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RAIVA E A VINGANÇA NAS PERSONAGENS FEMININAS DE TARANTINO Julyana Batista Messeder Aluna de Jornalismo Sônia Maia Teles Xavier Professora (Unileste) RESUMO O artigo tem como objetivo analisar o perfil de algumas mulheres representadas nos filmes dirigidos por Quentin Tarantino. Tem como objeto de investigação os filmes “Kill Bill 1 e 2”, “Jackie Brown”, “À prova de morte” e “Bastardos Inglórios”. Pretende investigar os sentimentos de raiva e vingança bem presentes nas tramas. Debruçase, de modo específico, sobre a personagem Shosanna Dreyfus, do filme Bastardos Inglórios. Além disso, aborda a história do feminismo relacionando-a aos perfis dessas mulheres, construídas pelo diretor, com um modelo que rompe com o que é estabelecido pela sociedade. Apoia-se, teoricamente, nos textos de Lúcia Santaella (2011), Fraser (2005) e de Martin (2007). Utiliza a metodologia de análise de conteúdo e semiótica. Os resultados apontam para o fato de que o diretor rompe com o padrão pressuposto socialmente, pois apresenta suas protagonistas como mulheres fortes, capazes de ter o controle de sua própria história. Além disso, demonstra como esses sentimentos universais, catárticos, tornam-se pontos-chave de identificação do telespectador com o enredo fílmico. Palavras-chave: Cinema. Feminismo. Representação feminina. Tarantino. 1 INTRODUÇÃO Desde sua invenção, no final do século XIX, pelos irmãos Lumière, o cinema passou por inúmeras modificações, em diversas áreas como narrativa, adaptação e técnica. O cinema retrata de forma bastante particular e, até mesmo, de forma subjetiva a „realidade‟. Essa interpretação da realidade depende de diversos fatores, como o fator cultural e social do espectador, mas principalmente, o ângulo e visão do diretor. Quentin Tarantino é um renomado diretor, roteirista e produtor de cinema estadunidense, famoso por seus filmes “Pop‟s” de roteiros não lineares, o uso de violência, além da fotografia extremamente saturada e principalmente pela metalinguagem utilizada. O auge de sua carreira se deu na década de 1990. As mulheres, em seus filmes, são protagonistas fortes, vibrantes e violentas, sempre armadas em busca de vingança. CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 419 Essa linha de pensamento do diretor contrapõe algumas “questões de gênero” prédefinidas pela sociedade. Questão de gênero diz respeito a padrões fixos do que é relativo ao feminino e ao masculino. Ou seja, são regras de comportamento sedimentadas pela sociedade, baseadas em um conceito histórico-cultural que define a conduta do ser humano. A representação da mulher, em alguns dos seus filmes, corresponde a um comportamento considerado tipicamente masculino. As mulheres de Tarantino representam e respaldam, de certa forma, essa luta por respeito e igualdade de direitos. À primeira vista, seus filmes correspondem a um universo tipicamente masculino, devido à violência constante. Entretanto é possível observar essa quebra de paradigmas realizada pelo diretor em alguns filmes como “À Prova de Morte”, “Jackie Brown”, “Kill Bill 1”, “Kill Bill 2” e “Bastardos Inglórios”, onde as “mocinhas”, aparentemente anjinhos, são protagonistas reconhecidas por sua força, sempre armadas e movidas pelo desejo de vingança. Nessa perspectiva, rompe com a corrente de pensamento de que, para serem femininas, as mulheres não podem ser autossuficientes, ou seja, devem sempre corresponder ao papel de subordinação imposto a elas pela sociedade. É preciso ressaltar que os debates sobre essas “questões de gênero” vêm, historicamente, desencadeando uma série de movimentos feministas por meio de uma luta sócio-política em busca de igualdade de direitos e, sobretudo respeito às diferenças e divisão de papéis, principalmente no espaço doméstico, entre homens e mulheres. Como explica Xavier (2008, p.6) em seu artigo, “Por falar em Mulheres...”: Uma das lutas iniciais promovida pelas mulheres deu-se não apenas com o objetivo de luta por uma igualdade legal ou contra as restrições dos seus direitos, mas de modo específico, pela eliminação de obstáculos que sempre se interpuseram diante delas, impedindo-lhes o pleno desenvolvimento como pessoas [...] Não se trata de uma simples disputa por igualdade, mas de iguais oportunidades. Esses debates tratam de várias possibilidades de interpretações relativas à forma como a sociedade administra e impõe o conceito de “relação de gênero”, seja em relação ao poder e sua distribuição ou a questão de uma maior participação da mulher no mercado de trabalho e na política. CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 420 De acordo com o termo “questões de gênero”, formulado na década de 80, por Joan Scott e Gayle Rubin, pesquisadoras de língua inglesa, abordando a história da luta do movimento feminista em busca de uma sociedade mais justa e igualitária. O diretor Quentin Tarantino rompe com os paradigmas por meio dos sentimentos de raiva e vingança, comum entre suas protagonistas, colocando-as em equidade com o gênero masculino. No primeiro tópico, define-se o que foi o movimento feminista e a importância dessa luta na sociedade. A história do feminismo teve como base a filósofa, escritora feminista Nancy Fraser (2005). Para associar o cinema ao movimento feminista foram considerados os pressupostos teóricos de Marcel Martin (2007). No segundo capítulo, foi realizado um perfil de cada uma das mulheres dos filmes analisados. O terceiro capítulo é a analise da protagonista Shoshana, de “Bastardos Inglórios”, em relação a esse sentimento de raiva e vingança em comum a todas as outras protagonistas, que faz com que haja esse rompimento de paradigmas. Nessa etapa a representação da mulher foi baseada no livro de Semiótica Aplicada de Lúcia Santaella (2011). 