Fragrâncias visíveis: a materialidade das práticas

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Fragrâncias visíveis: a materialidade das práticas
Fragrâncias visíveis: a materialidade das práticas culturais nas embalagens de
perfume do século XVIII aos anos 1920
Maureen Schaefer França*
Marilda Lopes Pinheiro Queluz**
Resumo
O objetivo deste artigo é pontuar historicamente algumas imbricações entre o design de embalagens
de perfume, as relações sócio-culturais e a tecnologia, do século XVIII aos anos 1920. A
delimitação deste período deve-se à tentativa de pensar a produção dos fragrantes a partir daquilo
que Don Slater chama de início da sociedade de consumo, até o período do final da primeira guerra
mundial, quando a indústria segue outros rumos. Buscou-se estudar os envoltórios, em sua
materialidade, o modo como constituem e são constituídos por discursos sócio-culturais,
questionando ou reproduzindo estereótipos, tradições, convenções sociais e relações de poder.
cultura material medeia as atividades humanas, sendo capaz também de proporcionar uma herança
cultural palpável às sociedades, contextualizada em determinado período e lugar.
Palavras Chave: perfumes, design de embalagens, cultura material, história
Abstract
The aim of this article is to point historically some imbrication between the perfume bottles design,
culture and technology, from the XVIIIth to the 1920 decade. The delimitation of this period is the
attempt to think the production of fragrant from what Don Slater calls the beginning of the
consumer society until the end of World War I, when the industry follows a different course. We
sought to study the perfume bottles on its materiality, the way how they dialog with socio-cultural
discourse, questioning or reproducing stereotypes, traditions, social conventions and power
relationships. Material culture mediates human activities, and may also provide a tangible cultural
heritage to societies, contextualized in a given period and place.
Keywords: perfume, packaging design, material culture, history
Os artefatos funcionam como índices das transformações sócio-culturais, políticas,
econômicas e tecnológicas, podendo expressar valores simbólicos de um determinado período e
lugar, construídos ao longo da história. A interpretação dos significados possíveis dos artefatos
favorece não apenas a sua compreensão, mas também, a do contexto no qual estão inseridos e dos
pensamentos que as pessoas têm sobre o mundo.
O objetivo desta pesquisa é refletir sobre algumas imbricações constituídas historicamente
entre o design de embalagens de perfume, as relações sócio-culturais e a tecnologia. Neste texto,
procurou-se estudar especialmente os frascos de perfume projetados no Ocidente a partir do século
XVIII, pois, de acordo com Slater (2002), foi neste contexto que se iniciou a cultura do consumo,
que ligada à opção, ao individualismo e ao mercado foi capaz de modificar a relação entre os
sujeitos sociais e os artigos de consumo. Os exemplos pontuados vão até os anos 1920, quando o
*
Mestre em Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), [email protected]
*
*
Doutora em Comunicação e Semiótica, professora do Departamento de Desenho Industrial e do Programa
de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
[email protected]
final da primeira guerra mundial traz novos rumos para a indústria e a organização do trabalho,
novos contornos para a moda e o comportamento, marcando o início do modernismo.
Os perfumes ganharam diversos usos ao longo dos anos, sendo utilizados em práticas
culinárias e de higiene, rituais místicos e religiosos, tratamentos terapêuticos e medicinais e também
como elementos de sedução e beleza.
A vida social tornou-se menos cerimoniosa no espaço doméstico durante o século XVIII.
Novos espaços de sociabilidade doméstica surgiram (STRICKLAND, 1999). Os sujeitos
procuravam demonstrar sua posição social através de móveis, tecidos e objetos decorativos da
moda, mas também viver e oferecer momentos prazerosos (BRUNT, 1982).
A elite passou a preferir as linhas curvas do rococó, em vez da retangularidade do estilo
regência, em voga até então. O rococó parece refletir as frivolidades e ociosidades das classes
favorecidas e a sua busca por prazer, conforto e elegância que se refletem nas artes, na arquitetura,
na moda e no design. O estilo passa ser visto como uma referência de luxo e delicadeza, ganhando
forma através de linhas ondulantes, curvas em “c” e “s”, acabamentos dourados, cores pastéis e
coloridas, tecidos estampados com temas da natureza como flores, pássaros, conchas e cenas
graciosas da sociedade.
