Diego Emanoel – Aniel B3 - Radiated sobre livros e games

Transcrição

Diego Emanoel – Aniel B3 - Radiated sobre livros e games
Aniel I O​
s ponteiros de um velho relógio marcam três horas da tarde, ela ainda estava sentada na cama olhando para a tevê desligada, seus pensamentos vagam por lembranças antigas, entretanto um ruído a faz voltar à realidade, a mulher olha em volta, o quarto está mal iluminado, somente a luz do sol entra pelas finas frestas da janela logo à frente. Cansada sua visão se volta para o chão, fica um tempo olhando sues pés descalços e suas unhas bem feitas. Novamente o ruído, mas dessa vez, quando volta a tentar achar a fonte do som observa algo que não estava ali antes. Em um dos cantos do pequeno quarto há uma linda mulher parada a olhando fixamente. Lentamente a outra começa a caminhar em direção a cama, seus cabelos longos e ruivos balançam suavemente ao ritmo de seu quadril. A bela ruiva se coloca em frente à tevê desligada, as duas se olham nos olhos, nunca haviam se visto antes, mas sabiam exatamente o que ia acontecer. “Lucia” fala a mulher da cama para a outra enquanto passa a mão suavemente no lençol para a ruiva se sentar. Lucia se coloca ao lado da mulher em sua cama, as duas se olham mais uma vez até que a outra volta a falar. ­
Você sabe quem sou, não sabe? ­
Sei sim... – Uma lágrima solitária escorre pelo rosto, com muita delicadeza a outra mulher a limpa com sua mão. ­
Ótimo, então podemos começar? – Sorri. ­
Sim, podemos... – As palavras mal saem de sua boca. Lucia sabe o que vai acontecer, soube desde que a viu ali sentada em sua cama, sua hora havia chego. ­
Lucia. Abra a gaveta do criado­mudo e pegue o que há dentro. – Obedecendo, a ruiva pega com sua mão tremula um revolver. Quando fecha a gaveta percebe que seu despertador está quebrado, porém não dá importância, ele não será mais útil. Lucia senta novamente ao lado da mulher na cama e a olha nos olhos, estranhamente não se sente triste ou algo do gênero e sim eufórica como se esse breve momento fosse o ponto máximo de sua vida. ­
Pronto querida, agora o coloque em sua boca. O gosto do metal é ruim, mas logo passa... – E novamente obedece. – Pode apertar o gatilho. – A arma dispara, sangue e pólvora sujam os lençóis, o revólver cai sobre as pernas ainda quentes de Lucia. Vagarosamente o corpo pende para o lado até finalmente ir totalmente morto ao chão. A mulher se levanta como se nada de especial houvesse ocorrido, com calma olha o corpo sem vida sobre o carpete, pobre Lucia tão nova e tão cheia de sonhos, o que as drogas não 1 fazem... Olha o relógio na cabeceira da cama, três e dez, já está na hora de voltar. Vai ao banheiro, seus cabelos estão embaraçados, não pode sair assim, mas também não podia se demorar; com certeza o tiro havia sido ouvido ao redor. Seus cabelos loiros são devidamente penteados e amarrados com um elástico que sempre deixa em seu pulso esquerdo, coloca seu tênis, sai. A porta é aberta revelando um dia ensolarado, a luz quente bate com força na pele branca da mulher, porém ela não se incomoda, o calor do sol a faz sentir­se um pouco mais viva. Seu passo é ritmado e alegre, quase como “pulinhos” de crianças. Seu carro está perto, não precisava dirigir, mas adorava isso, as chaves são retiradas do bolso, no entanto quando ia abrir à porta do veículo ela sente uma forte cólica, chegando inclusive a tirar seu equilíbrio a fazendo ir ao chão. Uma crise de tosse a ataca, um pouco de sangue é cuspido no asfalto, como se algo rasgasse sua garganta. Ainda debilitada tenta se levantar; o carro ao seu lado ajuda a se manter de pé. Não entende o porquê, isso não deveria acontecer, não com ela. Uma viatura da policia passa pela rua e para em frente ao pequeno condomínio em que havia estado há apenas alguns minutos. A chave é colocada em seu devido lugar, gira a ignição, o ronco de seu V8 a faz se sentir um pouco melhor, engata a primeira e logo aquela simpática vizinhança some de vista. 2 II O centro da cidade está movimentado de mais para uma terça à tarde. Estaciona em frente a um grande hotel, sai do carro, a chave é entregue ao manobrista, entra, segue em direção à recepção. ­
Boa tarde Senhorita Aniel. – Fala a recepcionista com grande entusiasmo. ­
Boa tarde Roberta, alguma mensagem pra mim hoje? ­
Sim, há uma. O senhor Luís pediu para a Senhorita entrar em contato com ele assim que possível. ­
Hmm... Obrigado Roberta, você poderia me dar à chave do meu quarto? ­
Claro Senhorita. Diferente do aposento em que havia estado a menos de uma hora, seu quarto está muito bem iluminado. A luz alaranjada da tarde entra sem pedir licença pelas grandes janelas. Sem se importar com a organização começa a se despir, cada peça de roupa é jogada em ponto diferente do cômodo, quando finalmente chega ao banheiro já esta nua com uma trilha a suas costas. O chuveiro é aberto e a água gelada cai em seu corpo quente, nada pode ser melhor nesse dia de calor que um banho frio. Alguns minutos depois quando já se sente bem relaxada o chuveiro é desligado, uma toalha limpa é pega e seu corpo esbelto começa a ser seco. Ainda é cedo, apenas dezessete e vinte, mas a loira já está de camisola deitada em sua cama, não planeja mais sair pelo resto do dia, suas cólicas retornavam fracas algumas vezes, então é melhor ficar e descansar. Dezoito horas... Toca o telefone, acorda. Havia relaxado tanto em frente à tevê que acabara adormecendo. Um pouco sonolenta atende. ­
Sim? – Segura um bocejo com sua mão livre. ­
Senhorita Aniel. – Fala levemente constrangida a recepcionista do hotel. – Desculpe acordá­la, mas o senhor Luís está na linha, posso passá­lo para a senhorita? ­
Ah, claro, pode passar. ­
Só um momento. – Após poucos instantes a voz de um homem sai do outro lado da linha. ­
Alô Ani? ­
Sim querido, o que foi? Você estava me procurando, não estava? – Volta a fechar os olhos. ­
Estava, quero que você se arrume. Sei que é difícil, mas quero que você fique ainda mais linda hoje. – Sua voz parece um tanto eufórica, como se ocultasse uma felicidade de algo há muito tempo esperado. ­
Ãhm? ­
Daqui a pouco alguns vestidos que eu comprei para você devem chegar aí, quero que você escolha um e use. ­
O que você ta planejando heim? – Somente agora que se sente totalmente desperta e o odeia por isso, sua cama ainda lança garras de desejo sobre sua preguiça. ­
Isso é surpresa, eu te pego aí as nove, certo? ­
Claro querido. ­
Beijos. 3 Beijos tchau. – Desliga o telefone. Fica por alguns instantes olhando para o aparelho desligado, seus planos de uma longa noite de sono iam ter que esperar. Sai da cama e começa a se preparar para mais um banho, assim que coloca seus pés dentro do banheiro alguém bate na porta. “Sim?” fala enquanto põe um roupão e segue para atender. ­
Boa tarde. – Diz a pessoa do outro lado da porta. – Eu sou representante da Dior e vim a pedido do senhor Luís Álvares para ajudá­la a escolher seu traje para a noite de hoje. – Aniel fica um pouco espantada com aquilo, em três anos de namoro isso nunca havia acontecido. Abre a porta, mas não vê somente uma pessoa do outro lado e sim cinco, mais a frente à mulher que havia falado e as pessoas atrás parecem ajudantes, todos eles carregam caixas da grife Dior. Um a um entram no quarto, as caixas são postas em cima da mesa central do aposento e começam cuidadosamente a retirar as peças delas. ­
Bem senhorita Aniel, Eu me chamo Joana, nós viemos aqui a pedido do senhor Luís para prepará­la para essa noite especial. ­
Prazer em conhecê­la Joana, mas tanta gente? Ele havia me dito que tinha comprado apenas alguns vestidos, mas só isso... – Fala um tanto confusa enquanto olha as pessoas se arrumarem para atendê­la. ­
Homens, eles gostam de simplificar tudo, mas um vestido não é a única coisa que você precisa para ficar ainda mais perfeita, não é verdade? ­
É... ­
Bem, primeiro nós vamos escolher o vestido e os acessórios, depois nós temos a maquiagem, que vai ser feita por uma ótima profissional, a Marry Christian e depois o cabelo, que vai ser feito por um grande amigo meu, ele faz coisas incríveis e por ultimo as jóias, tudo bem para a senhorita nessa ordem? ­
Ãhm, claro. – Responde sem graça. ­
Bem, posso chamar as modelos? – Continua Joana sem se importar com o estado de surpresa de sua cliente. ­
Modelos, como assim? – Agora se encontra mais perdida do que nunca. ­
As meninas com os vestidos, para você escolher. Acredite, é muito melhor escolher as peças vendo como elas caem no corpo e o movimento ao andar, afinal, você não vai ficar parada numa vitrine. – Sorri. ­
Ah, claro. Você tem razão, pode chamar. – As duas se sentam na sala esperando a entrada das modelos. A cada garota que surge as peças vão ficando mais e mais glamurosas, por fim Aniel escolhe um vestido de seda preta, o ​
top​
decorado com bordados prateados, simples, elegante e de ótimo caimento. ­
Ótima escolha. – Joana em tom de aprovação. ­
Todos são tão lindos, assim fica difícil... ­
É verdade, todos eles são maravilhosos, mas você fez uma excelente escolha. Posso sugerir os acessórios para o vestido? ­
Ah, claro. Eu mesma não ia saber escolher direito. – Aniel ainda está confusa no meio de tudo aquilo. ­
O que você acha dessa pequena bolsa de couro branco? Veja a costura e os detalhes em prata, acho que combinam perfeitamente com você e o vestido. – Sorri. ­
Acho que vai ficar ótima mesmo com o vestido. – Poucas vezes havia se produzido tanto, sair para se divertir não fazia parte de seu cotidiano, suas obrigações tomavam grande parte de seu tempo. Luís sempre reclamava que eles ­
4 mal se viam, mas o que poderia fazer? Mesmo que realmente houvesse uma solução ela não mudaria nada. ­
As duas peças têm uma harmonia incrível, o tom da sua pele vai dar um toque especial. Seus olhos são incríveis, acho que nada a deixaria menos que perfeita. Os preparativos para noite continuam: o cabelo que era liso ganha lindos cachos que caem pelos cantos do rosto acentuando ainda mais suas feições, uma maquiagem no tom azul suave realça seus olhos de safiras, no pescoço apenas uma gargantilha e brincos no formato de rosas cobertas por pequenos diamantes, e como prometido no inicio da noite Aniel está mais linda do que jamais esteve. Nove badaladas. Já está na hora de descer, quando se dirige para a porta seu celular toca, era Luís. Por um estranho motivo não atende, abre a porta e sai do quarto em direção ao hall de entrada, seu telefone fica se movendo em cima da mesa com suas vibrações até cair no chão acarpetado. Sai do elevador, o lugar está movimentado, pessoas saem e entram a cada segundo, enfim, elas não importam. Assim que seu primeiro passo ecoa pelo hall todos a olham, não tinham como não notar algo tão radiante. Aniel fica parada um instante procurando Luís, logo o encontra, ele um homem jovem, realmente bonito estava parado perto da saída com o seu celular junto ao rosto. ­
Oi querido, ligando pra quem? – Brinca ao se aproximar ainda com todos os olhares sobre si. ­
Pra você, quem mais. – A olha por inteiro. – Você está linda, mais do que linda, perfeita. ­
Assim você me deixa sem graça... – Fala encabulada mesmo sabendo ser a mais pura verdade. ­
Impossível isso, mas a gente já está um pouco atrasado. – Ficam de braços dados. – Vamos? ­
Sim vamos. – E juntos entram no carro de Luís, um Porsche Boxster prata.
5 III A noite no centro é sempre movimentada, algo que já se tornou habitual nas grandes a. ​
metrópoles. Por volta das vinte uma e vinte Aniel e Luís entram na 8​
Avenida, o carro começa desacelerar a medida que se aproxima do restaurante ​
Tavern on the Green​
. Enquanto os dois esperam o manobrista a loira nota que o lugar está fechado para uma festa privada. ­
Querido, acho que hoje a gente não vai poder comer aqui, parece que eles estão fechados, você não quer ir em outro lugar? – Pergunta um pouco preocupada. ­
Eu sei disso meu bem, eu fiz a reserva. – Fala com um sorriso no rosto. ­
Você fez isso? E quem são todas essas pessoas que estão chegando? – Questiona pasma ao sair do carro. ­
Eles? – Olha em volta. – Minha família, alguns amigos íntimos, e os outros… outros eu não sei, mas isso já é coisa da minha mãe. – Vendo o rosto espantado de sua namorada continua a falar. – Eu tentei localizar sua família minha linda, queria que eles estivessem aqui hoje, mas não achei ninguém... ­
Mas... – Ainda não havia se dado conta do que estava acontecendo quando a porta do carro é aberta, gentilmente pega pela mão e levada para dentro. ­
Nada de “mas”, eles estão ansiosos pra te conhecer. Eu tentei te apresentar várias e várias vezes, mas você sempre dava um jeito de fugir, usando esse seu trabalho como desculpa, hoje não tem jeito. – Fala com um sorriso carinhoso em seu rosto. Juntos entram no restaurante, que já está quase todo cheio. A decoração é simplesmente esplendida, orquídeas enfeitam grande parte do ambiente, tudo combinando em tons de roxo e branco, não tendo nada fora de harmonia. Em cada mesa que os dois passam Luís faz uma breve pausa para finalmente apresentar sua preciosa namorada. Após vários minutos o casal chega à mesa onde irão jantar; um lugar reservado para a família mais intima. Ali esperando por eles estavam Luís Álvares Pai, Valeria Álvares e sua filha mais nova Letícia. ­
Mãe, Pai, Letícia. – Fala Luis para os da mesa. – Quero finalmente apresentar a vocês minha preciosa Aniel. ­
Enfim nos conhecemos. – Diz Valeria, a loira só consegue responder com um sorriso tímido e sem graça. ­
Vamos sentando, não fiquem aí parados de pé. – Começa Luís Pai. Por um breve instante Aniel achou que no momento em que estivesse sentada a mesa a situação ia ser mais tranquila, porém não podia estar mais enganada, todos ali só olham para ela, por fim percebe que será o centro das atenções dessa noite. – Então Aniel... – Volta a falar quando os dois já estão devidamente acomodados. – O Luís aqui sempre falou muito bem de você, mas nunca contou muita coisa a seu respeito. ­
É. – Intromete­se Letícia. – Você é um verdadeiro mistério para nós. ­
Então, fale um pouco de você, onde você está morando, onde trabalha essas coisas. – Continua o pai. – Afinal eu quero saber bem com quem meu filho está namorando, três anos em um dia não é nada fácil. – Ri um pouco. ­
Bem eu... – Não sabe o que dizer, nada surge em sua mente. – …eu estou morando no Palace atualmente. ­
O hotel? – Pergunta Valeria um pouco surpresa. 6 É mãe, ela mora lá desde que nos conhecemos, acho que já tinha comentado isso com vocês. – Responde Luís em um tom leve de desaprovação. ­
É, acho que você já tinha dito algo, mas por que você mora em um hotel? – Pergunta Letícia curiosa. ­
Morando lá não preciso me preocupar muito, todo dia alguém atrás meu café, sempre quando volto está tudo arrumado, eu gosto assim... ­
É com certeza tem suas vantagens. – Diz o pai de Luís pensando no assunto e se recordando de suas ótimas férias que havia passado em Veneza no mês anterior. – Mas vivendo em um hotel você não tem como adquirir suas coisas, seus móveis, seu espaço, deixar tudo com a sua cara. ­
Não sinto falta dessas coisas. Gosto de não me preocupar com nada. – Toma um grande gole de água. ­
O Luizinho já me conto várias vezes como vocês dois se conheceram, mas eu queria ouvir de você Ani. – Letícia sempre fora uma menina romântica, assim como seu irmão, e, toda vez que ele contava como havia conhecido Aniel, a garota adorava. ­
Bem... – Fica um pouco corada, normalmente não falava sobre esse tipo de coisa. – Foi um pouco estranho, eu havia parado para tomar um café, e quando voltei pro meu carro eu vi o Luís ali parado, olhando pra ele. Não foi nada romântico como ele deve ter inventado. ­
Vocês deviam ver o carro dela. – Fala ele empolgado desviando o assunto do último comentário feito por Aniel. ­
Sim, e que carro é esse? – Não podia ser um carro qualquer pensa Luís Pai, afinal seu filho sempre teve os melhores automóveis, e o fato de o veículo dela ter chamado tanto a atenção de seu garoto o deixou curioso. ­
É um Ford Shelby, Mustang 1965 GT 350, V8, a pintura é exclusiva, um preto aperolado com leves detalhes em fosco, só dá pra ver quando o sol bate de jeito. Ele também tem duas listras brancas no capô. – Gesticula um pouco na tentativa de tornar a explicação mais visível. – Quase tudo nele é único. – Seu carro, seu orgulho. – Ele achou engraçado eu ser a dona do carro, então a gente começou a conversar e mais tarde nós fomos jantar. Foi assim não foi? – Luís concorda com a cabeça. ­
E quando vocês começaram a namorar, foi quanto tempo depois disso? – Agora é Valeria que faz a pergunta. ­
Foi um pouco menos de sete meses... Durante o resto da conversa Aniel continua na defensiva, suas respostas são evasivas e vagas. Todos notam que a bela loira está se sentindo desconfortável em ser o centro das atenções. Mesmo quando o jantar é servido a conversa não para; há nela uma aura de mistério que fascina à todos. A família de Luís entende logo o porquê da paixão do filho pela garota, além de sua beleza quase indescritível ela possui uma atração enorme, quase sobrenatural, e mesmo não estando gostando de tudo aquilo, seus gestos são meigos e suas palavras delicadas fazendo todos a sua volta se sentirem extremamente bem. ­
Mas Aniel. – Começa o pai mudando de assunto. – Nós tentamos localizar sua família, no entanto não conseguimos, não conseguimos nada... ­
Faz muito tempo que não tenho notícias deles. – Limpa delicadamente sua boca com um guardanapo em tom de indiferença. ­
Mas que triste, porque disso? – Valeria sempre foi muito ligada a sua família, sempre os mantinha por perto, a felicidades de suas crianças era como dela ­
7 própria, dedicava todo seu tempo para que o deles fosse perfeito e não conseguia imaginar a vida solitária que essa menina levava. ­
Não sei, algumas coisas simplesmente acontecem... ­
E você é de onde? – Pergunta novamente Luís Pai. ­
Suíça. – Automaticamente. ­
Suíça, que legal! Lá e muito lindo. – Letícia já havia ido de férias a Zurique há dois anos. Aniel não consegue mais suportar o sentimento de estar em um interrogatório, perguntas e mais perguntas feitas sem descanso, precisa de um tempo de tudo aquilo. ­
Desculpem­me, mas já retorno. – Se levanta e segue em direção ao toalete. ­
Só um pouco Ani, preciso ir também. – A jovem Letícia se põe de pé e a segue. As duas entram juntas no banheiro, que se encontra vazio. Letícia vai direto ao espelho retocar a maquiagem, Aniel simplesmente se apóia no mármore e abaixa a cabeça. – Você está bem Ani? Você não parecia estar muito bem durante o jantar. – A garota dá a impressão de estar preocupada com a namorada de seu irmão, mesmo tendo a encontrado pela primeira vez há apenas 2 horas, sentia como se já a conhecesse há vários anos, graças ao que seu irmão lhe contava incansavelmente. No entanto tem plena consciência do fato de não saber realmente quase nada sobre a loira. ­
Eu estou bem, só não gosto desse jantar todo... Preciso descansar um pouco. ­
Sabe, o Luís te ama mesmo, você é muito especial pra ele, e é importante que nossos pais gostem de você. Hoje é um dia muito especial. – A toca no ombro. ­
Bem... – Respira fundo. – Acho que posso voltar, vamos? ­
Claro Ani. – E as duas voltam para a mesa. Luís parece muito contente junto aos pais, talvez até mais contente de qualquer outra vez que se lembre. Quando Aniel senta à mesa sente um frio na barriga, algo está errado. Ele a fita estranhamente, seus olhos brilham. Aproxima­se e com muita delicadeza acaricia a mão da loira que segura com cuidado um copo de água, depois se dirigindo a todos no restaurante começa a falar. ­
Hoje é um dia muito especial para mim, por esse motivo todos vocês estão aqui. Hoje faz quatro anos que conheci a minha alma gêmea, a mulher que me fez ser feliz a cada segundo que passei ao seu lado. – Nesse momento Luís se vira para sua namorada. – A mulher que eu quero passar toda minha vida junto a ela. – Se ajoelha em frente à perplexa Aniel e retira do bolso uma pequena caixa com um lindo anel de diamantes dentro. – Aniel... – Fala pegando na mão da garota e a olhando nos olhos. – Você quer se casar comigo? – Ela não responde, fica em silencio, seu rosto pálido... Após alguns poucos segundos lentamente sua boca se abre e todos ouvem sua resposta. ­
Não... – Responde de cabeça baixa sem olhá­lo nos olhos. Todos no lugar ficam estarrecidos, isso não era possível, e no meio do silencio criado por sua escolha Aniel se levanta e sai do restaurante, chama um táxi e rapidamente some de vista. ­
8 IV Seu corpo está todo dolorido, essa ultima semana havia sido com toda certeza a pior de sua vida, e ele sabe que ainda não tinha acabado; não aguentava mais. Pára sua BMW pela ultima vez em frente ao seu prédio, nunca mais poderá andar nela de novo, é do banco agora, também não sabia quanto tempo ia poder ficar com seu apartamento, a certeza do despejo o assusta e é somente uma questão de tempo, maldita bolsa! Seus passos mórbidos não são notados pelo sonolento porteiro, talvez por causa do sono, talvez por causa da pequena tevê a sua frente, no entanto isso realmente não importa, é até melhor. Entra no elevador, vigésimo segundo andar, espera. A porta mecânica se abre à frente, saí, a luz do corredor acende com o som de seus passos, segue para o apartamento. De tão tumultuada que se encontra sua mente o homem acaba por não perceber que a porta já estava destrancada; entra, fecha a porta as suas costas. Todo o lugar é preenchido pelo breu da noite, exceto por um canto da sala onde um pequeno abajur emana uma fraca luz, não se lembra de tê­lo deixado ligado, com tudo que estava acontecendo isso não o surpreendia. Ainda com as luzes desligadas o homem pega uma garrafa de conhaque no armário e um copo na cozinha, queria comer algo, desde que sua esposa o havia deixado não tinha se alimentado com nada que realmente prestasse. Senta em uma poltrona, a garrafa em uma mão e o copo na outra. Uma, duas, três doses, quando despeja a quarta percebe alguém sentado no sofá próximo ao abajur. Acaba de encher seu copo e começa a falar. ­
Enfim... Chegou a hora não é? – Toma todo o conhaque em um único gole e volta a encher o copo. ­
É, chegou. Você está pronto? – Ele não sabia dizer se a pessoa era homem ou mulher até a ouvir sua voz, e era claramente uma mulher. ­
Acho que ninguém nunca está pronto para esse tipo de coisa, mas quero ficar livre disso tudo. Não tenho mais razão pra continuar, perdi tudo o que tinha; minha mulher me... – É interrompido de forma ríspida pela outra. ­
Certo. Eu já sei o que houve, não precisa repetir... – Coloca­se de pé, caminha até o homem e estende sua mão. – Vamos. ­
Vamos… – O homem pega em sua mão, agora pode ver como é linda, não imaginava que seria assim. – Não achei que você usasse vestido. – Comenta. ­
Tudo imaginação sua. Os dois seguem em direção a sacada do apartamento, à noite está realmente bonita, sem nuvens, toda a cidade noturna pode ser vista com suas belas luzes coloridas, ainda é possível também ver algumas estrelas, mas a metrópoles ofusca com facilidade as menos brilhantes. A mulher o ajuda a subir no pequeno peitoril da sacada, não há vento e se pode ficar em pé ali perfeitamente. ­
Quando quiser. – Fala enquanto se ajeita em uma das cadeiras que há por perto, seus belos cabelos loiros dançam conforme a suave brisa os toca. ­
Certo... – ........... – Essa noite... – ........... – Foi numa noite como essa que conheci minha esposa... – Fica parado por alguns segundos até dar o fatídico passo para a morte. O homem cai em silêncio, o chão se aproxima rapidamente, fechas os olhos. Do apartamento a mulher observa a queda, ele diminui aos seus olhos até 9 virar com muito barulho uma mancha vermelha em cima de algum carro parado no acostamento em frente ao prédio. O som da batida pôde ser facilmente ouvido pelas pessoas em volta, o alarme do carro disparou em reação ao impacto. Tinha que sair rápido dali. Deixa o apartamento, entra no elevador e segue para o térreo. O porteiro está agora totalmente desperto, ele havia saído de sua pequena guarita para ver o que ocorrera, e se espantara com o que vira. “Com licença senhorita” fala enquanto passa correndo pela mulher para chamar a policia. Sai do prédio, logo a sua esquerda está o corpo do homem, caído em cima de uma BMW E60 5 Series, “Azar do dono” pensa. O teto do automóvel ficou totalmente destruído, assim como os vidros. O impacto com o carro fora tão forte que chegou a arrancar um dos braços do morto, toda a calçada em volta estava suja de sangue e algumas outras coisas. A mulher volta a caminhar o mais rápido possível, mas a bela noite não é desperdiçada, resolve voltar para casa a pé, assim aproveitaria mais a paisagem. 10 V Três dias depois. Tudo acaba com um leve som, sua pequena bolsa se fecha com o estalo do feixe, ali dentro leva­vá tudo que precisava. Com calma coloca o acessório de couro sobre a mesa e caminha até a sacada de seu quarto, há três anos morava ali, a idéia de deixá­lo magoava um pouco, sempre soube que nunca devia se apegar a nada, mas com o tempo essa “tarefa” ia ficando mais difícil. Seus olhos percorrem a cidade sem pressa, estava linda. Nesses últimos dias, o Sol parecia sempre presente, realçando as belezas da grande metrópole. Olha para trás por um instante, para sua pequena bolsa sobre a mesa, iria partir ainda hoje, era preciso. Seus pensamentos lhe pareciam turvos desde o almoço há três dias, Aniel algumas vezes não se reconhecia mais. Uma ultima apreciação da vista ao seu redor antes de ir, quando a alça de sua bolsa se entrelaça com seus delicados dedos alguém bate a porta, ela pára, fita a entrada por um momento antes de começar a caminhar até lá, após dois passos uma voz familiar invade o quarto, é Letícia. ­
Ani! Abre, a gente precisa conversar! – A porta é aberta e a garota entra no quarto sem pedir licença. Sua voz ainda de tom levemente infantil está carregada de frustração, decepção e raiva. – Aniel! Como você pode ter feito aquilo com meu irmão na frente de toda aquela gente. – Enquanto fala começa a lagrimejar; porem segurava o soluço. ­
Calma Letícia... – Inicia calmamente após fechar a porta. – Eu tive meus motivos... Você tem que entender... Devagar caminha até o sofá da sala. ­
Não tinhas o direito! – Começa a chorar. ­
Vêm, senta aqui do meu lado pra gente conversar. – Aniel estende a mão para a garota, mas seu gesto é ignorado. Letícia fica em pé observando a loira com seus olhos úmidos até que por fim se coloca do outro lado do sofá, o mais afastada possível da loira. ­
Como você pode ter feito aquilo, ele ficou arrasado! Todos ficaram! Por que Ani? Por quê? ­
Shhh... Calma... – Aniel coloca a cabeça de Letícia sobre seu colo e começa a acariciar­la ma tentativa de deixá­la mais tranqüila antes de começarem a conversar realmente. A garota não se deixa ser tocada no começo, no entanto logo cede e assim ficam por alguns minutos. ­
Ani... Eu já estava adorando ter você como cunhada... Você é tão bonita, legal...Tão especial... – Nesse momento já havia parado de chorar, no entanto seus soluços continuam. – Até meus pais tinham amado você... Por que Ani? Por que você fez isso? A loira fecha seus olhos e pensa; pensa no que dizer, no que fazer, contar seus verdadeiros motivos não é uma escolha, nunca foi. Sempre solitária entre eles. Novamente vê a cidade pacífica lá fora, sua atenção se perde ali por um curto período até se voltar para a garota sobre suas pernas e começar a falar. 11 Lê, eu gosto muito do seu irmão, mas nós nunca tínhamos falado nada sobre casamento, nunca mesmo, eu não estou pronta para um compromisso desses, tenho meu trabalho e minha vida... – Pensa se não há problema chamar a garota de “Lê”, não eram intimas. ­
Mas você não pensou em como meu irmão ai ficar não? Ele não queria que eu falasse com você, mas eu tinha que vir! ­
Não Letícia... Na hora não pensei em como o Luis ia ficar, só queria sair de lá o quanto antes... – A outra se levanta e a olha nos olhos. ­
Como você pode ser tão egoísta! – Novamente lágrimas escorrem por seu jovem rosto, suas pernas tremem, fica difícil se manter de pé, Aniel também se levanta e a abraça. ­
Na hora eu estava tão confusa que não consegui fazer outra coisa... Mas agora não tem volta Letícia... – Ainda chorando em seus braços Letícia continua. ­
Eu te odeio! Eu te odeio...! ­
Calma Lê, calma... – As duas ficam abraçadas ali por minutos. A garota pára de chorar e se acalma, então Aniel volta a falar. – Letícia eu já estou de saída, vamos indo. ­
Você vai embora daqui? – Pergunta ainda aos tropeços devido à insistência dos soluços. ­
Sim, vou trocar de hotel... – Novamente pega sua bolsa. – Eu te do uma carona. – Estende sua mão para a outra, ainda chateada Letícia aceita o convite e as duas saem de mãos dadas do quarto. Letícia ainda segura a mão da misteriosa Aniel enquanto o manobrista busca o carro da loira. Só agora percebe como as respostas dela haviam sido tão vagas no jantar, evasivas de um jeito tal como se ocultasse algo, talvez ela fosse uma farsa, no entanto isso devia ser apenas uma peça de seus pensamentos bobos criados pela raiva. Sem muita demora ele aparece, o precioso Mustang 65, agora entende o porquê de o irmão ter se impressionado, o carro parecia original de fábrica, mas um olho astuto notava as pequenas mudanças feitas, todo preto com duas listras brancas sobre o capô, nas laterais podia ser visto alguns desenhos tribais em preto fosco. Os acentos em couro branco com detalhes em preto e painel exclusivo, apenas algumas das coisas que tornam o carro especial, Letícia conhecia um pouco sobre esse mustang, seu irmão já o havia descrito algumas vezes, mas vê­lo era diferente, mesmo para ela que nunca havia se interessado muito pelo assunto. Aniel vai para o volante, Letícia entra logo atrás. ­
Lê, para onde quer que eu a leve? – Fala ao entrar na movimentada avenida. ­
Pode me deixar em casa mesmo... Você sabe onde é; não sabe? – Não tem coragem de olhar diretamente para a outra, ainda está confusa e magoada por seu irmão. Deixa sua cabeça encostada na janela, os olhos fitam a imagem refletida de Aniel, mas finge observar as pessoas que andam na calçada a poucos metros. ­
Sim, sei onde é... – Nada mais é dito por um longo tempo até que Letícia percebe que não estavam indo no caminho correto. ­
Ani, onde estamos indo, posso saber? – Desconfiada. ­
Ah! Não te avisei não é? A gente vai tomar um café antes de eu te deixar em casa. – Fala com um grande sorriso. ­
Uhm... Tudo bem. Acho que um café vai me fazer bem mesmo. ­
Que bom, porque estamos chegando. – O carro aos poucos vai parando em frente ao aconchegante café ​
La Fortuna.​
– É aqui! – Sai do carro. – Não é adorável? Foi aqui que seu irmão me conheceu, sabia? ­
Não... – Aniel novamente a pega pela mão e a guia para dentro do lugar. ­
12 As duas ficam em uma mesa próxima a uma janela para poderem sentir a agradável brisa da tarde, muito constante nesses últimos dias. Para beber dois capuchinos são pedidos, rapidamente chegam. Letícia pega com cuidado a quente xícara com as duas mãos e assopra levemente para esfriá­la um pouco. ­
Você não vai queimar a língua, pode tomar. ­
Certo... – A xícara vai à boca, toma um gole, como Aniel havia dito ela não se queima, o capuchino está delicioso e na temperatura certa. – Que gostoso Ani. – Sorrindo timidamente. ­
Aham. – Também toma um pouco. – Letícia, você esta estudando não está? ­
To sim, arquitetura aqui mesmo. ­
Que legal. Você esta seguindo os passos de sua mãe, ela é arquiteta também, não é? – Não está realmente curiosa, só queria levar a mente da garota para outros assuntos. ­
É sim, mas não faz mais projetos como antes, você sabe, com o papai e Luis trabalhando ela não tem com que se preocupar. ­
Verdade... ­
Mas eu tava em duvida se fazia mesmo arquitetura, sabe como é, antes não sabia se ia fazer porque eu queria ou porque minha mãe queria. ­
Entendo... Mas agora você não tem mais essa dúvida, certo? ­
Eu to adorando o curso, é bem legal. – Letícia abre um grande sorriso de satisfação, o primeiro que Aniel vê desde que a garota entrou em seu antigo quarto de hotel. ­
Que bom, é sempre bom gostar do que se faz. ­
E você gosta do que você faz? – Pergunta curiosa, durante todas as conversas que teve com seu irmão, Luis falava que o trabalho de Aniel só os atrapalhava, mas nunca havia dito que trabalho era esse, talvez porque ele mesmo não soubesse. ­
Adoro o que eu faço. – Toma mais um pouco do caputino. – Letícia, você não vai acabar de beber? ­
Ah! Vou sim, acabei esquecendo. – Fala sem graça. As xícaras ficam vazias e a tarde chega ao fim, as duas deixam o ​
La Fortuna​
, Letícia já não estava mais com raiva, não entendia bem, mas sabia que a outra tinha seus motivos para ter feito o que fez e que lamentava magoar Luis, infelizmente agora não havia volta. Olha para o horizonte, por traz de algumas nuvens a alaranjadas o Sol percorre iluminando o grande corredor de prédios a sua frente fazendo o entardecer ficar mais bonito que o resto do dia. Aniel agora leva sua acompanhante para casa, gostaria de passear um pouco mais, no entanto não era possível, sabe que a família de Letícia deve estar um pouco preocupada com a garota. Já é noite quando o mustang 65 pára em frente a um luxuoso prédio no centro. ­
Obrigada pela carona Ani. – Sai do carro e se apóia na janela. – Onde você vai ficar agora? ­
Ah Lê... Não posso dizer, quero um tempo de tudo isso. Não quero que seu irmão me procure ou algo assim. ­
Ani, você vai falar com ele alguma hora não vai? Foram três anos de namoro, vocês têm que conversar. ­
Talvez daqui a umas semanas, mas agora não, to sem condições disso. ­
Mas Ani... – Não consegue completar a frase. ­
Tchau Letícia. – Não espera resposta, o V8 ronca com a aceleração, a garota se afasta do carro que sai pela rua e desaparece logo em frente ao virar uma esquina. 13 VI Aniel estaciona seu precioso mustang novamente em frente a um prédio altamente luxuoso, apenas a algumas quadras de onde havia deixado Letícia. Sai do carro, pega sua bolsa no porta­malas, entra no edifício, o porteiro a cumprimenta com um amigável sorriso que a loira retribui com a mesma simpatia, já fazia algum tempo que não vinha aqui. Espera um pouco pelo elevador, algumas pessoas saem dele, pareciam estar indo para alguma festa, pensa; entra, aperta o botão da cobertura e aguarda ao som de alguma musica antiga, não sabia dizer o título. A porta a sua frente se abre revelando outra porta, porém não de metal, e sim de carvalho muito bem trabalhado, se aproxima e toca a campainha que ecoa dentro do apartamento. Alguns segundo depois a porta é destrancada e aberta, do outro lado uma mulher nos seus trintas anos, muito bonita de cabelos longos e castanhos a atende com um grande sorriso aberto. ­
Aniel! Que bom que você realmente veio. – Fala ao abra­la. ­
Obrigada por me acolher por esses dias Clarisse. – Diz um pouco encabulada. – Eu não sabia pra onde ir, assim em cima da hora. ­
Que isso! É um prazer ajudar depois de tudo que você fez por mim. Vamos entrando, deixa que eu pego essa bolsa. – E antes que pudesse dizer “não” Clarisse já está com a pequena bolsa em suas mãos a levando para dentro. – E então Ani, como você ta? Faz um tempo que não nos víamos. Como vai aquele namoro? ­
É, faz tempo mesmo que a gente não se fala. – Entra no apartamento, lugar realmente grande e muito bonito, porém de poucas cores, quase tudo é branco e imaculadamente limpo. ­
Mas então menina, que bom que você vai ficar aqui! Eu já pedi uns dias de folga pra gente se divertir! – Muito animada vai até o bar e pega duas taças e uma garrafa de Bollinger, o Vieilles Vignes Françaises, champanhe muito famoso feito com métodos tradicionais. ­
Ótimo, to precisando sair mesmo. – A garrafa e aberta, a rolha salta para longe. – Esses últimos dias foram um pouco difíceis pra mim. – Pega a taça que a amiga lhe oferece. ­
Aconteceu algo? – Pergunta preocupada. ­
Bem, acho que a maioria das garotas iria pular de felicidade, mas você sabe que comigo as coisas são diferentes. – Toma um pouco do champanhe e fica por alguns instantes apreciando o sabor. ­
Fala logo! – Ansiosa. ­
O Luis, ele tinha me pedido em casamento... – Mais alguns goles e abaixa a cabeça. ­
Não acredito... Uma hora isso ia acontecer; você sabia. – Segurando o inicio de uma risada. ­
Não sei, eu achava que ele ia me dar um fora antes disso, sei lá. – Clarisse começa a rir. ­
Você não muda mesmo Aniel querida, que homem ia ser louco de dar um fora em você. ­
Eu achei que ele ia... – Abaixa a cabeça de vergonha. 14 Bem, mas não tinha outro jeito não é, você não podia aceitar... Mas e ele, como ficou? – Já está super curiosa e se segura para não perguntar tudo de uma única vez. ­
Não sei bem. Falei com a irmã dele hoje, e parece que não ta muito bem não. ­
Imagina, como ele ia ta bem, do jeito que você é deve ter dito “não” na cara dele e ter saído andando como se nada tivesse acontecido. – Então que Aniel desaba no sofá. – Não acredito... Foi assim mesmo? ­
Pior... ­
Pior!? – Fala incrédula. – Como podia ser pior que isso? – Tentava imaginar, mas nada parecia ser mais cruel. ­
Um pouco mais de champanhe, acho que vou precisar... As taças são cheias e rapidamente esvaziadas, então, depois de respirar fundo por alguns instantes Aniel começa a contar cada detalhe do que ouve três dias atrás, desde quando as modelos começaram a mostrar os vestidos em seu antigo quarto de hotel até o fatídico ​
