1 Vlad Schüler-Costa Mestrando (2º ano) – PPGAS/MN

Transcrição

1 Vlad Schüler-Costa Mestrando (2º ano) – PPGAS/MN
1
Mai Waifu: relacionamentos “reais” com personagens “fictícias”1
Vlad Schüler-Costa2
Mestrando (2º ano) – PPGAS/MN/UFRJ
Ao se conviver tempo o suficiente com otakus – fãs da cultura de massas japonesa –, é
grande a probabilidade que a palavra waifu surja, cedo ou tarde – especialmente se tal
convívio se der na internet.
Inicialmente mais um vocábulo estranho com sonoridade vagamente japonesa – algo
normal, portanto, para o observador experiente – essa palavra torna-se cada vez mais
curiosa à medida que o pesquisador adentra a toca do coelho que é a rede de
significados tecida ao seu redor.
Waifu é, como grande parte do vocabulário otaku, um termo originado de um desenho
animado, e cuja tradução literal é ―esposa‖ – sendo simplesmente a pronúncia japonesa
da palavra inglesa wife3. Essa tradução, porém, não faz jus ao complexo significado que
o termo carrega: quando um otaku se refere à sua waifu, ele está se referindo a uma
personagem com a qual ele tem um relacionamento emocional específico. Para citar um
texto que discute justamente o que viria a ser uma waifu4:
A waifu is many things to many different people, but, in essence, is the
embodiment of your ideal significant other. […] A waifu is that character that
you simply cannot wait to see appear on screen and deliver their next enigmatic
line. A waifu is the personification of that which makes you feel safe, secure,
and confident. (―Waifu F.A.Q.‖)5
Embora essa definição não seja, de forma alguma, hegemônica ou inconteste (quase
nada o é dentro da comunidade otaku), ela nos serve para demonstrar o tipo peculiar de
1
Uma primeira versão desse trabalho foi apresentada na disciplina ―A Imagem Ritual – Agência, Artefato,
Pessoa‖, ministrada pelo professor Carlos Fausto. Agradeço a ele pelos comentários feitos então.
Agradeço também a Guilherme Fians pelos comentários e revisão na versão final.
2
Contato: [email protected], ou pelo Twitter @vladschuler
3
Existe, embora seja menos utilizada, a versão masculina do termo: husbando ou hasubando. Porém, por
ser mais comum e para facilitar a leitura do texto, o termo será utilizado somente em sua versão feminina,
waifu.
4
Existe uma longa tradição na comunidade otaku de autorreflexão a respeito dos fenômenos sociais dos
quais eles fazem parte – o que, incidentalmente, adiciona ainda mais uma camada de reflexão ao
antropólogo.
5
Este documento, que será citado à exaustão, pode ser visto no Anexo I
2
conexão existente entre o otaku e sua waifu – conexão que, de fato, é constantemente
comparada à conexão existente entre dois esposos ―de verdade‖6 (inclusive para afirmar,
de forma um tanto cínica, que a conexão com uma personagem é muito mais profunda
que a com alguém ―de carne e osso‖). Com o que vimos até então, poderíamos dizer que
waifu é uma personagem com a qual tem-se um relacionamento emocional, íntimo e/ou
amoroso – uma alma gêmea, portanto.
Nesse momento, várias perguntas surgem: como é possível que alguém tenha por alma
gêmea um ser que, objetivamente falando, não existe?
7
Como funciona esse
relacionamento? O que leva o indivíduo a ter esse tipo de relação? Há, afinal, uma
humanidade nessas personagens? Essas perguntas, embora não sejam fáceis de
responder, nos dão pistas sobre o que esse fenômeno pode nos dizer – sobre otakus e
sobre ―pessoas normais‖. Mas vamos por partes.
Casos e relatos
Nesse ponto, é importante ressaltar um dado importante: apesar de estar estudando
otakus há mais de cinco anos, (e estar convivendo entre eles há quase quinze), não
conheci até hoje uma pessoa que afirmasse, sem deixar margem de dúvida, que tivesse
uma waifu8. Todos os casos que tenho conhecimento me foram relatados por terceiros
que, no máximo, conheciam alguém que tinha uma fixação com um personagem, ou, na
maior parte dos casos, simplesmente estava replicando uma notícia ou imagem que
estava circulando a internet.
