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RAIVA E A VINGANÇA NAS PERSONAGENS FEMININAS DE TARANTINO
Julyana Batista Messeder
Aluna de Jornalismo
Sônia Maia Teles Xavier
Professora (Unileste)
RESUMO
O artigo tem como objetivo analisar o perfil de algumas mulheres representadas nos
filmes dirigidos por Quentin Tarantino. Tem como objeto de investigação os filmes
“Kill Bill 1 e 2”, “Jackie Brown”, “À prova de morte” e “Bastardos Inglórios”. Pretende
investigar os sentimentos de raiva e vingança bem presentes nas tramas. Debruçase, de modo específico, sobre a personagem Shosanna Dreyfus, do filme Bastardos
Inglórios. Além disso, aborda a história do feminismo relacionando-a aos perfis
dessas mulheres, construídas pelo diretor, com um modelo que rompe com o que é
estabelecido pela sociedade. Apoia-se, teoricamente, nos textos de Lúcia Santaella
(2011), Fraser (2005) e de Martin (2007). Utiliza a metodologia de análise de
conteúdo e semiótica. Os resultados apontam para o fato de que o diretor rompe
com o padrão pressuposto socialmente, pois apresenta suas protagonistas como
mulheres fortes, capazes de ter o controle de sua própria história. Além disso,
demonstra como esses sentimentos universais, catárticos, tornam-se pontos-chave
de identificação do telespectador com o enredo fílmico.
Palavras-chave: Cinema. Feminismo. Representação feminina. Tarantino.
1 INTRODUÇÃO
Desde sua invenção, no final do século XIX, pelos irmãos Lumière, o cinema passou
por inúmeras modificações, em diversas áreas como narrativa, adaptação e técnica.
O cinema retrata de forma bastante particular e, até mesmo, de forma subjetiva a
„realidade‟. Essa interpretação da realidade depende de diversos fatores, como o
fator cultural e social do espectador, mas principalmente, o ângulo e visão do diretor.
Quentin Tarantino é um renomado diretor, roteirista e produtor de cinema
estadunidense, famoso por seus filmes “Pop‟s” de roteiros não lineares, o uso de
violência, além da fotografia extremamente saturada e principalmente pela
metalinguagem utilizada. O auge de sua carreira se deu na década de 1990. As
mulheres, em seus filmes, são protagonistas fortes, vibrantes e violentas, sempre
armadas em busca de vingança.
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Essa linha de pensamento do diretor contrapõe algumas “questões de gênero” prédefinidas pela sociedade. Questão de gênero diz respeito a padrões fixos do que é
relativo ao feminino e ao masculino. Ou seja, são regras de comportamento
sedimentadas pela sociedade, baseadas em um conceito histórico-cultural que
define a conduta do ser humano. A representação da mulher, em alguns dos seus
filmes, corresponde a um comportamento considerado tipicamente masculino.
As mulheres de Tarantino representam e respaldam, de certa forma, essa luta por
respeito e igualdade de direitos. À primeira vista, seus filmes correspondem a um
universo tipicamente masculino, devido à violência constante. Entretanto é possível
observar essa quebra de paradigmas realizada pelo diretor em alguns filmes como
“À Prova de Morte”, “Jackie Brown”, “Kill Bill 1”, “Kill Bill 2” e “Bastardos Inglórios”,
onde as “mocinhas”, aparentemente anjinhos, são protagonistas reconhecidas por
sua força, sempre armadas e movidas pelo desejo de vingança. Nessa perspectiva,
rompe com a corrente de pensamento de que, para serem femininas, as mulheres
não podem ser autossuficientes, ou seja, devem sempre corresponder ao papel de
subordinação imposto a elas pela sociedade.
É preciso ressaltar que os debates sobre essas “questões de gênero” vêm,
historicamente, desencadeando uma série de movimentos feministas por meio de
uma luta sócio-política em busca de igualdade de direitos e, sobretudo respeito às
diferenças e divisão de papéis, principalmente no espaço doméstico, entre homens e
mulheres. Como explica Xavier (2008, p.6) em seu artigo, “Por falar em Mulheres...”:
Uma das lutas iniciais promovida pelas mulheres deu-se não apenas com o
objetivo de luta por uma igualdade legal ou contra as restrições dos seus
direitos, mas de modo específico, pela eliminação de obstáculos que
sempre se interpuseram diante delas, impedindo-lhes o pleno
desenvolvimento como pessoas [...] Não se trata de uma simples disputa
por igualdade, mas de iguais oportunidades.
Esses debates tratam de várias possibilidades de interpretações relativas à forma
como a sociedade administra e impõe o conceito de “relação de gênero”, seja em
relação ao poder e sua distribuição ou a questão de uma maior participação da
mulher no mercado de trabalho e na política.
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De acordo com o termo “questões de gênero”, formulado na década de 80, por Joan
Scott e Gayle Rubin, pesquisadoras de língua inglesa, abordando a história da luta
do movimento feminista em busca de uma sociedade mais justa e igualitária. O
diretor Quentin Tarantino rompe com os paradigmas por meio dos sentimentos de
raiva e vingança, comum entre suas protagonistas, colocando-as em equidade com
o gênero masculino.