2 O MOVIMENTO FEMINISTA Com o intuito de estabelecer uma sociedade mais justa e igualitária, mulheres no mundo inteiro se organizaram, durante o final do século XIX e início do século XX, na Grã-Betanha e Estados Unidos, a favor da defesa de seus direitos diante das desigualdades impostas pela sociedade que privilegia o gênero masculino. Em 1960, a publicação do livro “O Segundo Sexo” de Simone Beauvoir influenciou os movimentos feministas, entretanto foi a partir da convenção dos direitos da mulher, em Nova Iorque, em 1848, que esses movimentos se solidificaram. A luta feminista teve, inicialmente, a finalidade de combater o patriarcalismo enraizado em todos os setores, sejam eles públicos ou privados. Dessa forma, torna-se um desafio para as mulheres combater essas práticas discriminatórias, que se originam em padrões culturais estabelecidos na sociedade. CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 421 O movimento feminista obteve sua primeira vitória nos Estados Unidos e na Inglaterra durante o século XIX e início do século XX, esse período ficou conhecido como “primeira onda feminista”. Em meio a um mundo pós-escravidão, no auge da crise de 29, em meio ao caos político e econômico, as mulheres se uniram para lutar por seus direitos, essa luta teve como foco principal a promoção dos direitos jurídicos e a conquista do poder político. Isso possibilitou a conquista do direito ao voto, ao estudo e ao ingresso no mercado de trabalho. O segundo período da atividade feminina ficou conhecido como “segunda onda feminista”, que surgiu nos Estados Unidos e sucessivamente se estendeu à França em meados da década de 1960 até o fim dos anos de 1980. Essa “segunda onda” foi a grande causadora da formação de toda estrutura, organização e solidificação do movimento feminista, que tinha como principal objetivo a luta pelos direitos civis e a oposição à Guerra do Vietnã. Nesse momento, começaram os questionamentos em relação às características centrais da modernidade capitalista que a socialdemocracia tinha neutralizado até então. A “terceira onda feminista” surgiu a partir da década de 1990, em contestação aos erros cometidos pelo período anterior. Essa fase questionou o próprio movimento em relação à definição essencialista da feminilidade, que admite uma identidade feminina universal e evidencia as experiências vividas por mulheres brancas, ocidentais e de classe-media. Tais questionamentos desafiam os padrões presentes no movimento feminista, além disso, buscam uma maior diversidade, combatendo o pensamento de unidade e universalista. Nancy Fraser (2005) acredita que se deve criar uma política tridimensional que equilibre e integre as demais preocupações sociais, ou seja, unir a dimensão política da representação da mulher, a questão da distribuição econômica e o reconhecimento cultural da mulher na sociedade. Dessa forma, Fraser passa a utilizar uma nova categoria da representação que permita a possibilidade de problematizar estruturas do governo e os processos de decisão: CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 422 Levar a cabo essa política tridimensional não é nem um pouco fácil. Contudo, ela contém em si uma grande promessa para a terceira fase do feminismo. De um lado, essa abordagem pode ultrapassar as maiores fraquezas da fase dois, ao reequilibrar as políticas de redistribuição e reconhecimento. Por outro lado, pode superar o ponto cego de ambas as fases anteriores do feminismo, ao explicitamente contestar as injustiças desse mau enquadramento. Acima de tudo, tal política talvez nos permita colocar e, quem sabe, responder à questão política-chave de nossa época: como podemos integrar demandas por redistribuição, reconhecimento e representação de forma a contestar o amplo espectro de injustiças de gênero em um mundo que se globaliza? (FRASER, 2005, p.306) Desse modo, pode-se perceber que Fraser entende como uma possibilidade de um combate à falsa representação e uma má adaptação das fases anteriores, o que permite a verdadeira manifestação, integração e participação das minorias feministas na luta contra a opressão. A “quarta onda feminista” é proposta a partir da década de 2000, durante um movimento feminista no Canadá que tinha como lema “pão e rosas”. Inspirado em uma simbologia feminina, esse lema expressa a luta contra a violência e a pobreza. O lema que é mantido até hoje, expandiu-se, convocando