Visualizar/Abrir - Portal Barcos do Brasil

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Visualizar/Abrir - Portal Barcos do Brasil
Alex Vieira
Libris
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AS MlSTERIOSAS LENDAS DO MAR
uma edição de
Selecções do Reader' s Digest
Texto: Jean D. Guerdon
SEGUNDA EDIÇÃO
<l:l Selecções do Reader's Digest (Portugal), S.A . R. L.
Reservados todos os direitos de tradução,
adaptação e reprodução
FOTOGRAFIAS
Anderson/Giraudon, p. 9; Anderson/Viollet, p. 6;
Archives photographiques, p. 14; Bemand, p. 38;
Bibliothêque nationale/S.R.D. J. P. Germain, pp. 2 , 5,
10, 13 , 15, 17, 18 , 26 , 32, 35 , 41; Bibliothêque nationale/S.R .D.
R. Lalance, pp. 28, 29; Colecção Roger Delorme, pp. 45 , 46, 47;
Colecção Georges Sirot, p. 42; Giraudon, p. 22;
Rapho/Kay Lawson , p. 8; S.R .D./Arquivos, p. 21 .
Capa: cortejo de deuses marinhos, por D. Beccafumi , o Mecherino ( 1486-1551) . Contra-capa: Triunfo de Neptuno, mosaico de Chebba
século 11 d. C., que se encontra no Museu do Bardo, em Tunes .
INTRODUÇÃO .......... ........ ................................ .
A CRIAÇÃO DOS MARES ...................................... .
DEUSES E CRJATURAS DO MAR .................. ... ......... .
Neptuno .................................................... . .
Sereias e fadas do mar ... ........... . ............. .... ... ....... .
Gigantes e Ciclopes ........ .. ........... . .. .................... .
Animais marinhos ............................................. .
Do dragão à serpente marinha ....... . ............................ .
Os polvos gigantes ............... . ..................... . ....... .
VIAGENS FABULOSAS .. . ......................... .............. .
O MUNDO VISTO PELOS ANTIGOS NAVEGADORES ............. .
OS FENÓMENOS MARíTIMOS .................................. .
As tempestades e o Maelstrõm ............................ . ...... .
Os fogos-de-santelmo .. ... ... ............ . . ............... ..... .
As ilhas magnéticas ........... ..... . ...... ..... ....... ......... .
ILHAS MISTERIOSAS E ILHAS FANTASMAS ........ ....... ..... .
A Atlântida ................. . .. . . . ...... . ..................... .
YS E OUTRAS CIDADES SUBMERSAS .......................... .
FANTASMAS E NAVIOS FANTASMAS ....... ·.................. ..
O Navio Fantasma ............................................. .
OS NAVIOS MALDITOS . .. .... .. ............ .. ................. .
O enigma do«Mary-Celeste» ................................... · · ·
O triângulo da morte ...... . ................................... .
A serpente marinha i
como é descrita p
Olaus Magnus na
obra His(oria de ge
tibus septentrionalib
(1555) . Gravura t
madeira .
oceano inspirou desde sempre no homem profundos sonhos poéticos. Das vastas extensões marinhas emana uma tal grandeza que os nossos antepassados
viram no oceano a fonte de toda a vida e o fim último de tudo quanto
existe. As lendas do mar reflectem as nossas angústias e as nossas esperanças, o nosso
desejo de evasão e de perfeição, personificados pelos super-homens ou pelos monstros com
que a nossa imaginação povoa a imensidão oceânica.
Estas maravilhosas histórias que os marinheiros de vigia contavam uns aos outros testemunharam até aos nossos dias uma notável permanência e uma surpreendente universalidade. Essas lendas encontram-se, com pequenas variações, em todos os povos e são o reflexo dos sonhos que a Humanidade continua a perseguir através dos séculos. Mundo fluido
do mito, onde os contrários comunicam entre si, onde nada nem ninguém está esclerosado
pela prisão do real, onde tudo é possível e eterno. E onde, no entanto, e aí reside uma das
características do mito, os sonhos se inscrevem visivelmente num lugar, numa paisagem,
vestígio legível, prova pelo absurdo das proezas do inacreditável. No nosso século, de árida
técnica e de fria razão, pode ser fecundo escutar essas vozes do mar que trazem até nós o eco
dos nossos receios e dos nossos desejos.
Em todas as cosmogonias sagradas os continentes eram posteriores ao mar, tendo surgido
do seu seio. No Génese diz-se que «O espírito de Deus pairava sobre as águaS>>, quando
tudo ainda era informe e vazio. Mas os oceanos de hoje perderam as dimensões dessas águas
iniciais, conservando, no entanto, como que um reflexo do seu infinito.
3
O
«A terra estava ausente; um nevoeiro
muito espesso reinava sobre toda a extensão das águas.» É assim que os índios de Nevada, nos Estados Unidos,
descrevem o Mundo antes da sua criação.
<<Havia água e o profundo abismo do
oceano . . . Uma massa indistinta de
água formava todo este universo e as
águas cobriam as águas>>, diz o Rigveda, um dos livros sagrados hindus.
Depois, um dia, as águas surgiram
separadas da terra. Para explicar este
fenómeno, uma lenda neozelandesa
conta que encontrando-se o velho
Morrn a pescar, o seu anzol se cravou
num objecto muito pesado que não
conseguiu retirar da água, embora costumasse pescar baleias. Amarrou então
a linha a uma pomba, que, ao voar, fez
surgir do mar a Nova Zelândia.
Para certas povoações do Mississípi,
foi a espuma do mar que deu origem
4
aos continentes, concentrando-se em
redor de uma tartaruga que nadava e
formando assim as primeiras terras . Os
Calmucos crêem que o solo provém da
condensação da mesma espuma. Ao
sondar com a lança as vagas que sobrevoava, à procura de um rochedo
onde pousar, o deus japonês lzanaqui
provocou salpicos de água salgada cuja
cristalização formou as colunas que,
segundo se acreditava, sustinham o
Mundo .
Outros mitos cosmogónicos explicam-nos como nasceu o mar. Para os
Melanésios, toda a água capaz de matar a sede ao homem estava contida
num orifício coberto por um pano, que
impedia o precioso líquido de se evaporar. Dois irmãos, porém, pretendendo saber o que o pano escondia,
começaram a puxá-lo em sentidos contrários, lutando para decidir qual dos
dois espreitaria em primeiro lugar. E,
quanto mais puxavam, mais o pano
rasgava e mais aumentava o volu
das águas do mar.
O oceano estava contido numa
vore gigantesca, segundo contam
populações Catio, que se encontr
dispersas por diversas regiões das Ar
lhas e da América do Sul. Um dia, 1
esquilo dotado de poderes mágicos ·
tombar a árvore inicial: dos seus gr'
sos ramos brotaram os rios; das s1
ramagens, os riachos, e, em segui•
do seu tronco, o oceano, provocar
um verdadeiro dilúvio que afogaria
homens se Caragabi, seu antepas ~
mítico, vendo o grave perigo que c
riam, não retivesse as ondas impet1
sas com enormes rochedos que forr
ram os actuais continentes.
Segundo os Hurões, o mar bro1
um dia dos flancos de uma imensa
que o deus lskeka abriu para irriga
terra árida. Para os gregos pitagóric'
o mar nasceu de uma lágrima do dt
Crono; os Calmucos diziam-no pro·
niente do sangue de uma mulher
gante. Plutarco acreditava que o r
1 constituída pelo suor da terra
:cida pelo sol, o que explicava o
l, de outro modo incompreensível,
i sua água, originariamente doce
10 a dos riachos, se ter tomado sali.
fma lenda, presente ao longo de
1 a costa da Mancha até aos países
mdinavos, conta-nos que um capida Terra Nová roubou a um feitio um moinho encantado que obeía sempre que o mandavam moer.
!gando ao alto mar, o capitão orde·lhe que moesse sal; o aparelho
,se a trabalhar, mas o seu novo
o esquecera a fórmula que o fazia
1r. Ao fim de algum tempo, o peso
sal fez que o navio fosse ao fundo ,
e o moinho continuou , e continua
la, ininterruptamente o seu trabalho
noer sal.
vura em madeira representando
~ias e crustáceos gigantes, extraída
obra Cosmografia Universal, Mun· (1675) .
nar deu também origem a deuses e
sas . Os Hindus crêem que um ovo
hante como o Sol, contendo Brama,
giu das águas, que secaram em seda, sendo o rio celeste Ganges que,
rendo pela espessa cabeleira de
·a, recobriu de novo a terra. Para os
onésios, o deus supremo Mahatala
iu os dez dedos das mãos sobre o
:ano primordial : «Então, gotas de
ra escorreram-lhe dos dedos, delas
ergindo a criança divina, a virgem
1ta .~ Esta lenda lembra-nos a do
~cimento de Vénus, a mais fascilte das divindades pagãs, deusa do
oor e da Beleza, muitas vezes repre-
nus, nascida da espuma do mar, é
tnsportada para a praia numa
rrcha marinha . Este famoso quadro
Botticelli ( 1486) encontra-se em
orença.
sentada unicamente coberta pelos seus
cabelos, emergindo de uma concha
marinha, símbolo feminino que liga a
mulher ao domínio misterioso e insondável do mar. Também Lakshmi,
companheira de Xiva, nasceu da espuma marinha, assim como grande
número de enigmáticas princesas lendárias. O nome do deus inca Viracocha
significa «espuma do mar».
Neptuno
Pode avaliar-se a importância que o
mar assumia para os antigos pelas nu. merosas divindades com que estes o
povoaram e pela perenidade de culto
que lhes prestaram.
Um dos mais antigos soberanos do
mar é talvez Oanes, o deus-peixe representado nos baixos-relevos babilónicos . Os Gregos e os Romanos veneravam, pelo seu lado, Posídon-Neptuno, deus temível, filho de Sa-
turno (o Tempo) e de Cibele (a Fecundidade), irmão mais velho de Júpiter,
que recebera em herança os mares, as
costas e as ilhas, reinando também
sobre as inundações e, bizarramente,
sobre as muralhas. Mostrava-se particularmente temível quando ofendido.
Os sacerdotes consagravam-lhe cavalos
e touros e mais particularmente o fel
das vítimas sacrificadas, cujo azedume
era propício às águas do mar. Lembremos que Neptuno «inventara ~ o cavalo, fazendo-o surgir da terra com o
seu tridente, tendo sido também ele
quem ensinou aos homens a arte da
equitação. Protegia os navegadores que
lhe pediam para acalmar as tempestades. Em Roma, o mês de Fevereiro
era-lhe dedicado, assim como os jogos
de circo, a que presidia sob o nome de
Hípio.
Representado a maior parte das vezes nu e barbudo, empunhando um tri-
7
dente, Neptuno surge num carro p
xado por dois ou quatro cavalos co
crina de ouro e pés de bronze e cu
garupa termina por vezes em cauda
peixe. O seu carro fende as ondas, q
não o molham sequer; uma podero
majestade emana desta personage
respeitosamente rodeada e festejad
por monstros marinhos e sustida p
golfinhos. Tem o poder de ordenar ao
dragões que provoquem as tempestade
temidas pelos navegadores.
Neptuno habitava com a sua mulher
Anfitrite, filha do Oceano, no fundo d
mar Egeu, num palácio imerso, ruti·
Jante de ouro, nácar e pedrarias, rc·
deado de imensos jardins de alga5.