não​
. Quanto mais avança na narrativa mais espantada fica sua amiga. ­
Aniel meu bem... – Balança um pouco a cabeça estarrecida. – Puxa você destruiu o cara, imagina, na frente dos pais dele e depois de tudo que o coitadinho fez... ­
Eu sei, agora não me faz ficar pior do que já to. – A amiga segura mais um riso. ­
Sei, sei. Admiti, pra você foi até melhor isso acontecer, não sei como você agüentou três anos. ­
Não vou dizer que não queria, mas eu devia ter previsto e não ter deixado acontecer. – Estende a taça para amiga encher novamente. ­
Lenta como você é não ia prever nada. – Ri mais um pouco enquanto despeja o champanhe na taça. – Mas enfim, melhor assim. ­
É, melhor assim. E não me chama de lenta, eu só estou tendo alguns problemas. – Toma mais um pouco. – E você Clarisse, como você ta indo? ­
Menina, graças a você não podia estar melhor! To faturando alto e sempre que surge uma folguinha eu vou e dou minhas voltinhas, ou caio na balada. Ta tudo mais que perfeito. E pensar que quase joguei tudo isso fora... – Faz uma curta pausa. – Bem Ani, vamos deixar essa bolsa lá no seu quarto, e daí você já aproveita e se trocar porque hoje tem uma festinha pra nós irmos. ­
Festinha é? – Aniel não gosta de festas, mas pelo menos com a amiga junto sabia que podia se divertir um pouco, Clarissa sempre a deixa mais à vontade. ­
É, um representante de um amigo ta promovendo um livro, então eu tenho que ir, mas não se preocupa que a gente só vai pra se divertir! ­
Combinado então! Nove e quarenta, as duas deixam a cobertura, Clarisse usa um vestido preto, comprido, com um decote sutil e levemente formal, Aniel também não escolheu nada ousado para a ocasião, usa um vestido azul­marinho de frente única muito elegante em sua simplicidade. Em frente ao prédio um táxi já estava à espera delas. Seguem para o carro amarelo, o motorista já havia sido informado para onde deveria ir, então sem demora entram no congestionado transito noturno da metrópole. ­
15 VII A lua cheia brilha esplendorosa no ponto mais alto do céu noturno, sua pálida luz revela algumas rachaduras nas paredes de um antigo hospital. Um solitário poste perto da esquina pisca incansavelmente enquanto uma brisa tímida aparece sorrateira, mas para logo se esvair. Tudo parece calmo e silencioso essa noite, porém pura impressão. Rasgando o breu com o som agudo de sua sirene uma ambulância chega velozmente à frente do prédio. Tudo acontece muito rápido, em sinal de extrema competência, dois para­médicos deixam o veiculo com uma maca onde um homem totalmente imobilizado agoniza de dor. A ambulância fica como que esquecida em frente ao hospital, mas quando ela parecia não conter mais nada de interessante uma garota sai furtivamente de dentro. Sem ser vista por ninguém a jovem entra furtivamente no prédio sem receio. A luz do poste não pisca mais. O elevador se abre a sua frente, sai apressada; correndo pelo corredor desvia das varias pessoas que passam, se move com uma agilidade duvidosa para alguém de aparência tão delicada, ninguém parece notar os rastros fantasmagóricos deixados no ar as suas costas. Hoje o hospital está demasiadamente movimentado, o que contrasta muito com a tranqüilidade do lado de fora. Sem ser percebida entra em um dos quartos, nele há somente uma senhora nos seus setenta anos deitada em uma das camas. Os sons vindos do outro lado da porta começam a sumir aos poucos, até o ponto de só ser possível ouvir a respiração das duas. A mulher na cama começa lentamente a acordar, seu cansaço transparecia em sua aparência, olhos pesados, pele pálida e feições esquálidas, vinha sofrendo de câncer há alguns anos, o diagnostico chegara muito tarde, não havia mais o que fazer. Ainda sonolenta percebe a presença da garota a sua frente, uma menina nova, menos de vinte anos, de cabelos castanhos, compridos e encaracolados, “Oi” diz a jovem com um sorriso carinhoso no rosto, sorri em resposta. ­
Que bondade a sua vir me visitar. – Já estava muito fraca, mas tentava parecer o melhor possível. ­
A senhora merece. – Ainda com o sorriso no rosto a garota se aproxima e pega em sua mão. – Beatriz. – Fala agora um pouco mais séria. ­
Pode falar. – Vendo a expressão de desconfiança no rosto da mais nova ela continua. – Eu estou pronta. ­
Tem certeza que não há mais nada? ­
Tenho sim... Não tenho do que reclamar. Meus filhos cresceram bem, estão felizes, meus netos são fortes e têm um ótimo futuro pela frente, acho não tem como eu ficar mais feliz que isso. – Fala com dificuldade, mas com amor. ­
Com certeza você criou muito bem todos eles, há alguma coisa que você gostaria que eu fizesse por você antes de partir? – Pergunta enquanto arrumava o travesseiro de Beatriz. – Aproveite que não é sempre que isso é possível. ­
Bem, há uma coisa... ­
Pode falar. ­
Uma de minhas filhas... – Cada vez se torna mais difícil continuar a falar. – A Luiza... Ela não tem mais contato com seus irmãos. – Respira fundo, quando ia voltar a falar a outra interrompe. 16 Não se preocupe, vou fazer o possível para que seus filhos se dêem bem entre si novamente. ­
Não tenho palavras para agradecer... – Diz com suas ultimas forças. ­
Pronto Beatriz, agora feche os olhos e descanse. – E como a garota pediu Beatriz fecha seus olhos, tudo agora parece melhor, a sensação de cansaço e a dor aos poucos vão desaparecendo até que por fim seu coração para e ela morre pacificamente. A garota se afasta um pouco, agora volta a ouvir os sons vindos de fora do quarto, alguns aparelhos ligados a recém falecida começam a apitar e logo uma enfermeira entra correndo no aposento, sua preocupação é tanta que não nota a jovem, que agora saia do lugar, mais algumas pessoas entram indo ao socorro de Beatriz, mas nada mais pode ser feito. Assim como entrou a garota deixa o hospital sem ser notada para noite lá fora. Com as preocupações agora esquecidas no mais profundo poço de sua mente a garota senta na calçada para espairecer um pouco, essas últimas horas haviam sido movimentadas, mas descansar não passa por sua cabeça, o que queria agora era dançar, pular ou fazer qualquer outra coisa que parecesse divertido. No momento em que levanta observa alguém vindo em sua direção do outro lado da rua, não era nenhum desconhecido, então num pulo fica de pé e acena vibrantemente para a pessoa a sua frente. ­
17 VIII Seus olhos começam a abrir vagarosamente, a preguiça pesa. A luz do sol matinal atinge diretamente seu rosto dificultando ainda mais sua visão. Sem sair de baixo dos lençóis se espreguiça, havia dormindo como um anjo, mas não se lembra de como havia ido parar nessa cama, nem onde estava, sua memória se encontra muito confusa, Aniel lembra muito pouco da noite anterior, só sabia que se divertira como nunca. À vontade de sair da cama não aparece, pelo visto ainda era cedo e não havia nenhum compromisso para hoje, então continuou deitada. Seus olhos ainda pesados começam a se fechar, tudo volta a ficar escuro, mas algo acontece a despertando. Aniel sente uma mão tocar delicadamente toda a extensão de sua coxa. Calmamente a loira volta sua atenção para o outro lado da grande cama onde se encontra, ainda dormindo, uma garota um pouco mais nova do que ela própria aparentava ser. Seu cabelo é curto e preto, de rosto fino e meigo com belos traços asiáticos, parecia dormir como uma criança de apenas seis anos, com uma respiração suave e hipnótica. Fica pasma, não sabia direito o que pensar, isso não podia estar acontecendo, desesperada vasculha sua memória em busca de algo, não adianta, não lembra absolutamente nada. Aniel sentia­se estranha nos últimos dias, mas não esperava que algo assim pudesse acontecer. Aos poucos começa a se levantar tentando ser o mais discreta possível, no intuito de não acordar à outra, quando finalmente deixa os lençóis para trás sua coxa é tocada novamente, deitada com o rosto afundado no travesseiro a morena balbucia ainda sonolenta “não...”. Se afasta com cuidado, a outra na cama continua a dormir. Uma camisola é pega no chão, não podia sair andando por este lugar desconhecido usando apenas suas roupas de baixo. Silenciosamente sai do quarto, a porta entreaberta leva a um corredor com duas portas e em seu fim parece haver uma sala que lhe é um pouco familiar, a passos leves segue em frente, quando enfim chega ao cômodo ouve uma voz a chamar e toma um susto. Com a mão sobre o coração acelerado a loira se vira para ver Clarisse tomando café sozinha em uma mesa próxima, só agora que vê sua amiga aos risos quase se sujando toda de café é que percebe onde se encontra, na mesma sala branca e imaculadamente limpa que estava ontem. ­
Clarisse você me deu um susto sabia!? – Fala irritada, a amiga só conseguia rir, em momentos como esse a loira sempre a comparava a uma hiena. ­
Aniel, você não sabe como eu me divirto contigo. – Sua barriga já começa a doer um pouco de tantas risadas. ­
Clarisse... – Se junta à mesa. – O que ouve ontem na festa, eu não fiz nada que não devia não é? – Pergunta preocupada, só de imaginar tudo que poderia ter acontecido antes de se deitar com uma garota a apavorava. ­
Não, você não fez nada de mais não. – Ao contrario dela Clarisse parece muito tranqüila. ­
Mas... – Não sabia como dizer, então faz uma pausa, depois de pensar um pouco finalmente conta. – É que tem uma garota dormindo na minha cama. – Seu rosto que é branco como leite fica levemente corado, sua anfitriã simplesmente ri do seu constrangimento. ­
Ani, você não bebeu tanto assim, vocês só dormiram na mesma cama. Nada além disso. – Segura o riso para tomar mais um gole de café e voltar a falar. – Não me 18 ­
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admira que você não se lembre bem o que aconteceu ontem, bebesse mais do que devia, mas não a esse ponto né Ani. – Sorri. Normalmente beber não me faz mal... – Balbucia pensativa. – Mas como eu fui parar na cama com ela? – Ainda está confusa, não sabia dizer se era o sono que ainda fazia suas pálpebras pesarem tanto ou se havia algo realmente errado. Hmm... – Pensa por alguns instantes e então volta a falar. – Quando nós estávamos voltando você caiu no sono, do nada, então eu te coloquei na cama. Foi bem estranho, acho que você deve é ter desmaiado. Mas e ela? – Indaga Aniel. Calma, se você deixar eu falar fica mais fácil. – Morde com calma uma grande fatia de bolo, Clarissa aprecia ver a leve mistura de angustia e curiosidade da amiga. Desculpa... – Não queria realmente se desculpar. Como ia dizendo, eu te coloquei na cama, mas não tinha outra cama arrumada, e como eu tava cansada da festa disse pra Roji dormir lá com você. Mas quem é ela? – Agora já despreocupada começa a tomar seu café e experimentar uma pequena fatia do bolo que sua amiga saboreava. Você vai gostar muito dela, minha sobrinha. – Diz com um largo sorriso no rosto. Sua sobrinha? Não sabia que você já era titia, ainda mais de uma adolescente. – Debocha um pouco com a outra, mas essa parece não ligar. Só quinze anos... Já é quase uma mulher. Mas quando que ela chegou? – Pergunta curiosa. Você já estava dormindo quando ela ligou, chegou do Japão ontem lá pelas três e meia, primeira vez aqui em Nova York. Hmm... Ainda não consigo acreditar que você já é tia. 19 IX Aniel... Aniel... Você ta me ouvindo? Aniel! Deixa de ser boba e fala comigo! Ainda estava sentada na mesa tomando café, sabia disso, no entanto não conseguia ver nem ouvir nada. Sua visão havia se tornado branca como a neve de dezembro. Uma lembrança incomum surge em sua mente a deixando atordoada por um momento. Começa a se recordar de uma conversa aparentemente recente com uma amiga de longa data, tudo ainda aparecia meio embaralhado e confuso, mas um nome se mostrava nítido em sua mente, Luiza Santrine. Começa a escutar seu nome, Clarisse a chamava. Ouvia muito baixo, como um leve sussurro, aos poucos sua visão vai clareando e o chamado ficando mais audível, até que por fim Aniel volta ao normal. Agora já enxergando vê a frente à amiga olhando como se algo grave estivesse ocorrendo. Seu corpo está dormente, se mexer ou mesmo falar parece algo impossível, com muito esforço balbucia algo que parece acalmar a outra, não sabia o que tinha dito, mas isso era o de menos. ­
Ani, o que foi isso? Você me assustou... – Clarisse parece levemente chocada. Com um pouco de dificuldades Aniel se recupera dessa experiência e começa a falar. ­
Não sei o que foi, mas não se preocupa, já to melhor. – Suava frio, sabia que não estava bem, desde terça algo estava errado, isso não devia estar acontecendo. ­
Você tem certeza? – Pergunta preocupada, sua mão vai à testa da outra, está gelada. ­
Tenho sim. – Mente. Ao se levantar, fica tonta por alguns segundos, mas logo se sente um pouco melhor. – Já estou bem, verdade Clarisse, mas tem algo que devo fazer. ­
Como assim? – Pergunta descrente. – Você tem é que descansar. ­
Eu já estou melhor, sério. Mas tem uma coisa que eu tenho que ver. Luiza Santrine, você conhece? – O nome não sai de sua cabeça, algo muito importante estava ligado a ele. ­
Hmm... – Pensa um pouco, a sonoridade dele lhe era familiar. – Não sei bem, tenho a impressão de já o ter ouvido em algum canto. ­
Tem como você me ajudar a descobrir quem é? ­
Mas é claro, isso vai ser fácil, daqui a pouco faço umas ligações lá pro escritório e rapidinho nós descobrimos quem é essa mulher. ­
Obrigada mesmo. Fico te devendo uma. – Volta a sentar­se. ­
Que isso, não tem nada que eu faça que possa compensar o que você fez por mim. – Nisso a lembrança do terrível dia em que conheceu Aniel vêem a sua mente, no entanto logo afasta essa triste memória. As amigas voltam a tomar café, à noite às desgastaras de mais, e a fome era enorme. Quando deixavam à mesa Roji, a jovem sobrinha de Clarisse entra na sala enrolada no mesmo lençol que a cobrira durante a noite. Ainda sonolenta a garota olha para as duas na mesa e balbucia algo, vendo que nenhuma delas havia entendido o que tinha dito se vira e volta para o corredor, provavelmente para a cama. 20 Onze e trinta, Aniel conversava com Roji enquanto preparava o almoço, a jovem asiática agora já bem disposta depois de um banho contava como havia sido sua viajem, entre outras coisas. Clarisse estava presa ao telefone, mesmo em seus dias de folga o trabalho a perseguia deixando­a irritadíssima. ­
Enfim livre! – Desliga o telefone e o joga em cima de um sofá. – Não agüentava mais! Eles parecem que não conseguem fazer nada sem eu estar por perto. – Vai até a cozinha onde as duas estão e senta ao lado de sua sobrinha, quando ia perguntar o que seria servido logo mais o telefone toca novamente. – Não acredito! Ah! Esse eu não atendo! – Diz irritada. ­
Atende lá. – Interpõe Aniel. – Vai que algo sério. ­
Deixa que eu atendo. – Fala Roji ao se levantar em direção ao telefone da cozinha que fica preso em uma das paredes. Clarisse não gosta muito, mas sabia que não podia deixar o telefone tocando, por isso não diz nada. Atende, fica em silencio apenas ouvindo o que o outro lado fala, algumas vezes confirma algo com um “uhum”, mas não diz nada. Alguns segundos depois pega uma caneta e um pequeno pedaço de papel e começa a anotar algo, em seguida desliga o telefone. ­
Quem era? – Pergunta Clarisse curiosa. ­
A sua secretária. – Seu sotaque ainda era carregado, mas podiam entender perfeitamente o que diz. ­
Sim e ela não queria falar comigo não? ­
Não, não queria mais incomodar você tia, então só me pediu para passar esse endereço. – Entrega a folha em que havia escrito para Clarisse. – Ela disse que é da pessoa que você pediu para procurar, Luiza Santrine. Aniel se vira, não esperava localizar­la tão rápido. ­
Ei Roji. – Continua sua tia. – Ela não falou quem é essa Luiza? – Olha para o endereço, não ficava muito longe dali. ­
Sim, ela comentou algo. Disse que é uma pintora ou algo assim. – Volta a se sentar próxima a Aniel, ia continuar a conversar com ela, mas a loira estava perdida em pensamentos, só retorna a prestar atenção nelas quando Clarisse a chama quase com um grito. ­
Ani! Hoje você ta muito estranha. ­
Não é nada... Eu só estou preocupada com isso, esse nome não me sai da cabeça, isso não é muito comum. – Desliga o fogão antes que a comida acabe queimando. Suas preocupações quase estragam todo o almoço. ­
E você vai quando ver essa Luiza? ­
Depois de comer, isso se você não se importar. ­
Claro que não, pode ir tranqüila, eu ia mostrar a cidade pra Roji aqui, mas eu deixo as melhores partes pra quando você estiver junto! – Aniel não fala nada, simplesmente sorri. 21 X O Mustang para em frente a um prédio próximo ao Central Park, era ali. Aniel sai do carro, olha o endereço escrito no papel entre seus dedos, décimo andar, entra. O lugar parecia um pouco antigo, talvez década de 50, não sabia dizer bem, vai até o elevador e espera. Fica parada mais do que estava acostumada até que enfim ele chega. A velha porta se abre com um pouco de ranger, duas pessoas saem, Aniel olha bem para uma delas, um garoto que parecia ter seus quinze anos, algo a dizia que o veria de novo. Aperta o botão de aparência antiga, décimo andar, após alguns instantes o elevador para com um leve solavanco e a porta se abre fazendo o mesmo som de metal enferrujado. No pequeno corredor só havia uma porta, talvez isso explicasse o porquê não havia o numero do apartamento no papel entregue por Roji. Aproxima­se devagar, a sensação de estar ali há deixava um pouco enjoada. Bate três vezes, quando o som do último encontro de sua mão com a madeira morre no ar, o silencio toma conta do local por um longo tempo. Um minuto, talvez dois sem nenhuma resposta, porem não pensava em ir embora, algo a mantinha ali. Então quando levanta sua mão mais uma vez ouve algo. Uma voz vem de dentro do apartamento, som abafado, mas podia se entender um “já vai”. A porta começa a ser destrancada, até que por fim é aberta revelando uma mulher realmente bela ao seu jeito. Usava óculos, de olhos pretos assim como seu cabelo, de pele levemente bronzeada, baixa, por volta de um metro e sessenta, mas isso só aumentava a sua graça. Vestia um macacão sujo de tinta, obviamente devia estar trabalhando. Olha Aniel por inteiro, não esperava ninguém como a loira, isso se mostrava claro em seu rosto. ­
Sim, em que posso ajudá­la? – Pergunta timidamente enquanto arruma seus óculos. ­
Luiza Santrine? ­
Sim, sou eu. Aniel a olha mais uma vez, curiosa, “Precisamos conversar” diz, mas antes de obter uma resposta sente­se estranha novamente. Nota sua boca se mexer, sabia que ainda estava falando, mas não consegue ouvir o que diz, seu corpo começa a se mexer sozinho, todo o seu ser começa a se mover como se sua consciência houvesse sido aprisionada no interior de sua mente e agora seu corpo tem vida própria. Entra no apartamento, a outra a vê de forma mais amigável. Seus olhos começam a arder, sua visão fica turva e embaralhada, vê Luiza levando rapidamente sua mão à face em surpresa a algo que havia dito. Após isso nada mais via ou ouvia. Então que algo toca seu corpo de modo gentil, não soube dizer no momento do que se tratava. Novamente o toque, e em seguida outro, até que por fim sente seu corpo começar a flutuar em um mar calmo, agora pode ouvir o som das águas ao seu redor. O oceano, não era frio como o Pacífico, mas morno e aconchegante. Aniel vai balançado conforme as leves ondas a guiam, movimentos que surtem um efeito inebriante nela. Uma euforia espontânea a atinge arrancando­lhe belas gargalhadas, risos que pareciam não ter fim, porem só pareciam, do mesmo jeito que haviam começado eles somem. Uma, duas horas se passam no silencio do mar negro. Ainda boiando sua mente divagava sobre o que poderia estar acontecendo, o que era tudo isso? Sabia de alguns casos assim pelas as outras, todas diziam não ser um bom sinal. Lembrava agora de Aséalia, de seu 22 sorriso meigo e seu jeito animado, mas logo que a lembrança começa a se aprofundar em sua mente é interrompida por uma luz distante vinda do horizonte, pálida e sem vida. Aniel não conseguia mais se concentrar em seus pensamentos, a única coisa em sua mente era o ponto brilhante ao longe. O que era? O que seria? O que era... As ondas se intensificam despertando­a, havia dormido sobre os efeitos do mar e da escuridão, escuridão que não se encontrava tão intensa quanto antes, o breu agora havia sido substituído por um céu estrelado, sem nuvem, até a mais fraca das estrelas podia ser vista no céu. Passa vários minutos olhando os astros muito curiosa, havia algo estranho nas constelações, seu entendimento de astronomia era praticamente zero, mas sabia perfeitamente que em nenhum lugar algum da terra era possível ver três via lácteas intensas​
​
no céu. Aniel ainda sentia o cheiro do mar, ainda sentia o seu movimento hipnótico sobre o corpo, mas logo que abriu seus olhos novamente não contemplou o místico céu noturno, não escutava mais as pacíficas ondas. Ouvia algo, um soluçar, como choro tímido de alguém que não quer revelar seus sentimentos. A sua frente sentada em uma poltrona esta Luiza segurando suas as lágrimas. Não entende bem o que havia ocorrido consigo ou com ela. ­
Meu deus... – Diz Luiza limpando o rosto. – Não sabia como eu tinha magoado ela... ­
Não fique assim. – Não sabia do que a outra falava, mas a resposta veio naturalmente, sentia que aquilo era o certo a ser dito. – Você sabe o que tem que fazer, não sabe? – Ajoelha­se em frente à Luiza. ­
Sim, sei sim... Mas por quê? Por que você se preocupa comigo? – Agora não chorava mais. ­
Não sei dizer, mas encare isso como um favor. – Nisso se levanta. ­
Certo... ­
Só mais uma coisa, não cumpra nosso acordo e eu volto, e acredite que não serei nada gentil. – A pintora congela, um pavor profundo a engole deixando­a sem reação. – É você entendeu. A garota fica parada, encolhida em sua poltrona enquanto Aniel sai do apartamento. A porta se fecha e aos poucos Luiza volta à realidade, não entende como aquelas palavras a afetaram daquele jeito. Estende sua mão tremula e pega o telefone, ainda um pouco chocada disca um numero para o qual não ligava havia vários anos. Espera, um homem atende do outro lado. ­
Alô? – Por um instante Luiza não tem coragem de falar, porem agora não havia mais volta. ­
Alô irmão... ­
Iza é você mesmo? 23 XI A lâmpada do quarto não parava de piscar, poucos eram os momentos em que sua luz se mantinha constante. No cômodo encontrava­se um homem deitado, pálido, de feições esquálidas, com olhos profundos e negros. Estava fraco demais, via­se isso à distância. Cobrindo­lhe o corpo seminu apenas um velho lençol amarelado e sujo, com algumas manchas de sangue seco. Alguém entra no aposento, com dificuldades ele se vira e esboça um sorriso ao ver uma garota se aproximar. ­
Oi amor. – Fala ao sentar­se perto da cama. – Como você está? – O homem a olha com tristeza, ela já havia sido uma pessoa de extrema beleza, mas a preocupação aos poucos vinha lhe furtando a aparência juvenil. ­
Já lhe disse. – Com dificuldades começa a falar. – Você não tem que vir aqui... ­
Não fale bobagens. – Vira o rosto para esconder uma lágrima que escorre por sua face. – Você sabe que eu o amo... ­
Eu sei que disso, e eu também te amo. – Recupera o fôlego. – Mas eu não quero ver você jogando sua vida fora por mim... – Com dificuldades passa a mão pelas bochechas da garota. – Você ainda tem tudo pela frente, enquanto eu só tenho poucos dias... – Nada responde, apenas chora. ­
Eu trouxe algo pra passar a dor. – Ainda com os olhos molhados tira da bolsa alguns comprimidos, vai até uma pequena geladeira velha e enferrujada no canto do quarto, pega um copo d’água, entrega para o homem na cama. – Vamos, tome todos. ­
Todos Joana? – Estranha um pouco. ­
Sim, tome todos que vai mais rápido. – Leva os comprimidos à boca, em seguida a água, o medicamento tinha um gosto muito ruim, mas já estava acostumado, os engole. – Agora durma querido... Um sentimento amargo brota em Joana enquanto via o seu amor deitado na cama tomando os comprimidos dados por ela. Mais algumas lágrimas escorrem por seu rosto após arrumar cuidadosamente os lençóis da cama. Ele já dormia, encontrava­se tão fraco que mesmo permanecer acordado era um grande esforço, logo isso passaria. Silenciosamente, para não desperta­lo, deixa o quarto, fecha a porta e a tranca por garantia. A sala estava escura, mesmo sendo apenas quatro horas da tarde. Todas as janelas estavam fechadas e lacradas com fita isolante, o local era iluminado apenas por uma fraca lâmpada suspensa no teto. No lugar há apenas duas poltronas empoeiradas, uma velha tevê quebrada e duas portas. Acomoda­se em uma das poltronas com cuidado para não levantar a poeira. Olha as horas, dezesseis e vinte, “falta pouco agora” pensa. A mão limpa às lagrimas que começam a escorrer pela face, sua mente entra em uma espiral de culpa e dor, não acreditava no que havia feito. Quando retoma sua atenção para o cômodo a sua volta percebe que há mais alguém ali. ­
Oi Joana. – A voz doce e calma fez a garota ficar toda arrepiada, o comprimento vinha de um dos cantos a suas costas, de vagar se vira. ­
Como você entrou aqui? – Não acredita no que vê. Logo atrás encostada na porta em que passara apenas alguns segundos havia uma mulher loira, extremamente bonita a olhando vilãmente com seus olhos de safira. 24 Ah não se faça de desentendida, foi você mesma que me chamou aqui. – Seu sorriso aparentemente meigo escondia uma crueldade que somente alguém em seus últimos momentos poderia notar. ­
Mas... – Não suporta sentir aqueles olhos azuis a encarando, uma sensação de pânico começa a surgir e a engolir por inteiro, como um Grande Branco ao abater uma foca, sentia seu corpo girar, seus pensamentos se misturam em meio ao pavor, lembranças antigas retornam em fleches, queria correr, gritar, fugir dali, mas não conseguia nem sequer se levantar. ­
Querendo ir a algum lugar? Não, claro que não. – A mulher começa a se aproximar da poltrona, quanto mais perto chega mais rápido bate o coração de Joana. ­
Chegou à hora então? – Sua fala é tremula e apavorada, ainda chora, mas agora de medo. A outra a toca no ombro como se a consolasse. ­
Logo, mas quero que você o ouça gritar e suplicar antes de eu te levar. Quero que você sinta pelo que vai passar. – Sorri com o canto da boca. ­
Mas eu ia... – Com tremenda dificuldade pega em sua bolsa uma pistola 9mm e mostra timidamente para a outra. – Mais rápido... ­
Não. Você não merece nada tão rápido. – Coloca a mão no bolso e pega algo. – Aqui. – Estende a mão e entrega para Joana alguns comprimidos. – Você vai tomar isso. – Joana emudece, queria jogar aquilo longe e fugir, mas não consegue. Um barulho chega aos seus ouvidos, vinha do quarto, havia começado. Sua arma cai no chão, está pasma. – É, começou... Caminha até a porta sobre os olhares de suplica de Joana, a mão quente toca a maçaneta fria sem piedade, a porta é aberta. Novamente Joana ouve aquele som de agonia. Entra em choque... Palavras automáticas rastejam de sua boca, “o que eu fiz...” repete consigo. Dentro do quarto, o homem deitado aperta violentamente seu peito, tentava gritar, mas não produzia nada alem de fracos gemidos. O olha, não acredita que tinha feito algo assim, devia ser mentira, uma visão onírica criada pelo stress, porem no fundo sabia que era a causadora de tudo aquilo. ­
Como eu pude... Daniel... – Palavras carregadas de lamurias. Abaixa a cabeça e começar novamente a chorar. ­
Olhe pra ele, vamos, seja corajosa. – Sem poder evitar obedece. – Afinal foi para o bem dele não foi? O fato de você não querer ir sozinha não pesou em nada, não é mesmo? Daniel não apertava mais seu coração, sua mão levemente suja de sangue estava agora encostada no chão, seus olhos sem vida fitavam o teto igualmente morto. Joana se põe de pé, suas pernas bambas dão somente alguns passos tímidos antes de cair em prantos de joelhos sobre o sujo carpete. ­
Como eu pude fazer algo assim... ­
Vamos, tome todos. – A garota abre sua mão e olha fixamente os pequenos comprimidos. ­
Todos? – Balbucia. ­
Sim, tome todos que vai mais rápido. – Sem mais nenhuma palavra fecha seus olhos e engole tudo. Sua boca fica com um gosto extremamente amargo, ao ver o corpo a sua frente sua espinha gela só de lembrar o que estar por vir. Começa a suar frio e a ofegar, não sabe o que fazer, o pavor começa a lhe roubar toda sua sanidade. Olha em volta, a mulher havia sumido. Em um momento de lucidez Joana chega a pensar que a bela loira nunca tinha estado realmente ali, porem um ­
25 pensamento tão rápido quanto um piscar de olhos. Desesperada corre para a porta que da para o corredor do prédio, trancada, tenta arromba­la, sem sucesso. Enfim num ultimo ato de sobrevivência começa a gritar por socorro, seu desespero só aumenta a velocidade de seu metabolismo... 26 XII Aniel pára seu carro novamente em frente ao café ​
La Fortuna​
, cinco horas da tarde. O sol ainda brilhava no céu espalhando um belo alaranjado por toda a cidade, não conseguia acreditar em como esses últimos dias haviam sido tão belos, às vezes tinha a impressão de estar na Califórnia, com suas constantes tardes de céu azul, mas assim que voltava a abrir seus olhos via a verdade. Sai do carro, entra no café, precisava descansar. Essa semana não havia sido das melhores e um caputino agora ajudaria muito. Fica por volta de uma hora sentada em uma das mesas de mármore apreciando as fotos nas paredes, ao notar que já é noite toma o último gole de seu caputino e resolve que está na hora de voltar. Estava curiosa para saber como havia sido o dia de Clarisse e Roji, então faltando quatro minutos para as seis horas da tarde deixa o café para casa. Enquanto dirigia tentava decifrar o que havia ocorrido no apartamento da pintora, mas nada parecia explicar aquilo. Quem sabe Aséalia não pudesse ajudá­la? No entanto fazia anos que não a via, Mihael também poderia saber de algo, agora morava em São Francisco, acha­la seria mais fácil. Mais uma vez o elevador para na cobertura, Aniel sai, caminha até a porta de carvalho já com as chaves na mão, abre. Tudo estava quieto, a sala branca imaculadamente limpa como de costume estava vazia, parecia que suas amigas ainda não haviam voltado. Fecha a porta as suas costas, deixa algumas coisas em cima de uma pequena mesa e segue para cozinha comer algo, não havia comido nada no café a agora sentia um pouco de fome. Ao se aproximar ouve algo, Roji encontrava­se em frente à grande geladeira aberta com uma expressão de descontentamento. ­
O que foi Roji? – Ao ouvir a gélida voz de Aniel à garota da um pulo de susto, mas depois de alguns segundos abre um belo sorriso. ­
Ani, você me assusto... – A loira sorri em resposta. ­
Procurando algo pra comer? – Se aproxima da geladeira. ­
É... Mas a tia parece que não faz compras ha um tempo, acho que tudo que tinha foi no almoço. ­
Ela não é mesmo do tipo que gosta de ir ao supermercado, mas não tem problema, a gente pede algo. ­
É pode ser, o que você vai querer? Já peço agora. – Vai até o telefone preso à parede e procura em um caderno próximo o numero de alguns restaurantes. ­
O que você quiser pra mim ta ótimo. – Aniel abre a geladeira, realmente não havia mais nada ali dentro, tirando duas garrafas de vinho Bin 707 Cabernet Sauvignon safra de 1993 e uma lata de Pepsi light. – É Roji acho que amanhã a gente deve fazer umas compras. – Pega a Pepsi, abre, despeja tudo em um copo e toma um grande gole. ­
Pronto Ani, já pedi o nosso lanche, logo deve chegar. – Põe o telefone de volta em seu lugar e caminha para a sala seguida pela outra. ­
Roji, a Clarisse, onde ela ta? ­
Ah, quando a gente tava indo onde era o World Trade Center, sabe prestar uma homenagem, a tia recebeu um telefonema, parece que alguém tinha feito algo muito ruim lá no escritório e precisavam da ajuda dela. – Mesmo tendo uma parte de seu passeio frustrado a garota não parecia desanimada. 27 ­
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Que coisa... Mas vocês se divertiram antes disso? É, foi legal, a gente foi no Central Park, na Wall Street e em outros lugares assim. Que bom. – Toma o ultimo gole do refrigerante. – Amanhã saiu com vocês. É, daí vai ser mais legal ainda! – Alguns segundos depois volta a falar com receio. – Ani... Sim? Posso ti fazer uma pergunta? – A asiática agora fica um pouco mais seria. Claro Roji. – Um pouco curiosa. Ani, a tia não me falo muito de como vocês se conheceram, você podia me contar? É, ela não gosta de tocar no assunto, mas acho isso besteira. Você pode me contar como foi Ani? – Os pequenos olhos de Roji imploravam de curiosidade. Claro, acho que vai fazer bem pra você saber pelo que sua tia passou. – Faz uma pausa para se lembrar bem como foi e volta a falar. – Eu a conheci, um pouco depois da morte dos seus avós, você sabe o que aconteceu não sabe? Sim, o pai me conto, acidente de carro não é? É, foi isso mesmo. A sua tia ficou muito arrasada, ela era bem ligada aos pais. Começou a ficar sem vontade pra fazer qualquer coisa, passou um tempo a demitiram. A Clarisse não era mais a mesma, o que é normal, perder os pais dessa forma é traumatizante pra qualquer pessoa. – Roji apenas concordava com a cabeça. – Então um dia, não lembro bem quando foi, mas acho que foi uns dois meses depois do acidente, talvez um pouco mais, eu encontrei com ela por aí. Eu vi na hora que ela tava precisando de ajuda, então chamei ela pra sair, tomar um café, essas coisas. Nós ficamos amigas quase que naquele mesmo momento. Que legal. – Diz animada. – Mas por aí onde? Não lembro bem, mas acho que foi no metro. Que engraçado. – Sorri. É sim, daí eu a ajudei a se reerguer, e no fim deu no que você ta vendo, sua tia é bem e feliz. Um pouco antes de a gente se conhecer ela havia inclusive pensado em tirar a própria vida. Sério? – Totalmente surpresa, não imaginava que sua tia pudesse fazer algo assim. Aham, naquele tempo ela tava muito mal, mas vê como as coisas estão hoje. Suicídio nunca é solução. – Nisso o interfone toca, Aniel se levanta, atende, o porteiro queria confirmar se o pedido de Chine in Box realmente havia sido feito. A comida está subindo. – Desliga o aparelho. – Roji por que você veio passar esses dias aqui com a Clarisse? – Aniel estava curiosa, não sabia da existência da garota até aquele dia. Eu já morei aqui em Nova York quando era mais nova, mas minha mãe nunca gostou de sair do Japão. Eu sempre quis voltar só pra recordar e nesse ultimo natal a tia me convidou pra vir passar esses dias aqui. Interessante... – Na realidade não era. Lembranças A porta do apartamento foi aberta, Aniel entra. A luz estava acesa, mas não havia necessidade, o sol clareava todo o lugar com facilidade, apagou a lâmpada e caminhou até uma 28 mesa baixa em um dos cantos, uma pequena folha de caderno lutava contra o vento para ficar em cima de sua superfície, toma o papel em suas mãos e o lê, uma carta de suicídio. “Minhas ultimas palavras... Não suporto mais essa vida, quero morrer, me livrar de tudo isso, quero ter paz! Quero ficar junto dos meus pais... Gostaria que meu irmão estivesse aqui, sinto saudades... Mas não agüento mais! Tiago, você sabe que eu o amo, quero que tudo de certo para você, não me condene pelo que eu fiz, lembre­se de como eu era. Beijos... Clarisse O’nagata” Pos a carta onde estava, já havia lido melhores. Retomou sua atenção ao lugar em volta, uma pequena sala com três poltronas, duas portas e uma pequena mesa, muito simples. A tinta nas paredes encontrava­se um pouco descascada em várias partes, o que dava ao lugar com uma aparência deprimente e horrível. Em cima de uma das poltronas havia algo como um fio ou um cabo, Aniel se aproximou para ver melhor, uma corda sintética. Olhou para o teto, nada de anormal, continuou caminhando até a janela, o sol irradiava sobre toda a cidade com muito esplendor entre as poucas nuvens. Os prédios brilhavam como nunca e o mar estava tão tranqüilo quanto um lago deserto, algo muito bonito de se ver. A loira ficou vários minutos, ali, apreciando a paisagem em volta, seus cabelos balançavam suavemente com a brisa quente que vinha do calmo Atlântico. Estava tão concentrada olhando ao horizonte que não notou quando a porta a suas costas se abriu, uma mulher entrava silenciosamente, mas diferente da outra não havia como não perceber Aniel apoiada na janela. ­
Como você entrou aqui? – Ao ouvir a voz tremula vinda da porta volta à realidade, havia algo a ser feito, então se vira para ver a pessoa esperada. Perto do sofá estava ela, parecia ter seus vintes e poucos anos, de cabelos castanhos não muito compridos e pele muito pálida. Seu rosto abatido dava­lhe uma expressão doentia, magra e fraca, seus finos braços seguravam uma sacola. ­
Clarisse, você não me reconhece? – Da alguns passos em direção a outra. ­
Ah claro, me desculpe, é que não tenho estado muito bem ultimamente. – Abaixa a cabeça timidamente. ­
Então, o que você tem ai? – Fala descontraída olhando para a sacola, talvez não fosse a hora. ­
Bem, um martelo, alguns pregos e um gancho. – Sua voz fraca e insegura mal pôde ser ouvida. ­
Você pretende pregar esse gancho no teto, não é? – A outra confirma balançando a cabeça. – E como você pretende pregar isso lá? Não vejo nenhuma escada nem nada que a ajude. – Clarisse não respondeu, apenas olhou em volta. Notando que nada ali poderia ajudá­la a fazer isso e também sem se lembrar de qualquer coisa no apartamento que a fizesse alcançar o teto, seu rosto ficou levemente corado. – Não precisa ficar assim. Não era uma boa idéia mesmo, alguns pregos não iam agüentar seu peso. ­