No primeiro tópico, define-se o que foi o movimento feminista e a importância dessa
luta na sociedade. A história do feminismo teve como base a filósofa, escritora
feminista Nancy Fraser (2005). Para associar o cinema ao movimento feminista
foram considerados os pressupostos teóricos de Marcel Martin (2007). No segundo
capítulo, foi realizado um perfil de cada uma das mulheres dos filmes analisados. O
terceiro capítulo é a analise da protagonista Shoshana, de “Bastardos Inglórios”, em
relação a esse sentimento de raiva e vingança em comum a todas as outras
protagonistas, que faz com que haja esse rompimento de paradigmas. Nessa etapa
a representação da mulher foi baseada no livro de Semiótica Aplicada de Lúcia
Santaella (2011).
2 O MOVIMENTO FEMINISTA
Com o intuito de estabelecer uma sociedade mais justa e igualitária, mulheres no
mundo inteiro se organizaram, durante o final do século XIX e início do século XX,
na Grã-Betanha e Estados Unidos, a favor da defesa de seus direitos diante das
desigualdades impostas pela sociedade que privilegia o gênero masculino. Em 1960,
a publicação do livro “O Segundo Sexo” de Simone Beauvoir influenciou os
movimentos feministas, entretanto foi a partir da convenção dos direitos da mulher,
em Nova Iorque, em 1848, que esses movimentos se solidificaram.
A luta feminista teve, inicialmente, a finalidade de combater o patriarcalismo
enraizado em todos os setores, sejam eles públicos ou privados. Dessa forma,
torna-se um desafio para as mulheres combater essas práticas discriminatórias, que
se originam em padrões culturais estabelecidos na sociedade.
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O movimento feminista obteve sua primeira vitória nos Estados Unidos e na
Inglaterra durante o século XIX e início do século XX, esse período ficou conhecido
como “primeira onda feminista”. Em meio a um mundo pós-escravidão, no auge da
crise de 29, em meio ao caos político e econômico, as mulheres se uniram para lutar
por seus direitos, essa luta teve como foco principal a promoção dos direitos
jurídicos e a conquista do poder político. Isso possibilitou a conquista do direito ao
voto, ao estudo e ao ingresso no mercado de trabalho.
O segundo período da atividade feminina ficou conhecido como “segunda onda
feminista”, que surgiu nos Estados Unidos e sucessivamente se estendeu à França
em meados da década de 1960 até o fim dos anos de 1980. Essa “segunda onda”
foi a grande causadora da formação de toda estrutura, organização e solidificação
do movimento feminista, que tinha como principal objetivo a luta pelos direitos civis e
a oposição à Guerra do Vietnã. Nesse momento, começaram os questionamentos
em relação às características centrais da modernidade capitalista que a
socialdemocracia tinha neutralizado até então.
A “terceira onda feminista” surgiu a partir da década de 1990, em contestação aos
erros cometidos pelo período anterior. Essa fase questionou o próprio movimento
em relação à definição essencialista da feminilidade, que admite uma identidade
feminina universal e evidencia as experiências vividas por mulheres brancas,
ocidentais e de classe-media. Tais questionamentos desafiam os padrões presentes
no movimento feminista, além disso, buscam uma maior diversidade, combatendo o
pensamento de unidade e universalista.
Nancy Fraser (2005) acredita que se deve criar uma política tridimensional que
equilibre e integre as demais preocupações sociais, ou seja, unir a dimensão política
da representação da mulher, a questão da distribuição econômica e o
reconhecimento cultural da mulher na sociedade.
Dessa forma, Fraser passa a
utilizar uma nova categoria da representação que permita a possibilidade de
problematizar estruturas do governo e os processos de decisão:
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Levar a cabo essa política tridimensional não é nem um pouco fácil.
Contudo, ela contém em si uma grande promessa para a terceira fase do
feminismo. De um lado, essa abordagem pode ultrapassar as maiores
fraquezas da fase dois, ao reequilibrar as políticas de redistribuição e
reconhecimento. Por outro lado, pode superar o ponto cego de ambas as
fases anteriores do feminismo, ao explicitamente contestar as injustiças
desse mau enquadramento. Acima de tudo, tal política talvez nos permita
colocar e, quem sabe, responder à questão política-chave de nossa época:
como podemos integrar demandas por redistribuição, reconhecimento e
representação de forma a contestar o amplo espectro de injustiças de
gênero em um mundo que se globaliza? (FRASER, 2005, p.306)
Desse modo, pode-se perceber que Fraser entende como uma possibilidade de um
combate à falsa representação e uma má adaptação das fases anteriores, o que
permite a verdadeira manifestação, integração e participação das minorias
feministas na luta contra a opressão.
A “quarta onda feminista” é proposta a partir da década de 2000, durante um
movimento feminista no Canadá que tinha como lema “pão e rosas”. Inspirado em
uma simbologia feminina, esse lema expressa a luta contra a violência e a pobreza.
O lema que é mantido até hoje, expandiu-se, convocando os demais movimentos
sociais para a luta por um “novo mundo” (designada de “altermundialismo”), além da
luta por novos “direitos humanos” onde seja superado o patriarcalismo e o
capitalismo. É caracterizada como uma luta intercultural e de intermovimentos pela
transversalidade dos direitos humanos.
