tinta, escapando assim aos agressores. Servindo-se deste episódio, Júlio Verne, na sua obra Vinte Mil Léguas Submarinas, fez atacar o Nautilus do capitão Nemo por uma multidão repugnante de lulas gigantes. •O polvo brandia a sua vítima como se esta fora uma pluma. • A tripulação do Nautilus luta contra as lulas gigantes. (Júlio Verne, Vinte Mil Léguas Submarinas, 1870.) Vítor Hugo, nos Trabalhadores do Mar, apresenta, por sua vei, o recontro do seu herói Gilliatt com um desses polvos nos rochedos das ilhas anglo-normandas. Passemos-lhe a palavra: «Este monstro é aquele que os marinheiros designam por polvo, a que a ciência ch~ma cefalópode, a que a lenda chama kraken. Os marinheiros ingleses chamam-lhe devil-.fish, o peixe-diabo, ou ainda blood-sucker, sugador de sangue . Nas ilhas da Mancha chamam-lhe polvo .. . Uma gravura da edição de Buffon, da autoria de Sonnin, representa um polvo esmagando uma fragata . Denis Montfort pensa, com efeito , que o polvo das altas latitudes consegue afundar um navio. Tal facto é negado por Bory Saint- Vincent, que, no entanto, salienta que nas nossas latitudes o polvo ataca o homem .. . Estes animais são ao mesmo tempo fantasmas e monstros. A sua existência está provada e é improvável . .. Assemelham-se a esses seres terríveis que o sonhador entrevê confu.samente pelo respiradouro da noite ... 21 Desde sempre os marinheiros, antes de iniciarem as suas perigosas travessias, tentaram tomar-lhes favoráveis as ter·ríveis divindades do mar. Outrora os navegadores não hesitavam em praticar sacrifícios humanos para apaziguar as tempestades. O rei Agamémnon foi obrigado a degolar a sua filha Ifigénia para conseguir que um vento favorável impelisse a frota grega para o litoral de Tróia. Mais tarde, porém, em tempos menos bárbaros, os navegadores passaram a oferecer, em vez de uma vítima, uma madeixa dos seus cabelos, um tamanco ou ... uma casca de noz (costas da Bretanha), que substituíam o )1avio que era O Bucentauro, galera a bordo da qual o doge de Veneza «desposava» simbolicamente o mar. Pintura de Francesco Guardi (1712-1793). necessário proteger. Nas ilhas Curilas, os pescadores lançam ao mar pequenas estátuas de madeira para obter uma boa travessia. Os navegadores cristãos tornavam inofensivas certas paragens perigosas imergindo na água santas relíquias. Em 326, quando o navio que transportava Helena - mãe de Constantino - , que reg~essava do Oriente, atravessava o golfo de Veneza, na época um local de frequentes naufrágios, levantou-se uma forte tempestade. Para a acalmar, a piedosa imperatriz lançou à água um prego da cruz de Jesus Cristo. A partir" desse dia, as águas do golfo tornaram-se serenas. Lembremos que os doges de Veneza mantinham cuidadosamente relações pacíficas com o mar. No dia da Ascensão, •desposavam-no»: a bordo do Bucentauro, esplêndido navio decorado CO!tl. esculturas de ouro, o doge dirigia-se para o mar e lançava às vagas um vaso de água benta e um anel, enquanto pronunciava estas palavras: ·Desposamos-te, ó mar, em sinal de domínio honesto e perpétuo.,. Tornava-se vantajoso obter os favores de seres que tivessem estabelecido naturalmente uma aliança com as divindades do mar. Uma narrativa da Nova Guiné descreve-nos como uma criança foi raptada da margem por génios marinhos, que a guardaram no fundo das águas durante quatro semanas, rodeando-a de atenções e confiando-lhe os seus segredos mágicos. Em seguida, entregaram-na aos pais e à tribo, que dela fez um grande feiticeiro. Alguns pescadores conseguem com frequência a aliança de um grande peixe capturado nas suas redes. •Liberta-me- diz o peixe- e a partir de hoje trar-te-ei alimentos.,, O pacto é concluído. Liberto, o grande peixe conduzirá os seus congéneres para as redes do seu novo senhor ou" guiá-lo-á para novas paragens. 23 Os antigos consideravam a Terra como uma ilha circular, rodeada por um rio, o rio Oceano, para lá do qual se encontravam as trevas exteriores e os Infernos, morada dos mortos. O Sol tinha o Oceano por morada, já que nas suas águas desaparecia todas as noites. Os Germanos diziam mesmo que aquele astro se lavava no mar. Os Árabes acreditavam que Alá criara sete céus e sete mares sobrepostos, facto este que lhes permitia explicar o fenômeno da chuva: as águas escorrem de um universo para outro, descendo do oceano superior. Para os Celtas, o mar unia-se ao firmamento nas extremidades da Terra. Navegadores temerários tentaram a viagem, a fim de verificarem a veracidade destas teorias. Tomou-se como prova da sobreposição dos mundos a aventura de um marinheiro de Bristol. Um conto da Idade Média narra-nos, com efeito, 24 que este navegador se encontrava nos confms da Terra quando, inclinando-se sobre a amurada do seu navio, deixou cair uma faca ao mar. No mesmo instante, a sua família , que se encontrava à mesa em Bristol, viu · a faca cair do tecto e cravar-se na mesa. Tal facto constituía para os marinheiros a prova de que havia também um oceano no céu, do mesmo modo que existia um, sem dúvida alguma, no interior da Terra. Os Árabes chamavam ao oceano Atlântico Bahr el-Modhallam, «mar obscuro e tenebroso>>, ou Baharel Zholmat, «mar das trevaS>> . Uma obscuridade constante e ventos aterradores erguendo vagas negras e gigantescas caracterizavam esta extensão temível de águas tão espessas que impediam qualquer navegação. Os navegadores de outrora, ignorando os limites do oceano, temiam viajar para muito longe, para regiões desconhecidas, receando que o mar terminasse num abismo vertiginoso. Para os Cartagineses, o oceano Atlântico deixava de ser navegável a partir dos Açores, devido às ervas marinhas que obstruíam completamente a passagem às embarcações para lá destas · ilhas. É esta a origem da lenda do mar dos Sargaços, reputado como intransponível. No Renascimento, os cartógrafos povoavam ainda os mares com monstros terríficos, como os de Caríbdis e Cila. No Pólo Norte abria-se um remoinho abissal no qual se precipitavam todas as águas do Globo. O monge de Oxford James Knox of Bolduc situava este abismo entre quatro grandes ilhas que uma imensa pedra negra emersa assinalava. Segundo ele, as marés eram provocadas por esta queda do oceano no interior da Terra . A existência das marés - fenómeno quase despercebido nas costas do Mediterrâneo impressionou grandemente os navegadores mediterrânicos da Antiguidade quando estes pela primeira vez ultrapassaram o estreito