A materialização do rococó em objetos do dia-a-dia, como o frasco de perfume, pode indicar
não apenas a disseminação de uma moda, mas revelar o desejo da sociedade pelas coleções e por
sistemas de artefatos que apresentem a mesma linguagem formal, conferindo harmonia e
organização visual ao ambiente doméstico. Os envoltórios parecem funcionar como peças
decorativas que se combinam com os mobiliários. Os frascos de perfume pareciam vasos em
miniaturas, embora existissem exemplos de envoltórios figurativos, na maioria, antropomórficos ou
zoomórficos. No século XVIII, há um boom de frascos figurativos, criados a partir de referências
históricas e sócio-culturais, um fenômeno que Moles (1971) associou à manifestação do Kitsch.
Eles são moldados a partir de formatos variados como gatos, pássaros, palhaços, frutas e flores. A
manufatura de Meissen, na Alemanha, fundada em 1709, pelo grão-duque da Saxônia, deu grande
acento à pesquisa e a experiência em utensílios de porcelana, tornando-se referência no continente
europeu (MORAES, 1999). O gosto pelo exótico permeou a criação de muitos envoltórios de
perfume, empregando referências descoladas do seu contexto original.
O desenvolvimento do capital e da indústria atingiu uma escala significativa no final do
século XVIII. As novas fábricas mudaram o cenário europeu, tornando-se uma das paisagens mais
visitadas por viajantes e retratadas por artistas. Simultaneamente a este clima de progresso,
aumentava a preferência dos consumidores pelas antiguidades clássicas. O interesse pelo progresso
e pelo passado eram fenômenos relacionados. O desejo de ver princípios e designs clássicos
aplicados à vida contemporânea vinha, em parte, da vontade de suprimir da consciência a
imprevisibilidade da mudança trazida pelos avanços tecnológicos. Isto porque muitas pessoas
relacionavam o período clássico a uma época de paz, estabilidade e harmonia, uma referência
segura para tempos incertos. O gosto pelas peças clássicas fazia parte do movimento neoclássico,
que se desenvolveu nas décadas de 1750 e 1760 e dominou parte da Europa no final do século
XVIII e início do XIX. O neoclassicismo pretendia recuperar para a arte, o design e a moda, a
pureza de forma e expressão que julgava faltar no estilo rococó. Segundo Forty (2007), não se
tratava de reproduções servis da Antiguidade, pois os designers buscavam usar suas formas e
imagens para camuflar os avanços, que poderiam causar dúvidas nos consumidores.
A douração de produtos, usada na moda rococó, foi deixada de lado. O repertório do
neoclassicismo era composto por poucas cores e, em especial, o branco, que lembrava a cor das
estátuas clássicas genuínas. Usavam-se também relevos e silhuetas de imagens clássicas, além de
adornos, frisos e materiais simulados, que buscavam dar uma aparência antiga convincente aos
produtos. A demanda por objetos neoclássicos atingiu as fábricas de cerâmicas, que passaram a
produzir uma nova gama de produtos, tais como urnas, vasos e camafeus, para compor
coerentemente os ambientes neoclássicos (FORTY, 2007). O estilo neoclássico permeou, inclusive,
as criações de frascos de perfume. Alguns destes foram fabricados em jaspe, um material com
textura semelhante à do mármore desenvolvido por Josiah Wedgwood (1730-1795).
Sob o governo de Luís XV (1710-1774), a indústria francesa de vidro se desenvolveu
enormemente. Em 1767, a França parou de importar frascos de cristal da Boêmia, fundando a
Verrerie de Saint Louis, precursora da Cristallerie de Bacarrat. Sob os auspícios do ministro JeanBaptiste Colbert, a vidraria Bacarrat tornou-se famosa pelo seu trabalho de alta qualidade em cristal,
inaugurando a fama que muitos frascos de perfume desfrutam até hoje. Mas, ainda assim, os
perfumes continuavam acessíveis apenas às classes altas e médias (ASHCAR, 2001).