os demais movimentos sociais para a luta por um “novo mundo” (designada de “altermundialismo”), além da luta por novos “direitos humanos” onde seja superado o patriarcalismo e o capitalismo. É caracterizada como uma luta intercultural e de intermovimentos pela transversalidade dos direitos humanos. Segundo Matos (2010) a questão de gênero é importante e precisa ser analisada no contexto de todas as atividades relacionadas aos direitos humanos. Assim define a quarta onda: Assim, enquanto no passado, a diferença entre mulheres e homens serviu de justificativa para marginalizar os direitos das mulheres e, de modo mais geral, para justificar as desigualdades de gênero, atualmente a diferença das mulheres indica a responsabilidade que qualquer instituição de direitos humanos teria de incorporar uma análise de gênero em suas práticas e análises teóricas (é a essa difusão teórico-cultural que reputo importância como uma nova fase dos estudos no campo de gênero e feminista). A luta feminista (e também a luta por direitos humanos), em sua “quarta” onda, também reforça o princípio da não-discriminação com base na raça, etnia, nacionalidade ou religião. (MATOS, 2010, p. 87) CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 423 O Sul-global engloba todos os países da América Latina, também foi marcado pelos movimentos feministas. No Brasil, houve na primeira fase durante o século XIX, a luta das mulheres pelos direitos políticos. Esta fase foi organizada por mulheres de classes média e alta, filhas de intelectuais da sociedade brasileira que tiveram a oportunidade de estudar em outros países. A segunda fase ocorreu durante o regime militar, quando as organizações de mulheres se levantaram contra o militarismo formando grupos que foram responsáveis por consolidar os interesses feministas, o que lhes proporcionou maior participação na arena pública. Essa segunda onda é caracterizada pela luta contra a supremacia masculina e a violência sexual. Já a terceira fase, pode ser definida pela intensa participação das mulheres brasileiras no processo de redemocratização e construção do próprio feminismo com ênfase nas discussões das diferenças de gênero. Entretanto os movimentos feministas no Brasil, não foram bem demarcados e organizados segundo Marlise Matos (2010, p. 79): Ao contrário de um movimento bem organizado, no Brasil não podemos caracterizar períodos tão distintamente claros de movimentação de mulheres como sendo exclusivamente “feministas”. Porém é necessário destacar que as “vozes feministas” aqui sempre surgiram diante das muitas estruturas opressoras e conservadoras, mesmo precocemente, desde o século XVII e XVIII. Apesar da existência de forte cultura patriarcal e de uma sociedade predominantemente masculina, sobretudo em termos políticos, as vozes feministas brasileiras aparece(ra)m dos lugares menos esperados e em momentos ainda menos propícios. Essas “vozes” chamaram a atenção de outras mulheres e abriram o caminho para a entrada de algumas delas na arena pública e, portando, para as suas próprias demandas. Os desafios enfrentados pelo feminismo, tanto ao longo do tempo quanto atualmente, vão muito além de fronteiras e delimitação territorial. Tais questionamentos desafiam os padrões presentes no movimento feminista, além disso, buscam uma maior diversidade, combatendo o pensamento de unidade e universalismo. Desse modo, baseando-se nesse argumento, essas mulheres recorrem à sua eficiência crítica em busca de um feminismo cada vez mais CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 424 democrático que atinja os vários tipos de mulher e suas experiências de opressão. As três ondas feministas são de extrema relevância para a construção dos direitos femininos que têm sido acordados através de leis nacionais e internacionais de proteção. Tais normas se formam por meio da luta feminista no combate à discriminação contra a mulher principalmente contra o patriarcado enraizado nos diversos setores sociais. A real questão não é apenas garantir voz igual às mulheres nas comunidades políticas já constituídas. É preciso reenquadrar e entender a fundo as disputas sobre justiça contidas nos regimes estabelecidos. Logo, tornou-se necessário buscar novas formas de difundir o movimento feminista nas condições políticas, econômicas e sociais de cada época em questão. As defensoras do movimento tiveram que modificar seu discurso no decorrer do tempo, de forma que pudessem ser reconhecidas e ouvidas. Obviamente houve proporções enormes em relação à difusão do movimento em questões culturais e sociais que culminaram na propagação direta e indireta dos ideais feministas em toda a sociedade. A quarta onda foi responsável por uma intensa difusão feminista. Para Matos ela trouxe consequências à cultura popular com o objetivo de difundir o movimento: Tal difusão feminista, com certeza, tem produzido consequências políticas e culturais que oscilam desde as políticas estatais (com os sérios desafios propostos a partir da transversalidade e intersetorialidade), passando pelas exigências das ações de cooperação