de Gibraltar, então designado por Colunas de Hércules. Para eles o fluxo e o refluxo deviam impossibilitar toda a navegação. Os sábios hesitavam em atribuir a causa das marés à respiração de um deus ou a correntes marítimas que circulassem em cavernas profundas. Verificou-se rapidamente que as marés obedeciam às fases da Lua, o que fez surgir entre os marinheiros a lenda segundo a qual a Lua engolia o mar para o castigar, mas, achando-o demasiado salgado, o vomitava logo a seguir. As algas que flutuavam à superfície das águas eram para os Vikings a barba do herói Olger Danske , adormecido numa caverna submarina, que continuava a crescer durante o seu sono. Quando os Vikings avistavam algas flutuando ao sabor da corrente, costumavam exclamar: << Lá está a barba de Olger Danske! » Os habitantes de Fidji crêem que os deuses deram forma às margens passeando ao longo delas. Onde os tecidos dos seus vestuários tocavam o solo, surgiam praias de areia fina; nos outros locais continuavam a elevar-se rochedos abruptos. Onde a virgem finlandesa Luonnotar pousava a mão, erguia-se um cabo; onde pousava o pé, abria-se uma cavidade com peixes; onde batia com a testa, nascia um golfo. Os canais, tão úteis aos navegadores, são também atribuídos aos deuses ou, em terra cristã, a santos . É assim que os Escandinavos crêem que Santo Olavo abriu numerosos canais, afas- tando as montanhas que lhe impediam o caminho. Atribui-se também aos vestígios das correntes marítimas, muito visíveis à superfície do mar, uma origem sobrenatural. Ao largo de Saint-Malo a aparição das sendas da Virgem, faixas de cor mais clara que o resto da água, anuncia a chegada do bom tempo . O sulco de S. Germano, que atravessa a baía de Fresnaye, evoca um milagre que permitiu à estátua do santo atravessar a baía pelos seus próprios meios, a fim de se juntar aos peregrinos que se encontravam na margem oposta. O tempo estava tempestuoso e o santo quisera obrigar os fiéis a contornar a baía para lhe virem prestar acções de graças . As tempestades e o Maelstrõm Entre os numerosos sorvedouros marítimos perigosos para a navegação, o Maelstrõm, que se situa entre as ilhas Lofoten, nas costas da Noruega, deu origem às mais aterradoras lendas. O bramido que produz ao precipitar-se 25 numa crista rochosa ouve-se a milhas de distância e cresce ainda no momento do fluxo, pois é provocado pela maré.· O turbilhão tudo absorve, navios e marinheiros, que tritura entre os seus <<maxilares líquidos>>. No entanto, interrompe-se de seis em seis horas, na altura da mudança da maré, período de acalmia que certos pescadores corajosos aproveitam, apesar do perigo que correm, para atravessar o estreito; mas infeliz daquele que se deixa surpreender pelo fenómeno quando este recomeça! Em 1834, um jovem marinheiro norueguês, Peter Arneson, e os seus dois irmãos tentaram a passagem . Infelizmente não aproveitaram a altura do refluxo, pelo que o seu navio foi arrastado pelo Maelstrõm . Peter, que teve a ideia de se lançar ao mar agarrando-se a uma barrica, não desceu para o fundo Sob o Rugido da Tempestade . Ilustração de Gusta ve Doré para a balada The Rime of the Ancient Mariner, de Coleridge ( 1772-1834) . 26 do abismo tão rapidamente como o navio e os seus dois irmãos, que foram por ele engolidos. Viveu horas de pânico agarrado às bordas daquele funil gigantesco, mas conseguiu manter-se a flutuar. A sua aventura inspirou Edgar Poe, que nas suas Histórias Extraordinárias faz do Maelstrom uma descrição impressionante: «De repente, muito de repente, este apareceu e tomou a forma distinta e definida de um círculo de mais de uma milha de diâmetro. O contorno do turbilhão era marcado por uma larga cintura de espuma luminosa, nenhuma parcela da qual escorregava para a garganta do terrível funil, cujo interior, tão longe quanto os olhos podiam abranger, era constituído por um muro líquido, polido, brilhante e de um negro de azeviche, formando com o horizonte um ângulo de 45° aproximadamente, rodando sobre si próprio, sob a influência de um movimento atordoante e emitindo para os ares uma voz aterradora, semigrito, semi-rugido, como nunca a poderosa catarata do Niágara, nas suas convulsões, lançou alguma vez para o céu.•• Na maré seguinte alguns pescadores recolheram Peter Arneson exausto. Os seus cabelos tinham ficado completamente brancos. Os navegadores . não temiam somente os turbilhões, mas também as tempestades e a calma completa, durante a qual o navio à vela não conseguia navegar, pelo que eram grandemente apreciados aqueles que sabiam manobrar os ventos. Há entendidos em tempestades que se afirmam especialistas na domesticação dos elementos. Feiticeiros lapões manejam-nos ainda hoje, graças a um lenço cujos cantos foram atados em nó; basta desfazer um desses nós para ol:r ter um vento brando, dois para fazer soprar uma brisa forte, três para que se levante uma tempestade - neste último caso, pretende-se sem dúvida prejudicar um navio inimigo. Conhecem-se outras receitas excelentes para provocar um vento favorável: varrer a capela de uma santa célebre, lançando-se em seguida a vassoura ao fogo, ou ainda, quando um navio está impossibilitado de navegar, desfechar algumas chicotadas na espuma. Ao rei Erik da Suécia bastava fazer rodar o seu chapéu para influenciar o vento. As tempestades são provocadas por anões ou gigantes (Malásia), por tigres (Japão, China), monstros marinhos e ainda feiticeiras, que, para as desencadear, estendem os seus lençóis molhados sobre os rochedos e batem-nos violentamente. Há uma certa relação entre os gatos e o mau tempo, o que explica a necessidade, para acalmar uma tempestade, de tratar afectuosamente o gato da tripulação ou, pelo contrário, de deitá-lo pela borda fora - as superstições contradizem-se. Mas S. Nicolau continua a ser o grande protector contra a tormenta. Para regressar sãos e salvos, muitos marinheiros fazem uma promessa, tomando S. Nicolau por seu fiador. Os fogos-de-santelmo Um fenómeno que se designa por fogo-de-santelmo e que os antigos de- 27 Os gêmeos Castor e Pólux. Pormenor de uma gravura de Bloemaert (século XVII). nominavam estrelas impressionou durante muito tempo as gentes do mar. Na Antiguidade, atribuía-se aos Dioscuros, os gémeos Castor e Pólux, esse duplo fogo meteórico ligado à atmosfera de trovoada, saturada de electricidade, que aparece por vezes, geralmente em plena tempestade, no alto dos