O rol de fragrâncias aumentou com o passar das décadas. Alimentava-se o gosto por
fragrâncias mais doces, florais e de frutas, mas também por fragrantes exóticos e fortes, para evocar
luxo e prestígio. Grandes nomes foram lançados na perfumaria mundial: Jean-Louis Fargeon (17481806), provedor oficial de perfumes para Maria Antonieta, e Jean-François Houbigant (1752-1807),
que desenvolveu fragrâncias especiais para os Bonaparte (ASHCAR, 2001).
Durante a Revolução Francesa, o mercado da perfumaria regrediu, mas com a ascensão de
Napoleão ao poder, a indústria voltou a prosperar novamente. A aristocracia ganhou destinatários
personalizados, ornados com símbolos da realeza e iniciais dos monarcas. Estojos de couro, madeira
e pérola eram usados pela realeza para guardar frascos de perfume, sofisticando ainda mais o ato de
se perfumar. Há um exemplar que pertenceu à Maria Antonieta (1755-1793), trazendo símbolos
gravados em ouro referentes à rainha consorte da França . O estojo, feito de couro marrom, tinha o
formato semelhante a de um livro. Para Napoleão Bonaparte (1769-1821) foi desenvolvido um
frasco longo e estreito para ser levado dentro da bota durante os períodos de batalha. O imperador
era apaixonado pela água de colônia, desenvolvida em 1714 pelo italiano Giovanni Feminis,
acostumando-se a despejar uma boa quantidade do produto sobre a cabeça todos os dias (ASHCAR,
2001). O frasco comprido tinha coloração verde, trazendo um rótulo com a imagem de três brasões.
Ainda no início do século XIX, os frascos neoclássicos, como aqueles criados pela fábrica
de cerâmica Etrúria do inglês Josiah Wedgwood, continuaram na moda. De acordo com Ashcar
(2001), os perfumes que antes eram feitos sob encomenda, passaram a ser vendidos nos balcões das
lojas de perfumaria no final do século XIX.
Os rótulos, a princípio, identificavam apenas o conteúdo da embalagem, mas na segunda
metade do século XIX ocorreram mudanças no mercado de varejo que provavelmente se
estenderam aos frascos de perfume. A ascensão das marcas como um meio de identificar os
produtos nas mentes dos consumidores acabou por transcender o nome das mercadorias (SPARKE,
2004).
Mas os perfumes ainda compartilhavam frascos genéricos com outros fragrantes,
diferenciando-se apenas pelos rótulos. O cenário só mudou com o surgimento das lojas de
departamento e com o crescimento do mercado global e da concorrência entre os fabricantes, que
acabaram por incentivar a criação de um nome, de um frasco e de uma caixa próprios para cada
perfume (CORNING MUSEUM OF GLASS, 2010).
Enquanto se estimulava a produção de substâncias animais e vegetais, a indústria química
europeia foi capaz de sintetizar, em 1868, cheiros naturais e combinações até então inexistentes a
partir da pesquisa das estruturas moleculares. O pioneiro, obtido pelo inglês William Perkin, foi a
cumarina, evocando feno fresco. Outros se seguiram: almíscar (1888), baunilha (1890), violeta
(1893) e cânfora (1896). Foram sintetizados também os aromas de flores cujas fragrâncias não
podiam ser obtidas por nenhum método de extração como lilás, lírio-do-vale e gardênia (ASHCAR,
2001).
Entre os grandes perfumes do século XIX destacaram-se os sintéticos Fougère Royale, da
Houbigant, e Jicky, da Guerlain. Fougère Royale, de 1882, foi o primeiro fragrante conhecido a
fazer da cumarina, dando início à perfumaria moderna. Para Ashcar (2010), o fragrante Fougère
Royale da Houbigant está relacionado à divisão entre famílias olfativas femininas e masculinas, que
ocorreu no final do século XIX. De acordo com Ashcar, Fougère Royale é o fragrante mais antigo
de que se tem notícia a lançar uma tendência olfativa exclusivamente para o público masculino. O
perfume, inclusive, acabou por emprestar seu nome à criação de uma nova família olfativa
masculina: Fougère.