Mas... – Lágrimas escorrem por suas bochechas. – Não consigo fazer nada direito, nem mesmo isso... ­
Procure outro jeito você sempre foi tão criativa. – Porem essas palavras não teve o efeito desejado, Clarisse cai no chão de joelho e começa a chorar. 29 ­
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Eu não consigo, eu não consigo... – Fala aos soluços. – Eu sou uma idiota! – Bate com umas das mãos no chão. Olha, você não precisa fazer isso. – Pela primeira vez a voz de Aniel mudou de tom, calmo como antes, mas cheio de ternura. – Suicídio não é solução... Mas o que eu posso fazer? Não presto pra nada... Perdi tudo que amava, não tenho mais ninguém... – Mal podia ver as expressões no rosto da loira de tantas lágrimas que preenchiam seus olhos. Eu entendo, mesmo sabendo que isso não é totalmente verdade. Mas acredite, tudo que você precisa é de ajuda. Pegue isso. – Entrega a mulher um cartão. – É um amigo, vai ajudá­la. – A outra pegou o pequeno pedaço de papel, limpou as lágrimas com sua camisa e o olhou fixamente. – Quero que você vá lá agora, diga que a Aniel mandou você, ele irá saber o que fazer, eu também irei saber se você não for. Ir agora? – Não chorava mais, só soluçava. Saber que ainda era possível passar por tudo isso a acalmava. Sim agora, e eu vou voltar, lembre­se disso, nem sempre sou tão legal assim. – Sorri. Mas eu... – Olhou para a outra, mas não conseguiu acabar a frase. A estranha loira não estava mais ali. 30 Sem escolha, sem remorso I T​
rês meses depois Chove forte, as pesadas gotas batem violentamente contra as janelas da suíte de Aniel no Algonquin Hotel, hoje faz uma semana que havia deixado a casa de Clarisse, gostaria de ter ficado mais tempo, mas isso não era possível. Estava deitada na cama, sob os pesados edredons, não sairia da li tão cedo. Tentava dormir, mas não conseguia. Mesmo com o único som no quarto ser o de sua calma respiração e o relaxante barulho da chuva lá fora, não conseguia pegar no sono, como se fosse obrigada a se manter acordada, pois algo ia acontecer. Passa dez minutos se virando sobre as cobertas até que o telefone toca, fica alguns segundos olhando para o aparelho, ninguém sabia que estava ali, somente Clarisse, mas sua intuição dizia que não era sua amiga. Curiosa atende. ­
Alô? ­
Aniel, é você Ani? – A voz lhe soava familiar, mas não a reconhece de imediato. ­
Sim, sou eu, quem fala? ­
Ani, sou eu, a Rochel, lembra? – Ao ouvir o nome recorda­se imediatamente, antiga colega, não a via há mais de dez anos, desde que deixara Berlim. ­
Claro Ro, claro que lembro, mas faz tanto tempo que não reconheci na hora. – Uma alegria quase infantil toma conta dela, era como se por um momento a humanidade deixasse de tragá­la, era livre. ­
É, faz dez anos não faz? – Sua voz não é calma como deveria, algo a transtornava. ­
Sim, faz dez anos, a última vez que nós nos vimos foi em Berlim, lá no Gagarin, lembra? ­
Lembro sim, foi lá mesmo. Olha Ani, eu queria muito falar com você, será que tem como a gente conversar ainda hoje? – Soava ansiosa, devia ser algo grave, então prontamente a loira concorda. ­
Claro, parece ser algo serio pela sua voz. – Começa a ficar preocupada. ­
É meio importante sim, tentei falar com a Mihael, mas ela ta em algum lugar lá em São Francisco, e a Aséalia ninguém sabe dela. Você foi a mais próxima que encontrei. ­
Certo, e onde a gente se encontra? – Lembra novamente de Aséalia, não a via há muito tempo, sentia saudades. ­
Não sei, cheguei agora aqui, não conheço mais essa cidade. ­
Você já tem ta em algum hotel? 31 ­
Não, ainda não, to no aeroporto, no JFK. ­
Certo, não sai daí, eu te pego e já te deixo em um bom hotel. ­
Ok, vou ficar aqui te esperando. – Parece mais tranqüila agora. ­
To indo aí, não demoro pra chegar. Té Ro. ­
Obrigada amiga, tchau. – Desliga o telefone. Rapidamente saí debaixo das quentes cobertas, não podia deixar Rochel esperando muito tempo, caminha até a janela do quarto, pelo visto continuaria a chover por um longo tempo. Liga o chuveiro, em um dia como esse gostaria de ficar horas com a água quente escorrendo por todo seu corpo, apenas relaxando, mas hoje não. Toma um rápido banho, se seca com a mesma agilidade de uma gata Sphynx e em menos de vinte minutos já esta pronta para sair. Quando pega as chaves do carro alguém bate a porta, “Estranho...” pensa, não havia pedido nada. Curiosa vai até a porta, olha pelo olho­mágico, do outro lado encontrava­se a jovem Letícia. A garota parecia muito impaciente, jogando o peso de seu corpo de um pé para o outro enquanto espera. Abre a porta, e novamente ela entra em seu quarto sem pedir licença, mas dessa vez não estava zangada, a garota parecia muito tensa e cheia de angustias. ­
Ani enfim te achei! – Fala ao abraçar a loira. ­
Letícia? Aconteceu alguma coisa? – Não havia como deixar de notar que algo estava errado. – E como você me achou? – Essa não era uma tarefa difícil na realidade, Aniel não havia feito nada para se manter no anonimato, já faz muito tempo que havia deixado de lado a vida furtiva. ­
Eu vi seu mustang estacionando aqui há alguns dias. Ani a gente tem que conversar. – Deixa os braços da loira e caminha na direção de um dos sofás do quarto. ­
Olha Lê, agora não da, não pode ser outro dia? To indo pegar uma amiga no aeroporto. – Volta até a mesa e pega as chaves do carro. ­
É importante Ani... – Não dúvida da importância do assunto, mas o que Rochel tinha a dizer com certeza era mais urgente. ­
Olha agora não tem como mesmo... – A olha nos olhos, Letícia realmente está preocupada, quando a garota ia voltar a insistir no assunto, Aniel que não queria perder mais tempo volta a falar. – Olha Lê, vem comigo, a gente conversa no carro. – Satisfeita a mais nova concorda. ­
Certo. – A duas saem do quarto a passos rápidos. O trafego estava intenso devido à forte chuva, Aniel dividia sua atenção entre a estrada a sua frente e Letícia, que falava muito depressa e sem pausas, o som das gostas pesadas sobre o metal frio atrapalham ainda mais a compreensão do que a garota dizia. ­
Letícia, começa tudo de novo, não entendi nada do que você disse. Respira um pouco e fala com calma. – A garota pára na mesma hora, respira profundamente e volta a falar. ­
Ani, você tem que conversar com o Luis, ele ta estranho de mais, desde que aquilo aconteceu... Ele não ta falando nem mais com o papai e faz uma semana que não vai trabalhar. ­
Eu não tenho mais o que dizer. Ele tem que superar isso e seguir em frente. – Agora mais do que nunca Aniel sabia que não devia ter deixado seu relacionamento chegar até aquele ponto. – Ele devia ter notado... ­
Mas você não entende? Ele ti amava, o Luis queria você do lado dele pro resto da vida! – Começa a lacrimejar. 32 ­
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Faz parte da vida sofrer. Decepções acontecem com todo mundo. – Aniel acelerava o máximo possível, o que deixaria Letícia preocupada se ela não estivesse tão abalada. Você é uma cadela mesmo, sabia? – Fala indignada, a loira não fala nada, apenas sorri para a outra, o que deixa a garota ainda mais irritada. Nenhuma delas volta a falar até que o carro para no aeroporto John F. Kennedy. Letícia, fica aqui que eu já volto. – Não responde, apenas vira o rosto e olha pela janela embaçada. 33 II Aniel caminha devagar entre as várias pessoas e suas malas. A chuva havia atrasado alguns vôos o que deixou o aeroporto um pouco mais cheio que o normal. Fazia muito tempo que não entrava em um aeroporto, já não lembrava como eram movimentados e barulhentos. Desanimada pára de procurar por um instante, demoraria muito para encontrar sua amiga Rochel desse jeito. Olha em volta inúmeras vezes, podia estar em qualquer lugar. Quando voltava a caminhar seu celular toca, rapidamente atende. ­
Sim? – Esperançosa. ­
Ani, você já chegou? – Rochel não parecia mais preocupada, falava com a mesma serenidade que a loira recordava de seu encontro em Berlim. ­
Já cheguei, to aqui perto do balcão de informações, onde você ta? ­
Certo, eu estou perto, espera aí que eu te encontro. – Desliga o celular. Volta a procurar Rochel com os olhos, então após apenas alguns segundos a loira nota sua amiga, e não entende como não havia conseguido vê­la antes. Rochel se destaca da multidão facilmente devido a sua extrema beleza. Seus longos cabelos ruivos de tom alaranjado balançam suavemente a cada passo de um modo tão perfeito que não ocultava o rosto em nenhum momento, seus olhos castanhos, penetrantes, fitam Aniel com alivio, sua boca carmim sorri ao ver que a outra também estava feliz em vê­la. Mesmo com uma aparência tão extraordinária a ruiva parece não chamar nenhuma atenção, ninguém a olhava, Rochel se movia como um fantasma em meio a multidão anônima. ­
Rochel, você está... – Olha para a ruiva, não lembrava de como era fabulosa. Seu corpo perfeitamente moldado usava um elegante Donna Karan vermelho, em uma das mãos segurava uma pequena mala. – Fantástica. ­
Você também Ani, você está mais linda do que nunca. – Abraçam­se, ficam unidas por um longo tempo. – Ai Ani, você não sabe como é bom te encontrar, esses últimos dias foram terríveis pra mim. ­
Não pensa nisso, agora ta tudo bem. Vamos lá, meu carro ta aqui perto. ­
Carro? ­
É. Você sabe que eu gosto deles. – Quando começa a caminhar lembra­se de Letícia. – Ah Ro. – Fala se virando para a outra. ­
Sim? ­
Tem uma amiga minha no carro, então deixe o assunto para mais tarde, certo? – Sorri um pouco constrangida. ­
Claro Ani, como quiser. Letícia esperava fora do carro, havia ligado o radio para passar o tempo e cantarolava a melodia de ​
Hung​
​
up​
que tocava naquele momento, ao ver Aniel se aproximar volta a entrar no veiculo e a franzir a testa numa atitude totalmente infantil. Ao notar isso Rochel volta a falar. ­
Essa é a garota? Ela é sempre assim? – Pergunta com uma feição que a loira acha ligeiramente engraçado, algo entre a curiosidade e o riso. ­
Sim, essa é a Letícia, ela é...uma amiga, mais ou menos, mas ela não é sempre assim não. – A outra a olha não entendendo muito bem. – É uma longa história, depois te conto. 34 Com a mesma rapidez que havia chego, o mustang deixa o aeroporto. O tempo havia piorado ainda mais, no entanto isso não fez com que à loira dirigisse com cautela, continuava a acelerar, queria que seu precioso carro ficasse o menor tempo possível em baixo da pesada chuva. Cinco horas da tarde, as três entraram correndo no saguão do New York Palace Hotel, lá fora a chuva castigava a todos. Fazia alguns meses desde que Aniel havia deixado o lugar, sua bela arquitetura e a tímida amizade criada com alguns funcionários deixavam saudades. Após rever alguns colegas Ani e Letícia seguem para o Oak bar, no primeiro andar do hotel, enquanto Rochel acertava os detalhes de sua hospedagem, para logo se juntar a elas. ­
Desculpa por não ter te deixado em casa Lê, mas com essa chuva... – Fala enquanto senta em uma das mesas do histórico bar. ­
Tudo bem, mas Ani, mas quem é essa sua amiga? – Ainda continua chateada, porem a curiosidade agora tinha mais força. ­
É uma conhecida, do tempo que eu morava em Berlim. – Responde despreocupada. ­
Você morou em Berlim? Mas isso foi ha quanto tempo? – Mais curiosa. ­
Uns dez anos. – Aniel olha a carta de vinhos sem se importar muito com as perguntas da mais nova. ­
Puxa que legal. Vocês eram amigas quando pequenas – solta uma suave risada – vocês deviam brincar juntas então, deve ser muito bom revê­la. ­
É... Lê você prefere vinho tinto ou branco? ­
Aniel, eu ainda não posso beber, tenho só dezessete. – Ruboriza levemente. ­
Hmm... – Encara Letícia por alguns segundos. – Certo, como se isso fosse algum problema. – A outra fica um pouco mais envergonhada. – Sei que você gosta de sair para beber com suas amigas nas sextas. ­
É... Mais eu não gosto muito, viu pela companhia. – Abaixa a cabeça timidamente. ­
Tudo bem. Vou pedir uma Coca pra gente, afinal ainda ta cedo para se beber algo alcoólico, não é? – Sorri, e antes que a garota pudesse responder Rochel entra no bar e juntasse a mesa. – Tudo certo lá Ro? ­
Aham, sem problema algum, como sempre. – Responde sorrindo. As bebidas são entregues e a conversa continua, a mais nova se mostrava muito curiosa sobre Rochel e sua relação com a ex­namorada de seu irmão, sentia que através dela talvez descobrisse algo sobre a misteriosa Aniel. ­
Ro, você é de onde, seu sotaque não tem cara de ser da Alemanha. – Pergunta Letícia após terminar sua lata de Coca­cola. ­
Eu não sou alemã não, nasci na Noruega, mas minha família toda é de Idaho. ­
A Ani é da Suíça, e você da Noruega, o que vocês duas estavam fazendo em Berlim? ­
Sabe como é a Europa, continente pequeno. – Fala Aniel levemente desanimada, mas não a ponto da garota notar. ­
E você trabalha com o que Rochel? ­
Eu sou modelo, mas só atuo na Rússia. Não gosto de sair de lá a trabalho. – Pede mais uma taça de vinho para um dos garçons que passa. ­
Ia ser realmente um desperdício se você não fosse modelo mesmo, nunca vi uma ruiva tão linda quanto você. ­
Obrigada, você também é muito linda, se um dia você for a Rússia eu te apresento ao meu agente. – Sorri. 35 A conversa continua até o ocaso furtivo, não chovia mais, mas as pesadas nuvens ainda pairam pela grande maçã. Letícia havia tentado inúmeras vezes durante toda a tarde descobrir algo interessante sobre o passado de sua enigmática amiga, mas sem sucesso, Rochel não era tão vaga quanto à outra, mas também não contava nada de realmente interessante. ­
Lê, já ta de noite, você não quer que eu a leve em casa? ­
É já ta tarde, mas não precisa me levar não Ani, eu pego um táxi aqui em frente. – Olha para a noite lá fora e continua. – Acho melhor eu ir agora mesmo, não quero levar bronca. ­
Foi um grande prazer conhece­la Letícia. – A bela ruiva se despede com um beijo no rosto da garota. ­
Eu posso falar o mesmo. – Diz ao ficar de pé. – Bem até qualquer hora, tchau pra vocês. – Deixa o bar para casa. 36 III As taças são novamente cheias, Gato Negro Cabernet Sauvignon, a loira olha por alguns instantes o belo roxo do vinho antes de tomá­lo, Rochel a observa vagamente, com a taça entre os dedos. A ruiva ainda sentia medo pelo que havia ocorrido, o motivo de sua visita tão repentina. Toma um gole suave, como se apenas molhasse seus lábios, põe a taça sobre a mesa, acende um cigarro, agora é Aniel que a vê levar com delicadeza o vício até a boca, nisso começa a falar. ­
Você sabe que isso mata, não sabe? – Por pouco tempo parecia que falava serio, mas logo começa a rir levemente, a ruiva a acompanha com suas doces risadas. ­
Ani, você não era engraçada assim. Não mesmo. ­
É, as coisas mudam... – Seu olhar vai ao vazio, lembrava de como antes tudo era diferente, quando os dias pareciam ter trinta horas, onde nada a preocupava e as risadas não cessavam. ­
Sim... Agora Ani, eu te procurei porque aconteceu uma coisa há algum tempo. – Sua voz começa a ficar mais baixa, temendo que alguém pudesse ouvi­la, ou mesmo medo de suas próprias palavras, como se fossem tão profanas que não deveriam ser pronunciadas. ­
O que aconteceu? – Volta a se preocupar, em seu coração sabia exatamente o que havia ocorrido e isso a apavorava. ­
Foi em uma terça, três semanas atrás, eu tinha acabado um trabalho, nada de anormal, mas quando eu voltava pra casa... – Sua voz baixa se transforma em um suave sussurro somente ouvido por Aniel, que fica pasma com o que escuta, levando sua mão a boca em choque, Rochel permanece em silencio por alguns instantes observando a amiga, até que volta a falar. – Eu sei Ani... – Sua voz agora normal já podia ser ouvida com clareza, mas era tremula e insegura. ­
Não... – As palavras não saem seus medos a tomam por inteiro. ­
O que você acha que esta acontecendo? – Leva a taça à boca e toma todo o vinha de uma única vez. – Heim Ani? ­
Não sei, mas acho que é pior do que você imagina... – Agora era ela que sussurrava. ­
Como assim? – Sua surpresa foi tamanha que ainda mantinha em sua mão a taça vazia perto da boca. ­
Há três meses, uma coisa parecida aconteceu comigo... – Rochel nada fala, apenas põe lentamente o cristal novamente sobre a mesa, abaixa sua cabeça e fecha seus os olhos. A ruiva não sabia o que dizer, algo realmente ruim estava acontecendo e provavelmente todas estavam envolvidas. ­
Será que foi só com a gente? – Pergunta com extrema dificuldade para confirmar seus receios. ­
Não sei, mas acho que por enquanto sim, lembro que falei com a Mihael alguns dias depois que aconteceu, mas não lembro da conversa direito. – Revirava sua mente tentando se lembrar das preciosas palavras de sua amiga, mas não conseguia nada. ­
Como assim, você não consegue se lembrar? – Olha confusa para a amiga. 37 ­
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Não consigo, não sei por que, isso nunca tinha acontecido... Mas ultimamente eu tenho tido alucinações, e às vezes desmaio, ou algo do gênero... – Novamente a outra apenas abaixa a cabeça sem palavras. Deus... 38 IV Aniel não consegue dormir, as palavras de sua amiga vagam por sua mente, divagava sobre o que ocorrera nesses últimos meses, tudo era muito confuso. Uma, duas, três horas se passam até o sono finalmente surgir, quando seus olhos começaram a ficar pesados e os pensamentos a sumir, uma recordação lhe vem à mente, como se alguém houvesse sussurrado em seus ouvidos, uma lembrança perdida, de alguns anos atrás, quando havia ido a Paris visitar Aséalia, uma das ultimas vezes em que a havia visto. Lembranças A noite era extremamente agradável, apenas uma brisa ocasional perturbava as pequenas chamas de algumas velas que iluminavam um simples bar na periferia de Paris. Tomava café, preto com creme, a sua frente Aséalia, morena de cabelos cacheados, olhos como esmeraldas, sua pele bronzeada fazia seu corpo exuberante reluzir quase como ouro mesmo a noite. A amiga começava a imitar o jeito que ela falava francês, Aniel se segurava pra não rir da debochada companheira e acabar por derramar café em seu John Galliano branco. Conversavam descontraídas, riam muito e não notavam as horas passarem. ­
Pára de falar besteira. – Disse a loira segurando as risadas. – Já quase derramei café em mim umas três vezes. ­
Ainda não derramo? Então to fazendo algo errado. – Sorri Aséalia. ­
Bobinha. – Mais algumas risadas e alguns goles de café e Aniel volta a falar. – Linda, porque você veio pra cá? Você não tava na Bélgica? – Perguntou curiosa. ­
É, eu ainda moro lá, mas tive que vir aqui pra ver umas coisas. – Sua voz já não era tão alegre quanto antes. ­
Algo importante? ­
Dá pra dizer que sim, mas nada de mais. – Pede mais café para o garçom. ­
Aséalia tem como você dizer o que é? Você parece preocupada. ­
É que foi algo meio estranho, uma amiga me procurou, disse que tinha que falar comigo urgentemente, e você sabe que quando me procuram a coisa é séria. ­
Foi alguma de nós? – Não soube o que podia ter acontecido para chegar ao ponto de chamá­la. ­
Sim, mas não era nada grave não, a Royel ouviu uns boatos, mas não era importante, ela se preocupou de mais e sem motivos. ­
Deve ter sido algo sério, ela não iria te chamar por nada, eu a conheço bem, a gente passou um bom tempo em Bruxelas, ela não te chamaria por nada. – Aniel não acreditava nas palavras da amiga, sentia que tentava esconder sua real preocupação. ­
Ah Ani, vamos esquecer isso, te garanto que não era nada com que você deva se preocupar. ­
Tudo bem, tudo bem, mas acho isso muito estranho... 39 Acorda cansada, a noite não havia sido tranquila, sua cabeça latejava muito, seu corpo estava encharcado de suor, assim como seus lençóis e sua camisola. Não entendia como havia suado tanto durante as poucas horas de sono. Olha para o relógio, dezesseis e treze, tão tarde? Sentia como se tivesse apenas dormindo uma ou duas horas, com certeza algo estava errado. Caminha até o banheiro, liga o chuveiro, no memento em que sua camisola cai sobre o frio chão de azulejo do banheiro toca o telefone. Desanimada e seminua caminha sonolentamente até o aparelho barulhento, atende. ­
Sim? – Resmunga ao telefone. ­
Ani? É você? – Reconhece facilmente a voz do outro lado, Letícia. ­
Sou eu sim Lê, o que foi? – Começa a despertar. ­
Você tá bem, aconteceu alguma coisa? – Estava preocupada, seu jeito ainda infantil deixava transparecer facilmente suas emoções. ­
To bem sim, não aconteceu nada, por que dessa preocupação toda? – Curiosa. ­
Como assim, Ani? Eu te liguei três dias seguidos e você nunca atendia, o hotel me disse que você não havia saído do quarto, pensei que podia ter acontecido algo... ­
Do que você ta falando? Três dias? – Não acredita no que ouve, não poderia ser verdade. ­
É Ani, o que aconteceu? Ani? Aniel? Aniel você ainda ta ai...? O telefone cai de sua mão, ainda consegue ouvir a voz da garota vindo do outro lado da linha, mas a loira fica sem reação. Sentindo­se tonta senta na cama, suas mãos apóiam o rosto, cotovelos sobre os joelhos, não consegue raciocinar, sente medo. Fica alguns minutos ali, mas logo se acalma, volta ao banheiro, tomaria um demorado banho, precisava pensar. Desliga a ducha lentamente, pega uma toalha, começa a secar­se. Enquanto se arruma pensa no que havia acontecido, mas não entende, não consegue compreender o motivo de tudo que vem acontecendo, no entanto tem certeza de algo, Aséalia sabe o que se passa, precisa falar com ela, mas como encontrá­la? Pega seu celular sobre a mesa, tinha que se encontrar com Rochel. Liga, ninguém atende, tenta mais algumas vezes, nada acontece, falaria com ela mais tarde, agora precisava sair, já esta atrasada. 40 V Brooklyn dezoito e quarenta, o Sol já começava a se pôr no horizonte, sua luz alaranjada driblava sutilmente alguns prédios até finalmente bater em um velho edifício de poucos andares, no entanto isso não importava, ali dentro ele nunca brilhava. As janelas sempre fechadas do pequeno lugar impediam a entrada do Sol e escondiam do mundo o que se passava em seu interior. Terceiro andar, devagar sobe as escadas, já consegue ouvir as gargalhadas vindas de trás da porta, seis jovens, talvez uma ou duas garotas também, não tem certeza. Toca na maçaneta, como sempre aberta. Empurra a porta. O lugar encontrava­se muito desorganizado, no chão, latas e garrafas de cerveja espalhadas por todo o lado, no meio de três sofás uma pequena mesa, sobre ela um saco de pouco tamanho contendo um pó branco, algumas giletes e duas seringas. Sentados nos móveis, seis jovens por volta de seus quinze anos, entre eles uma garota. Entra no apartamento, as risadas sessão, silêncio, todos a olham, a loira pára em frente à porta aberta a suas costas, a fecha. ­
Que viajem... – Diz o garoto mais ao fundo com a jovem em seus braços e o que ele vê é simplesmente incrível. No instante que a porta se fechou uma grande luz tomou a sala, e logo que o brilho se esvai o mesmo jovem notou que não estava mais no apartamento, assim como seus amigos. Encontravam­se agora em um lugar ensolarado, como uma praia paradisíaca, podia sentir a areia clara e fofa sob seus pés, sente a brisa fresca bater suavemente em seu rosto trazendo um estranho gosto de maresia para seus lábios. Ao longe consegue observa algumas palmeiras contorcendo­se em parafusos. No topo do céu onde deveria estar um redondo Sol brilhante havia no lugar três relógios em formação triangular, os dois das pontas estavam com os ponteiros parados, cada um deles em um horário diferente, somente o do meio corria. E logo à frente o garoto vê o ser que acabara de entrar, uma criatura alta, de aspecto feminino, ostentando uma capa com desenhos arcanos que lhe cobre o corpo todo, dando voltas ao seu redor símbolos prata, flutuando como anéis em torno de um planeta. Seu rosto é excessivamente belo, olhos azuis de um brilho intenso, como se chamas ardessem em seu interior, sua boca e nariz, perfeitos assim como seus cabelos loiros, lisos e compridos que iam até a cintura. Em uma das mãos carrega um grande livro, na outra uma escolha. ­
Volta aqui Aron, eu ainda não terminei. – Fala sorrindo a garota entre os braços do rapaz assim que esse desvia o olhar da figura a frente. Rapidamente ela amarra seus cabelos e volta a beijar o garoto ao seu lado. A mulher caminha mais alguns passos em direção ao centro ainda sobre os olhos da maioria, então se vira para um dos garotos à esquerda, aparentava ser o mais novo. Ele a olha pasmo, com uma das mãos o toca no rosto e lentamente direciona seu olhar para o casal se beijando no outro sofá, ao ver a face do jovem mudar de expressão começa a falar. ­
Veja Carlos, seu próprio irmão... – O acariciava em um gesto maternal. A raiva dele só aumenta, olha novamente para a criatura a sua frente, sente dificuldades de vê­la claramente, sua beleza o ofuscava, porem consegue notar que os símbolos prata agora se moviam mais rapidamente. – Vamos Carlos. – Apontava para os dois. 41 Sim. – Diz ao se levantar. Os outros três só observam sem ação, então que algo surge no céu. Logo ao primeiro olhar paralisam de medo, nada em suas mente podia prepara­los para isso, viam uma “criatura” nefasta, negra como a noite, meio sólida, meio etérea, seu corpo lembra vagamente um polvo, vinha pelo céu, voando como se nadasse, tão horrível e disforme que só poderia ser de um cosmo tão antigo quanto à própria vida. Ao se aproximar do casal a besta começa a falar. ­
Siiim! Siiiim!​
– Sua voz abissal soava como uma flauta desafinada em um velho rádio com interferência. Carlos parece não notar a besta sobrevoando os dois a sua frente, só tinha olhos para a “mulher” agora ao seu lado. ­
Faça. Vamos! Ele sabia que ela era sua, ele sabia! – O garoto concorda com a cabeça, se abaixa e pega algo sob a pequena mesa, uma pistola 9mm, aponta para o casal, eles nada percebem. ­
Agora! Agora! ​
– Grita a besta com sua voz infernal, Carlos ainda estava cego sobre a criatura, mas obedece, como se a ordem fosse na verdade um instinto profundo. A arma dispara, a morte é rápida, a bala atinge a cabeça de seu irmão sujando tudo em volta com pedaços de cérebro e sangue. Lentamente a garota se afasta do corpo que vagarosamente desliza pelo sofá. Sua mão tremula vai até ao rosto, passa­a sobre a face e a olha, quando finalmente percebe o que aconteceu, que todo o sangue em sua mão e em seu corpo é de Aron, um grito de pavor surge em seu interior, no entanto assim que sua boca se abre para liberar seu berro de pavor a pistola dispara novamente a atingindo no peito sem vacilo. Algumas gotas de sangue caiem sobre suas coxas, a voz não sai, apenas sangue. Sua respiração se torna extremamente difícil, a garota olha para baixo, um rastro de sangue desce lentamente por sua blusa, aumentando a cada batida de seu coração. Com dificuldades levanta a cabeça, vê Carlos ainda com arma apontada em sua direção, tenta falar algo, inutilmente. Fecha os olhos em seu último suspiro, o corpo fraco vai ao chão, cai morta. ­
Isssso garoto!!​
– A criatura voa freneticamente sobre os corpos dos dois jovens, a loira a poucos metros dali apenas observa, sendo impossível dizer o que sente, seus olhos não deixam transparecer nenhuma emoção. Um passo é dado na direção de Carlos, seus belos braços o envolvem num abraço que poderia ser carinhoso se fosse possível dizer que a mulher realmente tinha algum sentimento. A besta continua a passar sobre os mortos, mas subitamente para, seu corpo esquálido se abre na forma de um manto que lentamente cai sobre os dois, até cobri­los completamente. Uma melodia desafinada e bizarra ecoa pelo lugar, porem logo some assim como a esquálida criatura. ­
Deus... – Balbucia Carlos ao ver o corpo de seu irmão estirado sobre o sofá, finalmente consciente do que fez. A loira se aproxima dos mortos e olha atentamente para cada um deles, depois observa os outros garotos nos sofás, todos desacordados. Começa a falar. ­
Como você pode ter feito uma coisa dessas, ele era seu irmão... – Ajoelha­se perto da garota e delicadamente solta seus cabelos. ­
Mas...eu... – Olha para a arma em suas mãos, não podia acreditar que realmente havia feito aquilo, seu equilíbrio é abalado, rapidamente apóia­se com o braço no sofá para continuar de pé. Todo o estranho lugar a sua volta começa desaparecer como se fosse levado suavemente pelo vento dando lugar novamente para o desorganizado apartamento. ­
Você sabe o que deve fazer. – Caminha até ele novamente. ­
Eu não queria, eu não queria... – Lágrimas escorrem por seu rosto. ­
42 ­
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Você sabe o que deve fazer! – Seu tom agora se torna autoritário, levanta o rosto do garoto e o faz olha­la nos olhos. – Não quero ter que falar de novo. – O solta. Acho que não tenho escolha... – Mais uma vez olha a arma, seu cano ainda estava quente devido ao seu recente uso. Você sempre tem escolha. – Carlos a olha, ela o encara por um curto tempo, depois começa a caminhar em direção a saída. Vira a maçaneta, abre a porta, passa pelo arco quando ouve mais um tiro vindo de dentro do apartamento, vira­se para ver o garoto indo ao chão sem vida. 43 VI Pega seu celular, tentaria mais uma vez, espera, mas como antes, nada acontece. Rochel não atendia a nenhuma de suas ligações, resolve ir onde a amiga se hospedara, precisavam conversar. Quatro e vinte da amanhã, Aniel chega sem demora ao Palace Hotel, quase não havia trafego nas ruas. Para seu mustang 65 onde tantas vezes já tinha estacionado, sai do carro, segue rapidamente para a recepção, quem a atende é uma conhecida, Roberta. ­ Olá Senhorita Aniel, em que posso ajuda­la? – Pergunta com seu constante entusiasmo. ­
Oi Roberta, uma amiga minha está hospedada aqui, o nome dela é Rochel, você pode me dizer o quarto? – Fala um pouco ansiosa. ­
Infelizmente a Senhorita Rochel já deixou o hotel. – Responde após verificar a tela de seu computador. ­
Mas já? – Surpresa. – Quando que foi isso? – Não conseguia acreditar, como ela poderia ter feito isso, sem nem ao mesmo lhe falar algo... ­
Há dois dias Senhorita, mas ela lhe deixou isso. – A garota pega um pequeno envelope e entrega para a loira. ­
Obrigada Roberta. – Aniel fica alguns instantes olhando­o antes de abrir, com um gesto tímido rasga a lateral, retira a carta. A caligrafia sem duvidas pertencia a Rochel, começa a ler. A cada palavra absorvida seus olhos cresciam, não acreditava no que estava escrito. Lê mais uma vez, incrédula. Sua mão vai coloca a carta no bolso de seu jeans automaticamente, sua cabeça não parava de pensar nas palavras de Rochel. Sai do hotel direto para seu Ford Shelby. Fica sentada atrás do volante com o carro parado por algum tempo, precisava decidir o que iria fazer. Gira a chave, da à partida, segue sem rumo pelas ruas da grande metrópole adormecida. Quando entra na Av. Amsterdã começa a sentir vertigem, sua visão começa a embasar rapidamente e tudo a sua volta parece girar, como se estivesse em um grande carrossel com as luzes da cidade dançando ao seu redor em um silencioso balé onírico. Pisa no freio bruscamente, porem não percebe seu carro parar, nem ao menos diminuir de velocidade, a mão vai instintivamente ao freio­de­mão, mas não consegue puxa­lo... No momento em que o toca sente seus pulmões queimarem de dentro para fora, sua respiração se torna extremamente difícil e dolorosa. Com dificuldades abre seus olhos, sua visão ainda era turva, mas a loira conseguia ver com clareza as luzes a sua frente começarem a formar imagens pouco nítidas de lugares bizarros e destorcidos. Ouve vozes, no entanto não as entende, como se falassem em uma língua perdida a séculos, dos tempos em que a humanidade apenas engatinhava e os deuses andavam sobre eles. A dor aumenta em seus pulmões a cada inspiração, quando achava que não agüentaria mais tudo some, todas as luzes e sons desaparecem, vê somente um grande branco a sua frente. Não estava mais no carro, não estava em lugar algum, tudo branco, vazio. Alguns passos são dados no esmo, porem subitamente pára, seu estomago começa a se contrair de forma violenta, sente a garganta arder como nunca. Fecha olhos, tenta respirar fundo para relaxar, mas 44 a dor ainda a consume por dentro. Levanta a cabeça, tenta enxergar algo em volta, vê somente alguns pontos vermelhos salpicados no branco à frente, mas logo desmaia. Desperta de maneira sutil, não queria acordar, a cama estava tão macia e aconchegante, gostaria de ficar ali deitada por um longo tempo, no entanto algo a incomodava, sua perna doía um pouco e também sentia uma leve dificuldade para respirar, como se houvesse algo pesado sobre seu peito. Devagar começa a abrir seus olhos, vê­se deitada em uma grande cama, um pesado edredom cobre seu corpo, em seu corpo apenas uma camisola, olha ainda sonolenta para o quarto, era familiar, mas não consegue o reconhecer de imediato. Sai de baixo das cobertas, ao tentar ficar de pé sente uma repentina tontura, se apóia em uma parede próxima para não perder o equilíbrio. Tenta caminhar, mas aos primeiros passos suas pernas explodem de dor, senta na cama, não consegue se recordar da madrugada de ontem, as lembranças são vagas e avulsas, sabia que havia ido ao Palace Hotel atrás de Rochel, mas não lembra muito além disto. Sua atenção muda de foco, ouve passos vindos de trás da porta, alguém começa a abri­la calmamente, como se não quisesse acordá­la, Aniel apenas aguarda até poder enxergar completamente seu visitante. ­
Mihael é você? – Fala surpresa ao ver sua pequena amiga de cabelos encaracolados entrar no cômodo. ­
Aniel, você devia estar dormindo. – A garota senta ao seu lado na cama e a abraça. – Que bom que você está bem, fiquei preocupada. – Afasta­se um pouco e a olha nos olhos. ­
Como assim? – Sua mente ainda estava confusa e suas memórias fugiam a qualquer intenção de recordá­las. ­
Você não se lembra? Aconteceu de novo, por isso estou aqui. – Não sorria mais, estava muito preocupada. ­
Mas como você soube? – Perplexa. ­
Você realmente não se lembra da nossa conversa há alguns meses? – Coloca a mão na testa da loira. ­
Não, não me lembro de nada, ultimamente anda tudo muito estranho... ­
Olha Ani, eu não tenho muito tempo, mas ouça com atenção, eu ainda não sei o que está havendo, acho que nenhuma de nós realmente sabe, nem mesmo Aséalia... ­
Mas... – Mihael não a deixa terminar. ­
Ouça Ani, quando você se lembrar de nossa conversa me procure em São Francisco, certo? – Fala com certa autoridade. ­
Claro Mi. ­
Ótimo, gostaria de ficar mais, mas você sabe como é, ando muito ocupada. – Coloca­se de pé e segue para a porta. – Beijos Ani. ­
Beijos Mi. – Sorri. ­
Ah Ani! – Já estava saindo quando se lembra de uma ultima coisa. – Obrigada por dar o recado a Luiza. 45 VII Ainda olhava para a porta, estava pensando no que Mihael havia dito, tentando recordar a conversa que elas haviam tido na semana em que Luis a tinha lhe pedido em casamento, mas em vão. Mais uma vez se coloca de pé, a dor em suas pernas agora é muito mais branda e após alguns passos pelo quarto já não sente mais nada. Procura suas roupas e as acha sem dificuldade, estavam dobradas cuidadosamente em cima de uma mesa perto de um grande armário que preenchia toda a parede. Veste­se com calma, não sairia por um lugar estranho apenas de camisola. Abre aporta, logo em frente vê um grande corredor com uma sala em seu fim que de tão branca chegava a brilhar, nesse instante soube onde estava, havia voltado para a casa de Clarisse. Entra na cozinha, tinha muita fome. Abre a geladeira, nada, dentro havia somente duas garrafas de Chandon quase vazias e uma barra de chocolate Hershey’s pela metade, quando fecha a fria porta ouve a voz de sua amiga a suas costas. ­
Oi Ani, já de pé? – Segura um grande bocejo. ­
Você não faz compras não Clarisse? – Fala ao se virar para a outra. ­
Ah Ani, é que não tive tempo, sabe como é, muito trabalho. – Entra na cozinha. – Mas como você ta? Heim querida? – Abraça Aniel. – Ontem você me deixou preocupada. ­
Eu to com fome... – Fala com o mesmo tom de uma adolescente ao pedir café na cama para sua mãe. ­
Eu já pedi algo, também to com fome. – As duas saem da cozinha, seguem para a sala, Aniel logo senta em um dos sofás, Clarisse fica de pé e continua a conversa. – Então Ani, tais melhor? ­
Um pouco, quando acordei tava pior... – Abaixa a cabeça, olha para o chão, volta a tentar se lembrar do que havia ocorrido, porem sem sucesso, a única memória que surge em sua mente era a de um garoto saindo de um elevador com sua mãe, provavelmente a cerca de três meses. ­
Mas querida, o que aconteceu? – Observa atentamente a amiga sentada a sua frente, ela nada falava, apenas olha perdida para o tapete branco sobre seus pés. Clarisse fica de joelhos no chão para vê­la melhor, seu semblante era triste, ia falar algo em consolo, mas o interfone toca no exato mento em que seus lábios se abrem. – Deve ser o café. Novamente de pé segue até o aparelho que toca preso a parede da cozinha, Aniel sabe que sua amiga esta realmente preocupada, assim como Mihael. Ouve um bip vindo de seus jeans, “deve ser meu celular”, pensa. Põe a mão no bolso e o retira, sem bateria, mas junto com o pequeno aparelho seus dedos também trazem um pedaço de papel dobrado, com cuidado o ajeita e o lê. Querida Aniel, desculpa ter saído da cidade sem te falar nada, mas foi preciso. Uma amiga conversou com Aséalia semana passada, agora sei como acha­la, me deseje sorte. Espero vê­la logo.
