Sobre os mundos de Habermas e sua ação comunicativa

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Sobre os mundos de Habermas e sua ação comunicativa
FAMAT
Revista
da ADPPUCRS
Porto Alegre, nº. 5, p. 49-56, dez. 2004
Sobre os mundos de Habermas e sua ação comunicativa
CARLOS EDUARDO DA CUNHA P INENT1
RESUMO: Quando um indivíduo fala, numa iniciativa comunicativa com outros
indivíduos ou consigo mesmo, duas suposições a respeito do que diz podem ser
pensadas: sobre o que está falando e qual sua intenção ao falar. A partir dessas posições, podemos buscar uma leitura para os mundos de Habermas e um entendimento para sua ação comunicativa.
Introdução1
Habermas redirecionou a função da
filosofia, que, para ele, precisa deixar de ser
subjetiva, uma filosofia da consciência que
leva ao autoconhecimento, com acesso intuitivo e que privilegia o sujeito, com a
razão fundamentada na análise do conhecimento e da ação unicamente na busca de
relações entre o sujeito e o objeto. Como
alternativa, propõe uma filosofia intersubjetiva, não exclusivamente intuitiva, com
acesso público e que privilegia interlocutores, com a razão fundamentada na análise
da linguagem, sendo, neste sentido, uma
filosofia da linguagem. Porém, linguagem
enquanto forma de comunicação. Habermas critica o semanticismo, que não leva
em consideração o uso pragmático da linguagem na relação que se estabelece entre
ouvintes quando se referem ao mundo.
____________
1
Professor da PUCRS e da UCS, doutor em Educação
O modo original da linguagem, para ele, é
o seu uso comunicativo:
O entendimento parece ser imanente como
telos à linguagem humana. Se esta suspeita se
confirma, teremos que postular para a ação
comunicativa uma conexão estreita entre fala
e ação e, então, pelo menos como fins heurísticos, as manifestações explicitamente lingüísticas haverão de primar sobre as nãolingüísticas (Habermas, 1988, p. 454).
O MUNDO E OS TRÊS MUNDOS DE
HABERMAS
Um novo paradigma, então, é proposto, com fundamento nessa visão intersubjetiva; as ações comunicativas são tematizadas, em que os atos de fala pretendem
transmitir o sentido do que é dito, com
propósitos explicativos, na intenção de se
dizer algo sobre o mundo.Habermas chama
... comunicativas às interações nas quais as
pessoas envolvidas se põem de acordo para
coordenar seu plano de ação, o acordo alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de
validez (Habermas, 1989, p. 79).
O mundo, em Habermas, vem a ser a
totalidade de entidades sobre as quais afirmações verdadeiras são possíveis. Esse
mundo, evidentemente assim admitido,
tem status realista, ontológico. É um mundo objetivo. Entretanto, com a relação intersubjetiva propiciada pela linguagem é o
fundamento desse novo redirecionamento
filosófico, surge a seguinte questão: a linguagem não é usada para a construção de
frases assertivas correspondentes a um
mundo ontológico, a um mundo objetivo das
coisas, mas também para o uso de sentenças com outras finalidades, como solicitações dirigidas a terceiros e descrições de
experiências pessoais. Dessa forma, além de
um mundo objetivo das coisas, é razoável se
pensar em outros dois mundos, que não
gozam de estatuto ontológico e que Habermas chama de mundo social das normas e
mundo subjetivo dos afetos:
A ação comunicativa baseia-se em um processamento cooperativo de interpretação em
que os participantes se referem a algo no
mundo objetivo, no mundo social e no
mundo subjetivo mesmo quando em sua
manifestação só sublinhem tematicamente
um destes três componentes (Habermas,
1987b, p. 171).
Esses três mundos formam o palco
no qual a intersubjetividade humana opera:
Em suas operações interpretativas os membros de uma comunidade de comunicação
deslindam o mundo objetivo e o mundo social que intersubjetivamente compartilham,
frente ao mundo subjetivo de cada um e
frente a outros coletivos (Habermas, 1987a,
p. 104).