Já o perfume Jicky, de 1889, apresentado em um elegante frasco de cristal Baccarat, acabou
por conquistar as damas da época, embora fosse consumido amplamente pelo público masculino.
Para o perfumista Jean-Claude Ellena, o fato pode estar atrelado à mudança das preferências das
mulheres, que passaram a se interessar tanto pelas fragrâncias naturais quanto pelas sintéticas
(PERFUME PROJECTS, 2010).
Os eventos relacionados aos perfumes Jicky e Fougère Royale parecem indicar que as
fragrâncias sintéticas, por serem consideradas mais modernas e científicas, foram destinadas
inicialmente aos homens. Já os perfumes feitos com ingredientes naturais pareciam estar mais de
acordo com o público feminino, associado historicamente, com os conceitos da natureza: a pureza e
a sensibilidade das flores, a delicadeza dos pássaros, a fertilidade da terra. De acordo com
Knibiehler (1991), tudo aquilo que traduzia ideias de sensibilidade, pureza e delicadeza das
mulheres era bastante valorizado na Europa do século XIX: o uso de laços e fitas, cabelos
encaracolados e pele clara. A valorização de tais conceitos através de imagens, corpos e gestos
visava reforçar o lugar das mulheres na sociedade, fortalecendo ainda mais o poderio dos homens. É
possível que os perfumes naturais e suaves também fizessem parte do sistema desse discurso sóciocultural.
O perfume tornou-se mais acessível para a população ao final do século XIX, com o
desenvolvimento de novas tecnologias de produção, que possibilitaram métodos menos onerosos. A
emergente classe média deu aos fabricantes de perfume um mercado novo e amplificado. Os
perfumes europeus atravessaram continentes, tornando-se uma mercadoria internacional
(CORNING MUSEUM OF GLASS, 2010).
Em 1900, as pessoas respiravam outros ares, o mundo estava mudando, vivia-se uma época
com novos desenvolvimentos científicos e tecnológicos: a chegada da luz elétrica, do telefone, do
automóvel, do bonde, do cinema; avanços na medicina e o surgimento de novos campos da ciência.
As mudanças acabaram por trazer grandes transformações aos cenários urbanos, influenciando o
comportamento das gerações que viveram entre o final do século XIX e o início do XX
(SEVCENKO, 1998). O poder da tecnologia no início do século XX superou as expectativas que
qualquer outro século pode imaginar, suscitando otimismo e boas perspectivas para um futuro
próximo, estimulando ainda mais as migrações de populações campesinas para os centros urbanos.
O clima da Belle Époque agitou a arte, a moda e a perfumaria, que acabou por ganhar espaço
na Exposição Universal de Paris de 1900. Estimulada pelos lançamentos de François Coty (18741934), famoso perfumista francês, a perfumaria ganhou maior importância cultural: “Entendendo
que o crescimento da perfumaria dependia de uma expansão para diferentes classes sociais, lançou
mão de todos os recursos disponíveis para incrementar o setor como arte e como indústria”
(ASHCAR, 2001, p. 146).
No início do século XX, a garrafa em si se associou cada vez mais ao conteúdo, em grande
parte devido ao trabalho conjunto de uma dupla francesa: o perfumista Coty e o designer René
Lalique (1860-1945). A busca de Coty e de Lalique por envoltórios da mais alta qualidade para
venda comercial revolucionou as ideias sobre o design de frascos de perfume, transformando-os em
verdadeiras jóias de museus. O slogan de Coty, “O perfume é sua embalagem”, reflete a sua
preocupação de chamar a atenção para os envoltórios (REVISTA CLASS, 2010).A fragrância
L’Origan, de 1905, foi a primeira de muitas criações e se disseminou pela capital francesa,
demonstrando que era possível criar um bom perfume a custos reduzidos tanto para as classes
abastadas quanto para as menos favorecidas. Lalique passou a projetar embalagens de vidro,
transformando garrafas padrões em esculturas. Os perfumes faziam parte de um amplo sistema de
vendas composto pelo seu nome, marca do fabricante, rótulo, caixa e frascos feitos especialmente
para eles (CORNING MUSEUM OF GLASS, 2010).