Segundo Matos (2010) a questão de gênero é importante e precisa ser analisada no
contexto de todas as atividades relacionadas aos direitos humanos. Assim define a
quarta onda:
Assim, enquanto no passado, a diferença entre mulheres e homens serviu
de justificativa para marginalizar os direitos das mulheres e, de modo mais
geral, para justificar as desigualdades de gênero, atualmente a diferença
das mulheres indica a responsabilidade que qualquer instituição de direitos
humanos teria de incorporar uma análise de gênero em suas práticas e
análises teóricas (é a essa difusão teórico-cultural que reputo importância
como uma nova fase dos estudos no campo de gênero e feminista). A luta
feminista (e também a luta por direitos humanos), em sua “quarta” onda,
também reforça o princípio da não-discriminação com base na raça, etnia,
nacionalidade ou religião. (MATOS, 2010, p. 87)
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O Sul-global engloba todos os países da América Latina, também foi marcado pelos
movimentos feministas. No Brasil, houve na primeira fase durante o século XIX, a
luta das mulheres pelos direitos políticos. Esta fase foi organizada por mulheres de
classes média e alta, filhas de intelectuais da sociedade brasileira que tiveram a
oportunidade de estudar em outros países.
A segunda fase ocorreu durante o regime militar, quando as organizações de
mulheres se levantaram contra o militarismo formando grupos que foram
responsáveis por consolidar os interesses feministas, o que lhes proporcionou maior
participação na arena pública. Essa segunda onda é caracterizada pela luta contra a
supremacia masculina e a violência sexual.
Já a terceira fase, pode ser definida pela intensa participação das mulheres
brasileiras no processo de redemocratização e construção do próprio feminismo com
ênfase nas discussões das diferenças de gênero. Entretanto os movimentos
feministas no Brasil, não foram bem demarcados e organizados segundo Marlise
Matos (2010, p. 79):
Ao contrário de um movimento bem organizado, no Brasil não podemos
caracterizar períodos tão distintamente claros de movimentação de
mulheres como sendo exclusivamente “feministas”. Porém é necessário
destacar que as “vozes feministas” aqui sempre surgiram diante das muitas
estruturas opressoras e conservadoras, mesmo precocemente, desde o
século XVII e XVIII. Apesar da existência de forte cultura patriarcal e de uma
sociedade predominantemente masculina, sobretudo em termos políticos,
as vozes feministas brasileiras aparece(ra)m dos lugares menos esperados
e em momentos ainda menos propícios. Essas “vozes” chamaram a
atenção de outras mulheres e abriram o caminho para a entrada de
algumas delas na arena pública e, portando, para as suas próprias
demandas.
Os desafios enfrentados pelo feminismo, tanto ao longo do tempo quanto
atualmente,
vão
muito
além
de
fronteiras
e
delimitação
territorial.
Tais
questionamentos desafiam os padrões presentes no movimento feminista, além
disso, buscam uma maior diversidade, combatendo o pensamento de unidade e
universalismo.
Desse modo, baseando-se nesse argumento, essas mulheres
recorrem à sua eficiência crítica em busca de um feminismo cada vez mais
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democrático que atinja os vários tipos de mulher e suas experiências de opressão.
As três ondas feministas são de extrema relevância para a construção dos direitos
femininos que têm sido acordados através de leis nacionais e internacionais de
proteção. Tais normas se formam por meio da luta feminista no combate à
discriminação contra a mulher principalmente contra o patriarcado enraizado nos
diversos setores sociais.
A real questão não é apenas garantir voz igual às mulheres nas comunidades
políticas já constituídas. É preciso reenquadrar e entender a fundo as disputas sobre
justiça contidas nos regimes estabelecidos. Logo, tornou-se necessário buscar
novas formas de difundir o movimento feminista nas condições políticas, econômicas
e sociais de cada época em questão. As defensoras do movimento tiveram que
modificar seu discurso no decorrer do tempo, de forma que pudessem ser
reconhecidas e ouvidas. Obviamente houve proporções enormes em relação à
difusão do movimento em questões culturais e sociais que culminaram na
propagação direta e indireta dos ideais feministas em toda a sociedade. A quarta
onda foi responsável por uma intensa difusão feminista. Para Matos ela trouxe
consequências à cultura popular com o objetivo de difundir o movimento:
Tal difusão feminista, com certeza, tem produzido consequências políticas e
culturais que oscilam desde as políticas estatais (com os sérios desafios
propostos a partir da transversalidade e intersetorialidade), passando pelas
exigências das ações de cooperação internacional, introjetando-se na
cultura popular até as reflexões mais íntimas e que tangenciam aspectos do
reconhecimento da multidimensionalidade subjetiva e identitária. Por meio
destes caminhos tem sido recorrente identificar trajetos pelos quais os
feminismos parecem fluir horizontalmente. Eu destacaria ainda a existência
concreta de esforços intencionais para estender o feminismo a outros
movimentos sociais por meio de coligações, campanhas, seminários,
capacitações e atividades afins. (MATOS, 2010 p.69)
Essa disseminação do movimento feminista também afetou os diversos meios de
comunicação, principalmente o cinema, que, por se configurar como um importante
meio capaz de difundir ideias, passou a veicular ideais feministas. Segundo Marcel
Martin (2007) o cinema é uma arte que conquistou seus meios de expressão.