A falta de casos concretos, porém, não torna a figura da waifu menos presente no
imaginário otaku. Histórias de japoneses, chineses ou coreanos (pessoas ―no outro lado
do mundo‖, portanto) que chegam até a organizar cerimônias de casamento são
veiculadas e discutidas com certa regularidade 9 . Várias personagens têm seus
6
Entre os otakus japoneses, inclusive utiliza-se o mesmo termo para waifus e para esposas: ―yome”.
Uma das primeiras respostas que vem à mente – transtorno mental, particularmente esquizofrenia – é,
obviamente, a errada. Como diz Hiroki Azuma, citando a psiquiatra Saitō Tamaki, a incidência de
transtornos mentais entre os otakus não é particularmente acentuada (ela diz inclusive, e a resposta a tal
questão não deve ser de origem psiquiátrica. (Azuma, 2009, 88-9)
8
Houve um caso de uma pessoa que me disse, em tom jocoso, que em sua adolescência havia tido certa
atração por determinado personagem, ao ponto de ter feito um desenho do ―casal‖. Mas ainda assim, não
só era um relato do passado, mas de uma época da vida que ―não se deve levar à sério‖.
9
Confira, por exemplo, http://www.escapistmagazine.com/news/view/98910-Korean-Otaku-MarriesAnime-Body-Pillow ou http://www.telegraph.co.uk/technology/video-games/6651021/Japanese-gamermarries-Nintendo-DS-character.html
7
3
aniversários comemorados anualmente por otakus no mundo todo. E, no cotidiano, os
otakus utilizam o termo waifu constantemente, para se referir a uma miríade de personas
(personagens ou humanas) com as quais exista uma identificação, uma atração ou até
mesmo uma relação.
Waifus, portanto, mais que seres cuja existência é inequívoca e indiscutível, pertencem a
uma espécie de limbo existencial – sendo referência das mais diversas relações e, no
fundo, tratadas mais como seres em potencial do que como seres existentes de fato.
Pode-se dizer, de certa forma, que elas são tratadas como as bruxas do famoso ditado
galego – no creo en ellas, pero que las hay, las hay.
Fisicalidade metafórica
Por outro lado, objetos que sirvam de indício dessas relações não faltam. O mercado da
cultura de massas japonesa, notório por comercializar tudo que possa ser comercializado,
disponibiliza, além de bonecos de resina, pôsteres, pelúcias, cartões, quadros,
cardboards 10 e outras diversas formas (físicas ou digitais) de representação das
personagens, o suprassumo do universo simbólico das waifus: o dakimakura.
Dakimakuras são fronhas de travesseiros de corpo inteiro (do tipo que pode ser utilizado
para auxiliar pessoas com problemas de coluna), em cujas faces estão estampadas
personagens nas mais diversas poses (normalmente eróticas ou ―sugestivas‖), sendo a
forma mais simbólica de representar uma waifu – já que torna-se não só possível mas
praticamente obrigatório o ato de ―dormir‖ com a waifu.
E é a partir desses objetos, e das ocasiões em que eles seriam ritualmente utilizados – os
chamados ―yome to no bansan‖ (―jantar com a waifu‖) 11 – que começamos nossa
análise, partindo da pergunta: como, afinal, se dá a percepção de que a figura ali
presente seja outra pessoa? Vejamos o que alguns autores poderiam adicionar à
discussão.
David Freedberg, em seu The Power of Images (1989), nos diz que nós, seres humanos,
inicialmente reagimos às imagens como se fossem seres humanos de fato – embora
10
Figuras em tamanho real – ou quase – feitas de papelão.
Uma ―refeição romântica‖ que ocorre em ocasiões especiais (como aniversários, dia dos namorados ou
Natal), na qual o otaku ―janta‖ junto de uma efígie de sua waifu – e, como tal, compartilha com ela a
comida e a bebida que consome na refeição.
11
4
depois racionalizemos que elas não o são. O problema é que essa explicação não é
suficiente para explicar o relacionamento ―pós-resposta‖ que se dá com a imagem: não
temos essa suposta racionalização no caso das waifus – elas são tratadas o tempo todo
como se fossem pessoas.
Alfred Gell, em Art and Agency (1998), nos diz que nossa relação com art-works se dá
também pela abdução de agência do objeto – ou seja, nós tratamos obras de arte como
se fossem dotadas e/ou mediadoras de agência (ou, melhor dizendo, os objetos que
tratamos como se fossem dotados de agência são considerados por Gell como o foco de
sua antropologia da arte). Essa noção nos é mais interessante, pois ela pode nos ajudar a
explicar o fenômeno em questão. O otaku de fato trata sua waifu como se ela fosse um
ser dotado de agência – ela pode ter opiniões, humores, interesses, preferências, etc.