A linguagem é o elemento aglutinador:
Apoiando-se no uso ordinário da linguagem,
no qual utilizamos conceitos simétricos de
mundo interno e mundo externo, falo de
mundo subjetivo em contraposição com o
mundo objetivo e o mundo social (ibid, p.
81).
Vista por este aspecto, podemos dizer
que a linguagem permite ao falante não
apenas emitir sentenças assertóricas (ou
representativas) objetivamente a respeito de
um estado das coisas, mas também sentenças apelativas, que objetivam emitir solicitações a outras pessoas, e sentenças expressivas, que visam tornar conhecidas as experiências pessoais. As assertóricas se referem
a um mundo objetivo, que tem estatuto
ontológico, as apelativas se referem a mundo social, de características normativas, e as
expressivas se referem a um mundo subjetivo, com status afetivo.
Porém, se o mundo para Habermas é,
como vimos, a totalidade de entidades passíveis de afirmações com pretensões de verdade, então se torna necessário estabelecer
pretensões de validade e de relações com
esses três mundos. Assim, para as assertóricas são pretensões de verdade sobre um
estado das coisas, na crença de um mundo
objetivo; para as apelativas, podem ser, ou
de validade normativa, numa função regulativa, na concepção de um mundo social
comum, ou de poder, numa função imperativa, numa relação com o mundo objetivo, no desejo do falante de que um estado
das coisas se realize; e para as expressivas,
são de tornar conhecidas as experiências
pessoais do falante, referidas a um mundo
subjetivo.
AS INTENÇÕES DA FALA: MUNDO DO
SISTEMA E MUNDO DE VIDA
As ações ou atos de fala constituem,
pela linguagem, as relações que os falantes
estabelecem entre si quando se referem a
alguma coisa no mundo, em qualquer de
suas três concepções. Esses atos de fala, em
sua intencionalidade, podem ter dois propósitos distintos: propósitos perlocucionários, quando os objetivos do falante e os
fins a que se propõe não derivam de conteúdo manifesto no ato de fala, ou propósitos
ilocucionários, quando as pretensões do
falante em sua ação de fala são chegar a
algum acordo sobre o próprio sentido do
que diz. O “modo original” da linguagem é
seu uso em atos de fala ilocucionários, em
ações voltadas para alcançar o entendimento
(Habermas, 1990c, p. 65ss).
Habermas diz que
Através das ações de fala são levantadas pretensões de validez criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo
(Habermas, 1990b, p. 72).
Portanto, concomitantemente à divisão em três mundos, objetivo das coisas,
social das normas e subjetivo dos afetos, há
uma outra relacionada com a intenção do
falante: uma ação imperativa, em que ocorrem atos perlocucionários, em que o falante causa, de alguma forma estratégica, um
efeito (teleológico) sobre o ouvinte e uma
ação regulativa, em que prevalecem atos
ilocucionários, em que o falante realiza
uma função (comunicativa) enquanto diz
algo; essa divisão é o que Habermas denomina de “mundo de sistema”, associada a
um mundo objetivo, e “mundo de vida”
(Lebenswelt), associada a um mundo social.
Completando as relações entre intenções
do falante e os três mundos, há a ação
dramatúrgica, na qual o falante pode expressar ante o público suas experiências
privilegiadas pessoais (Habermas, 1989, p.
489ss), associada a um mundo subjetivo.
Ficam caracterizadas, assim, por um
lado, as ações teleológicas, nas quais os atos
de fala são instrumentalizados, com propó-
sitos estratégicos/instrumentais, que representam a intenção do agente falante, em
ações orientadas para o sucesso e, por outro, as ações comunicativas, nas quais os
atos de fala têm a intenção de argumentar
sobre o sentido do que é dito, com propósitos comunicativos. As ações comunicativas,
que têm suas raízes nos atos de fala (Habermas, 1987b, p. 91ss), são o interesse e o
telos do trabalho habermasiano.