Muitas vezes se avistava nestas para·
gens a rainha do mar passeando sobre
as ondas numa concha puxada por gol
finhos e cavalos-marinhos.
Uma lenda conta o casamento de
Ne-p\uno e 1\nfi\Ú\e·.
Um golfinho precede Neptuno no seu carro puxado por fogosos cavalos-marinhos.
Mosaico romano do Museu de Sousse, na Tunísia.
8
'à ueu~a ~ecu~\W\>­
-se em absoluto a casar com o lleu'!. ~
Mar, por quem não sentia qualquer h
clinação. A fim de defender a "
causa, o deus resolveu enviar-lhe u
golfinho tão eloquente e tão hábil que
conseguiu comover a princesa, aceitando esta casar com o seu pretendente. O casal teve por descendência
numerosas ninfas marinhas e um filho,
Tritão, homem-peixe, que precedia o ·
pai e anunciava a sua chegada emitindo
sons de uma concha e que gozava da
reputação de acalmar a tempestade.
Sereias e fadas do mar
Entre as outras divindades marinhas, as
Nereides personificavam as mutações
do mar. A mais conhecida e a mais
bela de todas foi Tétis, que gerou o herói Aquiles. Embora alguns autores
descrevam as Nereides como mulheres
com cauda de peixe, não se deve confundir estas divindades com as sereias.
Com efeito, na Antiguidade, as sereias não tinham ainda assumido a
forma que lhes é hoje atribuída. As filhas do rio Aqueloo e de Calíope, a
musa da eloquência - Ligeia, Leucósia e Parténope - , tinham herdado da
mãe um incomparável dom para o
canto. Companheiras de Prosérpina,
Este fresco de Pompeios evoca as Nereides, graciosas divindades marinhas.
Estas, cerca de cinquenta, eram veneradas nas praias mediante oferendas
de leite, mel e cabras.
encantavam com a sua arte a filha de
Júpiter. Mas um dia Plutão, o deus dos
Infernos, raptou a deusa para desposá-Ia. As jovens, inconsoláveis com esta
separação, obtiveram dos deuses o privilégio de serem dotadas de asas a fim
de partirem à procura da sua ama.
Transformadas em pássaros, voaram
até à Sicília, onde pousaram, perto da
costa, sobre um rochedo escarpado, aí
entoando durante todo o dia a sua dor
em cantos melancólicos. Um oráculo
previra que sobreviveriam até que um
navegador resistisse aos seus lamentos.
Mas todos os marinheiros que passavam ao largo do rochedo fatal, seduzidos pelo sortilégio dos seus hinos, precipitavam-se nas ondas e afogavam-se.
A Odisseia, de Homero, conta-nos
como apenas Ulisses conseguiu resistir
a este apelo fúnebre, graças a um subterfúgio. No navio que o trazia de regresso de Tróia para ítaca, ordenou aos
seus marinheiros que tapassem os ouvidos com cera e fez-se amarrar ao
mastro para ouvir as mulheres-pássaros
sem sucumbir ao seu canto. As sereias,
10
O nome das sereias, representadas na gravura acima, deriva da palavra grega
seira, que significa «Cadeia•, símbolo da atracção irresistível dos seus cantos.
alcandoradas nos ossos das suas vítimas, conseguiram seduzir o navegador,
mas como este se encontrava amarrado
e os seus companheiros impossibilitados de ouvir as ordens que dava para
que o libertassem, passou ao largo sem
se aproximar delas . Este insucesso foi
fatal às sereias, que se suicidaram lançando-se ao mar.
As mari morgan, sereias da costa da
Bretanha, habitam em castelos submarinos , rodeados de magníficos parques .
Mostram-se muito acolhedoras para
com os marinheiros, mas aqueles que
as seguem nunca mais regressam a
terra firme. E infeliz daquele que as
tenta enganar! Perto de La Rochelle ,
um pescador de Carântono apanhara
nas suas redes uma sereia que lhe suplicou que a deixasse em liberdade .
Este, porém, não atendendo aos seus
pedidos , levou-a consigo. Mas, na
noite seguinte , uma tempestade arrebatou-lhe a casa, afogou o imprudente
e libertou a sereia.
Conta-se, na Irlanda , que uma sereia
arrastou um dia consigo para o fundo
do mar um tocador de gaita-de-foles.
A partir de então, nas noites calmas, os
pescadores da costa de Kerry ouvem-no tocar a sua ária nostálgica.
As sereias são aparentadas com as
fadas do mar, seres anfíbios, alguns
dos quais inofensivos, e a maior parte
das vezes temidos pelos marinheiros .
Num fiorde da Noruega, o rochedo
Drowning-Stol abriga uma· rainha do
mar que os pescadores vêem com frequência a secar-se ao sol, ocupada a
pentear os longos cabelos de algas .
Um dia, na Bretanha, uma âncora de
um navio fundeado prendeu pelas costas uma fada do mar, que, irada , a lançou ao alto das vergas, gritando aos
marinheiros que a prevenissem, a partir
de então, quando ancorassem, com um
aviso: «Fadas do mar, estais aí?»
Ainda na Bretanha, as fadas das ondas vivem nas grutas das falésias , secam a roupa nos prados que dominam
estes penhascos e vêm banhar-se nas
cavidades rochosas da margem . Mas
não suportam que as observem, fazendo recair a sua cólera sobre aquele
que, tendo a sorte de as surpreender
nos seus divertimentos aquáticos, revele a sua presença.
Diz-se também que é preferível não
avistar ao luar as damas brancas ou
cinzentas, vermelhas ou negras. É verdade que as sereias e fadas são muitas
vezes punidas e transformadas em rochedo por não terem conseguido seduzir algum infortunado com o seu canto.
No entanto, mostram-se por vezes bastante benévolas quando se sabe tomá-las propícias com presentes. Mas
quem pode saber o que lhes agrada?
Os manatins e os dugongos, quando
descobertos pelos sábios, foram por
eles considerados como os verdadeiros
inspiradores destas lendas. Por esta razão foi atribuído, em 181 I, a estes
mamíferos aquáticos o nome genérico
de sirenianos.
A ilha de Ouessant é o domínio
eleito pelos Morgans e pelas Morganas, povo de pequena estatura e muito
belo que esconde sob uma capa de
amabilidade uma alma muito negra. A
ilha de Loch, no arquipélago de Gle11
nan, abriga uma feiticeira, a Groac'h,
que atrai às suas redes os seus amantes
de um dia, antes de os transformar em
peixes.
lemanjá é a deusa-mãe africana cujo
culto se estendeu ao Brasil, senhora
das águas, por quem o filho Urungá,
fruto da união da deusa com seu irmão, se apaixonou, começando a
persegui-la; na sua fuga desesperada,
Iemanjá caiu de costas e morreu. Dos
seus seios surgiram caudais de água
que convergiram num determinado
ponto da Nigéria, formando um lago; o
seu ventre rompeu-se, dele surgindo
várias divindades africanas. Iemanjá
vive recolhida num palácio no fundo
do mar, de onde sai uma vez por ano
para receber as oferendas dos fiéis .
Gigantes e Ciclopes
As sereias não são as umcas criaturas
temíveis quando se embarca para longínquas paragens. Existem gigantes
impiedosos que vivem nas ilhas desconhecidas que se corre o risco de abordar. Deixaram mesmo no nosso planeta
12
indícios VISlveis da sua passagem,
como as «marmitas de gigantes», amplos buracos redondos escavados nos
rochedos que se encontram nas costas
escandinavas e sicilianas.
Para os Tchuktches foi o combate
desses gigantes com um urso branco
que provocou a separação da Ásia e da
América.
Neptuno, lutando com os gigantes,
espalhou pelo mar Egeu ilhas e bancos
de areia, vestígios desta luta titânica.
Aliás, é bastante comum um gigante
transformar-se em rochedo. Um colosso da Noruega apaixonara-se por
uma donzela que o repeliu. Furioso,
lançou-lhe uma flecha que atravessou
a montanha Torghat, originando uma
fenda ainda hoje visível. A seta cravou-se aos pés da jovem, transformando-se numa pedra. Então o gigante metamorfoseou a bela em rochedo, hoje
designado por Virgem de Lek, que os
marinheiros saúdam sempre ao passar.
Conta-se também que Santo Olavo
transformou em pedra uma mulher gigante com a sua roca e o seu fuso.
Quando o capitão Cook abord~
Taiti, os indígenas falaram-lhe, t~
mendo, de gigantes da altura de nav·
que viviam nas ilhas do Pacífico. E
tempos remotos habitavam no ca
Miseno, em Itália, os gigantescos Leso
trigões, temidos pelos navegadores,
pois divertiam-se a lançar rochedos
sobre os navios, ajudados nesta tarefa
pelos seus vizinhos e primos, os Ciclopes, monstros ferozes cujo único olho
foi tomado como símbolo dos vulcões
que abundam nesta região. Mas é mais
poética a descrição atemorizada que
deles faz Sindbad, o Marinheiro, num
dos contos das Mil e Uma Noites: <<Brilhava-lhe, no meio da :festa, um único
olho vermelho e ardente como um carvão aceso; saíam-lhe da boca, tão ra&gada como a de um cavalo, dentes
compridos e aguçados; o lábio inferior
Este mapa da Europa Setentrional t
dos seus mares pertence a uma obra de
carácter geográfico de Olaus Magnus,
publicada em Veneza em 1539.
descaía-lhe até ao peito; as orelhas,
semelhantes às de um elefante, cobriam-lhe os ombros. » Estas criaturas
temíveis devoravam os infelizes náufragos que o destino atirava à ilha.
Animais marinhos
O bestiário fantástico que os mistérios
do mar inspiraram parece inesgotável,
como nos prova a maravilhosa série de
imagens dos primeiros livros de navegação. Bastava a S. Brandão, monge
gaélico que partiu no século x à procura das ilhas Afortunadas, celebrar
missa na sua nau para chamar a si uma
«diversidade inacreditável de animais
que deslizavam em todas as direcções
ou permaneciam em repouso nas profundidades, como animais nas pastagens!». Tomaram-se tão numerosos
que impediram o avanço do navio. Em
1555, Olaus Magnus, arcebispo de Upsália, descrevia esses animais gigantescos na sua História dos Gados: <<Ao
longo das costas norueguesas existem
peixes monstruosos com nomes estranhos, que alguns consideram como
1~
uma espécie de baleia. A sua crueldade
é evidente ao primeiro olhar, bastando
o seu aspecto para aterrorizar os homens, que, se os fitam longamente,
são possuídos por um medo fantástico.
Estes animais apresentam formas horríveis, cabeças quadradas e eriçadas de
espinhos e, a toda a volta, tentáculos
compridos e pontiagudos que lhes conferem a aparência de uma árvore com
todas as suas raízes. O seu comprimento oscila entre os dez e os doze côvados e a circunferência formada pelos
seus olhos enormes mede pelo menos
de oito a dez côvados. O globo ocular,
sendo de um vermelho muito intenso,
permite aos navegantes divisá-los sob a
água como se fora um grande fogo. Estes monstros, cobertos de espinhos,
compridos como penas de ganso, pos-
Jonas na Boca da Baleia. Iluminura da escola francesa (século
uma bíblia da Abadia de Saint-Bertin, em Saint-Omer.
XIV)
pertencente a
suem um corpo de pequenas dimensões
em relação à cabeça gigantesca. Um
desses monstros pode afundar facilmente vários navios. » Esta descrição,
que pretende ser objectiva, pode levar-nos a crer que se tratava de lulas gigantes; permite-nos também imaginar o
terror que dominaria os espíritos simples ao verem-se diante de semelhantes
monstros, num meio desconhecido e
sempre em movimento .