mastros . Esses fogos eram considerados como um sinal de protecção sobrenatural, porque, durante a travessia dos Argonautas, tinham descido sobre a fronte dos Dioscuros, enquanto 28 a tormenta desencadeada se acalmava. Se, por infelicidade, o fogo era único, apontava-se como causa de tal facto a intervenção de Helena , a célebre beleza responsável pela Guerra de Tróia, irmã de Castor e Pólux, e o presságio tornava-se nefasto. Há muito tempo, Santelmo vivia numa gruta do estreito de Messina. Uma noite, S. Cristóvão deu ao sábio eremita uma lanterna para que este a acendesse nas noites de tempestade, a fim de guiar os navios perdidos . Foi assim que os Dioscuros se tornaram, nos tempos cristãos, nos fogos-.de-santelmo, embora possa acontecer que o nome desse santo eremita derive simplesmente de uma corruptela do nome de Helena. O fenómeno meteorológico dos fogos-de-santelmo, muito impressionante no mar, pode, quando aparece sobre a cabeça de um marinheiro, pressagiar a sua morte próxima. Segundo outras crenças, trata-se, pelo contrário, de um sinal benéfico da protecção da Virgem , sendo este fogo então conhecido pelo nome de Stella Maris. As ilhas magnéticas Certas montanhas contêm, segundo uma crença, uma tal quantidade de íman que atraem a si todos os navios que passem nas proximidades . Plínio afirma que essas rochas magnetizadas tornam muito perigosa a navegação junto da costa das Índias. Os navios que penetrem no seu campo magnético perdem todos os seus elementos de ferro e elevam-se como pássaros em direcção às montanhas, o mesmo acon- tecendo aos pregos das quilhas, pelo que se torna necessário prender as tábuas com cavilhas de madeira. Os navios que navegam sobre as massas magnetizadas que se encontram no fundo dos mares perdem os seus pregos, desmantelam-se e afundam-se. Esta crença está presente na epopeia medieval Huon de Bordeaux, assim como nas Mil e Uma Noites. Certos navios rodeados de aros de ferro chegam a ficar colados à rocha, da qual é impossível afastá-los. No golfo da Finlândia só se podia navegar ao largo da ilha de Odensholm retirando dos navios tudo o que contivesse ferro. Hoje, essas lendas diluíram-se na memória dos homens, mas verificou-se qu·e certos promontórios, como o do sudeste da ilha de Elba, contêm magnetite suficiente para desorientar as bússolas. O fogo duplo dos Dioscuros salva da tempestade o navio dos Argonautas. Ilustração de Bloemaert (Holanda, século XVII). Para os antigos navegadores, as ilhas constituíam não só um porto de abrigo e uma promessa de alimentos frescos, mas também um lugar de incerteza, escondendo maravilhas ou horrores. Na Odisseia, de Homero, Ulisses, ao longo da sua interminável e difícil travessia, aborda a ilha de Aea, onde vive a maléfica Circe, caindo, com a sua tripulação, em poder da feiticeira, que, por meio de filtros mágicos, transforma os homens em porcos. Ajudado pelo deus Mercúrio, Ulisses consegue vencer a feiticeira, que, submetida pelo amor, lhe facultava a visita ao reino dos mortos. Ao navegar em direcção ao enigmático continente hiperboreal de Tule, S. Brandão encontra uma sucessão de ilhas fabulosas de nomes evocadores: ilha da Abundância, na qual a tripulação é servida por mãos invisíveis; ilha Mergulhadora, que desaparece como 30 um peixe; ilha do Silêncio, onde ardem archotes eternos; ilha das Uvas; ilha dos Ferreiros ... e, situada na extremidade do Mundo, a célebre ilha dos Bem-Aventurados, onde reina uma eterna Primavera e onde brota a fonte da eterna juventude. Certas ilhas abrigam, pelo contrário, uma população inquietante. A crer nos navegadores árabes, das árvores das florestas da ilha de Wak pendem, em vez de frutos, troncos de mulheres desprovidos de braços e pernas, sus- · pensos pela cabeleira. A ilha de EI-Ramany é povoada por gnomos, enquanto a de EI-Mozzasemeh está permanentemente oculta por espessas trevas. Outras ilhas aparecem e desaparecem sem razão aparente. São denominadas <<ilhas de manteiga», porque parecem derre\er-se como um corpo gorduroso. Na realidade, mudam de lugar e flutuam sobre as águas. Os racionalistas, cépticos por natureza, consideram-nas grandes massas de gelo ou ilhas de lava flutuando ao sabor das ondas. Outrora, a ilha de Delos flutuava também graças a Neptuno, que assim quisera agradar a Juno. Com efeito, Júpiter, marido de Juno, nutria uma forte paixão por Latona, que vivia em Delos. Como a ilha se tornou flutuante, Júpiter já não podia reunir- se a Latona. Porém, depois do nascimento de Apolo e de Diana, filhos de Latona, a ilha ancorou definitivamente no arquipélago das Cíclades. Plínio afirma que, na Lídia, as ilhas Calaminas obedeciam aos sacões com que eram agitadas por aqueles que aí dançavam. Nas costas da Noruega, ilhas flutuantes cobertas de árvores com conchas apareciam e desapareciam no espaço de algumas horas. Os Irlandeses pretendem que a sua terra flutuou nas águas durante o Dilúvio . A ilha de Disco tocava outrora na Gronelândia, impedindo a circulação dos kayaks, tendo sido deslocada por um feiticeiro, que a arrastou com a ajuda de uma pele de foca . Numerosas ilhas foram descobertas por navegadores, que descreveram cuidadosamente a sua posição, mas nunca puderam ser encontradas. Tratava-se, sem dúvida, de ilhas vulcânicas ou erradamente localizadas pelos marinheiros, que haviam cometido algum lapso nos seus cálculos. Foi assim que as ilhas Salomão , descobertas em 1567 , só puderam ser novamente abordadas em 1767, isto é, dois séculos mais tarde. É ainda mais estranho o facto de, em 1928, a ilha de Páscoa ter permanecido durante dez dias invisível a todos os navios que tentavam aproximar-se dela . A imprensa mundial comentou amplamente esse fenômeno misterioso, que aumentou ainda mais a fama de mágica atribuída à ilha de estátuas enigmáticas . Algumas miragens espantosas que ocorrem no mar reflectem a imagem de terras esquecidas. No golfo de Messina, desde o século XVI, vislumbra-se, em algumas horas , o reflexo de uma maravilhosa cidade, constituída porcasas de paredes brancas e castelos encimados por torres . Esta cidade seria a morada da Fada Morgana, irmã do rei Artur. A miragem, que os pescadores da região designam por Fata Morgana, pertence ao número impressionante dos fantasmas que povoam todos os mares do Globo . As histórias de ilhas fantasmas e de terras desaparecidas baseiam- se em parte em factos reais . Em 1447, um navio mercante português