A AÇÃO COMUNICATIVA
Uma ação comunicativa é, assim,
uma forma de ação social, em que os participantes se envolvem em igualdade de condições para expressar ou para produzir opiniões pessoais, sem qualquer coerção, e
decidir, pelo princípio do melhor argumento, ações que visam determinar a sua vida
social.
A ação comunicativa se distingue das interações de tipo estratégico porque todos os participantes perseguem sem reservas fins ilocucionários com o propósito de chegar a um
acordo que sirva de base a uma coordenação
concentrada nos planos de ação individuais
(Habermas, 1987a, p. 379).
Uma ação comunicativa pode ser esquematizada da seguinte forma (Pinent,
1996):
comunicações cotidianas
questionamento
discurso
situação ideal de fala
consenso
comunicações cotidianas
Um grupo de indivíduos socialmente
organizados troca informações e idéias baseadas em princípios não problemáticos e
que são de alguma forma entendidos como
verdadeiros; são as comunicações cotidianas,
compostas de pretensões de validade implicitamente aceitas pelo grupo. Surge, entretanto, um questionamento, uma situação
em que algum fundamento pretensamente
válido é posto em xeque, ou seja, quando
pelo menos um dos envolvidos levanta uma
dúvida a, no mínimo, uma afirmação até
então aceita implícita ou explicitamente.
Essa situação de impasse resulta na possibilidade de entrada no discurso, no qual os
envolvidos vão discutir soluções com argumentos em que deverá vencer aquele que
apresentar maior solidez, numa situação
ideal de fala, isto é, num ambiente em que
todos têm a mesma chance de falar, de ouvir e de contestar, livres de qualquer tipo
de influência ou repressão, quer externa,
quer interna. Pela força do melhor argumento, a única força admissível, o grupo
procura chegar a um consenso, um tipo de
acordo intersubjetivo que resulta no retorno à situação de comunicações cotidianas,
agora em novas bases e com novas pretensões de validez.
O resultado de um processo continuado como esse conduz a um processo de
emancipação dos envolvidos. Emancipação
significa autonomia do sujeito:
Emancipação tem a ver com libertação em
relação a parcialidades que... derivam, de certa forma, de nossa responsabilidade. ... A
emancipação é um tipo especial de autoexperiência porque nela os processos de auto-entendiemento se entrecuzam com um
ganho de autonomia (Habermas, 1993, p.
99).
E emancipação tem a ver com intersubjetividade:
Portanto, a expressão “emancipação” tem o
seu lugar no âmbito do intercâmbio dos sujeitos consigo mesmos, ou seja, ele se refere a
transformações descontínuas na autocompreensão prática das pessoas (ibid. p. 100).
Por outro lado, o processo que vai
desde a discordância se desenvolve pelo
discurso e termina por um consenso/acordo provisoriamente estabelecido é o
que resulta, enfim, na produção de conhecimento. E sendo processo, a “roda” não
pára.
A FORÇA DO MELHOR ARGUMENTO
Para entender a ação comunicativa, é
preciso sempre lembrar que Habermas reformulou o conceito de racionalidade, no
sentido de fundamentar as bases de um agir
comunicativo. Partindo da idéia conclusiva
de que “o conhecimento é um ato lingüístico” (Ingram, 1993, p. 247), uma ação é
racional se estiver intimamente ligada a
uma argumentação. O agir é racional
quando se propõe a resolver conflitos potenciais por meio de argumentações destinadas a outras pessoas na expectativa da
busca de algum consenso possível. Portanto, a ação racional, base de um agir comunicativo, exige pelo menos duas pessoas se
comunicando. Em conseqüência, os indivíduos envolvidos em uma ação comunicativa têm de estar dispostos a persuadir ou a
se deixar persuadir. Isso exige algumas comunicações básicas, a primeira das quais é
que um acordo seja alcançado apenas pela
força do melhor argumento.
O agir comunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez que a coordenação bem
sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais
de ação, mas na força racionalmente motivadora de atos de entendimento, portanto,
numa racionalidade que se manifesta nas
condições requeridas para um acordo obtido
comunicativamente (Habermas, 1990b, p.