As baleias gigantes inspiraram também muitas descrições fantásticas, nas
quais esses enormes animais são muito
frequentemente confundidos com promontórios. É assim que S. Brandão e
os seus companheiros, ao acenderem
um fogo no cimo de uma ilhota, se
apercebem, um pouco tarde demais, de
que estão instalados no dorso de um
cetáceo.
Quando arpoados, estes animais gigantescos desferem com a cauda golpes tão violentos que escavam fendas
no litoral; os indígenas das ilhas Andamão apontam ainda os vestígios desses combates titânicos .
O narval , mamífero marinho do hemisfério norte, possui um dente extraordinariamente comprido, durante
muito tempo confundido com o apêndice tão precioso do unicórnio, animal
fabuloso , emblema da virgindade, representado com corpo de cavalo e cabeça de cavalo ou cervo, coroada por
um único como. Reis, senhores, dignitários da Igreja·, compravam a preço de
ouro o dente do narval, que utilizavam
como bastão de comando, cruz ou
ceptro. Atribuíam~lhe virtudes mágicas. Limado , revelava, segundo se
cria, os venenos que se corria o risco
de encontrar nos alimentos.
Os golfinhos, ou delfins, excitaram
durante muito tempo a imaginação do
homem . Animais sagrados de Apolo, o
deus da Luz e das Artes, eram para
os marinheiros, na Antiguidade, criatu-
A Caça ao Narval. Gravura extraída
da obra Relation des pays du Nord, de
P. Martin de La Martiniere , publicada
em Amsterdão em 1685.
ras benéficas, com frequência amigas,
embora dotadas por vezes de um humor brincalhão. Fizeram mesmo prevalecer o nome de Delfos (cuja origem
é a mesma da palavra delfim, delphinus) para designar o célebre santuário
grego. Apolo aparecia muitas vezes
sob a forma graciosa destes animais ,
também assumida por Neptuno para
seduzir a ninfa Melantho. O poeta
Aríon, atacado por marinheiros do navio que o transportava de regresso a
casa, lançou-se ao mar, tendo sido recolhido por delfins que o conduziram
até à margem.
São numerosas as histórias que nos
contam a ajuda prestada pelos golfinhos a marinheiros em perigo .
Na baía de Saint-Quay-Portrieux
(nas costas bretãs do Norte) habitava
outrora um animal brincalhão chamado
peixe Nicole, que na realidade devia
ser um marsuíno. Pregava partidas a
todos os pescadores , deslocava-lhes as
redes, libertava o peixe, empurrava os
barcos, levando-os para outro destino
que não era o seu, impedia-os de avan-
16
çar, etc . Contava-se que Nicole era um
antigo guarda de pesca, homem muito
desagradável que uma fada transformara em peixe . Desapareceu depois de
exorcismado pelo pároco, a pedido dos
pescadores, cuja paciência se esgotara.
Entre as criaturas estranhas do mar,
não esqueçamos as aves de rapina,
animais fantásticos que vivem nos escolhos e semeiam o terror entre as tripulações, atacando os navios . S. Brandão, na altura do seu périplo, encontra
um grifo 1 : «Sabei que este pássaro tão
cruel é assim .chamado devido ao poder
das suas garras. Muitas vezes agarra e
leva os navios no mar. »
Do dragão à serpente marinha
Terror dos mares, o dragão tem o
poder de provocar as tempestades.
Guarda no fundo das águas os tesouros
ocultos nos navios naufragados . Também ele provém do elemento marinho,
como o prova a falésia de Tanfoutchi,
1
Grifo deriva da palavra francesa griffe, que
significa . .: garra .. .
em Madagáscar, onde se vêem os rastos deixados pelo monstro quando
vinha à costa devorar seres humanos.
As Nereides, a quem a rainha Cassiopeia ofendera, proclamando-se mais
bela que elas, enviaram um dragão marinho para destruir as costas do seu
reino, perto de Jafa. Para o acalmar, a
rainha foi obrigada a consentir em oferecer ao monstro a sua própria filha,
Andrómeda . Mas o herói Perseu, montado no seu cavai~ voador, Pégaso,
veio em socorro da jovem, que se encontrava agrilhoada a um recife, libertando-a . Outra versão da lenda relata
como Hé rcules salvou a princesa Hesíone , oferecida em holocausto a um monstro marinho instigado por Neptuno.
Em tempos que se pretendiam mais
«científicos», sucedeu ao dragão a ser-
A serpente marinha avistada pela tri pulação da fragata Daedalus, em 6 de
Agosto de 1843. Desenho executado
com base num esboço que reproduz a
cena com muita fidelidade.
Peixe monstruoso destruindo um navio
ao largo da Noruega . Gravura sobrt;
madeira extraída de uma obra de
Olaus Magnus.
pente marinha. No século XVI, Olaus
Magnus conta-nos que os marinheiros
noruegueses encontravam frequentemente uma serpente gigantesca, revestida de escamas cintilantes e de olhos
brilhantes como brasas. Um dos que
a observaram foi um bispo do sé-
18
cuJo XVIII que navegava em direcção à
Gronelândia, quando, ao largo do cabo
Farewell, apercebeu a serpente do mar:
«Ano de 1743, Julho. No dia 6 deste
mês apareceu-lhes um terrível monstro
marinho que, de tempos a tempos, se
elevava sobre as vagas, chegando en-
tão com a cabeça quase à altura do
nosso mastro mais alto. Tinha um focinho muito pontiagudo, o corpo coberto de escamas grosseiras, duas poderosas barbatanas de cada lado da cabeça e soprava como uma baleia. Na
extremidade inferior, o monstro assemelhava-se exactamente a uma serpente e, quando mergulhou de novo na
água, a cauda revelou-se em todo o seu
comprimento, igual ao de um navio.•
Deve ser esta a mesma «serpente» que
o navegador Hans Egede avistou na
Gronelândia em 17 40. A partir dessa
data, as observações sucederam-se.
Mas a sua acumulação provocou, no
século XIX , época do racionalismo
triunfante, uma espécie de cepticismo
geral e trocista.
Um dos mais célebres encontros
com a serpente marinha foi o do capi-
tão Peter Mac Quhae, comandante da
fragata britânica Daedalus, ao largo da
ilha de Santa Helena, no dia 6 de
Agosto de 1843. Foi também frequentemente avistada na baía de Along, nas
costas da Indochina, onde o primeiro-tenente L'Éost, comandante da canhoneira Décidée, a descreveu, em
, 1904: «Apercebi primeiro, a bombordo, o dorso do animal, aproximadamente a 300 m de distância, sob a
forma de uma massa escura arredondada. Pouco depois vi essa massa
alongar-se e emergir com a aparência
de uma serpente achatada, cujo comprimento seria, segundo calculei, de
cerca de 30 m e a largura máxima de
4 m ou 5 m. A sua pele era negra, com
manchas marmóreas amarelas. A cabeça tinha a cor das rochas da baía
(acinzentadas, com manchas brancas
amareladas), assemelhando-se à de
uma tartaruga. A rugosidade da pele
parecia dever-se mais a escamas do
que a pêlos. O diâmetro da parte mais
larga da cabeça oscilava, segundo testemunhas, membros da tripulação, en-
tre 40 em e 80 em. Pela cabeça expelia
dois jactos de vapor de água. Ninguém
viu barbatanas.>>
Apesar do medo do ridículo que
atingia aqueles que avistavam o
monstro dos mares, os testemunhos
continuaram a afluir num ritmo de dois
por ano aproximadamente. No dia 12
de Maio de 1964, o monstro foi avistado por pescadores ao largo de Nantucket, na baía de Massachusetts. Era
negro, media 15 m de comprimento e
apresentava várias bossas no dorso. Foi
cronologicamente a última das aparições da famosa serpente do mar, avistada regularmente ao longo da costa da
Nova Inglaterra desde 1808.
No dia 12 de Dezembro de · 1964,
um casal francês, os Le Serrec, e um
amigo, que navegavam ao longo da
grande barreira de recifes australiana,
avistaram, não longe da costa da ilha
de Hook, um enorme animal em repouso, deitado na areia branca, a menos ~ 2 m de profundidade, semelhante a um girino de rã gigante, com
cerca de 25 m de comprimento e reves-
tido de uma pele negra, desprovida de
espinhos dorsais. O estranho animal foi
diversas vezes fotografado pelos Le
Serrec.
Aqueles que admitem a possibilidade da existência real de um tal
monstro marinho imaginam, evidentemente, uma espécie sobrevivente
de épocas pré-históricas, talvez um
enorme sáurio dos mares da era secundária. Para o zoólogo Bernard Heuvelmans, que estudou cuidadosamente
todas as observações respeitantes ao
monstro, existiriam na verdade várias
espécies de serpentes do mar, sete ao
todo, pertencentes a diferentes tipos de
animais marinhos muito arcaicos, cetáceos, pinípedes ou sáurios. Em todo o
caso, todos os contraditares ·são unânimes em considerar que o monstro
tem de serpente apenas o nome.
Note-se que, em 1930, o navio oceanográfico Dana pescou uma larva de
enguia com I ,80 m de comprimento.
Não existiriam enguias gigantes de
20m? Se é um facto que se conhecem
enguias de 3 m, também é verdade que
19
nunca foram encontradas outras de
maiores dimensões, o que não exclui a
possibilidade da sua existência.
Todas as dissidências diminuiriam se
um dia fosse descoberto qualquer vestígio do animal, mas tal nunca aconteceu. Foi evidentemente assinalado o
aparecimento em praias de animais estranhos, que, porém, se decompuseram
sempre antes que os zoólogos os pudessem examinar e identificar com segurança. E assim foi que, em 1951, em
Hendaia, alguns pescadores descobriram os restos de um animal marinho
que podiam ser considerados como
fragmentos de uma serpente do mar,
mas que os cientistas designaram por
tubarão-peregrino. O mistério do monstro marinho permanece total. A controvérsia continua e espera-se que uma
descoberta imprevisível prove, como a
do celacanto, em 1938, que o animal
está realmente vivo.
Os polvos gigantes
Na Odisseia, Homero descreve um
monstro marinho particularmente re-
20
pugnante. Trata-se de Cila, de que
Ulisses, ao atravessar o estreito de
Messina, que separa a Sicília da Itália,
deve aproximar-se para evitar o escolho de Caríbdis: «É um monstro terrível cuja visão é isenta de encanto, e,
mesmo para um deus, o encontro é desagradável. Os seus pés - em número
de doze - não passam de cotos; mas
as seis goelas das suas horríveis cabeças, assentes em seis pescoços gigantes, deixam ver, quando escancaradas,
três séries de dentes cerrados, imbricados, cheios das sombras da morte.
Conservando metade do corpo enterrada na cavidade da rocha, projecta os
seus pescoços para fora do antro terrível e pesca do alto do seu reduto, à
volta do escolho que o seu olhar pesquisa, os golfinhos e os cães-do-mar e,
por vezes, um desses monstros maiores
que a uivadora Anfitrite alimenta aos
milhares. Ainda nenhum homem do
mar se orgulhou de ter feito o seu navio passar incólume por tal pe~igo: até
ao fundo dos navios de proa azulada
cada goela do monstro vem arrebatar
um homem.» Cila é uma hidra, anim
lendário sem dúvida inspirado pel
polvos gigantes, .outros monstros mar'
nhos temidos pelos navegadores. N
costa da Bretanha, os recifes de Tri
goz gozam da fama de abrigar polvos
gigantescos, que agarram os navios
com os seus tentáculos e os lança
para o fundo das águas, sendo necessário ·pagar-lhes um tributo. Para certos
marinheiros, os turbilhões marinhos,
tão fatais aos navios, são originados
pelo agitar dos tentáculos de certos
polvos, que atingem algumas centenas
de metros.