Com a expansão do perfume para diferentes classes sociais, criou-se uma nova demanda
para fabricação de vidros em massa. A primeira máquina semi-automática para produção de vidro
foi criada pelo alemão Schiller, revolucionando o sistema de fabricação ao facilitar a produção de
garrafas em série. A máquina é utilizada até hoje em pequenas fábricas manuais. Paralelamente, o
americano Owens desenvolveu uma máquina totalmente automática, tornando possível, pela
primeira vez, a estabilidade dimensional. Isso assegurou ao vidro o posto de principal matéria-prima
para frascos de perfume. Ainda no início do século 20, a indústria do vidro inventou um
equipamento chamado Feeder que possibilitou a automatização de todo o processo. Em 1925,
Henry Ingle, engenheiro da Hartford Empire Company, desenvolveu nos Estados Unidos, a
máquina conhecida como IS (Individual Section), que veio a se tornar o padrão de produção até os
dias de hoje, sendo responsável por praticamente toda a produção mundial de frascos de vidro
(ASHCAR, 2001).
Outra invenção largamente empregada nos dias de hoje foi o atomizador – dispositivo usado
em recipientes para pulverizar líquidos. De acordo com EHow (2010), ele foi desenvolvido pelo Dr.
Allen DeVilbiss em Ohio, em 1887, para borrifar pequenas doses de remédio na boca de seus
pacientes. No final do século 19 ou início do século 20, ele passou a ser usado em frascos de
perfumes, regulando a quantidade do conteúdo a ser utilizado, a fim de minimizar seu desperdício.
O perfume tornou-se parte da moda, configurando junto ao vestuário, padrões de
comportamento, estilos de vida e fantasias. Paris, centro mundial da moda e da perfumaria na
época, ditava as regras de elegância e comportamento, influenciando o modo de se vestir e de se
portar das pessoas, como também o nome de muitas marcas deste período (ASHCAR, 2001).
A conexão entre moda e perfume tornou-se mais visível depois que Poiret (1879-1943)
lançou Rosine, em 1912, inaugurando o conceito “fragrância de estilista”. Dizia ele: “O vestido lhe
cai perfeitamente, mas se você acrescentar uma gota do meu perfume, vai ficar deslumbrante”
(ASHCAR, 2001, p. 148). O perfume passou a fazer parte da personalidade das roupas femininas,
embora houvesse pouca abertura para o público masculino neste sentido. O frasco de vidro do
perfume Rosine era pintado à mão por moças do Atelier Martine. Trazia motivos de rosas e listras
em referência ao estilo Diretório, empregado pelo estilista na criação de seus vestidos (1000
FRAGRANCES, 2010).
A apresentação visual dos perfumes cresceu em importância, tornando-se uma arte de
embalar sonhos e desejos. Christie Mayer Lefkowith, expert em frascos de perfume antigos,
considera a virada do século XX o apogeu do luxo engarrafado, quando o rótulo tradicional em
garrafa anônima deixou de ser suficiente para seduzir o consumidor. Os invólucros tornaram-se
cada vez mais ostentatórios, ganhando plumas, fitas e adereços de metal e baquelita - o primeiro
plástico a entrar na moda.