Porém, sua teoria também nos traz mais questões: se a imagem da waifu é um índice de
uma agência que está sendo abduzida – ou seja, o otaku, ao visualizar a imagem de sua
waifu, está inconscientemente fazendo uma inferência causal de que essa agência
percebida por ele está, na verdade, somente sendo mediada pela imagem – então temos
que ter uma ―fonte última‖ de agência. Para utilizarmos as fórmulas que ele tanto preza,
teríamos:
[[?-A] -> [Index-A (Imagem)]]  [Recipient-P (Otaku)]
A questão que se põe, portanto, é ―de quem essa agência está sendo abduzida?‖. Uma
resposta fácil seria ―a agência abduzida é a agência do artista‖ – a personagem criada
seria, ultimamente, uma extensão da agência de seu criador. Essa resposta está, é claro,
errada. O otaku não percebe o artista como sendo uma figura relevante na relação entre
ele e sua waifu – o criador seria, no máximo, uma ―figura paterna‖ de sua criação, mas
sem qualquer controle ou influência direta na relação entre o casal. De fato, existe a
noção (comum inclusive no meio literário) de que a personagem, depois de criada, cria
uma ―vida própria‖ – e seu criador não tem mais controle algum sobre ela.
Outra resposta, essa menos problemática, seria a de que a imagem seria o índice da
agência do protótipo que, por sua vez, seria a ―noção abstrata‖ da personagem.
Convertendo em outra fórmula, teríamos:
[[Prototype-A (Personagem)] -> [Index-A (Imagem)]]  [Recipient-P (Otaku)]
5
Essa fórmula nos permite traçar um paralelo curioso. Comparemo-la agora à seguinte
fórmula, proposta por Gell (1998, p. 67, com modificações nossas):
[Prototype-A (Deity)]  [[Index-P (Shaman)] -> [Recipient-P (Congregation)]]
Essa fórmula, ele nos diz, é referente à situação de possessão. O xamã é visto pela
congregação de fiéis como sendo recipiente da agência divina, que está determinando as
ações do xamã – que, por sua vez, está influenciando o público observador que é a
congregação. Esse fenômeno de possessão, por sua vez, é análogo à sua noção de
idolatria. Em sua análise da estátua de Shiva (pp. 124-6), Gell se debruça sobre o
problema filosófico-teológico da diferença entre um ídolo religioso e uma simples
estátua de pedra. Seu argumento é que o ídolo está, de fato, possuído pela sua respectiva
divindade, ao ponto que a estátua não. E, principalmente, a mobilidade do ídolo não está
diretamente relacionada à sua agência. Afinal, ―‗agency‘ implies the possession of a
mind which ‗intends‘ action prior to performing them. ‗Not moving‘ is an ‗action‘ in
this sense.‖ (p. 125). Podemos entender, portanto, que a imagem da waifu é tal qual um
ídolo religioso: somente um meio através do qual se facilita o acesso ao verdadeiro
protótipo.
Isso nos é interessante porque há uma incrível ressonância com a explicação nativa:
I must stress that you CAN love a concept. A concept is where love COMES
from. You aren‘t ever in love with a PERSON, you‘re infatuated with your
CONCEPT of them. Without the actual merging of consciousness, it is
physically impossible to truly know and love a person. A waifu is nothing more
than that concept rendered intangible. (―Waifu F.A.Q.‖)12
Porém, ao mesmo tempo em que essa explicação nos parece mais correta, ela continua
tendo um sério problema: seu poder explicativo torna-se quase nulo. Dizer que ―a
imagem é percebida pelo otaku como sendo somente um meio de representar a
personagem‖ é constatar o óbvio, e não responde à questão de ―se há, afinal, abdução de
agência, de onde o otaku abduz a agência da personagem (/protótipo/conceito)?‖.
No final das contas, nossa questão não é a mesma de Gell: a questão dele era ―como é
possível que as imagens sejam tratadas como pessoas?‖, e a nossa, como acabamos de
ver, é ―como é possível que uma personagem (‗fictícia‘) seja tratada como pessoa?‖.
Nosso problema não é com o índice, e sim com o protótipo.
12
Podemos ver aqui também que a questão da waifu não pode ser resumida a uma simples tensão entre
representação e presença. Em teoria, como a infatuation se dá com um conceito, e não com a ―pessoa (ou
objeto) real‖, a existência desse último não é estritamente necessária – embora, como vimos acima, seja
desejável.