internacional, introjetando-se na cultura popular até as reflexões mais íntimas e que tangenciam aspectos do reconhecimento da multidimensionalidade subjetiva e identitária. Por meio destes caminhos tem sido recorrente identificar trajetos pelos quais os feminismos parecem fluir horizontalmente. Eu destacaria ainda a existência concreta de esforços intencionais para estender o feminismo a outros movimentos sociais por meio de coligações, campanhas, seminários, capacitações e atividades afins. (MATOS, 2010 p.69) Essa disseminação do movimento feminista também afetou os diversos meios de comunicação, principalmente o cinema, que, por se configurar como um importante meio capaz de difundir ideias, passou a veicular ideais feministas. Segundo Marcel Martin (2007) o cinema é uma arte que conquistou seus meios de expressão. CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 425 o cinema tornou-se pouco a pouco uma linguagem, ou seja, um meio de conduzir um relato e de veicular ideias [...] Convertido em linguagem graças a uma escrita própria que se encarna em cada realizador sob a forma de um estilo, o cinema tornou-se por isso mesmo um meio de comunicação, informação e propaganda, o que não contradiz, absolutamente, sua qualidade de arte. (MARTIN, 2007, p. 16). Pode-se dessa forma, dizer que o cinema veio caracterizar também, a mulher de forma diferenciada da tradicional, rompendo com a imagem do que é relativo ao „feminino‟ segundo a sociedade. A mulher passa a ser representada de forma a se opor à opressão patriarcal enraizada na sociedade, demarcando assim as desigualdades de gênero e a superioridade do homem em relação à mulher. A maior preocupação nessa fase é em relação à divisão dos papéis do que é relativo ao homem, e do que é relativo a mulher, principalmente em relação ao espaço doméstico, onde homens e mulheres deverão partilhar suas tarefas e cuidados com a família. Ela passa a ser exibida de forma mais capacitada, em busca de direitos, mostrando que ela pode ser protagonista de sua própria história e viver de forma independente seu cotidiano. 3 TARANTINO E SEUS PERFIS DE MULHERES Quentin Tarantino é um renomado diretor, roteirista e produtor de cinema estadunidense, que iniciou seus estudos na área da atuação aos 16 anos. Trabalhou como balconista em uma locadora devido a sua paixão pelo cinema, assim passou a se dedicar a escrever roteiros. “Amor a queima roupa” e “Assassinos por natureza” foram seus primeiros roteiros que o tiraram do anonimato. Logo ele conheceu diversas pessoas influentes que o incentivaram a produzir e dirigir seu primeiro filme: “Cães de Aluguel”. Tarantino ficou famoso por seus filmes que fazem referências à “cultura pop” (Cultura Pop é o conjunto de subculturas de massa como a música ligeira, as séries de televisão, o cinema de ação.) com roteiros não lineares ricos em metalinguagens e uso de violência. O diretor cria seus personagens tentando respeitar limites relacionados a liberdade de expressão segundo o autor Paul A. Woods (2012) o diretor defende a liberdade de expressão e o uso da violência nos filmes CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 426 independente de gênero: Se você me perguntar sobre uma coisa que seja poderosa nesses filmes, é que neles não há comitê dizendo sim, não, ele não pode fazer isso porque isso o tornaria antipático. Acho que enquanto os personagens surgem insanamente brutais, eles também surgem insanamente humanos. (WOODS, 2012, p. 45) Quentin Tarantino deu vida a alguns de seus personagens femininos, incorporando no papel características como veracidade, artimanha e sagacidade. Entretanto, elas trazem consigo peculiaridades que até então eram desempenhados somente por homens, mas que na concepção do diretor, mulheres também seriam capazes de elucidar e transparecer. Alguns desses personagens marcaram pelo estilo e particularmente pela audácia e ousadia com a qual foram desenvolvidas. Dentre elas cita-se Jackie Brown, no filme que leva o mesmo nome; Beatrix Kiddo, protagonista dos filmes Kill Bill 1 e 2; As meninas de “À prova de morte”, filme onde elas aparecem em sua segunda parte, e, Shosanna, no filme Bastardos Inglórios. Vejamos a seguir sobre cada uma dessas personagens, sua forma de agir e a dissimulação com que cada uma delas trama vingança e represália àqueles que as prejudicaram, de alguma forma. 3.1 Jakie Brown A primeira das quatro mulheres que serão citadas ao longo deste trabalho: Jackie, aeromoça de uma linha aérea mexicana que aproveita a sua profissão para contrabandear dinheiro para um traficante de armas. A polícia consegue interceptar Jackie por posse de drogas, mas o objetivo da polícia é prender Ordell, o traficante. A polícia então decide realizar um acordo com Jackie e pedir sua ajuda como informante, em troca de entregar o traficante ela teria sua liberdade. Assim ela decide mostrar seu lado vingativo. Extremamente ardilosa Jackie arquiteta um plano e inicia um trabalho como agente dupla, dando informações tanto a Ordell, quanto para a polícia. Neste meio tempo ela decide dar a volta em todos os envolvidos na história e por fim CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 427 consegue enganar a todos: o aliado apaixonado, os policiais e até o traficante para quem ela trabalha. Jackie arquiteta todo um plano astuto e sagaz que lhe garante os 500 mil para si e acaba com a morte do traficante. 