Beijos de sua amiga Rochel 46 Lentamente a carta vai ao chão, em sua surpresa Aniel deixa o papel fugir de seus dedos. Sua visão se perde na brancura das paredes da sala, pense em Rochel e Aséalia, para onde elas poderiam ter ido, o que as duas poderiam estar escondendo. Mas nada do que lhe vêm em mente a satisfazia. ­
Aniel? Aniel o café já chego, você não tava com fome? – Subitamente volta à realidade, havia se concentrado tanto em suas reflexões que chegou a não perceber mais o que se passava em volta. ­
Ah claro. – Caminha até a mesa onde tudo já havia sido arrumado por sua amiga. – Comecei a pensar aqui e não vi o tempo passar. – Clarisse que já estava sentada a olha e volta a falar ainda preocupada. ­
Ani, o que ta acontecendo com você? Sabe que pode contar comigo pra tudo. – Põe a mão no ombro da loira. ­
Ah Clarisse, queria poder falar tudo pra você, mas nem mesmo eu sei o que ta acontecendo. – Pega Algumas frutas e começa a comer, não havia notado antes que esta realmente faminta. ­
Como assim Ani? – Sua atenção no que a amiga iria dizer é tanta, que se esquecera de uma torrada que segura próxima a boca. ­
Esse tipo de coisa, você sabe, não deveria acontecer com a gente... – A loira fala de cabeça baixa, nunca havia dito de algo assim fora do circulo. ­
Que tipo de coisa? – Da à primeira mordida em sua torrada. Aniel não responde de imediato, olha para os lados e para a mesa repleta a sua frente. Evita encarar diretamente sua amiga. Pega mais alguma coisa para comer, mastiga devagar, queria ganhar tempo para pensar no que dizer, em como dizer, suas palavras tinham que ser perfeitamente medidas, nada além do necessário deveria ser exposto, Clarisse a observa curiosa esperando por uma resposta. ­
Bem, é que... – A porta do apartamento é aberta, Aniel se cala, Roji entra na sala carregando mais sacolas do que se imaginaria possível uma garota carregar. ­
Ani! Você voltou que bom! – A jovem asiática larga tudo que carregava e corre para abraçar a amiga. – Quanto tempo. ­
Bom ti ver também Roji. – Abraçam­se. – Como é que você ta? – O sorriso da garota é enorme, não poderia estar mais contente, apesar do pouco tempo que passaram juntas, Roji já sentia coma forte ligação com a loira. A asiática se junta à mesa com as outras, fala alegremente de como havia sido sua noite, Aniel presta atenção em cada palavra do que a jovem de cabelos pretos diz, mas sua tia não mostra o mesmo entusiasmo, Clarisse sabia que a amiga não continuaria a conversa com sua sobrinha ali, também duvidava que a loira voltasse a tocar no assunto. Sobre essas coisas Aniel nunca falava. Lembranças Clarisse caminhava devagar, sentia medo, não tinha certeza do que havia acontecido, lembrava de um homem loiro, ou talvez uma mulher, tudo parecia ser apenas um sonho, fruto de um rápido cochilo, ou mesmo de um desmaio devido a sua tentativa de suicídio. Mesmo agora não sabia se isso era verdade, porem o pequeno cartão em suas mão dizia o contrario. Parou em frente ao lugar indicado pelo cartão, uma pequena casa espremida entre vários 47 prédios, velha e mal cuidada, chegou a pensar se não seria um lugar abandonada. Na duvida olhou novamente o cartão, era aqui. Algumas pessoas passavam por ali, mas nenhuma parecia notar a antiga residência. Passou pelo pequeno quintal descuidado ainda mais devagar do que antes, chegou até a porta. Bateu três vezes, sem resposta. Receosa tocou a maçaneta, estava aberta. Dentro do cômodo estava muito escuro, o dia era ensolarado lá fora, mas a luz não conseguia nem tocar nas quebradas janelas, seus grandes vizinhos bloqueavam qualquer tentativa do Sol de dar as caras ali dentro, entrou. Com a porta totalmente aberta conseguia ver um pouco melhor, não havia divisões internas, só uma grande sala suja, em um dos cantos um velho sofá empoeirado, varias caixas espalhadas e uma cama de molas sem colchão no centro. Pegou novamente o cartão em seu bolso, olhou apenas de relance, esperava ver o mesmo endereço, mas o pequeno papel havia mudado, leu mais uma vez incrédula, seu coração disparara. Leu pela terceira vez ainda sem acreditar no que via, agora aparecia escrito “olhe a cama”. Sentia medo, mais do que em qualquer outro momento que sua perturbada memória podia se recordar, imaginava que iria acordar a qualquer momento, coisas assim não deveriam acontecer. Ficou parada por alguns minutos sobre a soleira, enfim fechou a porta a suas costas e seguiu para o centro. Cada passo rangia sobre as velhas tabuas. Estava parada agora perto da cama, via a armação de metal completamente enferrujada e as molas em sua maioria quebradas. Notou que embaixo havia alguns pedaços de madeira soltos, pareciam esconder algo. Clarisse empurrou a cama para o lado, retirou algumas tabuas do assoalho e feito isso viu o começo de uma pequena escada de degraus, por um momento pensou em fugir, correr para longe, mas algo a forçava a seguir em frente. Retirou o resto das tabuas que a impediam de descer e seguiu para o desconhecido. Andava com cuidado, os degraus feitos de madeira estavam frágeis e podres. Apenas uma pequena luz vermelha a guiava, era fraca, parecia estar muito longe. Os primeiros passos foram os mais difíceis, após alguns minutos de decida, a madeira foi substituída pelo concreto, e logo havia alcançado seu guia, uma pequena lâmpada de emergência no fim da escada. A sua frente uma porta de metal, tão enferrujada quanto à cama na casa, parecia ser grossa, três a quatro centímetros de espessura, parecia ser feita de ferro. Confusa se aproximou com cautela, tentou abrir, emperrada. Começou a empurrar, foi preciso fazer uma grande força para movê­la. Depois de muito esforço limpou o suor do rosto e contemplou o que a pesada porta escondia, do outro lado se estendia um grande corredor, não era largo, mas passava dos três metros de altura, seu comprimento era assustador. Clarisse não se conseguia enxergar seu fim. Durante toda sua extensão havia portas de aparência semelhantes a que ela acabara de atravessar, sobre elas pequenas placas e uma lâmpada de emergência como a que a havia guiado. “Meu Deus...” falou ao dar os primeiros passos. Novamente pegou o pequeno cartão amassado em seu bolso, em branco, não havia mais nada escrito nele, parecia que agora estava por si. Aproximou­se de umas das portas, na pequena placa acima havia um nome, Suzannah Mel’burg. Era difícil de ler, as letras estavam gastas e a luminosidade pouca, tentou abrir, trancada. Clarisse continuava a caminhar pelo grande corredor por muito tempo, não sabia quantas horas havia se passado desde que começou a descer, imaginava que umas três, talvez um pouco mais. Não agüentava mais andar, todas as portas que havia tentado abrir encontravam­se fechadas e o lugar parecia se entender ao infinito cosmo. Parou por um tempo para retomar o fôlego, sentou no chão apoiada em umas das portas, fechou os olhos e respirou fundo. “O que eu to fazendo aqui...” falou sozinha, apoiava sua cabeça com umas das mãos, tentava lembrar por que estava ali ou que estava fazendo. Alguns minutos se passaram, abriu os olhos, voltaria a seguir pelo corredor, quando levantou aproveitou para olhar o nome escrito na placa acima da porta em que havia se encostado, leu rapidamente, esperava mais um nome estranho, mas não 48 dessa vez, seu coração acelerou freneticamente, parecia que explodiria a qualquer instante, Clarisse havia paralisado de medo, na placa estava escrito seu nome. Clarisse você não vai com a gente? Clarisse? ­
Ãhn? O que? – Fala perdida. ­
Clarisse, você não ouviu nada do que eu disse? – Aniel a olha de uma maneira engraçada, Roji ao seu lado segurava o riso com usas mãos sobre a boca. ­
Desculpa Ani, tava distraída aqui com uma coisa. – Responde um pouco envergonhada. ­
Eu perguntei se você não quer dar uma volta com a gente, e ai, quer ir também? ­
Não da Ani, tenho umas coisas pra fazer, quem sabe outra hora. Aniel deixa o prédio com Roji ao seu lado, a loira não sabia se encontraria seu carro estacionado onde sempre deixava quando estava hospedada na casa de Clarisse, entra no estacionamento ansiosa, lá estava ele, seu Mustang 65, perfeito, do jeito que se lembrava. Caminha em volta do carro observando cada detalhe, abre a porta devagar e senta em frente ao volante, “Mas por que não estaria tudo certo?” pensa ao girar a ignição. ­
Então Roji, a onde você quer ir? ­
Não sei... O que você faz pra se divertir Ani? ­
Ah...eu saio algumas vezes de noite, algumas festas, mas nada de mais. – Fala levemente constrangida ao entrar na Av. Columbus. ­
Isso eu já imaginava, mas não tem algum lugar que você goste de ir às vezes assim passar o tempo? – Curiosa. ­
Meio difícil. Ando ocupada nesses últimos meses, mas a gente pode dar uma caminhada pelo centro, talvez comprar algo, o que acha? – Diz animada. ­
Claro vai ser legal, é sempre bom fazer umas comprinhas. – Ri alegremente a jovem asiática. 49 VIII Já entardecia quando Aniel estacionou em frente ao ​
The Alfred​
, edifício onde Clarisse mora, o motor continuou ligado, ainda faria mais algumas voltas pela cidade. Roji sai do carro carregando algumas sacolas, se despede da loira ao volante e corre para dentro, o porteiro a ajuda com suas compras, logo a asiática some de vista. Aniel dirige por alguns minutos, não ia para longe, mas o transito estava movimentado, pessoas de todos os lugares voltavam para suas casas após um cansativo dia de trabalho, ou saiam em busca de diversão. Para, sai do carro, estacionara em frente ao café ​
La Fortuna​
. Entra sob olhares curiosos, pede um café com creme em vez de seu habitual caputino. Precisava pensar no que faria. Pouco tempo depois o garçom deixa seu pedido sobre a mesa, toma o primeiro gole, o liquido desce pela garganta a aquecendo por dentro. Com calma coloca a xícara sobre a mesa e fecha seus olhos, não ouvia mais os sons ao redor, se concentrara inteiramente em seus pensamentos. Fica sentada por mais de uma hora ali com sua xícara entre seus dedos pensando no que fazer, toma o ultimo gole já frio, põe a porcelana novamente sobre a mesa, olha o relógio em seu pulso, quase vinte e trinta, esta um pouco tarde, voltaria para o hotel, queria ficar sozinha por um tempo. Põe­se de pé, caminha alguns passos até que ouve a suas costas uma voz familiar, imediatamente seu cérebro é bombardeado por lembranças e tomado por arrependimentos, lentamente se vira para encarar seu ex­namorado Luis. ­
Aniel? – Fala levemente esperançoso, mas somente alguém mais intimo notaria isso. ­
Luis que surpresa ti ver. – A loira sabia que esse dia chegaria, mas queria evitá­lo o máximo possível. Ele se aproxima. ­
Vi seu carro ali na frente, pensei em entrar e ver se você não estava por aqui. – A olhava por inteiro, queria relembrar de cada parte de seu perfeito corpo e de todos os momentos que haviam passado juntos. ­
É, mas eu já to saindo... – Uma grande decepção toma conta do rosto do homem a sua frente. ­
Ani, não tem como nós conversarmos um pouco, apenas alguns minutos. – Pega em sua mão. – Por favor... ­
Olha Luis, o que a gente teve foi muito bom, mas acabou, nunca mais vai acontecer, você tem que se acostumar com isso. – Solta sua mão e da às costas para Luis, ele nada fala, fica apenas parado a vendo se afastar. Entra no carro, se vira para o café, Luis a seguira e estava logo em frente ao estabelecimento, Aniel o fita por um tempo, ele ainda era bonito como no dia em que o conheceu, mas não demonstrava mais a mesma alegria de outrora, parecia muito deprimido, sua pele antes levemente bronzeada agora esta pálida e seus olhos apagados, sabia o que isso significava. Luis caminha alguns passos em direção ao mustang 65, mas a loira logo acelera e desaparece no negro horizonte. Enquanto dirigia de volta ao Algonquin Hotel, Aniel se lembra de uma frase que Mihael havia dito um pouco antes de ir embora logo cedo, “Obrigada por dar o recado a Luisa”, não 50 lembrava de nenhum recado, mas esse nome não saia de sua cabeça. “Luisa... Luisa... Luisa Samira... Luisa Alguma Coisa... Acho que era... Luiza Santrine!” Lembranças Aniel caminhava devagar, não conhecia a rua onde estava, era noite, a lua brilhava intensamente no céu sem estrelas. Tudo parecia calmo, silencioso, andou por cerca de dez minutos até ver um grande hospital a sua frente. Aproximou­se devagar, alguém estava saindo furtivamente do prédio, uma garota, pequena, cabelos compridos encaracolados, era ela. A loira começou a caminhar um pouco mais rápido, saiu debaixo das sombras das árvores e seguiu em direção a mulher do outro lado da rua, ela por sua vez ao ver que se aproximava ficou de pé em um pulo de aspecto infantil e começou a acenar alegremente. ­
Aniel! É você mesma, não acredito. – Disse contente para a loira a alguns passos de distancia. ­
Mihael, animada como sempre. – As duas se abraçam, fazia tempo que não se viam, com suas vidas agitadas ficava difícil arrumarem tempo para antigas amizades. ­
O que você anda fazendo por aqui? Pensei que você estava na grande maçã. – O sorriso em eu rosto demonstrava mais que qualquer palavra à felicidade que sentia ao vê­la. ­
Ainda to em Nova York sim, mas precisava ver você. – Aniel sentou no meio­fio assim como a outra estava há alguns segundos. ­
Entendo. – Volta a se sentar. – E você esta em quantas agora? ­ Perguntou ainda sorrindo, mas um pouco preocupada. ­
Duas só, é que eu precisava mesmo falar com você. ­
Então você vai ter todo o tempo do mundo pra conversar comigo, eu tava morrendo de saudades sabia? – Seu tom era de satisfação. ­
Eu também tava com saudades. – Mihael encosta seus cabelos cacheados no ombro da outra e volta a falar. ­
Como tão indo as coisas por lá? Espero que tudo bem. ­
Bem... – Não consegue continuar, sentia medo, não de sua amiga, mas do que ela diria quando soubesse o motivo de sua visita. ­
Ani. – A olha nos olhos. – Algum problema? ­
Há sim... – Vira o rosto levemente. ­
Pode contar, não precisa ter medo algum. – Começa a alisar os sedosos cabelos dourados de Aniel. ­
Mi, eu não sei o que aconteceu comigo há uns dias atrás... – Respirou um pouco e continuou. – Senti uma cólica muito forte e tossi sangue também. – Ao ouvir isso Mihael paralisou, seu espanto assustou ainda mais Aniel que já estava se preocupando com isso há dias. – Tudo bem Mi? ­
Não esperava nada assim... – Emudece por uns segundos. – Foi a primeira vez que aconteceu? – Pergunta séria. ­
Sim, mas não entendo o porquê. ­
Nem eu, nem eu... – Sua visão foi ao vazio enquanto pensava sobre o assunto, Aniel fica em silencio até sua amiga voltar a falar alguns minutos depois. – Aniel... 51 Fala Mi. Não tenho resposta pra você sobre isso, não agora pelo menos. – Seu sorriso voltara. ­
Já imaginava algo assim, mas não fica preocupada, não deve ser nada de mais. ­
É, não deve ser nada, mas qualquer coisa você me procura de novo, certo? Mas me procura mesmo. ­
Mas é claro. – Aniel se levanta e estende sua mão para a amiga, que faz o mesmo com sua ajuda. – Bem, vamos esquecer isso, que tal uma caminhada? ­
Ótima idéia! – Falou aos pulos. – Hoje to elétrica não quero ficar parada! – Aniel solta um riso tímido, algo raro. As duas começam a caminhar pela deserta rua, seus passos ecoavam no silencio, quietude que só era abalada pelo leve balançar das árvores ao vento. Nenhuma delas sabia para aonde iam, mas em um simples passeio descontraído como esse, tal coisa não importava. Mihael aproveitou a companhia da amiga para lhe contar todas as suas novidades, mas ela estava curiosa para saber o que a outra havia feito nesses dois últimos anos, tempo em que não haviam se falado. ­
Então Ani, eu já lhe disse o que eu andei fazendo, o que na realidade não foi nada de mais... Esse ano foi muito cheio, quase não tive folga. – A outra a observava atentamente, prestando atenção em cada palavra que dizia. – Mas e você Ani, o que tem feito? Ainda ta namorando aquele cara lá? – Pergunta curiosa. ­
Ah... – Suspira. – Parece que esse namoro vai ser minha sina... – Aniel não queria nem lembrar do que ocorrera essa terça. ­
Você sabe que nós não servimos pra isso. – Falou em tom presunçoso, segurando a língua para não repreender a amiga, ato que já fizera quando soube que ela havia começado a namorar. ­
É eu sei... – Sua voz soou tão baixa que Mihael teve dificuldades de entender o que tinha dito. ­
Mas fala ai, o que aconteceu? – Mais curiosa do que antes. ­
Bem... – “Lá vamos nós de novo” pensa. – Eu terminei essa terça, quando ele me pediu em casamento. – Fez uma rápida pausa. – Eu não devia ter deixado chegar a esse ponto. ­
Quando ele te pediu em casamento? – Estava surpresa, nunca imaginara algo assim com a amiga. – Nossa, e como foi? ­
Como assim “como foi”? – Perguntou sem entender muito bem. ­
Não faz essa cara de desentendida, como foi o pedido? Deve ter sido em uma festa muito boa, você não é uma qualquer. – Aniel apenas sorri com o elogio. – Fala ai como foi. ­
É verdade, tava tudo muito lindo. Foi num jantar, tava toda a família dele, o restaurante era perfeito, tava tudo perfeito, menos eu... ­
Deu um fora nele diante de toda a família? – Fingindo estar mais surpresa do que antes. ­
É... ­
Bem, você fez o certo. – Sua mão foi ao ombro da amiga em um ato de consolação. – Mas você é má heim menina. – Riu um pouco, ao ver a outra fingir se aborrecer logo parou. – Enfim não se preocupa mais com isso, é passado. ­
É, agora isso é passado. – Esperava não precisar falar sobre isso nunca mais. Nesse momento Mihael se lembra do que a falecida Beatriz havia pedido no leito de morte. ­
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Olha só Ani, posso te pedir um favor, você anda com mais tempo livre que eu. – Ficou um pouco envergonhada em pedir isso, mas era preciso. Claro, qualquer coisa por você. Lá em Nova York tem uma garota chamada Luiza Santrine, ela não fala com os seus irmãos faz algum tempo, será que você pode conversar com ela sobre isso? Mas é claro. – Pega uma caneta em seu bolso e anota o nome em um pedaço de papel que estava caído no chão. Anotando o nome? Como se você fosse esquecer. Enfim, talvez ela fique meio relutante, mas você fala que foi a pedido da mãe dela, essas coisas. Não se preocupe Mi, achando a garota eu do um jeito. – Aniel gostaria de ficar mais tempo e conversar, mas, já estava na hora de retornar. – Chegou à hora de eu ir Mi. Tudo bem. Foi bem ti ver amiga. – Abraçaram­se por um longo tempo, não sabiam quando voltariam a se encontrar, mas pelo menos tinham certeza que uma hora seus caminhos se cruzariam de novo. – Beijos Ani. – Solta a outra. Beijos Mi, até qualquer dia. Até. – Mihael quase começa a chorar enquanto a outra caminha pela sombra até desaparecer de vista. Aniel estaciona, já havia chego ao hotel, estava tão concentrada revivendo a conversa que nem tinha notado como dirigiu até ali. Perturbada sai do carro, entrega as chaves ao manobrista, entra no hotel. Já em seu quarto, a loira retira rapidamente cada peça de sua roupa, as joga em qualquer canto, cai na cama como um tronco recém cortado, queria dormir, só pensaria no quer fazer amanhã, depois de um bom café. Dez para meia­noite, um irritante barulho a acorda, seu celular começara a tocar, mal­humorada levanta da cama, cambaleando vai até suas roupas jogadas no chão e procura o pequeno aparelho. ­
Alo? – Fala aos bocejos, não tinha percebido que não havia atendido a chamada, o telefone toca em seu ouvindo a deixando ainda mais irritada. – Alo!? ­
Ani, é o Luis, por favor, não desligue. – Sua voz estava um pouco tremida e insegura, nunca o ouvira assim. – Ani a gente tem que conversar, você não pode jogar três anos de namoro no lixo assim. ­
Olha Luis. – Levanta nervosa já totalmente desperta. – Como você pode me incomodar à uma hora dessas! – Não sabia como ele havia conseguido seu novo numero, mas isso não importava agora. – Me esquece, eu não quero mais saber de você! ­
Mas Ani... – É interrompido. ­
Mas nada! Você não entende! ­
Pelo menos me de uma segunda chance, se eu fiz algo de errado eu posso mudar! Ani... – Sua voz estava mais insegura do que antes, parecia que poderia chorar a qualquer instante. ­
Não vou repetir de novo! ­
Ani não! – Desliga o celular. Aniel fica olhando o celular em suas mão, nunca havia entendido por que o tinha, mas agora sabia. Joga o aparelho em cima de suas roupas, caminha até o banheiro, liga a ducha e se joga em baixo da água quente. 53 O pequeno relógio perto da cama avisa, meia­noite. Pega uma toalha e começa a se secar, põe o primeiro conjunto a sua frente e deixa seu quarto, não podia se demorar, já estava atrasada. O vento sopra silencioso, só podia ser notado pelo leve balançar das árvores do enorme quintal pelo qual caminha. Logo em frente uma grande mansão imponente se destaca perante o belo jardim, parecia deserta, mas sabia que era ali. Antes de seguir pega uma rosa e a prende aos seus cabelos loiros. Entra na casa, ninguém. Sobe sem fazer barulho pelas escadas, assim que chega ao segundo andar vê um homem sentado em uma grande poltrona, a sua frente uma pequena mesa de mogno trabalhado, em cima, um revolver calibre 45. Ele ouve os passos vindo da escada, logo em seguida para de olhar para a arma sobre a mesa levantando a cabeça, despreocupado, como se já esperasse o recém chegado. “Então é hoje”, diz ainda sem poder ver claramente a mulher que acabara de entrar na sala escura. Ela evita por um instante, mas volta a caminhar em direção ao homem sentado. ­
Sim é hoje Luis. – Ao ouvir isso o homem paralisa, a doce voz da estranha intensifica em seu coração tristes emoções, sentimentos que está disposto a por um fim essa noite. A mulher da mais um passo em sua direção. – Luis pegue a arma. – Obedece sem encará­la. ­
Certo... – Ela se aproxima mais alguns passos, agora Luis pode vê­la mais claramente e assim que seus olhos passaram pelo belo rosto semi­oculto seu coração acelera espantosamente. – Não... ­
Não? Luis. Ponha a arma em sua cabeça, logo acima de seu ouvido, você não irá sentir nada eu lhe prometo. – Um sorriso aparece no canto de sua boca. Luis coloca o revolver no local em que a mulher havia dito. ­
Mas você... Eu não entendo... – Sua mão treme, o suor escorre por todo seu rosto, tentava afastar a morte, mas algo mais forte a mantinha junto a sua cabeça. ­
Certo, sinta­se à vontade para apertar o gatinho. – Olha para os lados, vê uma outra poltrona do lado oposto da pequena mesa, senta e espera. Luis entra em desespero, não desejava mais cometer suicídio, queria conversar, pedir perdão por algo que havia feito, algo que não sabia se realmente havia feito, ou talvez por uma coisa que deixara de fazer, não sabia, mas queria conversar pela ultima vez com a única pessoa que havia amado do fundo de sua alma, mas não conseguia, estava preste a tirar sua própria vida e ela veria tudo. Fecha os olhos, a arma dispara, um jato de sangue atinge a parede próxima e uma grande parte da poltrona em que estava sentado, o corpo morto e parcialmente decapitado pende para frente, devagar cai batendo na mesa produzindo um som abafado, até que por fim encontra o chão. A mulher se levanta num pulo, não estava mais irritada, pelo contrário, sentia que podia dançar por horas seguidas e ainda teria disposição para o que surgisse. Antes de sair vai até o corpo estirado no chão, fica de joelhos em frente a ele, retira a rosa presa aos cabelos e põe sobre o corpo. Sem mais delongas segue para a escada sem olhar para trás, sai da casa, novamente vai a roseira pegar mais uma rosa, prende ao cabelo e amara­o com seu elástico que sempre está em seu pulso esquerdo. 54 A lição a ser aprendida I O​
som das crianças rindo e brincando no belo parque sob o Sol agradava a todos os pais atentos em volta, o dia é mais que perfeito para se fazer um agradável piquenique. Uma toalha estendida, uma cesta com sanduíches, outras guloseimas e uma família feliz, mãe, pai e dois filhos, a menina, mais velha caminhava despreocupada com algumas amigas, o mais novo, um garoto tímido. Sentado em baixo de uma grande árvore com seu laptop no colo e uma suculenta maçã vermelha em sua mão. Seu pai se aproxima e começa a falar. ­
Filho, filho, você não acha que já não usa seu computador de mais em casa? – Ajoelha­se próximo ao garoto. ­
Ah pai... É que eu to fazendo minhas coisas. – Fala na defensiva. ­
Eu sei Daniel, sei que a feira de ciências é importante, mas você precisa brincar um pouco também. Por que não vai dar uma volta pelo parque? Talvez encontre até alguma menina, heim? O que acha? ­
Não sei pai... ­
Mas você vai sim, tem que pegar um pouco de sol, você ta quase transparente. Além do mais, sua mãe vai ficar reclamando a tarde toda se você só ficar ai sentado. – O garoto o olha nos olhos e por fim concorda. ­
Ta bom, ta bom... – Entrega seu laptop ao pai e começa a caminhar ainda com a maçã em suas mãos. Daniel anda sem direção, pensando em seu projeto, procurando melhores jeitos de apresentá­lo. Várias crianças de sua idade passavam correndo por perto, algumas brincando com seus cachorros, outras jogando bola, todos em volta pareciam se divertir, menos ele. Minutos passam e o garoto logo chega ao um grande lago de águas tranqüilas no centro do grande parque, algumas pessoas brincam em sua superfície com caiaques, outras esperam pacientemente com suas varas e tentando pescar algo. Resolve sentar por alguns instantes sob a sombra em algum dos vários bancos que dão vista para o lago. Já confortável e protegido do Sol por um grande plátano ele põe maçã de lado e retira de seu bolso uma pequena barra de chocolate Hershey’s, um Almond Joy. Quando começa a abrir uma mulher senta ao seu lado no banco, não se importa em ter alguém junto no banco, mas ao por seus olhos sobre ela fica extremamente surpreso, nunca havia visto ninguém tão bela. Morena, de cabelos compridos e cacheados, usando óculos escuros, para seu rosto não encontra outra descrição se não perfeito. Fica tão admirado chega a esquecer de dar a primeira mordida no chocolate, ela vendo o jovenzinho de boca aberta a olhando se dirige a ele. ­
Posso pegar um pedaço de seu chocolate? – Sua voz de tão doce chega a ser quase hipnótica. 55 Hum? – Confuso, não percebe de imediato que falava com ele. – Ah! Pode sim. – Entrega a barra para a mulher, ela morde delicadamente e devolve o chocolate para o garoto. ­
Muito obrigada Daniel. – Fica espantado ao ouvir seu nome. ­
Como você sabe meu nome? – Pergunta curioso. ­
Eu sei muita coisa sobre você. – Sorri. – Três vezes seguidas primeiro lugar na feira de ciências, muito impressionante. – Começa a observar o lago e todos que se divertiam em suas águas. ­
É verdade, mas é por que eu me dedico, mas você não respondeu como me conhece. ­
É, não respondi. – Solta uma leve risada. – Sabe Daniel, eu sou uma pessoa muito interessada nos avanços tecnológicos, e você é um garoto promissor. – Põe a mão no ombro do jovem, ele estremece. – Você vai participar da feira de ciências do estado esse ano, não é? ­
Vou sim. – A mão da mulher é suave, mas a sensação de seu toque é muito desconfortável. ­
Seu futuro é muito promissor, você sabia disso? – Olha para o garoto. – Acho que você nem imagina o quanto. ­
Você acha mesmo? – Pergunta com a voz tremula. ­
Mas é claro que eu acho. – Volta a olhar para a água calma a sua frente. – Muito bonito aqui não é? – Daniel também começa a observar o véu d’água. – Olhe com atenção, você não esta vendo nada de estranho? O Sol se esconde atrás de algumas nuvens passageiras, sem seu reflexo sobre o lago, Daniel começa a notar algo flutuando sobre sua superfície, sua atenção fica presa naquela estranha figura que se desloca de maneira tão singular. Seu corpo negro e de forma bizarra emana uma fumaça escura, deixando um rastro por onde passa. Vendo que o garoto não prestava mais atenção nela, a morena furtivamente se levanta do banco e se afasta alguns passos, mas sempre mantendo seus olhos fixos no jovem. A criatura continua a se aproximar, seu vôo produz um zumbido irritante, mas ao observar com atenção Daniel percebe que o som não vem do bizarro ser que esta a sua frente, e sim de outras três que circulam logo acima de sua cabeça. Seu jovem coração acelera como um dragster em uma de suas furiosas arrancadas. Olha para os lados, ninguém parece nota­las, todos se divertiam tanto que as esquálidas criaturas acabavam por passarem despercebidas. Uma delas se aproxima do garoto, passando logo a sua frente, ele apavora ainda mais ao vê­la. A abissal criatura parecia­se com uma arraia, era preta como uma mancha de óleo, sem olhos aparentes, de sua boca projetavam­se alguns tentáculos e na parte de cima de seu achatado corpo há pequenos orifícios de onde a estranha névoa é exalada, então que seus olhos se arregalaram quando... Três meses antes. ­
56 II Seu gostoso sono finalmente chega ao fim, o teto surge embaçado, não consegue ficar de olhos abertos por muito tempo, a luminosidade dói um pouco em sua vista. O Sol possui todo o quarto entrando pela janela aberta, desviando habilmente das cortinas. Se espreguiça, da um grande bocejo, esfrega as mãos nos olhos, vira para o relógio, dez para as onze, havia dormido demais, mas isso não fazia mal nenhum. Sem pressa sai da cama e segue para o toalete tomar um banho. Abre devagar a ducha, o som da água morna batendo violentamente nos azulejos do chão a conduzi a um estado de pura tranqüilidade, não lembra de nenhum de seus problemas. Deixa o chuveiro revigorada, começa a se secar com a mesma postura suave de antes. Agora já desperta e disposta sentia que o dia podia finalmente começar, vai até a sala secando seus cabelos, sobre a mesa seu café a aguardava. Olha curiosa para as frutas, doces, bolos e sucos logo à frente, esse não era seu desjejum habitual. Senta animada, pega uma fatia de torta que somente pela aparência já fazia sua boca salivar. Quando ia encher seu copo com um suco que deveria ser de laranja nota um pequeno cartão cor­de­rosa posto delicadamente perto de um belo cacho de uvas, o pega e começou a ler. Ani, espero que esse café te anime, você anda preocupada demais. Eu entendo isso, entendo mesmo, mas saiba que não há motivo para isso, eu lhe garanto. Meus pêsames por seu namorado, Com amor Aséalia Lentamente o cartão rosa vai ao chão, a ultima palavra lida causa um efeito devastador em Aniel, fica completamente pasma. Aséalia sabia onde estava, mas por que não vinha conversar? A loira se questiona incansavelmente. As palavras doces no cartão não mascaravam a verdade, algo esta errado e as duas sabiam bem disso. Mas por que ela insistia nessa postura defensiva? O que estaria escondendo... Ainda desnorteada Aniel pega o cartão caído ao lado de seu pé com a mão tremula, quase não o olha, apenas o dobra e o coloca sobre a mesa. Volta para o quarto sem tocar na deliciosa torta em seu prato, não havia mais tempo para o café, a escolha da roupa é rápida, um modelo Krizia branco é pego e logo vestido, em menos de vinte minutos já esta pronta para sair. No saguão do hotel tudo parece calmo, poucas pessoas circulam pelo local, com ligeiros passos vai até a recepção, um jovem a atende. ­
Pois não Senhorita Aniel, em que posso ajudá­la? – Pergunta com amigável sorriso. ­
Eu vou sair da cidade por alguns dias a negócios, quando eu voltar gostaria de encontrar tudo como deixei, você pode me garantir isso? – Retribui o sorriso, o garoto do outro lado do balcão se esforçava ao máximo para não olha­la de qualquer maneira que não seja profissional. ­
Mas é claro Senhorita, vou providenciar tudo. ­
Meu carro. Quero cuidado extra com ele, entendeu? – Sua voz continua suave e doce, mas o jovem sente que não deve deixar­se levar por esse canto de nereida. ­
Perfeitamente Senhorita. 57 Certo... Bem, até daqui a alguns dias. – A loira deixa o hotel sob a visão atenta de alguns homens que passam em volta, seu vestido Krizia acentua perfeitamente cada linha de seu magnífico corpo. O Sol continuava a brilhar no céu azul de poucas nuvens, caminha em direção ao Central Park que a essa hora do dia sempre está movimentado. Pega seu celular, disca rapidamente alguns números, telefona para Clarisse, precisava de um favor. ­
Alô? – Fala uma voz alegre do outro lado da linha, era Roji. ­
Oi Ro, é a Aniel, a Clarisse ta por ai? ­
A tia ta sim Ani, eu já chamo ela, só um pouco. ­ Pôde ouvir a asiática colocar o telefone sobre o peito e chamar a amiga “Tia Clariiiisseeeee a Aniii no telefonee!”. ­
Fala Ani. – Pergunta Clarisse um pouco ofegante alguns segundos depois. ­
Oi amiga, to precisando de um favor seu. – Fala timidamente. ­
Qualquer coisa por você querida. O que você ta precisando? – Levemente preocupada. ­
Bem, tenho que ir até São Francisco, mas você sabe como esses vôos comercia são demo... É interrompida pela outra. ­
Não precisa dizer mais nada, vem aqui em casa que eu do um jeito, vo fazendo umas ligações enquanto você não chega. ­
Certo, eu to indo a pé, não to longe. ­
Tudo bem, até mais. ­
Até. – Desliga o celular. ­
