COROCORPOGRAFIA COROCORPOGRAFIA é o nome de um

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COROCORPOGRAFIA COROCORPOGRAFIA é o nome de um
COROCORPOGRAFIA
Nena Balthar (Ana Adelaide Lyra Porto Balthar)
Doutoranda, IA UERJ.
Artista visual.
RESUMO
O presente ensaio é uma reflexão sobre o desenho e o pensamento de existir a
possibilidade de uma geografia própria à ele mesmo. O ponto de partida para tal reflexão
são as obras que desenvolvo desde 2005 e as denomino desenhos performáticos. Nelas o
corpo do desenhador é parte integrante. Portanto a reflexão implica pensar sobre a
geografia desse corpo pois ela é também pensar a geografia própria ao desenho. O projeto
de performance de palco COROCORPOGRAFIA é um laboratório importante para levar a
diante essa reflexão.
Palavras-chave: Corpo, desenho, performance
ABSTRACT
This essay is a reflection about drawing and the thought of possibility of existence a drawing
geography. The beginning point for it is the art works that I develop since 2005 called
performatic drawings. Within those art works the body of who draws is considered part of the
drawing. So the reflection implies thoughts about the geography of this body as the drawing’s
geography. The project COROCORPOGRAFIA is a very important laboratory to realize this
research.
Key works: body, drawing, performance
COROCORPOGRAFIA é o
nome de um projeto em desenvolvimento de
performance de palco1 no qual o desenho e suas relações com o corpo, o som e a
dança, e o espaço cênico que os desenhos performáticos promovem são abordados
a partir da criação de uma coreografia. A realização do projeto conta com a direção
da atriz Fabianna de Melo e Souza que atuou no Theatre Du Soleil 2, e de uma
dançarina para desenvolver um diálogo com meus movimentos ao desenhar. A ideia
do projeto partiu de uma reflexão sobre os desenhos performáticos que desenvolvo
desde 2005. O intuito é pensar uma geografia do desenho, mais precisamente do
gesto que o origina e pensar a geografia desse corpo que faz o gesto que gera o
desenho, bem como as interseções entre o corpo, os gestos e o desenho.
Na minha prática artística os movimentos cotidianos são transpostos para uma
narrativa de gestos que lidam com a repetição, a exaustão e o ritualístico da vida.
Associo esses procedimentos ao desenho do espaço que habitamos como modos
de compreender o mundo. Assim sendo, relaciono minha prática à geografia. Uma
geografia do próprio desenho e uma geografia do corpo que desenha. O desenho
performático COROCORPOGRAFIA tem a intenção de ser uma transposição dessa
geografia para uma coreografia.
Desde 2000 desenvolvo uma série de obras que lidam com um programa3, ou seja,
um modo de fazer que implica em rigor e disciplina ao executar gestos que
materializam linhas sobre a superfície do papel. Os desenhos/instalações Vinte e
quatro horas. Riscado e Apagado e 365 minutos: Riscados e Apagados fazem parte
dessa idéia.
Fig.1 Vista da instalação Vinte e Quatro horas, riscado e apagado. 2001 – 2011. Galeria Cândido
Portinari.
A partir de 2005, passei a utilizar, além de papel, paredes como superfície para os
desenhos e a filmar meus gestos e meu corpo ao desenhar. Nesse momento as
imagens
oriundas
dessas
ações
foram
incorporadas.
Surgem
os
desenhos/instalações denominados Desenhos Performáticos.
2
Para cada desenho elaboro um programa. No caso da obra Camadas4 realizo em
grafite linhas verticais de uma extremidade a outra de uma das paredes de uma
sala. As linhas tem minha estatura como medida e são feitas repetidamente até que
meu corpo fique exaurido e o grafite se torne denso. Concomitantemente a
realização do desenho, as minhas ações são gravadas em vídeo. As imagens são
posteriormente editadas para serem projetadas sobre o desenho com um pequeno
deslocamento de modo a formar um ângulo com a parede lateral (sem desenho).