No dia 30 de Novembro de 1861, a
corveta da marinha francesa Alecton
encontrou ao largo de Tenerife um
polvo de 6 m de comprimento e de cor
vermelho-tijolo, o qual, ao ver-se atacado a tiros de canhão, expeliu a sua
tinta, escapando assim aos agressores. Servindo-se deste episódio, Júlio
Verne, na sua obra Vinte Mil Léguas
Submarinas, fez atacar o Nautilus do
capitão Nemo por uma multidão repugnante de lulas gigantes.
•O polvo brandia a sua
vítima como se esta fora
uma pluma. • A tripulação
do Nautilus luta contra
as lulas gigantes. (Júlio
Verne, Vinte Mil Léguas
Submarinas, 1870.)
Vítor Hugo, nos Trabalhadores do
Mar, apresenta, por sua vei, o recontro do seu herói Gilliatt com um
desses polvos nos rochedos das ilhas
anglo-normandas. Passemos-lhe a palavra: «Este monstro é aquele que os
marinheiros designam por polvo, a
que a ciência ch~ma cefalópode, a que
a lenda chama kraken. Os marinheiros ingleses chamam-lhe devil-.fish, o
peixe-diabo, ou ainda blood-sucker,
sugador de sangue . Nas ilhas da Mancha chamam-lhe polvo .. . Uma gravura
da edição de Buffon, da autoria de
Sonnin, representa um polvo esmagando uma fragata . Denis Montfort
pensa, com efeito , que o polvo das altas latitudes consegue afundar um navio. Tal facto é negado por Bory
Saint- Vincent, que, no entanto, salienta que nas nossas latitudes o polvo
ataca o homem .. . Estes animais são ao
mesmo tempo fantasmas e monstros. A
sua existência está provada e é improvável . .. Assemelham-se a esses seres
terríveis que o sonhador entrevê confu.samente pelo respiradouro da noite ...
21
Desde sempre os marinheiros, antes de
iniciarem as suas perigosas travessias,
tentaram tomar-lhes favoráveis as ter·ríveis divindades do mar. Outrora os
navegadores não hesitavam em praticar
sacrifícios humanos para apaziguar as
tempestades.
O rei Agamémnon foi obrigado a
degolar a sua filha Ifigénia para conseguir que um vento favorável impelisse
a frota grega para o litoral de Tróia.
Mais tarde, porém, em tempos menos
bárbaros, os navegadores passaram a
oferecer, em vez de uma vítima, uma
madeixa dos seus cabelos, um tamanco
ou ... uma casca de noz (costas da Bretanha), que substituíam o )1avio que era
O Bucentauro, galera a bordo da qual
o doge de Veneza «desposava» simbolicamente o mar. Pintura de Francesco
Guardi (1712-1793).
necessário proteger. Nas ilhas Curilas,
os pescadores lançam ao mar pequenas
estátuas de madeira para obter uma boa
travessia.
Os navegadores cristãos tornavam
inofensivas certas paragens perigosas
imergindo na água santas relíquias. Em
326, quando o navio que transportava
Helena - mãe de Constantino - , que
reg~essava do Oriente, atravessava o
golfo de Veneza, na época um local de
frequentes naufrágios, levantou-se uma
forte tempestade. Para a acalmar, a
piedosa imperatriz lançou à água um
prego da cruz de Jesus Cristo. A partir" desse dia, as águas do golfo
tornaram-se serenas. Lembremos que
os doges de Veneza mantinham cuidadosamente relações pacíficas com o
mar. No dia da Ascensão, •desposavam-no»: a bordo do Bucentauro, esplêndido navio decorado CO!tl. esculturas de ouro, o doge dirigia-se para o
mar e lançava às vagas um vaso de
água benta e um anel, enquanto pronunciava estas palavras: ·Desposamos-te, ó mar, em sinal de domínio
honesto e perpétuo.,.
Tornava-se vantajoso obter os favores de seres que tivessem estabelecido
naturalmente uma aliança com as divindades do mar. Uma narrativa da
Nova Guiné descreve-nos como uma
criança foi raptada da margem por génios marinhos, que a guardaram no
fundo das águas durante quatro semanas, rodeando-a de atenções e confiando-lhe os seus segredos mágicos. Em
seguida, entregaram-na aos pais e à
tribo, que dela fez um grande feiticeiro.
Alguns pescadores conseguem com
frequência a aliança de um grande
peixe capturado nas suas redes. •Liberta-me- diz o peixe- e a partir de
hoje trar-te-ei alimentos.,, O pacto é
concluído. Liberto, o grande peixe
conduzirá os seus congéneres para as
redes do seu novo senhor ou" guiá-lo-á
para novas paragens.
23
Os antigos consideravam a Terra como
uma ilha circular, rodeada por um rio,
o rio Oceano, para lá do qual se encontravam as trevas exteriores e os Infernos, morada dos mortos. O Sol tinha o
Oceano por morada, já que nas suas
águas desaparecia todas as noites. Os
Germanos diziam mesmo que aquele
astro se lavava no mar.
Os Árabes acreditavam que Alá
criara sete céus e sete mares sobrepostos, facto este que lhes permitia explicar o fenômeno da chuva: as águas escorrem de um universo para outro,
descendo do oceano superior. Para os
Celtas, o mar unia-se ao firmamento
nas extremidades da Terra. Navegadores temerários tentaram a viagem, a
fim de verificarem a veracidade destas
teorias. Tomou-se como prova da sobreposição dos mundos a aventura de
um marinheiro de Bristol. Um conto da
Idade Média narra-nos, com efeito,
24
que este navegador se encontrava nos
confms da Terra quando, inclinando-se
sobre a amurada do seu navio, deixou
cair uma faca ao mar. No mesmo instante, a sua família , que se encontrava
à mesa em Bristol, viu · a faca cair do
tecto e cravar-se na mesa. Tal facto
constituía para os marinheiros a prova
de que havia também um oceano no
céu, do mesmo modo que existia um,
sem dúvida alguma, no interior da
Terra.
Os Árabes chamavam ao oceano
Atlântico Bahr el-Modhallam, «mar
obscuro e tenebroso>>, ou Baharel
Zholmat, «mar das trevaS>> . Uma obscuridade constante e ventos aterradores
erguendo vagas negras e gigantescas
caracterizavam esta extensão temível
de águas tão espessas que impediam
qualquer navegação.
Os navegadores de outrora, ignorando os limites do oceano, temiam
viajar para muito longe, para regiões
desconhecidas, receando que o mar
terminasse num abismo vertiginoso.
Para os Cartagineses, o oceano Atlântico deixava de ser navegável a partir
dos Açores, devido às ervas marinhas
que obstruíam completamente a passagem às embarcações para lá destas ·
ilhas. É esta a origem da lenda do mar
dos Sargaços, reputado como intransponível.
No Renascimento, os cartógrafos
povoavam ainda os mares com monstros terríficos, como os de Caríbdis e
Cila. No Pólo Norte abria-se um remoinho abissal no qual se precipitavam
todas as águas do Globo. O monge de
Oxford James Knox of Bolduc situava
este abismo entre quatro grandes ilhas
que uma imensa pedra negra emersa
assinalava. Segundo ele, as marés
eram provocadas por esta queda do
oceano no interior da Terra .
A existência das marés - fenómeno
quase despercebido nas costas do Mediterrâneo impressionou grandemente os navegadores mediterrânicos
da Antiguidade quando estes pela primeira vez ultrapassaram o estreito de
Gibraltar, então designado por Colunas
de Hércules. Para eles o fluxo e o refluxo deviam impossibilitar toda a navegação.
Os sábios hesitavam em atribuir a
causa das marés à respiração de um
deus ou a correntes marítimas que circulassem em cavernas profundas. Verificou-se rapidamente que as marés
obedeciam às fases da Lua, o que fez
surgir entre os marinheiros a lenda segundo a qual a Lua engolia o mar para
o castigar, mas, achando-o demasiado
salgado, o vomitava logo a seguir.
As algas que flutuavam à superfície
das águas eram para os Vikings a barba
do herói Olger Danske , adormecido
numa caverna submarina, que continuava a crescer durante o seu sono.
Quando os Vikings avistavam algas
flutuando ao sabor da corrente, costumavam exclamar: << Lá está a barba de
Olger Danske! »
Os habitantes de Fidji crêem que os
deuses deram forma às margens passeando ao longo delas. Onde os tecidos
dos seus vestuários tocavam o solo,
surgiam praias de areia fina; nos outros
locais continuavam a elevar-se rochedos abruptos. Onde a virgem finlandesa Luonnotar pousava a mão, erguia-se um cabo; onde pousava o pé,
abria-se uma cavidade com peixes;
onde batia com a testa, nascia um
golfo.
Os canais, tão úteis aos navegadores, são também atribuídos aos deuses
ou, em terra cristã, a santos . É assim
que os Escandinavos crêem que Santo
Olavo abriu numerosos canais, afas-
tando as montanhas que lhe impediam
o caminho.
Atribui-se também aos vestígios das
correntes marítimas, muito visíveis à
superfície do mar, uma origem sobrenatural. Ao largo de Saint-Malo a aparição das sendas da Virgem, faixas de
cor mais clara que o resto da água,
anuncia a chegada do bom tempo .
O sulco de S. Germano, que atravessa
a baía de Fresnaye, evoca um milagre
que permitiu à estátua do santo atravessar a baía pelos seus próprios
meios, a fim de se juntar aos peregrinos que se encontravam na margem
oposta. O tempo estava tempestuoso e
o santo quisera obrigar os fiéis a contornar a baía para lhe virem prestar
acções de graças .
As tempestades e o Maelstrõm
Entre os numerosos sorvedouros marítimos perigosos para a navegação, o
Maelstrõm, que se situa entre as ilhas
Lofoten, nas costas da Noruega, deu
origem às mais aterradoras lendas. O
bramido que produz ao precipitar-se
25
numa crista rochosa ouve-se a milhas
de distância e cresce ainda no momento do fluxo, pois é provocado pela
maré.· O turbilhão tudo absorve, navios
e marinheiros, que tritura entre os seus
<<maxilares líquidos>>. No entanto, interrompe-se de seis em seis horas, na
altura da mudança da maré, período de
acalmia que certos pescadores corajosos aproveitam, apesar do perigo que
correm, para atravessar o estreito; mas
infeliz daquele que se deixa surpreender pelo fenómeno quando este recomeça! Em 1834, um jovem marinheiro
norueguês, Peter Arneson, e os seus
dois irmãos tentaram a passagem . Infelizmente não aproveitaram a altura do
refluxo, pelo que o seu navio foi arrastado pelo Maelstrõm . Peter, que teve a
ideia de se lançar ao mar agarrando-se
a uma barrica, não desceu para o fundo
Sob o Rugido da Tempestade . Ilustração de Gusta ve Doré para a balada
The Rime of the Ancient Mariner, de
Coleridge ( 1772-1834) .