3.2 Beatrix Kiddo A protagonista dos filmes Kill Bill 1 e 2 também faz um estrago. A segunda das quatro mulheres possui variados nomes, como Beatrix Kiddo, Noiva ou Mamba Negra. Ela é uma ex-integrante do Esquadrão Assassino de Víboras Mortais. Podese dizer que o sobrenome dessa personagem é „Vingança‟. Ela descobre estar grávida de Bill (chefe do esquadrão) durante uma missão pelo Esquadrão. Decidida a criar sua filha longe da criminalidade ela foge e tenta se casar com um homem no Texas. Bill descobre, e, juntamente com o Esquadrão, consumido pela raiva, destina-se para matá-la. Realizam um extermínio por onde passaram que ficou conhecido com o Massacre de Two Paines. Mesmo sabendo que Beatrix estava grávida dele, Bill não a perdoa e a enterra viva, entretanto o que Bill não sabe é que, Beatrix não morre e consegue escapar do túmulo. Então, ela decide se vingar de cada membro do esquadrão, principalmente de Bill. Primeiro ela vai atrás de Vernita Green, depois de O-Ren Shii, Budd, Elle Driver e por último vai à procura de Bill. Entretanto Beatrix tem uma surpresa ao chegar à casa de Bill e encontrar sua filha que ela tanto sonhou em conhecer. Mas ainda assim ela acaba com a vida de Bill e vai embora levando consigo a menina. 3.3 As meninas de “À Prova de Morte” As protagonistas da segunda parte de “À prova de morte” fizeram do caçador a sua caça. Zoe, Kim, Aberthany e Lee mostraram que se tem alguma coisa que elas sabem fazer é vingar. CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 428 Na primeira parte do filme, Stuntman Mike assassina por diversão um grupo de garotas, mas ele é esperto e consegue enganar o xerife e acaba não sendo preso. Um dia, passando por um posto de gasolina ele encontra as meninas e então determina que as meninas seriam sua próxima caça. As garotas não sabem o quanto Mike é perigoso e não fazem ideia de que ele já havia matado garotas como elas. Como todos os jovens, as garotas decidem se divertir com uma brincadeira que envolve rapidez, carro e muita adrenalina chamada “mastro do navio”, onde Zöe fica sobre o capô do carro usando apenas cintos de couro para se prender, enquanto isso Kim dirige em alta velocidade. O que elas não esperavam é que Mike estava à espreita. Ele logo vai atrás delas e „brinca‟ com as garotas quase tirando suas vidas. Elas ficam extremamente nervosas com ele, mas o que Mike não esperava é que ele acaba despertando a fúria dessas garotas que resolvem ir atrás dele e se vingar. Por fim elas acabam conseguindo sua vingança de uma forma bem inusitada. 3.4 Shosanna Dreyfus A protagonista de Bastardos Inglórios não deve absolutamente nada no quesito „Vingança‟. A quarta e última mulher de Tarantino, viu toda sua família ser massacrada pelos nazistas, foi a única sobrevivente e fugiu para a França, para refazer sua vida. Dona de um cinema, Shosanna que adota o nome de Emmanuelle Mimieux acaba se envolvendo, sem querer, com herói de guerra nazista que se apaixona por ela e a apresenta ao Ministro da Propaganda Nazista Joseph Goebbels, que decide estrear seu novo filme de guerra no cinema de Shosanna. Como uma mulher vingativa, ela decide arquitetar um plano para matar todos que estarão dentro de seu cinema durante a exibição do filme. Consciente de que lá estarão presentes muitos soldados alemães assim como políticos militares da mais alta patente nazista, ela decide trancar todos dentro do cinema e queimar uma CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 429 coleção de filmes de nitrato (altamente inflamável) explodindo dessa forma o cinema e todos que lá se encontram. Shosanna então toma o controle da situação e friamente mata todos aqueles responsáveis pela morte de sua família. 4 ANÁLISE DOS SENTIMENTOS DE RAIVA E VINGANÇA DEMONSTRADOS PELAS PROTAGONISTAS Este tópico objetiva analisar os sentimentos de raiva e vingança que foram expostos, de forma marcante, por Tarantino em alguns de seus filmes por meio de suas protagonistas. A análise terá como objeto de estudo uma de suas protagonistas: a personagem Shosanna Dreyfus, do filme “Bastardos Inglórios”, e, terá como base o último capítulo “Por uma semiótica das emoções: Medéia e o paroxismo da raiva feminina”, do livro “Semiótica Aplicada” de Lúcia Santaella (2011). A raiva e vingança foram dois sentimentos explorados de forma abrangente durante todas as obras do diretor, mas em “Bastardos Inglórios” mais especificamente, Shosanna, a personagem principal, demonstra de forma particular esses dois sentimentos em relação aos soldados nazistas, devido à perseguição e ao assassinato de toda sua família. Tal acontecimento sofrido por ela e o fato de ter presenciado a morte de todos, sendo a única a escapar com vida, despertou sua fúria e posteriormente seu desejo de vingança. Os soldados nazistas, especificamente