6
Humanos e não-humanos
Edmund Leach, em sua notória análise da investidura do título de Cavaleiro na corte
britânica (Leach, 2000), traz duas noções que julgamos relevantes para nossa discussão.
Primeiramente, ele nos diz que, para a análise antropológica, não deve haver diferença
entre as ―cerimônias‖ civis e os ―rituais‖ religiosos – já que ambos tratam-se,
efetivamente, de performances desempenhadas pelos indivíduos. A partir dessa noção,
portanto, ele cria sua teoria de que, em performances cerimoniais civis, existe um
―conceito metafísico‖ que desempenha o mesmo papel que a divindade desempenha em
performances rituais religiosas (esse conceito pode ser a ―Soberania‖ ou o ―Estado‖, por
exemplo).
O importante aqui, no caso, é essa equivalência analítica entre ―divindades‖ e
―conceitos metafísicos‖. Já deixamos claro, na seção anterior, que consideramos a
personagem, enquanto protótipo da imagem, como sendo um ―conceito‖ – e também
deixamos a entender que igualamos, como o faz Leach, esse conceito à categoria
―divindade‖ (ao menos nos casos do xamã e do ídolo). Isso não quer dizer que
consideremos que os otakus ―idolatrem‖, no sentido estrito, suas waifus – como também
não poderíamos considerar que os súditos da rainha ―veneram‖ a ―Soberania Britânica‖.
Se considerarmos, portanto, que não há uma abdução da agência no que concerne a
personagem – já que ela é, repetimos, um ―conceito metafísico‖ – devemos entender
que a sua agência não é derivada de algo. Ou seja: tal como uma divindade, a waifu é
dotada de agência própria. O que ocorre, portanto, na relação otaku-waifu, não é uma
abdução – e sim o que poderia ser chamado de ―atribuição de agência‖. Tal expressão,
porém, só faz sentido se entendermos ―agência‖ no sentido gelliano – agência sendo a
intenção de ação provinda de uma mente. Contudo, ainda que nos ajude a entender
melhor o fenômeno, essa conclusão ainda é insatisfatória: como é possível que um
―conceito metafísico‖ possua uma mente?
Para responder essa questão, portanto, torna-se indispensável problematizar o conceito
de agência – ou, na verdade, os conceitos de ―agente‖ e ―ator‖. E é justamente o que faz
Bruno Latour em seu Reassembling the Social (2005). Ao discutir a multiplicidade de
agências em qualquer situação social, Latour chega a duas conclusões que podem ajudar
a resolver nosso busílis.
7
A primeira delas é a que, na verdade, nunca existe uma única agência em questão. De
fato, como o próprio termo ―ator‖ indica 13 , há sempre uma quantidade de agências
influenciando a ação deste. De fato, diz ele, ―[action] is not a coherent, controlled, wellrounded, and clean-edged affair.‖ Muito pelo contrário, ―action is borrowed, distributed,
suggested, influenced, dominated, betrayed, translated‖ (Latour, 2005, p. 46).
Além disso, nos diz Latour, não há motivo nenhum para restringir a possibilidade de
ação somente a humanos (pelo contrário, há vários motivos para não fazer tal restrição).
Para ele, a própria noção de ―intencionalidade‖ da ação seria o problema – já que ela
restringe a possibilidade de ação de não-humanos, sem trazer qualquer vantagem
explicativa. Ele propõe, portanto, que ―any thing that does modify a state of affairs by
making a difference is an actor‖. O papel do pesquisador, portanto, é o de analisar se
algo ―faz uma diferença‖ ou não no curso de ação de algum outro ator. Caso positivo,
esse ―algo‖ deve ser considerado um ator, independentemente de ser ou não um ser
humano. A questão que isso nos põe, portanto, é a seguinte: ―a waifu, então, interfere de
alguma forma na ação do otaku?‖. E, como nos recomenda Latour, voltamos a ―seguir
os atores‖:
Live life the way you think would make your waifu happy. You‘ll know
you‘ve found the right waifu if you unconsciously begin judging your actions
according to both your and her moral standards. (―Waifu F.A.Q.‖)
Visto que a waifu influencia – ainda que indiretamente – o comportamento do otaku,
não nos resta dúvida que ela pode ser entendida como sendo, para todos os propósitos,
um ator. Isso nos traz, por fim, a uma última questão: ―como é socialmente (e
individualmente) aceitável que um otaku tenha seu comportamento influenciado por um
personagem?‖
Os solipsistas estão chegando
Essa pergunta acima, contudo, merece ser respondida em partes. A primeira – ―como é
socialmente aceitável que um otaku tenha seu comportamento influenciado por um
personagem?‖ – é fácil de responder: não o é. Esse relacionamento é claramente
repreendido pela sociedade abrangente, e mesmo a maioria dos otakus o considera
anômico
13
ou,
no
mínimo,
―estranho‖.