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o cinema tornou-se pouco a pouco uma linguagem, ou seja, um meio de
conduzir um relato e de veicular ideias [...] Convertido em linguagem graças
a uma escrita própria que se encarna em cada realizador sob a forma de
um estilo, o cinema tornou-se por isso mesmo um meio de comunicação,
informação e propaganda, o que não contradiz, absolutamente, sua
qualidade de arte. (MARTIN, 2007, p. 16).
Pode-se dessa forma, dizer que o cinema veio caracterizar também, a mulher de
forma diferenciada da tradicional, rompendo com a imagem do que é relativo ao
„feminino‟ segundo a sociedade. A mulher passa a ser representada de forma a se
opor à opressão patriarcal enraizada na sociedade, demarcando assim as
desigualdades de gênero e a superioridade do homem em relação à mulher. A
maior preocupação nessa fase é em relação à divisão dos papéis do que é relativo
ao homem, e do que é relativo a mulher, principalmente em relação ao espaço
doméstico, onde homens e mulheres deverão partilhar suas tarefas e cuidados com
a família. Ela passa a ser exibida de forma mais capacitada, em busca de direitos,
mostrando que ela pode ser protagonista de sua própria história e viver de forma
independente seu cotidiano.
3 TARANTINO E SEUS PERFIS DE MULHERES
Quentin Tarantino é um renomado diretor, roteirista e produtor de cinema
estadunidense, que iniciou seus estudos na área da atuação aos 16 anos. Trabalhou
como balconista em uma locadora devido a sua paixão pelo cinema, assim passou a
se dedicar a escrever roteiros. “Amor a queima roupa” e “Assassinos por natureza”
foram seus primeiros roteiros que o tiraram do anonimato. Logo ele conheceu
diversas pessoas influentes que o incentivaram a produzir e dirigir seu primeiro filme:
“Cães de Aluguel”.
Tarantino ficou famoso por seus filmes que fazem referências à “cultura pop”
(Cultura Pop é o conjunto de subculturas de massa como a música ligeira, as séries
de televisão, o cinema de ação.) com roteiros não lineares ricos em metalinguagens
e uso de violência. O diretor cria seus personagens tentando respeitar limites
relacionados a liberdade de expressão segundo o autor Paul A. Woods (2012) o
diretor defende a liberdade de expressão e o uso da violência nos filmes
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independente de gênero:
Se você me perguntar sobre uma coisa que seja poderosa nesses filmes, é
que neles não há comitê dizendo sim, não, ele não pode fazer isso porque
isso o tornaria antipático. Acho que enquanto os personagens surgem
insanamente brutais, eles também surgem insanamente humanos.
(WOODS, 2012, p. 45)
Quentin Tarantino deu vida a alguns de seus personagens femininos, incorporando
no papel características como veracidade, artimanha e sagacidade. Entretanto, elas
trazem consigo peculiaridades que até então eram desempenhados somente por
homens, mas que na concepção do diretor, mulheres também seriam capazes de
elucidar e transparecer. Alguns desses personagens marcaram pelo estilo e
particularmente pela audácia e ousadia com a qual foram desenvolvidas. Dentre elas
cita-se Jackie Brown, no filme que leva o mesmo nome; Beatrix Kiddo, protagonista
dos filmes Kill Bill 1 e 2; As meninas de “À prova de morte”, filme onde elas
aparecem em sua segunda parte, e, Shosanna, no filme Bastardos Inglórios.
Vejamos a seguir sobre cada uma dessas personagens, sua forma de agir e a
dissimulação com que cada uma delas trama vingança e represália àqueles que as
prejudicaram, de alguma forma.
3.1
Jakie Brown
A primeira das quatro mulheres que serão citadas ao longo deste trabalho: Jackie,
aeromoça de uma linha aérea mexicana que aproveita a sua profissão para
contrabandear dinheiro para um traficante de armas. A polícia consegue interceptar
Jackie por posse de drogas, mas o objetivo da polícia é prender Ordell, o traficante.
A polícia então decide realizar um acordo com Jackie e pedir sua ajuda como
informante, em troca de entregar o traficante ela teria sua liberdade. Assim ela
decide mostrar seu lado vingativo. Extremamente ardilosa Jackie arquiteta um plano
e inicia um trabalho como agente dupla, dando informações tanto a Ordell, quanto
para a polícia.
Neste meio tempo ela decide dar a volta em todos os envolvidos na história e por fim
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consegue enganar a todos: o aliado apaixonado, os policiais e até o traficante para
quem ela trabalha. Jackie arquiteta todo um plano astuto e sagaz que lhe garante os
500 mil para si e acaba com a morte do traficante.
3.2
Beatrix Kiddo
A protagonista dos filmes Kill Bill 1 e 2 também faz um estrago. A segunda das
quatro mulheres possui variados nomes, como Beatrix Kiddo, Noiva ou Mamba
Negra. Ela é uma ex-integrante do Esquadrão Assassino de Víboras Mortais. Podese dizer que o sobrenome dessa personagem é „Vingança‟.