Figs 2 e.3: Vistas do desenho performático Camadas 2008-2010. Centro Cultural da Justiça Federal.
Por considerar o desenho uma ação visível5 - operações de gestos nos quais a
coreografia surgida dos movimentos do corpo ao realizar o desenho é considerada
parte do mesmo bem como os afetos sobre o corpo pela ação de desenhar - vejo
nessas ações correspondência com o ritualístico. Os movimentos que executo
3
podem ser considerados uma ascese pelo desenho, fazer sempre o mesmo
movimento como em um exercício e nessa repetição permitir que a mente se abra 6
para a possibilidade de imaginação, de memórias e de invenções.
No programa as especificações dos gestos para realizar os desenhos levam à um
desligamento da consciência fazendo parecer que são movimentos mecânicos.
Entretanto as linhas de grafite e as imagens superpostas revelam a mão e o corpo
que as delineou. Como se fosse possível ao corpo estar sempre ali a inaugurar o
movimento diante de quem adentra o ambiente da instalação. Os Desenhos
Performáticos promovem uma espaço cênico convidando o espectador a
experimentar um entrecruzamento de temporalidades.
Identifico nesse mapeamento temporal uma consonância com o que diz Milton
Santos sobre a relevância de se pensar a ação, em lugar de espaço, como conceito
teórico da geografia social7
Seria então possível uma geografia do desenho uma vez que é considerado uma
ação visível?
A retrospectiva Sol LeWitt: A Wall Drawing Retrospective, abarcando vinte e cinco
anos da produção do artista necessitou de uma equipe bem preparada e com
grande habilidade para executar os programas das instruções de LeWitt para cada
desenho. Alguns deles também foram refeitos na DIA Art Foundation em Nova York
e em 2009 tive a chance de ver, melhor dizendo, de experimentar. O impacto foi
grande, não imaginava que o ambiente se tornasse tão envolvente e cheio da pulsão
dos que dispensaram horas e destreza para realizar tal tarefa8. Impressionou
também a delicadeza e singeleza das linhas. Fiquei ali pensando distraída com o
sentimento de abertura na mente que tal exposição me proporcionou. Estamos
sempre encontrando “pares” e afirmo que vejo nessas obras confluência de
interesses. O suficiente para trazê-las para essa reflexão.
Quando Sol LeWitt iniciou a série de desenhos em 1967 atestou que a “a ideia se
torna a máquina que faz a arte”9. Porém não é o que Lynne Cooke10 reconhece ao
escrever que “no caso dos Wall Drawings, se não em suas esculturas, o impacto de
seguir rigorosamente esse axioma prova-se qualquer coisa menos do que ser
4
mecanicismo”11 E continua, “o espectador está sempre aguçadamente prevenido de
que a estrutura ardente de grafite foi feita por mãos”12 e ainda que
em outros, nos quais incorpora às composições como um artifício formal os
blocos de textos impressos com suas instruções verbais, traindo a lacônica
sutileza visual, seus criadores quase não disfarçam o deleite de que a mais
límpida prescrição possa produzir resultados perturbadores – ou o inverso13
A máquina que faz os desenhos do artista é um ser humano e saber que são dele os
traços que vemos implica em novas percepções. Saber como são as instruções
dadas pelo artista também nos leva a relações com outros gestos e desempenhos
do homem. Vejamos as instruções de Sol LeWitt para a realização do Wall Drawing:
123 Copies Lines.
O primeiro desenhador14 desenha uma linha vertical torta e o mais longa possível. O
segundo desenhador desenha uma linha próxima a do primeiro, tentando copiá-la. O
terceiro desenhador faz o mesmo. Assim faz-se o mesmo com o maior número de
desenhadores possível. Depois o primeiro desenhador, seguido pelos outros, copia
a última linha desenhada até que se tenha atingido os dois lados da parede 15
Figs 4 e 5. Sol LeWitt. Wall Drawing: 123 Copied Lines. 1972 - 2006. Fontes:
http://remixtheory.net/?p=403 e http://lineforms.blogspot.com.br/2008/07/sound-emerging-fromnowhere-increasing. html
Lynne Cooke ao escrever sobre LeWitt, faz uma aproximação entre os
procedimentos estruturais da Wall Drawing 123: Copied Lines de LeWitt e a
5
coreografia para a Spanish Dance16 de Trisha Brown. Para Cooke ambos lidam com
os gestos corporais de seus assistentes (em LeWitt os desenhadores e em Brown os
bailarinos) evidenciando o que penso ser a geografia do desenho que carrega a
visibilidade de um corpo.