Coronel Hans Landa, é apresentado como um homem sarcástico e cruel, que mata e persegue judeus por diversão durante a época da Alemanha nazista. Ele deixa Shosanna fugir para que pudesse persegui-la e caçá-la como se fosse um animal. Ela foge e vive amedrontada durante muitos anos, muda sua identidade e reconstrói sua vida na França. Torna-se dona de um cinema, entretanto é possível observar que Shosanna teme ser descoberta e que a presença de tantos soldados a deixa profundamente incomodada e furiosa. Dessa forma o filme gira em torno de suspense em relação à reação de Shosanna. Qual será a trama, qual plano a ser executado e o que fazer com tantos soldados alemães por perto, será que ela será descoberta e terá o mesmo fim de sua família CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 430 anos mais tarde? Devido a esse suspense, ao fazermos uma análise sobre esses sentimentos que Shosanna expôs, é possível perceber o quanto é complexo. Entretanto o diretor consegue despertar esse sentimento de raiva nos telespectadores colocando a protagonista como uma mulher indefesa e mais tarde, mesmo ele quebrando esse paradigma de que mulheres são delicadas e indefesas, levando Shosanna assassinar vários soldados nazistas, vingado-se de forma cruel, acaba-se tendo essa vingança como algo „certo‟. Podemos exemplificar isso a partir da teórica Santaella. A autora nos mostra o ponto de vista de Peirce em relação às emoções e sentimentos que sentimos nos seguintes termos: De acordo com Savan (1981:325), que reconstruiu os fragmentos da teoria peirceana da emoção: Peirce considerou que uma emoção começa com uma situação de confusão de desordem inesperada. Ficamos perturbados com as causas de alguma situação nova, e alertas ao fato de que nosso controle normal sobre os fatos se rompeu. O futuro, de repente, se torna incerto. Nossa segurança usual perdeu seu suporte. Somos colhidos em correntes cruzadas de propósito e sentimentos conflitantes. Nessa situação caótica, o interpretante imediato introduz a emoção como uma hipótese simplificadora. (SANTAELLA, 2011, p. 152) Ou seja, a raiva e a vingança são sentimentos que, independem da vontade humana, logo não é possível prevê-las, assim todos são capazes de serem tomados por esses sentimentos. A raiva possui diversos estágios quando expressada. Entretanto, o sentimento de vingança pode ser considerado um estágio mais avançado da raiva, pois, no âmbito da vingança, a raiva foge do pensamento, e então passa a ser demonstrada através de ações. Contudo, a raiva, nesse estágio, é colocada sob o controle mental do indivíduo, como Lucia Santaella (2009, p. 153) ressalta: “A raiva, como foi mostrado pela psicologia cognitiva (Schimmel 1992: 87), não é apenas uma emoção complexa e forte, mas inclui também ações e pensamentos.” A protagonista Shosanna, conseguiu demonstrar todos os estágios da raiva, citados por Lucia Santaella (2010), no filme “Bastardos Inglórios”, principalmente os estágios de vingança e de raiva explosiva, pois no decorrer do filme acontecem várias CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 431 situações que colocam os personagens dentro desses dois estágios de raiva. Desses a qual podemos destacar Shosanna e os soldados nazistas, quando a protagonista dá inicio à sua série de vinganças contra o exercito alemão. Nesse momento sua ira deixa de ser simplesmente raiva (pensamento) e torna-se algo maior, a vingança (ação), deixando claro que a natureza humana é completamente vulnerável a situações desse tipo. Nessa perspectiva, o filme “Bastardos Inglórios” se tornou um dos maiores fenômenos na história do diretor, com mais indicações ao Oscar até agora. O filme foi indicado em oito categorias, vencendo a categoria Melhor Ator Coadjuvante em 2010, dado ao ator Christoph Waltz que interpreta o Coronel Hans Landa. Podemos ligar esse sucesso ao roteiro que representa de certa forma, o ponto de vista do diretor em relação ao nazismo e também a intensidade das emoções que foram expostas no filme de forma objetiva, pois elas conseguiram fazer com que o público sentisse as mesmas emoções que sentiam os que faziam parte do enredo. 4.1 Os estágios da raiva de Shosana Neste tópico, analisaremos os estágios da raiva e principalmente da vingança realizada protagonista Shosanna Dreyfus do filme “Bastardos Inglórios”. Mais especificamente as cenas finais nas quais seu estágio de raiva deixa de ser apenas pensamento e passa a ser vingança, ou seja, passa a colocar em prática seus planos e idealizações obscuras. Shosanna arquiteta um plano para se vingar dos soldados nazistas pelo assassinato de sua família. Então, quando o Ministro da Publicidade, Joseph Goebbels decide estrear seu novo filme de guerra em seu pequeno cinema, ela encontra a sua grande oportunidade de vingança, ao lhe ser solicitado uma acolhida não só aos soldados nazistas, mas também aos militares de alta patente do exército alemão, incluindo Adolf Hitler. Logo ela arquiteta um plano: decide trancar todos dentro do cinema, e colocar fogo em sua coleção de filmes, para que dessa forma