Ela descobre estar grávida de Bill (chefe do esquadrão) durante uma missão pelo
Esquadrão. Decidida a criar sua filha longe da criminalidade ela foge e tenta se
casar com um homem no Texas. Bill descobre, e, juntamente com o Esquadrão,
consumido pela raiva, destina-se para matá-la. Realizam um extermínio por onde
passaram que ficou conhecido com o Massacre de Two Paines.
Mesmo sabendo que Beatrix estava grávida dele, Bill não a perdoa e a enterra viva,
entretanto o que Bill não sabe é que, Beatrix não morre e consegue escapar do
túmulo. Então, ela decide se vingar de cada membro do esquadrão, principalmente
de Bill.
Primeiro ela vai atrás de Vernita Green, depois de O-Ren Shii, Budd, Elle Driver e
por último vai à procura de Bill. Entretanto Beatrix tem uma surpresa ao chegar à
casa de Bill e encontrar sua filha que ela tanto sonhou em conhecer. Mas ainda
assim ela acaba com a vida de Bill e vai embora levando consigo a menina.
3.3
As meninas de “À Prova de Morte”
As protagonistas da segunda parte de “À prova de morte” fizeram do caçador a sua
caça. Zoe, Kim, Aberthany e Lee mostraram que se tem alguma coisa que elas
sabem fazer é vingar.
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Na primeira parte do filme, Stuntman Mike assassina por diversão um grupo de
garotas, mas ele é esperto e consegue enganar o xerife e acaba não sendo preso.
Um dia, passando por um posto de gasolina ele encontra as meninas e então
determina que as meninas seriam sua próxima caça. As garotas não sabem o
quanto Mike é perigoso e não fazem ideia de que ele já havia matado garotas como
elas.
Como todos os jovens, as garotas decidem se divertir com uma brincadeira que
envolve rapidez, carro e muita adrenalina chamada “mastro do navio”, onde Zöe fica
sobre o capô do carro usando apenas cintos de couro para se prender, enquanto
isso Kim dirige em alta velocidade. O que elas não esperavam é que Mike estava à
espreita. Ele logo vai atrás delas e „brinca‟ com as garotas quase tirando suas vidas.
Elas ficam extremamente nervosas com ele, mas o que Mike não esperava é que ele
acaba despertando a fúria dessas garotas que resolvem ir atrás dele e se vingar. Por
fim elas acabam conseguindo sua vingança de uma forma bem inusitada.
3.4
Shosanna Dreyfus
A protagonista de Bastardos Inglórios não deve absolutamente nada no quesito
„Vingança‟. A quarta e última mulher de Tarantino, viu toda sua família ser
massacrada pelos nazistas, foi a única sobrevivente e fugiu para a França, para
refazer sua vida.
Dona de um cinema, Shosanna que adota o nome de Emmanuelle Mimieux acaba
se envolvendo, sem querer, com herói de guerra nazista que se apaixona por ela e a
apresenta ao Ministro da Propaganda Nazista Joseph Goebbels, que decide estrear
seu novo filme de guerra no cinema de Shosanna.
Como uma mulher vingativa, ela decide arquitetar um plano para matar todos que
estarão dentro de seu cinema durante a exibição do filme. Consciente de que lá
estarão presentes muitos soldados alemães assim como políticos militares da mais
alta patente nazista, ela decide trancar todos dentro do cinema e queimar uma
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coleção de filmes de nitrato (altamente inflamável) explodindo dessa forma o cinema
e todos que lá se encontram. Shosanna então toma o controle da situação e
friamente mata todos aqueles responsáveis pela morte de sua família.
4
ANÁLISE DOS SENTIMENTOS DE RAIVA E VINGANÇA DEMONSTRADOS
PELAS PROTAGONISTAS
Este tópico objetiva analisar os sentimentos de raiva e vingança que foram expostos,
de forma marcante, por Tarantino em alguns de seus filmes por meio de suas
protagonistas. A análise terá como objeto de estudo uma de suas protagonistas: a
personagem Shosanna Dreyfus, do filme “Bastardos Inglórios”, e, terá como base o
último capítulo “Por uma semiótica das emoções: Medéia e o paroxismo da raiva
feminina”, do livro “Semiótica Aplicada” de Lúcia Santaella (2011).
A raiva e vingança foram dois sentimentos explorados de forma abrangente durante
todas as obras do diretor, mas em “Bastardos Inglórios” mais especificamente,
Shosanna, a personagem principal, demonstra de forma particular esses dois
sentimentos em relação aos soldados nazistas, devido à perseguição e ao
assassinato de toda sua família. Tal acontecimento sofrido por ela e o fato de ter
presenciado a morte de todos, sendo a única a escapar com vida, despertou sua
fúria e posteriormente seu desejo de vingança.