58 III O elevador abre automaticamente ao chegar à cobertura, sai. Novamente vê a bela porta de carvalho logo à frente. Dá o primeiro passo em sua direção, um ruído manso ecoa pelo pequeno corredor, a pesada porta começa a abrir lentamente, Aniel pára. Não há ninguém do outro lado, a loira só enxerga a grande sala imaculada. As janelas abertas fazem as cortinas em renda branca balançarem fantasmagoricamente com a brisa sorrateira que invade o aposento. Entra. “Clarisse... Roji...” diz ao fechar o apartamento. A quietude é quase que total, como se o lugar estivesse isolado da metrópole lá fora. “Clarisse?” Fala mais uma vez ao se aproximar da entrada da cozinha, mas novamente sem resposta. Aniel olha todo o apartamento, nenhum sinal delas. Confusa volta para a sala, ia descansar em um dos sofás, enquanto espera as duas aparecerem, mas ao entrar na sala branca sente um enorme calafrio, vira para a saída, a grande porta de carvalho não estava mais fechada como havia deixado, ela simplesmente não existia mais. A loira se aproxima perplexa, para embaixo do umbral e tenta procurar pela porta no pequeno corredor, no entanto o corredor já não era pequeno como antes. Não se encontrava mais na passagem fria, com chão de mármore branco e um moderno elevador em seu fim, mas em um grande corredor que se estende até onde sua vista pode alcançar. Fica observando o bizarro lugar por um curto instante, feito de concreto, dando a impressão ser extremamente sujo e úmido, algumas luzes de cor vermelha espalhadas por ele o iluminam fracamente. Começa a andar depressa, alegre, uma alegria que vem com uma estranha sensação de familiaridade, não sabia dizer o porquê, mas se sente em casa. Caminha por cerca de trinta minutos, suas pernas começam a cansar, faz uma pausa e olha para trás, já não consegue ver o apartamento de sua amiga, mas isso não importa. Ao se virar para continuar o caminho nota que logo à frente, apenas alguns metros uma abertura começa a surgir. Uma pequena janela que ganha forma do nada, deixando uma luz pálida entrar na passagem rubra. O buraco tem espaço suficiente para Aniel colocar pouco mais que sua cabeça para fora, se aproxima. Fica sem palavras com o que vê, do lado de fora se estende um oceano negro como piche, calmo, sobre ele um céu noturno preenchido em grande parte por uma enorme lua. O tamanho assustador do satélite fez com que ela não notasse logo de inicio que o estranho mar nada refletia. ­
Minha nossa não acredito que estou no... – Não consegue completar, é interrompida por uma voz familiar vinda de trás. ­
É, pode acreditar. – A loira se vira assustada, surpresa por ter alguém ali, no entanto ao ver quem é, um largo sorriso aparece em seu rosto. ­
Mãe! – De braços abertos há alguns passos uma mulher de aparência divina, cabelos loiros, compridos e cacheados, seus olhos verdes como esmeraldas são as únicas coisas que mostram que não era mais uma garota com seus vinte anos, e sim uma mulher. Aniel corre em sua direção e a abraça. – Mãe que saudades! ­
Eu sei filha, eu sei. Também senti saudades. – Olham­se nos olhos. – Como você ficou linda. ­
Ah mãe, você sempre fala isso. – De mãos dadas seguem caminhando pelo corredor. ­
É por que é verdade. – Ri suavemente. 59 Ta certo... – Balbucia de cabeça baixa, ela sabia que sua mãe tinha sérios motivos para procurá­la. ­
Ani, Ani, o que aconteceu nesses últimos meses minha filha? – Pergunta preocupada. ­
Ah mãe... – Ainda de cabeça baixa. – Eu não sei o que ta acontecendo, não sei... – Uma pausa, levanta a cabeça e olha para a outra. – Mas a Aséalia sabe, tenho certeza. ­
A Aséalia... Você ta procurando ela não é Ani? – Começa a acariciar os cabelos da filha. ­
É, to procurando sim. – Desta vez é a mãe que abaixa a cabeça. ­
Filha, não faça isso. – Aniel a olha espantada, não era possível que sua mãe também soubesse o que estava acontecendo. ­
Mãe! ­
Ani, eu to falando sério, você não pode ir atrás dela. Eu a proíbo, pro seu próprio bem. – Nunca havia visto sua mãe séria como hoje, algo estava realmente errado. ­
Mas mãe, eu não posso... ­
Ouça filha. Eu não quero perder ma... – Um som horrível ecoa pelo corredor fazendo com que as duas se calem. Vinha da parte escura mais à frente. Olham pasmas para a sombria passagem, o silencio dur quase um minuto, até que Aniel o quebra temerosa. ­
Mãe... O que foi isso? – Recua alguns passos. ­
São eles... Filha tome. – Entrega para a loira de olhos safiras um revolver calibre 357 magnum prateado. Aniel olha para a arma sem entender o motivo, nunca havia precisado de algo assim. ­
Uma arma? Mas mãe, eu não preciso disso. ­
Vai precisar se eles passarem, agora corra! As duas começam a correr, o grito surge novamente vindo de trás, e cada vez mais alto, o som é extremamente bizarro, lembrando um radio com chiados onde uma sanfona quebrada tocava Paganini desafinadamente. Em pouco tempo uma forte luz começa a aparecer, não estava longe, mas a sinistra melodia parece cada vez mais próxima. Aniel apressa o passo, já consegue enxergar a fonte da luz. Tenta correr mais depressa possível que seu Krizia a permitia. O som do vindo de trás começa alterar seu compasso, cada vez mais rápido e frenético. Pela primeira vez um sentimento que sempre causara nos outros a toma por completo. Acelera ainda mais. Logo à frente esta o elevador em que havia usado há pouco tempo, ainda aberto, pôde ver a grande porta de carvalho trabalhado, o chão branco e frio de mármore e tudo mais. Em um esforço sobre humano Aniel corre ainda mais depressa e entra velozmente no elevador, ao passar pelas portas automáticas de metal olha para trás, nenhum sinal de sua mãe, da passagem de concreto, ou de qualquer criatura abissal que estivesse a perseguindo. Tudo parecia normal, então que ouve o impacto, o som de seu corpo frágil batendo violentamente contra a pesada porta de carvalho toma por completo o pequeno corredor. Pára no chão zonza, a porta dança em círculos a sua frente, em poucos segundos Clarisse aparece, seu rosto pálido devido ao susto. ­
Aniel você ta bem? O que aconteceu? – Fala enquanto ajuda a loira a se levantar. ­
Ai... – Geme. Uma de suas mãos vai a cabeça que ainda lateja um pouco. – Eu to legal sim Clarisse. ­
Mas o que aconteceu Ani? Entram no apartamento. ­
Não sei, acho que eu escorreguei em algo. – Então que a amiga nota o brilho prateado da arma caída no chão do frio corredor. ­
60 Aniel, isso é seu? – Pergunta preocupada, volta ao corredor e pega o revolver com cuidado. – Ani você ta andando armada agora? Sempre achei que... ­
É meu sim. – Interrompe a amiga. – Mas eu não preciso dela. – Pega a magnum sob o olhar perplexo da amiga e a guarda em sua bolsa. – Insistiram que eu a trouxesse. – Tenta explicar no momento em que Roji entra no cômodo já falando, a asiática carregava um pequeno mp3 ​
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, com apenas um dos fones no ouvido. ­
Tia! A Ani já chego? Eu achei ter ouvido... Ani! – Ao ver a loira parada próxima à porta sai correndo e a abraça. ­
Oi também Ro. – Diz sorrindo para a mais nova. Aniel se aconchega no sofá, seu corpo ainda dolorido sente as macias almofadas como uma benção. Tudo pelo que havia passado agora parece algo extremamente distante e impossível, mas as palavras de sua mãe ainda circulavam em seus pensamentos acompanhados pela horrível melodia que a perseguira. Clarisse põe na pequena mesa de centro uma garrafa de whiskey Jack Daniel’s, abre, enche o copo em sua mão e estende­o para a loira que pega sem relutância. ­
Valeu Clarisse... – Fala após tomar o drinque. ­
De nada querida, vi que você tava precisando. – Senta ao lado da sobrinha e volta a falar. – Ani, já aprontei tudo pra você. ­
Não tenho como agradecer, nem queria ter que pedir, mas isso é muito importante pra mim. – Tímida. ­
Ani, não fala nada. Quantas vezes tenho que dizer que esses favores que eu te faço não são nada comparados com o que você fez por mim. – Aniel estende o pequeno copo, é cheio e novamente, e esvaziado. – Porque você não toma logo da garrafa Ani? – Pergunta aos risos, Roji a acompanha. ­
Clarisse! Deixa de ser boba. – Também ria suavemente. ­
Mas Ani, você não tinha como ir de outro jeito? – Pergunta curiosa. ­
Não sei, tudo ta meio estranho ultimamente. ­
Certo... Você parte amanhã. ­
Ani. Você vai fazer o que em São Francisco? – Pergunta Roji. ­
Tenho que ver uma amiga, coisa de trabalho. O copo é cheio mais uma vez, o liquido de cor caramelada dança habilmente conforme o ritmo dos dedos de Aniel. Ela continua a conversar com as duas, mas sua mente não está na sala, encontrava­se vagando pelo corredor de concreto úmido e escuro, onde o bizarro som a perseguia. Não conseguia parar de pensar no porque se sentia tão em casa naquele horrível lugar. ­
61 IV Coloca a chave no trinco, desanimado destranca a porta, entra, liga as luzes. Casa pequena, desorganizada. Várias roupas amarrotadas jaziam espalhadas pela pequena sala. Sobre a mesa próxima a cozinha um pedaço de pizza mofado, algumas baratas andavam pelos velhos pedaços de calabresa sem se importar com a pessoa que acabara de entrar. Caminha até a geladeira, abre, vazia como esperava. Havia se esquecido de ir ao mercado. Abre o armário, nada também, não havia comida em lugar algum, olha para a mesa, ali sobre ela a pizza já esverdeada, não comeria isso, o gosto devia estar horrível e acabaria indo parar no hospital. Volta para sala, joga no chão algumas roupas que estavam em cima do sofá revelando um velho telefone, tira do gancho, mudo. “Droga!”, diz para si, larga o aparelho no chão e caminha para o quarto, só lhe resta dormir. A porta estava aberta, não havia a deixado assim, se aproxima com cautela, ouve o ranger do assoalho vindo de dentro do quarto, espia furtivamente, parada perto da pequena janela de costas esta uma mulher, mais bonita do que qualquer uma que já esteve ali antes, ele não podia ver seu rosto, mas tinha absoluta certeza disso. Loira, cabelos compridos amarrados em um rabo­de­cavalo. Quando ia entrar a ela começa a falar. ­
Eduardo, o que você procura não está na cama, você sabe disso. – Ele congela, não entende como essa mulher de voz doce esta ali, como sabia seu nome e o pior, como sabia no que pensava. ­
Quem é você? – Balbucia. ­
Você sabe quem eu sou. – Ainda de costas. – Não sabe? – Se vira, Eduardo a olha diretamente nos belos olhos azuis, sabia quem era. ­
Sei... Já estava na hora de você aparecer, estava começando em pensar em fazer isso sozinho... – Senta na cama de cabeça baixa. ­
Não, duvido. Você nunca teve coragem pra nada, não é Eduardo? Vontade fraca... Por isso você parou aqui, numa casa pequena, imunda e caindo aos pedaços. – Caminha até o armário, o abre, pega uma corda e a joga sobre o colo do outro. – Tome, você vai precisar. – Fala de maneira sutil, mas os ouvidos de Eduardo sentem toda a malicia por traz da suave melodia. ­
Uma corda? – Pergunta confuso. – Não era assim que eu pensava que ia ser. ­
Oras por que não? Não é Dramático o suficiente? – Sarcástica. ­
Não é isso... – Põe­se de pé. – É que parece ser tão... ­
Doloroso? – Novamente em tom sarcástico. ­
Sim... – Sussurra ainda com seus olhos sobre a corda em suas mãos, Aniel começa a rir. ­
Veja Eduardo, você não tem nada em sua casa que possa usar para esse ato, no máximo aquele pedaço de pizza, mas seria repugnante de mais. Seu carro esta sem gasolina, você mora em uma casa... – Caminha para fora do quarto. – Me desculpa, mas esse é o único jeito, agora vêm comigo. – Ele a acompanha calado até a sala imunda. ­
Vai ser aqui então... ­
Sim, aqui mesmo. Passe a corda pela viga logo a cima. – Aponta para o teto. – Acho que o resto você já sabe. 62 Certo. – Passa a corda pela grande viga de madeiro próxima ao teto assim como a loira havia dito, após isso faz um forte nó. ­
Pronto, agora pegue aquela cadeira ali. – Eduardo caminha lentamente, pega a cadeira e a coloca logo abaixo da corda. – Sabe o que fazer, afinal você pensou nisso por tanto tempo. – Aniel chegou a pensar em se sentar, mas ao passar rapidamente a visão pelo cômodo desiste da idéia rapidamente. ­
É... Mas eu não pensava em me enforcar. – Fala ao fazer a forca. ­
Detalhes... ­
Posso lhe pedir algo antes de ir? – Pergunta ao subir na cadeira e por a corda em volta do pescoço. ­
Fale. – Curiosa. ­
No meu quarto, embaixo do travesseiro há uma carta, ela é muito importante pra mim. – Você poderia entregar­la para minha irmã? ­
Claro que sim. Agora, você esta pronto? – Se afasta alguns passos. ­
Sim... – Eduardo derruba a cadeira, ela vai ao chão quase sem produzir som. A corda começa a apertar seu pescoço como uma jiboiai constringindo um mamífero indefeso. Suas pernas chutão o ar freneticamente, seu corpo se contorce violentamente, os olhos ficam vermelhos e sua boca começa a espumar. Aniel não sai da sala, fica a apenas alguns passos olhando tudo sem piscar, cada um era diferente do outro. Pouco tempo se passa até que os espasmos sessão e só o que restar é um corpo morto balançado morbidamente no meio do pútrido aposento. Contempla a imagem por alguns instantes, vê­lo ali a enche de prazer, não saberia viver sem isso. Deixa a sala e segue em direção ao quarto, embaixo do travesseiro esta a carta como Eduardo havia dito. A pega, guarda no bolso de seu jeans e sai da casa. O quintal se mostra tão repugnante quanto lá dentro, um pequeno caminho de pedra corta o chão enlameado com pilhas de lixo espalhadas por todo o lugar. Uma grande árvore de poucas folhas se ergue do meio da sujeira, aos seus pés algumas garrafas vazias de rum barato encontravam­se jogadas. Perto da pequena cerca de alumio jaz um velho Chevrolet Camaro, 1967. Sua pintura não mais existia, o metal estava totalmente exposto, a ferrugem se encontrava espalhada por todo veiculo. Seria difícil o imaginar em movimento. Passa pelo caminho evitando sujar seus sapatos, sai do quintal, pega as chaves de seu mustang, acelera o passo, quando toca o asfalto frio algo acontece, o mundo a sua volta começa a se distorcer. Uma explosão de cores surge no céu negro. Cores que se misturam no véu da noite como em uma tela a óleo. Aniel fica pasma observando um novo mundo ser pintado a sua frente. “Mas o que é isso...?” Sussurra sem notar. O asfalto é levado por uma brisa morna dando lugar a uma areia fina e branca. No topo do novo céu azul três relógios de formas triangulares orbitavam em volta de uma grande ampulheta feita de barro com um homem e uma mulher esculpidos em suas hastes. As areias assim como os relógios não corriam, estavam parados no tempo. Começa a caminhar pela estrada de areias brancas, a cada passo seu as casas em voltas começam a se contorcer em espirais oníricas, onde se podem ver imagens de terras distantes, como se estivessem por trás de véus de água. A brisa ainda a toca, suave com ela própria. Aniel pára, algo a sua frente chama atenção, alguma coisa ao longe parece se mover por de baixo da areia. Mais alguns passos, pára novamente. Cerra os olhos, concentra sua visão e o que consegue enxergar não a agrada, rasgando a estrada arenosa surge com extrema violência um jorro de algo negro como petróleo. Surpresa recua alguns passos, o liquido de aparência pútrida começa a se aproximar devagar. Recua mais alguns passos, porem ao fazer isso um grito estridente ecoa pelo estranho lugar, e como se tivesse notado a loira, a criatura sob as areias ­
63 começa a avançar velozmente. Aniel se apressa a correr sobre o solo fofo, suas pernas logo vacilam, se desequilibra e cai de joelhos no chão. Já pode ouvir o gêiser esquálido a poucos metros, uma estranha melodia o acompanha, como o canto de uma grande baleia azul interpretado por um órgão gótico, seu eco parecia infinito. O chão começa a tremer, desesperada tenta se levantar, mas é derrubada novamente por uma forte cólica, sente como se algo rasgasse seu abdômen. Os tremores se intensificam, tenta mais uma vez se por de pé, em vão. Começa a tossir violentamente, sente o gosto de seu sangue passar por sua garganta como uma navalha. A cor rubra toca as areias a sua frente, então que tudo se torna silencioso, os tremores se extinguem e o tempo para. Mas Aniel não consegue notar nada disso, nada a sua volta parece existir mais, pois a sua frente algo maravilhoso acontece, onde seu sangue havia caído no chão, agora brotam flores de um amarelo radiante, lembrando uma rosa ou um lótus, mas não era nenhuma. Em volta delas começa a nascer com a mesma rapidez um grande gramado e em seguida árvores explodem da terra criando ao redor de Aniel um jardim fantástico. A loira contempla a maravilhosa paisagem recém surgida por poucos instantes, seus olhos pesam, suas pálpebras se fecham, cai em um sono profundo. Sua cabeça lateja muito, devagar a loira acorda, sua visão começa a ficar mais nítida. Sente algo em seu lábio, toca­o com o indicador, sangue. Olha para todos os lados a procura de algum sinal de perigo, mas tudo parecia tranqüilo. O avião continuava seu vôo normalmente. Se levanta, resolve comer algo, sacode a areia que ainda esta em seus sapatos e caminha em direção a pequena geladeira. 64 V Alguns dias depois. Dez horas da manhã, um dia normal, no céu poucas nuvens, na rua poucas pessoas. Um táxi para em uma tranqüila rua de Potrero Hill, São Francisco. O carro amarelo estaciona em frente a uma casa simples, gramado verde, cerca pintado de branco, varanda acolhedora. Sai do táxi, Aniel passa pelo belo quintal, entra na casa, segue por um pequeno corredor decorado com várias fotos antigas até a sala. Sentada em uma das poltronas do aposento esta uma garota de cabelos cacheados, feições suaves, a loira entra na sala, a garota levanta seus olhos ao ouvir os passos, abre um sorriso e começa a falar. ­
Oi Ani. Não esperava você tão cedo. – Deixa à poltrona e caminha até a outra, ao se aproximar nota a preocupação nela. – Ani você ta bem? ­
Não muito Mi, aconteceu de novo. – Mihael fica sem palavras, simplesmente a abraça. ­
Calma Ani. Vai ficar tudo bem. – Só vou fazer mais esse aqui e nós podemos conversar. ­
Certo... ­
Ele está lá logo ali no próximo quarto. Vamos? – Pergunta apontando para a porta próxima. ­
Claro, você acha que vai ser complicado? – Pára em frente da porta com sua mão sobre a maçaneta. ­
Não, esse vai ser tranqüilo. – Entram no quarto. O sol ilumina todo o lugar pela grande janela no canto direito, a luz bate diretamente na cama onde um homem em torno de seus setentas anos descansa debilmente. Ao seu lado, sentada em uma cadeira de vime encontra­se uma enfermeira, lia uma revista. A loira deixa sua amiga entrar, fecha a porta, a enfermeira olha rapidamente para trás e voltar a ler parecendo não ligar para movimento a suas costas, ao contrario do senhor na cama que reage imediatamente a entrada das duas e começa a falar. ­
Sonia... – Sussurra para a enfermeira. – Você pode me deixar a sós por alguns instantes? ­
Claro, vou estar na sala, qualquer coisa é só apertar a campainha, ok? – Sorri. ­
Sim, sim... – A enfermeira se levanta e sai do quarto. Volta a falar. – Aproximem­se vocês duas. – Aniel continua parada perto da porta, enquanto Mihael se aproxima e senta na cadeira de vime. ­
Então Antonio, preparado para ir? – Pergunta arrumando os cobertores, a loira só observa. ­
Sim, estou pronto. – Fala com convicção. ­
Não há nada que você queira antes de continuarmos? ­
Não se preocupe, eu já deixei tudo pronto, sabia que esse dia logo chegaria. – Volta a falar com certa dificuldade. ­
Certo... – Olha para trás, queria saber como a amiga estava, Aniel sorria, isso a anima ainda mais. Volta sua atenção para o homem na cama. ­
O que eu preciso fazer? – Pergunta. 65 ­
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Apenas feche os olhos. – Ele os fechou, Mihael sussurra algo que somente ela poderia ouvir, estava feito. Se levanta e olha para a amiga. – Pronto Ani, vamos? – Fala com um largo sorriso no rosto. Só isso? – Diz desanimada. – Que sem graça... Você esperava o que? – Caminha até a porta. Ah... Não sei, mas algo um pouco mais animado. – Reclama. Deixa de ser chata Ani. – Ri da amiga. – Vamos indo antes da Sonia voltar. Certo. – Deixam o quarto, passam pela sala, a enfermeira não estava ali, continuam em direção a saída, deixam a casa para o claro dia lá fora. – Então Mi, onde você estacionou se carro? Carro? – Olha de uma maneira particularmente engraçada e confusa para a loira. É seu carro, você não vai a pé pra todos os lados não é? – Incrédula. Eu não caminho muito, você sabe que não. – Saem do quintal bem cuidado e continuam pela estrada em direção a rua Rhode Islande. 66 VI A areia branca se estende até o horizonte como um tapete, totalmente lisa, sem nenhuma variação, o vento nunca uivara ali. O manto negro da noite é suavemente furado pelas estrelas, que, uma a uma vão surgindo. Somente uma construção se ergue no meio desse grande vazio, uma pirâmide inversa, vista de qualquer ponto do inóspito deserto, e sempre no meio dele. Tão antiga quanto o universo eterno, seu corpo feito de mármore negro como ébano não parecia ter sofrido com o tempo. Sob sua ponta a única entrada visível, um templo, que normalmente seria considerado colossal, com seus grandes pilares adornados e jardins de palmeiras, porem agora só é notado por olhos astutos que não se deixam impressionar pela construção logo acima que acolhia sua tímida ligação com a terra em baixo de sua sombra. O silencio que ali era eterno se rompeu com um suave som de cascos, algo cavalgava pelos salões do grande templo. De início furtivo, mas, sem demora o galope ganha força e cada impacto do desconhecido animal no chão frio de mármore soa como um trovão no deserto lá fora. Então que a criatura deixa a morada de pedra e toca o solo fofo e branco. Corpo negro, brilhoso e levemente úmido, lembrando vagamente a forma de um corcel, sua crina negra ondula como se estivesse viva, de suas pontas pequenas bocas surgem com dentes finos e afiados. Sem olhos nem boca, em sua cabeça lisa só há dois grandes pares de chifres. Preso ao lombo uma cela de aparência pútrida com tentáculos viscosos que se movem freneticamente rente ao chão. Sobre a criatura uma forma humanóide, seu corpo esguio é coberto por uma espécie de capa exageradamente comprida que aparecia estranhamente se fundir com a anca do animal formando um tipo de asa deformada. A sinistra criatura fica ali, estática, por longas horas, até que volta a se mover calmamente em direção ao vazio das areias. A cada trote um fino raio de luz, vindo de uma das estrelas mais distantes aumenta, e com o passar do tempo essa luz vai se revelando como uma grande escada descendo do céu noturno até as areias nas quais anda. Várias horas se esvaíram num lugar onde o tempo não anda, até o animal encostar seus cascos nos primeiros degraus da branca escada, branca como leite. ­
Pare! – Grita alguém às costas da criatura, sua voz melodiosa vinha carregada de autoridade. Ele se vira e contempla um ser de extrema beleza, sua pele bronzeada brilha timidamente, seus olhos pretos não vacilam ao encarar o ser a sua frente, seus cabelos compridos e cacheados balançam suavemente mesmo com a ausência do vento. Seu corpo perfeito é coberto apenas por um manto de seda vermelha transparente. Ao seu redor vários símbolos arcanos a acompanham de forma aleatória. – Você não deve subir nem mais um degrau! – O ser não responde de imediato, parecia analisar com cuidado a pessoa a sua frente, e, depois de mais alguns instantes uma voz rouca e profunda ecoa do nada, como se simplesmente surgisse no ambiente. ­
Não há nada que você possa fazer a respeito... Eles me chamam... ­
Você sabe muito bem que não está na hora! E há sim varias coisas que eu posso fazer a respeito. – Um sorriso maldoso toma conta do belo rosto. ­
Não seja tola, mesmo sem o meu aparecimento, eles acabariam fazendo isso sozinhos... 67 Não me tome por ingênua, eu sei bem do que sou capaz, posso impedi­los! – Grita com raiva para o monstro a sua frente. ­
Não, você não pode... Você deveria saber bem disso... É algo natural como eu e você. ­
Mas eu não deveria ir! É injusto, injusto! O que ele sabe a respeito de horas? Tempos e vidas? Nada! Não vou deixar um matemático inescrupuloso decidir isso por mim! ­
Você não entende... – ​
Ela o interrompe bruscamente. ­
Calado! Não quero saber, eu vou guiá­los, eles vão ser como gados em minhas mãos, você não vai conseguir nada! – Então que duas enormes asas douradas e semitransparentes aparecem, elas a cobrem por inteiro e no instante seguinte a mulher some. A criatura volta novamente sua atenção para a escada ignorando tudo que a outra havia falado, seria uma longa subida. Seus passos são tranqüilos e sem nenhum tipo de pressa, e com o passar do tempo a escada chega ao seu fim. Logo a frente tudo que o bizarro cavaleiro vê é um grande corredor de chão quadriculado com uma porta fechada ao fim, em volta o céu cintilante com suas estrelas. As suas costas a colossal pirâmide, o grande deserto agora não passa de uma mancha branca a quilômetros de distância. Chega até a porta, pára a sua frente a contemplando por instantes, toda preta e branca assim como o corredor, feita com alguma espécie de metal frio e polido. Em seu centro um grande relógio com quinze ponteiros, alguns girando freneticamente, outros parados há anos e logo abaixo uma pequena tranca de formato triangular. O cavaleiro aproxima a cabeça cega do esquálido corcel até a tranca, à medida que a distância diminuía o rosto do animal começa a se dividir brutalmente, revelando uma enorme boca desfigurada. Em seguida vários dentes retorcidos crescem das negras gengivas espalhando um liquido negro e viscoso por tudo em volta. Com a fechadura logo à frente , ele, com cuidado, ele aproxima a boca do animal que enfia sua língua na pequena entrada, alguns sons são ouvidos e a porta começa a abrir lentamente. ­
68 VII ­
Mi... A gente ta demorando muito pra chegar, pra onde você ta me levando? – Pergunta Aniel já impaciente. – Acho que nós já passamos umas três vezes por aqui. ­
Eu sei... – Olha em volta. – Alguma coisa ta errada Ani, eu tenho certeza que era por aqui... – Mihael pára e começa a analisar com mais atenção as casas em volta. ­
Como assim “era por aqui”? – Fala incrédula. ­
Não sei Ani, tem algo muito errado acontecendo. – Anda em direção a um poste de luz, não adiantava mais caminhar. A morena olha para todos os lados novamente, Aniel se aproxima da amiga e senta na calçada ao seu lado. ­
Mihael, Por que você não me fala logo o que eu quero saber? – O que a Aséalia ta fazendo? – A outra se vira e encara a loira com decepção em seu rosto, não esperava chegar a esse ponto. Mihael suspira e começa a falar. ­
Ani, é que ela sab... Para subitamente. ­
Ela sabe o que Mi?! – Põe­se de pé. ­
Você não ouviu Ani? – Sussurra séria. – Você não ouviu o grito? ­
Não ouvi nada e não mude de assunto Mihael! – Mas assim que a loira fecha seus lábios, pôde ouvir do que a amiga estava falando, um grito rouco, quase inaudível de tão baixo que chega aos seus ouvidos. – Ãhn? O que foi isso? Porem antes que a jovem de cabelos cacheados conseguisse responder um forte vento vem do fim da rua, e somente a visão do que ele causa as construções e em tudo mais em volta já as silencia. Uma a uma cada casa vai se desmontando em uma espiral surreal como se um tornado tivesse acabado de surgir sobre elas. Muito mais acima, sobre as nuvens em meio ao céu azul, Aniel vê os pedaços de entulhos colidindo uns com os outros, até que por fim começarem a formar uma estranha construção que poderia ter Escher como seu arquiteto. ­
Mi, você consegue ver? Lá em cima... – Segura a mão da amiga. ­
Consigo... – Mihael fica observando atentamente a engraçada morada tomar forma, seu fascínio é tanto que diferente da loira, ela não foi capaz de notar o que mais mudava a sua volta. Uma areia fina cobre com sutileza toda a estrada e muito mais além do horizonte algumas ruínas tomam o lugar onde antes ficavam as casas da vizinhança e o céu azul claro, típico de um belo dia ensolarado é substituído por faixas púrpuras que correm entre as nuvens. – Aniel, não pode ser... Essas coisas não acontecem assim... – Sussurra pasma. ­
Eu sei Mi, mas ultimamente ta se tornando mais e mais freqüente. – Fala enquanto faz a outra olha­la nos olhos. – Aqui não é seguro, tem alguma coisa muito estranha acontecendo... – Mihael não fala nada, pela primeira vez a loira nota o pânico crescer dentro de sua antiga amiga. ­
Nunca pensei que esse dia chegaria... – Abaixa a cabeça. ­
Mi! Fala logo! O que está acontecendo?! – Irritada. ­
Nada é eterno Ani... Por mais que possa parecer, nada dura pra sempre. Aniel não fala mais nada, não precisava, agora tudo faz sentido. Sempre foi a mais sensível, a mais frágil, era natural que isso ocorresse primeiro com ela. Olha para a casa sobre as nuvens, tão bela e tão estranha, que lugar seria esse? Mihael chama sua atenção, algo se 69 aproxima no horizonte, não demora muito para que as duas pudessem ver com clareza quem era. ­
Não acredito... Ela nunca, nunca mesmo vem pra esses lados. – Mihael senta na areia fofa e cruza as pernas. ­
Eu sei Mi, mas quem sabe ela não pode me ajudar? Afinal você não me foi muito útil. – Olha de canto do olho para a morena, a outra só vira o rosto timidamente. – Falei alguma mentira? ­
O que você quer mesmo saber eu não sei responder. Só a Aséalia sabe o que ta fazendo. ­
Veremos. – Aniel começa a caminhar em direção a mulher que se aproxima. Sua aparência muito fora do comum fascinaria facilmente qualquer um. Seus cabelos extremamente compridos são de um lindo tom azul marinho, balançando de uma maneira única com os movimentos de seus passos, que mal tocam o chão. Em seu corpo um grande vestido preto com uma enorme calda que não que não tem fim, seu rosto perfeito irradia ternura. ­
Olá Aniel, quanto tempo não? – Sua fala é uma melodia de vozes distintas umas sobrepostas às outras, somente de ouvi­la a loira já se acalma. ­
Sim .................., faz muito tempo, não a vejo desde que fui cuidar dos mortos. – Fica vermelha, a presença dela é ao mesmo tempo acolhedora e intimidadora. ­
Eu fiquei sabendo que algumas coisas andaram acontecendo com você nesses últimos tempos. Isso me preocupou muito. ­
É... – As palavras simplesmente não saem de sua boca. – Tudo tem andado tão confuso, e eu também fiz muita coisa errada... – Envergonhada. ­
Não se preocupe com isso, certo? – Toca com as pontas dos dedos o queixo da loira. – Olhe Aniel, esta vendo a casa logo acima? – Confirma com o balançar de sua cabeça. – Lá você encontrara sua resposta, mas há um preço a pagar pela entrada. ­
Como assim? – Confusa. ­
Pessoas como você ou mesmo a sua amiga ali. – Aponta com a vista para Mihael que ainda estava sentada de pernas cruzadas as observando. – Normalmente não poderiam entrar lá, afinal ali ha coisas que não deveriam existir... Mas enfim, como tudo está tão confuso como você mesmo disse, acho que devo lhe oferecer essa chance, mesmo com você estando dividida. ­
Qual é o preço? – Um pouco curiosa. ­
Você nem parece mais àquela menina alegre e sorridente que eu recordava... Seus olhos estão mortos Aniel. – A loira não consegue encara­la, apenas abaixa a cabeça e olha para seus pés, usava um All­Star preto. – Bem, o preço, é uma flor, ­
Uma flor? – Mais confusa que antes. – Onde que eu vou arrumar uma flor no meio desse deserto? ­
Não é uma flor comum Aniel, mas é uma que só você pode me dar. – A mulher se aproxima e toca o rosto da loira. – Posso? – Confirma com a cabeça, então passa sua mão delicadamente sob os olhos azuis. Uma única gota de lágrima é pega por seus finos dedos. – Você não sabe como isso é precioso Aniel. ­
Uma lágrima? O que pode ter de valor nisso? ­
Admira­me você não saber. Aniel, você já viu isso acontecer. Observe. – Fica de joelhos, coloca a minúscula lágrima sobre a areia, depois retira um pequeno frasco que estava guardado entre seus seios, o abre e despeja um liquido vermelho onde havia posto a preciosa gota. – Veja Aniel. 70 VIII Caminhava depressa, não sabia se ainda a encontraria no endereço que tinha. Por algum motivo não atendia o celular, ela podia ter mudado de numero, mas que razão a levaria a isso? Rapidamente a mulher deixa o movimentado Aeroporto JFK e entra em um táxi. Não gosta muito deles, mas como era sua primeira vez em Nova York o carro amarelo era sua melhor opção. ­
Para onde vamos senhorita? – Pergunta o taxista com um forte sotaque porto­riquenho. ­
Algonquin Hotel. Por favor, o mais rápido possível. – Sua voz calma não demonstrava como realmente se sentia. ­
Pode deixar. – Normalmente ele não ligaria para o pedido, ouvir as pessoas atrasadas pedindo para se apressar fazia parte da profissão, mas algo nela, além de sua extrema beleza o obrigava a obedecer. Enquanto dirige, sua atenção fica dividida entre a estrada e as pernas de sua notável passageira. Não conseguia parar de olhá­la pelo retrovisor, tudo nela parece perfeito. Seus cabelos pretos contornam o delicado rosto em um corte chanel, de olhos azuis, claros como o céu do Havaí, podendo fazer qualquer um que os olhe demais se perder em sua bela imensidão. ­
Então, a senhorita vem de onde? – Tenta iniciar uma conversa, afinal não é todo dia que se encontra alguém assim, mas ela nada fala, fica em silêncio por um longo período, até que por fim responde secamente. ­
Por favor, apenas dirija, estou com um pouco de pressa. ­
Certo senhorita. – Decepcionado. Lembranças A Lua brilhava no céu, não havia nenhuma nuvem sobre Paris essa noite. A torre Eiffel estava mais esplendida do que nunca, suas luzes se mesclavam de uma maneira quase que beirando o sobrenatural com o luar deixando todos em volta sem fôlego. Já passavam da meia noite, no entanto o movimento de turistas ainda era intenso. Mesmo no meio de tantas pessoas Aséalia se destacava facilmente, caminhando de maneira decidida e imponente, não ligava para os olhares dos homens em volta que fariam qualquer coisa, para apenas chamar sua atenção. Seus passos rápidos foram direto ao encontro de... ­
Royel, sempre adiantada. – Fala Aséalia ao ver a amiga. ­
Não querida. – Um largo sorriso toma conta de seu rosto normalmente serio. – Você que sempre se atrasa. – Abraçam­se e seguem para um café próximo. ­
Quanto tempo Ro... Faz o que? Uns dez anos que a gente não se fala? – Pergunta ao tomá­la pela mão. ­
Não sei bem, mas acho que sim, uns dez anos. – Chegam ao café, ficam em uma das mesas do lado de fora, a vista não dava outra opção. Um expresso e um chá são pedidos e a conversa continua. 71 ­