26
do abismo tão rapidamente como o navio e os seus dois irmãos, que foram
por ele engolidos. Viveu horas de pânico agarrado às bordas daquele funil
gigantesco, mas conseguiu manter-se a
flutuar. A sua aventura inspirou Edgar
Poe, que nas suas Histórias Extraordinárias faz do Maelstrom uma descrição
impressionante: «De repente, muito de
repente, este apareceu e tomou a forma
distinta e definida de um círculo de
mais de uma milha de diâmetro. O
contorno do turbilhão era marcado por
uma larga cintura de espuma luminosa,
nenhuma parcela da qual escorregava
para a garganta do terrível funil, cujo
interior, tão longe quanto os olhos podiam abranger, era constituído por um
muro líquido, polido, brilhante e de
um negro de azeviche, formando com
o horizonte um ângulo de 45° aproximadamente, rodando sobre si próprio,
sob a influência de um movimento
atordoante e emitindo para os ares uma
voz aterradora, semigrito, semi-rugido,
como nunca a poderosa catarata do
Niágara, nas suas convulsões, lançou
alguma vez para o céu.•• Na maré seguinte alguns pescadores recolheram
Peter Arneson exausto. Os seus cabelos tinham ficado completamente brancos. Os navegadores . não temiam somente os turbilhões, mas também as
tempestades e a calma completa, durante a qual o navio à vela não conseguia navegar, pelo que eram grandemente apreciados aqueles que sabiam
manobrar os ventos.
Há entendidos em tempestades que
se afirmam especialistas na domesticação dos elementos. Feiticeiros lapões
manejam-nos ainda hoje, graças a um
lenço cujos cantos foram atados em nó;
basta desfazer um desses nós para ol:r
ter um vento brando, dois para fazer
soprar uma brisa forte, três para que se
levante uma tempestade - neste último caso, pretende-se sem dúvida prejudicar um navio inimigo.
Conhecem-se outras receitas excelentes para provocar um vento favorável: varrer a capela de uma santa célebre, lançando-se em seguida a vassoura ao fogo, ou ainda, quando um
navio está impossibilitado de navegar,
desfechar algumas chicotadas na espuma. Ao rei Erik da Suécia bastava
fazer rodar o seu chapéu para influenciar o vento.
As tempestades são provocadas por
anões ou gigantes (Malásia), por tigres
(Japão, China), monstros marinhos e
ainda feiticeiras, que, para as desencadear, estendem os seus lençóis molhados sobre os rochedos e batem-nos violentamente. Há uma certa relação entre
os gatos e o mau tempo, o que explica
a necessidade, para acalmar uma tempestade, de tratar afectuosamente o
gato da tripulação ou, pelo contrário,
de deitá-lo pela borda fora - as superstições contradizem-se. Mas S. Nicolau continua a ser o grande protector
contra a tormenta. Para regressar sãos
e salvos, muitos marinheiros fazem
uma promessa, tomando S. Nicolau
por seu fiador.
Os fogos-de-santelmo
Um fenómeno que se designa por
fogo-de-santelmo e que os antigos de-
27
Os gêmeos Castor e Pólux. Pormenor de uma gravura de Bloemaert (século XVII).
nominavam estrelas impressionou durante muito tempo as gentes do mar.
Na Antiguidade, atribuía-se aos Dioscuros, os gémeos Castor e Pólux, esse
duplo fogo meteórico ligado à atmosfera de trovoada, saturada de electricidade, que aparece por vezes, geralmente em plena tempestade, no alto
dos mastros . Esses fogos eram considerados como um sinal de protecção
sobrenatural, porque, durante a travessia dos Argonautas, tinham descido
sobre a fronte dos Dioscuros, enquanto
28
a tormenta desencadeada se acalmava.
Se, por infelicidade, o fogo era
único, apontava-se como causa de tal
facto a intervenção de Helena , a célebre beleza responsável pela Guerra
de Tróia, irmã de Castor e Pólux, e o
presságio tornava-se nefasto. Há muito
tempo, Santelmo vivia numa gruta
do estreito de Messina. Uma noite,
S. Cristóvão deu ao sábio eremita uma
lanterna para que este a acendesse nas
noites de tempestade, a fim de guiar os
navios perdidos . Foi assim que os
Dioscuros se tornaram, nos tempos
cristãos, nos fogos-.de-santelmo, embora possa acontecer que o nome desse
santo eremita derive simplesmente de
uma corruptela do nome de Helena.
O fenómeno meteorológico dos fogos-de-santelmo, muito impressionante
no mar, pode, quando aparece sobre a
cabeça de um marinheiro, pressagiar a
sua morte próxima. Segundo outras
crenças, trata-se, pelo contrário, de um
sinal benéfico da protecção da Virgem ,
sendo este fogo então conhecido pelo
nome de Stella Maris.
As ilhas magnéticas
Certas montanhas contêm, segundo
uma crença, uma tal quantidade de
íman que atraem a si todos os navios
que passem nas proximidades . Plínio
afirma que essas rochas magnetizadas
tornam muito perigosa a navegação
junto da costa das Índias. Os navios
que penetrem no seu campo magnético
perdem todos os seus elementos de
ferro e elevam-se como pássaros em
direcção às montanhas, o mesmo acon-
tecendo aos pregos das quilhas, pelo
que se torna necessário prender as tábuas com cavilhas de madeira. Os navios que navegam sobre as massas
magnetizadas que se encontram no
fundo dos mares perdem os seus pregos, desmantelam-se e afundam-se.
Esta crença está presente na epopeia
medieval Huon de Bordeaux, assim
como nas Mil e Uma Noites. Certos
navios rodeados de aros de ferro chegam a ficar colados à rocha, da qual é
impossível afastá-los. No golfo da Finlândia só se podia navegar ao largo da
ilha de Odensholm retirando dos navios tudo o que contivesse ferro. Hoje,
essas lendas diluíram-se na memória
dos homens, mas verificou-se qu·e certos promontórios, como o do sudeste
da ilha de Elba, contêm magnetite suficiente para desorientar as bússolas.
O fogo duplo dos Dioscuros salva da
tempestade o navio dos Argonautas.
Ilustração de Bloemaert (Holanda, século XVII).
Para os antigos navegadores, as ilhas
constituíam não só um porto de abrigo
e uma promessa de alimentos frescos,
mas também um lugar de incerteza, escondendo maravilhas ou horrores.
Na Odisseia, de Homero, Ulisses,
ao longo da sua interminável e difícil
travessia, aborda a ilha de Aea, onde
vive a maléfica Circe, caindo, com a
sua tripulação, em poder da feiticeira,
que, por meio de filtros mágicos,
transforma os homens em porcos. Ajudado pelo deus Mercúrio, Ulisses consegue vencer a feiticeira, que, submetida pelo amor, lhe facultava a visita ao
reino dos mortos.
Ao navegar em direcção ao enigmático continente hiperboreal de Tule,
S. Brandão encontra uma sucessão de
ilhas fabulosas de nomes evocadores:
ilha da Abundância, na qual a tripulação é servida por mãos invisíveis; ilha
Mergulhadora, que desaparece como
30
um peixe; ilha do Silêncio, onde ardem
archotes eternos; ilha das Uvas; ilha
dos Ferreiros ... e, situada na extremidade do Mundo, a célebre ilha dos
Bem-Aventurados, onde reina uma
eterna Primavera e onde brota a fonte
da eterna juventude.
Certas ilhas abrigam, pelo contrário,
uma população inquietante. A crer nos
navegadores árabes, das árvores das
florestas da ilha de Wak pendem, em
vez de frutos, troncos de mulheres
desprovidos de braços e pernas, sus- ·
pensos pela cabeleira. A ilha de EI-Ramany é povoada por gnomos, enquanto a de EI-Mozzasemeh está permanentemente oculta por espessas trevas.
Outras ilhas aparecem e desaparecem sem razão aparente. São denominadas <<ilhas de manteiga», porque parecem derre\er-se como um corpo gorduroso. Na realidade, mudam de lugar
e flutuam sobre as águas. Os racionalistas, cépticos por natureza, consideram-nas grandes massas de gelo ou
ilhas de lava flutuando ao sabor das
ondas.
Outrora, a ilha de Delos flutuava
também graças a Neptuno, que assim
quisera agradar a Juno. Com efeito,
Júpiter, marido de Juno, nutria uma
forte paixão por Latona, que vivia em
Delos. Como a ilha se tornou flutuante, Júpiter já não podia reunir- se a
Latona. Porém, depois do nascimento
de Apolo e de Diana, filhos de Latona,
a ilha ancorou definitivamente no arquipélago das Cíclades.
Plínio afirma que, na Lídia, as ilhas
Calaminas obedeciam aos sacões com
que eram agitadas por aqueles que aí
dançavam. Nas costas da Noruega,
ilhas flutuantes cobertas de árvores
com conchas apareciam e desapareciam no espaço de algumas horas. Os
Irlandeses pretendem que a sua terra
flutuou nas águas durante o Dilúvio .
A ilha de Disco tocava outrora na Gronelândia, impedindo a circulação dos
kayaks, tendo sido deslocada por um
feiticeiro, que a arrastou com a ajuda
de uma pele de foca .
Numerosas ilhas foram descobertas
por navegadores, que descreveram cuidadosamente a sua posição, mas nunca
puderam ser encontradas. Tratava-se,
sem dúvida, de ilhas vulcânicas ou erradamente localizadas pelos marinheiros, que haviam cometido algum lapso
nos seus cálculos. Foi assim que as
ilhas Salomão , descobertas em 1567 ,
só puderam ser novamente abordadas
em 1767, isto é, dois séculos mais
tarde. É ainda mais estranho o facto
de, em 1928, a ilha de Páscoa ter permanecido durante dez dias invisível a
todos os navios que tentavam aproximar-se dela . A imprensa mundial comentou amplamente esse fenômeno
misterioso, que aumentou ainda mais a
fama de mágica atribuída à ilha de estátuas enigmáticas .
Algumas miragens espantosas que
ocorrem no mar reflectem a imagem de
terras esquecidas. No golfo de Messina, desde o século XVI, vislumbra-se,
em algumas horas , o reflexo de uma
maravilhosa cidade, constituída porcasas de paredes brancas e castelos encimados por torres . Esta cidade seria a
morada da Fada Morgana, irmã do rei
Artur. A miragem, que os pescadores
da região designam por Fata Morgana,
pertence ao número impressionante dos
fantasmas que povoam todos os mares
do Globo .
As histórias de ilhas fantasmas e
de terras desaparecidas baseiam- se em
parte em factos reais . Em 1447, um
navio mercante português descobria
uma ilha vulcânica a nordeste dos Açores, que se estendia ao longo de uma
extensão de 45 km. Um povo cristão
de que se perdera até o nome habitava-a. A ilha, à qual foi atribuído o
nome de Mam, ou Mayda , passou a figurar nas cartas de navegação. Porém,
em 1555, ninguém conseguiu encontrá-la. Em 1813, apenas um escolho
assinalava a sua presença aos navios
que cruzavam estas paragens, mas
mesmo esse foi engolido pelo mar.
E nunca se soube o que aconteceu aos
habitantes de Mayda.
Numerosas ilhas foram e serão submersas pelo oceano, arrastando por vezes na catástrofe súbita a totalidade dos
seus habitantes . Para as velhas mitologias, estes sismos destruidores eram
sempre provocados pelos pecados dos
homens, tendo sido a Atlântida submersa por Neptuno como punição do
orgulho dos seus habitantes .