A possibilidade de dimensão geográfica do desenho também pode ser relacionada à
série de desenhos PENWALD do artista Tony Orrico. Com formação em dança e
trabalhos realizados em companhias como Trisha Brown Dance Company e Shen
Wei Dance Art, Orrico desenvolveu uma série de desenhos feitos a partir de um
programa e do uso do corpo como ferramenta de medida para inscrever formas
geométricas através de movimento em série.
Figs 5 e 6 Tony Orrico. 8 Circules à direita e Permanente simetria harmônica, a esquerda. Disponível
em: http://www.tonyorrico.com/PENWALD_DRAWINGS.html
Orrico trabalha com uma partitura conceitual que estabelece como programa uma
técnica eficiente e imposições de variações de durações e de objetivos específicos.
Investigando os limites do corpo desde sua dimensão até um esforço extremo 17. O
que vemos são rastros dessas partituras instaurando um espaço cênico, a inscrição
de uma geografia do corpo que considero uma geografia do desenho.
O geógrafo Milton Santos diferencia espaço de paisagem. Sendo espaço uma
paisagem impregnada de relações do homem com seu presente. Diz o autor:
“Paisagem e espaço não são sinônimos. A paisagem é o conjunto de formas que,
num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas
relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a
vida que as anima”18 .
6
Pensar os espaços instaurados pelos meus desenhos performáticos reverbera tanto
nos Wall Drawings de LeWitt quanto nos Penwald de Orrico. O embate do corpo
com o ambiente proporciona a formação de um espaço a partir de uma paisagem –
as arquiteturas, do papel, da parede e da sala.
Ao dizer que identifico a instauração de um espaço nos desenhos performáticos
localizo o corpo como principal promotor desse espaço e que a coreografia que
provém do corpo ao desenhar atua como a materialização dessas ações possíveis
de serem reverberadas nas repetições. Uma impregnação de relações do homem
com o seu presente. O espaço cênico, a dança, o desenho. A sua geografia
possível?
Notas e Referencias
1 A idéia de performance de palco tem o objetivo de por em jogo dança, teatro e desenho.
2 O Théâtre du Soleil é uma companhia de teatro fundada pela a diretora Ariane Mnouchkine em
1964 na França. É uma das maiores, senão a maior, companhia permanente de teatro da Europa.
3 Sobre a idéia de programa tomo como referências as idéias: de ação de Milton Santos que diz que
toda ação implica em uma intencionalidade e tem a possibilidade de alterar uma situação na qual se
está inserido. E a idéia Minimalista de uma nova ordem que não era, nas palavras de Donald Judd,
“racionalista e subjacente, mas é simplesmente ordem, como a da continuidade: uma coisa depois da
outra” . KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura Moderna. Martins Fontes, São Paulo 2001
4 Cito essa obra em especial pois é a origem do projeto COROCORPOGRAFIA .
5 Em referência a Roland Barthes quando ele diz: “O trabalho é uma ação visível” em texto sobre o
traço no livro O Obvio e o Obt uso. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios sobre fotografia,
cinema, pintura, teatro e música. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1990.