descobria uma ilha vulcânica a nordeste dos Açores, que se estendia ao longo de uma extensão de 45 km. Um povo cristão de que se perdera até o nome habitava-a. A ilha, à qual foi atribuído o nome de Mam, ou Mayda , passou a figurar nas cartas de navegação. Porém, em 1555, ninguém conseguiu encontrá-la. Em 1813, apenas um escolho assinalava a sua presença aos navios que cruzavam estas paragens, mas mesmo esse foi engolido pelo mar. E nunca se soube o que aconteceu aos habitantes de Mayda. Numerosas ilhas foram e serão submersas pelo oceano, arrastando por vezes na catástrofe súbita a totalidade dos seus habitantes . Para as velhas mitologias, estes sismos destruidores eram sempre provocados pelos pecados dos homens, tendo sido a Atlântida submersa por Neptuno como punição do orgulho dos seus habitantes . A Atlântida É no Timeu e no Crítias que o filósofo grego Platão nos revela a existência da Atlântida , o mais famoso dos continentes submersos . Um velho sacerdote egípcio de Sais, no delta do Nilo, confiara ao grande legislador ateniense Sólon (século VI a. C.) que, nove mil anos antes, um imenso continente situado para lá do estreito de Gibraltar desaparecera em algumas horas no seio do oceano. Esse cataclismo produzira- 31 DE J.'ATl~AN'I'IIlJ!~, " uÃP11K.t I Pa.ATOS V.T -se depois da vitória dos Gregos sobre os Atlantes. E eis, segundo Platão , o que conta o velho sacerdote de Sais: •Os nossos escritos dizem como a vossa cidade deteve a marcha de um poderio insolente que invadia ao mesmo tempo a Europa e a Ásia, lançando-se sobre elas do fundo do mar Atlântico. Com efeito, naquele tempo podia-se atravessar esse mar, devido à existência de uma ilha defronte do estreito a que chamais Colunas de Hércules. Esta ilha era maior que a Líbia e a Ásia reunidas, o que tornava a passagem para as outras ilhas possível aos navegadores de então, que através delas atingiam o continente fronteiro que rodeia este mar longínquo, o mar verdadeiro. Porque, deste lado, aquém do estreito de que falamos, não existe se- A Córsega, a Sardenha e Minorca seriam os últimos vestígios da Atlántida , segundo esta carta surgida por volta do ano de 1775 e baseada nos escritos de Platão. não uma enseada de· entrada estreita; do outro lado existe realmente o mar , sendo a terra que o rodeia aquela que na verdade tem direito ao nome de continente . Ora , nesta ilha Atlântida os reis tinham construído um império imenso e maravilhoso, que dominava toda a ilha e muitas outras , assim como porções do continente. Mais perto de nós, abrangia ainda a Líbia, até ao Egipto , e a Europa, até à Tirrénia. •• A descrição do império atlante é muito precisa e revela mesmo a existência de um continente situado para lá do oceano Atlântico, continente ignorado pelos Gregos do tempo de Platão e que teria sido colonizado pelos Atlantes. Para os geógrafos da Antiguidade, a Líbia constituía a parte da África situada a oeste do Egipto , a Tirrénia correspondia à parte da Itália ocupada pelos Etruscos. Se , finalmente, os Atenienses conseguiram desembaraçar-se dos Atlantes, foram ajudados nessa empresa por uma terrível catástrofe que fez desaparecer o império dos seus inimigos e di- zimou a sua própria armada. Sempre segundo Platão, Sólon relata assim a narração ouvida ao sacerdote de Sais: «Mas, no tempo que se seguiu, ocorreram pavorosos tremores de terra e cataclismos . No espaço de um dia e de uma noite terríveis , toda a vossa armada foi engolida de repente pela terra, o mesmo acontecendo à ilha Atlântida, que mergulhou no mar e desapareceu. Eis a razão por que ainda hoje este oceano longínquo é difícil e inexplorável, devido ao obstáculo constituído pelos fundos lodosos que a ilha ao ficar submersa depositou ... Os únicos sobreviventes foram os habitantes das montanhas , que ignoravam a arte da escrita. » O que explica a razão por que os homens esqueceram esse prodigioso cataclismo . Platão fornece-nos outras informa· ções sobre os Atlantes e a sua civilização avançada. Ousados navegadores, construtores incomparáveis, consideravam-se descendentes do deus Neptuno, que veneravam na sua capital. Eis como o filósofo grego nos descreve os 33 magníficos canais que conduziam os barcos até à cidade, no centro da ilha: «Os Atlantes escavaram primeiramente um canal que media 50 estádios (cerca de 9 km) de comprimento; do mar até à sua cintura exterior possuía uma capacidade que lhe permitia abrigar os maiores navios, graças a uma passagem que comunicava com o largo. Entre os terraplenós dos fossos cavaram ainda valas suficientemente largas para a passagem de uma galera, apetrechando-as com tectos elevados, para que permitissem a navegação a coberto; o maior dos fossos que comunicavam com o mar media 3 estádios (530 m) de largura, a mesma dimensão do terrapleno que lhe sucedia; das duas cinturas seguintes, a vala de escoamento cheia de água tinha uma largura de 2 estádios (355 m), tal como o seu terrapleno; a vala de escoamento que rodeava a ilha interior, onde se elevava o palácio dos reis, media 5 estádios (885 m). Os Atlantes rodearam com um muro de pedra a ilha, os diques e as pontes. Retiraram as pedras das 34 margens da ilha interior, assim como dos lados dos diques; havia-as brancas, pretas e vermelhas. Ao remover essas pedras, escavaram dois lagos interiores para guardar os barcos, que ficavam assim abrigados. Entre todas estas construções, algumas eram simples e outras formadas de pedras de diversas cores, misturadas por uma razão puramente estética. Quanto ao muro circular da cintura exterior, foi inteiramente coberto de bronze; o da cintura interior foi revestido de estanho. Enfeitou-se de oricalco, metal com o brilho do fogo, o muro que rodeava a cidadela.» (A composição deste metal misterioso permanece um dos grandes segredos técnicos dos Atlantes.) Eis, aproximadamente, as informações concretas que nos fornece Platão sobre a Atlântida, transmitindo-as não como uma lenda que ilustre a sua argumentação filosófica, mas como um facto histórico exacto. É esta a razão por que as suas revelações excitaram, de há dois mil anos para cá, muitas imaginações e suscitaram uma litera- tura prodigiosa, pelo menos em quantidade. Violentas controvérsias puseram em oposição os diversos teóricos, muitas vezes ocultistas, que vêem n Atlântida uma espécie de paraíso perdido. Alguns deles chegam a defende a teoria de que os Atlantes tinham um origem