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Então Ro, como você está, quais são as novidades, vamos, não deixe de contar nada. – Fala com sua animação costumeira. Trabalho, trabalho e mais trabalho... Só a preguiçosa da Aniel consegue arrumar tempo pra namorar, não sei como ela faz isso. – A outra cai na gargalhada, Royel a observar sem entender muito, mas ao ver o esforço em vão de Aséalia para tentar falar algo começa a rir também. A Ani, a Ani... Fala sério! – Mais risos. – Ela ta namorando? Como isso aconteceu meu deus, que coisa mais engraçada. – Limpa algumas lágrimas e tenta segurar o riso. Não sei como aconteceu, quem me conto foi a Mihael, isso há alguns meses. Não sei como ela consegue. Nem eu, mas enfim, deixa ela pra lá, me fala de você Ro, só trabalho mesmo? – Curiosa. Ah... Tem umas coisinhas, mas não são nada de mais. – Fala tímida. Diz ai. – O café e o chá são servidos. To usando meu pouco tempo livre pra investir, comprando algumas ações, coisas assim. Só isso? – Mesmo desanimada com a vida da amiga sua excitação e alegria estavam sempre presentes. É, eu disse que não era nada de mais. – Toma um gole do chá. – Mas é bem divertido, sabe, se arriscar nos investimentos e sempre procurar o melhor negocio, é muito bom. Você devia tentar. – Sorri. Quem sabe quando eu morrer. – Fala aos risos, Royel a acompanha. Você nunca muda, sempre debochando de tudo. É verdade, eu não me seguro. – Olha para a xícara, o café refletia graciosamente a luz da Lua, toma um gole olha para a amiga. – Ro... Fala. – Já sabendo o que aconteceria agora. Então, o que aconteceu? – Começa um pouco mais séria, mas seu sorriso permanece em seus lábios. Eu ouvi alguns boatos, normalmente eu não me preocuparia com esse tipo de coisa, mas esses são diferentes, e você sabe disso. Como assim? – Pergunta extremamente curiosa. Senhorita chegamos, Senhorita? ­
Ahã? Sim? – Royel volta à realidade, havia se perdido em suas lembranças. ­
Já chegamos senhorita. ­
Ótimo. – Sai do táxi rapidamente, não podia perder tempo. Entra no saguão quase correndo, não era hora para sutileza. Seus passos são notados por todos que ali estão. Alguém como ela, mesmo quando tenta ser o mais discreta possível, nunca passaria despercebida. Chega à recepção e é prontamente atendida pela jovem que ali está. ­
Pois não senhorita, no que posso ajudá­la? – Pergunta em um tom levemente amargo, a inveja a consumia por dentro. ­
Estou procurando uma amiga minha, Aniel, em que quarto ela está hospedada? – Pergunta em francês, falar inglês não a agradava. 72 ­
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Só um momento, por favor. – Responde também em francês. Rapidamente digita algo no computador a sua frente e volta a falar. – Ela está em uma de nossas suítes de luxo. Ótimo. 73 IX Aniel acorda de seu sono com um pulo assustado, como se sua consciência fosse violentamente jogada dentro de seu corpo. Olha em volta preocupada; algumas gotas de suor escorrem pelo seu rosto. Procura o causador de seu despertar tão repentino, mas tudo que vê é seu quarto belamente iluminado pelo sol da tarde e as cortinas dançando graciosamente com o bater do vento, somente isso. Sua mão vai ao rosto, andava muito tensa e abatida, não sabia o que fazer. Demora a sair da cama, mesmo tendo dormido horas seu corpo não parecia descansado, suas pernas estavam doloridas como se tivesse caminhado por muito tempo. Olha para o relógio, já passa das duas da tarde, não pode ficar mais tempo deitada. Deixa as cobertas para trás e segue para o banheiro, tomar um rápido banho. Liga a ducha, joga sua camisola em um canto e sem demora já esta com a água fria escorrendo pelo seu corpo. Fica de olhos fechados em baixo do chuveiro, somente ouvindo o som das gotas batendo nos azulejos do chão. Não queria gastar muito tempo em seu banho, coisas precisavam ser feitas, mas havia relaxado tanto que nem notou os vários minutos passarem. Desliga a ducha, pega uma toalha próxima e seca­se calmamente, não tinha mais pressa. Agora que já esta se sentindo melhor é que a loira nota como estava com fome, seu estômago era um grande vazio. Caminha até o telefone para pedir seu café da manhã, porem assim que passa pela sala nota uma enorme variedade de frutas, pães, bolos e sucos belamente postos sobre a mesa, nunca havia pedido nada assim. Fica ali, olhando curiosa para a mesa sem entender como não havia visto isso antes. Quando ia se sentar para apreciar seu desjejum uma leve batida na porta a interrompe. ­
Sim? – Pergunta enquanto caminha em direção a entrada. ­
Aniel? – A voz lhe soa familiar, mas não consegue lembrar de quem a pertence. Abre a porta. ­
Royel? – A loira olha espantada, não esperava ver uma antiga amiga. ­
Não vai me convidar para entrar? – Aparece um pequeno sorriso no canto de sua boca. – É assim que você trata as suas amigas? – Aniel abraça­a repentinamente a deixando sem jeito. ­
Que bom que você ta aqui Ro. Eu não sei mais o que fazer. ­
Você pode começar me soltando e servindo algo pra eu beber. – Seus olhos azuis se cruzam. ­
Claro, claro, entra. – Pega­a pela mão e a acompanha até a mesa. – Eu ia tomar café agora, acordei há pouco tempo. ­
Noite agitada a de ontem então. – Deixa escapar uma leve risada maldosa, a outra a olha com um sorriso. ­
Antes fosse isso... – Suspira desanimada. – As coisas tão péssimas por aqui... – Royel se acomoda em uma das cadeiras enquanto a loira enche dois copos com um suco provavelmente de laranja. ­
Eu sei. – Acaricia a mão da amiga. – Vim por causa disso. ­
Ahãn? Como você ficou sabendo? – Confusa. ­
Há algum tempo eu conversei com a Rochel, ela me falou algumas coisas. – Toma um longo gole do suco. – Uhmm que delicia ta esse suco. Você já experimento? 74 Ainda não... Então toma logo um gole, ta muito bom. – Volta a beber. Certo, mas Ro, o que a Rochel te conto? – Pergunta curiosa. A morena põe o copo sobre a mesa e pensa por alguns instantes antes de responder. ­
Calma Aniel, a gente vai ter bastante tempo pra conversar. – Pega um pedaço de torta e começa a comer. Eu acabei de sair de uma viajem de 5 horas, e você sabe como comida de avião é ruim, mesmo na primeira classe. – Sorri para a outra, não havia notado como sentia falta dela. ­
É eu sei como é. – Um leve riso. – Mas por que você não veio como normalmente faz? ­
Não sei explicar, mas não ando me sentindo muito segura por lá... – Coloca o copo sobre a mesa e pega uma fatia de torta próxima. ­
Sei como é... ­
Meu deus Ani! Eu vou me hospedar aqui, essa torta ta muito boa! Se eu acordasse todo dia com uma comida dessas. Sério, ta muito bom, experimenta. – Pega um grande pedaço da torta, leva o garfo até a boca da loira, quase a forçando a engolir, Aniel mastiga por alguns instantes até que um largo sorriso se abre. ­
Ta muito bom mesmo, parece que desmancha na boca. ­
Eu não disse. – Sorri alegre, como se estar certa sobre o quão boa a torta era, fosse a coisa mais importante do mundo. À tarde foi se esvaindo sem que nenhuma delas notasse a passagem do tempo, Aniel deixara suas preocupações de lado, elas podiam esperar, agora parecia melhor perder­se na conversa junto da amiga. Queria aproveitar o máximo a inesperada visita. Falaram por horas sobre o passado e sobre tudo mais que surgia em suas mentes, mas ao cair da noite o tom do dialogo começa a mudar. ­
Aniel, que tal pedir um vinho? O suco já acabo há horas. – Balança o copo em frente ao rosto. ­
Certo. – Caminha até o telefone, chama o serviço de quarto, em poucos instantes já estava em seu lugar no sofá de novamente. ­
Aniel, Aniel, quase que me esqueço de pegar no teu pé. – A outra a olha com de uma maneira particularmente engraçada. – Fiquei sabendo que você tava namorando até um tempo atrás, como é que pode isso? Sua safada. – Sorri maldosamente para a loira. ­
Ah! – Protesta. – De novo isso não... Todo mundo ta me incomodando por causa disso. – Desaba no sofá quase indo ao chão, Royel apenas ri. ­
Eu ainda não fiz, mas tenho todo o direito de fazê­lo. Então, me conta ai, como que foi essa história. – Curiosa. ­
Bem, eu andava meio sozinha por aqui, daí acabou acontecendo. E ele era um cara legal. – Fala desanimada, não queria lembrar disso agora. ­
Ele “era”? O que aconteceu, você deu fim nele? ­
É... – Abaixa a cabeça vermelha de vergonha. ­
Aniii, só você mesmo pra fazer essas coisas. Mas espero que tenha pelo menos valido a pena, afinal deve ter dado mundo trabalho, sabe pra não dar suspeita e essas coisas. ­
Não, foi tranqüilo até. – Volta a olhá­la. ­
E como que você dispensou ele? – Aniel esconde o rosto com as mãos e fala baixinho. ­
Quan...ele...m...peu...m...asanto... ­
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Como? Quando ele me pediu em casamento... – A morena se abre em risos. – Não ri Ro, não foi legal. Sei, sei. – Começa a se controlar. – Você deve ter adorado, fala a verdade. É...Não foi ruim, mas eu não queria que tivesse chegado a esse ponto. Eu sei, eu sei. Mas nem se preocupa muito com isso, a gente tem coisas bem piores pra se preocupar agora. – Toca a campainha. Deve ser o vinho. – Fala rapidamente. Momentos depois volta com uma bela garrafa de Joh.Jos.Prüm Graacher Himmelreich Auslese e duas grandes taças, as enche, entrega uma para a amiga e a outra coloca ao seu lado em uma pequena mesa. – Então Ro, conta tudo que a Rochel falou. Certo. – Toma um gole do vinho e volta a falar. – Há algum tempo, ela me ligou desesperada. – Gesticula um pouco enquanto conta o ocorrido. – Ela veio falando que algo muito ruim tinha acontecido com vocês duas. Não me contou o que era, mas eu já imaginava. – Faz uma pausa. – Sabe Aniel, isso que está acontecendo com você, não é de agora. Como assim? – Confusa. Eu já tinha ouvido uns boatos estranhos, tanto que fui procurar a Aséalia por causa deles. Eu normalmente não ligo pra essas coisas, mas esses eram diferentes. – Olha nos olhos da loira. – Falavam de coisas que normalmente a gente não toca. Não to entendendo Ro. – Toma um gole de seu vinho. Aniel, você passou tempo de mais vivendo a vida deles! Já ta se esquecendo de como a gente realmente é! – Num pulo fica de pé. – Esses boatos falavam do Livro Aniel, dos nossos Livros... – Deixa a amiga pasma. – Você passou tanto tempo se misturando que acabou ficando mais vulnerável a tudo isso... Mas só nós sabemos onde eles ficam... Como é possível se quer saber da existência deles? Eu sei que é estranho, mas é verdade... Eles diziam que as páginas logo acabariam... E todo mundo sabe que isso é totalmente impossível. – Fala com um pouco de deboche antes de terminar seu vinho. Verdade, os nomes nunca acabam. Isso tudo ta me deixando ainda mais confusa. Aniel, coloca mais um pouco de vinho? – Sorri para descontrair. Ah, claro. – Enche novamente as taças. – Mas onde que você ouviu esses boatos? – Pergunta curiosa. Foi... Lembranças Já passava das dez da noite, Royel encontrava­se sentada em um belo banco de madeira próximo a uma pequena praça, onde de dia era muito freqüentada por crianças alegres acompanhadas de seus pais e a noite visitada por namorados passeando ao luar e carrinhos de cachorro­quente. Estava ali já há algum tempo, observava a cidade a sua volta que ainda se mantinha em movimento com a vida noturna. Normalmente uma mulher como ela chamaria muita atenção, no entanto hoje ninguém parecia notá­la, como se não estivesse realmente ali. Estava chegando à hora de ir, amanhã seria um dia cheio e ainda precisava descansar, se pôs de pé, então que uma voz próxima chama sua atenção. Mais á frente um pequeno grupo 76 de rapazes caminhava tranqüilamente em sua direção. A morena os observou com uma curiosidade relaxada, não esperava ver nada de importante neles. Um dos garotos notou que ela os seguia com os olhos, e, imediatamente se afastou do grupo caminhando até Royel. ­
Oi. – Disse o garoto animado ao se aproximar da bela mulher, seus amigos mais a frente olhavam e riam do companheiro. ­
Olá Robson. – Falou secamente, o garoto se espanta. ­
Como você sabe meu nome? A gente se conhece? – Perguntou levemente confuso. ­
Não, a gente não se conhece. – Deixa o outro sem entender ainda mais o que estava acontecendo. – Olha garoto, hoje não é o seu dia... ­
Como assim? – Sentou no banco onde a outra estava até a poucos instantes, Royel senta ao seu lado. ­
Sabe, se tem alguma coisa que você queira dizer pra alguém, agora é à hora. ­
Primeiro você sabe meu nome e não me diz nada, agora fica falando besteiras. ­
Tem algo que você quer dizer pra alguém ou não, sabe, eu to com pouco de pressa aqui. – Põe a mão na cabeça desanimada, cada um era mais chato que o outro, não era fácil aceitar o fato na flor da idade. ­
Não, pra você eu não vou dizer nada. – Se levanta irritado. – Cansei dessa conversa maluca! Você é doida. E as páginas da sua vida logo vão acabar. ­
Com certeza... O garoto da às costas e começa a atravessar a rua, a morena novamente o acompanha com o olhar, mas agora sua atenção se fixa em algo que não estava ali antes. Uma mancha negra que flutuava sobre a cabeça do jovem, há apenas alguns centímetros acima. Era indefinido, seu corpo cor de piche parecia avançar e se contrair em todas as direções, não lembrava nada, mas ao mesmo tempo parecia com tudo. Algumas vezes estranhos tentáculos podiam ser vistos saindo de dentro da bizarra criatura em direção ao garoto, a sua volta uma leve névoa negra começava a surgir. ­
É já estava na hora. – Assim que termina a frase seus belos olhos azuis se fecham para esperar o inevitável. Um calor tomou o corpo de Royel, uma sensação de pura euforia, tão perfeita que seria difícil de acreditar se ela já não estivesse acostumada. Então que um estrondo é ouvido. Rapidamente volta a se abrir seus olhos para ver o motivo de tudo aquilo, de todo o prazer. A sua frente o jovem era arremessado para longe após ser atingido subitamente por uma caminhonete que freava bruscamente. 77 X A porta se abre, um homem passa despreocupado e a fecha a suas costas, continua caminhando tranqüilamente, até parar subitamente assustado. Confuso procura raciocinar onde está , a cada segundo que passa seu coração começa a bater mais freneticamente. Devagar volta olhar em volta incrédulo, em sua mente agora só há espaço para uma frase; “Onde estou?”. Nada disso podia ser verdade, há apenas alguns segundos estava em casa, tranqüilo, chegara do trabalho ainda a pouco, tomara uma xícara café, como de costume, andou até seu quarto para se trocar, mas não estava mais lá. Olha para trás, para a porta fechada, tenta desesperadamente abri­la, em vão. Encontrava­se agora em um lugar úmido e escuro, feito inteiramente de concreto, aparentemente muito velho e sujo. Um pouco apertado, sua altura não passava de dois metros e vinte por no máximo um metro e meio de largura, somente algumas lâmpadas de cor vermelha presas ao chão tornavam possível se enxergar algo ali. Porem esses pequenos guias só continuam em uma direção, a direita a sua esquerda nada podia ver. Sem muitas opções começa a caminhar seguindo as luzes, tremendo de medo com passos curtos e inseguros. Mesmo com a vista já adaptada com a escuridão tudo que consegue ver mais adiante é concreto, algumas goteiras e muito entulho espalhado por todo o lugar. Com o tempo a preocupação que antes lhe furtava os pensamentos começa a dissipar, nada ali parecia conter algum perigo, mas ainda estava muito confuso e ao menor rangido o medo voltava à presença, mesmo que pequena. O homem não tem nenhuma noção de tempo, seu celular não liga, nem mesmo seu relógio de pulso parecia funcionar, os ponteiros giravam sem controle. Podia estar andando há horas ou há minutos, não tinha como realmente saber, algo no ambiente mexia com suas percepções, não sabia explicar exatamente o que era, talvez o choque ou mesmo um pavor mais forte aprisionado em seu interior. Nada parecia realmente mudar, alguns pedaços de madeira ou ferro retorcidos pelo chão crivam seu único passa­tempo, desviar deles. Quando o tédio já o havia tomado por inteiro, algo a frente chama sua atenção, um leve brilho prateado perto de uma das escassas lâmpadas. Corre sem hesitar até lá, conforme se aproxima o objeto começa a mudar de posição, se afastando da luz, indo em direção ao teto do corredor. Novamente seu coração acelera, preso ao teto esta um revolver magnum calibre 357. Ele pára, uma arma em um lugar como esse confirmava que mais alguém já havia passado por aqui, talvez, talvez se acelerasse o passo, ou corresse um pouco poderia encontrar o dono da arma ou pelo menos alguma alma viva, talvez... Estica seu braço tremulo até o revolver, sem precisar fazer nenhuma força o pega, como se a arma não estivesse presa ao teto por nada. Com cuidado verifica se estava carregada, quatro balas, um disparo havia sido feito. Olha em volta a procura de alguma marca do tiro, não encontra nada. Um pouco mais seguro põe a magnum na cintura, apoiada em seu cinto e continua a caminhar, agora um pouco desconfortável devido ao seu novo companheiro. Enquanto segue sem muitas esperanças, várias teorias de “como” e “porque” se encontrava ali passaram por sua mente. Sempre tivera uma vida calma, nada de muito interessante acontecia em seu dia a dia. “Quem sabe” pensou, “quem sabe Deus não está me punindo por algo? Por ter desperdiçado minha vida com um emprego que não gosto e altamente egoísta? Ou eu posso estar sendo alvo de algum vodu... Não sei... Talvez alguém que faliu a minhas custas pode ter feito isso para se vingar de mim. Não... Talvez...”. 78 ­ Hmm, o que é aquilo? – Fala consigo mesmo sem notar ao ver algo diferente. Curioso ele se aproxima com cautela, há apenas alguns metros seguindo o corredor sua típica cor avermelhada começa a ser substituída por um azul escuro. O homem pára de súbito, seus olhos arregalam de espanto, não tinha visto nada parecido com aquilo. À frente as paredes de concreto do bizarro lugar são substituídas por uma grossa camada de algo transparente como vidro, porem levemente viscoso. Tudo parecia muito mais confuso, podia ver que estava andando sob um oceano, a fraca luminosidade azul vinha de cima, atravessando pelo menos quinze metros de água e morrendo assim que chega onde esta. Voltar andar, mas agora com dificuldades, seus pés ficam levemente colados ao chão, um pouco de força precisa ser feita a cada passo. Seu ritmo diminui, andar vira um esforço desagradável, então resolve parar um pouco para descansar e curioso vasculha as águas ao redor em busca de qualquer coisa que pudesse distrai­lo, como se estivesse em algum tipo de aquário exótico, mas o lado de fora parecia ser tão desprovido de vida quando o corredor. Nada acontece, seus olhos lentamente ficam pesados até que rapidamente tudo escurece, as pequenas luzes vermelhas não existiam mais, haviam ficado para trás assim que a construção mudou. Se levanta instintivamente e olha para cima, o que vê é incrível, no oceano sobre seus ombros algo gigantesco nada, tão imenso que sozinho consegue tapar a luz que o guia por centenas de metros. Fica ali, paralisado de medo e surpresa por alguns minutos, somente vendo a colossal criatura passar logo acima. Não consegue definir o que é, nem ao menos passa por sua mente algo razoável do que poderia ser, talvez seja uma baleia espacial. Lentamente a luz azulada volta a clarear o local, a estranha criatura aos poucos some na escuridão do oceano, ia para as profundezas de onde veio. Aos poucos o homem deixa o estado de choque em que estava e volta a si. Novamente sua mente é bombardeada por milhares de pensamentos e teorias do que esta acontecendo. Tremulas suas mãos vão até seu rosto suado, não sabia o que fazer. “Não sei se agüento caminhar mais um passo nesse maldito corredor sem fim!”, pensa ao olhar para o revólver em sua cintura, “Talvez eu não precise, posso acabar com isso agora mesmo, é só puxar o gatilho... É só puxar o gatilho...”. Lentamente sua mão vai até a magnum. ­
Não! – Grita para si. – Não... – Respira fundo. Poderia deixar a arma ali mesmo e seguir sem ela, assim evitaria idéias absurdas, mas sem saber o que encontraria mais a frente desiste rapidamente disso. Mais uma vez volta à procura de novo algo nas águas, sem ver nada e sem escolha segue em frente. Acorda assustado, havia parado para descansar um pouco, mas sem notar acabou adormecendo. Sonolento olha em volta, esperava não encontrar nada além de seu quarto ou uma mesa de bar, mas no entanto tudo que vê é o mesmo oceano deserto. Com certa dificuldade se põe de pé, suas costas e pernas acabaram ficando coladas na estranha parede transparente. Esfrega suas mãos no rosto, olha para a barriga, não comia nada há muito tempo, seu estomago já estava roncando há horas. ­
Acordado Felipe? Pensei que você ia ficar dormindo por mais algumas horas. – O homem se vira assustado, a sua direita, somente alguns metros à frente esta parada uma mulher magnífica, tão bela que parece ter sido arrancada de algum conto de fadas polar. Usando um grande casaco de pele azul que brilha na escuridão, somente seu rosto não esta coberto pela exuberante roupa. Seus olhos também azuis, mas levemente escondidos atrás de um cabelo extremamente escuro e cacheados, pele branca com algumas sardas, sua boca delicada e muito vermelha. Não saberia ele descrever de nenhum outro jeito, era a pessoa mais perfeita que já 79 havia visto em sua vida. Ela estava encostada em uma porta semi­aberta que tinha certeza que não estava ali. ­
Quem é você? – Tenta manter sua voz firme, sem nenhum sucesso, a presença dela vem acompanhada de uma intimidação esmagadora. ­
Felipe, você já está atrasado, nós não temos tempos para isso. – Sai de frente da porta e a abre, uma forte luz vêm do outro lado. – Vamos entre. – Sorrindo. ­
Atrasado? – Pergunta confuso. ­
Sim Felipe, atrasado. Vamos entre. – Caminha até o homem e o pega pela mão, sente seu toque tão frio quanto gelo. ­
Mas... ­
Não temos tempo, entre. – Sorri. Felipe a olha perplexo, depois para a luz a vinda do outro lado, então em um único passo atravessa a porta. Rapidamente tapa sua visão com o braço, sua visão já acostumada com a escuridão é ofuscada pela forte luz, segundos depois seus olhos param de arder e passa a enxergar sem tantas dificuldades. Não esta mais em nenhum corredor, encontrava­se agora em um belo parque, a sua volta muitas árvores, crianças e pessoas aproveitando a ensolarada manhã. Olha para trás para ver a porta por onde passara há poucos segundos, mas não vê nada além de grama e cestas de piquenique. 80 XI ­
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Ta certo Royel... O que isso que você me conto tem a ver com o boato e tudo mais? – Pega a garrafa de vinho distraída e tenta encher sua taça, mas ela já estava vazia. Você não prestou atenção no que ele disse? “E as páginas da sua vida logo vão acabar”. Vai dizer que isso não é muito estranho. – Toma o resto de seu vinho e coloca a taça em cima de uma pequena mesa próxima. Não sei, ele simplesmente podia ser um desses garotos que jogam RPG de mais e falam de um jeito estranho. Você sabe como é, “eu vo te matar seu orc sujo”, essas coisas... – Solta um tímido riso. Não, tenho certeza que não. E tem mais, ainda não acabei. – Séria. E por que você parou de contar? – Fala em um tom nervoso, porem qualquer um que a conhecesse sabia que estava brincando. Aniel não enche e escuta. – Começa a rir. Certo, certo... Lembranças Normalmente estaria com um leve sorriso em seu rosto, um sorriso de satisfação, de mais um trabalho bem feito, mas hoje não era o dia disso acontecer, algo estava errado. “Eles não o estão levando... Por que...?” Pensa ao ver um volto negro que lembrava vagamente a forma de um homem corcunda se aproximar do jovem morto há alguns metros à frente, estirado no asfalto. ­
Ele falou algo pra você, não foi? – A voz gela sua espinha, mas Royel não se vira para ver quem falava, não precisava e nem queria. ­
Sim... Mas não entendo o que está acontecendo. – Um pouco abalada. ­
O que foi que o garoto disse, eu posso ajudar, você sabe disso. – Não via, mas sabia que ele estava com um sorriso malicioso em seu rosto. ­
Sim, eu sei que você pode ajudar... – A criatura negra anda em volta do morto no asfalto sem se importar com as pessoas em volta, como se elas não existissem. ­
Então, o que ele lhe falou? ­
Disse que as páginas da minha vida estão próximas do fim... – Abaixa a cabeça. ­
É, já esperava algo assim... Olhe Royel, o que mantém vocês aqui são eles, sem isso vocês... – O interrompe. ­
Mas... ­
Eu não sei como explicar isso bem, mas se isso continuar assim, nesse ritmo... – Pára por um segundo. – Você não tem notado como o seu trabalho aumentou drasticamente nos últimos anos? ­
Sim, eu notei sim, mas não cheguei a me preocupar. Afinal já teve tempos bem piores – Sente um leve gélido toque em seu ombro. 81 ­
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Mas deveria, um deles já esta conseguindo se soltar, e outros dois logo vão conseguir também. Você tem certeza disso? – Pergunta preocupada, mas ainda sem olhar para o lado. Sim, tenho sim. Aséalia me contou. Ela o viu. Claro... Ela sempre os observava de perto. Sim, ela sempre estava por perto... Então não há nada que eu possa fazer? Quer dizer, além de esperar? Isso eu já não sei. Como assim? – Confusa. Eu não sei de tudo Royel, mas posso te garantir que se a situação não mudar, vocês vão morrer, todas vocês. Aniel não fala nada, a loira fica calada por um longo tempo, não sabia o que dizer. É claro que a idéia já havia passado por sua mente, mas logo ignorada. Royel também não fala nada, agora era a vez da amiga falar. Em seu âmago ela sábia que a companheira de anos, de vidas, era a resposta mais certa para o que estava realmente acontecendo, mas mesmo assim não queria acreditar. A morte sempre foi uma companheira, alguém que andava ao seu lado, nunca a pessoa que a perseguia. Levanta sobre os olhares atentos da amiga que ainda permanece em silencio. Caminha até o pequeno bar, pega uma garrafa de Johnnie Walker, enche um copo e rapidamente o toma. ­
Vai com calma Ani. – Preocupada. – Não é tão ruim quanto parece. ­
Não? – Pela primeira vez na vida sua voz vem carregada de medo e insegurança. ­
Não... Eu ainda não acabei... ­
Não? – Pergunta curiosa ainda com o copo vazio em sua mão. ­
Ani, parece que a Aséalia sabe como impedir isso, não deixar a gente morrer. – Abaixa a cabeça e olha para o suave balançar de suas pernas cruzadas. 82 XII O vento não sopra mais, até o lago que brilhava intensamente com a luz do sol parece ter parado com seu incansável ondular, no entanto Daniel não presta atenção a nenhum desses pequenos detalhes, detalhes esses que só tornam o lugar mais encantador. Seu corpo tremia, suava frio, estava paralisado de medo. Tudo em volta parecia ter entrado numa atmosfera surreal de silêncio aterrorizador, como se um manto negro caísse vagarosamente sobre o parque abafando qualquer som ali produzido. A sua volta as bizarras criaturas parecem observá­lo como felinos rondando um animal, só esperando o momento certo para o ataque fulminante, mas a espessa névoa que os encobria ocultava qualquer tentativa de vê­los como realmente são ou o que fazem. Com extrema dificuldade sua boca começa a se mexer, o garoto gagueja algo incompreensível para a bela morena com quem conversava. Nenhuma resposta... Reunindo toda sua coragem e juntando o resto de sua sanidade, consciência sã que parece ser sugada de seu corpo, pois tudo em volta o apavora, o aterroriza por que é real, e nesse estado de mais puro medo voltar a falar. ­
Vovovocê ta ta ta vendo isso? – Seu coração pode explodir a qualquer momento, como se tentasse se igualar a um beija­flor. Novamente sem resposta, devagar vira seu rosto, mas a mulher já não está mais ao seu lado. Aos poucos a luz do dia vai se esvaindo, as pessoas que ali estão lentamente param no tempo, permanecendo imóveis e levemente fora de foco como em uma pintura a óleo. As esquálidas criaturas continuam a circular o garoto, mas agora de uma maneira diferente, agiam cada vez mais como se entrassem em uma lúdica dança infantil, dando pequenos pulos ritmados no ar. Daniel continua em pânico, seus instintos ordenam que ele se levante e fuja o imediatamente dali, mas ele não consegue nem se quer gritar por socorro ou mesmo fechar seus olhos e rezar para que tudo fosse apenas um terrível pesadelo, sim, apenas um sonho ruim de uma criança cansada, que acabou por cair no sono em pleno parque, mas não conseguia fazer nada. Um som vem de trás e quebra o forçado silencio; um chiado estranho que lembra vagamente o barulho feito por uma tevê fora do ar ligada no volume máximo. A curiosidade sobrepõe todo o medo que sente, queria ver o que produzira o barulho, mas ainda não consegue se mexer de nenhuma maneira. Uma batida, como a de uma porta se fechando violentamente e o ruído some. Daniel ouve algumas palavras ditas pela morena que a pouco estava ao seu lado, porem não as compreende, então que alguém grita. ­ Nãooo!!! – A voz é feminina, vinda de algum ponto a suas costas, e, acompanhando o apelo o pesado estampido de disparo. Daniel é atingido, a bala atravessa o banco como se nem existisse o acertando um pouco abaixo do coração, uma grande quantidade de sangue e lascas de madeira espalham­se por todos os lados. Lentamente o garoto cai no chão, primeiro os joelhos que batem na grama silenciosamente, depois sua cabeça que vai ao verde mecanicamente, os olhos abertos, a expressão perplexa de alguém que encara a morte e entende o real motivo, e o aceita. Daniel nada mais sente, já jazia no chão quando uma a uma as criaturas se jogam em cima de seu corpo esfomeadas. Novamente o estranho chiado preenche o vazio sonoro do parque, mas dessa vez ele não cessa quando mais uma vez a arma dispara. 83 A Rosa de Vidro I Tudo está quieto, apenas o relógio quebra o silencio com seu tiquetaquear costumeiro, as cortinas se movem esporadicamente com o bater do vendo que mostrava presença poucas vezes. No centro da sala dois homens sentados em uma mesa, cada um de frente para o outro, entediados. O da direta vestido um belo terno completamente preto, o da esquerda um terno similar só que da cor branca. Sobre a antiga tábua de carvalho do móvel uma garrafa de vidro retorcido contendo um líquido de cor rosada e dois copos vazios. ­
Então... – Começa a falar timidamente o homem de branco. – Ela está atrasada não esta? ­
Não. – Responde o outro com certa surpresa. – Olhe você mesmo o relógio, falta bastante tempo ainda. – O outro se volta para o grande relógio na parede ao seu lado e o encara por alguns instantes, depois volta a falar. ­
Ela está atrasada sim, alguns dias... ­
Você tem certeza? – Pergunta desconfiado. ­
Acho que sim... – Nesse momento um leve som chama a atenção dos dois, vinha da pequena porta em forma de ampulheta do outro lado do cômodo. ­
Chegou! E pontual como sempre. ­
Não, ela está atrasa. – Retruca em um tom de teimosia. ­
Não importa agora. – Vagarosamente, com seus ferrolhos rangendo por todo o lugar a porta é aberta, como se a pessoa do outro lado desconfiasse de algo. – Pode entrar Mikael, não há ninguém aqui além de nós dois. – Abre completamente, uma bela mulher entra na sala, seus olhos cor de mel fitam os dois homens sentados por alguns segundos, até que finalmente começa a falar. ­
Vocês não sabem pelo que eu tive que passar pra conseguir isso... ­
Está com ai? Você trouxe? – Pergunta o de branco extremamente empolgado. ­
É claro que eu trouxe. – Retira do bolso uma pequena caixa de cristal, dentro dela uma bela rosa feita de vidro, aparentemente muito delicada. Suas pétalas continham inúmeras inscrições em uma língua nunca ouvida. – Aqui está. – Caminha até a mesa de carvalho e coloca a pequena flor em seu centro. ­
Ótimo, ótimo! Você não sabe como isso nos deixa feliz. – Diz o de preto com um grande sorriso em seu rosto. ­
Ela é perfeita. – Sussurra o outro enquanto enchia os dois copos com o liquido rosado. – Perfeita... Não parece possível que realmente exista. ­
Certo, certo, eu peguei o que vocês queriam, agora devolvam o que me pertence. – Estava claramente irritada, mas sua voz se mantinha em um tom sereno, fruto de anos de prática. 84 ­
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Acredite Mikael, nós fizemos isso para o bem de todas vocês. Responde o de preto ao se levantar. Vocês deviam ser imparciais, apenas observadores nesse jogo estúpido. – Recua um pouco com cautela enquanto os observa atentamente. É verdade Mikael, mas não teria a menor graça assim. – Fala o de branco após tomar um gole de seu copo. – E além do mais, se esse “jogo” acabar todos nós vamos perder, inclusive vocês. Ele está certo Mikael... – Caminha até uma pequena cômoda quase imperceptível em um dos cantos e pega sobre ela um grande livro. – Aqui está. – A mulher o olha atentamente, era ele, o reconheceria em qualquer lugar. Rapidamente o tira das mãos do homem de preto. Mas o que vocês querem dizer com fim do jogo? – Pergunta um pouco confusa ainda verificando o livro em suas mãos. – Essas coisas não acabam... Tudo sempre foi assim, cada um tentando passar a perna no outro, mas sempre houve um equilíbrio, o garoto nunca errou. Você não notou como tudo anda meio diferente? – Começa o de branco. – Todos parecem preocupados com algo, um desconfiando do outro... O trabalho de vocês ficou muito mais intenso nesses últimos anos, não foi? – Volta a se sentar na cadeira e toma um pouco da bebida em seu copo. – Você viu como foi difícil conseguir essa bela rosa. Primeiro que ela não devia existir e segundo vocês me fizeram rouba­la, seus chantagistas. – Mikal volta sua atenção novamente para eles. – Como vocês me explicam isso? Como ela pode existir? Eu não sei dizer bem, mas a Aséalia... Ela... Nós não temos certeza... – Interrompe o de preto. É, nós não temos certeza, mas acreditamos que ela tenha matado o matemático... Isso é impossível! – Retruca incrédula. – Vocês sabem disso. Ele é quem dita quem morre e quem vive nos mundos, ele controla tudo, ela nunca ia conseguir tocá­lo! Mas de algum modo ela conseguiu, não sei como... – Responde o homem de branco ao encher o copo de seu companheiro. Ãhn? Como vocês não sabem? – Olha os dois com desconfiança, eles sempre sabiam de tudo, algo estava muito errado. – Vocês só podem estar mentindo, ninguém pode desobedecer aquele pirralho mimado. A Aséalia não pode fazer nada assim. Veja Mikael. – Começa a falar o homem de branco. – Ele apagou alguns números, há uns anos, e você sabe que o matemático nunca diz o motivo das coisas que faz, mas o que importa é que tudo parece ter mudado levemente. Acho que essa alteração deixou uma brecha, um espaço em branco. Não é qualquer um que sabe o que fazer para interferir em tudo. Não sei o como ela descobriu isso e nem o que esta para acontecer, mas posso lhe assegurar que agora nem mesmo o passado é certo. Absurdo, ele não cometeria suicídio. – Fala com desprezo. Não foi que dissemos... Chega... Chega disso. Não quero saber de mais nada, não me importa o que está acontecendo! Nem o que vão fazer com isso, agora o problema é de vocês. – E sem dizer mais nada se vira bruscamente e sai da pequena sala batendo a porta. 85 ­