―To use the word ‗actor‘ means that it‘s never clear who and what is acting when we act since an actor
on stage is never alone in acting.‖ (LATOUR, 2005, loc. cit.)
8
Existe, porém, uma ―sociedade significativa‖ (Goffman, 2001, p. 112)14 de pessoas –
otakus ou não – que partilham de relacionamentos parecidos ou, pelo menos, não
―julgam‖ quem tem esse tipo de relacionamentos. Só que essa ―sociedade‖ (por falta de
melhor nome) tem como principal locus de interação a Internet – o que, de certa forma,
faz com que a comunicação entre seus membros acabe sendo mediada (tanto
fisicamente – por computadores, smartphones, tablets – quanto virtualmente – pelos
sites, fóruns e redes que aceitem esse tipo de discussão). Esta comunicação mediada,
embora não necessariamente menos legítima, só traz mais uma camada ao que
chamaremos de ―espectro solipsista‖. E é dele que trataremos agora.
Eduardo Viveiros de Castro, ao discorrer sobre o perspectivismo, afirma que, em
contraponto a ele, ―[n]ossa cosmologia supõe a distintividade singular dos espíritos, mas
nem por isso declara impossível a comunicação (embora o solipsismo seja um problema
constante)‖, e que ―este deriva da incerteza de que a semelhança natural dos corpos
garanta a comunidade real dos espíritos‖ (Viveiros de Castro, 1996, p. 132).
Entre os otakus, contudo, esse ―espectro‖ é muito mais vívido do que entre ―nossa
cosmologia‖. Não só existe o risco da comunicação ser efetivamente impossível, como
existe até mesmo o risco de que não existam outras pessoas com quem se comunicar – e
que todo o universo percebido pelos nossos sentidos seja uma mera ilusão sensorial, à la
Descartes (embora essa possibilidade não seja muito discutida)15. De qualquer forma, a
possibilidade da impossibilidade da comunicação, tanto ao nível mais superficial quanto
ao nível mais profundo, pode ser vista nestes dois excertos:
Shamisen the Cat:
–Indeed, from your perspective, it may appear that I am emitting sounds which
resemble human speech.
–If that is the case, how can you be sure that the sounds I emit are meant to
express the meaning of the words you hear?
Kyon:
–It's, you know...
–Because you're answering my questions.
Shamisen the Cat:
–Is it not possible that the sounds I am emitting simply conform by
coincidence to the conditions of an answer to your question?
14
Aqui utilizo esse termo no sentido de uma comunidade de pessoas que não necessariamente se
conhecem pessoalmente (uma Gesellschaft, portanto [TÖNNIES, 1961]), mas que compartilham de um
mesmo universo de significados.
15
Esse conceito é uma constante em várias tradições filosóficas e artísticas japonesas, especialmente as
diretamente influenciadas pelo zen budismo.
9
Kyon:
–Wouldn't your reasoning mean that fellow human beings could be talking
without holding an actual conversation?
Shamisen the Cat:
–You are absolutely correct.
–Two people could engage in actions that would make it appear as though a
conversation was occurring, and nobody would have any way of knowing
whether or not accurate communication occurred. (―The Melancholy of Haruhi
Suzumiya‖, episódio 24)
Without the actual merging of consciousness, it is physically impossible to
truly know and love a person. (―Waifu F.A.Q.‖)
Embora ambos os excertos sejam, de certa forma, exageros (visto que o primeiro é um
trecho de uma animação famosa por sua verve absurdista e o segundo seja de um
documento online que justifica filosoficamente a existência das waifus), ainda assim
eles nos servem para mostrar que o ―universo‖ no qual os otakus circulam é um
―universo‖ em que a comunicação com outros seres humanos não está dada a priori.
Nesse momento, contudo, eu gostaria de trazer à discussão, mais que ―universos‖,
―frames‖. Goffman nos diz que ―definitions of a situation are built up in accordance
with principles of organization which govern events – at least social ones – and our
subjective involvement in them; frame is the word I use to refer to such‖ (Goffman,
1986, pp. 10-11). Sua frame analysis é, portanto, uma análise da organização da
experiência. Isso quer dizer que, para Goffman, a forma como os eventos são
compreendidos
depende
dos
esquemas
mentais
de
quem
o
observa.