Os soldados nazistas, especificamente Coronel Hans Landa, é apresentado como
um homem sarcástico e cruel, que mata e persegue judeus por diversão durante a
época da Alemanha nazista. Ele deixa Shosanna fugir para que pudesse persegui-la
e caçá-la como se fosse um animal. Ela foge e vive amedrontada durante muitos
anos, muda sua identidade e reconstrói sua vida na França. Torna-se dona de um
cinema, entretanto é possível observar que Shosanna teme ser descoberta e que a
presença de tantos soldados a deixa profundamente incomodada e furiosa. Dessa
forma o filme gira em torno de suspense em relação à reação de Shosanna. Qual
será a trama, qual plano a ser executado e o que fazer com tantos soldados
alemães por perto, será que ela será descoberta e terá o mesmo fim de sua família
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anos mais tarde?
Devido a esse suspense, ao fazermos uma análise sobre esses sentimentos que
Shosanna expôs, é possível perceber o quanto é complexo. Entretanto o diretor
consegue despertar esse sentimento de raiva nos telespectadores colocando a
protagonista como uma mulher indefesa e mais tarde, mesmo ele quebrando esse
paradigma de que mulheres são delicadas e indefesas, levando Shosanna
assassinar vários soldados nazistas, vingado-se de forma cruel, acaba-se tendo
essa vingança como algo „certo‟. Podemos exemplificar isso a partir da teórica
Santaella. A autora nos mostra o ponto de vista de Peirce em relação às emoções e
sentimentos que sentimos nos seguintes termos:
De acordo com Savan (1981:325), que reconstruiu os fragmentos da teoria
peirceana da emoção: Peirce considerou que uma emoção começa com
uma situação de confusão de desordem inesperada. Ficamos perturbados
com as causas de alguma situação nova, e alertas ao fato de que nosso
controle normal sobre os fatos se rompeu. O futuro, de repente, se torna
incerto. Nossa segurança usual perdeu seu suporte. Somos colhidos em
correntes cruzadas de propósito e sentimentos conflitantes. Nessa situação
caótica, o interpretante imediato introduz a emoção como uma hipótese
simplificadora. (SANTAELLA, 2011, p. 152)
Ou seja, a raiva e a vingança são sentimentos que, independem da vontade
humana, logo não é possível prevê-las, assim todos são capazes de serem tomados
por esses sentimentos. A raiva possui diversos estágios quando expressada.
Entretanto, o sentimento de vingança pode ser considerado um estágio mais
avançado da raiva, pois, no âmbito da vingança, a raiva foge do pensamento, e
então passa a ser demonstrada através de ações. Contudo, a raiva, nesse estágio, é
colocada sob o controle mental do indivíduo, como Lucia Santaella (2009, p. 153)
ressalta: “A raiva, como foi mostrado pela psicologia cognitiva (Schimmel 1992: 87),
não é apenas uma emoção complexa e forte, mas inclui também ações e
pensamentos.”
A protagonista Shosanna, conseguiu demonstrar todos os estágios da raiva, citados
por Lucia Santaella (2010), no filme “Bastardos Inglórios”, principalmente os estágios
de vingança e de raiva explosiva, pois no decorrer do filme acontecem várias
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situações que colocam os personagens dentro desses dois estágios de raiva.
Desses a qual podemos destacar Shosanna e os soldados nazistas, quando a
protagonista dá inicio à sua série de vinganças contra o exercito alemão. Nesse
momento sua ira deixa de ser simplesmente raiva (pensamento) e torna-se algo
maior, a vingança (ação), deixando claro que a natureza humana é completamente
vulnerável a situações desse tipo.
Nessa perspectiva, o filme “Bastardos Inglórios” se tornou um dos maiores
fenômenos na história do diretor, com mais indicações ao Oscar até agora. O filme
foi indicado em oito categorias, vencendo a categoria Melhor Ator Coadjuvante em
2010, dado ao ator Christoph Waltz que interpreta o Coronel Hans Landa. Podemos
ligar esse sucesso ao roteiro que representa de certa forma, o ponto de vista do
diretor em relação ao nazismo e também a intensidade das emoções que foram
expostas no filme de forma objetiva, pois elas conseguiram fazer com que o público
sentisse as mesmas emoções que sentiam os que faziam parte do enredo.
4.1
Os estágios da raiva de Shosana
Neste tópico, analisaremos os estágios da raiva e principalmente da vingança
realizada protagonista Shosanna Dreyfus do filme “Bastardos Inglórios”. Mais
especificamente as cenas finais nas quais seu estágio de raiva deixa de ser apenas
pensamento e passa a ser vingança, ou seja, passa a colocar em prática seus
planos e idealizações obscuras. Shosanna arquiteta um plano para se vingar dos
soldados nazistas pelo assassinato de sua família. Então, quando o Ministro da
Publicidade, Joseph Goebbels decide estrear seu novo filme de guerra em seu
pequeno cinema, ela encontra a sua grande oportunidade de vingança, ao lhe ser
solicitado uma acolhida não só aos soldados nazistas, mas também aos militares de
alta patente do exército alemão, incluindo Adolf Hitler.
Logo ela arquiteta um plano: decide trancar todos dentro do cinema, e colocar fogo
em sua coleção de filmes, para que dessa forma conseguisse explodir o cinema e
todos que lá dentro estivessem. Com um detalhe peculiar, não satisfeita em trancar
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e queimar todos vivos, Shosanna faz questão de exibir uma mensagem gravada
para os nazistas. É uma mensagem carregada de ira e rancor. Dessa forma ela
consegue despertar o desespero em todos os que estão na sala, pois nessa hora
eles percebem não haver outra saída. É possível perceber que essa personagem,
passa de „vitima‟, frágil e sofrida para uma mulher vingativa, amarga, que toma conta
de toda a situação e mostra que apesar de tanto sofrimento, conseguiu virar o jogo e
se vingar daqueles que a fizeram sofrer.