A Atlântida
É no Timeu e no Crítias que o filósofo
grego Platão nos revela a existência da
Atlântida , o mais famoso dos continentes submersos . Um velho sacerdote
egípcio de Sais, no delta do Nilo, confiara ao grande legislador ateniense Sólon (século VI a. C.) que, nove mil
anos antes, um imenso continente situado para lá do estreito de Gibraltar
desaparecera em algumas horas no seio
do oceano. Esse cataclismo produzira-
31
DE J.'ATl~AN'I'IIlJ!~,
"
uÃP11K.t
I
Pa.ATOS V.T
-se depois da vitória dos Gregos sobre
os Atlantes. E eis, segundo Platão , o
que conta o velho sacerdote de Sais:
•Os nossos escritos dizem como a
vossa cidade deteve a marcha de um
poderio insolente que invadia ao
mesmo tempo a Europa e a Ásia, lançando-se sobre elas do fundo do mar
Atlântico. Com efeito, naquele tempo
podia-se atravessar esse mar, devido à
existência de uma ilha defronte do estreito a que chamais Colunas de Hércules. Esta ilha era maior que a Líbia e
a Ásia reunidas, o que tornava a passagem para as outras ilhas possível aos
navegadores de então, que através delas atingiam o continente fronteiro que
rodeia este mar longínquo, o mar verdadeiro. Porque, deste lado, aquém do
estreito de que falamos, não existe se-
A Córsega, a Sardenha e Minorca seriam os últimos vestígios da Atlántida ,
segundo esta carta surgida por volta
do ano de 1775 e baseada nos escritos
de Platão.
não uma enseada de· entrada estreita;
do outro lado existe realmente o mar ,
sendo a terra que o rodeia aquela que
na verdade tem direito ao nome de continente . Ora , nesta ilha Atlântida os
reis tinham construído um império
imenso e maravilhoso, que dominava
toda a ilha e muitas outras , assim como
porções do continente. Mais perto de
nós, abrangia ainda a Líbia, até ao
Egipto , e a Europa, até à Tirrénia. ••
A descrição do império atlante é
muito precisa e revela mesmo a existência de um continente situado para lá
do oceano Atlântico, continente ignorado pelos Gregos do tempo de Platão
e que teria sido colonizado pelos Atlantes. Para os geógrafos da Antiguidade,
a Líbia constituía a parte da África situada a oeste do Egipto , a Tirrénia correspondia à parte da Itália ocupada pelos Etruscos.
Se , finalmente, os Atenienses conseguiram desembaraçar-se dos Atlantes, foram ajudados nessa empresa por
uma terrível catástrofe que fez desaparecer o império dos seus inimigos e di-
zimou a sua própria armada. Sempre
segundo Platão, Sólon relata assim a
narração ouvida ao sacerdote de Sais:
«Mas, no tempo que se seguiu, ocorreram pavorosos tremores de terra e cataclismos . No espaço de um dia e de
uma noite terríveis , toda a vossa armada foi engolida de repente pela
terra, o mesmo acontecendo à ilha
Atlântida, que mergulhou no mar e desapareceu. Eis a razão por que ainda
hoje este oceano longínquo é difícil
e inexplorável, devido ao obstáculo
constituído pelos fundos lodosos que a
ilha ao ficar submersa depositou ... Os
únicos sobreviventes foram os habitantes das montanhas , que ignoravam a
arte da escrita. » O que explica a razão
por que os homens esqueceram esse
prodigioso cataclismo .
Platão fornece-nos outras informa·
ções sobre os Atlantes e a sua civilização avançada. Ousados navegadores,
construtores incomparáveis, consideravam-se descendentes do deus Neptuno,
que veneravam na sua capital. Eis
como o filósofo grego nos descreve os
33
magníficos canais que conduziam os
barcos até à cidade, no centro da ilha:
«Os Atlantes escavaram primeiramente
um canal que media 50 estádios (cerca
de 9 km) de comprimento; do mar até
à sua cintura exterior possuía uma capacidade que lhe permitia abrigar os
maiores navios, graças a uma passagem que comunicava com o largo.
Entre os terraplenós dos fossos cavaram ainda valas suficientemente largas
para a passagem de uma galera, apetrechando-as com tectos elevados, para
que permitissem a navegação a coberto; o maior dos fossos que comunicavam com o mar media 3 estádios
(530 m) de largura, a mesma dimensão
do terrapleno que lhe sucedia; das duas
cinturas seguintes, a vala de escoamento cheia de água tinha uma largura
de 2 estádios (355 m), tal como o seu
terrapleno; a vala de escoamento que
rodeava a ilha interior, onde se elevava
o palácio dos reis, media 5 estádios
(885 m). Os Atlantes rodearam com
um muro de pedra a ilha, os diques e
as pontes. Retiraram as pedras das
34
margens da ilha interior, assim como
dos lados dos diques; havia-as brancas,
pretas e vermelhas. Ao remover essas
pedras, escavaram dois lagos interiores
para guardar os barcos, que ficavam
assim abrigados. Entre todas estas
construções, algumas eram simples e
outras formadas de pedras de diversas
cores, misturadas por uma razão puramente estética. Quanto ao muro circular da cintura exterior, foi inteiramente coberto de bronze; o da cintura
interior foi revestido de estanho.
Enfeitou-se de oricalco, metal com o
brilho do fogo, o muro que rodeava a
cidadela.» (A composição deste metal
misterioso permanece um dos grandes
segredos técnicos dos Atlantes.)
Eis, aproximadamente, as informações concretas que nos fornece Platão
sobre a Atlântida, transmitindo-as não
como uma lenda que ilustre a sua argumentação filosófica, mas como um
facto histórico exacto. É esta a razão
por que as suas revelações excitaram,
de há dois mil anos para cá, muitas
imaginações e suscitaram uma litera-
tura prodigiosa, pelo menos em quantidade. Violentas controvérsias puseram em oposição os diversos teóricos,
muitas vezes ocultistas, que vêem n
Atlântida uma espécie de paraíso perdido. Alguns deles chegam a defende
a teoria de que os Atlantes tinham um
origem extraterrena e que foram ele
que trouxeram aos homens as primeira
centelhas da civilização. As opiniõe
mais contraditórias surgiram, e surge
ainda, numa tentativa de localizar
ilha desaparecida. Bailly, astrónomo
de Luís XVI, ·afirmou, em 1778, que a
Atlântida se situava no deserto de
Gobi, onde os geólogos da época tinham descoberto vestígios de um antigo mar. Seguiu-se uma longa polémica com Voltaire. As Cartas sobre a
Atlántida, trocadas entre ambos, alcançaram um grande sucesso. Outros escritores pretenderam que os Açores e
as Canárias são os vestígios do continente desaparecido; essas ilhas seriam,
com efeito, os cumes de uma cadeia
montanhosa afundada. Arqueólogos
mais ousados identificaram a Atlântida
:om a ilha de Heligolândia, no mar do
~orte. Outros situaram-na no Cáucaso;
1utros ainda na cordilheira dos Andes,
mde se encontra a misteriosíssima cilade de Tiahuanaco, e alguns escolhearo a África negra. Pierre Benoit locaiza-a no Sara.
De facto, aos olhos dos historiadores
nodemos a descrição de Platão contém
IUmerosas inverosimilhanças. Há dez
nil anos, nem os Gregos, contra os
Juais os Atlantes teriam combatido,
1em os Egípcios, que teriam recolhido
I sua herança, existiam ainda. Os Gre~os surgiram nas costas do MediterrâleO apenas no segundo milénio antes
ia nossa era. As descrições da civ iização atlante correspondem aproxinadamente às técnicas da Idade do
Bronze, que floresceu na bacia medi-
f::ste mapa da Atlántida , datado de
r803 e da autoria de Bory de Saint·Vincent, situa aquele continente no
ocal onde actualmente se encontram
s ilhas do Atlântico Oriental.
terrânica aproximadamente no ano
2500 a. C.
Depois de devidamente comprovada,
a descrição seria mais plausível se
fosse situada por volta de 1500 antes
da nossa era. Nesta época, a Grécia,
ainda primitiva, já existia; e no Mediterrâneo ocorreu justamente uma explosão vulcânica de grande violência,
que assolou a ilha de Santorino (ou
Thera), nas Cíclades, ao norte de
Creta. Pesquisas recentes no que resta
desta ilha trouxeram à luz do dia, sob
uma camada de pedra-pomes, que
atinge em certos locais 30 m de espessura, os vestígios de uma civilização
da Idade do Bronze tão requintada
como a de Creta. Segundo os sismólogos, a erupção de Santorino foi quatro
vezes mais forte que a de Krakatoa,
entre Java e Samatra, que, em 1883,
causou a morte de 37 000 pessoas e arremessou janelas em redor num raio de
150 km de extensão. A explosão cavou
a baía de Santorino e pulverizou tudo o
que se encontrava no centro da ilha,
cidade e população, dando origem a
36
uma vaga de 21 O m de altura, que varreu todo o Mediterrâneo. Datados pelo
processo do carbono 14 , os vestígios
da ilha remontam a 1500-1300 a. C .
Quando se compara o plano da
Atlântida traçado por Platão com o de
Santorino, as coincidências tornam-se
perturbantes, embora algumas das medidas citadas pelo filósofo grego necessitem de um reajustamento que implica
uma divisão por dez. Poder-se-ia tratar
de um erro cometido na leitura da numeração egípcia. No entanto , certas
dimensões aproximam-se: um círculo
ideal rodeando Santorino mediria mais
ou menos 20 km; Platão avaliava o
comprimento do diâmetro da ilha principal da Atlântida em 130 estádios, isto
é, 23,5 km. Nunca se encontrará, porém, a metrópole de Santorino, já que
foi substituída pela baía do mesmo
nome, actualmente tão profunda no interior da cratera vulcânica que os navios não podem aí fundear. Em contrapartida, procura-se trazer à luz do dia
vestígios de villae e canais que o sismo
apenas soterrou, como em Pompeios .
A localização da Atlântida no m·
Egeu suscita, evidentemente, a indi~
nação dos atlantistas entusiastas, q
lembram que a ilha se situava para
das Colunas de Hércules, isto é,
Gibraltar. Foi, portanto, para eles mo
tivo de alegria o facto de, em 196
arqueólogos submarinos terem desce
berto nas Baamas, a lO m de profund
dade, colunas e dois muros ciclópic9
com uma altura de várias centenas d
metros , em redor dos quais haven
ainda numerosos locais para pesquisaJ
Esta cidade contaria mais de cinco m
anos , o que desorienta os arqueólogos
para quem as civilizações pré-colom
bianas não remontam tão longe.
Um outro continente perdido é o d
Mu, que teria outrora coberto um
parte do Pacífico e de cujos habitante
descenderiam os actuais indígenas d
Polinésia. Este continente, que se es
tendia da índia à América, foi tambér
tragicamente submerso numa noite, h
mais de dez mil anos. As lendas da Po
linésia lembram o grande cataclism
que pôs termo à sua história.