6 Deleuze diz que o artista quando se utiliza da repetição não reproduz um elemento pelo conceito da
identidade, pela justaposição de elementos em excesso mas sim exerce c ombinações entre
exemplares e seus elementos, introduzindo “ um desequilíbrio, uma instabilidade, uma dessimetria,
uma espécie de abertura, e tudo isso só será conjurado no efeito total ”. DELE UZE, Gilles. Diferença e
Repetição. Edições Graal. 2006
7 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. EDUSP, São P aulo reimpr. 2006. Disponível em:
http://www.geociencia.xpg.com.br/dwd/Milton_S antos_A _Natureza_do_Espaco.pdf
8 Na minha dissertação de mestrado utilizo a palavra tarefa na ac epção da coreografa Ann Halprin,
cuja a idéia era permitir aos bailarinos uma modificação em seus processos mentais a partir de uma
tarefa cotidiana o que resultou em nova conc epção de dança. BALTHA R, Nena. Desenho: Uma
Habitação no Tempo. Dissertação (mestrado em Arte e Cultura Contemporânea – Linha de pesquisa
Processos Artísticos Contemporâneos). Rio de Janeiro: Instituto de Artes, UERJ, 2009.
7
9 Tradução nossa. Em inglês é: “The Idea becomes a machine that makes the arte”. CROSS, Susan
and MA RKONIS H Denise (org.) Sol LeWitt 100views. Mass MoCA, Nort h Adams in association with
Yale University Press, New Haven and London.
10 Lynne Cooke é curadora da DIA Art Foundation, New York.
11 Tradução nossa. Em inglês é “In the case of his wall drawings, if not his sculptures, the impact of
rigorously following this axiom proved anything but mechanistic.. COOKE, Lynne. Wall Drawing 123:
Copied Line. Em CROSS, Susan and MARK ONISH Denise (org.) Sol LeWitt 100views. Mass MoCA,
North Adams in association with Yale University Press, New Haven and London.
12 Tradução nossa. Em inglês é “the spectator is always keenly aware that the fabrile graphite
structures were made by hand”. Ibid
13 Traduç ão nossa. Em inglês é “ Others, which inc orporate into their compositions as a formal device
the blocks of printed text comprising their verbal instructions, bet ray a laconic visual wit, their c reat or’s
barely disguised delight in the way that the most limpid prescriptions may produce befuddli ng results –
or the converse”. Ibid
14 Tradução nossa. Em inglês é draftsman.
15 Tradução nossa. Em inglês é “The first draftsman draws a not straight vertical line as long as
possible. The second draftsman draws a line next to the first one, trying to c opy it. The third draftsman
does the same, as do as many draftsmen as possible. Then the first draftsman followed by the others,
copies the last line drawn until both ends of the wall are reached”. COOKE, Lynne. Wall Drawing 123:
Copied Line. Em CROSS, Susan and MARK ONISH Denise (org.) Sol LeWitt 100views. Mass MoCA,
North Adams in association with Yale University Press, New Haven and London.
16 Segundo Lynne Cook e as anotações de Trisha B rown para a coreografia Spanish Dance tinha a
forma de um diagrama e vinham ac ompanhadam de um texto: Dançarino A ergue o braço lent amente
como um magnífico dançarino Espanhol e caminha para frente para o ritmo da musica the E arly
Morning Raí ’de Bob Dylan. Quando o dançarino A tocar as costas do dançarino B, dançarino B ergue
o braço lentamente como um magnífico dançarino Espanhol e os dois caminham para frent e e toc am
as costas do dançarino C, etecetera até que todos alcancem a parede. Tradução nossa. Em inglês é:
“Brown’s notation for Spanish Dance takes the form of a diagram with accompanying text: ‘Dancer A
slowly raises arms like a magnificent Spanish dancer and travels forward in time to B ob Dylan’s In the
Early Morning Rain’. When dancer A touc hes up against the back of dancer B, dancer B slowly raises
arms like a magnificent Spanish dancer and the two travels forward, touching up against the back of
dancer C, etcetera until they all reach the wall’. Ibid.
17 http://www.tonyorrico.com/PENWALD_DRAWINGS.html
18 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. EDUSP, São Paulo reimpr. 2006. Disponível em:
http://www.geociencia.xpg.com.br/dwd/Milton_S antos_A _Natureza_do_Espaco.pdf
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