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O que você acha que a ela vai fazer agora? Pergunta o de branco ainda olhando para a porta recém fechada. Isso não importa realmente, importa? Não, nós já temos a rosa, não precisamos de mais nada. Sim, já estava na hora de nos livramos dessas correntes. 86 II Aniel leva seu copo de whisky até os lábios e o deixa ali por alguns segundos, o vidro gelado toca despreocupado sua boca antes de tomar um rápido gole. O dia estava quase chegando ao fim, o sol poente iluminava todo o quarto com um belo tom alaranjado. Calmamente a loira caminha até das janelas e fica ali por algum tempo apreciando a vista de Mainhattan, Royel ainda estava sentada em uma das poltronas da sala, olhava preocupada, temia alguma reação extrema da amiga. Devagar se afasta da janela e põe seu copo já vazio sobre a pequena mesa do bar, sua cabeça borbulhava com pensamentos insanos, a idéia da morrer, era ao mesmo temo ameaçadora quanto sedutora, passara toda sua existência guiando pessoas para os braços da morte, quem faria isso caso realmente chegasse a sua vez? Aniel nunca soube realmente o que acontece com os que se vão, será que ela se uniria a eles? Valia a pena continuar viva depois de tanto tempo? Tão antiga quanto a terra em si, já não lembrava de sua infância, existiu realmente alguma infância? Brincadeiras e falta de responsabilidades? Não era humana, isso era para eles, os privilegiados suicidas, como eram capazes de construir não só a sua própria destruição quanto à de tudo em volta...? Novamente senta em frente à amiga, não fala nada, continuava a pensar, confusa, em choque talvez. Passa alguns segundos se distraindo com sua sombra no carpete branco do quarto, seu contorno delicado parecia quase etéreo. A luz vindo das janelas a suas costas batia de leve no rosto quase branco de Royel fazendo seus lindos olhos brilharem intensamente. Encara à amiga que ainda a observava preocupada e começa a falar. ­
Você tem certeza de tudo isso Ro? Não tem como ser alguma outra coisa? – Sua voz agora parecia estar mais calma, mas as duas sabiam que era somente aparência. ­
Tenho sim... Você devia saber mais do que qualquer outra que isso estar por vir. – Desvia os olhos da loira, agora é ela que se distrai com as sombras sobre o carpete. – Ele deixou tudo bem claro isso tudo, outras pessoas já me comentaram coisas parecidas. ­
E o que eu devo fazer? Você não veio até aqui me falar isso por nada. – Aniel pôs­se de pé novamente. ­
Eu realmente não sei Ani... Aséalia sabe de algo, acho que nós devíamos procurá­la. ­
Não sei, ela já deixou bem claro que não quer que eu a encontre... Volta a se aproximar da janela, mas logo em seus primeiros passos nota algo diferente. Lentamente encosta sua mão no parapeito e observa com cuidado o cenário lá fora. ­
O que foi? Aconteceu alguma coisa? – Pergunta vendo a cautela da ação, mas a loira não responde, continua apoiada sobre a janela observando o lado de fora. – Ani? O que foi? – Se aproxima. ­
Algo mudou, ta tudo tão estranho aqui fora. – Para uma pessoa normal tudo pareceria igual, mas Aniel sentia que olhava somente uma pintura e não mais uma cidade. – Não sei bem Ro... To tendo uma sensação ruim. – Royel caminha para o lado dela e olha para fora, nada estava diferente, a cidade parecia mais serena do que nunca descansando ao entardecer. 87 Você tem certeza? O que poderia acontecer? – Assim que seus lábios se fecham um estranho som ecoa por toda Nova York, tão alto que apenas duas pessoas o ouviram com clareza, para o resto era somente o vento. – O que foi isso? O sol no horizonte aos poucos começa a se mover, entrando em uma espiral silenciosa, até começar a girar violentamente para dentro de si mesmo. De seu interior faixas de luz coloridas saem em extrema velocidade preenchendo o céu com várias cores dançantes. As duas observam perplexas o movimento das cores celestes, sem entender ao certo o que ocorria. ­
Nossa... Você já viu algo assim Ani? – Apóia­se sobre a janela para enxergar melhor o estava acontecendo. ­
Sim... Quer dizer, não exatamente assim... – Olha em volta preocupada. – O que vi era parecido, e que eu lembre não é nada bom. A explosão de cores no céu continua a fascina­las, as luzes agora brilham intensamente, algumas auroras se formam ofuscando um pouco a vista das duas, não as deixando notar o que mais ocorria. A metros abaixo o concreto das casas, os asfaltos das estradas se unem e se moldam formando uma grande ponte de pedra começava a tomar forma, tão comprida que se perde de vista no labirinto de prédios à frente. Dois grandes gárgulas feitos de um pesado mármore negro prendiam a extremidade da ponde ao hotel, apenas sete andares abaixo. Tinham cabeças com formato que se assemelhava ao de polvos, ostentavam um brilho singular, quase vivo, seus vários tentáculos compridos espalhavam­se pelo corpo forte, semi­humano, alguns deles se prendiam ao edifício com firmeza. Duas grandes asas saiam dos ombros de cada um, presas das costas até os pés achatados, similares ao de elefantes. Novamente o som aterrador ecoa por toda metrópole, Aniel olha para baixo esperando encontrar a fonte daquele grito bestial, mas o que vê é a grande estrutura de pedra ligada ao hotel. ­
Ro! Olha ali! – Aponta para baixo. – Nossa saída! – Grita instintivamente. ­
Nossa! Como isso foi parar ai? – Estava totalmente confusa. ­
Do que isso importa agora? Vamos! – Aniel puxa a amiga pelo braço e segue em direção a porta. ­
Pra que tanta pressa? – Tenta se soltar, mas as delicadas mãos da loira haviam se fechado como algemas. – Aniel! ­
Confia em mim... – Larga o braço da amiga. – Eu não tenho certeza, mas acho que eu já to marcada... Não é a primeira vez que isso acontece, e cada vez tem sido pior. ­
Ani... – Olha espantada para a outra, era difícil de acreditar, se alguma coisa já estava atrás dela antes, agora seria bem pior. – Está certo, vamos. Saem rapidamente do quarto, seus sapatos não produzem nenhum som ao baterem no chão aveludado do corredor. Tudo ao redor começa a parecer um pouco mais escuro e úmido. Um tom esverdeado se espalha rapidamente pelas paredes, como se o musgo e limo de anos crescesse em apenas alguns instantes. As lâmpadas em volta uma a uma começam a se apaga até que a única luz que as guia pelas escadas são os raios expelidos pelo sol em rodopio. O som da água corrente chega aos ouvidos como o orvalho na noite, furtivamente. Com um forte chute Aniel abre a porta da escada, entram no corredor e subitamente param. Não havia mais hotel, apenas um pequeno corredor de destroços ligando elas até os grandes gárgulas, que seguravam a ultima parede que ainda estava de pé. O caminho a frente estava coberto por uma fina camada de água, que jorrava de três grandes pilares, negros como as estatuas e em toda sua estrutura algumas flores roxas desabrochavam ao sentirem o calor das luzes celestiais em rodopio. Cuidadosamente seguem até a sólida ponte, seus olhos não deixam ­
88 de fitar as duas grandes criaturas negras, seu brilho abissal dava a real impressão que a qualquer momento teriam que correr por suas vidas. ­
Nossa... – Surpresa. – Ela não parecia tão grande quando eu vi lá de cima. – Royel coloca a mão sobre os olhos tentando desviar a luz que ofuscava sua visão de seus sensíveis olhos azuis. ­
Não importa, vamos. – Começam a caminhar. A cidade nunca antes havia parecido tão bela para a loira, as bizarras luzes que dançavam pelo céu refletiam belamente nas janelas espelhadas dos arranha­céus criando uma atmosfera encantadora e surreal, mesmo para alguém como elas aquilo era único e exótico. Seus pensamentos flutuam pelo seu feliz passado, pensamentos de sua casa e família antes mesmo da criação, de sua nova vida eterna. Por um instante, um breve momento ela se sentia como em casa, mas recordações são facilmente levadas pela brisa de um simples pensamento “isso tudo... Aconteceu de verde...?”. ­
Aniel vamos! Se o que você falou é verdade eles logo chegaram. – Fala notando que amiga havia ficado pra trás. ­
Desculpe Ro, vamos indo. – Volta a seguir em frente, dessa vez mais rápido até que novamente o bizarro som ecoa novamente por tudo, mais forte e mais alto, elas param, podiam sentir as vibrações percorrendo seus corpos, estava perto. – O que é isso? – Fala quase sem fôlego. ­
Olha aquilo! – Aponta para trás onde um colossal tentáculo negro se prendia a ponte. Por um instante nada é feito, não tinham reação. Todas sabiam da existência de criaturas tão grandes que a simples visão aterrorizava a alma mais fria, porem esse estado de torpor não dura muito tempo, assim que outro gigantesco tentáculo se prende a outra extremidade da ponde as duas mulheres se põe a correr desesperadas. Aniel sente suas pernas fraquejarem, sempre fora preguiçosa, delicada, nunca antes algo assim havia ocorrido, mas as leis agora haviam mudado. Olha para o lado, Royel estava mais pálida do que o normal, sua saia justa agora estava rasgada para facilitar a corrida, não usava mais seus sapatos de Salvatore Ferragamo, eles haviam ficado para trás. Tudo treme, correr fica cada vez mais difícil, mas essencial, a morte podia ser encontrada no menor descuido e as duas sabiam disso. As luzes sobre suas cabeças se apagam, Royel olha para cima com dificuldades, seu coração da um grande salto, suas pernas quase vacilam ao ver um dos gigantescos tentáculos se erguer acima dos arranha­céus, em segundos tudo poderia acabar. Das ventosas negras e viscosas da criatura uma névoa pútrida começa a ser exalada cobrindo todo caminho sobre das duas, ocultando seu ataque. No exato momento em que todas as cores que se moviam à cima escondem­se por trás da névoa um brilho intenso corta o ar alguns metros à frente, como uma lamina de luz que corta a fina linha entre os mundos, por de trás do forte clarão uma velha porta surge, feita de ferro enferrujado. Aniel não acredita no que vê, alguém a estaria ajudando? Com o que resta de seu fôlego a loira força a corrida, o som do da besta descendo do céu fica mais forte a cada segundo, como se houvessem milhares, ou seria simplesmente o eco do grito nos prédios em volta? A saída estava à frente. Sem pensar joga seu ombro em direção a porta que se abre violentamente com o impacto, Royel entra logo em seguida no apertado corredor, a passagem a suas costas é logo fechada, estavam a salvas. ­
Ani, aqui. – Estende o braço ajudando a amiga a se levantar. ­
Obrigada Ro... Nossa o que era aquilo? – Limpa o suor do seu rosto, estava imunda. 89 ­
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Não faço a menor idéia. Nunca vi nada assim. – Olha lamentosa para o que antes fora um belo conjunto Dior, somente depois de analisar com cuidado toda a sua roupa é que procurar saber exatamente onde estava. Encontrava­se em um corredor pequeno, estreito e escuro, uma luz vermelha sobre sua porta e mais algumas à frente que esporadicamente piscavam mostrando um caminho longo e reto. Tudo em volta parecia sujo e úmido. – Nossa nunca pensei que fosse dizer isso, mas eu achei que ia morrer ali. Eu também... Eu preciso falar com ela Ro, de qualquer jeito. – Fala decidida para a outra. Com a Aséalia? Claro, eu tenho que saber o que ela sabe, já to farta disso tudo, de correr, de apagar! De ter meu mundo virado de cabeça para baixo! – Grita, sua voz ecoa por todo corredor, em seguida cai de joelhos exalta, algumas lagrimas escorrem pelo rosto, mas logo são suprimidas. Calma Ani. – Coloca cuidadosamente sua mão no ombro da loira. Eu to calma, só to cansada... – Começa a ouvir alguns passos vindo pelo corredor, logo em seguida uma voz levemente familiar. Então as duas querem ir até a Aséalia? – Fala a mulher que se aproximava. 90 III Seus passos só produziam algum som se quisesse, movimentos sutis que pareciam sempre ter algum propósito, nada era a esmo. Agora já está muito próxima das duas no apertado corredor, seu olhar desdenhoso caia sobre Aniel eesporadicamente sobre Royel ­
Então, eu ouvi bem? Vocês querem ver a nossa querida Aséalia? – A loira a olha perplexa, sabia que já a conhecia de algum lugar, sua aparência não era do tipo que se esquecia facilmente. A mulher usava um belíssimo casaco de pele azul, tão belo e radiante que chegava a brilhar na escuridão, seus olhos azuis como os de Royel luziam por de trás dos cabelos cacheados. A pele, com algumas sardas, sua voz mesmo que recheada de malicia era bela e aconchegante. – Vejam só, Aniel... – “Nós já se conhecemos?” se pergunta a loira. ­
Você... – Resmunga Royel pelo canto da boca. ­
Sim eu mesma, e por mais que não goste, só eu posso ajudá­las aqui. E vocês deviam me agradecer por fazer isso. – Pela primeira vez encara as duas. – Você sabe bem do que eu estou falando. – Sorri, mas um sorriso sádico. ­
Sim, eu preciso falar com ela. – Diz Aniel quebrando a tensão entre as duas. – Você pode ajudar, não pode? ­
Claro que posso, aqui eu mando! Mas, como tudo tem um preço, a minha ajuda também exige um pagamento. – Por nenhum momento deixa de olhar diretamente para Royel, seu sorriso se abre ainda mais, volta a falar. – Ela sabe bem o que eu quero. – Aniel olha para a amiga. ­
Ro? – Confusa. ­
Ajuda ela. – Responde nervosa. – Eu fico aqui e a gente pode conversar. ­
Perfeito. Não podia ser melhor mesmo. – Contente. ­
Como eu a encontro? – Pergunta ansiosa. ­
Simples, realmente simples, desde que você faça exatamente o que eu lhe dizer. Nesse corredor. – Aponta para trás. – Há infinitas portas, portas como essas que vocês acabaram de passar. – Coloca a mão em um pequeno bolso, dele puxa uma chave. – A maioria delas estão trancadas, e as que não estão, acredite, você não vai querer entrar. Essa chave abre uma dessas portas, e somente uma vez. – Entrega a chave para Aniel. – Cuide bem dela. ­
Certo... – Fala olhando para a pequena chave negra, feita de algum tipo de pedra escura, áspera e extremamente pesada considerando seu tamanho. ­
Assim que você passar por mim comece a contar, são três mil portas até a certa. Quando chegar na três mil e um, você vai estar exatamente onde queria. ­
Só isso? Parece realmente fácil. ­
Não confie nela Ani, alguma coisa tem por trás disso. – Fala Royel com desprezo. ­
Não a leve a sério loirinha, acredite, eu não minto. – Sorri maldosamente. – Ela só diz isso por que sabe o que a espera. Eu, como vocês quero que tudo isso acabe bem, não quero nada maior que a coisa lá fora solta por ai. ­
Maior? – Pergunta Aniel que não consegue imaginar nada maior do que o dono daqueles tentáculos colossais. 91 Sim, difícil de acreditar não é? Mas você não tem tempo para perder com isso, não acha? Aniel olha para a chave em sua mão, em seguida para a amiga ao seu lado, Royel por sua vez faz apenas um rápido gesto para seguir em frente, “Conte as três mil portas” fala com um falso sorriso em seu rosto. Era o que devia ser feito, ninguém ali fora obrigada a nada, mas então por que motivo sua consciência pesava tanto? O que de ruim poderia acontecer com sua amiga? Antigamente nada, mas tudo havia mudado. ­
Vá Ani, você não tem muito tempo pra perder assim. – Tenta acalma­la novamente. ­
Você tem certeza? – Pergunta preocupada. – Você vai ficar bem? ­
Eu vou ficar bem sim, agora vá. – Ordena. Aniel começa a caminhar a passos curtos, suas pernas ainda ardiam horrivelmente, mesmo assim continuava, não havia outra opção. Passa com cuidado pela mulher de azul e a contemplando pela última vez, novamente tenta se recordar quem é ela, mais uma vez em vão. Em pouco tempo as duas ficam para trás, em silencio consumidas pela escuridão, seus passos ecoam pelo breu que agora é sua única companhia. O tempo passa devagar, sua dor aumenta a cada novo toque de seus pés contra o chão. Não sabia dizer quantas horas haviam se esvaído desde que deixou para trás as duas, no entanto tinha certeza de uma coisa, não havia visto nenhuma porta... Talvez não fosse tão simples, pensa, talvez Royel estivesse certa e a estranha não era de confiança... Mas a loira não tinha saída, só podia continuar em frente. ... Acorda, sua mão vai ao rosto instintivamente, estava cansada, nunca havia dormido tão mal, seu corpo agora parecia doer mais do que quando decidira sentar para descansar. Com dificuldades se põe de pé, a sua frente uma fraca luz vermelha pisca esporadicamente, revelando por breves instantes uma seta e o numero três escritos sobre um estranho limo que começou a preencher boa parte do concreto há poucos metros. “Só três...” Pensa desanimada, havia caminhado quase a exaustão e só havia visto três portas. Desanimada e sem escolha volta a caminhar. ... ­
Mais uma... – Inspira profundamente para recuperar o fôlego, o peso de seu corpo é jogado para o lado e acaba por apoiar seu ombro sobre a porta, volta a falar sozinha. – Essa é a cento e trinta e quatro... Com sua chave risca grosseiramente o numero sobre o metal enferrujado. – Ãhn? O que é isso? Não havia notado, mas logo a frente uma branda luz azul começava a tomar conta do corredor, se aproxima. Aniel força a vista curiosa, a escuridão diminui um pouco a cada passada, passos que antes ecoavam, indo ao longe agora parecem morrer rapidamente. O novo tom azul do corredor não radiava de nenhuma lâmpada, vinha de fora. As pesadas paredes de concreto corrompidas pelo limo agora dão lugar a uma espécie de vidro de grande espessura muito viscoso. A loira olha espantada para o novo mundo que surge à frente, um grande oceano preenche toda sua visão com um belo tom azul criado por uma intensa luz mais acima, tão forte que ofusca sua verdadeira forma. “Nossa...” Sussurra sem perceber ao notar um enorme cardume de peixes nadando ao longe, o balé subaquático a encanta. Fica ali por alguns segundos observando a exótica dança, se esquecendo das dores que a acompanhavam desde que entrou no bizarro corredor, por fim a rápida distração se vai e a caminhada recomeça. ... ­
92 Abre os olhos, seu corpo ainda doía, se levanta com algum esforço, havia ficado um pouco grudada na viscosidade da parece. “Maravilha” pensa ao sentir seu cabelo todo emaranhado, tanta se arrumar da melhor maneira possível e segue caminhando. Já havia passado por mais de quinhentas portas, elas agora apareciam com mais freqüência, talvez não demore mais tanto tempo. A Magnum dada por sua mãe é deixada para trás, armas aqui não têm nenhuma utilidade, ela só incomodava na hora de caminhar e dormir. Por mais que parecesse que a luz sobre o mar era natural, ela nunca se alterava, não havia dias nem noites, sempre a mesma palidez azul. Aniel não fazia a menor idéia de quanto tempo já havia se passado, poderiam ser semanas? Meses? Ou até mesmo anos, não tinha como saber, sua mente não era mais a mesma, seu padrão de tempo se misturava agora com o dos humanos que guardava perdido em suas lembranças. Ela se achava um deles? Talvez... ­ Falta pouco agora... – risca em um pequeno papel que havia achado o numero mil novecentos e quinze, o guarda no bolso e suspira, não agüentava mais. Volta a olhar para o mar, já não se sentia tão sozinha, sempre há alguns peixes para lhe fazer companhia, no momento um grande cardume de algo parecido com sardinhas de uma cor laranja florescente a acompanhava por mais de quatro quilômetros. Aniel resolve parar só um pouco, a luminescência dos peixes que se moviam com extrema rapidez e habilidade sob a água deixava um rastro de cor laranja que aos poucos formava vários desenhos que em sua mente lembra alguns arcanos antigos. Depois de minutos vendo aquilo resolve que está na hora de continuar, afinal falta tão pouco. Se levanta e segue, não caminhava com pressa, a impressão que o lugar passava é que não importa o quão rápido você é, o tempo que irá levar é o mesmo. Uma sensação engraçada passa pelo seu corpo fazendo­a ficar toda arrepiada, olha em volta, os peixes laranjas não nadavam mais. Estranho... Olha com mais atenção, uma mancha escura ocupa o lugar onde antes os peixes nadavam. Aniel fica ali parada tentando enxergar melhor, quatro quilômetros de peixes não iriam sumir do nada, então que surge a resposta. A mancha escura volta a piscar seu laranja fluorescente, mas agora de uma maneira frenética, os peixes já não nadavam seu balé característico, fugiam desesperados. A loira não conseguiu notar nada diferente na água até o ultimo momento, uma enorme boca, vinda do fundo, em uma única bocada separou o grande cardume em dois, deixando menos da metade fugindo em desespero. Em seguida o gigantesco animal desce para as profundezas e some do mesmo jeito que apareceu. Aniel fica pasma, em sua mente nada disso era possível. Sem a luz alaranjada o caminho fica um pouco mais difícil, as lanternas vermelhas que antes iluminavam seus passos já não apareciam desde que o corredor havia mudado para o túnel subaquático. ... Já havia contado quase duas mil novecentas e setenta portas, não faltava muito, elas começavam a aparecer com mais freqüência, um sinal talvez? Seu corpo já entrara num estado de torpor tamanho que não sentia mais nenhuma dor. O que incomodava a loira era a solidão, solidão essa que sempre foi presente em quase toda a sua vida. Quando finalmente sentia o gosto da humanidade em seus lábios e o amor de um homem, é que seu lado verdadeiro se mostrou mais forte, matou a única pessoa que talvez já a tenha amado. Amor... Não sabia o que era isso, em suas lembranças era quente, um calor que toma conta do corpo e não some, somente lembranças... Aniel para, à frente parecia ter algo, difícil de dizer o que é, se aproxima com cautela. À medida que chega mais perto o contorno de um corpo deitado se torna nítido. Alguém dormia do mesmo jeito que ela própria já fez. Sem medo se aproxima, lembranças da morte costumavam lhe dar confiança, seu oficio e vida. Era um garoto, não mais que quinze anos, já estava morto, alguns dias talvez, se o tempo aqui realmente contasse. “Ainda tenho algum tempo...” fala consigo. A loira se ajoelha ao lado do corpo, leva sua mão à cabeça fria e com a 93 palma toca sua testa. Nada acontece, Aniel continua imóvel, sua boca balbucia palavras incompreensíveis por vários minutos até algo mudar no corredor a sua volta. Um barulho, inaudível se houvesse outra fonte de som próxima, algo se aproximava rastejando, vinha rápido. Olha para o lado, uma estranha lesma preta vem deslizado sobre uma mucosa avermelhada que saí de alguns poros logo abaixo do que parece ser suas antenas, pontudas e compridas. A estranha criatura sobe no corpo do morto e vai direto para seu nariz, onde entra e some. Aniel se afasta um pouco, rapidamente o cadáver começa a se mexer como se sofresse um ataque epilético, seus olhos se abrem em meio aos espasmos e ele grita, um berro de horror e dor, sinal de que leis antigas foram violadas. O garoto para de se debater, mas permanece deitado e com uma certa dificuldade começa a falar. ­
O que está havendo? – Sua voz era tão fraca que mesmo no silencio do corredor mal se ouvia. – O que há de errado comigo...? ­
Bem... Você está morto. – Reflete por poucos instantes. – Acho que não existe outro jeito de lhe falar isso... Morto? Mas como? – Confuso. – Você não pôde estar falando sério. ­
No fundo você sabe que é verdade. – Silêncio. ­
Isso é então algum tipo de inferno? ­
Não... Acho que não. ­
Como que eu posso estar morto? ­
Estando, logo você deve se lembrar de como aconteceu. Quando acontecer, preciso que você me conte tudo exatamente como houve. ­
Isso não é possível, eu não estaria aqui falando com você se estivesse morto. – Sua voz retorna ao normal lentamente. ­
Em seu cérebro há uma pequena lesma, enquanto ela lhe devora há esse estranho efeito de trazer um pouco de você a vida. Tente se mexer. Vamos. – Sugere Aniel, o rosto do garoto de início parece incrédulo, no entanto assim que nota que seu corpo está tão duro e frio quanto próprio chão em que está deitado é surge em seu semblante à depressão mais cadavérica que humano algum já viu. – Acredita agora? ­
Quanto tempo eu tenho? ­
Pouco. ­
Por que eu voltei? ­
Preciso de respostas. Você já deve se lembrar de algo. – Ansiosa. ­
A última coisa que me lembro é de estar estudando na biblioteca da minha escola. Eu tinha um trabalho importante para terminar. – Começa a se lembrar. – Uma mulher apareceu... ­
Como ela era? – Aniel esconde sua excitação. ­
Não sei bem, acho que morena, mas não a vi direito. Foi logo que ela apareceu que ouvi um estampido. Deve ter sido do tiro que eu levei... – A loira inclina o garoto para ver suas costas, três marcas de tiro. ­
Não foi um só, foram três. Você deve ter morri logo no primeiro tiro, pegou bem no coração. Lembra de algo mais? ­
Não lembro de ter doído, melhor né. – Esboça um sorriso. ­
Sim... ­
Acho... – A mente do garoto aos poucos começa a trazer novas lembranças, cada uma mais vivida que a anterior, de um modo que nunca aconteceu em vida. – Acho que já tinha encontrado essa mulher antes... ­
Mesmo? – Ansiosa, aquilo não ia ser em vão. 94 É, uns dias atrás eu conversei com ela na loja em que trabalho... – Sua voz vai enfraquecendo. ­
E? ­
Ela fez umas perguntas estranhas, queria saber do que eu gostava de estudar, ou algo assim... ­
E você perguntou o nome dela? ­
Sim... era... era... – Se cala, a larva saí do nariz do garoto, morto novamente. ­
Droga! A pequena criatura logo entra na boca do garoto e começa mais uma vez a devora­lo, mas sem reanimação. Aniel agora só pode supor que a assassina é Aséalia, mas o motivo de tudo isso ainda lhe escapa. Passa a mão pela testa tirando os cabelos da frente do rosto, se apóia na parede e fica ali por alguns minutos. Vários pensamentos começaram a inundar sua mente... O que é a morte para um humano? Aniel nunca realmente soube, para ela a morte era um simples ato numa peça escrita por outros, um simples carrasco sem remorso. Talvez fosse a hora de descobrir. Morrer... O que fazia dela algo melhor do que aqueles que ela levava? ... ­
Melhor continuar andando – Fala para si. Passos automáticos, sua boca balbucia os números das portas que aos poucos deixa para trás. – Três mil e um... Aniel olha a porta à frente, de madeira, como qualquer outra, sua fechadura estava enferrujada e na maçaneta marcas de sangue, como se alguém tivesse a aberto com a mão ferida ou ensangüentada. Tira a pequena chave negra do bolso, devagar a coloca na fechadura. A princípio a chave não parece ser a correta, mas com um pouco de força toda a sujeira que a impedia de virar cede, ela destranca. Com medo abre a porta, uma forte luz ofusca toda sua visão, o Sol brilha tão forte que faz sua vista arder e lacrimejar. Fecha a porta... ­
95 IV Anil olha com curiosa para a pequena poça do líquido vermelho e de sua lagrima no meio da areia fofa, sente a ansiedade aumentar a cada segundo, pois nada acontece. Mihael também parece não entender a intenção de .................., mas não diz nada. Um ruído baixinho quebra o silêncio, um caule transparente brota da areia, o ruído começa a tomar forma, parecia com vidro sendo quebrado em milhares de cacos. Do meio do caule surgem folhas e do meio das frágeis folhas uma rosa com pétalas tão finas como fio de cabelo, transparente e sólida, puro cristal. ­ Como que isso é possível? – Aniel olha para .................. sem saber o que tudo aquilo realmente significa. ­ Tudo é possível na terra dos sonhos. – Estende a palma de sua mão e a mantêm aberta, grãos de areia que eram carregados pelo vento começam a se acumular no formato de uma pequena caixa. Depois de alguns segundos .................. sopra a areia revelando uma pequena caixa de cristal. Cuidadosamente a rosa é guardada dentro da caixa. ­ Porque uma rosa? – Pergunta Mihael se aproximando para ver melhor. ­ Há muito tempo nosso querido amigo Matemático não consegue criar mais nada, vocês sabiam disso? – Suas vozes soam mais indiferentes do que nunca, havia uma tristeza oculta ali. ­ Sim, foi por esse motivo que nos mandaram cuidar dos mortais, para garantir que eles sempre voltariam. – Responde Aniel pensando em seu livro. ­ Exatamente... Não sei o que houve para ele não criar mais nada. Mas em seus sonhos o Matemático continua ativo, e talvez até neurótico. – Cada uma de suas vozes fala a frase num tom diferente, como se a opinião de .................. estivesse confusa. ­ Nunca pensei que ele dormisse, não parece certo. – Interrompe Mihael. ­ Não parece mesmo. – Se afasta alguns passos. ­ Mas e a rosa? – Aniel não enxergava o ponto daquilo. ­ Criação dele, de seus sonhos. ­ Um presente para animá­lo. ­ Para trazer vida ao deserto. ­ Para ele me amar de novo. – Cada uma de suas vozes sobrepostas responde diferente, algumas delas em línguas nunca ouvidas pelas duas. Esse coro onírico rapidamente morre e só uma resposta fica no ar. – Para tudo voltar a ser como era. – Sorri. ­ Você acha que com isso ele conseguiria voltar a criar como antes? – Um lampejo do que poderia acontecer se a resposta fosse positiva passa pela mente da loira, mas a idéia era tão devastadora que é rapidamente ignorada. ­ Tenho certeza que sim. – O sorriso cresce, ela se vira e volta a caminhar com a pequena caixa em suas mãos. – Aniel, o que você procura está lá em cima, na casa... – Antes que a loira pudesse falar qualquer coisa .................. some no deserto. Aniel fica parada por alguns segundo olhando a imensidão branca do deserto, não havia mais ninguém ali, somente ela e Mihael. O que realmente aconteceria se novos universos fossem criados, se a vida voltasse a florescer como antes? De todas as raças inteligentes criadas 96 pelo Matemático poucas conseguiram não se destruir; e a Terra não está muito longe disso. “Mas qual é o papel de Aseália nisso tudo?” se pergunta. Sem pensar em nada sensato Aniel volta sua atenção a casa flutuando vários metros acima. Mihael volta para o lado da amiga e também começa a observar a casa, nada mais podia ser feito aqui. ­ Então Ani, você vai mesmo lá? – Fala sem virar o rosto. No fundo ela sabia que a loira iria, algo não natural movia essa curiosidade humana nela. ­ Vou sim, só tenho medo do que vou descobrir. – Um longo silencio toma conta do deserto, de olhos fechados Aniel presenciou o nada... ... ­ Você sabe o que acontece quando uma criança ganha um brinquedo novo? – A pergunta parece tão absurda que tira completamente Aniel de seu estado estático. ­ O que? – Confusa. ­ Você já viu como uma criança age quando ganha um brinquedo novo? – Repete incomodada. ­ Hmm... Ela brinca com ele até estragar, imagino... – Ainda não consegue entender o motivo da pergunta. ­ Eu também acho que é isso que acontece. – Fala preocupada, Aniel a olha com cuidado e volta a falar. ­ O que você quer dizer exatamente com isso? – Começa a caminhar; a sua frente vários degraus começam a sair da areia em direção a casa no céu, formando uma escada flutuante. ­ Um novo começo... De tudo. – Sussurra. A loira pára subitamente. – Isso tudo que aconteceu com você pode ser um sinal do que está por vir. ­ Você acha que nós todas vamos morrer, só por que um novo mundo pode surgir? E que tudo isso que está acontecendo são os ecos do futuro? – Fala em tom irônico, queria esconder o medo que já estava presente há muito tempo. ­ Isso mesmo, não vejo outra explicação. – Mihael fica parada no pé da escada olhando a loira que continua subindo em direção a casa. ­ Se você estiver certa, então não há nada que nós podemos fazer. – Mihael não estava mais lá, já havia ido embora, ao contrário da loira ela não abandonara suas tarefas. – Maravilha... – Balbucia. Ainda imóvel Aniel contempla os degraus a sua frente flutuando no espaço, abaixo o deserto branco, acima um céu estrelado com dois grandes planetas se movendo lentamente em direção ao horizonte. Uma sensação familiar percorreu seu corpo; essa não era sua primeira vez nesse deserto. Agora, depois de deixar sua vida em Nova York de lado, sua mente começa a se recordar mais claramente de seu passado e suas origens. Aniel de fato nunca havia sido uma criança, nunca nascera. Assim como das às outras ela é apenas uma criação, um autômato com esboços de sentimentos, criado para cumprir uma tarefa essencial, garantir a pureza das almas humanas. “Mãe...” Pensa ao se lembrar da mulher que lhe deu uma arma no túnel em que sua outra se encontra. Não existe mãe, nunca. Aquilo foi uma simples projeção dos sentimentos humanos que a contaminavam como um vírus. Amor, sexo, dinheiro; nada disso lhe dava prazer. Por muito tempo tentou se convencer que sim, mas no funda sabia da verdade, a morte era seu único prazer. 97 Senta em um dos degraus. Todos os erros que cometeu começam a assombrá­la, estava cega no passado, havia renegado quem era de verdade para viver o que parecia ser uma vida perfeita. Cada contato intimo que tinha com Luis a contaminava mais, a deixava mais fraca, mais humana. Todas elas sofriam desse mal, mas nenhuma como Aniel, só ela se arriscara a se aproximar ao máximo de um nome do Livro, de ser ela o motivo da morte. Horas se passam até se por de pé novamente, não conseguia entender como havia chego a esse ponto. Cansada estica as pernas com cuidado para não cair do degrau e volta a subir. Não demora muito tempo até a loira se deparar com a gigantesca porta de entrada. Ao se aproximar Aniel sente um cheiro estranho vindo de dentro da casa, parecido com carne, sangue e podridão. O odor não é forte o suficiente para deixá­la nauseada, mas isso não o torna menos desagradável. Sem dificuldade abre a porta, o cheiro aos poucos começa a ficar mais forte, entra. Com a mão sobre o nariz começa a observar o lugar em que se encontra, nunca havia visto nada parecido. Estava num salão enorme, tão grande que não conseguia ver seu fim, várias colunas de mármore em espiral vão do chão ao teto, mas não de maneira organizada, cada uma fica em um lugar diferente dando ao ambiente uma aparência caótica. No centro do salão, logo a frente de Aniel, há uma mesa de madeira escura, tão comprida quanto o salão. Sobre ela vários pratos sujos de comida, bandejas e restos, não há cadeiras nem talheres. Apesar da maioria da comida na mesa já estar podre, ou apodrecendo, não era dali que vinha o mau cheiro. Segue pelo salão acompanhando a mesa. Os pratos começam a se acumular, alguns chegam a cair da mesa. Conforme Aniel caminha, começam a aparecer sobre a mesa grandes panelas com restos de todos os tipos de comida. Panelas enormes, algumas de barros, outras de ferro, cada uma com um estilo diferente e único. Várias pilhas dessas panelas se amontoam sobre a mesa e no chão ao redor, assim como aconteceu com os pratos. O piso em volta da mesa refletia o estranho banquete, vários pratos, talheres e tudo mais se encontravam espalhados pelo mármore. Sangue e pedaços de comida podre tornavam o caminhar uma tarefa de cuidado, pois ao menor deslize Aniel poderia escorregar em uma poça de algo duvidoso. Um som começa a vir do fundo do salão, ainda muito baixinho, só ouvido pelo fato de ser o único som ali que não é produzido pela loira. Acelera seus passos. O som começa aos poucos a aumentar, estava se aproximando do banquete. Na mesa as panelas começam a dar lugar a carcaças de animais, de todos os tipos. Vacas, cavalos, búfalos e outros irreconhecíveis. E o som aumenta. Há vários metros à frente Aniel consegue enxergar o que parece ser uma pessoa sentada à mesa, imóvel. Conforme se aproxima outros vultos vão surgindo, eles também parecem não se mexer. Acelera seu passo, a curiosidade começa a deixá­la louca. A fraca luz do salão só permite que veja com clareza a pessoa sentada há poucos metros de distância, pára de súbito ao enxergar a pessoa. Sentado à mesa, com vários pratos de comida a sua frente, um manequim. A loira olha com cuidado a criatura estática que não possuía um rosto, sua cabeça era lisa. O corpo não dava indícios de ser masculino nem feminino, mas suas roupas lembravam algo vitoriano. Aniel se aproxima mais; aquilo não era feito nem de madeira nem de plástico, era outra coisa. Devagar estica sua mão para tocá­lo, seus dedos passam pelo rosto liso, era macio como pele, quente como se estivesse vivo. ­ Hmmmmmmmmmmmmmmmmm!! ­