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o
Quanto mais nos interessamos pelas
lendas de cidades submersas, mais nos
apercebemos de que elas abundam,
seja nas margens do Báltico ou nas do
mar Vermelho. Em França é a Brelanha que oferece o maior número de
lendas de cidades submersas. Entre
elas, a da cidade de Ys é talvez a mais
célebre. Cada baía, cada golfo da Bretanha, reivindica-a, de tal maneira a
sua lenda pertence a esta província. Ys
era uma cidade muito próspera durante
o reinado do bom rei Gradlon. A vida
ai decorria entre festas quotidianas e
diversões constantes, pelo que os prazeres provocaram um relaxamento da
fê. A filha do rei, a princesa Dragu, ou
Ahes, também não se esquivava a par!ilhar da vida corrupta dos seus súbditos. O bom S . Guénolé preveniu Gradlon das desgraças que um tal comporlamento, tarde ou cedo, acarretaria,
mas o rei, que amava a filha, ouviu o
santo sem atender aos seus avisos. Foi
então que Dragu se ligou a um belo
viajante , que não era outro senão o
Diabo , o qual a aconselhou a roubar a
chave de ouro que o rei trazia ao pescoço. Era a chave, sugeria ele perfidamente, de fabulosos tesouros que
lhes permitiriam aproveitar ainda mais
as alegrias da vida. Dragu obedeceu e
roubou do pescoço do rei adormecido a
chave , que o estrangeiro utilizou para
abrir as comportas dos diques que retinham o mar. As vagas libertas invadiram imediatamente a cidade . S. Guénolé quis levar o rei no seu cavalo,
mas Gradlon recusou-se a abandonar a
filha, apesar do pecado que esta cometera . O santo conseguiu arrancá-lo da
infeliz e fugir, enquanto o mar cobria a
cidade. Ys jaz hoje, intacta, no fundo
das águas e espera o dia da sua ressurreição. Os pescadores afirmam ouvir
soar os sinos das igrejas nos dias de
festa, tanto na baía de Douarnenez
como nas de Audierne •. Tréguier ou de
Saint-Cast.
Mas Ys não é a única cidade desaparecida. Citam-se também Bidan, no
vale do Rance; Reginae, perto de Erquy; Nasado, nas costas do Norte; a
velha cidade de Chatelaillon , em Charente-Maritime , submersa na Idade
Média; Penmarch, perto de Saint-Guénolé , cujo desaparecimento dataria
apenas do século XVI. Deus visitou um
dia a grande cidade, situada na baía de
Saint-Brieuc , disfarçado de um pobre
velho . Batia às portas, pedindo de beber, mas nenhum cidadão o atendeu, à
excepção de uma velha mulher, que o
recolheu. Em agradecimento, o viajante ofereceu-lhe uma pipa que «mataria todas as sedes>> , afastando-se em
seguida. Sobreveio uma grande seca; a
velha abriu a pipa, cuja água não parou
de correr e provocou um novo dilúvio,
37
no qual pereceram todos os seus concidadãos, só ela se salvando.
É facto histórico que um maremoto
submergiu no século VIII a floresta de
Scissey, na Bretanha. Conta-se que um
eremita, não suportando o grasnar dos
corvos que perturbavam as suas orações, os amaldiçoou; imediatamente o
mar os cobriu, assim como à floresta
e ao monge irascível. No local onde se
erguiam as árvores estende-se hoje a
baía do monte de Saint-Michel. Aperceber-se-iam ainda, entre as ilhas
Chausey e o monte, vestígios de uma
cidade submersa em circunstâncias
análogas às da cidade de Ys.
Na Idade Média acreditava-se convictamente que o mar cobriria a cidade
de Quimper se a vela que ardia na
Capela de Notre-Dame-de-Guenodet se
apagasse. Essa chama manteve-se acesa
até 1792.
Na Irlanda, perto das falésias de
Maher, os marinheiros vislumbram por
vezes, no fundo das águas, luzes da cidade submersa de lnclidon, facto auspicioso que indica aos que têm esta
38
sorte que farão fortuna durante esse
ano .
Para os Escandinavos há igrejas que
se elevam no fundo dos mares, entregues ao cuidado de bispos marinhos.
Alguns desses edifícios emergem por
vezes provisoriamente e por razões
desconhecidas. Um pescador viu, de
repente, para sua grande estupefacção,
uma magnífica catedral surgir diante da
sua barca, no meio das vagas. Aproximou-se dos degraus do adro, cobertos de algas, e penetrou na nave, em
parte obscura: sombras ajoelhadas rezavam. O visitante reconheceu entre
elas alguns dos seus companheiros desaparecidos no mar. Esta visão aterrou-o de tal maneira que saiu a correr
do edifício e voltou para a sua barca no
momento exacto em que a catedral desaparecia de novo no mar.
O Rei de Ys, ópera de Lato, surgida
em 1888 na Ópera Cómica de Paris,
reapareceu em 1966 com este cenário
de Félix Labisse.
A sorte dos náufragos obcecou durante
muito tempo os seus camaradas mais
felizes, o que explica que os fantasmas
desempenhem um papel importante nas
narrativas dos homens do mar. Na Escócia e na Bretanha, as vagas emitem
gemidos enquanto o corpo de um afogado não tiver sido encontrado e enterrado em terra consagrada. Na baía dos
Fantasmas, no dia dos Mortos, elevam-se os clamores de todos os pescadores afogados, que aí se reúnem. Na
Comualha, aparecem durante a noite,
nos areais, homens escorrendo água,
com as mãos vermelhas, e que não
respondem quando interpelados. É elevado o número de falésias onde aparecem os infelizes que aí se suicidaram .
Sio vislumbrados nas noites de tempestade, do mesmo modo que se adivinha a presença nos escolhos, contra
os quais se despedaçaram numerosos
navios, dos espectros dos marinheiros.
Ao longo das costas da Comualha
conta-se, com diversas variantes, a seguinte lenda: um pescador passeava
durante a noite no areal de Port-Towan
quando ouviu uma voz que se elevava
das negras águas e gritava três vezes:
«Chegou a hora, mas não o homem. »
À terceira invocação, uma silhueta
sombria precipitou-se da falésia e caiu
ao mar. É', na realidade, pelas falésias
e pelos cabos que passam as almas em
viagem para o além, cuja porta se abre
no fundo dos mares. Nas ilhas Salomão, os fantasmas dançam numa ilhota
antes de desaparecerem nas ondas.
Para os Taitianos, os mortos vivem no
fundo do oceano, num palácio de coral. Em Bari, na Itália, como em
Saint-Malo, é nas gaivotas que encarnam as almas dos marinheiros mortos
ilo mar, que devem esperar cem anos
antes de se apresentarem diante de
Deus. Quando sobrevoam o porto com
insistência, pretendem indicar que um
navio acaba de ir ao fundo; o seu número indica o das vítimas do naufrágio . Lembremos que fazer mal a um
albatroz acarreta in fel icidade a todos
os navios.
Para os Bretões, como para os Polinésios, as almas são conduzidas para
as ilhas da Beatitude nas barcas dos
mortos. Já o historiador bizantino Procópio, evocando as velhas tradições
celtas, revela a existência dessas barcas, que transportam as almas na ilha
da Bretanha.
A barca vazia, conduzida por Anku,
a Morte, aborda a margem. Um pescador que se sinta chamado a conduzi-la
é obrigado a obedecer, sobe a bordo e
de repente verifica que a embarcação
se toma pesada sob um peso invisível,
o das almas que acabam de se lhe juntar e a quem ele deve fazer passar o
estreito. Depois da travessia, a barca
39
é aliviada da sua carga e o pescador volta às suas ocupações habituais.
A partir de então é maldito e ninguém
lhe dirige a palavra. Ainda hoje, nas
noites calmas mas tenebrosas, se ouve
no mar o bater dos remos da barca de
Anku.
O Navio Fantasma
No oceano, os marinheiros temem o
encontro com o Navio Fantasma, velha
carcaça apodrecida, conduzida por esqueletos, que surge por vezes do nevoeiro, trazendo infelicidade àqueles
com quem se cruza. O seu capitão,
Vanderdecken segundo alguns, Von
Falkenberg segundo outros, não acreditava nem em Deus nem no Diabo.
Cruel, insensível piedade, foi condenado, pelas suas blasfémias, a errar
eternamente, provocando a perda dos
marinheiros. É o Navio Fantasma, cuja
aparição aterroriza as gentes do mar.
Esta lenda inspirou Wagner, que,
a partir de uma balada de Heinrich
Heine, compôs uma ópera em 1843.
O holandês maldito errará no mar com
40
o seu navio enquanto não tiver encontrado, para sua redenção, uma mulher
de uma fidelidade eterna. Daland, o
Norueguês, que ele encontra durante
uma tempestade, promete-lhe a mão de
sua filha Senta. Esta, por sua vez,
apaixona-se pelo holandês, a quem
quer resgatar, pelo que renuncia ao seu
noivo, Erick, para seguir o capitão do
Navio Fantasma, de quem se torna
noiva; este, porém, querendo poupar-lhe a maldição, foge com o seu navio
enquanto decorriam os preparativos
para o casamento. Senta, louéa de dor,
lança-se do alto de um rochedo, enquanto o Navio Fantasma se afunda no
horizonte durante uma tempestade espectacular. Senta provara a sua fidelidade. Das ondas pacificadas elevam-se
as almas resgatadas da jovem e do holandês, unidas numa vida sobrenatural
mística.
O Grande Pára-Raios goza de melhor reputação que o Navio Fantasma.
É aí que se encontram, depois da
morte, os marinheiros mais valentes e
mais alegres, recebidos com todas as
atenções: carne a todas as refeições,
rum à discrição. Divertem-se muito.
O navio é tão grande que conteria facilmente vários continentes e seria necessária uma vida inteira para trepar ao
seu mastro; cada uma das suas roldanas
esconde um albergue. As marés são
provocadas pela água tirada pela sua
tripulação para lavar a ponte. O
Grande Pára-Raios existe desde as origens do Mundo e o seu capitão, de cabelos brancos, condu-lo para a eternidade.
Mas não existem só navios a assombrar os oceanos. Certos fantasmas, esses humanos, aterrorizam as tripulações, aparecendo de improviso a bordo
dos seus navios. Entre eles, o espectro
Ladylips, que aterroriza o Pacífico, e a
Dama Branca, cujo domínio é o Atlântico.
Para ilustrar o poema de Samuel Coleridge, Gustave Doré evoca as sombras
do Navio Fantasma, perdido nos gelos
do Grande Norte.
s navios são considerados pelos ma'nheiros como seres vivos. Nascem,
ivem e morrem; entre eles e o seu caitão estabelecem-se laços, invisíveis
as quase carnais, que não se podem
esfazer impunemente. A história seuinte é um exemplo verídico desta liação.
Construído em 1897, o Humboldt
restou serviço de transporte de passaeiras e ouro para o Alasca até 1934,
ta na qual o capitão Baufman, que o
omandava, teve de se reformar. Em
seguida, Baufman instalou-se em São
rancisco e o velho navio foi conduZido para São Pedro, onde devia ser
desmantelado. No dia 8 de Agosto de
O transatlântico Great Eastern, aqui
representado numa fotografia de 1860,
continua a ser o mais célebre dos navios malditos.
1935, o capitão morreu; nessa mesma
noite, sem ninguém a bordo, o Humboldt largou do porto de São Pedro, dirigindo-se para o alto mar, onde um
rebocador teve de o ir buscar para o
trazer de novo para o cais.
Sendo os navios entidades quase
humanas (aliás, não são eles baptizados?), têm também o seu carácter e
o seu próprio destino. Alguns deles,
desde o seu lançamento, realizado sob
maus auspícios, dão prova de uma má
sorte que os atormentará até ao fim da
sua vida. Quando um navio é perseguido pelo infortúnio, os marinheiros
consideram-no maldito e hesitam em
fazer parte da sua tripulação.