extraterrena e que foram ele que trouxeram aos homens as primeira centelhas da civilização. As opiniõe mais contraditórias surgiram, e surge ainda, numa tentativa de localizar ilha desaparecida. Bailly, astrónomo de Luís XVI, ·afirmou, em 1778, que a Atlântida se situava no deserto de Gobi, onde os geólogos da época tinham descoberto vestígios de um antigo mar. Seguiu-se uma longa polémica com Voltaire. As Cartas sobre a Atlántida, trocadas entre ambos, alcançaram um grande sucesso. Outros escritores pretenderam que os Açores e as Canárias são os vestígios do continente desaparecido; essas ilhas seriam, com efeito, os cumes de uma cadeia montanhosa afundada. Arqueólogos mais ousados identificaram a Atlântida :om a ilha de Heligolândia, no mar do ~orte. Outros situaram-na no Cáucaso; 1utros ainda na cordilheira dos Andes, mde se encontra a misteriosíssima cilade de Tiahuanaco, e alguns escolhearo a África negra. Pierre Benoit locaiza-a no Sara. De facto, aos olhos dos historiadores nodemos a descrição de Platão contém IUmerosas inverosimilhanças. Há dez nil anos, nem os Gregos, contra os Juais os Atlantes teriam combatido, 1em os Egípcios, que teriam recolhido I sua herança, existiam ainda. Os Gre~os surgiram nas costas do MediterrâleO apenas no segundo milénio antes ia nossa era. As descrições da civ iização atlante correspondem aproxinadamente às técnicas da Idade do Bronze, que floresceu na bacia medi- f::ste mapa da Atlántida , datado de r803 e da autoria de Bory de Saint·Vincent, situa aquele continente no ocal onde actualmente se encontram s ilhas do Atlântico Oriental. terrânica aproximadamente no ano 2500 a. C. Depois de devidamente comprovada, a descrição seria mais plausível se fosse situada por volta de 1500 antes da nossa era. Nesta época, a Grécia, ainda primitiva, já existia; e no Mediterrâneo ocorreu justamente uma explosão vulcânica de grande violência, que assolou a ilha de Santorino (ou Thera), nas Cíclades, ao norte de Creta. Pesquisas recentes no que resta desta ilha trouxeram à luz do dia, sob uma camada de pedra-pomes, que atinge em certos locais 30 m de espessura, os vestígios de uma civilização da Idade do Bronze tão requintada como a de Creta. Segundo os sismólogos, a erupção de Santorino foi quatro vezes mais forte que a de Krakatoa, entre Java e Samatra, que, em 1883, causou a morte de 37 000 pessoas e arremessou janelas em redor num raio de 150 km de extensão. A explosão cavou a baía de Santorino e pulverizou tudo o que se encontrava no centro da ilha, cidade e população, dando origem a 36 uma vaga de 21 O m de altura, que varreu todo o Mediterrâneo. Datados pelo processo do carbono 14 , os vestígios da ilha remontam a 1500-1300 a. C . Quando se compara o plano da Atlântida traçado por Platão com o de Santorino, as coincidências tornam-se perturbantes, embora algumas das medidas citadas pelo filósofo grego necessitem de um reajustamento que implica uma divisão por dez. Poder-se-ia tratar de um erro cometido na leitura da numeração egípcia. No entanto , certas dimensões aproximam-se: um círculo ideal rodeando Santorino mediria mais ou menos 20 km; Platão avaliava o comprimento do diâmetro da ilha principal da Atlântida em 130 estádios, isto é, 23,5 km. Nunca se encontrará, porém, a metrópole de Santorino, já que foi substituída pela baía do mesmo nome, actualmente tão profunda no interior da cratera vulcânica que os navios não podem aí fundear. Em contrapartida, procura-se trazer à luz do dia vestígios de villae e canais que o sismo apenas soterrou, como em Pompeios . A localização da Atlântida no m· Egeu suscita, evidentemente, a indi~ nação dos atlantistas entusiastas, q lembram que a ilha se situava para das Colunas de Hércules, isto é, Gibraltar. Foi, portanto, para eles mo tivo de alegria o facto de, em 196 arqueólogos submarinos terem desce berto nas Baamas, a lO m de profund dade, colunas e dois muros ciclópic9 com uma altura de várias centenas d metros , em redor dos quais haven ainda numerosos locais para pesquisaJ Esta cidade contaria mais de cinco m anos , o que desorienta os arqueólogos para quem as civilizações pré-colom bianas não remontam tão longe. Um outro continente perdido é o d Mu, que teria outrora coberto um parte do Pacífico e de cujos habitante descenderiam os actuais indígenas d Polinésia. Este continente, que se es tendia da índia à América, foi tambér tragicamente submerso numa noite, h mais de dez mil anos. As lendas da Po linésia lembram o grande cataclism que pôs termo à sua história. s e a e a s a ;n á ,_ o Quanto mais nos interessamos pelas lendas de cidades submersas, mais nos apercebemos de que elas abundam, seja nas margens do Báltico ou nas do mar Vermelho. Em França é a Brelanha que oferece o maior número de lendas de cidades submersas. Entre elas, a da cidade de Ys é talvez a mais célebre. Cada baía, cada golfo da Bretanha, reivindica-a, de tal maneira a sua lenda pertence a esta província. Ys era uma cidade muito próspera durante o reinado do bom rei Gradlon. A vida ai decorria entre festas quotidianas e diversões constantes, pelo que os prazeres provocaram um relaxamento da fê. A filha do rei, a princesa Dragu, ou Ahes, também não se esquivava a par!ilhar da vida corrupta dos seus súbditos. O bom S . Guénolé preveniu Gradlon das desgraças que um tal comporlamento, tarde ou cedo, acarretaria, mas o rei, que amava a filha, ouviu o santo sem atender aos seus avisos. Foi então que Dragu se ligou a um belo viajante , que não era outro senão o Diabo , o qual a aconselhou a roubar a chave de ouro que o rei trazia ao pescoço. Era a chave, sugeria ele perfidamente, de fabulosos tesouros que lhes permitiriam aproveitar ainda mais as alegrias da vida. Dragu obedeceu e roubou do pescoço do rei adormecido a chave , que o estrangeiro utilizou para abrir as comportas dos diques que retinham o mar. As vagas libertas invadiram imediatamente a cidade . S. Guénolé quis levar o rei no seu cavalo, mas Gradlon recusou-se a abandonar a filha, apesar do pecado que esta cometera . O santo conseguiu arrancá-lo da infeliz e fugir, enquanto o mar cobria a cidade. Ys jaz hoje, intacta, no fundo das águas e espera o dia da sua ressurreição. Os pescadores afirmam ouvir soar os sinos das igrejas nos dias de festa, tanto na baía de Douarnenez como nas de Audierne •. Tréguier ou de Saint-Cast. Mas Ys não é a única cidade desaparecida. Citam-se também Bidan, no