72).
A partir dessa premissa (da força do
melhor argumento), as ações passam a ter
pretensões à verdade, que acompanham
argumentações. Porém, as argumentações
dizem respeito a crenças factuais. As crenças normativas, expressivas e avaliativas
exigem, para que a ação seja racional, sinceridade, autenticidade e propriedade, para
que, neste caso, tenham pretensões à correção. Além disso, em qualquer caso, para
que seja plenamente racional, uma ação
“precisa ser moral e legalmente certa, precisa eximir sinceramente os sentimentos e
desejos autênticos do agente e orientar-se
pelos valores compartilhados da comunidade” (Ingram, 1993, p. 40).
Essa distinção entre crenças factuais,
por um lado, que têm pretensões à verdade,
e crenças normativas, expressivas ou avaliativas, por outro, que têm pretensões à correção, implica que as condições de argumentação dependem do tipo de validade
proposta. No primeiro caso, a expectativa é
somente de apresentar argumentos que
sejam convincentes aos demais de sua verdade. Já no segundo caso, a pretensão à
correção envolve problemas de ordem moral e/ou ética. Só pode ser racional se a
ação apresentada por um indivíduo pressuponha aceitação implícita da mesma por
parte dos outros indivíduos com relação a
ele. Além disso, precisa haver coerência
entre a palavra e a ação do indivíduo. Ingram acredita que “Neste ponto, Habermas
acompanha Kant, sustentando que a força
deontológica da obrigação moral proíbe as
exceções; estamos sempre obrigados a afastar nossos interesses egoístas quando eles
entram em conflito com o interesse universal” (ibid, p. 41).
CONSENSO E SITUAÇÃO IDEAL DE FALA
O significado de consenso poderia merecer uma tematização à parte, pois não se
trata do conceito comum do termo, mas o
que emerge da teia das ações do mundo da
vida, lançando aos poucos... “um novo
conceito de consenso, distinto do consenso
deformado de hoje...”. (Medeiros, 1993, p.
239). No momento, deve-se ter em mente
que consenso é caminho para um entendimento provisório. Destaque-se, também,
que a impossibilidade de se chegar a um
consenso numa determinada situação pode
ser entendida como um consenso, ou seja,
um acordo de que não foi possível atingir
um consenso naquele específico instante.
O conceito de entendimento (Verstän-digung)
remete a um acordo racionalmente motivado
alcançado entre os participantes, que se mede por pretensões de validez suscetíveis de
crítica. (Habermas, 1987a, p.110)
Logo, o entendimento precisa ser
percebido como um processo, e não como
uma meta final, obtido a cada momento
por um consenso, que também nunca será
tido como um objetivo final. O entendimento e o consenso não têm credenciais de
absolutos, mas são conquistados em cada
contexto; como o contexto é dinâmico,
também o são o entendimento e o consenso.
Mas como obter um consenso num
processo comunicativo? Através de uma
situação ideal de fala, uma situação que, como expressa Siebeneichler (1994), “pode
ser tomada como critério da argumentação
discursiva porque implica uma distribuição
simétrica de chances de escolha e de realização de atos de fala. Supomos que nela
não existe nenhum elemento de coação a
não ser a coação do melhor argumento” (p.
105).
Ingram lembra “a divisão triádica da
argumentação proposta por Aristóteles, a
lógica, a retórica e a dialética” (1993, p.
42), afirmando que Habermas segue essa
divisão; na lógica, a argumentação deve
apresentar as qualidades de consistência
interna e externa; na retórica deve ocorrer a
situação ideal de fala, caracterizada por
condições formais de justiça processual,
que implica ausência de coação interna e
externa na apresentação da argumentação
racionalmente fundamentada dos envolvi-
dos, com igual possibilidade para todos de
argumentar e rebater argumentos, na expectativa do acordo; na dialética manifestase a interação entre os falantes, com liberdade de crítica e “independente das pressões quotidianas que buscam o êxito” (ibid,
p. 43), dentro da qual é possível o mútuo
reconhecimento de sinceridade e responsabilidade racional nas reivindicações de validade.