Em uma perspectiva semiótica, podemos observar a presença dos legi-signos (Legi
– signos, são os objetos pré - definidos pelo ser humano, um bom exemplo são as
letras. No caso da emoções, as letras são consideradas legi – signos pois possuem
uma continuidade, ou seja, com o decorrer do tempo se modificam, tornando-se
mais intensas. Como é colocado por Santaella, quando tratamos a emoção como
legi – signo (Santaela, 2010, p. 160) e quali-signos (Quali – signos são as
qualidades que damos aos objetos, ações, etc. Ao analisarmos a raiva sob esse
conceito, focamos nas formas físicas que são modificadas pela raiva, ou seja, nas
qualidades que o ser humano atribui.) da raiva e da vingança. A raiva é uma emoção
que possui legi-signos, já que ela é alimentada e se desenvolve no decorrer do
tempo, se fortificando e se tornando cada vez mais intenso. Como é proposto por
Santaella (2009, p. 160):
Em primeiro lugar, as emoções são legi-signos porque toda emoção segue
um padrão que se desenvolve em um certo período de tempo. No caso da
raiva, sua natureza explosiva, e mesmo progressiva, é evidente. Como foi
bem colocado por São Francisco de Sales (d. Schimmel1992: 91), a raiva
„começa como um pequeno galho e, em um piscar de olhos, se adensa e se
torna um tronco‟.
Desta forma, a relação e o sentimento de Shosanna para com os soldados nazistas
tornam-se mais descomplicados, pois de acordo com o conceito anterior de legisignos é possível notar que a raiva e a vingança são sentimentos que foram sendo
cultivados durante muitos anos por ela. Assim, esses sentimentos foram expostos no
seu ápice, o que gerou a vingança que é o clímax do filme, protagonizada pela
garota judia. Uma vez que a raiva modifica a fisionomia do indivíduo, nota-se que a
protagonista toma uma postura agressiva e seu corpo começa a reagir de forma
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diversa em relação à pessoa a quem a raiva é direcionada, no caso os soldados
nazistas, expressando também os quali-signos da raiva, que estão relacionados a
essa vingança, onde Shosanna toma uma atitude e parte para a ação, queimando o
cinema e matando várias pessoas. Logo, os quali-signos estão claramente
manifestados nessa relação de tensão entre a protagonista e os vilões, por se tratar
da forma com que ocorre a vingança, ou como é colocado por Lucia Santaella, que
os quali-signos são “os ingredientes qualitativos” da vingança e da raiva, no caso de
Shosanna é possível perceber uma grande exposição desse sentimento de vingança
e raiva. Entretanto, é possível notar uma variação nos estágios da raiva, podendo
existir uma simples raiva, sem outras formas de agressão, ficando apenas no
pensamento, e alcançar uma raiva que leva o indivíduo a seu extremo, sendo que a
raiva possui várias formas comuns a todos esses estágios, como afirma Santaella
(2010, p. 161):
Pode haver uma grande variedade de instâncias da raiva, mas elas têm
todas alguns atributos em comum, tais como o ímpeto emocional, o
comportamento visual e verbal agressivo e até mesmo feroz, ou mesmo a
agressividade mental, quando a raiva é perigosamente silenciosa.
Nota-se que o nível de vingança e raiva apresentado pela protagonista, vai muito
além do aceitável socialmente. E o fato de ser protagonizada por uma mulher,
aumenta a curiosidade e prende ainda mais a atenção dos telespectadores. Isso
ocorre devido ao rompimento dos padrões propostos pela sociedade que privilegia o
gênero masculino, em relação a essa divisão, do que é característico da mulher e o
que é característico ao homem. Dispõe sobre a forma intensa com que as mulheres
conseguem lidar com sentimentos como a raiva e a vingança. Mostra que elas
podem ser fortes e ousadas, sem perder sua feminilidade, para mostrar do que são
capazes. Santaella (2010) explica sobre o temperamento explosivo e a violência
sem escrúpulos com qual Medéia, feiticeira da mitologia grega, que inconformada e
sentindo-se traída e humilhada, encheu-se de um ódio sobre-humano e arquitetou
um terrível desejo de vingança para aniquilar todos os desafetos, matando seus
filhos.
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Diante do exposto nesses personagens, é possível considerar que, a raiva e os
sentimentos femininos são capazes de ir além do que é sensato, movidas pela
emoção do momento e por sensações intensas, sendo capazes de tudo ou quase
tudo para vingarem daqueles que lhe fizeram qualquer mal.
Todavia, as mulheres são apresentadas, em algumas situações, como um símbolo
da vingança insensata, do orgulho e da sedução, como nos é mostrado nas histórias
de Medéia, personagem da mitologia grega, sua história se baseia na vontade de
vingança. Jasão é um herói que deseja obter o Velo de Ouro para retomar seu trono.