vale do Rance; Reginae, perto de Erquy; Nasado, nas costas do Norte; a velha cidade de Chatelaillon , em Charente-Maritime , submersa na Idade Média; Penmarch, perto de Saint-Guénolé , cujo desaparecimento dataria apenas do século XVI. Deus visitou um dia a grande cidade, situada na baía de Saint-Brieuc , disfarçado de um pobre velho . Batia às portas, pedindo de beber, mas nenhum cidadão o atendeu, à excepção de uma velha mulher, que o recolheu. Em agradecimento, o viajante ofereceu-lhe uma pipa que «mataria todas as sedes>> , afastando-se em seguida. Sobreveio uma grande seca; a velha abriu a pipa, cuja água não parou de correr e provocou um novo dilúvio, 37 no qual pereceram todos os seus concidadãos, só ela se salvando. É facto histórico que um maremoto submergiu no século VIII a floresta de Scissey, na Bretanha. Conta-se que um eremita, não suportando o grasnar dos corvos que perturbavam as suas orações, os amaldiçoou; imediatamente o mar os cobriu, assim como à floresta e ao monge irascível. No local onde se erguiam as árvores estende-se hoje a baía do monte de Saint-Michel. Aperceber-se-iam ainda, entre as ilhas Chausey e o monte, vestígios de uma cidade submersa em circunstâncias análogas às da cidade de Ys. Na Idade Média acreditava-se convictamente que o mar cobriria a cidade de Quimper se a vela que ardia na Capela de Notre-Dame-de-Guenodet se apagasse. Essa chama manteve-se acesa até 1792. Na Irlanda, perto das falésias de Maher, os marinheiros vislumbram por vezes, no fundo das águas, luzes da cidade submersa de lnclidon, facto auspicioso que indica aos que têm esta 38 sorte que farão fortuna durante esse ano . Para os Escandinavos há igrejas que se elevam no fundo dos mares, entregues ao cuidado de bispos marinhos. Alguns desses edifícios emergem por vezes provisoriamente e por razões desconhecidas. Um pescador viu, de repente, para sua grande estupefacção, uma magnífica catedral surgir diante da sua barca, no meio das vagas. Aproximou-se dos degraus do adro, cobertos de algas, e penetrou na nave, em parte obscura: sombras ajoelhadas rezavam. O visitante reconheceu entre elas alguns dos seus companheiros desaparecidos no mar. Esta visão aterrou-o de tal maneira que saiu a correr do edifício e voltou para a sua barca no momento exacto em que a catedral desaparecia de novo no mar. O Rei de Ys, ópera de Lato, surgida em 1888 na Ópera Cómica de Paris, reapareceu em 1966 com este cenário de Félix Labisse. A sorte dos náufragos obcecou durante muito tempo os seus camaradas mais felizes, o que explica que os fantasmas desempenhem um papel importante nas narrativas dos homens do mar. Na Escócia e na Bretanha, as vagas emitem gemidos enquanto o corpo de um afogado não tiver sido encontrado e enterrado em terra consagrada. Na baía dos Fantasmas, no dia dos Mortos, elevam-se os clamores de todos os pescadores afogados, que aí se reúnem. Na Comualha, aparecem durante a noite, nos areais, homens escorrendo água, com as mãos vermelhas, e que não respondem quando interpelados. É elevado o número de falésias onde aparecem os infelizes que aí se suicidaram . Sio vislumbrados nas noites de tempestade, do mesmo modo que se adivinha a presença nos escolhos, contra os quais se despedaçaram numerosos navios, dos espectros dos marinheiros. Ao longo das costas da Comualha conta-se, com diversas variantes, a seguinte lenda: um pescador passeava durante a noite no areal de Port-Towan quando ouviu uma voz que se elevava das negras águas e gritava três vezes: «Chegou a hora, mas não o homem. » À terceira invocação, uma silhueta sombria precipitou-se da falésia e caiu ao mar. É', na realidade, pelas falésias e pelos cabos que passam as almas em viagem para o além, cuja porta se abre no fundo dos mares. Nas ilhas Salomão, os fantasmas dançam numa ilhota antes de desaparecerem nas ondas. Para os Taitianos, os mortos vivem no fundo do oceano, num palácio de coral. Em Bari, na Itália, como em Saint-Malo, é nas gaivotas que encarnam as almas dos marinheiros mortos ilo mar, que devem esperar cem anos antes de se apresentarem diante de Deus. Quando sobrevoam o porto com insistência, pretendem indicar que um navio acaba de ir ao fundo; o seu número indica o das vítimas do naufrágio . Lembremos que fazer mal a um albatroz acarreta in fel icidade a todos os navios. Para os Bretões, como para os Polinésios, as almas são conduzidas para as ilhas da Beatitude nas barcas dos mortos. Já o historiador bizantino Procópio, evocando as velhas tradições celtas, revela a existência dessas barcas, que transportam as almas na ilha da Bretanha. A barca vazia, conduzida por Anku, a Morte, aborda a margem. Um pescador que se sinta chamado a conduzi-la é obrigado a obedecer, sobe a bordo e de repente verifica que a embarcação se toma pesada sob um peso invisível, o das almas que acabam de se lhe juntar e a quem ele deve fazer passar o estreito. Depois da travessia, a barca 39 é aliviada da sua carga e o pescador volta às suas ocupações habituais. A partir de então é maldito e ninguém lhe dirige a palavra. Ainda hoje, nas noites calmas mas tenebrosas, se ouve no mar o bater dos remos da barca de Anku. O Navio Fantasma No oceano, os marinheiros temem o encontro com o Navio Fantasma, velha carcaça apodrecida, conduzida por esqueletos, que surge por vezes do nevoeiro, trazendo infelicidade àqueles com quem se cruza. O seu capitão, Vanderdecken segundo alguns, Von Falkenberg segundo outros, não acreditava nem em Deus nem no Diabo. Cruel, insensível piedade, foi condenado, pelas suas blasfémias, a errar eternamente, provocando a perda dos marinheiros. É o Navio Fantasma, cuja aparição aterroriza as gentes do mar. Esta lenda inspirou Wagner, que, a partir de uma balada de Heinrich Heine, compôs uma ópera em 1843. O holandês maldito errará no mar com 40 o seu navio enquanto não tiver encontrado, para sua redenção, uma mulher de uma fidelidade eterna. Daland, o Norueguês, que ele encontra durante uma tempestade, promete-lhe a mão de sua filha Senta. Esta, por sua vez, apaixona-se pelo holandês, a quem quer resgatar, pelo que renuncia ao seu noivo, Erick, para seguir o capitão do Navio Fantasma, de quem se torna noiva; este, porém, querendo poupar-lhe a maldição, foge com o seu navio enquanto decorriam os preparativos para o casamento. Senta, louéa de dor, lança-se do alto de um rochedo, enquanto o Navio Fantasma se afunda no horizonte