Uma das consequências disso é que, a todo e qualquer momento, existe uma infinitude
de ―mundos‖/frames sendo vivenciados por diferentes pessoas – e, mais importante,
nenhum desses ―mundos‖ tem prioridade de existência sobre os outros (idem, pp. 5-6).
Incidentalmente, a noção de ―frame‖ também nos ajuda a responder a segunda parte da
nossa questão – ―como é individualmente aceitável que um otaku tenha seu
comportamento influenciado por um personagem?‖. Se frames são as maneiras como as
experiências são organizadas, as situações são definidas e o(s) mundo(s) é(são)
interpretado(s), eles são ao mesmo tempo individuais e sociais – embora cada pessoa
interprete o mundo à sua maneira, as regras de interpretação (ou, como diria Goffman,
―as regras do jogo‖) podem (e normalmente são) compartilhadas. Seria correto, portanto,
10
afirmar que os otakus participam de um frame em que a comunicação – e tudo que dela
decorre – não é prerrogativa dos humanos, e pode ser que eles nem dela participem.
Pós-modernidade “animalesca”
O filósofo Hiroki Azuma, em seu trabalho seminal sobre otakus (Azuma, 2009), traz à
tona um ponto importante: a tendência dos otakus de ―perderem-se em suas fantasias‖,
dando prioridade à ficção em detrimento da ―realidade‖ – algo que, inspirando-se nos
escritos do filósofo franco-russo Alexandre Kojève, ele chama de ―animalização da
humanidade‖. Essa ―animalização‖, diz Azuma, consiste em ser guiado por
necessidades (que seriam as relações possíveis de serem satisfeitas, tendo como
paradigma a relação fome-comida), em contraponto aos desejos (que seriam as relações
que não seriam possíveis de serem satisfeitas, como o amor ou a busca por
conhecimento). Há também uma segunda distinção, consideravelmente antropocêntrica,
de que as necessidades seriam satisfeitas por objetos (comida ou abrigo, por exemplo) e
os desejos, por outros humanos (a pessoa amada ou um interlocutor inteligente).
(Azuma,
2009,
p.86).
Essa ―animalização‖, portanto, seria um fenômeno típico da pós-modernidade e daquilo
que ele denomina ―o fim da grande narrativa‖ que permeou a modernidade (idem, p. 27).
Diz Azuma que os otakus são o exemplo máximo dessa tendência pós-moderna de
―animalização‖, em que a satisfação de necessidades suplanta a satisfação de desejos e
que, na verdade, a satisfação de necessidades chega a ser independente do contato com
outros humanos:
In our era, most physiological needs can be satisfied immediately in an
animalistic manner. (…)
Since sociality with the other is no longer necessary, this new sociality has no
foundation in reality and is based solely on individual volition. (idem, p. 93)
Como a socialidade – algo que, em seu pensamento, é necessário para que existam
desejos – deixa de ser compulsória e passa a ser voluntária, a empatia também deixa de
existir. Tudo isso, é claro, é sintoma da falta de contato com outros humanos:
[Otaku] communication consists in large part of exchanges of information. In
other words, their sociality is sustained not by actual necessity, as are kinship
and local community, but by interest in particular kinds of information.
Therefore, while they are quite capable of exercising their sociality as long as
they can gain useful information for themselves, they always reserve the
freedom
to
depart
from
the
communication.
(…)
[N]o matter how much otaku engage in human communication such as
11
competition, envy, and slander, these are essentially mimicry, and it is always
possible to ―drop out‖ of them. (ibidem)
Todo esse panorama pessimista16 leva Azuma a elaborar aquela que será sua frase mais
importante para nossa compreensão das waifus: ―As I have argued repeatedly, the otaku
feel stronger ‗reality‘ in fiction than in reality‖ (ibidem).
Se considerarmos que a ―realidade sem aspas‖ a que ele se refere seja o frame que
Goffman chama, citando William James e Alfred Schutz, de ―working world‖ ou ―world
of everyday life‖ (Goffman, 1986, pp. 2-6), os otakus, com Goffman, não estão
convencidos ―whether everyday, wide-awake life can actually be seen as but one ruleproduced plane of being, if so seen at all‖ (idem, p. 5).