No final do século XIX e início do XX, muitos frascos apareceram com nova roupagem,
influenciados pelo estilo Art Nouveau. O estilo iniciou-se em torno de 1880, quando designers e
arquitetos procuravam moldar um futuro baseado no novo. A rejeição ao historicismo, o
acolhimento da produção em massa e o foco no natural como fonte de inspiração constituem fatos
chave deste estilo. Para Fiell e Fiell (2005), a razão que levou os designers da época a procurar
inspiração na natureza estava relacionada às pesquisas científicas sobre o mundo natural - como o
tratado de Darwin “Sobre a origem das espécies” de 1859, as ilustrações de botânica de Ernst
Haeckel e os estudos fotográficos de flores de Karl Blossfeldt do final do século XIX. O estilo
caracterizou-se, de modo geral, pelas formas orgânicas, linhas sinuosas, curvas chicote e motivos
inspirados na natureza e na mulher, embora tenha se manifestado de maneiras diferentes em vários
países. Muitos propunham materializá-lo em artefatos e sistemas industrializáveis através de
materiais de fácil reprodução como vidro, ferro, bronze e etc., simbolizando o desenvolvimento
industrial e o modo de vida dos centros urbanos (MORAES, 1999). Os designers de frascos de
perfume usaram inicialmente o Art Nouveau na criação dos rótulos e nas caixas de perfume,
investindo, em um segundo momento, na modelagem das garrafas (PERFUMES.COM, 2010).
René Lalique desenvolveu diversos frascos de perfume não só para Coty, mas também para
Worth, D'Orsay, Guerlain e Roger & Gallet. Muitas das suas embalagens foram inspiradas nos
estilos Art Nouveau e Art Déco, produzidas pela fábrica de vidros Legras et Cie (FIELL e FIELL,
2005).
A necessidade de reconstituir vidas e cidades após a Primeira Guerra Mundial (1914- 1918)
estimulou uma era nova e moderna, que testemunhou o aumento de riquezas e da urbanização. A
modernidade passou a fazer parte do cotidiano de uma grande parcela da população do mundo
ocidental industrializado, sendo expressa através de mercadorias, revistas, filmes ou até mesmo pela
maneira de fumar (RAIMES e BHASKARAN, 2007 e SPARKE, 2004).
A modernidade se tornou especialmente evidente na moda feminina do pós-guerra,
substituindo formas suaves e fluídas por uma silhueta mais linear. Com a mobilização das mulheres
durante a Primeira Guerra Mundial, as roupas se tornaram mais práticas e confortáveis. Muitas
mulheres buscaram inspiração na estética da máquina, a qual influenciou inclusive cortes de
cabelos, que se tornaram aparentemente mais curtos (ASHCAR, 2001 e SPARKE, 2004).
A vida nas cidades estava visualmente transformada, moças das camadas altas e médias,
chamadas moças de família, “passaram a se aventurar sozinhas pelas ruas da cidade para abastecer a
casa ou para tudo o que se fizesse necessário” (SEVCENKO, 1998). O aumento nas vendas de
produtos de beleza pessoal – de vestidos a maquiagens – acabou por revelar os resultados de uma
estratégia formulada pela indústria e pelos publicitários: a de que as mulheres deveriam definir tanto
o seu status social quanto o da sua família através da compra de produtos (SPARKE, 2004).
A utilização da linguagem modernista na criação de embalagens tornou-se muito importante
para o comércio de produtos, pois trabalhava a ideia de que, através do seu consumo, o público
poderia tornar-se mais moderno. Entretanto, o caminho para a modernidade não era o mesmo para
todos; visto que as categorias culturais como gênero, classe, idade e etnia, afetam o modo pelo qual
a modernidade é negociada.
Muitos frascos de perfume passaram a ser modelados segundo a linguagem modernista do
Art Déco, o estilo da moda que, segundo Bhaskaran (2005), surgiu na França por volta da década de
1910, tendo alcançado seu auge nos anos 30. O estilo foi nomeado a partir da Exposição de Artes
Decorativas e Industriais Modernas, amostra internacional de artefatos de design contemporâneos,
realizada em Paris, em 1925. Para Bhaskaran (2005), existem duas variações estilísticas dentro do
Art Déco, cada qual com o seu repertório estético: o estilo Boudoir e o estilo Moderno. O primeiro,
influenciado pelo descobrimento da tumba do faraó Tutancâmon em 1922, utiliza materiais
luxuosos e referências orientais para criar um estilo exótico; busca inspiração nas pirâmides e nos
obeliscos do Egito, na moda de Paul Poiret e nas cores brilhantes e fantasias dos balés russos de
Diaghilev.