durante uma tempestade espectacular. Senta provara a sua fidelidade. Das ondas pacificadas elevam-se as almas resgatadas da jovem e do holandês, unidas numa vida sobrenatural mística. O Grande Pára-Raios goza de melhor reputação que o Navio Fantasma. É aí que se encontram, depois da morte, os marinheiros mais valentes e mais alegres, recebidos com todas as atenções: carne a todas as refeições, rum à discrição. Divertem-se muito. O navio é tão grande que conteria facilmente vários continentes e seria necessária uma vida inteira para trepar ao seu mastro; cada uma das suas roldanas esconde um albergue. As marés são provocadas pela água tirada pela sua tripulação para lavar a ponte. O Grande Pára-Raios existe desde as origens do Mundo e o seu capitão, de cabelos brancos, condu-lo para a eternidade. Mas não existem só navios a assombrar os oceanos. Certos fantasmas, esses humanos, aterrorizam as tripulações, aparecendo de improviso a bordo dos seus navios. Entre eles, o espectro Ladylips, que aterroriza o Pacífico, e a Dama Branca, cujo domínio é o Atlântico. Para ilustrar o poema de Samuel Coleridge, Gustave Doré evoca as sombras do Navio Fantasma, perdido nos gelos do Grande Norte. s navios são considerados pelos ma'nheiros como seres vivos. Nascem, ivem e morrem; entre eles e o seu caitão estabelecem-se laços, invisíveis as quase carnais, que não se podem esfazer impunemente. A história seuinte é um exemplo verídico desta liação. Construído em 1897, o Humboldt restou serviço de transporte de passaeiras e ouro para o Alasca até 1934, ta na qual o capitão Baufman, que o omandava, teve de se reformar. Em seguida, Baufman instalou-se em São rancisco e o velho navio foi conduZido para São Pedro, onde devia ser desmantelado. No dia 8 de Agosto de O transatlântico Great Eastern, aqui representado numa fotografia de 1860, continua a ser o mais célebre dos navios malditos. 1935, o capitão morreu; nessa mesma noite, sem ninguém a bordo, o Humboldt largou do porto de São Pedro, dirigindo-se para o alto mar, onde um rebocador teve de o ir buscar para o trazer de novo para o cais. Sendo os navios entidades quase humanas (aliás, não são eles baptizados?), têm também o seu carácter e o seu próprio destino. Alguns deles, desde o seu lançamento, realizado sob maus auspícios, dão prova de uma má sorte que os atormentará até ao fim da sua vida. Quando um navio é perseguido pelo infortúnio, os marinheiros consideram-no maldito e hesitam em fazer parte da sua tripulação. O navio mais desafortunado da história contemporânea continua a ser o Great Eastern, um dos primeiros transatlânticos. Lançado à água no ·dia 31 de Janeiro de 1858, esse gigante dos mares podia transportar 4000 passagei- ros. Arruinou porém os seus armadores, matou o seu inventor, afogou o seu capitão, foi pilhado pelos seus passageiros, acumulou acidentes e tempestades, suportou uma amotinação da sua tripulação, embateu num recife, abalroou outro navio ... Coleccionou uma tal quantidade · de catástrofes que mais ninguém quis embarcar nele. Acabou como navio lança-cabos, tendo sido desmantelado em 1889. Foram encontrados nos seus fundos falsos dois operários que aí tinham ficado retidos na altura da construção. Durante a Primeira Guerra Mundial, também o submarino alemão UB-65 bateu todos os records do infortúnio. A sua construção, em 1916, custou a vida a cinco operários; durante a primeira viagem, um marinheiro desapareceu; por ocasião da primeira imersão, o submarino <<recusou-se• a voltar à superfície, obrigando a tripulação a doze horas de trabalho para o conseguir repor em marcha. Em doca seca, a explosão de um torpedo causou a morte de seis homens, um dos quais o ime- 43 diato Pedersen, cujo espírito passou a assombrar, a partir de então, o UB-ó5 1 • Em Março de 1918, o UB-ó5 foi afundado, mas conseguiram repô-lo em funcionamento. O Almirantado decidiu então substituir a tripulação, que considerava exausta, por marinheiros que, pelo menos assim o esperava, nunca tivessem ouvido falar do fantasma. Em Julho do mesmo ano, o UB-ó5 foi visto a navegar à deriva; uma silhueta escura, o fantasma do imediato, elevava-se à sua proa. Q submarino afundou-se sem que nenhum dos seus marinheiros tivesse sido visto. Nos anais marítimos abundam os relatos de navios reencontrados sem a sua tripulação, os derelicts, ou navios sem dono, abandonados ao mar. Emana deles um poderoso mistério que sempre excitou a imaginação das multidões. Mas o seu enigma toma-se praticamente insolúvel quando nada de ' Um bombardeamenlo aéreo vilimou o comandanle do submarino. 44 anormal se descobre a bordo: não há vestígios de luta que sugiram uma amotinação, não falta nenhum bote salva-vidas. Foi muito falado o caso do Marathon, encontrado abandonado no dia 28 de Fevereiro de 1855, sendo no entanto o mistério do Mary-Celeste aquele que mais excitou a imaginação do mundo inteiro. O enigma do <<Mary-Celeste» Estava-se no fim do dia 4 de Dezembro de 1872, ao largo das costas de Portugal. A fragata britânica Dei Gratia regressava calmamente a Inglaterra, sob o comando do capitão David Reed Moorhouse, quando o vigia assinalou a presença de um brigue-escuna a estibordo. Esse navio desconhecido nav~gava a duas velas e de uma maneira insólita, ziguezagueando sobre as águas como se estivesse em apuros . Este facto intrigou o oficial, que ordenou a aproximação. O imediato, OHvier Deveau, servindo-se de um óculo de longo alcance, conseguiu ler o nome do veleiro, inscrito na popa a !e- tras brancas: Mary-Celeste, New York. Quando a sua fragata alcançou o navio à deriva, o capitão Moorhouse perguntou pelo megafone se necessitavam de ajuda a bordo. Não obteve resposta; aliás, não se apercebia qualquer movimento a bordo. Talvez a tripulação tivesse bebido demais e jazesse embriagada nas coxias do navio! Em todo o caso, o navio abandonado constituía um perigo, pelo que o capitão ordenou a Deveau que fosse investigar o que se passava, acompanhado de dois homens. O imediato abordou o Mary-Celeste numa chalupa, subiu a bordo e começou a inspecção, não tendo encontrado ninguém, nem nas dependências da tripulação e no salão, nem nas cabinas e nos porões. O Mary-Celeste estava deserto! A despensa de bordo QUilndo foi encontrado ao largo das costas de Portugal, em 4 de Dezembro de I 872, o brigue-escuna Mary-Celeste errava sem tripulantes nem passageiros. estava a abarrotar e reinava uma grande desordem nas cabinas. Deveau reparou especialmente na existência de um harmónio, j.