E se não há motivos para que os otakus priorizem a ―realidade‖ em detrimento da
―ficção‖, seria de se esperar que alguns não o façam – daí o surgimento do fenômeno
das waifus. Não é (necessariamente) que os otakus busquem na ficção aquilo que eles
não conseguem na realidade – e sim que não há motivos para buscar na realidade aquilo
que eles conseguem na ficção.
Um caso agudo de pós-modernidade
Por mais que possamos discordar de Azuma, em um ponto ele aparenta estar correto: o
fato de que essa tendência de borrar a barreira entre ―ficção‖ e ―realidade‖ é uma
característica pós-moderna. Quem nos diz isso, do outro lado do mundo, é Sherry
Turkle.
Em seu primoroso Alone Together (2011), a autora nos traz a seguinte anedota – tão
fantástica que torna-se difícil reproduzi-la em algo menos que sua totalidade:
In late November 2005, I took my daughter Rebecca, then fourteen, to the
Darwin exhibition at the American Museum of Natural History in New York.
(…)
At the exhibit‘s entrance were two giant tortoises from the Galápagos Islands,
the best-known inhabitants of the archipelago where Darwin did his most
famous investigations. The museum had been advertising these tortoises as
wonders, curiosities, and marvels. Here, among the plastic models at the
museum, was the life that Darwin saw more than a century and a half ago. One
tortoise was hidden from view; the other rested in its cage, utterly still.
Rebecca inspected the visible tortoise thoughtfully for a while and then said
matter-of-factly, ―They could have used a robot.‖ I was taken aback and asked
what she meant. She said she thought it was a shame to bring the turtle all this
way from its island home in the Pacific, when it was just going to sit there in
16
Que é muito influenciado pelo zeitgeist do Japão dos anos 1990, e do qual eu discordo em parte.
12
the museum, motionless, doing nothing. Rebecca was both concerned for the
imprisoned
turtle
and
unmoved
by
its
authenticity.
It was Thanksgiving weekend. The line was long, the crowd frozen in place. I
began to talk with some of the other parents and children. My question— ―Do
you care that the turtle is alive?‖—was a welcome diversion from the boredom
of the wait. A ten-year-old girl told me that she would prefer a robot turtle
because aliveness comes with aesthetic inconvenience: ―Its water looks dirty.
Gross.‖ More usually, votes for the robots echoed my daughter‘s sentiment that
in this setting, aliveness didn‘t seem worth the trouble. A twelve-year-old girl
was adamant: ―For what the turtles do, you didn‘t have to have the live ones.‖
Her father looked at her, mystified: ―But the point is that they are real. That‘s
the whole point.‖ (Turkle, 2011, pp. 3-4)
―That‘s the whole point‖, de fato. Não somente em relação à ―aliveness‖ das tartarugas
de Galápagos, mas à ―aliveness‖ como um todo – especialmente, no caso que nos
interessa, às relações com outras pessoas.
Ao analisar essa anedota, Turkle nos diz o
seguinte:
I believe that in our culture of simulation, the notion of authenticity is for us
what sex was for the Victorians—threat and obsession, taboo and fascination. I
have lived with this idea for many years; yet, at the museum, I found the
children‘s position strangely unsettling. For them, in this context, aliveness
seemed to have no intrinsic value. (idem, p. 4)
Essa noção – de que a ―aliveness‖ não tem um valor intrínseco – é, como ela bem diz,
inquietante. Ela vai contra tudo que nós, enquanto sociedade (ou ―cultura‖, ou
―cosmologia‖), fomos acostumados a pensar durante as últimas centenas de anos. E é
por isso que a ideia de que existam pessoas que tenham relacionamentos ―reais‖ com
personagens ―fictícias‖ é incômoda.
Um mundo as if
Para finalizar, é importante deixar claro, o aspecto duplamente ambivalente da waifu –
além de sua posição incômoda entre realidade e ficção, sua própria existência enquanto
fenômeno é contestada no dia-a-dia dos otakus. Explico: como já foi dito anteriormente,
eu não conheço nenhum caso concreto de alguém que admitisse ter uma waifu. Porém,
conheço inúmeros casos de otakus que, em um momento ou outro, disseram ter uma
waifu17 – mas essas enunciações sempre estiveram em situações (frames) de jocosidade,
de ambiguidade, de brincadeira. ―Ninguém leva a sério‖, poderia ser dito. Mas a
questão é que essa é uma brincadeira que é, na verdade, levada a sério.
17
Eu mesmo, em conversas com meus interlocutores - durante o campo ou não – já me referi a várias
personas como minhas waifus.