Então, Medéia se apaixona por Jasão e resolve ajudá-lo, com a condição de que,
após pegar o Velo de Ouro, ele se case com ela.
Após realizarem todas as
perigosas tarefas para conseguirem o Velo de Ouro, Jasão e Medéia se casam.
Após muitas aventuras, o casal chega a Coríntio, onde Jasão se apaixona por
Glaucia, filha do rei de Coríntio, dessa forma ele abandona Medéia para se casar
com a princesa. Cega de ódio e raiva Medéia se vinga enviando a princesa e ao rei
um vestido e uma coroa envenenados, matando-os. Não satisfeita e ainda cega de
ódio ela resolve matar seus filhos também, com o intuito de causar dor em Jasão.
É possível compreender a escolha do diretor e autor ao utilizar uma mulher para
protagonizar e externar de forma intensa os sentimentos de raiva e vingança contra
todo um exército composto por machistas, sarcásticos e homens cruéis, que
covardemente mataram milhares de inocentes durante a Guerra Mundial, sem
nenhuma causa aparente.
Utilizando uma mulher como protagonista, o diretor Quentin Tarantino encontra uma
forma de combater e romper com padrões culturais que foram estabelecidos há
séculos na sociedade. Assim é possível chegar ao ápice da emoção de cada
personagem, pois cada um manifesta seus sentimentos e sua vingança de forma
particular e pessoal, contudo quem consegue trazer para o plano da realidade é uma
mulher, que acaba por derrubar uma ofensiva que fora imposto pelo regime de
governo dos alemães.
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A partir disso, podemos compreender que esses sentimentos de vingança e ira são
sentimentos que os seres humanos, não apenas as mulheres, não conseguem
controlar, mas que ainda assim, causam curiosidade e interesse dos demais
membros da sociedade, devido à sua intensidade. Mesmo tendo a consciência de
que raiva e vingando são sentimentos ruins, o telespectador se identifica com essas
personagens e passam a sentir „alivio‟ ao vê-las concluindo sua vingança.
Assim sendo, a ficção, o cinema, aproveitam-se dessa atenção que é dada a essa
quebra de paradigma, a essa expressão da emoção humana, conseguindo fazer
com que os telespectadores se envolvam cada vez mais na trama e se permitam
vivenciar profundamente dessas emoções de forma catártica.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A representação da mulher nos filmes de Quentin Tarantino analisados, acontece de
forma que o diretor rompe com os paradigmas pré-estabelecidos, por uma
sociedade que privilegia o gênero masculino e, ao mesmo tempo, faz com que o
telespectador se envolva no enredo da história e se identifique com essas
personagens.
As mulheres são representadas como mulheres fortes e vingativas, o que
teoricamente representa o papel do homem na sociedade, entretanto elas o
cumprem em todos os filmes os quais são as protagonistas. Pode-se dizer que a
forma de envolvimento do público com os filmes se dá pela exposição de situações e
personagens que rompem com os paradigmas pressupostos e acabam por
surpreender o telespectador por ser uma situação „incomum‟ onde é das mulheres,
que deveriam se enquadrar em uma representação típica feminina, que nasce o
sentimento de raiva e vingança e a partir dai o enredo gira em torno desse
sentimento e de sua construção ao longo do filme. Essas mulheres foram capazes
de tomar o controle das situações e darem a volta por cima, mostrando que a mulher
não é o „sexo frágil‟, sendo elas capazes de demonstrarem delicadeza e fragilidade,
e ao mesmo tempo, elas podem ser fortes, violentas e possuírem esse desejo de
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vingança.
A relação comum a todas essas mulheres é que, todas são movidas por um desejo
de vingança que veio se alimentando de forma perceptível na decorrer dos filmes, e
vêm a tomar grandes proporções, chegando ao seu ápice, levando-as a ação. Por
fim, a análise pautou-se na personagem Shosanna Dreyfus de “Bastardos Inglórios”,
tomando como base o capítulo “Por uma semiótica das emoções: Medéia e o
paroxismo da raiva feminina”, do livro Semiótica Aplicada, teve por objetivo mostrar
como se dava a relação entre Shosanna e os soldados nazistas, e analisar os
principais sentimentos existentes na protagonista que fossem comuns a todas as
outras mulheres. Como foi colocado no decorrer deste trabalho, a exposição desses
dois sentimentos rompem com o padrão estabelecido em relação às mulheres e em
relação à construção do enredo apresentando-o de forma não-linear.
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DVD (153 min.), color., ação.
BILL, Kill 1. Direção: Quentin Tarantino. Produção Lawrence Bender. Estados
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BILL, Kill 2. Direção: Quentin Tarantino. Produção Lawrence Bender. Estados
Unidos da América: A Miramax Films; A Band Apart; Super Cool ManChu, 2004. 1
DVD (136 min.), color., ação.
BROWN, Jackie . Direção: Quentin Tarantino. Produção Lawrence Bender. Estados
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Productions, 1997. 1 DVD (154 min.), color., ação.
DEATH, Proof. Direção: Quentin Tarantino. Produção Quentin Tarantino. Estados
Unidos da América: PlayArt Films, 2007. 1 DVD ( 113 min.). coloração.
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