ó ias, uma velha espada ligeiramente ferrugenta, uma boneca, vestuário feminino e, cobrindo o pavimento, uma camada de água do mar. À parte estas singularidades, tudo parecia normal. O livro de bordo relatava os acontecimentos habituais da travessia, desde a partida de Nova Iorque até ao dia 24 de Novembro de 1872, dez dias atrás, data em que o capitão fizera a sua última anotação, a 500 milhas de distância. De acordo com o direito marítimo, o Mary-Celeste, abandonado, constituía um destroço. Moorhouse rebocou a escuna para Gibraltar, a fim de reclamar o prémio de salvamento que lhe era O que terá sucedido ao capitão Briggs (gravura ao lado) e à sua tripulação? Este enigma insolúvel excitou as in'laginações e suscitou um grande número de hipóteses. devido. O Tribunal do Almirantado, presidido pelo procurador Solly-Flood, reuniu-se para estudar o assunto. Sabia-se que, transportando uma carga de álcool, o Mary-Celeste navegava para Génova. O capitão Briggs, que o comandava, embarcara com a sua mulher, Sarah, a sua filha Sofia, de 2 anos de idade, e uma tripulação de sete homens. O procurador Solly-Flood subiu a bordo do Mary-Celeste e examinou o navio. O seu casco, em bom estado, provava que o navio não fora abandonado por ter sido considerado perdido. Chamou-lhe a atenção a espada, cujos vestígios de ferrugem apresentavam manchas de sangue. Descobriu-se depois um corte na roda de proa, causado talvez por um golpe de machado. Mas a hipótese de amotinação que seduzia o procurador não se pôde manter por falta de provas. Aliás. aparentemente, ninguém tocara no dinheiro que se encontrava a bordo . No dia 26 de Março de 1873, o capitão Moorhouse recebia 1000 libras de prémio, isto é, um quinto do valor do navio. O episódio parecia terminado, mas continuava a ignorar-se a sorte dos passageiros do Mary-Celeste. O público apaixonou-se por este enigma, que foi enriquecendo com novos mistérios. Dizia-se que o imediato Deveau e os seus dois homens tinham descoberto roupa a secar na ponte, uma galinha a cozer, uma chávena de chá quente na mesa do salão; afirmou-se que todos os salva-vidas estavam no seu lugar, quando, na realidade, faltava um bote. Imaginou-se um sem-número de explicações extravagantes. Uma delas chegava a sugerir que os passageiros do Mary-Celeste, ante o eventual aparecimento de qualquer serpente marinha ou polvo gigante, tinham caído à água, tomados de pânico. Segundo Sally-Flood, obrigado a concluir o seu inquérito, os membros da tripulação, tendo ingerido ftlcool em demasia, haviam perdido a razão e exterminado o capitão e a sua família, fugindo em seguida no bote que faltava . Mas esta eiplicação não foi satisfatória para ninguém, pois nenhuma mancha de Percurso do Mary-Celeste até à data da última anotação no diário de bordo do seu comandante. sangue fora encontrada a bordo. Alguns afirmaram que o cozinheiro, tendo enlouquecido, envenenara todos os passageiros, lançando-se à água na altura do aparecimento do Dei Gratia, deixando uma galinha a cozer no fogão. Uma outra versão pretendia que o navio chocara com um banco de areia, tendo sido abandonado pelos seus passageiros, que haviam embarcado no bote, naufragando, porém, um pouco mais tarde. Ventilou-se a hipótese de os vapores nocivos do álcool transportado pelo Mary-Celeste se terem 47 acumulado nos porões e de o capitão Briggs ter ordenado a evacuação do navio, julgando-o ameaçado por uma explosão; mas o bote no qual os passageiros tinham embarcado nunca atingira a costa. Imaginou-se também um ataque de piratas mouros, uma epidemia fulminante, uma ilha vulcânica surgida bruscamente das ondas e logo submersa. Supôs-se, enfim, que Mrs. Briggs, quando de um balanço mais forte, fora esmagada pelo seu harmónio (pelo que dela se soube, era muito devota e tocava cânticos durante todo o dia). A dor teria feito perder a razão ao capitão Briggs, que se tornara louco furioso e fora morto pela tripulação durante uma luta. Os marinheiros amotinados não haviam abandonado o Mary-Celeste, tendo sido descobertos a bordo por Moorhouse, que não os denunciou para conseguir o prémio do navio sem dono. O triângulo da morte Foi na zona compreendida entre a Florida, as Bermudas e as Baamas, desig- 48 nada por «triângulo da morte•• , que se encontrou, em 1840, o navio francês Rosalie, abandonado pela sua tripulação. A partir de então, multiplicou-se o número de navios desaparecidos nesta região do oceano Atlântico, a ponto de o facto poder ser considerado um novo enigma do mar. No dia 5 de Dezembro de 1945 , cinco aviões american.os Avenger sobrevoavam esta zona, mantendo ligação com a torre de comando de Fort Lauderdale, na Florida . Ao operador que ordenava ao chefe da esquadrilha que seguisse rumo a oeste este respondeu com uma voz angustiada: ,<]á não sabemos onde fica o oeste. Tudo se confunde ... Tudo é estranho. Mesmo o oceano não se apresenta como deveria ser. " Foram estas as últimas palavras que se lhe ouviram pronunciar. A esquadrilha nunca majs voltou a ser vista e nunca dela foram encontrados destroços . Um hidroavião que partira à sua procura nunca regressou à base. Em 1947 , uma superfortaleza-voadora desapareceu ao largo das Bermudas. Em 1948, um correio transoceânico Tudor IV e depois um aparelho DC-3 desapareceram ·perto da Florida. Em i 949, foi a vez de um Ariel. Em 1950, houve a lamentar a perda de um cargueiro de 105 m, o Sandra, o qual, equipado embora com rádio , não assinalara qualquer perigo. Em 1955, o iate Connemra IV e em 1963 dois stratotankers quadrimotores KC-135, partidos de Miami, desapareceram com as suas tripulações. O triângulo da morte aumenta assim sem cessar a lista das suas vítimas. É assim que, no desafio que desde sempre o homem opõe ao oceano, e apesar dos ambiciosos progressos tecnológicos modernos , o mar conservou uma parte dos seus mistérios. Hoje , os homens tentam arrancar os segredos dos seus abismos. Máquinas aperfeiçoadas permitem-lhes viver debaixo de água. Amanhã, inventar-se-ão meios que permitam a adaptação dos aquanautas à vida submarina e será realizado o velho sonho de transformar o marinheiro em homem-peixe. Selecções do Reader's Digest Rua de Joaquim António de Aguiar, 43 -Lisboa Composição e impressão: Lisgráfica- Impressão e Artes Gráficas Que luz de Baixo 32.000 exemplares. Julho de 1978 Printcd in Portugal