OS ATOS DE FALA
Todo esse caminho percorrido leva
Habermas a desenvolver uma proposta de
pragmática universal, que vem a ser o desvelo dos universos do diálogo do indivíduo,
universos esses cujas conquistas são necessárias para sua participação em situações
que envolvam a fala. Habermas analisa as
assertivas em que aparecem verbos executivos, verbos que propõem algum compromisso social, ao contrário dos verbos nãoexecutivos, que apenas facilitam a transmissão das informações. Os verbos executivos
constituem os atos de fala. Os atos de fala,
para Habermas, contêm não apenas conteúdos expressivos, proposicionais, mas constituem uma categoria de significado plena e
autêntica. O ato de fala é o momento em
que a pessoa exprime suas intenções:
Qualquer ato de fala, através do qual um falante se entende com um outro sobre algo,
localiza a expressão lingüística em três referências com o mundo: em referência com o
falante, com o ouvinte e com o mundo.
(Habermas, 1990b, p. 95)
Os atos de fala que se manifestam na
comunicação ordinária passam a constituir
uma teoria que está imersa e se funde com
a própria teoria da ação comunicativa de
Habermas. Nesta, o processo comunicativo
está sempre voltado para o entendimento;
neste caminho vai-se construindo uma nova razão com pretensões de universalidade,
a razão comunicativa, que proporciona
condições para a emancipação dos indivíduos.
Siebeneichler (1994) explora a pretensão de pragmática universal como dimensão subjacente ao trabalho habermasiano para explicar o processo emancipatório
inerente à ação comunicativa de Habermas,
a partir da sustentação de que “a competência específica da espécie humana de
poder falar uma linguagem constitui a condição necessária e suficiente para que os
homens cheguem à maioridade” (p. 88).
Destaca, para isso, dentre os vários conceitos tematizados por Habermas, em sucessivos níveis de abordagens, dois que lhe parecem mais importantes: o “agir voltado ao
entendimento” e a “razão não-reduzida”.
A teoria da ação comunicativa se propõe ademais como tarefa investigar a “razão inscrita na própria prática comunicativa e cotidiana” e reconstruir a partir da base de validez
da fala um conceito não-reduzido de razão. (Habermas, 1989, p. 506)
A reciprocidade concomitante desses
dois conceitos, ao serem tratados mutuamente, desemboca no conceito de razão
comunicativa que, por sua vez, vai fundamentar a teoria do agir comunicativo e/ou
a teoria da competência comunicativa.
RACIONALIDADE COMUNICATIVA
A teoria da racionalidade de Habermas pretende explicar todas as manifestações racionais do indivíduo, quer sejam
diretas ou simbólicas. Segundo Aragão
(1992), “Qualquer asserção ou razão poderá
ser tida como racional, desde que suscetível
de criticismo e fundamentação, isto é, que
possa fornecer razões e fundamentos” (p.
33). Isso é o que Habermas chama de racionalidade comunicativa. Nas ações, diretas ou
simbólicas, o sujeito será racional, se, possuidor de conhecimento falível, souber e se
propuser a defender as pretensões de validade ou verdade contra a crítica dos inter-
locutores: “Asserções e ações dirigidas a
metas são tanto mais racionais quanto mais
a exigência (de verdade proposicional ou de
eficiência) que é conectada com elas possa
ser defendida contra as possíveis críticas”,
acrescenta (ibid, p. 34). Dessa forma, as
asserções só serão racionais se dirigidas a
metas ilocucionárias, satisfazendo suas
condições. Ou seja, os sucessos ilocucionários não podem ir além de o compreender
e o aceitar ações de fala; os fins e efeitos,
quaisquer que sejam, que vão além disso
devem ser chamados de sucessos perlocucionários.