conseguisse explodir o cinema e todos que lá dentro estivessem. Com um detalhe peculiar, não satisfeita em trancar CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 432 e queimar todos vivos, Shosanna faz questão de exibir uma mensagem gravada para os nazistas. É uma mensagem carregada de ira e rancor. Dessa forma ela consegue despertar o desespero em todos os que estão na sala, pois nessa hora eles percebem não haver outra saída. É possível perceber que essa personagem, passa de „vitima‟, frágil e sofrida para uma mulher vingativa, amarga, que toma conta de toda a situação e mostra que apesar de tanto sofrimento, conseguiu virar o jogo e se vingar daqueles que a fizeram sofrer. Em uma perspectiva semiótica, podemos observar a presença dos legi-signos (Legi – signos, são os objetos pré - definidos pelo ser humano, um bom exemplo são as letras. No caso da emoções, as letras são consideradas legi – signos pois possuem uma continuidade, ou seja, com o decorrer do tempo se modificam, tornando-se mais intensas. Como é colocado por Santaella, quando tratamos a emoção como legi – signo (Santaela, 2010, p. 160) e quali-signos (Quali – signos são as qualidades que damos aos objetos, ações, etc. Ao analisarmos a raiva sob esse conceito, focamos nas formas físicas que são modificadas pela raiva, ou seja, nas qualidades que o ser humano atribui.) da raiva e da vingança. A raiva é uma emoção que possui legi-signos, já que ela é alimentada e se desenvolve no decorrer do tempo, se fortificando e se tornando cada vez mais intenso. Como é proposto por Santaella (2009, p. 160): Em primeiro lugar, as emoções são legi-signos porque toda emoção segue um padrão que se desenvolve em um certo período de tempo. No caso da raiva, sua natureza explosiva, e mesmo progressiva, é evidente. Como foi bem colocado por São Francisco de Sales (d. Schimmel1992: 91), a raiva „começa como um pequeno galho e, em um piscar de olhos, se adensa e se torna um tronco‟. Desta forma, a relação e o sentimento de Shosanna para com os soldados nazistas tornam-se mais descomplicados, pois de acordo com o conceito anterior de legisignos é possível notar que a raiva e a vingança são sentimentos que foram sendo cultivados durante muitos anos por ela. Assim, esses sentimentos foram expostos no seu ápice, o que gerou a vingança que é o clímax do filme, protagonizada pela garota judia. Uma vez que a raiva modifica a fisionomia do indivíduo, nota-se que a protagonista toma uma postura agressiva e seu corpo começa a reagir de forma CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 433 diversa em relação à pessoa a quem a raiva é direcionada, no caso os soldados nazistas, expressando também os quali-signos da raiva, que estão relacionados a essa vingança, onde Shosanna toma uma atitude e parte para a ação, queimando o cinema e matando várias pessoas. Logo, os quali-signos estão claramente manifestados nessa relação de tensão entre a protagonista e os vilões, por se tratar da forma com que ocorre a vingança, ou como é colocado por Lucia Santaella, que os quali-signos são “os ingredientes qualitativos” da vingança e da raiva, no caso de Shosanna é possível perceber uma grande exposição desse sentimento de vingança e raiva. Entretanto, é possível notar uma variação nos estágios da raiva, podendo existir uma simples raiva, sem outras formas de agressão, ficando apenas no pensamento, e alcançar uma raiva que leva o indivíduo a seu extremo, sendo que a raiva possui várias formas comuns a todos esses estágios, como afirma Santaella (2010, p. 161): Pode haver uma grande variedade de instâncias da raiva, mas elas têm todas alguns atributos em comum, tais como o ímpeto emocional, o comportamento visual e verbal agressivo e até mesmo feroz, ou mesmo a agressividade mental, quando a raiva é perigosamente silenciosa. Nota-se que o nível de vingança e raiva apresentado pela protagonista, vai muito além do aceitável socialmente. E o fato de ser protagonizada por uma mulher, aumenta a curiosidade e prende ainda mais a atenção dos telespectadores. Isso ocorre devido ao rompimento dos padrões propostos pela sociedade que privilegia o gênero masculino, em relação a essa divisão, do que é característico da mulher e o que é característico ao homem. Dispõe sobre a forma intensa com que as mulheres conseguem lidar com sentimentos como a raiva e a vingança. Mostra que elas podem ser fortes e ousadas, sem perder sua feminilidade, para mostrar do que são capazes. Santaella (2010) explica sobre o temperamento explosivo e a violência sem escrúpulos com qual Medéia, feiticeira da mitologia grega, que inconformada e sentindo-se traída e humilhada, encheu-se de um ódio sobre-humano e arquitetou um terrível desejo de vingança para aniquilar todos os desafetos, matando seus filhos. CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 434 Diante do exposto nesses personagens, é possível considerar que, a raiva e os sentimentos femininos são capazes de ir além do que é sensato, movidas pela emoção do momento e por sensações intensas, sendo capazes de tudo ou quase tudo para vingarem daqueles