O navio mais desafortunado da história contemporânea continua a ser o
Great Eastern, um dos primeiros transatlânticos. Lançado à água no ·dia 31
de Janeiro de 1858, esse gigante dos
mares podia transportar 4000 passagei-
ros. Arruinou porém os seus armadores, matou o seu inventor, afogou o
seu capitão, foi pilhado pelos seus passageiros, acumulou acidentes e tempestades, suportou uma amotinação da sua
tripulação, embateu num recife, abalroou outro navio ... Coleccionou uma
tal quantidade · de catástrofes que mais
ninguém quis embarcar nele. Acabou
como navio lança-cabos, tendo sido
desmantelado em 1889. Foram encontrados nos seus fundos falsos dois operários que aí tinham ficado retidos na
altura da construção.
Durante a Primeira Guerra Mundial,
também o submarino alemão UB-65
bateu todos os records do infortúnio.
A sua construção, em 1916, custou a
vida a cinco operários; durante a primeira viagem, um marinheiro desapareceu; por ocasião da primeira imersão, o
submarino <<recusou-se• a voltar à superfície, obrigando a tripulação a doze
horas de trabalho para o conseguir repor em marcha. Em doca seca, a explosão de um torpedo causou a morte
de seis homens, um dos quais o ime-
43
diato Pedersen, cujo espírito passou
a assombrar, a partir de então, o
UB-ó5 1 • Em Março de 1918, o UB-ó5
foi afundado, mas conseguiram repô-lo
em funcionamento. O Almirantado decidiu então substituir a tripulação, que
considerava exausta, por marinheiros
que, pelo menos assim o esperava,
nunca tivessem ouvido falar do fantasma. Em Julho do mesmo ano, o
UB-ó5 foi visto a navegar à deriva;
uma silhueta escura, o fantasma do
imediato, elevava-se à sua proa. Q
submarino afundou-se sem que nenhum dos seus marinheiros tivesse sido
visto.
Nos anais marítimos abundam os relatos de navios reencontrados sem a
sua tripulação, os derelicts, ou navios sem dono, abandonados ao mar.
Emana deles um poderoso mistério que
sempre excitou a imaginação das multidões. Mas o seu enigma toma-se praticamente insolúvel quando nada de
' Um bombardeamenlo aéreo vilimou o comandanle do submarino.
44
anormal se descobre a bordo: não há
vestígios de luta que sugiram uma
amotinação, não falta nenhum bote
salva-vidas. Foi muito falado o caso do
Marathon, encontrado abandonado no
dia 28 de Fevereiro de 1855, sendo no
entanto o mistério do Mary-Celeste
aquele que mais excitou a imaginação
do mundo inteiro.
O enigma do <<Mary-Celeste»
Estava-se no fim do dia 4 de Dezembro
de 1872, ao largo das costas de Portugal. A fragata britânica Dei Gratia regressava calmamente a Inglaterra, sob
o comando do capitão David Reed
Moorhouse, quando o vigia assinalou a
presença de um brigue-escuna a estibordo. Esse navio desconhecido nav~gava a duas velas e de uma maneira insólita, ziguezagueando sobre as
águas como se estivesse em apuros .
Este facto intrigou o oficial, que ordenou a aproximação. O imediato, OHvier Deveau, servindo-se de um óculo
de longo alcance, conseguiu ler o
nome do veleiro, inscrito na popa a !e-
tras brancas: Mary-Celeste, New York.
Quando a sua fragata alcançou o navio
à deriva, o capitão Moorhouse perguntou pelo megafone se necessitavam de
ajuda a bordo. Não obteve resposta;
aliás, não se apercebia qualquer movimento a bordo. Talvez a tripulação tivesse bebido demais e jazesse embriagada nas coxias do navio! Em todo o
caso, o navio abandonado constituía
um perigo, pelo que o capitão ordenou
a Deveau que fosse investigar o que se
passava, acompanhado de dois homens. O imediato abordou o Mary-Celeste numa chalupa, subiu a bordo e
começou a inspecção, não tendo encontrado ninguém, nem nas dependências da tripulação e no salão, nem nas
cabinas e nos porões. O Mary-Celeste
estava deserto! A despensa de bordo
QUilndo foi encontrado ao largo das
costas de Portugal, em 4 de Dezembro de I 872, o brigue-escuna Mary-Celeste errava sem tripulantes nem
passageiros.
estava a abarrotar e reinava uma
grande desordem nas cabinas. Deveau
reparou especialmente na existência de
um harmónio, j.ó ias, uma velha espada
ligeiramente ferrugenta, uma boneca,
vestuário feminino e, cobrindo o pavimento, uma camada de água do mar.
À parte estas singularidades, tudo parecia normal. O livro de bordo relatava
os acontecimentos habituais da travessia, desde a partida de Nova Iorque até
ao dia 24 de Novembro de 1872, dez
dias atrás, data em que o capitão fizera
a sua última anotação, a 500 milhas de
distância.
De acordo com o direito marítimo, o
Mary-Celeste, abandonado, constituía
um destroço. Moorhouse rebocou a escuna para Gibraltar, a fim de reclamar
o prémio de salvamento que lhe era
O que terá sucedido ao capitão Briggs
(gravura ao lado) e à sua tripulação?
Este enigma insolúvel excitou as in'laginações e suscitou um grande número
de hipóteses.
devido. O Tribunal do Almirantado,
presidido pelo procurador Solly-Flood,
reuniu-se para estudar o assunto. Sabia-se que, transportando uma carga de
álcool, o Mary-Celeste navegava para
Génova. O capitão Briggs, que o comandava, embarcara com a sua mulher, Sarah, a sua filha Sofia, de 2
anos de idade, e uma tripulação de sete
homens. O procurador Solly-Flood subiu a bordo do Mary-Celeste e examinou o navio. O seu casco, em bom estado, provava que o navio não fora
abandonado por ter sido considerado
perdido. Chamou-lhe a atenção a espada, cujos vestígios de ferrugem apresentavam manchas de sangue. Descobriu-se depois um corte na roda de
proa, causado talvez por um golpe de
machado. Mas a hipótese de amotinação que seduzia o procurador não se
pôde manter por falta de provas. Aliás.
aparentemente, ninguém tocara no dinheiro que se encontrava a bordo . No
dia 26 de Março de 1873, o capitão
Moorhouse recebia 1000 libras de
prémio, isto é, um quinto do valor do
navio. O episódio parecia terminado,
mas continuava a ignorar-se a sorte dos
passageiros do Mary-Celeste. O público apaixonou-se por este enigma,
que foi enriquecendo com novos mistérios. Dizia-se que o imediato Deveau e
os seus dois homens tinham descoberto
roupa a secar na ponte, uma galinha a
cozer, uma chávena de chá quente na
mesa do salão; afirmou-se que todos
os salva-vidas estavam no seu lugar,
quando, na realidade, faltava um bote.
Imaginou-se um sem-número de explicações extravagantes. Uma delas chegava a sugerir que os passageiros do
Mary-Celeste, ante o eventual aparecimento de qualquer serpente marinha
ou polvo gigante, tinham caído à água,
tomados de pânico. Segundo Sally-Flood, obrigado a concluir o seu inquérito, os membros da tripulação,
tendo ingerido ftlcool em demasia, haviam perdido a razão e exterminado o
capitão e a sua família, fugindo em seguida no bote que faltava . Mas esta
eiplicação não foi satisfatória para
ninguém, pois nenhuma mancha de
Percurso do Mary-Celeste até à data da última anotação no diário de bordo do seu
comandante.
sangue fora encontrada a bordo. Alguns afirmaram que o cozinheiro,
tendo enlouquecido, envenenara todos
os passageiros, lançando-se à água na
altura do aparecimento do Dei Gratia,
deixando uma galinha a cozer no fogão. Uma outra versão pretendia que o
navio chocara com um banco de areia,
tendo sido abandonado pelos seus passageiros, que haviam embarcado no
bote, naufragando, porém, um pouco
mais tarde. Ventilou-se a hipótese de
os vapores nocivos do álcool transportado pelo Mary-Celeste se terem
47
acumulado nos porões e de o capitão
Briggs ter ordenado a evacuação do
navio, julgando-o ameaçado por uma
explosão; mas o bote no qual os passageiros tinham embarcado nunca atingira a costa. Imaginou-se também um
ataque de piratas mouros, uma epidemia fulminante, uma ilha vulcânica
surgida bruscamente das ondas e logo
submersa. Supôs-se, enfim, que Mrs.
Briggs, quando de um balanço mais
forte, fora esmagada pelo seu harmónio (pelo que dela se soube, era muito
devota e tocava cânticos durante todo o
dia). A dor teria feito perder a razão ao
capitão Briggs, que se tornara louco
furioso e fora morto pela tripulação durante uma luta. Os marinheiros amotinados não haviam abandonado o
Mary-Celeste, tendo sido descobertos a
bordo por Moorhouse, que não os denunciou para conseguir o prémio do
navio sem dono.
O triângulo da morte
Foi na zona compreendida entre a Florida, as Bermudas e as Baamas, desig-
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nada por «triângulo da morte•• , que se
encontrou, em 1840, o navio francês
Rosalie, abandonado pela sua tripulação. A partir de então, multiplicou-se o
número de navios desaparecidos nesta
região do oceano Atlântico, a ponto de
o facto poder ser considerado um novo
enigma do mar.
No dia 5 de Dezembro de 1945 ,
cinco aviões american.os Avenger sobrevoavam esta zona, mantendo ligação com a torre de comando de Fort
Lauderdale, na Florida . Ao operador
que ordenava ao chefe da esquadrilha
que seguisse rumo a oeste este respondeu com uma voz angustiada: ,<]á não
sabemos onde fica o oeste. Tudo se
confunde ... Tudo é estranho. Mesmo
o oceano não se apresenta como deveria ser. " Foram estas as últimas palavras que se lhe ouviram pronunciar.
A esquadrilha nunca majs voltou a ser
vista e nunca dela foram encontrados
destroços . Um hidroavião que partira à
sua procura nunca regressou à base.
Em 1947 , uma superfortaleza-voadora
desapareceu ao largo das Bermudas.
Em 1948, um correio transoceânico
Tudor IV e depois um aparelho DC-3
desapareceram ·perto da Florida. Em
i 949, foi a vez de um Ariel. Em 1950,
houve a lamentar a perda de um cargueiro de 105 m, o Sandra, o qual,
equipado embora com rádio , não assinalara qualquer perigo. Em 1955, o
iate Connemra IV e em 1963 dois stratotankers quadrimotores KC-135, partidos de Miami, desapareceram com as
suas tripulações. O triângulo da morte
aumenta assim sem cessar a lista das
suas vítimas.
É assim que, no desafio que desde
sempre o homem opõe ao oceano, e
apesar dos ambiciosos progressos tecnológicos modernos , o mar conservou
uma parte dos seus mistérios. Hoje , os
homens tentam arrancar os segredos
dos seus abismos. Máquinas aperfeiçoadas permitem-lhes viver debaixo de
água. Amanhã, inventar-se-ão meios
que permitam a adaptação dos aquanautas à vida submarina e será realizado o velho sonho de transformar o
marinheiro em homem-peixe.
Selecções do Reader's Digest
Rua de Joaquim António de Aguiar, 43 -Lisboa
Composição e impressão:
Lisgráfica- Impressão e Artes Gráficas
Que luz de Baixo
32.000 exemplares. Julho de 1978
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