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Tomemos o exemplo da página do Facebook ―Estudando para concurso público com a
waifu‖, que, no momento da escrita, tinha 9.380 ―curtidas‖. Embora atualmente seja
uma página de humor politizado, ela surgiu com uma simples ideia:
De acordo com Roberto Berruezo Maia, co-criador da página, tudo começou
com uma piada interna entre ele e sua namorada, Hannah McComb, em uma
época em que ele estava estudando para um concurso público e se lembrou do
costume japonês de utilizar personagens de anime (normalmente do sexo
feminino) como inspiração.
―A gente fez umas imagens e nossos colegas começaram a compartilhar.
Quando percebemos, tinha gente pedindo que a personagem favorita
aparecesse junto com um concurso específico e resolvemos continuar a
brincadeira com a galera‖, explicou Roberto. (―Like a Nerd‖)
Ou seja: a ideia era compartilhar, com outros otakus, imagens de personagens
incentivando a pessoa em questão a estudar para o concurso público desejado (que
posteriormente abrangeu também outras formas de seleção, como vestibulares).
A página, portanto, tem como raison d'etre uma brincadeira (uma paródia, até) sobre
um fenômeno cuja existência nunca é questionada – não no sentido de ―inquestionável‖,
mas no sentido de ―não é afirmada nem repelida‖. Se estudar com sua waifu é ―um
costume japonês‖, presume-se que ele exista, mas será ele praticado desse lado do
mundo? A dúvida paira no ar.
Essa página, junto de todas as outras incontáveis ocasiões em que um otaku afirmou ter
uma waifu, são indícios de que esse frame ―de brincadeira‖ é mais sério do que aparenta.
Existe sempre a possibilidade de que as pessoas que submetem conteúdo para a página,
ou que afirmam jocosamente ser apaixonadas por determinada personagem estejam
utilizando a ―fantasia‖ da brincadeira para afirmar suas verdades.
É por isso que eu afirmo que, no imaginário otaku, a waifu ocupa uma posição as if (em
contraposição ao as is [Seligman et alli, 2008]): para (quase) todos os efeitos, os otakus
comportam-se como se waifus existissem. Eles não sentem ser necessário afirmar
enfaticamente a não-existência dessas, nem o oposto. É como se dissessem,
constantemente ―não que elas existam, veja bem. Mas vai que...‖
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REFERÊNCIAS
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Minnesota Press, 2009.
FREEDBERG, David. The Power of Images: studies in the history and theory of
response. Chicago: University of Chicago Press, 1989.
GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Clarendon Press,
1998.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001.
__________. Frames Analysis: An Essay on the Organization of Experience. Boston:
Northeastern University Press, 1986.
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: An introduction to Actor-Network Theory.
Oxford: Oxford University Press, 2005.
LEACH, Edmund. Once a Knight is Quite Enough: como nasce um cavaleiro britânico.
In: Mana. Vol. 6, n. 1, 2000.
SELIGMAN, Adam B.; et alli. Ritual, Play and Boundaries. In: __________. Ritual
and its consequences: an essay on the limits of sincerity. Oxford: Oxford University
Press, 2008.
TÖNNIES, Ferdinand. Gemeinschaft and Gesellschaft. In: Parsons, Talcott; et alli.
Theories of Society: Foundations of Modern Sociological Theory. New York: The Free
Press of Glencoe, 1961.
TURKLE, Sherry. Alone Together: why we expect more from technology and less
from each other. New York: Basic Books, 2011.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio. In: Mana. Vol. 2, n. 2, 1996.
Referências online:
The
Escapist:
―Korean
Otaku
Marries
Anime
Body
Pillow‖
http://www.escapistmagazine.com/news/view/98910-Korean-Otaku-Marries-AnimeBody-Pillow
-
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The
Telegraph:
―Japanese
gamer
'marries'
Nintendo
DS
character‖
-
http://www.telegraph.co.uk/technology/video-games/6651021/Japanese-gamer-marriesNintendo-DS-character.html
Facebook: ―Estudando para concurso público com a waifu‖ https://www.facebook.com/pages/Estudando-Para-Concurso-Público-com-aWaifu/255374504631349
Like a Nerd: ―Estudando Para Concurso Público com a Waifu, a página que mistura
política com anime!‖ - http://likeanerd.pop.com.br/estudando-para-concurso-publicocom-waifu-pagina-que-mistura-politica-com-anime/
Imgur: ―Waifu F.A.Q.‖ - http://i.imgur.com/Z3xoRJC.png
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ANEXO I – “Waifu F.A.Q.‖