A racionalidade assim caracterizada
passa a fundamentar um novo paradigma
lingüístico, diferenciado do velho que se
apegava apenas a uma análise proposicional
dos conteúdos dos proferimentos. Essa
nova proposição pragmática exige uma prática argumentativa com vistas a um consenso, cuja obtenção não pode ser conseguida
pelas práticas comunicativas rotineiras. “A
argumentação é aquele tipo de discurso em
que os participantes tematizam exigências
de validade contestadas e que tentam resgata-las ou criticá-las através dos argumentos”
(ibid, p. 36). Nesse ambiente de atos de fala
só é admissível o uso da força argumentativa, que será medida pela solidez dos argumentos e por quanto eles são capazes de
convencer os participantes do discurso.
No agir comunicativo, pressupõe-se a base de
validade do discurso. As pretensões de validade universal (verdade, justeza, veridicidade), que pelo menos implicitamente são colocadas e reciprocamente reconhecidas pelos
interessados, tornam possível o consenso que
serve de base para o agir comum. (Habermas,
1990a, p. 33)
O entendimento do sentido de discurso em Habermas está intimamente relacionado com o entendimento dos fundamentos de sua teoria da ação comunicativa:
Utilizo a expressão “ação comunicativa” para
aquelas manifestações simbólicas (lingüísticas
e não-lingüísticas) com os sujeitos capazes de
linguagem e ação estabelecem relações com a
intenção de se entenderem sobre algo e coordenar assim suas atividades. (Habermas,
1988, p. 453)
Destaque-se, além disso, que
Habermas assume um compromisso tácito
com a teoria: “Desde o início de sua carreira intelectual Habermas não se limita a
insistir na existência de uma possível ou
enigmática ligação entre teoria e praxis,
entre saber teórico e atividade humana. Sua
pretensão vai mais longe: delinear os contornos de uma teoria sistemática desta mediação.”, afirma Siebeneichler (1994, p.
69). Depreende-se daí que num discurso
habermasiano haverá sempre, implícita ou
explicitamente, uma teoria subjacente. Em
Bobbio e outros (1986), essa questão está
muito clara: “Habermas diz que a teoria é
tomada de consciência da Práxis... A Práxis
é, pois, tanto objeto da teoria como sua
referência imanente”. (p. 991)
CONCLUSÃO
Como vimos, a razão comunicativa se
manifesta na intenção dialógica social de
pelo menos dois indivíduos. A interação
pode se dar de forma espontânea, em um
diálogo cotidiano, ou pela forma do que
Habermas denomina discurso, uma forma
comunicativa característica, em que um
ator propõe validade para uma referência
sua a um fato, uma norma ou uma vivência, racionalmente fundamentado, na expectativa de que seja contestado com algum
contra-argumento igualmente fundamentado. Isso leva à conclusão de que não há précondições, quer seja no diálogo cotidiano,
quer no discurso, “todas as verdades anteriormente consideradas válidas e inabaláveis podem ser questionadas; todas as normas e valores vigentes têm de ser justificados; todas as relações sociais são considera-
das resultado de uma negociação na qual se
busca o consenso e se respeita a reciprocidade, fundados no melhor argumento”
(Freitag, 1993, p. 60). Esta razão comunicativa ou dialógica é o fundamento da teoria
da ação comunicativa.
A teoria da ação comunicativa abre
caminhos na busca de soluções para o nosso mundo, desde questões teóricas até técnicas e sociais:
Este giro desde a teoria do conhecimento até
a teoria da comunicação me permitiu dar
respostas substanciais a questões que desde
uma perspectiva metateórica só podiam iluminar-se como questões e aclarar-se em seus
pressupostos: para a questão da base normativa de uma teoria crítica da sociedade, para
a questão da objetividade da compreensão e
da unidade no pluralismo das formas de vida
e jogos de linguagem, para a questão da possibilidade de um “funcionalismo de orientação histórica” e para a questão de como cabe
superar a competência do paradigma entre a
teoria de sistemas e a teoria da ação. (Habermas, 1988, p. 16)
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