Já o estilo Moderno é influenciado pelas linhas abstratas e formas simplificadas do
construtivismo, cubismo e futurismo. Traz ainda a inspiração nas máquinas, adotando formas
geometrizadas, cromados, motivos de faíscas (em referência à eletricidade), a perspectiva, cantos
arredondados, a repetição e a sobreposição de formas, ziguezagues e cores vivas na celebração às
viagens, à velocidade e ao luxo.
As fontes tipográficas do Art Déco são bem variadas, algumas mais austeras e outras mais
decoradas, mas de modo geral, são construídas a partir de padrões geométricos. Muitas palavras são
escritas em caixa alta e com fontes com corpos bem pesados, mas também há exemplares de fontes
sem serifa, bem delicadas e elegantes. O estilo passou das produções altamente decorativas do
início da década de 1920 ao elegante funcionalismo dos anos 30 (BHASKARAN, 2005).
O frasco do perfume Shalimar, da Guerlain, lançado em 1925, tornou-se um dos ícones da
década de 20. Modelado a partir do estilo Art Déco, alinha-se mais ao estilo Boudoir do que ao
Moderno, embora compartilhe características plásticas do último. Inspirado nos Jardins de
Shalimar, construído no século XVII pelo imperador indiano Sha Jahan em homenagem a sua
esposa Mumtaz Mahal, o frasco tem visual exótico e luxuoso. A forma robusta do corpo do frasco
se contrapõe ao pescoço e à estrutura que se apoia à base. Suas formas geométricas são trabalhadas
a partir de repetições e de linhas semicirculares que lembram os arcos dos Jardins de Shalimar.
A estilista Coco Chanel (1883-1971) também trabalhou nesta direção, apostando na
geometrização e no bicolorido suave, que aparecem inclusive no desenho do frasco do perfume
Chanel Nº 5 - fragrante criado por Ernest Beaux em 1921 (ASHCAR, 2001). A forma do frasco,
escolhida pela estilista, representou uma ruptura com as linhas românticas prevalecentes da época,
conquistando consumidoras com sua estética retilínea, que revelava certa modernidade e sobriedade
(CHANEL, 2010).
O fragrante Chanel N°5, que se tornou um dos grandes ícones da perfumaria do século XX,
fez parte dos planos da estilista de aliar as fragrâncias à maneira de viver do público. Chanel
buscava vender não apenas novas silhuetas e fragrâncias aos consumidores, mas antes disso, um
estilo de vida permeado por suas criações. “A tendência lançada por Poiret antes da I Guerra
Mundial expandiu-se rapidamente. Depois de Chanel, cada nome da alta-costura assinava pelo
menos uma fragrância: Patou, Molyneux, Worth, Schiaparelli, Weil” (ASHCAR, 2001, p. 150).
A embalagem empresta suas cores, materiais e texturas, procurando exteriorizar os
significados da composição olfativa, além de conceder a primeira impressão do produto,
antecipando os efeitos do fragrante. É possível perceber, através das transformações das aparências,
das configurações e dos significados possíveis dos envoltórios, paralelos entre as inovações
técnicas, os usos e os valores da sociedade.
A “fisicidade” da cultura material é apenas uma de suas dimensões de expressão. O universo
dos objetos não se situa fora do fenômeno social, mas, o compõe, compartilhando suas ideias e
valores. “O mundo das coisas é realmente a cultura em sua forma objetiva, é a forma que os seres
humanos deram ao mundo através de suas práticas mentais e materiais; ao mesmo tempo, as
próprias necessidades humanas evoluem e tomam forma através dos tipos de coisas de que
dispõem” (SLATER, 2002, p.104)
Estudar as biografias dos produtos do cotidiano tem grande relevância, pois funcionam
como testemunhas e mensagens da sociedade ao indivíduo. A capacidade do design de construir e
representar ideias sobre uma série de categorias culturais, tais como classe, gênero, etnia, geração
entre outras, oferece aos indivíduos pontos de ancoragem que balizam as construções de suas
subjetividades.
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