Aaaaaaahhhhhhh!! – Aniel pula para trás de susto e acaba por escorrer e cair no chão nojento. O manequim tenta novamente soltar um grito surdo de agonia, do mesmo jeito que fez ao sentir o toque da outra; tentava gritar sem boca. A loira começa a se por de pé ainda 98 tonta, a criatura sentada continua gritando de agonia, seus movimentos duros e inumanos fazem gelar a espinha da loira. Outros gritos surdos de desesperos ecoam pelo salão, Aniel não consegue enxergar, mas deduz pela agonia ensurdecedora que ecoa que há milhares dessas criaturas espalhadas pela extensão da mesa. Seguido pelo som dos gritos surge outro ainda mais alto, o banquete havia recomeçado. A loira tenta ignorar o barulho dos pratos se partindo e panelas caindo e volta sua atenção ao manequim ao seu lado. A criatura levava desesperadamente a comida do seu prato para o local onde deveria haver uma boca, mas tudo acabava por cair no chão ou se espalhar pela cara lisa. Volta a caminhar, mas devagar, ainda estava dolorida devido à queda. Não demora muito para ver outras criaturas no mesmo comportamento bizarro do manequim que deixou para trás. Em sua mente ela não consegue parar de se questionar que tipo de lugar seria esse. Nenhuma explicação, mesmo as absurdas parecem responder essa pergunta, mas com toda certeza esse era um lugar de tortura. Não demora muito para Aniel perder a conta de quantos manequins já havia deixado para trás. O cheiro nauseante de podridão começa a diminuir conforme ela segue em frente, no entanto ainda paira pelo lugar um odor de morte. Nada parecia realmente mudar, os manequins tentavam desesperadamente engolir a comida da mesa, mas tudo que conseguiam era quebrar a louça e sujar ainda mais o chão em volta. Isso continua até que a loira encontra jogado no piso uma dessas criaturas, o jeito como o estranho ser estava lembrava uma boneca recém descartada por uma criança. Se aproxima. Não havia duvida que o manequim estava sem vida, ele não se manifestou de nenhuma maneira quando Aniel o chutou levemente. A comida a sua volta também era fresca, isso havia ocorrido há pouco. Com cuidado vira o manequim para ter uma idéia melhor do que havia acontecido, o impacto do que vê a faz largar o corpo imediatamente e recuar alguns passos. Enfiada no rosto do autômato estava uma faca e vários cortes completavam a mutilação. Volta a se aproximar e retira com dificuldade o talher, igual os outros que estavam em toda a extensão da mesa, lisa, quase sem fio e sem ponta. O tempo no espectro dos “imortais” não corre da mesma maneira, ele se molda a vontade do seu usuário. Passado, presente e futuro podem se convergir em um único ponto sem por em colapso o universo a sua volta. A imortalidade só existe nos sonhos e no mundo deles fica presa. Aniel agora que já não está tão contaminada pela humanidade começa a se dar conta disso, e não se preocupa tanto que a mesma coisa que matou o manequim possa vir atrás dela. O corpo é deixado ali a loira segue seu caminho. Mais corpos começam a aparecer jogados no chão, todos com características semelhantes, rostos mutilados por talheres. Finalmente Aniel se da conta do que está realmente acontecendo após ver um dos manequins pegar uma das facas sobre a mesa para cortar seu próprio rosto numa forma insana de por a comida para dentro. Inicialmente a faca sem fio nada faz a criatura, no entanto o desespero é tamanho que os movimentos vão ficando mais e mais violentos até que por fim não a mais controle, e as mutilações começam. 99 V Finalmente seus olhos se acostumam com a luz do Sol, está num parque. Era uma manhã ensolarada, talvez fim de semana ou algum feriado, pois o local estava cheio de pessoas fazendo piqueniques, brincando e se exercitando. Ninguém ali parecia notar que a loira surgiu do nada, curiosa olha para trás, um banheiro publico. Aniel começa a andar sem rumo, sabia que Aseália não podia estar longe, só não entendia o que sua amiga fazia ali. Todos em volta parecem tão felizes e em harmonia, esse não é o tipo de lugar que iria normalmente, a violência era algo natural para Aseália, o homem que tira a vida de seu irmão era o que buscava, todos estavam no livro. Tudo parecia extremamente normal e cotidiano, o calor a faz pegar um refrigerante e a paisagem a faz sentar em um banco. O lago calmo reflete a alegria do lugar como um espelho, somente a oscilação criada por alguns remadores quebrava a perfeição do reflexo. O ritmo do ambiente aos poucos vai diminuindo, os passos das pessoas ficam pesados e as brincadeiras mais lentas até que todos em volta ficam imóveis, como se presos em uma fotografia borrada. Devagar Aniel levanta e começa a dar a volta no lago. O dia ensolarado vai ficando para trás, algumas nuvens de aspecto estranho surge sobre o lago, como se um manto fosse jogado sobre o lugar, Aniel sabe o que isso significa, mas se matem calma por algum motivo inconsciente. O meio do lago começa a ser tomado por uma névoa espessa e escura, eram eles. A loira nunca soube ao certo o que eram aquelas criaturas que rondavam os humanos, principalmente na presença da morte, eles se alimentavam de alguns sem nenhum critério aparente. Ninguém fala muito sobre eles, Aniel sempre achou que esses seres provavelmente eram frutos da deturpada mente humana, resquícios de maldade e loucura produzido por uma sociedade doente, e, como um vírus, se espalhando para os outros planos, mas não tinha como ter certeza. Enquanto caminha a loira se recorda dos estranhos eventos que se passaram nos últimos dias e em todas as vezes que se sentiu ameaçada. Não havia mais duvida em sua mente, essas criaturas estavam lhe caçando, no entanto a névoa sobre o lago não parecia ter interesses nela, as criaturas iam para outra direção. Esses estranhos seres sempre estiveram presentes desde que Aniel pode se lembrar, mas nunca em grupos, eram poucos vistos raramente, talvez por esse motivo eles nunca fossem um ameaça a ninguém. Agora algo havia mudado drasticamente. O lago começa a se estreitar, no ponto em que as duas margens estão mais próximas uma pequena ponte de madeira liga o caminho que Aniel segue até uma pequena praça com vários bancos e mesas; atravessa a ponte. Há alguns metros à frente duas pessoas conversavam num dos bancos de frente para o lago, não conseguia ver com clareza, mas sabia que era um garoto e uma mulher, continua se aproximando. Diferente de todos no parque esses dois, assim como ela, não haviam sido afetados pelo estranho manto que caiu sobre o lugar, eles continuavam se movendo e conversando. As estranhas criaturas se aproximavam cada vez mais dos dois, e aparentavam um interesse em particular pelo garoto. Após um momento de distração olhando para o lago Aniel volta sua atenção aos dois, mas agora há uma terceira pessoa. A mulher havia deixado o banco e estava falando algo para um homem que se aproximava por trás do garoto. Aniel começa a correr em direção a eles, o homem estava armado. ­ Não! – Grita a loira tarde demais... 100 101 VI Aniel não caminha mais tão perto do banquete quanto antes, o frenesi alimentar levou os autômatos a subirem na mesa e brigarem pela comida, por este motivo ela mantêm distância. O combate parecia ter tomado conta de todo o salão, vários manequins são mortos a cada minuto, e os que não estavam lutando ainda insistiam em por a comida para dentro de qualquer forma. A gula é tanta que eles tentam inclusive comer seus iguais mortos, um canibalismo sem sucesso. O barulho aos poucos vai morrendo junto com os autômatos, e por fim o salão silencia. A mesa volta a ficar vazia, sem pratos e sem comida. As lamparinas que iluminam o lugar vão ficando mais esparsas até acabarem. Aniel fica debaixo da ultima fonte de luz tentando enxergar a continuação da mesa, o breu não permite. Um estranho som de gelatina sendo arrastadas ecoa, vinha do lado escuro. Um cheiro nojento acompanha o som, um odor pútrido e indescritível, muito pior que os anteriores. O estranho som cessa e algo começa a falar: ­ ​
Quem é você? O que deseja aqui? ​
– A voz soava tremula, como se pedaços de pele tremessem próximos a boca que falava. ­ Me chamo Aniel. ­ ​
E o que faz aqui?​
– alguns cliques começam a ser ouvidos a distância, vinham detrás da loira. ­ .................. me falou que eu ia encontrar Aseália aqui, ou pelo menos conseguir algumas respostas... – Caminha até a mesa, puxa uma cadeira e a posiciona no limiar do breu. Ela senta e cruza as pernas aguardando a resposta. Os cliques se aproximam. – Preciso encontrá­la. ­ ​
Não​
​
há ninguém aqui além de nós dois. Mas me conte, por que você procura uma de suas irmãs? ­ Não sei se deveria. – Olha para trás; nada. – Não sei em quem acreditar, também não sei com quem falo. – Seu tom é seco, só conseguia sentir desprezo pelo que se escondia no breu. ­ ​
Cara Aniel... Se deseja realmente alguma ajuda minha, é melhor me dar um bom motivo para isso. Não ligo para .................. e seus assuntos. Eles sempre me ignoraram, eu e meus irmãos. Cada um destinado a apodrecer em suas casas.​
– Os cliques vão ficando mais altos, a loira olha novamente para trás, alguém se aproxima. ­ Hmm... Achei que só havia nós dois aqui. – continua sentada. ­ E só há nós dois. ​
– Breve silencio​
. ​
– ​
Então, como vai ser? Aniel continua olhando para o fundo do salão, o local é tão comprido e mal iluminado que não consegue enxergar muito mais que duzentos metros. Os cliques ficam mais altos ao ponto de impedirem qualquer diálogo entre os dois. A loira sabe que nada ali é uma ameaça, o perigo real está lá fora, e não pode ser descrito ou imaginado. Alguma coisa realmente se aproximava, e não era uma pessoa. Não dava para distinguir as formas, ainda estava longe e escuro, porém podia ver que era algo grande e disforme. A primeira perna invade o espaço iluminado, ainda estava longe para Aniel distinguir com exatidão o que era. A coisa se aproxima rapidamente, lembrava vagamente uma aranha, seus membros são compridos, magros e enrugados como a perna de um bebê. Não havia como contar quantas pernas tinha, elas saiam de quase todas as partes do corpo. Andava se apoiando no chão, no teto e nas paredes. Os 102 estranhos cliques vinham do impacto dos pés extremamente finos da criatura com o mármore duro, mesmo com tantos passos e tantas pernas ela não esbarrava em nada. A criatura face da criatura, se é que há tinha, se oculta atrás de seus membros, e não importava o quanto Aniel tentasse não era possível vê­la. ­ ​
Antes que você continue, eu tenho algo a fazer, não irá demorar​
. – Parecia sorrir. A estranha coisa se aproxima do fim da mesa, um dos autômatos, o último, estava jogado sobre um grande alce morto. Ele havia tentado devorar o animal, arrancado com as mãos vários pedaços de carne de seu abdômen. O estranho aracnídeo pára sobre o autômato, de algum ponto oculto por suas numerosas pernas uma pinça de metal sai do corpo. Girando suas engrenagens e soltando vapor a pinça agarra o autômato e o joga num bolsão que arrasta há alguns metros atrás. A loira estica seu pescoço para tentar enxergar melhor o que era arrastado. Dentro da enorme bolsa parecia que estavam todos os milhares de autômatos que haviam morrido durante o banquete. O arácneo leva o bolsão até a escuridão que divide o salão e se afasta com a mesma velocidade com que chegou. Do breu começa­se ouvir os sons de ossos se partindo e carne mastigada; ele se alimentava. Aniel sentia­se enojada, mas nada podia fazer ou falar, precisava da ajuda do senhor deste salão. O sons pareciam ecoar dentro de sua cabeça, cada mordida, cada osso partido e chupado a fazia querer sair correndo dali. Não era medo, era uma repulsa indescritível nunca sentida antes. ­ ​
Se você quiser pode começar a me contar porque deseja encontrar Aseália​
. – Parece chupar um dos ossos, em seguida o mastiga violentamente. ­ O que você diria se eu lhe contasse que um imortal pode morrer? – Começa levemente desconfiada. ­ ​
Isso não seria nenhuma novidade​
. – Deixa Aniel um pouco confusa, notando a expressão dela ele continua. – ​
É fácil pensar que a imortalidade existe. Você vê vidas se esvaindo todos os dias, isso por anos, séculos, milênios. No entanto, só pelo fato de você demorar a sumir, não quer dizer que você é eterna, nada é​
. ­ Então isso já aconteceu antes? Outras de nós já morreram? ­ ​
Claro que sim, é um ciclo inevitável.​
­ Nada pode ser feito? ­ ​
Nada... ­ Mas Aseália acha que algo pode ser feito, se não achasse ela não estaria fazendo... – Não continua, não sabia o que ela fazia, nem exatamente por onde andava. ­ ​
Fazendo...? ­ Não sei exatamente, por isso preciso encontrá­la, ela sabe o que está acontecendo. Talvez saiba como impedir. ­ ​
Não seja tola, não há como impedir, logo todos nós iremos simplesmente sumir.​
­ Sumir? – Fica confusa, como essa criatura poderia saber tanto? ­ ​
Sim, em um instante há tudo, no outro não haverá nada​
. – Volta a mastigar mais um dos autômatos. ­ Como isso é possível? – A conversa a intriga tanto que o cheiro nauseante e os sons repulsivos começam a passar despercebidos. – Não é possível que tudo desapareça como a imagem de uma tevê sendo desligada. E se isso realmente acontecesse não haveria como saber. Afinal, tudo deixaria de existir no instante seguinte. Então deixe de falar coisas sem sentido. ­ ​
Nós vivemos um sonho, somos um sonho. Tudo em todos os universos são originados pelo Ancião. Seus sonhos criam universos, realidades. Nós somos frutos oníricos dessa criatura. E assim que ela acordar, tudo vai sumir​
. 103 ­ Não há como eu acreditar nisso, pura suposição. Você fala como um padre de alguma religião, pura crença sem fundamento. – Se irrita. – Simplesmente não há como provar nada. ­ ​
Há sim como provar, alguns de nós já vimos o Ancião​
. – Começa a balbuciar. – Tenho pena deles... ­ Ainda não acredito nisso. Você fala como se soubesse de tudo, mas deve viver confinado aqui. Você não sabe de nada! E se não vai me ajudar trate de não me atrapalhar. – Se põe de pé. – Eu vou embora daqui. – Se vira e começa a caminhar. ­ ​
Vá falar com Aseália, ela vai lhe contar a mesma coisa, ela o viu.​
– Aniel pára. – Indo por aí você não irá achá­la​
. ­ Como assim ela o viu? – Incrédula. ­ ​
No ponto mais profundo de nosso mundo, onde as várias realidades colidem, há uma porta. Eu tenho certeza que ela espiou pelo buraco da fechadura​
. ­ Eu já estou cansada dessas falas, dessas metáforas. Eu não acredito em mais nada. Me diga aonde ela está?! Quero ouvir a versão dela sobre tudo isso. ­ ​
Claro, como queira...​
– Uma luz fraca acende num canto escuro mais a frente, sob a luz uma porta pequena, com cerca de um metro de altura. – Ali. Você não ter dificuldade para encontrá­la. – Aniel olha para a escuridão, seu humor era péssimo. Forçava a vista, mas nada enxergava; começa a caminhar em direção a porta, mas pára ao ouvir o outro voltar a falar. – Aniel, você já teve algum sonho em que alguém, ou alguma coisa fosse comum com outros sonhos que você já teve? ­ Como assim? Algo como um sonho recorrente? ­ ​
Sim. ­ Não sei, talvez. Por quê? ­ ​
Por nada, vá encontrar sua amiga.​
– Todas as luzes do salão se apagam de súbito, a única que permanece acessa é a sobre a pequena porta. Aniel caminha a passos largos, estava cansada dessa busca, queria que tudo acabasse o mais rápido possível. Suas mãos apertão com força a pequena maçaneta, se põe de joelhos e tenta abrir a porta, mas a maçaneta não gira. As duas mãos são usadas e aos poucos a porta começa a abrir. Uma luz fraca entre pela fresta crescente da porta, junto com a luz um estampido e um grito. Aniel força ainda mais a porta, ela que havia gritado, era sua voz que vinha do outro lado. Joga seu corpo contra a porta num ultimo esforço de abrir espaço para a sua passagem, a porta era pequena e difícil de abrir, mas já há espaço o suficiente para passar, mesmo com dificuldades. Engatinhando atravessa a porta, suas mãos se sujam na terra, folhas secas grudam nos joelhos enquanto ela se arrasta. Se coloca de pé, seu olhos assustados varrem o lugar ao seu redor a procura dela. Estava num parque, o Sol parecia tapado por algo, como se alguém tivesse coberto o parque com algum tipo de manto. Logo em frente um homem parado apontando algo em direção a um banco, de pé ao lado de um homem estava Aseália vestida de branco, em sua roupa há alguns salpicos vermelhos, sangue. Aniel corre em direção aos dois, vindo de trás contornando o lago vinha sua outra, correndo da mesma forma. As duas se olham e voltam a ser uma. Aseália percebe sua amiga e começa a falar. ­ Você chegou bem na hora, você pode se livrar dele? – Aponta para o homem estático ao seu lado. O rosto dele estava branco de pânico, seus olhos não paravam de fitar o garoto morto caído no chão. ­ Não! O que deu em você? – Aniel fica pasma com o pedido. No chão uma criança jazia, as estranhas criaturas que a circulavam começam a avançar sobre seu corpo se alimentando de algo que não era visto. – Eu não vou fazer isso, o nome dele não está no meu livro! 104 ­ Por mim? – Começa a caminha em direção a loira. ­ Não. – O homem cai de joelhos no chão totalmente confuso, era como se vivesse um pesadelo. – Foi você que fez ele matar esse garoto? ­ Foi sim. – Fincam uma de frente para a outra. Aseália coloca suas mãos nos ombros da amiga. – Eu não gosto de fazer esse tipo de coisa, mas foi preciso. Por favor, termine com a lamentação daquele homem. ­ Eu não posso fazer isso. – Olha para o homem, ele ainda segura firme a arma em suas mãos. – Eu não vim aqui para levar ninguém, só quero saber o que está acontecendo. ­ Eu sei... Mas ele precisa morrer, e eu não posso fazer nada. Você pode. – Olha nos olhos de Aniel. – O corpo do garoto não vai ser suficiente para aquelas criaturas, o homem precisa morrer também. ­ Eu exijo uma explicação! – Se afasta da amiga. – Agora! ­ Eu prometo te contar tudo, mas não aqui. ­ Ótimo, vamos embora. ­ Não podemos. Não até ele morrer. – Aseália volta a olhar para o homem, as criaturas começam a cercá­lo. ­ Por que não? – incrédula. ­ Veja você mesmo a sua volta, tudo não lhe parece meio estranho; apagado? – Aniel olha em volta, era a sensação do manto sobre o parque que sentia. – Estamos presas aqui, isso passou a acontecer depois que comecei a levar nomes que não estavam no livro. Eu já nem tenho mais um livro... Ele se desfolhou, como uma rosa perdendo suas pétalas. ­ E você quer que o mesmo aconteça comigo? – Aperta seu livro contra o peito. ­ Não, claro que não. Mas não temos escolha. Eu nunca vi tantos assim, e só garoto não vai saciá­los. – Aniel volta a olhar o homem e as criaturas que o cercam, tirar­lhe a vida não era o certo a se fazer, mas e se Aseália estivesse certa, se as duas realmente não pudessem sair dali. Nunca negara nada a amiga, e a curiosidade pesa. Ela olha para o homem e ele imediatamente põe a arma em sua boca e atira. A loira não consegue ver mais o homem, as criaturas se atiraram tão rápido sobre o corpo que não foi possível nem vê­lo tocar o chão. Essa morte foi diferente, foi amarga e doeu em seu coração. Isso nunca havia ocorrido. Aseália fica ao seu lado e novamente põe a mão em seu ombro, as duas se viram e começam a caminhar para longe. O sol volta a brilhar aos poucos, ao longe alguém grita, porém subitamente o som se esvai, Aniel e Asélia continuam caminhando cabisbaixas em alguma rua de algum lugar da Europa. Chegam a um pequeno café, sentam em uma mesa próxima a um canteiro de flores e pedem duas xícaras de café. ­ Tudo bem Ani? ­ Claro que não... ­ Me desculpe por meter você nisso, eu realmente não queria... – Toma um grande gole de café. ­ Deixa de besteira, me fala logo o que esta acontecendo. – Aniel não toca em seu café, nem olha para sua amiga. Seu olhar está vazio e perdido. ­ Alguns anos atrás eu tive um sonho, um sonho muito estranho. Eu mergulhava num mar escuro e gelado. Eu nadava e nadava, cada vez mais fundo. Lá embaixo tinha um tipo de pirâmide invertida, e dela saia tentáculos enormes, diferentes de qualquer coisa que eu já tenha visto. – Aniel continua olhando para o vazio. – Eu lembro que acordei em pânico. Nunca havia me sentindo assim, foi muito estranho. ­ Todo mundo têm pesadelos às vezes. ­ Não foi um pesadelo, eu não sei dizer como, mas eu estava lá. Tudo era muito estranho... – Sua voz se esvai na lembrança. 105 ­ Isso não explica nada. – Fala amarga. ­ Eu sei, mas tenho mais coisas para te contar. Na mesma hora eu deixei meus afazeres aqui e fui procurar .................., esperava que ela me esclarecesse o que tinha acontecido. ­ Estranho. ­ O que? – Pergunta ao ouvir o comentário. ­ Eu encontrei com .................. há pouco tempo, e ela não me contou que tinha falado com você. ­ Não confie nela. Aquela mulher é podre por dentro. Seu único interesse é em fazer o matemático cego. ­ E o que aconteceu? ­ Ela me contou algo que eu achei impossível de acreditar no início, mas depois não tive dúvidas. Ani, nós vivemos um sonho. – Aniel olha pela primeira vez durante a conversa para a amiga. – Eu sei que é difícil de acreditar, mas é verdade, eu vi com meus olhos. ­ Como? – Nada que a amiga falava a surpreendia mais, ter levado aquele nome que não estava no livro havia destruído qualquer interesse ou bom humor que pudesse aparecer numa situação como essa. ­ Eu não esqueci aquele sonho e com o tempo consegui descobrir aonde eu mergulhava. Eu fui lá, e ela estava lá, a pirâmide, mas havia duas e não uma. Elas ficavam uma sobre a outra, parecia uma ampulheta. Encima o mar e embaixo um deserto. Aonde as duas pontas se tocavam eu pude vê­lo. Não há como explicar, ele estava e não estava ali, eu sentia meu corpo formigar conforme ele respirava, era pequeno como se estivesse há quilômetros de distância, porém era como se estivesse na minha frente. Eu fiquei apavorada Ani, como nunca antes, nem depois. Foi a pior coisa que já senti. Um vazio, como se não houvesse mais nada, como se eu fosse sumir. ­ É difícil de acreditar Aseália, e se for verdade, então nós não somos reais? Acho difícil de acreditar nisso. – Toma seu primeiro gole de café, mas ele já está frio. ­ Mas é verdade, nós somos reais, não há dúvida nisso. – Faz uma breve pausa. – Eu sei que é difícil de entender, mas é verdade. ­ Isso tudo não me explica porquê de você matar todas essas pessoas sem motivo. – Fala irritada. ­ Não, não explica mesmo... ­ Qual o motivo de tudo isso? – O garçom serve mais duas xícaras de café. Começa a anoitecer, algumas pessoas entram no estabelecimento, mas nenhuma parece prestar atenção as duas. ­ Depois de ver as pirâmides eu me encontrei com a Royel, ela estava apavorada. Ela não conseguia se lembrar dos últimos três anos da vida dela, tudo simplesmente havia sumido da mente dela. – Aniel começa a se lembrar do encontro dela com Aséalia em Paris, agora sabia o motivo daquela preocupação. – Eu fiquei alguns dias com ela, tentando descobrir o que podia ter ocorrido, mas não descobri nada. E para piorar ela mesmo acabou desaparecendo. Nunca mais a vi. ­ Como assim? Ela não pode ter simplesmente ido embora? ­ Acredito que não amiga, não sem pelo menos deixar um bilhete. Ela não foi a única a sumir. Tente se lembrar, há anos atrás nós éramos várias, mas hoje não passamos de um punhado espalhadas pelos continentes. ­ Isso faz parte de quem nós somos, eu aprendi isso da pior maneira. A humanidade é um vírus que nos corrói por dentro, nos modifica por completo. A gente deixa de ser, a imortalidade não existe Aseália. Elas devem ter virado humanas, eu quase virei. 106 ­ Não foi isso Ani! – Se exalta, mesmo assim ninguém em volta parece notar. – Não foi. Se esse tivesse sido o caso seus nomes teriam aparecido no livro de alguém, porém isso não aconteceu. ­ Você não tem como saber. – Responde seca, Aseália pára e respira por alguns instantes. ­ A verdade é que nós estamos ficando sem propósito Aniel, logo não haverá mais nomes em nossos livros e nós vamos sumir. ­ Isso é inevitável segundo alguns... ­ Com quem você conversou? – Pergunta curiosa. ­ Não sei, eu não o vi. ­ Onde foi? ­ Num salão, foi o lugar mais nojento e repugnante em que eu já estive. ­ Ele te falou o que? ­ Algo parecido com o que você falou. Nós somos um sonho, e assim que aquela coisa que você viu acordar nós todos vamos sumir. ­ Eu acredito que isso vá acontecer mesmo, mas não é com isso que eu estou preocupada Ani. Não é por isso que você começou a alucinar ou sentir dores do nada. – Aniel a olha com seriedade, finalmente estava conseguindo algumas respostas. – Eu também passei por isso, todas nós. A humanidade está com seus dias contados, eles se consomem como loucos, sem respeito por nada. ­ Isso sempre foi assim. ­ Está piorando Ani. Eu vi o Futuro, e esse planeta é man’s free. ­ Você viu o Futuro? Você foi até aquela casa no meio do nada falar com aqueles dois idiotas? Eles ainda usam terninhos e ficam se contradizendo? ­ Uhum. Não mudaram nada. ­ Você sabe que o nosso tempo não é estável o bastante para se acreditar no que eles dizem. – Aniel tanta se lembrar da última vez que falou com os dois, no entanto não consegue. ­ Dessa vez foi diferente, no futuro de todas só havia o vazio. A humanidade está à beira de um colapso, guerras por petróleo, água, comida e doenças. Tudo isso vai cobrar um alto preço no futuro. Então tudo que eu fiz foi arrumar as coisas, fiz minha própria lista. ­ Você não pode tirar vidas baseada em suposições, você não pode decidir quem vive ou morre, nós só resguardamos a essência deles, para que elas não se percam. O matemático não as cria mais, e esse é o nosso único objetivo. – Aniel olha para sua amiga decepcionada, ela parecia outra pessoa. Não entende como alguém pôde sentir a dor, a náusea e tristeza de tirar a vida errada e continuar com isso. ­ Eu não acredito mais nisso Ani, e fiz o que fiz para que nós continuássemos aqui. Matei todos que de qualquer forma pudessem por em risco a vida que esse povo ganancioso vive. E vou matar de novo. – Fala com prazer, Aniel sente repulsa por ela. ­ Não sei como eu pude ficar preocupada contigo... ­ Devias me agradecer, sua ingrata. Eu fiz o que fiz para por todas nós. Eu sei que você e a Rochel foram caçadas por aquelas criaturas negras nojentas, e iriam continuar sendo se eu não tivesse feito nada. ­ Você é egoísta, e sempre foi. Não diga que fez isso pelo outros. – Aniel se levanta. – Não quero saber de mais nada, eu vou embora. – Começa a se afastar da mesa. ­ Eu não vou estar mais de olho em você. – Fala Aseália irritada ainda sentada. 107 VII Os sons das ondas quebrando ao longe a acalmava antigamente, mas nada parecia surtir efeito nos últimos dias. Aniel se sentia apagada por dentro. Seu livro estava confuso, e ela também não sabia se conseguiria levar alguém de novo. Sua boca ainda estava amarga e seu estomago embrulhado. Não sabia há quanto tempo estava sentada naquele banquinho de frente para o mar, mas com certeza não era tempo o suficiente. A loira olha para a direita, alguém se aproximava dela, era um homem de terno branco e chapéu coco. Ele se aproxima e senta ao lado dela no banco. ­ Linda vista não? – Começa a falar o homem. ­ Por enquanto sim. – Desanimada. ­ Se eu me lembro bem você era mais bem humorada. ­ Isso foi no passado. – Sorri com o canto da boca, o homem também ri um pouco. ­ Assim está melhor. – Ficam em silêncio por um ou dois minutos. ­ Então, o que você quer comigo? ­ Eu quero ajudá­la. ­ Acho difícil você conseguir fazer isso... ­ Por que você morava em hotéis, andava de carro e vivia a vida deles? ­ Eu não sei... Mas parecia tão mais interessante, divertida... Eles têm curiosidade, se animam com quase tudo, a única coisa que me fazia bem era ver os outros sofrendo para eu poder levá­los. ­ E agora? ­ Acho que não consigo mais. Por mais que eu deva, e sei que é necessário, não consigo. – Abaixa a cabeça O que ela fez comigo... ­ Eu tenho algo aqui para você. – O homem retira do bolso uma pequena caixa, dentro estava a rosa de vidro que havia sido criada de uma lagrima da loira. ­ Como você conseguiu ela? – Pergunta espantada. ­ Nós roubamos de ................... – Entrega à rosa para a outra. ­ O que eu devo fazer com ela? ­ Feche os olhos e a quebre na palma de sua mão. – Fala com um sorriso. Aniel o olha um pouco desconfiada, mas não tinha nada a perder. Fecha os olhos e respira fundo. Sua mão se fecha estilhaçando a flor em mil pedaços. Silêncio, o mar se foi, nem sua respiração faz barulho. Um cheiro adocicado a rodeia, um murmúrio de vozes ao fundo. Se coração acelera sem motivos. Suas mãos tocam algo frio, alguém a chama. ­ Aniel? Aniel você está bem? – Abre os olhos, uma garota está ao seu lado com um olhar sério, parecia muito preocupada. Aniel olha envolta, parecia estar em um banheiro. Aquele lugar lhe era familiar. – Aniel, tudo bem? ­ Não sei, acho que sim. Só parece que um caminhão passou pela minha cabeça. – Fala confusa. ­ Eu sei, você não parecia estar muito bem lá na mesa. ­ Como? 108 ­ Deve ser estranho pra você ser o centro das atenções, você parece ser tão reservada. – A garota começa a retocar sua maquiagem. – Sabe é realmente importante que nossos pais gostem de você. ­ Quem? – Tenta caminhar para fora do banheiro, mas perde o equilíbrio, a garota consegue evitar que caia. ­ Nossa, você ta bem? Acho que sua pressão deve ter caído ou algo assim. Quer que eu chame um médico? – Pergunta preocupada. ­ Não precisa... Eu me sinto tão estranha. ­ Acho melhor nós voltarmos, já estamos aqui uns bons dez minutos. ­ Eu só vou passar mais uma água no rosto, vai na frente. ­ Certo. – A garota sai do banheiro, Aniel continua ali olhando para o espelho. Seu rosto parecia levemente diferente, não sabia dizer o que era. Uma das portas dos toaletes é aberta, era Mihael. ­ Olá Ani. – Fala sorrindo. ­ Oi Mi! – Responde alegre. – Que bom que você está aqui, eu estou tão confusa, não me sinto bem. ­ Isso é normal. ­ A loira faz uma expressão de quem não entendeu o comentário. – Ani, eu vim me despedir, você não é mais uma de nós. ­ Como assim? – Pasma. ­ Você decidiu que não queria mais, acho que você sempre quis viver sua vida aqui. ­ Eu não me lembro de nada. Tudo parece um borrão. ­ Não se preocupa, com o tempo você irá lembrar de tudo, mas não acredito que vá acreditar nessas lembranças no futuro. – Abraça a amiga. ­ Eu vou tentar não te esquecer, você foi uma grande amiga. ­ Você também. – Se desvencilham. – Agora vá, ele está te esperando. Hoje é seu dia. ­ Acho que dessa vez eu digo “sim” então. – Respira fundo. ­ Com certeza. ­ Mi... ­ Sim? ­ Muita coisa mudou? Quero dizer, na minha “vida”. – Pergunta segurando a maçaneta da porta. ­ Não, mas agora você é só uma. E não precisa se preocupar, eu venho por você daqui há vários anos. ­ Obrigada amiga. Adeus. ­ Adeus. 109 

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