que lhe fizeram qualquer mal. Todavia, as mulheres são apresentadas, em algumas situações, como um símbolo da vingança insensata, do orgulho e da sedução, como nos é mostrado nas histórias de Medéia, personagem da mitologia grega, sua história se baseia na vontade de vingança. Jasão é um herói que deseja obter o Velo de Ouro para retomar seu trono. Então, Medéia se apaixona por Jasão e resolve ajudá-lo, com a condição de que, após pegar o Velo de Ouro, ele se case com ela. Após realizarem todas as perigosas tarefas para conseguirem o Velo de Ouro, Jasão e Medéia se casam. Após muitas aventuras, o casal chega a Coríntio, onde Jasão se apaixona por Glaucia, filha do rei de Coríntio, dessa forma ele abandona Medéia para se casar com a princesa. Cega de ódio e raiva Medéia se vinga enviando a princesa e ao rei um vestido e uma coroa envenenados, matando-os. Não satisfeita e ainda cega de ódio ela resolve matar seus filhos também, com o intuito de causar dor em Jasão. É possível compreender a escolha do diretor e autor ao utilizar uma mulher para protagonizar e externar de forma intensa os sentimentos de raiva e vingança contra todo um exército composto por machistas, sarcásticos e homens cruéis, que covardemente mataram milhares de inocentes durante a Guerra Mundial, sem nenhuma causa aparente. Utilizando uma mulher como protagonista, o diretor Quentin Tarantino encontra uma forma de combater e romper com padrões culturais que foram estabelecidos há séculos na sociedade. Assim é possível chegar ao ápice da emoção de cada personagem, pois cada um manifesta seus sentimentos e sua vingança de forma particular e pessoal, contudo quem consegue trazer para o plano da realidade é uma mulher, que acaba por derrubar uma ofensiva que fora imposto pelo regime de governo dos alemães. CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 435 A partir disso, podemos compreender que esses sentimentos de vingança e ira são sentimentos que os seres humanos, não apenas as mulheres, não conseguem controlar, mas que ainda assim, causam curiosidade e interesse dos demais membros da sociedade, devido à sua intensidade. Mesmo tendo a consciência de que raiva e vingando são sentimentos ruins, o telespectador se identifica com essas personagens e passam a sentir „alivio‟ ao vê-las concluindo sua vingança. Assim sendo, a ficção, o cinema, aproveitam-se dessa atenção que é dada a essa quebra de paradigma, a essa expressão da emoção humana, conseguindo fazer com que os telespectadores se envolvam cada vez mais na trama e se permitam vivenciar profundamente dessas emoções de forma catártica. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A representação da mulher nos filmes de Quentin Tarantino analisados, acontece de forma que o diretor rompe com os paradigmas pré-estabelecidos, por uma sociedade que privilegia o gênero masculino e, ao mesmo tempo, faz com que o telespectador se envolva no enredo da história e se identifique com essas personagens. As mulheres são representadas como mulheres fortes e vingativas, o que teoricamente representa o papel do homem na sociedade, entretanto elas o cumprem em todos os filmes os quais são as protagonistas. Pode-se dizer que a forma de envolvimento do público com os filmes se dá pela exposição de situações e personagens que rompem com os paradigmas pressupostos e acabam por surpreender o telespectador por ser uma situação „incomum‟ onde é das mulheres, que deveriam se enquadrar em uma representação típica feminina, que nasce o sentimento de raiva e vingança e a partir dai o enredo gira em torno desse sentimento e de sua construção ao longo do filme. Essas mulheres foram capazes de tomar o controle das situações e darem a volta por cima, mostrando que a mulher não é o „sexo frágil‟, sendo elas capazes de demonstrarem delicadeza e fragilidade, e ao mesmo tempo, elas podem ser fortes, violentas e possuírem esse desejo de CONCISA - Revista Multidisciplinar da Área de Ciências Sociais Aplicadas, ISSN 2448-1602, Coronel Fabriciano, n. 2, p. 419-438, nov. 2015. 436 vingança. A relação comum a todas essas mulheres é que, todas são movidas por um desejo de vingança que veio se alimentando de forma perceptível na decorrer dos filmes, e vêm a tomar grandes proporções, chegando ao seu ápice, levando-as a ação. Por fim, a análise pautou-se na personagem Shosanna Dreyfus de “Bastardos Inglórios”, tomando como base o capítulo “Por uma semiótica das emoções: Medéia e o paroxismo da raiva feminina”, do livro Semiótica Aplicada, teve por objetivo mostrar como se dava a relação entre Shosanna e os soldados nazistas, e analisar os principais sentimentos existentes na protagonista que fossem comuns a todas as outras mulheres. Como foi colocado no decorrer deste trabalho, a exposição desses dois sentimentos rompem com o padrão estabelecido em relação às mulheres e em relação à construção do enredo apresentando-o de forma não-linear. REFERÊNCIAS BAPTISTA, Mauro. O Cinema de Quentin Tarantino. 2. ed. Campinas: Papirus, 2013. (Coleção Campo Imagético) FRASER, Nancy. 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